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Os administradores de ilusões: espectáculo,

subjectividade e ideologia na cultura mediática


contemporânea∗
João Carlos Correia
Universidade da Beira Interior

Índice uma excitação de viver que oculta a misé-


ria da vida. Num contexto relativamente iró-
1 Introdução . . . . . . . . . . . . . 1 nico, pode afirmar-se que a cultura mediática
2 A actualidade da teoria crítica e a é ópio do povo.
categoria do espectáculo . . . . . 3 A cultura mediática implica uma gestão
3 O espectáculo como categoria es- programada da ilusão e uma planificação
sencial da cultura mediática . . . . 8 económica do desejo. Activa-o, cria a ilusão
4 Espectáculo e subjectividade . . . 10 da sua realização e adia-o num perpétuo jogo
5 Espectáculo, desejo e ideologia: . 16 de relação entre a satisfação e a insatisfação
6 Bibliografia . . . . . . . . . . . . 18 de que é feito o consumo. Entre a activa-
ção do desejo e o adiamento da sua realiza-
ção, surge o frémito que resulta de um pra-
zer sempre antevisto e nunca integralmente
1 Introdução cumprido. Os críticos do hedonismo só par-
cialmente têm razão: a cultura contemporâ-
A cultura dos mass media vive sob suspeita. nea não vive centrada no prazer mas antes na
Por um lado, sempre se fez sentir a vocação expectativa de que o mesmo se realize.
dos mass media para despertar e gerir a emo- Os programadores de televisão serão, a
ção, o que desde logo remete para as catego- confirmar-se esta possibilidade, os novos
rias do espectáculo e da subjectividade. Por mandarins que almejam proporcionar ao
outro lado, sempre se suspeitou da manipula- povo, através da colonização da sua fantasia
ção do desejo como forma de impedir o uso pela indústria do sonho e da imaginação, as
da razão, o que leva a pensar na figura da formas simbólicas que lhe permitem rever a
ideologia. Gerindo o desejo, proporciona-se sua vida sob forma invertida como numa ca-

Texto publicado na revista Media &Jornalismo, mera obscura.1
publicação do Centro de Investigação em Media e Jor- 1
Nota do autor – Em latim no original. Pretende-
nalismo, no 2, Ano 2, Março de 2003, Edições Mi-
se com a ideia da camera obscura fazer a alusão à
nerva, Coimbra.
2 João Carlos Correia

Ao longo deste texto, efectua-se o se- Este afã de “viver a vida” contém leituras
guinte percurso: contraditórias. Habitar esta ficção significa,
a) Identifica-se o espectáculo como uma muitas das vezes que os seus actores se recu-
categoria fundamental da cultura mediática sam a serem agentes sociais. A vocação ou
que, ao contrário do que muitos supõem, tendência para uma certa encenação mediá-
não se resume à cultura televisiva. Reco- tica do self – nunca tantos casaram, chora-
nhecendo o papel da TV na espectaculariza- ram e até amaram ou morreram em directo –
ção das fórmulas simbólicas, tento demons- relaciona-se com um particular impulso das
trar que existe nos mass media uma vocação sociedades modernas, em que se equacionam
para a sobreexcitação do desejo e para a con- desejos recalcados e anseios não satisfeitos
quista da agradabilidade que não se resume e constantemente reactivados. Porém, tam-
ao medium televisivo. Assim, começa-se por bém significa algo mais profundo: a busca
uma caracterização da cultura mediática que de novas condições de visibilidade. A cen-
evidencia a existência de uma vocação es- tralização da cultura mediática nos projectos
pectacularizante que parece percorrer grande individuais parece ser um traço da moderna
parte da história dos meios de comunicação comunicação de massa: passa pelos reality
de massa, ainda que com graduações diferen- shows, pela insistência nos dramas reais e
tes. nas histórias de vida. Será isso uma mera
b) Relaciona-se este afã de agradar e de tendência para a despersonalização dos indi-
tornar apelativo com a gestão do desejo e a víduos através da gestão dos seus desejos?
vocação compulsiva de desencadear o pra- Qual é a importância do individualismo na
zer através de uma constante diferenciação descoberta de novas formas de viver a vida e
simbólica. Esta associar-se-ia com o acto de na afirmação de novos direitos?
consumir e com o desejo de participar no c) Articula-se a gestão do desejo com a
imenso espectáculo em que a vida se tor- questão da ideologia. A questão do su-
nou. A conquista dos quinze minutos de jeito é fundamental na ideologia. Se aquele
fama tornou-se uma profecia tímida em face for olhado como um efeito de poder ou
do afã de exposição e de transparência que como um idiota socializado a ideologia surge
caracteriza a vida moderna. A democrati- inapelavelmente casada com a dominação.
zação do espectáculo obriga a que todos al- Pelo contrário, a consideração do sujeito
mejem serem actores. A oportunidade de como uma categoria que incorpora, dialecti-
ser actor está muitas vezes relacionada com camente, a possibilidade de crítica relaciona-
o desejo de habitar uma ficção sem estre- se com uma concepção ampla de teoria so-
las. A “vida real” é encenada segundo os cial interpretativa. Este modo de abordar
desejos euforicamente expressos pelas audi- a acção social é inconciliável com o anti-
ências que desta forma compartilham ilusão humanismo estruturalista ou com a reifica-
de que todos podem participar no grande es- ção que percorre a crítica à sociedade admi-
pectáculo: o Big Show. nistrada.
Da forma como se considera a ideologia
metáfora da inversão da realidade que percorre a “Ide-
ologia Alemã”, de Marx e Engels. resultam, pois, três questões fundamentais.
A primeira é a relação do sujeito com a cul-

