Você está na página 1de 3

A Iara e seu Vassalo

João odiava aquela vida. Todos os dias cortando cana-de-açúcar como um


escravo, sem tempo pra mais nada. Apenas calos e cortes nas mãos. Diferente
de seus amigos, ele aprendeu a ler, com dificuldade é certo, mas aprendeu.
Ele teve acesso a alguns livros sobre romantismo brasileiro e português que o
padre havia lhe mostrado em segredo. João sempre se pegava em devaneios
sobre os poemas que lera. Isso o fez levar varias broncas durante o “serviço”.
Era chamado de louco e de “avoado”. Suas quimeras sempre eram habitadas
por jovens pálidas como nos poemas românticos.
João era também muito supersticioso, andava pelas trilhas da roça a noite com
medo de encontrar uma mula sem cabeça ou um boi tatá. Temia a Iara, mito
que segundo o povo,cantava ao final da tarde para atrair homens para dentro
dos rios e afoga-los.

Certo dia João atrasou-se em suas tarefas de corte de cana, devido às suas
quimeras e perdeu o caminhão que o levaria pra casa e teve de voltar a pé por
trilha perigosa.

Ele rezava o credo e o pai nosso o tempo todo e tremia muito de medo.

A noite era de Lua Cheia e João , como bom romântico esqueceu seus medos
e resolveu admirá-la. Ficou parado por muito tempo imaginando ser o São
Jorge que abateria o dragão e ganharia como prêmio a mão da bela princesa
pálida.

Isso não durou muito. Que reino? Que dragão? Que princesa? Pálida?
A sua volta todos tinham a pele queimada e ressecada pelo sol.

Foi então que ele ouviu um cantarolar, muito baixo, vindo da direção do rio.
Pensou logo na Iara, mas sua curiosidade o impeliu a espiar. Ele ficou
abaixado, oculto pela vegetação perto do rio, foi então que ele viu uma bela
mulher de cabelos negros e longos saindo de dentro do rio. Ela era muito bela
e pálida, como nos poemas que lera escondido. O estranho é que suas vestes
não estavam molhadas.

A bela moça pos a mão sobre o colo de alabastro e virou-se para a Lua. Sua
pele por demais branca ganhava tom azulado quando submetido aos efeitos do
corpo celeste.

João tremia, sabia que era a Mãe d’ Agua e temia que ela descobrisse sua
presença, mas mesmo assim não recuou, pois sabia que em sua curta vida
restante de desgraças não veria de novo tão majestosa cena.

A Iara deitou-se, como se quisesse expor seu corpo à luz da Lua. Ela usava um
vestido branco e transparente de gaza, pelo menos parecia. Ela contorcia-se
como se quisesse expor mais partes de seu corpo a luz da Lua. Ergueu
levemente sua saia para que exibisse com certo recato o que já não podia ser
recatado. João tremia. Ele não podia acreditar, mas a tão temida Iara também
amava e seu amado era alguém com quem nenhum homem poderia competir:
o Astro-Principe.

Ele admirou tão belo e irreal ato de amor.

De repente a Iara parou, cobriu os seios já desnudos com as mãos e mudou


suas feições de amante em gozo para a de mulher em ira.

Ele havia sido descoberto. Pensou em correr, mas de que adiantaria?O canto
dela o traria de volta fácil. O pobre cortador de cana abaixou sua cabeça e
caminhou em direção à Iara, já esperando por sua punição. Afogamento? Não
seria tão ruim

Ao aproximar-se da Dama do Rio ele não ousou cruzar-lhe o olhar, sabia


apenas que no dela continha reprovação.

João ficou imóvel e esperou pelo pior. Mas nisso a Mãe d’Água deixou cair
suas largas vestes tornando desnudo seu corpo perfeito.

O pobre cortador sentiu seu coração disparar e as pernas bambearem e


percebeu que seria aquela sua punição?Morrer com a fibra do peito
arrebentada pela visão de algo que era mais do que divino?

A Iara deu-lhe as costas e começou a entoar canto mavioso, que atraiu o pobre
jovem em direção ao rio, ele já sabia: afogamento.Pelas mãos da Iara.

Ó bela morte, libertadora de vida miserável e sem amores.

O ser fantástico entrou na água e João acompanhou, hipnotizado, apaixonado.

Quando este tinha apenas a cabeça para ser submersa, a Iara parou seu
mergulho, virou-se, o olhou com ternura e disse-lhe:

_Tu sabes dos inúmeros homens desavisados que afoguei nesse rio não?
Sabes por que fiz isso? Eles rendiam-se fácil ao meu canto, mas rendiam-se
não pelo meu poder de controlá-los, mas pela promessa desejosa das mentes
deles de que possuiriam de forma carnal, uma das filhas queridas de Tupã,
mestre da criação. Tu me querias por outros motivos, tu me amaste? Sim,
guardado em castidade,olhaste todo tempo meu ato de união etérea entre mim
e a Lua e não sentiste inveja ou desejo, admiraste o belo e o puro,
compreendeu que aquele não era um ato da natureza a qual pertence.

_Não pequeno e sofrido homem tu na mereces a morte pelo afogamento, não


quero homens puros e castos como ti na terra de Mu-lá. Esta é apenas para
punir aqueles que desejam a tudo da forma mais impura possível e que fazem
qualquer coisa por isso.

Tu deves levar tua vida normalmente e quando chegar tua hora viverás ao meu
lado no reino das águas, tendo de mim, tudo aquilo que lhe é mais caro em
vida.
_Mas Iara, minha vida é miserável, prefiro ir contigo, ninguém nem sequer
notará minha falta.

_Obedece-me,lembra-te que agora sou tua senhora.

João saiu da água e reparou que suas roupas também não estavam molhadas.

O pobre cortador ficou com aquela cena e palavras na cabeça por semanas,
começou a esmorecer e a definhar de tristeza. Ele já não tinha amigos, apenas
uma avó já velha e não muito saudável. Os vizinhos diziam que aquilo era mal
olhado ou feitiçaria.

Certa noite de Lua cheia, João juntou sua ultimas energias e caminhou até a
beira do rio, não viu sinal da Iara apesar da Lua. Pensou ele que ela havia o
esquecido ou jurado em falso.

Foi então que o jovem de alma miserável atirou-se às águas e afogou-se.

Minutos depois a Iara trouxe seu corpo de volta à superfície e murmurou em


pranto:

_Por que desobedeceu tua senhora, meu roceiro-vassalo?

Como recompensa ao sacrifício de seu admirador a Iara devolveu-lhe a vida na


forma de uma coruja de plumagem brilhante, capaz de iluminar as noites sem
luar. A missão de João passou a ser nobre. Quando ele encontrava alguém
perdido no meio da mata ou no meio da escuridão usava seu brilho para guiá-
los a lugares seguros. Porém impuros de coração sempre recusavam segui-lo
e também o temiam.

Essa lenda é quase secreta, pois os que conhecem o serviram-se da coruja


luminosa não têm idéia de suas origens e preferem não comentar sobre ela
para não passarem por loucos ou mentirosos.

Até hoje só um homem conhece a origem dessa coruja e dessa lenda, pois ele
também foi poupado pela Dama Pálida do rio que pediu a ele que contasse
isso apenas a alguém que lhe fosse muito especial.

Por Sergio Gomes

Você também pode gostar