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Ao longo deste texto, efectua-se o se- Este afã de “viver a vida” contém leituras
guinte percurso: contraditórias. Habitar esta ficção significa,
a) Identifica-se o espectáculo como uma muitas das vezes que os seus actores se recu-
categoria fundamental da cultura mediática sam a serem agentes sociais. A vocação ou
que, ao contrário do que muitos supõem, tendência para uma certa encenação mediá-
não se resume à cultura televisiva. Reco- tica do self – nunca tantos casaram, chora-
nhecendo o papel da TV na espectaculariza- ram e até amaram ou morreram em directo –
ção das fórmulas simbólicas, tento demons- relaciona-se com um particular impulso das
trar que existe nos mass media uma vocação sociedades modernas, em que se equacionam
para a sobreexcitação do desejo e para a con- desejos recalcados e anseios não satisfeitos
quista da agradabilidade que não se resume e constantemente reactivados. Porém, tam-
ao medium televisivo. Assim, começa-se por bém significa algo mais profundo: a busca
uma caracterização da cultura mediática que de novas condições de visibilidade. A cen-
evidencia a existência de uma vocação es- tralização da cultura mediática nos projectos
pectacularizante que parece percorrer grande individuais parece ser um traço da moderna
parte da história dos meios de comunicação comunicação de massa: passa pelos reality
de massa, ainda que com graduações diferen- shows, pela insistência nos dramas reais e
tes. nas histórias de vida. Será isso uma mera
b) Relaciona-se este afã de agradar e de tendência para a despersonalização dos indi-
tornar apelativo com a gestão do desejo e a víduos através da gestão dos seus desejos?
vocação compulsiva de desencadear o pra- Qual é a importância do individualismo na
zer através de uma constante diferenciação descoberta de novas formas de viver a vida e
simbólica. Esta associar-se-ia com o acto de na afirmação de novos direitos?
consumir e com o desejo de participar no c) Articula-se a gestão do desejo com a
imenso espectáculo em que a vida se tor- questão da ideologia. A questão do su-
nou. A conquista dos quinze minutos de jeito é fundamental na ideologia. Se aquele
fama tornou-se uma profecia tímida em face for olhado como um efeito de poder ou
do afã de exposição e de transparência que como um idiota socializado a ideologia surge
caracteriza a vida moderna. A democrati- inapelavelmente casada com a dominação.
zação do espectáculo obriga a que todos al- Pelo contrário, a consideração do sujeito
mejem serem actores. A oportunidade de como uma categoria que incorpora, dialecti-
ser actor está muitas vezes relacionada com camente, a possibilidade de crítica relaciona-
o desejo de habitar uma ficção sem estre- se com uma concepção ampla de teoria so-
las. A “vida real” é encenada segundo os cial interpretativa. Este modo de abordar
desejos euforicamente expressos pelas audi- a acção social é inconciliável com o anti-
ências que desta forma compartilham ilusão humanismo estruturalista ou com a reifica-
de que todos podem participar no grande es- ção que percorre a crítica à sociedade admi-
pectáculo: o Big Show. nistrada.
Da forma como se considera a ideologia
metáfora da inversão da realidade que percorre a “Ide-
ologia Alemã”, de Marx e Engels. resultam, pois, três questões fundamentais.
A primeira é a relação do sujeito com a cul-
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porâneo das nossas sociedades e a descorti- mediática parte de premissas iniciais que ca-
nar os vestígios contraditórios de uma cul- recem de evidência empírica e, em especial,
tura autónoma com os seus momentos ambi- de uma leitura mais cuidadosa das diferen-
valentes, as suas transformações concretas, a ças entre os diversos géneros e, dentro des-
própria permanência de elementos de rebel- tes, dos diferentes produtos que integram a
dia e de esperança (cfr. Esteves, 1995: 95). indústria e sobre os quais é lançado um aná-
Descortina-se no pensamento da Escola de tema generalizado. No caso particular da Es-
Frankfurt uma tendência para demonstrar o cola de Frankfurt, partindo-se da premissa da
carácter homogeneizado da realidade sobre uniformização do gosto estético, a própria
que se debruça, o qual passa pela enfatiza- Teoria Crítica parece homogeneizar o fenó-
ção da universalidade e inevitabilidade dos meno sobre que se debruça, pelo que numa
traços que identifica no seu objecto de es- parte substancial dos seus textos parece não
tudo. Esta tendência manifesta-se na convic- haver lugar para a aplicação de critérios, de
ção fortemente arreigada do devir totalitário tal forma tudo é apresentado como desespe-
das sociedades industriais: “Já na época do radamente igual.