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tura: idiota socializado, efeito de poder ou 2 A actualidade da teoria crítica


agente dinâmico? A segunda diz respeito e a categoria do espectáculo
à autonomia das formas culturais relativa-
mente aos media sistémicos, ou se quisermos Os autores que se opõem às diferentes ver-
de outro modo, à autonomia da superstrutura sões da crítica à comunicação de massa cos-
em relação à infra-estrutura. A terceira ques- tumam argumentar com o facto de que a cri-
tão diz respeito à sociedade civil. Será esta ação de efeitos no público é susceptível de
uma arena de luta simbólica onde se pro- ser identificada ao longo de toda a história
cessa o combate entre os grupos dominan- da cultura. Para esse efeito, recorrem à apre-
tes para obterem a hegemonia, isto é, o reco- sentação de exemplos abundantes em que a
nhecimento da validade da sua dominação, chamada alta cultura aparece associada ao
ou pelo contrário, uma realidade completa- sucesso popular e ao recurso a fórmulas fo-
mente reificada, apenas outro nome para a lhetinescas e sensacionalistas que visariam
infra-estrutura? prender a atenção do público. Incluem-se,
A articulação entre estes temas díspares neste caso, os exemplos da tragédia grega, do
pode e deve ser feita. Se consideramos o teatro elizabetiano, de Dickens, Alexandre
espectáculo mediático como uma forma de Dumas, Victor Hugo na literatura, da ópera
gestão e manipulação das necessidades do na Itália do Século XIX, de Chaplin, Bus-
indivíduo reduzido a um efeito de poder, en- ter Keaton, Ford, Wells ou Hitchcock no ci-
tão a cultura mediática surge-nos como pura nema durante o século XX. Com esta argu-
ideologia relacionada com a busca desenfre- mentação procura-se contrariar a opinião de
ada do lucro e a produção de ilusões que di- clássicos da crítica da cultura como McDo-
zem respeito à perpetuação do sistema. nald, Adorno ou Horkheimer (cfr. Carrol,
Se ao invés considerarmos que o espectá- 1997: 15-109). Estes clássicos veriam na co-
culo se pode relacionar com formas de afir- municação mediática – como traços que di-
mação do sujeito que passam pela busca e riam respeito à sua própria natureza – o em-
consolidação de caminhos alternativos que pobrecimento estético através da utilização
ganharam uma dimensão individual, outra de fórmulas e estereótipos pré-fabricados, a
terá que ser a concepção de cultura de massa generalização do conformismo e da apatia,
e de sujeito. A sociedade civil reflectirá os o empobrecimento da capacidade racional
antagonismos que percorrem as sociedades dos consumidores, a vulgarização de fórmu-
pluralistas modernas, mostrando a dimensão las espectacularizantes destinadas à explora-
simbólica desses antagonismos e afirmando- ção dos sentimentos básicos dos receptores
se como sociedade de comunicação. transformados em consumidores e a degra-
Provavelmente, o dilema é pertinente mas dação da linguagem.
não permite, como alguns gostariam, esco- A argumentação contra as conclusões ge-
lhas lineares. neralizadoras da Teoria Crítica põe, sobre-
tudo, a nu a tendência para um raciocínio
especulativo que resume a cultura contempo-
rânea ao consumo massificado, recusando-se
a olhar para o universo simbólico contem-

