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MAIAKÓVSKI, BAUDELAIRE, LEMINSKI, TORGA E OUTROS POEMAS -

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MAIAKÓVSKI,
BAUDELAIRE,
LEMINSKI, TORGA
E OUTROS POEMAS
MAIAKÓVSKI
A Fé
A Esperança
O Amor
Comumente é Assim
Garoto
Adolescente
Minha Universidade
Adultos
O Que Aconteceu
Clamo
Tu
Impossível
O Que Aconteceu Comigo
Dedução

BAUDELAIRE
A Uma Dama Crioula
O Gato
O Relógio

LEMINSKI
"arte que te..."
Datilografando Este Texto
Hai
Kai
Poeminhas

TORGA
O Caçador
O Pastor Gabriel
Fronteira

JOÃO CABRAL DE MELO NETO


Catar Feijão
Estudos Para Uma Bailarina Andaluza
O Ovo da Galinha
O Sol em Pernambuco
Tecendo a Manhã
Uma Faca Só Lâmina
MAIAKÓVSKI
A Propósito Disto
A FÉ
Distendei vossa espera o quanto quiserdes —
tão clara,
duma clareza tão alucinante
é minha visão
que, dir-se-ia,
bastava o tempo de liquidar esta rima,
para, grimpando ao longo do verso,
entrar numa vida maravilhosa.
Eu não preciso indagar
o que e como.
Vejo-o,
nítido,
até os último detalhes,
no ar,
camada sobre camada,
como pedra sobre pedra.
Vejo erguer-se,
fulgurando no pináculo dos séculos,
isento de podridões ou poeiras,
o laboratório das ressurreições humanas.
Eis o calmo químico,
a vasta fronte
franzida
em meio à experiência.
Num livro, "Toda a Terra",
procura ele um nome.
"O Século Vinte...vejamos,
a quem ressuscitar?
A Maiacovski talvez...
Não, busquemos matéria mais interessante!
Não era bastante belo esse poeta".
Será então minha vez de gritar
daqui mesmo,
desta página de hoje:
"Pára, não folheies mais!
É a mim que deves ressuscitar!"
A ESPERANÇA
Injeta sangue
no meu coração,
enche-me até o bordo das veias!
Mete-me no crânio pensamentos!
Não vivi até o fim o meu bocado terrestre,
sobre a terra
não vivi o meu bocado de amor.
Eu era gigante de porte,
mas para que este tamanho?
Para tal trabalho basta uma polegada.
Com um toco de pena, eu rabiscava papel,
num canto do quarto, encolhido,
como um par de óculos dobrado dentro do estojo.
Mas tudo que quiserdes eu farei de graça:
esfregar,
lavar,
escovar,
flanar,
montar guarda.
Posso, se vos agradar,
servir-vos de porteiro.
Há, entre vós, bastante porteiros?
Eu era um tipo alegre,
mas que fazer da alegria,
quando a dor é um rio sem vau?
Em nossos dias,
se os dentes vos mostrarem
não é senão para vos morder
ou dilacerar.
O que quer que aconteça,
nas aflições,
pesar...
Chamai-me!
Um sujeito engraçado pode ser útil.
Eu vos proporei charadas, hipérboles
e alegorias,
malabares dar-vos-ei
em versos.
Eu amei...
mas é melhor não mexer nisso.
Te sentes mal?
Tanto pior...
Gosta-se, afinal, da própria dor.
Vejamos...Amo também os bichos —
vós os criais,
em vossos parques?
Pois, tomai-me para guarda dos bichos.
Gosto deles.
Basta-me ver um desses cães vadios,
como aquele de junto à padaria,
um verdadeiro vira-lata!
e no entanto,
por ele,
arrancaria meu próprio fígado:
"Toma, querido, sem cerimônia, come!""
O AMOR
Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa,.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em enumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
— Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que
doravante
a família
seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.