Nacional-Socialismo”, afirma Horkheimer, “ Apesar de tudo, a desconfiança da Teo-
ficou visível que o governo totalitário não era ria Crítica relativa à cultura dos mass media
um mero acaso mas um sintoma do caminho contém algumas intuições e destaca alguns
da sociedade” (Horkheimer, 1990:3). Por traços da indústria cultural que me parecem
outro lado, esta abordagem culmina numa vi- dignos de serem tidos em conta desde que,
são reificada de toda a cultura. Não se trata claro, seja feita a ressalva de que carecem do
de um fenómeno pontual que aflora e contra complemento de uma análise empírica, so-
o qual se apela à urgência da prevenção. A cial e histórica, sobre os objectos nos quais
modulação da cultura pela administração é o se incide. Com efeito, o impacto da Teoria
“todo”, pois projecto político ligado ao uni- Crítica na cultura mediática neste particular
verso tecnológico “molda todo o universo da momento do século XXI deve balizar-se por
palavra e da acção, a cultura material e a cul- duas reflexões:
tura intelectual” (Marcuse, 1968:19). Con- a) Por um lado, já se tornou claro que mui-
sequentemente, o”modelo de pensar admi- tas das apreciações conjunturais empreendi-
nistrativo tornou-se o modelo de toda uma das pelos críticos da cultura mediática se re-
forma de pensar que ainda se acredita livre” velaram preconceituosas e sobretudo exces-
(Adorno e Horkheimer, 1995: 32). sivamente generalizadoras. Apesar de os úl-
Graças a esta generalização totalizadora, timos escritos de Adorno revelarem consci-
são evidentes os exageros praticados pelos ência da necessidade de uma análise empí-
principais autores da Teoria Crítica na sua rica, podendo sentir-se alguma reconsidera-
apreciação da indústria cultural. O modo ção da tonalidade apocalíptica que perpassa
como Adorno, Horkheimer ou McDonald impiedosamente pela “Dialéctica do Ilumi-
“atacaram” o cinema em geral, a litera- nismo” insiste-se afinal na diabolização ge-
tura policial, o jornalismo e certos géneros neralizada da cultura de massa de forma
de música como o jazz, não deixa dúvidas a que os seus traços sejam considerados
quanto ao facto de que a crítica da cultura como um prejuízo claro para a possibilidade
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cita ou implicitamente relacionadas com esta determinada forma. É aqui que a indústria
teoria ou do mesmo ambiente teórico. intervém com a sua força anti-depressiva:
Desde logo, os media contribuem para a não desanimem, racionalizem. Vejam mais
construção da realidade social e para a fi- uma novela e não percam o próximo episó-
xação de visões do mundo. São responsá- dio da vida real.
veis pela definição do que é socialmente visí-
vel. Impõem um nivelamento de critérios na
3 O espectáculo como categoria
apreciação de factos desiguais em importân-
cia. Contribuem para a trivialização da rea- essencial da cultura mediática
lidade e para a exploração sensacionalista da Na perspectiva que defendo, a comunica-
desgraça alheia. Produzem consensos fictí- ção de massa não é definida inelutavelmente
cios em torno da agenda pública. Privilegiam pelos traços negativos que a Teoria Crítica
o espectáculo em detrimento de uma temati- aponta como sendo a sua verdade, a sua na-
zação criteriosa. Assentam a sua presença tureza. São demasiadas as contradições exis-
em mensagens facilmente apreensíveis, des- tentes na realidade estudada para entender
curando as abordagens mais complexas. estas críticas unilaterais como o diagnóstico
Finalmente, a forma como o espectáculo é que a permite definir. O erro da Teoria Crí-
referido a propósito da indústria cultural me- tica é suspender a marca epocal das suas in-
rece reflexão: a dramatização da realidade e vestigações (cfr. Esteves, 1995: 94), genera-
a sua transformação de acordo com as cate- lizar as suas conclusões à totalidade dos pro-
gorias do espectáculo, a introdução das re- dutos como se todos eles merecessem o re-
gras do espectáculo e da publicidade na ge- púdio generalizado. Pelo contrário, a análise
neralidade da cultura mediática e na percep- que pretendo fazer, em relação a um traço
ção e construção da realidade social dificil- particular da comunicação de massa contem-
mente pode ser negada. O grande modelo porânea – a insistência na espectacularização
das dinâmicas sociais apropriadas pelos me- das mensagens – tem em conta que se deve
dia não é o circo, como dizem alguns inte- olhar para este fenómeno como uma reali-
lectuais, mas o número do ilusionista: este é dade contraditória que se não pode conside-
o número em que nos é dito que tudo pode rar como um fenómeno intemporal e incon-
acontecer. Na verdade, muitas vezes não tornável.
