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Fatores reguladores da virulência de Staphylococcus

aureus
Escrito em julho 24, 2010 4:39 PM, por Roberto

Antibióticos, bactérias, infecções, microrganismos são alguns dos assuntos que mais
gosto, como meus leitores já devem ter percebido. Já foram postados vários textos neste
blog sobre esta temática. Também já escrevi aqui sobre a bactéria patogênica
Staphylococcus aureus, que pode ser extremamente nefasta, principalmente se a
infecção por esta não for adequadamente tratada.

S. aureus, como é conhecida, é uma bactéria danada. Ela possui vários mecanismos de
virulência, como proteínas que atuam na adesão desta bactéria a superfícies e na invasão
de tecidos de hospedeiros, exoproteínas que atuam contra mecanismos de imunidade,
além de também possuir toxinas que causam hemólise (destruição dos hemócitos, ou
glóbulos vermelhos) e que formam poros em membranas, permitindo o “vazamento” de
íons e outras moléculas pequenas de células de hospedeiros. Para que cause infecção, é
necessário que os fatores de virulência de S. aureus atuem de forma coordenada, até
mesmo de maneira redundante, de tal forma que se um de seus fatores de virulência for
afetado, os outros continuarão ativos.

Staphylococcus aureus

Descobriu-se que S. aureus tem um gene regulador de virulência, denominado agr


(accessory gene regulator). Até pouco tempo atrás se sabia que a expressão do gene agr
era regulada por um sinalizador químico. E se sabia de que tipo era este sinalizador:
uma molécula pequena, da classe dos metabolitos secundários. Também se descobriu
que, apesar do gene agr ter uma grande importância na regulação da virulência de S.
aureus, este gene não é essencial para a expressão da virulência. São conhecidos
isolados clínicos (de hospitais) de S. aureus desprovidos do gene agr.

Recentemente, pesquisadores realizaram uma extensa análise do material genético


(genoma) de S. aureus, de maneira a verificar a presença de genes reguladores da
biossíntese (processo enzimático de várias etapas que é responsável pela formação das
moléculas biológicas, como proteínas, açúcares, DNA, RNA, e também de metabolitos
secundários) de peptídeos não-ribossômicos exclusivos de S. aureus. Analisando o
genoma desta maneira, é possível se detectar a presença de genes que regulam a
biossíntese de substâncias específicas, e propor a estrutura química das mesmas, uma
vez que estes genes coordenam a ação de enzimas que atuam de maneira bem
estabelecida. Foram analisados 50 genomas de S. aureus, e identificado um agregado de
genes (gene cluster) responsável pela biossíntese de peptídeos não-ribossomais (ou seja,
peptídeos que não são formados nos ribossomos, como são a grande maioria das
proteínas, peptídeos muito grandes) ainda desconhecidos. O agregado de genes mostrou
ter um gene de 7,17 Kb (1 Kb = 1000 bases nucléicas, que formam o DNA), que ocupa
apenas 0,25% do genoma de S. aureus.

Este agregado de genes regula a formação de uma sintetase de peptídeos não-


ribossomais (NRPS, non-ribossomal peptide synthetase) de 2389 aminoácidos. Esta
NRPS mostrou ter sítios que atuam na formação de um dipeptídeo (um derivado de dois
aminoácidos) com estrutura muito peculiar: é formado a partir dos aminoácidos valina e
tirosina, que se condensam e dão origem a uma estrutura cíclica, de massa molecular de
262,17 u.m.a.(u.m.a. = unidade de massa atômica). Ou seja, a partir da análise do
genoma de S. aureus, foi possível se encontrar genes que regulam a formação deste
dipeptídeo, cuja estrutura pôde ser predita a partir dos resultados obtidos da análise do
genoma.

Porém, era necessário que esta predição fosse confirmada.

Desta forma, os autores deste estudo cresceram S. aureus em meio de cultura, extraíram
o meio de cultura com solventes orgânicos e analisaram os extratos do meio de cultura
por cromatografia líquida (HPLC, high-performance liquid chromatography) acoplada a
um detector de espectrometria de massas. Desta forma, para cada substância separada
foi possível obter um espectro de massas, que indica a massa molecular da forma
protonada das substâncias presentes no meio de cultura de S. aureus. Estas análises
indicaram a presença de duas substâncias (dentre outras) no extrato orgânico do meio de
cultura de S. aureus: uma de massa 262 e outra de massa 246. As duas mostraram ser
muito parecidas pelo fato de serem pouco separadas na análise por HPLC, e também por
apresentarem espectro no ultravioleta muito similar. Ou seja, talvez estas substâncias
apresentassem estruturas muito parecidas, e tivessem uma biossíntese comum.