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porâneo das nossas sociedades e a descorti- mediática parte de premissas iniciais que ca-
nar os vestígios contraditórios de uma cul- recem de evidência empírica e, em especial,
tura autónoma com os seus momentos ambi- de uma leitura mais cuidadosa das diferen-
valentes, as suas transformações concretas, a ças entre os diversos géneros e, dentro des-
própria permanência de elementos de rebel- tes, dos diferentes produtos que integram a
dia e de esperança (cfr. Esteves, 1995: 95). indústria e sobre os quais é lançado um aná-
Descortina-se no pensamento da Escola de tema generalizado. No caso particular da Es-
Frankfurt uma tendência para demonstrar o cola de Frankfurt, partindo-se da premissa da
carácter homogeneizado da realidade sobre uniformização do gosto estético, a própria
que se debruça, o qual passa pela enfatiza- Teoria Crítica parece homogeneizar o fenó-
ção da universalidade e inevitabilidade dos meno sobre que se debruça, pelo que numa
traços que identifica no seu objecto de es- parte substancial dos seus textos parece não
tudo. Esta tendência manifesta-se na convic- haver lugar para a aplicação de critérios, de
ção fortemente arreigada do devir totalitário tal forma tudo é apresentado como desespe-
das sociedades industriais: “Já na época do radamente igual.
Nacional-Socialismo”, afirma Horkheimer, “ Apesar de tudo, a desconfiança da Teo-
ficou visível que o governo totalitário não era ria Crítica relativa à cultura dos mass media
um mero acaso mas um sintoma do caminho contém algumas intuições e destaca alguns
da sociedade” (Horkheimer, 1990:3). Por traços da indústria cultural que me parecem
outro lado, esta abordagem culmina numa vi- dignos de serem tidos em conta desde que,
são reificada de toda a cultura. Não se trata claro, seja feita a ressalva de que carecem do
de um fenómeno pontual que aflora e contra complemento de uma análise empírica, so-
o qual se apela à urgência da prevenção. A cial e histórica, sobre os objectos nos quais
modulação da cultura pela administração é o se incide. Com efeito, o impacto da Teoria
“todo”, pois projecto político ligado ao uni- Crítica na cultura mediática neste particular
verso tecnológico “molda todo o universo da momento do século XXI deve balizar-se por
palavra e da acção, a cultura material e a cul- duas reflexões:
tura intelectual” (Marcuse, 1968:19). Con- a) Por um lado, já se tornou claro que mui-
sequentemente, o”modelo de pensar admi- tas das apreciações conjunturais empreendi-
nistrativo tornou-se o modelo de toda uma das pelos críticos da cultura mediática se re-
forma de pensar que ainda se acredita livre” velaram preconceituosas e sobretudo exces-
(Adorno e Horkheimer, 1995: 32). sivamente generalizadoras. Apesar de os úl-
Graças a esta generalização totalizadora, timos escritos de Adorno revelarem consci-
são evidentes os exageros praticados pelos ência da necessidade de uma análise empí-
principais autores da Teoria Crítica na sua rica, podendo sentir-se alguma reconsidera-
apreciação da indústria cultural. O modo ção da tonalidade apocalíptica que perpassa
como Adorno, Horkheimer ou McDonald impiedosamente pela “Dialéctica do Ilumi-
“atacaram” o cinema em geral, a litera- nismo” insiste-se afinal na diabolização ge-
tura policial, o jornalismo e certos géneros neralizada da cultura de massa de forma
de música como o jazz, não deixa dúvidas a que os seus traços sejam considerados
quanto ao facto de que a crítica da cultura como um prejuízo claro para a possibilidade

