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Reza a lenda, e "se non è vera, è ben trovata", que certa vez Stálin perguntou
quantas divisões tinha o papa. O que ocorreu nas décadas seguintes provou que,
sem dúvida, as divisões são importantes em determinadas situações, mas não são
tudo. Existem poderes imateriais cujo peso não se pode medir, mas que ainda
assim pesam.
Mas para que serve esse bem imaterial, a literatura? Eu poderia responder,
como já fiz noutras vezes, dizendo que ela é um bem que se consuma "gratia sui"
e que portanto não serve para nada. Mas uma visão tão crua do prazer literário
corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas, que, além
do mais, também servem para alguma coisa, seja manter o corpo saudável, seja
enriquecer o léxico. Do que estou tentando falar é, portanto, da série de funções
que a literatura tem na nossa vida individual e social. A literatura mantém a língua
em exercício e, sobretudo, a mantém como patrimônio coletivo. A língua, por
definição, vai para onde ela quer, nenhum decreto superior, nem político nem
acadêmico, pode interromper seu caminho nem desviá-lo para situações que se
pretendem ótimas. A língua vai para onde quer, mas é sensível às sugestões da
literatura. Sem Dante não teria existido um italiano unificado. Dante, em "De
Vulgari Eloquentia", analisa e condena os vários dialetos italianos, propondo-se a
forjar uma nova língua vulgar ilustrada. Ninguém apostaria nada nesse gesto de
soberba, mas, com a "Comédia", Dante ganhou o desafio. É verdade que vários
séculos tiveram de passar para que o vulgar dantesco se tornasse uma língua
falada por todos, e só o conseguiu porque a comunidade dos que acreditavam na
literatura continuou a se inspirar naquele modelo. Sem esse modelo, talvez nem
sequer tivesse vingado a idéia de uma unidade política. Mas a prática literária
também mantém em exercício nossa língua individual. Hoje muitos lamentam o
surgimento de uma linguagem neotelegráfica que se impõe por meio do correio
eletrônico e das mensagens nos celulares, em que até para dizer "te amo" se usa
uma sigla. Mas não esqueçamos que os jovens que trocam mensagens utilizando
essa nova taquigrafia são, ao menos em parte, os mesmos que se apinham nas
novas catedrais do livro, as megalivrarias, onde, mesmo que só folheando sem
comprar, eles têm contato com estilos cultos e elaborados, aos quais não foram
expostos nem seus pais nem seus avós.
Mas, para poder intervir nesse jogo, em que cada geração lê as obras literárias
de um modo diferente, é preciso ter profundo respeito por aquilo que chamo a
intenção do texto. No final do capítulo 35 de "O Vermelho e o Negro", diz-se que
Julien Sorel vai à igreja e atira contra Madame de Rênal.
Tendo observado que o braço do protagonista tremia, Stendhal diz que Julien
dá um primeiro tiro, mas erra o alvo, depois dá um segundo, e a senhora cai. É
possível sustentar que o tremor de seu braço, acrescido do fato de errar o primeiro
tiro, indicam que Julien não foi à igreja com um firme propósito homicida, mas
antes movido por um confuso impulso passional.
A essa interpretação é possível contrapor outra: que Julien tinha desde o início
a intenção de matar, mas era um covarde. A partitura autoriza ambas as
interpretações. Alguém também pode perguntar onde foi parar a primeira bala, o
que é uma boa dúvida para os devotos stendhalianos. Assim como os devotos de
Joyce vão a Dublin para procurar a farmácia onde Bloom teria comprado um
sabonete em forma de limão, podemos imaginar devotos stendhalianos tentando
descobrir em que lugar do mundo fica Verrières e sua igreja, esquadrinhando
todas as colunas do templo em busca do buraco daquela bala. Seria um episódio
de fanatismo bastante divertido.
Mas suponhamos agora que um crítico pretenda basear toda sua interpretação
do romance no destino da tal bala perdida. Nos tempos que correm, isso não é
inverossímil, até porque houve quem baseasse toda a sua leitura de "A Carta
Roubada", de Poe, na posição da carta em relação à lareira. Mas, se para Poe a
posição da carta é explicitamente pertinente, Stendhal diz que nunca se soube
mais nada daquela primeira bala, excluindo-a assim do conjunto de entidades
fictícias. Sendo fiel ao texto stendhaliano, essa bala se perdeu definitivamente, e
onde ela foi parar é irrelevante do ponto de vista narrativo. Por outro lado, o que
se cala em "Armance" sobre a possível impotência do protagonista incita o leitor a
tecer frenéticas hipóteses para completar aquilo que o relato não diz, ao passo
que, em "Os Noivos", de Alessandro Manzoni, uma frase como "a desventurada
respondeu" não diz até que ponto Gertrude levou seu pecado com Egidio, mas o
halo escuro de hipóteses induzidas ao leitor aumenta o fascínio dessa página tão
pudicamente elíptica. Para muitos, essas coisas poderão parecer obviedades, mas
tais obviedades (muitas vezes esquecidas) confirmam o mundo da literatura como
inspirador da fé na existência de certas proposições que não podem ser postas
em dúvida, com o que ele oferece um modelo de verdade, ainda que imaginário.
Migração
Foram emigrando de texto em texto (e, por meio de várias adaptações, de livro
para filme ou balé, ou da tradição oral para o livro) tanto personagens dos mitos
como da narrativa "leiga": Ulisses, Jasão, o rei Artur ou Percival, Alice, Pinóquio,
D'Artagnan. Mas, quando falamos de personagens desse tipo, referimo-nos a uma
determinada partitura? Vejamos o caso de Chapeuzinho Vermelho. As duas
versões mais célebres, a de Perrault e a dos irmãos Grimm, têm profundas
diferenças. Na primeira, a menina é devorada pelo lobo, a história termina aí,
inspirando portanto severas reflexões moralistas sobre os riscos da imprudência.
Na segunda, aparece o caçador, que mata o lobo e devolve a vida à garota e à
avó. Final feliz.
Pois bem, imaginemos uma mãe que conte a história para seus filhos e a
encerre com o lobo devorando Chapeuzinho. As crianças protestariam e pediriam
a "verdadeira" história, aquela em que Chapeuzinho ressuscita, e de nada valeria
a mãe declarar ser uma filóloga estritamente ciosa das fontes literárias. As
crianças conhecem uma história "verdadeira" em que Chapeuzinho de fato
ressuscita, e essa história é mais afim à versão dos Grimm que à de Perrault.
É isso o que dizem todas as grandes histórias, sendo possível, em todo caso,
substituir Deus pelo destino ou pelas leis inexoráveis da vida. A função das
narrativas imodificáveis é justamente essa: contrariando nosso desejo de mudar o
destino, nos fazem experimentar a impossibilidade de mudá-lo. E assim, que seja
a história que elas contem, contarão também a nossa, e é por isso que as lemos e
as amamos. Necessitamos de sua severa lição "repressiva". A narrativa
hipertextual pode educar para o exercício da criatividade e da liberdade. Isso é
bom, mas não é tudo. As histórias "já feitas" nos ensinam também a morrer. Creio
que essa educação para o fado e para a morte é uma das principais funções da
literatura. Talvez existam outras, mas agora me escapam.
Umberto Eco é escritor e semiólogo italiano, autor de, entre outros, "A
Ilha do Dia Anterior" e "O Pêndulo de Foucault", ambos da Record. O texto
acima é uma versão de um discurso do autor sobre as funções da literatura.