(1923)
COMUMENTE É ASSIM
Cada um ao nascer
traz sua dose de amor,
mas os empregos,
o dinheiro,
tudo isso,
nos resseca o solo do coração.
Sobre o coração levamos o corpo,
sobre o corpo a camisa,
mas isto é pouco.
Alguém
imbecilmente
inventou os punhos
e sobre os peitos
fez correr o amido de engomar.
Quando velhos se arrependem.
A mulher se pinta.
O homem faz ginástica
pelo sistema Muller.
Mas é tarde.
A pele enche-se de rugas.
O amor floresce,
floresce,
e depois desfolha.
GAROTO
Fui agraciado com o amor sem limites.
Mas, quando garoto,
a gente preocupada trabalhava
e eu escapava
para as margens do rio Rion
e vagava sem fazer nada.
Aborrecia-se minha mãe:
"Garoto danado!"
Meu pai me ameaçava com o cinturão.
Mas eu, com três rublos falsos,
jogava com os soldados sob os muros.
Sem o peso da camisa,
sem o peso das botas,
de costas ou de barriga no chão,
torrava-me ao sol de Kutaís
até sentir pontadas no coração.
O sol assombrava:
"Daquele tamanhinho
e com um tal coração!
Vai partir-lhe a espinha!
Como, será que cabem
nesse tico de gente
o rio,
o coração,
eu
e cem quilômetros de montanhas?"
ADOLESCENTE
A juventude de mil ocupações.
Estudamos gramática até ficar zonzos.
A mim
me expulsaram do quinto ano
e fui entupir os cárceres de Moscou.
Em nosso pequeno mundo caseiro
brotam pelos divãs
poetas de melenas fartas.
Que esperar desses líricos bichanos?
Eu, no entanto,
aprendi a amar no cárcere.
Que vale comparado com isto
a tristeza dos bosques de Boulogne?
Que valem comparados com isto
suspirosante a paisagem do mar?
Eu, pois, me enamorei da janelinha da cela 103
da "oficina de pompas fúnebres".
Há gente que vê o sol todos os dias
e se enche de presunção.
"Não valem muito esses raiozinhos"
dizem.
Eu, então,
por um raiozinho de sol amarelo
dançando em minha parede
teria dado todo um mundo
MINHA UNIVERSIDADE
Conheceis o francês
sabeis dividir,
multiplicar,
declinar com perfeição.
Pois, declinai!
Mas sabeis por acaso
cantar em dueto com os edifícios?
Entendeis por acaso
a linguagem dos bondes?
O pintainho humano
mal abandona a casca
atraca-se aos livros
e às resmas de cadernos.
Eu aprendi o alfabeto nos letreiros
folheando páginas de estanho e ferro.
Os professores tomam a terra
e a descarnam
e a descascam
para afinal ensinar:"Toda ela não passa dum
globinho!"
Eu com os costados aprendi geografia.
Os historiadores levantam
a angustiante questão:
— Era ou não roxa a barba de Barba Roxa?
Que me importa!
Não costumo remexer o pó dessas velharias!
Mas das ruas de Moscou
conheço todas as histórias.
Uma vez instruídos,
há os que se propõem a agradar às damas,
fazendo soar no crânio suas poucas idéias,
como pobres moedas numa caixa de pau.
Eu, somente com os edifícios, conversava.
Somente os canos de água me respondiam.
Os tetos como orelhas espichando
suas lucarnas atentas
aguardavam as palavras
que eu lhes deitaria.
Depois
noite a dentro
uns com os outros
palravam
girando suas línguas de catavento.
ADULTOS
Os adultos fazem negócios.
Têm rublos nos bolsos.
Quer amor? Pois não!
Ei-lo por cem rublos!
E eu, sem casa e sem teto,
com as mãos metidas nos bolsos rasgados,
vagava assombrado.
À noite
vestis os melhores trajes
e ides descansar sobre viúvas ou casadas.
A mim
Moscou me sufocava de abraços
com seus infinitos anéis de praças.
Nos corações, nos relógios
bate o pêndulo dos amantes.
Como se exaltam as duplas no leito do amor!
Eu, que sou a Praça da Paixão,*
surpreendo o pulsar selvagem
do coração das capitais.
Desabotoado, o coração quase de fora,
abria-me ao sol e aos jatos díágua.
Entrai com vossas paixões!
Galgai-me com vossos amores!
Doravante não sou mais dono de meu coração!
Nos demais – eu sei,
qualquer um o sabe –
O coração tem domicílio
no peito.
Comigo
a anatomia ficou louca.
Sou todo coração –
em todas as partes palpita.
Oh! Quantas são as primaveras
em vinte anos acesas nesta fornalha!
Uma tal carga
acumulada
torna-se simplesmente insuportável.
Insuportável
não para o verso
de veras.
O QUE ACONTECEU
Mais do que é permitido,
mais do que é preciso,
como um delírio de poeta
sobrecarregando o sonho:
a pelota do coração tornou-se enorme,
enorme o amor,
enorme o ódio.
Sob o fardo,
as pernas vão vacilantes.
Tu o sabes,
sou bem fornido,
entretanto me arrasto,
apêndice do coração,
vergando as espáduas gigantes.
Encho-me dum leite de versos
e, sem poder transbordar,
encho-me mais e mais.
CLAMO
Levantei-me como um atleta,
levei-o como um acrobata,
como se levam os candidatos ao comício,
como nas aldeias se toca a rebate
nos dias de incêndio.
Clamava:
"Aqui está, aqui! Tomai-o!"
Quando este corpanzil se punha a uivar,
as donas
disparando
pelo pó, pelo barro ou pela neve,
como um foguete fugiam de mim.
— "Para nós, algo um tanto menor,
algo assim como um tango..."
Não posso levá-lo
e carrego meu fardo.
Quero arremessá-lo fora
e sei, não o farei.
Os arcos de minhas costelas não resistem.
Sob a pressão
range a caixa torácica.
TU
Entraste.
A sério, olhaste
a estatura,
o bramido
e simplesmente adivinhaste:
uma criança.
Tomaste,
arrancaste-me o coração
e simplesmente foste com ele jogar
como uma menina com sua bola.
E todas,
como se vissem um milagre,
senhoras e senhorias exclamaram:
— A esse amá-lo?
Se se atira em cima,
derruba a gente!
Ela, com certeza, é domadora!
Por certo, saiu duma jaula!
E eu júbilo
esqueci o julgo.
Louco de alegria
saltava
como em casamento de índio,
tão leve, tão bem me sentia.
IMPOSSÍVEL
Sozinho não posso
carregar um piano
e menos ainda um cofre-forte.
Como poderia então
retomar de ti meu coração
e carregá-lo de volta?
Os banqueiros dizem com razão:
"Quando nos faltam bolsos,
nós que somos muitíssimo ricos,
guardamos o dinheiro no banco".
Em ti
depositei meu amor,
tesouro encerrado em caixa de ferro,
e ando por aí
como um Creso contente.
É natural, pois,
quando me dá vontade,
que eu retire um sorriso,
a metade de um sorriso
ou menos até
e indo com as donas
eu gaste depois da meia-noite
uns quantos rublos de lirismo à toa.
O QUE ACONTECEU
COMIGO
As esquadras acodem ao porto.
O trem corre para as estações.
Eu, mais depressa ainda,
vou a ti,
atraído, arrebatado,
pois que te amo.
Assim como se apeia
o avarento cavaleiro de Púchkin
alegre por encafuar-se em seu sótão,
assim eu
regresso a ti, amada,
com o coração encantado de mim.
Ficais contentes de retornar à casa.
Ali vos livrais da sujeira,
raspando-vos, lavando-vos,
fazendo a barba.
Assim retorno eu a ti.
Por acaso,
indo a ti não volto à minha casa?
Gente terrena ao seio da terra volta.
Sempre volvemos à nossa meta final.
Assim eu,
em tua direção me inclino
apenas nos separamos
mal acabamos de nos ver.
DEDUÇÃO
Não acabarão com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.
(1922)
BAUDELAIRE
A UMA DAMA CRIOULA
No país perfumado, a um sol de fogo e pena,
Conheci sob dossel de árvores purpurado,
E de palmas de onde o ócio ao nosso olhar acena,
Uma dama crioula e de encanto ignorado.
De tez pálida e quente, a mágica morena
Tem no seu colo um ar, sempre o mais requintado;
Vai como a caçadora e é imponente e serena,
Seu sorriso é tranqüilo e seu olhar confiado.
O GATO
tradução Jamil Almansur Haddad