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de participação democrática (cfr. Adorno, observação sobre a comunicação de massa


1996-b: 294). As amarguras do exílio, o con- terá sempre que ter em conta a observação
tacto com o nazismo e com o consumismo da histórica, os interesses conflituantes, as pos-
sociedade americana impediram-nos de ver sibilidades contraditórias e a capacidade de
que nem todos os modos de dominação são resistência dos públicos. No caso concreto
iguais e que os produtos da indústria mediá- dos media, insiste-se na percepção de uma
tica não são todos medíocres e conformistas. ambiguidade estrutural que resulta do facto
b) Por outro lado, o processo de liberali- de estes não poderem viver ao abrigo das
zação do sistema dos mass media, designa- contradições que os atravessam, designada-
damente da programação e da informação te- mente por despoletarem e amplificarem no-
levisivas levou a um recrudescer dos estudos vas pretensões de validade.
sobre esta escola. Se tivermos em conta as Feita esta ressalva que insiste muito par-
gradações esquecidas, evitando-se as gene- ticularmente numa apreciação detalhada das
ralizações perturbantes há alguns traços que diferenças e das gradações, penso que há tra-
parecem merecer atenção dos investigadores. ços que continuam a merecer atenção, sendo
Os recentes alertas de intelectuais pertencen- que esta atenção deve funcionar como um
tes a diversos percursos teóricos contra a ge- alerta para as patologias que ameaçam o uni-
neralização do entretenimento consumista e verso dos media e nunca como uma caracte-
da fusão entre informação e entretenimento rização válida para todos os tempos e luga-
vieram relançar novas preocupações e con- res.
ferir visibilidade a argumentos que se consi- Em primeiro lugar, destaco a análise da in-
deravam datados. tervenção da racionalidade técnica e indus-
Posto isto, pode-se dizer que acredito mo- trial no seio da cultura. A análise weberiana
deradamente nalguns pontos que são parte do desencantamento do mundo, aplicada por
do diagnóstico levado a efeito pela Teoria Adorno e Horkheimer ao universo da cul-
Crítica contra a cultura mediática. Porém, tura, chama a atenção para o facto de que
ressalvo, previamente, a minha convicção se- o pensamento administrativo das burocracias
gundo a qual os autores que trabalharam a industriais dá origem a perversões pela uni-
indústria cultural a partir das posições da Es- formização dos produtos. Se a racionali-
cola de Frankfurt consideraram os seus ra- dade industrial e burocrática não é tão po-
ciocínios como premissas unilaterais e in- derosa que tivesse originado um deserto to-
discutíveis generalizando para toda a cultura talitário, não deixa de ser um facto que este
uma mesma condenação impiedosa. Algu- ângulo de análise merece ser tido em conta.
mas destas intuições devem ser olhadas, an- O século XX assistiu à industrialização ge-
tes, como possibilidades, tendências ou ris- neralizada da cultura. Existem muitos exem-
cos que se revelaram de forma ora mais, ora plos onde esta industrialização implica uma
menos acentuada ao longo do processo his- perda de criatividade, uma relativa estereo-
tórico de consolidação da comunicação de tipização das narrativas e uma certa reifica-
massas. Ressalva-se, por isso que, apesar ção das relações sociais apresentadas como
dessa concordância com alguns dos traços eternas e imutáveis em função da necessi-
diagnosticados pela Escola de Frankfurt, a dade de não perturbar o gosto médio dos

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consumidores. Se é verdade que o cinema utilizam uma fórmula. Porém, a história da