acontece nada de relevante, a não ser a ocul- A comunicação de massa é uma forma de
tação do modo como as coisas são feitas. A cultura que surgiu a partir do momento em
sociedade de consumo vive obcecada por fa- que apareceram meios técnicos e comerci-
zer passar a ideia de que as nossas vidas po- ais para a produção, distribuição e difusão
dem ser transformadas. O truque consiste em de formas simbólicas tendo como destina-
que se sabe que isso dificilmente acontece no tário um público heterogéneo e indiferen-
plano em que a publicidade pretende fazer ciado, por parte de organizações especiali-
acreditar: as férias de sonho, o parceiro ina- zadas nessa tarefa, com o recurso a profis-
cessível, a fama e a fortuna inatingíveis. Po- sões socialmente legitimadas para o efeito,
rém, continuamos a comportarmo-nos como de acordo com normas, técnicas e conven-
se isso fosse verdade desde que actuemos de
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ções que se acredita serem as mais adequa- maior tendência para o aumento do sensacio-
das para a sua concretização (cfr. Carrol, nalismo e para a despolitização da imprensa
1997: 184). Estas condições só surgiram a (cfr. Curran e Seaton, s/d: 7-8). Os gover-
partir do século XIX com a aparição do jor- nos, na sequência do aparecimento da pu-
nalismo industrial e das artes reprodutíveis. blicidade imediatamente criaram taxas e im-
Desde a industrialização da cultura houve postos que garantissem a propriedade bur-
a possibilidade de reproduzir, em quanti- guesa da imprensa. Os anunciantes manti-
dades expressivas, certas formas narrativas veram uma relação com o novo medium que
centradas na exploração da fantasia e na ges- privilegiou as publicações que sublinhassem
tão das emoções. A partir do século XIX os valores estabelecidos discriminando jor-
a necessidade de corresponder à agradabi- nais que contrariavam os seus preconceitos
lidade dos gostos populares das classes em políticos. Muitos jornais da esfera pública
ascensão generalizou esta tendência para o plebeia acabaram por se despolitizarem des-
sensacionalismo e para a espectacularização. locando a sua relação com as classes popula-
No século XIX, lado a lado com a emergên- res para o plano do sensacionalismo.