I
Por meu cérebro vai passeando,
Tal como em seu apartamento,
Um gato de todo encantamento,
e de inaudito miado brando,
Tanto o seu timbre é o mais discreto;
Mas, se é a voz calma ou iracunda,
Ela sempre é rica e profunda:
Este é o seu encanto secreto.
E a sua voz em mim infiltro,
No meu fundo mais tenebroso,
Doce qual verso numeroso
Consoladora como um filtro,
Abranda o mal que na alma lavra,
Contendo os êxtases e as pazes;
Para dizer as longas frases
Nunca precisou da palavra.
Certo não há arco que fira
Meu coração, este excelente
Órgão e o faça nobremente
Cantar só como canta a lira,
Como esta voz, ó misterioso,
Gato seráfico e esquisito
Em que tudo é, como num rito,
Tanto sutil quanto harmonioso!
II
Destas lãs louras e morenas
Sai um olor doce de pelos,
Que me perfumei só por tê-los
Afagados uma vez apenas.
É como os manes da morada;
Preside no seu magistério
Todas as coisas deste império:
Seria talvez Deus ou fada?
Quando o olhar para este gato a esmo,
Como por um ímã atraído,
Se dirige, e tão sucumbido,
E que eu olho para mim mesmo,
Eu vejo com olhar demente
A luz destas pupilas ralas,
Claras fanais, vivas opalas,
Que me contemplam fixamente.
O RELÓGIO
Os chineses vêem as horas pelos olhos dos gatos.
Certo dia, um missionário, passeando no distrito de
Nanquim, notou que havia esquecido o relógio e
perguntou as horas a um rapazinho.
Ao primeiro instante, o garoto do Celeste Império
hesitou; depois, pensando melhor, respondeu:
— Vou dizer.
Decorridos alguns momentos, reaparecia, segurando
nos braços um gato muito gordo; e, fitando o animal,
como se usa dizer, no branco do olho, afirmou sem
hesitação:
— Ainda não é exatamente meio dia.
E era verdade.
Por mim, ao inclinar-me para a bela Felina, a de
nome tão adequado, aquela que é ao mesmo tempo a
honra do seu sexo, o orgulho do meu coração e o
perfume do meu espírito, – quer de noite, quer de
dia, em plena luz ou na sombra opaca, no fundo de
seus olhos adoráveis vejo sempre, nitidamente, a
hora, sempre a mesma, uma hora vasta, solene,
grande como o espaço, sem divisões de minutos nem
de segundos, uma hora imóvel que não é marcada
nos relógios, e todavia leve como um suspiro, rápida
como um olhar.
E, se algum importuno me viesse interromper
enquanto o meu olhar repousa sobre este delicioso
relógio, se algum Gênio descortês e intolerante,
algum Demônio do contratempo me viesse dizer : —
"Que é que estás a mirar com tamanha atenção? Que
buscas nos olhos dessa criatura? Vês acaso neles a
hora, mortal prodígo e vagabundo?" ^– eu
responderia sem hesitar: — "Sim, vejo a hora: é a
Eternidade."
Pois não é, senhora, que fiz um madrigal
verdadeiramente meritório e tão cheio de ênfase
quanto vós mesma? Na verdade, tive tanto prazer em
bordar esta preciosa galanteria que não vos pedirei
nada em troca.
LEMINSKI
"arte que te..."
arte que te abriga arte que te habita
arte que te falta arte que te imita
arte que te modela arte que te medita
arte que te mora arte que te mura
arte que te todo arte que te parte
arte que te torto ARTE QUE TE TURA
DATILOGRAFANDO
ESTE TEXTO

ler se lê nos dedos não nos olhos


que os olhos são mais dados a segredos
HAI

Eis que nasce completo


e, ao morrer, morre germe,
o desejo, analfabeto,
de saber como reger-me
ah, saber como me ajeito
para que eu seja quem fui,
eis o que nasce perfeito
e, ao crescer, diminui.
KAI

Mínimo templo
para um deus pequeno,
aqui vos guarda,
em vez da dor que peno,
meu extremo anjo de
vanguarda.
De que máscara
se gaba sua lástima,
de que vaga
se vangloria sua história,
saiba quem saiba.
A mim me basta
a sombra que se deixa,
o corpo que se afasta.
POEMINHAS