americano, por exemplo, não é o deserto de indústria cultural está cheia de exemplos que
inteligência agredido por Adorno, se é ver- indiciam a adopção de determinados códigos
dade que os filmes que retemos na memó- e dispositivos narrativos por razões que se
ria – as obras de Chaplin, de Buster Kea- prendem com preocupações estatísticas rela-
ton, Wells, de Ford, de Wilder, de Hitch- cionadas com estudos de mercado que, mui-
cock, Nicholas Ray, Howard Hawks ou até tas vezes, asfixiaram obras esteticamente cri-
os musicais da MGM realizados por Minelli ativas e inovadoras. Contemporaneamente,
e Stanley Donen, ou mais recentemente, as continuam a verificar-se a aposta em fórmu-
obras de W. Allen, dos irmãos Cohen, Fin- las estereotipadas e a consequente perda de
cher ou de Lynch ou de Steven Soderbergh liberdade por parte de alguns dos autores
– são uma demonstração de como é possível mais inovadores que se afirmam na indústria.
utilizar inteligentemente os códigos pré fa- A racionalidade instrumental é omnipre-
bricados da indústria e do género também é sente nas sociedades modernas. Porém, a sua
importante lembrar que no mesmo universo transformação na própria natureza da indús-
que originou estes exemplos se verificou-se tria cultural tal como foi pensada por Adorno
a criação de uma censura de gosto, de uma e Horkheimer conduz à impossibilidade de
regra de precedentes, de uma estereotipiza- compreensão das diferenças.
ção de procedimentos que originaram a ins- Em segundo lugar, destaca-se a insistên-
titucionalização de formas reificadas de re- cia no facto de a necessidade de agradabi-
flectir sobre a realidade. Estes fenómenos lidade que percorre as formas industriais de
reflectiram-se em milhares de filmes que ra- cultura poder conduzir à busca de uma sinto-
pidamente caíram no esquecimento e sufo- nia com os valores e visões do mundo pré-
caram, muitas vezes, a possibilidade criativa existentes. O receio de que a formulação
de muitos dos autores que hoje citamos. O de raciocínios considerados difíceis e pro-
caso de Worson Wells é um dos mais signi- blematizantes obtenham um sucesso escasso
ficativos e dramáticos. A defesa que Adorno leva a sintonizar a cultura produzida pela in-
faz do termo indústria cultural contra o termo dústria mediática com aqueles que são tidos
cultura de massa possui virtualidades se reti- como os gostos vulgares dos cidadãos vulga-
rarmos a retórica generalizadora e impressio- res. Isto pode dar origem a um efeito ideoló-
nista que envolve a maior parte dos seus tex- gico que se traduz numa espécie de confor-
tos sobre o fenómeno. Este termo acentua o mismo sublinhado a priori na ideia de que
carácter profundamente industrial da produ- as coisas são como são. O entretenimento
ção de normas simbólicas pela chamada co- parece implicar a ausência de criatividade e
municação de massa: a especialização de no- de subversão e a insistência nos valores ad-
vas profissões, a adopção de normas estilís- quiridos. A fórmula adorniana do pensa-
ticas e de convenções narrativas e organiza- mento da identidade refere-se, deste modo,
cionais. Nesse sentido, a utilização de uma a uma cultura que não nega a realidade es-
fórmula facilmente reconhecível ganha um tabelecida mas cria a identificação com ela.
sentido diferente. É evidente que os sonetos Mais uma vez, estamos diante de um risco,
de Shakespeare e a tragédia grega também uma possibilidade ou uma tendência que se

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consolidou, muitas vezes, na música, no ci- vidade ideológica, um conformismo norma-