cia de um paradigma novo que focaliza a in- Recentemente, o regresso inexorável do
formação em vez da opinião, assiste-se à co- mercado e a visibilidade adquirida pelo ca-
mercialização da imprensa. A imprensa de rácter industrial dos media no recente pro-
massas emergiu com uma preocupação cres- cesso de desregulação gerou uma nova vaga
cente de acessibilidade. de criticismo. O que dantes era um bem es-
As mensagens passam a veicular informa- casso – o espaço hertziano – deixou de o
ções coloridas e agradáveis para as audiên- ser graças às novas possibilidades tecnoló-
cias maioritariamente constituídas pelas no- gicas de distribuição. Com o aparecimento
vas classes urbanas. A imprensa de mas- dos novos media e a derrocada dos mono-
sas foi uma resposta às necessidades cultu- pólios televisivos, o neo-liberalismo tornou
rais desencadeadas pela transformação da es- a paisagem audiovisual europeia irreconhe-
fera pública. O processo de desenvolvimento cível (cfr. Traquina, 1997:16). A diminuição
capitalista era favorável ao desenvolvimento do peso da taxa de serviço público e o au-
de uma mentalidade igualitária. As clas- mento da percentagem de publicidade como
ses emergentes buscavam a sua identidade, fontes de receita da indústria audiovisual eu-
opondo-se às classes aristocráticas identifi- ropeia traduziu-se na entrega da hegemonia
cadas com a cultura clássica (cfr. Schudson, da gestão do sector ao mercado. Verifica-se,
1978: 4). Estavam reunidas as condições assim, nos media, um incremento substan-
sociais e culturais que tornaram o crime, o cial no volume de horas destinadas à função
baile de sociedade, os fait divers, o desporto de entretenimento; aumenta o espaço ocu-
e o combate de rua como noticiáveis. Por pado pelo desporto; escasseia a atenção dada
outro lado, embora a introdução da publici- a novos programas de informação sobretudo
dade tenha provocado maior democratização quando impliquem pesquisa e investigação;
do consumo das mensagens mediáticas, al- constata-se uma presença mais substancial
guns autores como James Curran entendem de reality shows e telenovelas; dilui-se, de
que este fenómeno também produziu uma modo acentuado, a separação tradicional en-
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a história de vida de uma mulher que procura ponto de vista ético, ao relativismo norma-
o filho, os relatos sobre mulheres e crianças tivo, e sob o ponto de vista estético, a fe-
maltratadas, os dramas de filhos de pais de- nómenos triviais e fugazes como a moda.
ficientes, as polémicas sobre a genética e a O discurso sobre o elitismo dos críticos é
clonagem, às notícias sobre o défice do orça- acompanhado pela certeza cultivada por al-
mento e os mistérios da economia. O entre- guns teóricos de que as obras da cultura de
tenimento privilegia o encontro entre famili- massa ajudam a superar o fosso entre a arte
ares desavindos, os namoros que se recom- e a vida pelo que a democracia cultural pode
põem, as operações de mudança de sexo, os ser realizada aqui e agora (cfr. Wolin, 1995:
problemas de obesidade, o erotismo-soft, as 45).
histórias de sucesso e o casamento dos con- Quanto ao segundo ponto, objecto de re-
correntes dos reality-shows. Estimula-se a flexões mais sofisticadas acredita-se que os
fama individual, o golpe de sucesso mediá- media teriam sido determinantes para a dis-
tico, o meio ano de fama e os heróis fugazes. solução dos pontos de vista centrais e das
No pensamento pós-moderno, emerge um grandes narrativas. Ter-se-ia atingido um
conjunto de teorias que afirmam uma espécie pluralismo desinibido: os tabus da sociedade
de auto-complacência sofisticada em relação unidimensional teriam sido eliminados. Não
à indústria cultural. A acção dos media é há nenhum tema que seja demasiadamente
descrita como aquela onde tudo é permitido. arriscado (cfr. Wolin, 1995: 50). O que ca-
No novo modo de encarar a comunicação de racteriza a sociedade da comunicação e dos
massa há algumas tendências que urge detec- mass media não é a sua maior transparên-
tar: a) um certo sentido de resignação polí- cia no sentido iluminista do termo, mas a sua
tico cultural; b) o fascínio pela fragmentação maior complexidade, entropia e caos na qual
cultural, um desenho da cultura que convive alguns autores pós-modernos julgam residir
bem com a busca da alteridade e da poliva- as nossas esperanças de emancipação (cfr.
lência cultural (cfr. Wolin, 1995: 44-45). Vattimo, 1992: 10).
No que respeita ao primeiro ponto, a cul- Quer a Teoria Crítica na sua formulação
tura mediática parece tão mais valorizada mais ortodoxa quer o pós-modernismo nas
quanto aparece intrinsecamente ligada não suas versões mais triviais são leituras line-
apenas à recusa da tirania de qualquer pro- ares da realidade. Na primeira, a autonomia
jecto relacionado com um princípio ou su- do sujeito funda-se na decepção e no engano.