meio dia três cores


eu disse vento
e caíram todas as flores
MIGUEL TORGA
O CAÇADOR
Trôpego, o Tafona já não chegava às perdizes da
Cumieira. Por isso, arrastava-se até Pedralva e caçava de
espera. Caíam rolas no cedo, uma lebre ou outra pelo ano
adiante, e coelhos quase sempre. No defeso, fornecia a casa e
a barriga sem fundo do compadre Frederico; no tempo da
permissão, vendia-lhe a Joana Benta as caveças na Vila.
— Veja vossemecê... – dizia ele, a contratar o preço. —
Eu sei lá!... Com oitenta e cinco anos, a vida fora-lhe sempre
estranha como se a não tivesse conhecido. Casara, tivera
filhos, mas nada disso o tocara por dentro. Virgem e
selvagem na alma, continuava a caçar, e só embrenhado entre
giestas e urgueiras é que ouvia, se ouvia, os clamores da
mulher e o ganido das crias.
Saía cedo, sempre supersticioso das menstruações da
Camila, a vizinha do lado, que lhe mudavam a direção do
chumbo, e regressava altas horas da noite, colado ao granito
das paredes, e assim escondido dos olhos curiosos da
povoação.
— Por onde andaste?
A pobre da Catarina, a princípio, ainda tentou encontrar
naquele destino pontos de referência em que pudesse firmar-
se. Mas as respostas vinham tão vagas, tão distantes, que se
atirou às leiras e deixou o homem às carquejas. Não era que
ele mesmo enredasse os caminhos e despistasse
conscientemente a companheira. As peripécias da caça e a
cegueira com que galgava os montes é que o impediam à
noite de relatar o trajeto seguido. Se quisesse e soubesse
dizer por que trilhos passara, falaria de veredas e carreiros
que nunca conhecera, descobertos na ocasião pelo instinto
dos pés e rasgados no meio de uma natureza cósmica, verde
como uma alucinação, com alguns ramos vistos em
pormenor, por neles pousar inquieto um pombo bravo ou se
aninhar, disfarçada, uma perdiz. Às vezes até se admirava, ao
regressar a casa, de tanta bruma e tanta luz lhe terem enchido
simultaneamente os olhos. Serras a que trepara sem dar
conta, abismos onde descera alheado, e um toco, um raio de
sol, o rabo de um bicho, que todo o dia lhe ficavam na retina.
É claro que nem sempre as horas eram assim. Algumas havia
de perfeita consciência, em que nenhum pormenor da
paisagem lhe escapava, as próprias pedras referenciadas, aqui
de granito, ali de xisto. Mas, mesmo nessas ocasiões,
qualquer coisa o fazia sonâmbulo do ambiente. Era tanta a
beleza da solidão contemplada, despegava-se das serranias
tanta calma e tanta vida, os horizontes pediam-lhe uma
concentração tão forte dos sentidos e uma dispersão tão
absoluta deles, que os olhos como que lhe abandonavam o
corpo e se perdiam na imensidão. Simplesmente, essa
diluição contínua que sofria no seio da natureza não excluía
uma posse secreta de cada recanto do seu relevo. Uma
espécie de percepção interior, de íntima comunhão de amante
apaixonado, capaz de identificar o panasco de Alcaria pelo
cheiro ou pelo tato. A caça fora a maneira de se encontrar
com as forças elementares do mundo. E nenhuma razão
conseguira pelos anos fora desviá-lo desse caminho. A
meninice começara-lhe aos grilos e aos pardais, a juventude e
a maioridade passara-as atrás de bichos de pêlo e pena, e
agora, velho, as contas do seu rosário eram meia dúzia de
cartuchos que, sentado, ia esvaziando no que aparecia. E a
vida, a de todos os dias e de toda a gente, com lágrimas e
alegrias, ambições e desalentos, ficara-lhe sempre ao lado,
vestida de uma realidade que que não conseguia ver. A aldeia
formigava de questões e de raivas, e ele coava- lhe apenas a
agitação de longe, vendo-a fumegar na distância, ao
anoitecer, e acariciando-a então num cansaço doce e
contemplativo.
— Casou a Dulce...
— Ah, sim?...
Ouvira, de fato, imprecisamente, a voz do sino grande
chegar repenicada e festiva ao Falição, mas o seu espírito não
pudera nesse momento, nem podia agora, descer da nuvem
de abstração que o envolvia.
— Muito bonita ia o demônio da rapariga!
Humana, mulher, a Catarina tentava chamá-lo a uma
consciência que reanimasse fogueiras mortas, sonhos
desfeitos. Nada. O pensamento dele não estava ali: perdia-se
nos projetos do dia seguinte, já cheio do rumor alvoroçado
do bando de perdizes que sabia ir levantar da cama ao
romper da manhã.
— Morreu a Palhaça...
— Ah, morreu?
E continuava a dar à manivela do rebordador, encontrando
no cartucho, túmido como uma semente, não sabia que
verdade mais profunda e mais transcendente do que aquela
morte.
A velhice e o reumatismo tentaram com toda a brutalidade
metê-lo noutros varais. Mas ele lutava, e, embora limitado às
cercanias da aldeia, continuava ainda a sonhar.
Contudo, sem a liberdade absoluta dos longes, o seu
espírito já não podia voar como dantes. A povoação ficava-
lhe demasiado perto para lhe ser possível um alheamento
como o de outrora. E os olhos, cansados e traídos,
começaram a mostrar-lhe o mundo triste dos outros. Contra
vontade, observava, então. Mas em casa, à noite, a mulher
punha o acontecido a uma luz tão desconforme com o que ele
vira, tão alheia à sua compreensão, que fechava a boca e não
respondia.
— Os Canedos berraram...
— Eu vi...
— A cunhada chamou curta à Ana... O que ouvira eram
gritos, evidentemente, insultos, com toda a certeza, mas
nomes assim... E uma tristeza muda apertava-lhe o coração.
— Um roubo em casa do Antunes...
— Bem me pareceu...
— Batatas, trigo, muita roupa, um presunto...
Quase que surpreendera o Rodrigo e a mulher com a boca
na botija, e sabia que não, que o que esconderam na mina
velha, e pudera examinar à vontade, era uma sombra daquilo.
De maneira que cada vez se metia mais consigo, com medo
do vidro de aumento que deformava tudo e envenenava os
sentimentos. Porque uma coisa sabia ele: é que quase um
século de caça não lhe endurecera nem lhe empeçonhara a
alma. Matara, sim, e matava ainda, se podia, mas não era
com ódio, a gritar maldição, que o tiro partia. Mais
amorosamente do que mortalmente, o dedo premia o gatilho.
E quando, a seguir, a lebre esperneava ou a codorniz gemia, a
sua mão aligeirava docemente aquela agonia, numa carícia
aveludada. Entre o sangue de pertiz morta - que através do
cotim da calça, morno, lhe acordava a consciência da pele - e
o seu próprio sangue, não havia o muro de nenhuma
desarmonia. A morte que a arma fazia tinha no mesmo
instante uma ressurreição dentro dele. Mas a aleluia do
formigueiro humano que o rodeava era outra.
— A Rosária a flara em moralidade! Se reparasse na
filha...
— A Matilde? Qu fez ela?
— Nem tu sabes!
Palavra, que não sabia. Atravessara os anos como um
duende, puro, alheio à raiva e à ganância, inocente, pronto a
comover-se diante da primeira flor. Uma virtude, sobre
todas, conservara sempre: a da lisa naturalidade. E por isso,
no meio da incapacidade que sentia para entender o tecido de
razões com que era feito o mundo que o cercava, a malha que
menos o prendera era aquela onde se dabatiam forças e
gestos de amor. O cio, a brisa de sémen que agitava todos os
seres vivos durante alguns dias em cada ano, sabia-lhe à
frescura de uma onda sagrada. Então, oleava e arrumava a
arma, e os seus olhos, de caçador ainda, seguiam a revoada
do casal de melros, o trajeto de um coelho, as pegadas da
raposa, mas para os acompanharem comovidos naquela
dádiva sensual e procriadora.
Infelizmente, só ele é que entendia de uma maneira assim
inocente as coisas que tinham intimidade de ninho e calor de
seiva. Porque a aldeia, que olhava compreensivamente as
reses alevantadas, diante de uma rapariga cega de amores
erguia-se como se visse um crime.