nema ou no jornalismo. Porem esta tendên- tivo, uma integração social demasiadamente
cia não se afirmou de uma maneira incontor- bem sucedida. A culpa da confusão entre es-
nável. Não impediu fenómenos de criativi- tas duas formas de passividade é, em grande
dade e de autonomia que constituíram ver- parte, da Teoria Crítica pois as suas formu-
dadeiros desafios para as ameaças de con- lações teóricas fazem crer que, pelo menos
formismo: “2001: Odisseia no espaço” não nalguns momentos, os autores de Frankfurt
é decerto a mesma coisa que “O Dia da In- acreditaram que o pensamento social domi-
dependência”, como “O Big Brother” não é nante funcionaria segundo o modelo estí-
“Portugalmente”. Contra o risco de cons- mulo resposta. Porém, parece-me que o es-
trução de consensos ideológicos levantam-se sencial da mensagem a reter diz antes res-
constantes dinâmicas culturais que questio- peito a um conformismo axiológico que se
nam o que parece adquirido. traduz, mais uma vez, na incapacidade de
Em terceiro lugar, esta ambição de agrada- pensar a sociedade de um outro modo dife-
bilidade está relacionada com a presença do rente daquilo que ela é. Também aqui, po-
mercado como medium. Todo o raciocínio rém, se revelam contradições que impedem
é transformado em mercadoria de tal forma a existência de formulações unilaterais con-
que tudo aquilo que não se conforma com as denatórias. Se a indução da passividade e do
especificações produtivas da indústria cultu- conformismo diz respeito à própria natureza
ral é rejeitado. As recentes evoluções veri- da comunicação de massa seria difícil expli-
ficadas no panorama audiovisual confirmam car a sua constante mutação, ou os fenóme-
que a entrega do monopólio da produção da nos de rejeição e de reacção que conduzem
comunicação de massa ao mercado tem efei- a alterações no seio desta forma de cultura.
tos perversos na qualidade. A necessidade Se é verdade que, muitas das vezes, a sub-
de obtenção de retornos rápidos do inves- versão é ela própria um valor mercantil que
timento efectuado conduz à produção ma- oculta “mais do mesmo”, é verdade que exis-
ciça de programas baseados na exploração tem margens de exercício crítico que conti-
fácil da emoção seguindo fórmulas simplis- nuam a ser pensadas. Ou seja, cada medium
tas e seleccionados, apresentados e distribuí- faz parte de um conjunto que não é nunca
dos segundo critérios de rentabilidade. completamente homogéneo e coerente. Cada
Finalmente, a indústria cultural induz uma recepção possui uma margem de leitura au-
certa forma de passividade. Não me refiro à tónoma que não se limita a transformar o su-
passividade que alguns teóricos discordantes jeito num robô cultural.
da teoria crítica, como Carrol (1997), con- Partindo desta aceitação relativa das críti-
testam quando insistem em que toda a men- cas à comunicação de massa enquanto ten-
sagem mediática implica actividade porque dências que não podem ser esquecidas e que
necessita de ser descodificada. A descodifi- explicam alguma da inquietação que hoje
cação e o reconhecimento dos códigos utili- ocupa a reflexão sobre os media, podere-
zados podem até reforçar o efeito de identifi- mos acrescentar outras preocupações que,
cação com a mensagem, graças à gratificação não provindo exclusivamente da Teoria Crí-
sentida pelo receptor. É, antes, uma passi- tica, se articulam com preocupações explí-

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8 João Carlos Correia

cita ou implicitamente relacionadas com esta determinada forma. É aqui que a indústria
teoria ou do mesmo ambiente teórico. intervém com a sua força anti-depressiva:
Desde logo, os media contribuem para a não desanimem, racionalizem. Vejam mais
construção da realidade social e para a fi- uma novela e não percam o próximo episó-
xação de visões do mundo. São responsá- dio da vida real.
veis pela definição do que é socialmente visí-
vel. Impõem um nivelamento de critérios na
3 O espectáculo como categoria
apreciação de factos desiguais em importân-
cia. Contribuem para a trivialização da rea- essencial da cultura mediática
lidade e para a exploração sensacionalista da Na perspectiva que defendo, a comunica-
desgraça alheia. Produzem consensos fictí- ção de massa não é definida inelutavelmente
cios em torno da agenda pública. Privilegiam pelos traços negativos que a Teoria Crítica
o espectáculo em detrimento de uma temati- aponta como sendo a sua verdade, a sua na-
zação criteriosa. Assentam a sua presença tureza. São demasiadas as contradições exis-
em mensagens facilmente apreensíveis, des- tentes na realidade estudada para entender
curando as abordagens mais complexas. estas críticas unilaterais como o diagnóstico
Finalmente, a forma como o espectáculo é que a permite definir. O erro da Teoria Crí-
referido a propósito da indústria cultural me- tica é suspender a marca epocal das suas in-
rece reflexão: a dramatização da realidade e vestigações (cfr. Esteves, 1995: 94), genera-
a sua transformação de acordo com as cate- lizar as suas conclusões à totalidade dos pro-
gorias do espectáculo, a introdução das re- dutos como se todos eles merecessem o re-
gras do espectáculo e da publicidade na ge- púdio generalizado. Pelo contrário, a análise
neralidade da cultura mediática e na percep- que pretendo fazer, em relação a um traço
ção e construção da realidade social dificil- particular da comunicação de massa contem-
mente pode ser negada. O grande modelo porânea – a insistência na espectacularização
das dinâmicas sociais apropriadas pelos me- das mensagens – tem em conta que se deve
dia não é o circo, como dizem alguns inte- olhar para este fenómeno como uma reali-
lectuais, mas o número do ilusionista: este é dade contraditória que se não pode conside-
o número em que nos é dito que tudo pode rar como um fenómeno intemporal e incon-
acontecer. Na verdade, muitas vezes não tornável.
acontece nada de relevante, a não ser a ocul- A comunicação de massa é uma forma de
tação do modo como as coisas são feitas. A cultura que surgiu a partir do momento em
sociedade de consumo vive obcecada por fa- que apareceram meios técnicos e comerci-
zer passar a ideia de que as nossas vidas po- ais para a produção, distribuição e difusão
dem ser transformadas. O truque consiste em de formas simbólicas tendo como destina-
que se sabe que isso dificilmente acontece no tário um público heterogéneo e indiferen-
plano em que a publicidade pretende fazer ciado, por parte de organizações especiali-
acreditar: as férias de sonho, o parceiro ina- zadas nessa tarefa, com o recurso a profis-
cessível, a fama e a fortuna inatingíveis. Po- sões socialmente legitimadas para o efeito,
rém, continuamos a comportarmo-nos como de acordo com normas, técnicas e conven-
se isso fosse verdade desde que actuemos de