jeito propulsor da história mas à própria ética Na segunda, vai-se pouco mais para além de
ou a qualquer sobrevivência de espírito crí- uma certa exaltação sofisticada das atitudes
tico. “A ética não vende” é a frase que me- consumistas das sociedades marcadas pelo
lhor espelha o espírito do tempo. As tendên- liberalismo económico. O sujeito de qual-
cias da reflexão pós-moderna que, de modo quer das duas concepções tem até parecenças
mais acrítico, expressam semelhantes virtua- substanciais: é um entusiasta do consumo,
lidades da indústria mediática traduzem-se, da excitação e da euforia que este produz,
muitas vezes, numa veia de cepticismo no procura a satisfação das suas necessidades
que diz respeito a qualquer forma de destino culturais nos media e dedica-se ao esforço
colectivo. A cultura surge associada, sob o
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solitário de ser feliz através das oportunida- tratado enquanto veículos principais de pro-
des que a sociedade capitalista proporciona. gresso no plano moral (Rorty, 1994: 19).
É possível esperar algo mais desta indeter- O pensamento pós-moderno através de
minação, desta contingência e fragmentação, Vattimo afirma que a multiplicação do “to-
tão celebradas pelos pós-modernos? Limita- mar a palavra” por parte de numerosas sub-
se a induzir um relativismo permissivo no culturas que só conheciam uma remota vi-
qual o sujeito se perde a si próprio ou, pelo sibilidade é, talvez, o efeito mais evidente
contrário, relaciona-se com novas e decerto dos mass media (cfr. Vattimo, 1992: 11-12).
inqualificáveis, porque não testadas, possibi- Esta constatação -e as possibilidades eman-
lidades emancipatórias? O filósofo canadi- cipatórias que dela se concluem – é impor-
ano Charles Taylor admite que o hedonismo tante pelo facto de acentuar a profunda di-
contemporâneo resulta numa espécie de ab- mensão conflitual e simbólica da construção
surdo atrás do qual surgem novas formas de das identidades nas sociedades actuais. Po-
dependência e de insegurança na constru- rém, é difícil partilhar da euforia expressa
ção da personalidade (cfr. Taylor, 1992:15). pelo autor quando afirma “que a rádio, a te-
Porém, simultaneamente, considera que por levisão e os jornais se tornaram elementos de
detrás da aparente generalização do hedo- uma grande explosão e multiplicação de Wel-
nismo, se esconde um ideal de autentici- tanschaungenn, de visões do mundo” (Vat-
dade susceptível de ser considerado como timo, 1992: 11). A tomada da palavra por
moral ou ético e que tem implícito a aspi- novas minorias emergentes é um factor cen-
ração a uma existência melhor e mais ele- tral que Vattimo valoriza acertadamente. Po-
vada, relacionada com os projectos de auto- rém essa valorização não é acompanhada por
realização pessoal decorrentes da moderni- uma força crítica que permita pensar para
dade (cfr. Taylor, 1992: 16-17). À luz desta além de uma certa complacência para com
concepção, é possível admitir que os meca- a permissividade neo-liberal. A reformula-
nismos desejantes impliquem ou, pelo me- ção da realidade do mundo, entendida como
nos, se relacionem com uma vontade, ainda o contexto das múltiplas fabulações (cfr. Vat-
que frustrada, de mudar a vida. timo, 1992: 32); a análise do papel dos
O projecto minimalista dos pós-modernos media na libertação dos dialectos, na exibi-
tem a virtualidade de chamar a atenção para ção do carácter aleatório e não definitivo dos
o facto de que, hoje, em vez da concentra- “mundos reais” que as diferentes subculturas
ção das notícias em umas poucas e reduzidas partilham (cfr. Vattimo, 1992: 15) são fun-
figuras oficiais, se verifica o acesso à progra- damentais, mas só por si arriscam-se a ser
mação e até à informação por parte de tipos uma mera celebração inodora da tolerância
sociais que finalmente adquirem alguma vi- liberal. Vattimo não explica como é possí-
sibilidade pública. Rorty vai mais longe e vel uma recusa da hegemonia de um ponto
considera que enunciados como texto jorna- de vista unitário, sem implicar uma ideia uni-
lístico, a banda desenhada, o filme e o pro- versalista de tolerância para com a diferença.
grama de televisão oferecem-nos pormeno- A emancipação resultante da emergência da
res sobre tipos de sofrimento que não co- diferença e do pluralismo implica que indiví-
nhecíamos tendo substituído o sermão e o duo adquira a capacidade de avaliar as suas
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dustriais por uma análise da ideologia rela- produzidas pela comunicação de massa, se-
cionada com as formas simbólicas produzi- jam objecto de uma utilização ideológica.
das pelos meios técnicos de comunicação de Esta intuição parte do pressuposto que o con-
massa. A nova análise proposta teria como ceito de ideologia se refere às maneiras como
quadro de referência fundamental a mediati- o sentido serve em circunstâncias particu-
zação da experiência cultural (cfr. Thomp- lares, para estabelecer e sustentar relações
son, 1995: 342). de dominação (cfr. Thompson, 1995: 16).