— Ela e o Avelino parecem cães à cainça.
— E que mal há nisso? Maiores e vacinados, que tinha
que ver o mundo com o que o corpo lhes pedia? Mas os pais,
aqui-del-rei que os enforcavam se olhassem sequer um para o
outro, e a terra inteira aplaudia. Acontecia ainda que o
Travassos, todo lá da mãe da rapariga, punha em semelhante
martírio a sombra de uma perseguição.
De fora, mas infelizmente não de tão longe como
desejava, o Tafona assistia à cena. Sentado à sombra da
nogueira molar, e perto da poça onde vinham beber, esperava
as rolas. E lá em baixo, na veiga, o seu olhar cansado ia
acompanhando a comédia. A cachopa, de molho à cabeça, a
pasar na Silveirinha; o rapaz a deixar a rabiça na lavrada e a
sair-lhe ao caminho; e o esqueleto deo Travassos, abelhudo e
ciumento, a correr a avisar as famílias.
Via e ficava a malucar naquilo, no contra-senso de tudo e
de todos. Pois não seria melhor, mais justo, mais humano,
deixá-los juntarem-se livremente, à lei da natureza? Contudo,
daí a nada, a rapariga ia a toque de caixa pelo Teixo abaixo, e
o rapaz retomava o arado a ouvir berros do pai.
— Uma pouca vergonha... – recomeçava a Catarina à
noite, depois do caldo.
— O quê?
— O que há-de ser? A Matilde e o Avelino... Se não o
Travassos...
Calou-se como de costume. Decididamente, cada vez
entendia menos tal mundo. Mas as pernas atraiçoavam-no
miseravelmente, e embora quisesse fugir para muito longe,
tinha de se resignar às leis da idade e caçar de emboscada
coelhos pacatos na vinha velho do prior.
Era um Setembro puro. Videiras que pareciam cedros e
cachos com bagos como bugalhos. Manco, o Tafona, foi-se
arrastando e ainda a tarde vinha a cair além-Doiro já ele
estava no seu posto, sentado, imóvel e silencioso, com a
arma engatilhada sobre a coxa.
Como habitualmente, quase nem respirava. Por muito
inocentes que fossem os láparos, farejavam ruído a cem
léguas. E o Tafona, conhecedor daqueles ouvidos, apertava
os pulmões.
A espera nunca lhe dava inteira paz de espírito. Forçava-o
a uma espécie de compromisso com a parte traiçoeira da
vida, estremando os campos do agredido e do agressor. Entre
ele e o bicho não havia, daquela maneira, um verdadeiro
encontro, um embate de forças. Tudo se passava sem alegria
e sem eco, choque abafado, como o de uma pinha aberta a
cair no musgo.
Subitamente começou a sentir sons indistintos. Prestou
atenção. Passos. Passos de gente, e grande.
— Bolas! – disse, sem abrir a boca. De fato, perdera o
tempo. Para que tudo retomasse a quietude inicial e os
coelhos se resolvessem a vir gozar a fresca, seriam precisas
horas, e então já não teria luz.
Os passos eram da Matilde, sorrateira, a saltar um bardo e
a sumir-se na vinha.
— É boa!... – murmurou outra vez intimamente, agora
noutro tom.
Mas ainda o seu espanto não acabara, já o Avelino, do
lado do monte, lépido, deslizava para o meio da ramagem.
Riu-se. Desta vez riu-se com a sua mansidão habitual,
sem barulho, enternecidamente, como se estivesse nos velhos
tempos e visse no azul do céu dois pintassilgos a voar para o
mesmo ninho.
Infelizmente, os namorados a desaparecerem, e sobre eles,
de nariz no rasto, numa perseguição de rafeiro, o Travassos
que, por acaso, caminhava direito à arma do caçador.
O Tafona nem teve tempo de pensar. Parou a respiração e
encolheu-se quanto pôde atrás do esconderijo.
O abelhudo vinha apressado e chegou a tiro.
— Alto lá! – ordenou-lhe então, sereno, mostrando o
corpo.
O Travassos estacou, apalermado. Por fim viu quem era e
falou-lhe:
— Sou eu, ó ti Zé!
— Bem sei. Mas não te mexas.
— O Travassos, ti Tafona. Deixe-me ir salvar a infeliz!
A tremer e de olhos esgazeados, o zeloso coscuvilheiro
não conseguia perceber. Mas o Tafona tinha-lhe friamente a
espingarda endireitada ao peito, e ninguém da aldeia
confiava na alma solitária do caçador.
— Alto, e nem tugir nem mugir! Aquelas coisas querem-
se na paz do Senhor...
O PASTOR GABRIEL
Nunca houve em toda a montanha pastor como o Gabriel.
— Merecias outras ovelhas, homem! – disse-lhe um dia o
Prior, desanimado da anarquia dos seus paroquianos, quando
viu o rebanho do rapaz atravessar a estrema dum centeio sem
tirar uma dentada.
— Deus me livre! Já me vejo maluco com estas...
Mentira. O padre tinha razão. Era uma pena ver tanta
autoridade, tanta vocação, tanto jeito natural, ao serviço de
animais. Nem se pode fazer idéia! O carneiro mais teimoso,
mais lorpa, mais churro, chegava às mãos do Gabriel e
mudava de condição. Só não ficava a falar.
— Que fazes tu ao gado, criatura? Parece que o enfeitiças!
— Nada. Dou-lhe monte, como a outra gente.
Sorria. E lá continuava a educar os malatos com gestos e
palavras que ninguém sabia fazer nem dizer. Nunca batia
numa rês. O castigo era um simples olhar reprovativo, um
assobio impaciente, uma interjeição mal humorada. Mas
bastava.
Ao fim de algum tempo, cada cabeça como que porfiava
em não desagradar ao dono, em viver sintonizada com aquele
governo sem cajado. E dava gosto ver a disciplina com que o
rebanho deixava o redil e atravessava o povo.
— Não há dúvida! Nem o mestre na escola!
Continuava a rir-se por dentro. Espantavam-se com
pouco. Com a pequenina amostra do muito que estava por
detrás...
Na verdade, toda aquela disciplina tinha um fim, e era
muito mais apertada do que parecia. Como os pastos no
verão escasseavam, só havia uma solução: aceivar os nabais
de noite, pela calada. Ora, para Áfricas dessas, o Gabriel
necessitava de gado mudo e lesto, cegamente obediente ao
comando. Por isso, sem dizer porquê nem por que não, exigia
sistematicamente dos patrões que vendessem os carneiros
mancos ou rebeldes, e ninguém ouvia o balido de nenhum.
— O teu gado não berra?
— Pergunta-lhe.
É o berras! Ou não se chamasse ele Gabriel e não
capitaneasse um bando de salteadores. No meio da escuridão,
abria a porta do curral e punha-se a andar. O rebanho atrás,
como um cão rafeiro. À entrada da melhor sementeira,
parava, perscrutava os horizontes e arrombava o tapume.
Depois, em silêncio, deixava entrar os famintos e esperava
que cada boca se fartasse em silêncio. Se por acaso ouvia
vozes ou passos de gente que se aproximava, subia acima da
parede, descalçava os socos, batia com um no outro e largava
a fugir com quantas pernas tinha. Não era preciso mais:
quando chegava ao redil, já o rebanho lá estava.
— Não, tu hás-de ter qualquer segredo, qualquer
mistério... – insinuava o Languna, a sondar.
— Palavra de honra que não.
E realmente não tinha. A coisa vinha-lhe
espontaneamente, duma maneira direta, rápida, infalível, de
entender e de se fazer entender por todos os seres vivos. Via
um coelho na cama, falava-lhe e punha-lhe a mão em cima.
Acalmava um cão açulado – a sorrir-lhe.
Mas esta comunhão instintiva com a natureza dos bichos
não tentava o Gabriel alargá-la à natureza dos homens.
Desses arredava-se discretamente, sem querer passar, nas
relações com eles, do plano amorfo da neutralidade. Alugava
o suor. Enjeitado, sem vintém, servia este e aquele. A
indústria de Ferrede era comprar gado magro, engordá- lo e
vendê-lo. Portanto, quem tinha dinheiro tinha o poder, e não
valia a pena discutir. Que lhe interessava a ele perder tempo
com palavreado ou mendigar intimidades que sabia
impossíveis de antemão? O que os donos de cada rebanho
queriam já o sabia: era que lho entoirisse de qualquer
maneira. Recebia, pois, o farnel pela manhã, e ala que se faz
tarde. Cada qual para o que nasce.
No verão em que fez vinte e dois anos, não pôde, contudo,
ficar indiferente a um apelo que, muito embora fosse de