Esta hipótese foi confirmada após a obtenção das substâncias puras, uma separada da
outra. Após isoladas, puderam ser analisadas por várias técnicas espectroscópicas,
principalmente por diferentes experimentos de ressonância magnética nuclear (RMN).
Estas análises indicaram que um dos dipeptídeos isolados era formado por tirosina e
valina (aureusimina A), e o outro por fenilalanina e valina (aureusimina B). A diferença
entre os dois é de apenas um átomo de oxigênio.
Para confirmar que estes dois dipeptídeos eram realmente biossintetizados por S.
aureus, o gene ausA, supostamente responsável pela regulação da biossíntese destas
duas substâncias, foi substituído por um gene artificial. E S. aureus não mais produziu
as aureusiminas.

Em seguida, foram feitos testes com as duas substâncias (aureusiminas A e B) para


verificar como estas influenciavam na expressão do gene agr, que controla a virulência
de S. aureus. Observou-se que a substituição do gene ausA de S. aureus, responsável
pela biossíntese das auresiminas, por um gene artificial alterou completamente o padrão
de expressão do gene agr, responsável pela virulência. Observou-se diminuição na
formação de proteínas imunomodulatórias, de proteínas de adesão, bem como de
proteínas líticas (que promovem o rompimento de membranas) e de citotoxinas (toxinas
de células). Enquanto tais proteínas mostraram ter sua produção estimulada na presença
das aureusiminas, na ausência destas substâncias as proteínas virulentas mostraram ser
produzidas em quantidades muito menores.

Claramente as aureusiminas mostraram atuar na regulação das proteínas participantes do


processo de virulência de S. aureus.

Normalmente, S. aureus “original”, sem ter seu genoma alterado, promove hemólise.
Quando o gene ausA foi suprimido, a hemólise promovida por S. aureus sem este gene
também foi suprimida. Quando se adicinou as aureusiminas no meio de crescimento de
S. aureus com seu genoma alterado (com o gene ausA deletado), voltou-se a observar a
hemólise. Claramente as aureusiminas participam diretamente da ativação dos processos
de virulência de S. aureus.

E mais: quando camundongos sadios foram infectados com S. aureus “original” (sem
ter seu genoma alterado), os bichinhos apresentaram grande quantidade de unidades
formadoras de colônia (um indicativo de proliferação bacteriana) em seus rins, fígado,
baço e coração. Quando os camundongos foram infectados com S. aureus mutada, com
o gene ausA suprimido, observou-se que os rins apresentaram grau de infecção, mas os
outros três órgãos muito menos, principalmente o coração (praticamente sem infecção).
Ou seja, a inibição da biossíntese das aureusiminas levou a um grau de infecção
virulenta muito menor.

A descoberta que as aureusiminas controlam a virulência de S. aureus abre um enorme


conjunto de possibilidades para o desenvolvimento de novas formas de tratamento de
infecções por esta bactéria. Por exemplo, a eventual descoberta de inibidores da
biossíntese das aureusiminas pode significar a abolição do uso de antibióticos para o
tratamento de infecções por S. aureus. Embora tal perspectiva possa parecer distante,
tudo depende do esforço de pesquisadores acadêmicos e de indústrias farmacêuticas
sérias. O mecanismo de ação de tais agentes inibidores da virulência de S. aureus seria
completamente diferente do mecanismo de ação dos antibióticos. Isso porque os
inibidores da biossíntese das aureusiminas interferem no processo bioquímico de
formação destas substâncias, muito mais difícil de sofrer uma mutação benéfica para
continuar promovendo a virulência. Desta forma, não seria mais necessário utilizar
antibióticos, dos quais as bactérias adquirem resistência (através de mutações) em
poucas gerações.

Infecção causada por S. aureus (nojenta!)

Embora o trabalho realizado com S. aureus pareça muito complicado, realmente não é.
As atuais ferramentas bioquímicas permitem a realização de um trabalho deste em
tempo relativamente curto. Na verdade, os autores mencionam um trabalho publicado
em 2008 como fonte das informações preliminares nas quais se basearam para realizar
seu estudo. A referência original indica que este trabalho (Novick e Geisinger) foi
publicado on-line em agosto de 2008. Ou seja, o estudo realizado com S. aureus levou,
no máximo, menos de dois anos para ser desenvolvido. Uma boa idéia e abordagens e
estratégias de trabalho bem delineadas levaram à publicação de um artigo extramemente
relevante na Science, uma vez que as infecções causadas por S. aureus são consideradas
um dos maiores problemas de saúde pública no mundo.

O que certamente fez a diferença para um trabalho deste ter sido feito em tão pouco
tempo? Acesso a instrumentação e aos materiais (reagentes, linhagens bacterianas,
camundongos) necessários para o desenvolvimento deste projeto. Sem entraves, sem
burocracia, sem demora, sem falta de dinheiro.
Wyatt, M., Wang, W., Roux, C., Beasley, F., Heinrichs, D., Dunman, P., &
Magarvey, N. (2010). Staphylococcus aureus Nonribosomal Peptide Secondary
Metabolites Regulate Virulence Science, 329 (5989), 294-296 DOI:
10.1126/science.1188888
Novick, R., & Geisinger, E. (2008). Quorum Sensing in Staphylococci Annual
Review of Genetics, 42 (1), 541-564 DOI: 10.1146/annurev.genet.42.110807.091640

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