Simultaneamente, nega-se a ideologia Porém, não implica o pressuposto utilizado
como um momento coercivo, unilateral e re- sistematicamente pelo criticismo cultural de
dutor, perante o qual o sujeito se vê reme- que todas as formulações simbólicas se de-
tido a uma posição passiva de pura inte- finam, irredutivelmente, como ideológicas.
riorização de mecanismos de socialização. As formas simbólicas produzidas pela comu-
Esta intuição tem um impacto considerável nicação de massa podem surgir como ideo-
no processo de socialização, de aprendiza- lógicas num contexto podendo surgir como
gem de valores básicos, geralmente referen- subversivas em outro contexto (cfr. Thomp-
ciada na senda de Gramsci, por hegemo- son, 1995: 18)
nia. Com a emergência das democracias de Aceitando a pluralidade de modos de con-
massa, Gramsci já compreendera que o ele- flitualidade das sociedades modernas, as re-
mento decisivo deixa de ser o exercício da lações de dominação – e, consequentemente,
coacção pelo Estado para passar a ser a ha- a sua legitimação através do uso da ideologia
bilidade em obter um poder hegemónico en- – deixam de ser vistas, exclusivamente, en-
raizado nas organizações da sociedade civil e quanto relações de classe, designando ape-
na mediação exercida pelos intelectuais (cfr. nas um eixo da desigualdade e da explora-
Gramsci, 1977: 24), acentuando – se o peso ção (cfr. Thompson, 1995: 77). Marx des-
da cultura e dos elementos simbólicos, es- prezou “a importância das relações entre os
senciais na sociedade civil como factores de sexos, entre os grupos étnicos, entre os in-
obtenção da hegemonia política. A ideologia divíduos e o Estado, entre o Estado-nação e
articula-se com a luta pela hegemonia. Na blocos de Estado-nação” (Thompson, 1995:
luta pela obtenção da hegemonia, os mundos 77). A concepção de ideologia continua a
imaginários funcionam como matéria simbó- ser relevante para o criticismo contemporâ-
lica para um consenso reordenador das rela- neo, porém deve ser antes associada com
ções sociais. Este tipo de abordagem traduz- qualquer forma de dominação ou de opres-
se no plano da análise dos media, por uma são social, independentemente de esta reflec-
conflitualidade em torno das normas e sig- tir homofobia, sexismo, racismo (cfr. Carrol,
nificados dominantes e sua respectiva inter- 1997:371). Pode-se, assim, falar de um novo
pretação, admitindo, mesmo, a possibilidade pólo dinamizador das lutas sociais, que in-
de uma actividade cultural contra hegemó- clui a promoção simbólica das escolhas iden-
nica em relação à correlação de forças do- titárias, e que pode ser incluído na ideia de
minante. “cidadania das minorias”. O centro dos con-
Simultaneamente, nega-se que todas as flitos sociais já não se situa apenas nas esfe-
formulações simbólicas, nomeadamente, as ras de reprodução material, como supunha o
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marxismo, mas também nas esferas da vida paço público não significam a emergência de
simbólica. qualquer realidade emancipada. Limitam-se
A aproximação entre a ideologia e a vida a ser, eventualmente, os traços de incerteza,
quotidiana é outra das tendências consisten- de indeterminação, de contingência que po-
tes nesta tendência. Ao aceitarem elemen- dem, eventualmente, alimentar os movimen-
tos da vida quotidiana como essenciais para tos sociais dinamizadores de uma racionali-
a questão da análise da dominação, abrem- dade menos unilateral, menos coesiva e mais
se as portas a uma reflexão sobre as pos- crítica e multiforme.
sibilidades da emancipação mais enraizada
no mundo da vida e nas questões que dizem
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