cordeira no cio, vinha duma criatura cristã, com quem, de
resto, acabou por casar.
Foi assim: como a serra inteira ardia na fornalha do
Agosto, certo dia, no pino do sol, resolveu assestar o gado na
loja. Servia então o Silvano, o maior proprietário da terra. E
enquanto o rebanho, sonolento, ruminava, estendeu-se
também no catre, igualmente sonolento e a ruminar. Era a
hora do jantar, e lá em cima os patrões comiam e bebiam à
tripa-forra. Ele, coitado, teria uma malga de caldo no fim do
banquete, e viva o velho!
Nisto, sente passos pela escada abaixo, abre-se a porta, e a
filha da casa, fonitota, mas de pêlo na venta, que nunca dera
conta que o olhasse como homem e nunca lhe consentira que
a olhasse como mulher, aparece de cântara na mão, ao vinho.
Em silêncio e sem se mexer, deixou-a passar para a adega,
que era ao fundo, numa loja contígua. Mas apenas sentiu
desandar a torneira da pipa e a espuma do tinto a ferver
dentro do barro lhe fez cócegas na garganta, pediu
humildemente:
— Minha ama, dê-me uma pinga!
— Dou. Anda cá bebê-la...
Ergueu-se num pronto, saltou por cima do gado, entrou no
armazém, recebeu a pichorra, levou-a à boca e começou a
consolar a alma. De repente, sem mais nem para quê, a moça,
calada, dá-lhe um empurrão à vasilha com a ponta do dedo.
De respiração afogada e ainda engasgado, a tossir, relanceou-
a toda. Ao machio, a senhora morgada!
E nada mais simples: pousou a caneca e dobrou a rapariga
sobre uma facha de palha.
FRONTEIRA
Quando a noite desce e sepulta dentro do manto o perfil
austero do castelo de Fuentes, Fronteira desperta.
Range primeiro a porta do Valentim, e sai por ela, magro,
fechado numa roupa negra de bombazina, um vulto que se
perde cinco ou seis passos depois.
A seguir, aponta à escuridão o nariz afilado do Sabino.
Parece um rato a surgir do buraco. Fareja, fareja, hesita, bate
as pestanas meia dúzia de vezes e a acostumar-se às trevas, e
corre docemente a fechadura do cortelho.
O Rala, de braço bambo da navalhada que o D. José, em
Lovios, lhe mandou à traição, dá sempre uma resposta torta à
mãe, quando já no quinteiro ela lhe recomenda não sei quê lá
de dentro.
O Salta, que parece anão, esgueira-se pelos fundos da
casa, chega ao cruzeiro, benze-se, e ninguém lhe põe mais a
vista em cima.
A Isabel, sempre com aquele ar de quem vai lavar os
cueiros de um filho, sai quando o relógio de Fuentes, longe e
soturnamente, bate as onze. Aparece no patamar como se
nada fosse, toma altura às estrelas, se as há, e some-se na
negrura como os outros.
O Júlio Moinante, esse levanta o gravelho, abre, senta-se
num degrau da casa, acomoda o coto da perna da melhor
maneira que pode, e fica horas a fio a seguir na escuridão o
destino de um que lhe dói. Era o rei da Fronteira. Morto o
Faustino nas Pedras Ninhas, herdou-lhe o guião. Mas um dia
o Penca agarrou-o com a boca na botija, e foi só uma perna
varada e as tripas do macho à mostra. Quando, naquele
estado, entraram ambos em Fronteira, ele e o animal, parecia
que o mundo se ia acabar ali. Mas tinha o filho, o João. E
agora, enquanto o rapaz, como os mais, se perde nos
caminhos da noite, vai-lhe seguindo os passos da soleira da
porta.
Saem outros, ainda. Devagar, pelas horas a cabo, os que
parece terem- se esquecido, vão deslizando da toca. Só
mesmo quando não existe mais corpo adulto e válido no
povo é que Fronteira sossega.
Coisa estranha: esta rarefação que se faz na aldeia, longe
de a esvaziar, enche-a. A terra veste-se de um sentido novo,
assim deserta, à espera. Pequenina, de casas iguais e
rudimentares, escondida do mundo nas dobras angustiadas e
ossudas de uma capucha de granito, as horas que medeiam
entre o seu coração e Fuentes são tão fundas e carregadas que
quase magoam. Quem regressará primeiro?
Noventa vezes em cada cem, é a Isabel. Aquilo são pés de
veludo! Mas às vezes é o Sabino. Sempre de nariz no ar, a
bater as pestanas contra a luz da candeia, entra em casa
alagado em água e com um bafo tal a aguardente que tomba.
— Arruma! A mulher nem suspira. Pega no saco, mete-o
debaixo da cama, e põe-se a lançar o caldo. Por fim, começa:
— O Valentim?
— Chumbo. Já passou.
— O Rala?
— Uma caixa de conhaque. Vem por Fornos.
— O Salta?
— Foi a Torneros. Volta amanhã.
— A Isabel?
— Seda. Ao sair do Padilha parecia um bombo.
E enquanto a macã de Adão sobe e desce no pescoço
comprido do Sabino, e a malga de caldo se esvazia, das
respostas que dá e do mágico ventre da noite, diante do olhar
angustiado da Joana e de Fronteira, vão surgindo os que
faltam ainda: o João, o Félix e o Maximino.
Quando algum não regressa, e por lá fica varado pela bala
de uma lei que Froneira não pode compreender, o coração da
aldeia estremece, mas não hesita. Desde que o mundo é
mundo que toda a gente ali governa a vida na lavoura que a
terra permite. E, com luto na alma ou no casaco, mal a noite
escurece, continua a faina. A vida está acima das desgraças e
dos códigos. De mais, diante da fatalidade a que a povoação
está condenada, a própria guarda acaba por descrer da sua
missão hirta e fria na escuridão das horas. E se por acaso se
juntam na venda do Inácio uns e outros – guardas e
contrabandistas –, fala-se honradamente da melhor maneira
de ganhar o pão: se por conta do Estado a vigiar o ribeiro, se
por conta da Vida a passar o ribeiro.
De longe em longe, porém, quando há transferências ou
rendições, e aparecem caras e consciências novas, são
precisos alguns dias para se chegar a essa perfeição de
entendimento entre as duas forças. O que vem teima, o que
está teima, e parece aço a bater em pederneira. Mas tudo
acaba em paz.
Desses saltos no quotidiano de Fronteira, o pior foi o que
se deu com a vinda do Robalo.
Já lá vão anos. O rapaz era do Minho, acostumado ao
positivismo da sua terra: um lameiro, uma junta de bois, uma
videira de enforcado, o Abade muito vermelho à varanda da
residência, e o Senhor pela Páscoa. Além disso, novo no
ofício – na guarda, para onde entrara em nome dessa mesma
terrosa realidade: um ordenado certo e a reforma por inteiro.
Daí que lhe parecesse o chão de Fronteira movediço sob os
pés. Mal chegou e se foi apresentar ao posto, deu uma volta
pelo povoado. E aquelas casas na extrema pureza de uma
toca humana, e aqueles seres deitados ao sol como
esquecidos da vida, transtornaram-lhe o entendimento.
— Esta gente que faz? – perguntou a um companheiro já
maduro no ofício.
— Contrabando.
— Contrabando!? Todos!? E as terras, a agricultura?
— Terras!? Estas penedias!?
O Robalo queria falar de qualquer veiga possível, de
qualquer chã que não vira ainda, mas tinha forçosamente de
existir, pois que na sua idéia um povo não podia viver senão
de horas e lameiros. Insistiu por isso na estranheza. Mas o
outro lavou dali as mãos:
— Não. Aqui, a terra, ao todo, ao todo, produz a bica de
água da fonte. O resto vão-no buscar a Fuentes.
Mas nem assim o Robalo entendeu Fronteira e o seu
destino. No dia seguinte, pelo ribeiro fora, parecia um cão a
guardar. Que o dever acima de tudo, que mais isto, que mais
aquilo – sítio que rondasse era sítio excomungado. Até as
ervas falavam quando qualquer as pisava de saco às costas.
Mal a sua ladradela de mastim zeloso se ouvia, ou se parava
logo ou nem Deus do céu valia a um cristão.
Em quinze dias foram dois tiros no peito de Fagundes,
uma para de coronhadas no Albino, e ao Gaspar teve-o
mesmo por um triz. Se não dá um torcegão no pé quando
apontava, varava a cabeça do infeliz de lado a lado. A bala
passou-lhe a menos de meio palmo das fontes.
Mas Fronteira tinha de vencer. Primeiro, porque o coração
dos homens, por mais duro que seja, tem sempre um ponto
fraco por onde lhe entra a ternura; segundo, porque o Diabo
põe e Deus dispõe.
JOÃO CABRAL DE
MELO NETO
CATAR FEIJÃO
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavr boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase se grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
ESTUDOS PARA UMA
BAILADORA
ANDALUZA
I
Dir-se ia, quando aparece
dançando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.
Todos os gestos do fogo
que então possui dir-se ia:
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua língua;
gestos do corpo do fogo
de sua carne em agonia,
carne de fogo, só nervos,
carne todo em carne viva.
Então, o caráter do fogo
nelatambém se advinha:
mesmo gosto dos extremos,
de natureza faminta,
gosto de chegar ao fim
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim,
de atingir a própria cinza.
Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida
que o fogo não é capaz
como ela é, nas siguiriyas,
de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra-a-fibra,
que somente ela é capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.
2
Subida ao dorso da dança
(vai carregada ou a carrega?)
é impossível se dizer
se é cavaleira ou égua.
Ela tem na sua dança
toda a energia retesa
e todo o nervo de quando
algum cavalo se encrespa.
Isto é: tanto a tensão
de quem vai montado em sela,
de quem monta um animal
e só a custo o debela,
como a tensão do animal
dominado sob a rédea,
que ressente ser mandado
e obedecendo protesta.
Então, como declarar
se ela é égua ou cavaleira:
há uma tal conformidade
entre o que é o animal e é ela
entre a parte que domina
e a parte que se rebela,
entre o que nela cavalga
e o que é cavalgado nela,
que o melhor será dizer
de ambas, cavaleira e égua,
que são de uma mesma coisa
e que um só nervo as inerva,
e que é impossível traçar
nenhuma linha fronteira
entre ela e a montaria
ela é a égua e a cavaleira.
3
Quando está taconeando
a cabeça, atenta, inclina,
como se buscasse ouvir
alguma voz indistinta.
Há nessa atenção curvada
muito de telegrafista,
atento para não perder
a mensagem transmitida.
Mas o que faz duvidar
possa ser telegrafia
aquelas respostas que
suas pernas pronunciam
é que a mensagem de quem
lá do outro lado da linha
ela responde tão séria
nos passa despercebida.
Mas depois já não há dúvida:
é mesmo telegrafia:
mesmo que não se perceba
a mensagem recebida,
se vem de um ponto no fundo
do tablado ou de sua vida,
se aliguagem do diálogo
é em código ou ostensiva,
já não cabe duvidar:
deve ser telegrafia:
basta escutar a dicção
tão morse e tão desflorida,
linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em preto e branco
de sua perna polida.
4
Ela não pisa na terra
como quem a propicia
para que lhe seja leve
quando se enterre, num dia.
Ela a trata com a dura
e muscular energia
do camponês que cavando
sabe que a terra amacia.
Do cmponês de que tem
sotaque andaluz caipira
e o tornozelo robusto
que mais se planta que pisa.
Assim, em vez dessa ave
assexuada e mofina,
coisa a que parece sempre
aspirar a bailarina,
esta se quer um árvore
firme na terra, nativa,
que não quer negar a terra
nem, como ave, fugi-la.
Árvore que estima a terra
de que se sabe família
e por isso trata a terra
com tanta dureza íntima.
Mais: que ao se saber da terra
não só na terra se afinca
pelos troncos dessas pernas
fortes terrenas maciças,
mas se orgulha de ser terra
e dela se reafirma
batendo-a enquanto dança,
para vencer quem duvida.
5
Sua dança sempre acaba
igual que como começa,
tal esses livros de iguais
coberta e contra-coberta:
com a mesma posição
como que talhada em pedra:
um momento está a estátua,
desafiante, a espera.
Mas se essas duas estátuas
que ela é, quando começa,
parece desafiar
alguma presença interna
que no fundo dela própria,
fluindo, informe e sem regra,
por sua vez desafia
a ver quem que a modela.
Enquanto estátua final,
por igual que ela pareça,
que ela é, quand um estilo
já impôs a íntima presa,
árece mais desafio
a quem está na assistência,
como para indagar quem
a mesma façanha tenta.
O livro de sua dança
capas iguais o encerram:
com a figura desafiante
de suas estátuas acesas.
6
Na sua dança se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.
Parece que sua dança
ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que a vestia.
Não só da vegetação
de que ela dança despida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil é chita)
mas também dessa outra flora
a que seus braçosdão vida,
densa floresta de gestos
a que dão vida e agonia.
Na verdade, embora tudo
aquilo que ela leva em cima,
embora, de fato, sempre,
continue nela a vesti-la,
parece que vai perdendo
a opacidade que tinha
e, como a palha que seca,
vai aos pocos entreabrindo-a.
Ou então é que essa folhagem
vai ficando impercebida:
porque, terminada a dança
embora a roupa persista,
a imagem que a memória
conservará em sua vista
é a espiga, nua e espigada,
rompente e esbelta, em espiga.
O OVO DE GALINHA
I
Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.
Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
e só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.
No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa
descobre
que nele há algo suspeitoso:
que seu peso não é o das pedra,
inanimado, frio e goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.
II
O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.
E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas
cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas
na água, na brisa.
No entretanto, o ovo, e apesar
da pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.
III
A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o de prvocar
certa resrva em qualquer sala.
O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.
A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.
É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.
IV
Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhidomeio
religioso em quem o leva.
Se pode pretender que o jeito
de que qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.
O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e que o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:
procede ainda da maneira
entre medrosae circuspecta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.
O SOL EM
PERNAMBUCO
(O sol em pernambuco leva dois sóis,
sol de dois canos, de tiro repetido;
o primeiro dos dois. o fuzil de fogo.
incendeia a terra: tiro de inimigo).
O sol ao aterissar em Pernam buco,
acaba de voar dormindo o mar deserto; mas ao
dormir
se refaz, e pode decolar mais aceso;
assim, mais do que acender incendeia,
para rasar mais desertos no caminho;
ou rasá-los mais, até um vazio de mar
por onde ele continue a voar dormindo.
*
Pinzón diz que o cabo Rostro Hermoso
(que se diz hoje de Santo Agostinho)
cai pela terra de mais luz da terra
(mudou o nome, sobrou a luz a pino);
dá-se que hoje dói na vida tanta luz:
ela revel real o real, impõe filtros:
as lentes negras, lentes de diminuir,
as lentes de distanciar, ou do exílio.
(O sol em Pernambuco leva dois sóis,
sol de dois canos, de tiro repetido;
o segundo dos dois, o fuzil de luz,
revela real a terra: tiro de inimigo).
TECENDO A MANHÃ
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã,desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
UMA FACA SÓ LÂMINA
ou Serventia das idéias fixas
Para Vinícius de Morais

Assim como uma bala


enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
assim como uma bala
do chumbo pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado
qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
A

Seja bala, relógio,


ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.
Mas o que não está
nele está como uma bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.
Isso que não está
nele como a coisa ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.
Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):
porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina.
nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca.
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.
B

Das mais surpreendentes


é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.
E mais surpreendente
ainda é a sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.
Podes abandoná-la
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.
Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.
E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:
a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que menos dorme
quanto menos sono há,
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.
(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)
C

Cuidado com o objeto,


com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,
porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se em botam mais no músculo.
Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.
É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangur,
e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
co o sangue que bate
já sem morder mais nada.
Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.
Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.
O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.
D

Pois essa faca às vezes


por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
marébaixa da faca.
Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.
Mas quer durma ou se apague:
ao calar tl motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor
bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esquleto.
E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,
tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,
bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel
(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)
E

Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura
(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).
Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.
Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.
Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja algum páramo
ou agreste de ar aberto.
Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.
E nunca seja à noite,
que estas têm as mãos férteis,
Aos ácidos do sol
sseja, ao sol do Nordeste,
à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.
F

Quer seja aquela bala


ou outra qualque imagem,
seja esmo um relógio
a ferida que guarde,
ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,
ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,
nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.
E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.
Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.
Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.
E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.
G
Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde
O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.
E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.
O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,
pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,
além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,
como naquela história
por algúem referida
de um homem que se fez
memória tão ativa
que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminia, apertada.
H

Quando aquele que os sofre


trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.
Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:
umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;
palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.
Pois somente essa fraca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário
e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente
o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz,
certa eletricidade,
mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.
I

Essa lâmina adversa,


como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,
sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.
E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.
Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.
Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera
despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas
Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,
sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.
*
De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que ais condensa o homem
quanto mais o mastiga;
de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;
da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;
pois de volta da faca
se sobe a outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,
e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada
e daí à lembrança
que vestiutais imagens
e é muito mais intensa
do que pode a linguagem,
e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,
por fim à realidade,
prima e tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta.
FIM
NOTA
* - Antiga praça de Moscou, atual Praça Púchkin.
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