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ções que se acredita serem as mais adequa- maior tendência para o aumento do sensacio-
das para a sua concretização (cfr. Carrol, nalismo e para a despolitização da imprensa
1997: 184). Estas condições só surgiram a (cfr. Curran e Seaton, s/d: 7-8). Os gover-
partir do século XIX com a aparição do jor- nos, na sequência do aparecimento da pu-
nalismo industrial e das artes reprodutíveis. blicidade imediatamente criaram taxas e im-
Desde a industrialização da cultura houve postos que garantissem a propriedade bur-
a possibilidade de reproduzir, em quanti- guesa da imprensa. Os anunciantes manti-
dades expressivas, certas formas narrativas veram uma relação com o novo medium que
centradas na exploração da fantasia e na ges- privilegiou as publicações que sublinhassem
tão das emoções. A partir do século XIX os valores estabelecidos discriminando jor-
a necessidade de corresponder à agradabi- nais que contrariavam os seus preconceitos
lidade dos gostos populares das classes em políticos. Muitos jornais da esfera pública
ascensão generalizou esta tendência para o plebeia acabaram por se despolitizarem des-
sensacionalismo e para a espectacularização. locando a sua relação com as classes popula-
No século XIX, lado a lado com a emergên- res para o plano do sensacionalismo.
cia de um paradigma novo que focaliza a in- Recentemente, o regresso inexorável do
formação em vez da opinião, assiste-se à co- mercado e a visibilidade adquirida pelo ca-
mercialização da imprensa. A imprensa de rácter industrial dos media no recente pro-
massas emergiu com uma preocupação cres- cesso de desregulação gerou uma nova vaga
cente de acessibilidade. de criticismo. O que dantes era um bem es-
As mensagens passam a veicular informa- casso – o espaço hertziano – deixou de o
ções coloridas e agradáveis para as audiên- ser graças às novas possibilidades tecnoló-
cias maioritariamente constituídas pelas no- gicas de distribuição. Com o aparecimento
vas classes urbanas. A imprensa de mas- dos novos media e a derrocada dos mono-
sas foi uma resposta às necessidades cultu- pólios televisivos, o neo-liberalismo tornou
rais desencadeadas pela transformação da es- a paisagem audiovisual europeia irreconhe-
fera pública. O processo de desenvolvimento cível (cfr. Traquina, 1997:16). A diminuição
capitalista era favorável ao desenvolvimento do peso da taxa de serviço público e o au-
de uma mentalidade igualitária. As clas- mento da percentagem de publicidade como
ses emergentes buscavam a sua identidade, fontes de receita da indústria audiovisual eu-
opondo-se às classes aristocráticas identifi- ropeia traduziu-se na entrega da hegemonia
cadas com a cultura clássica (cfr. Schudson, da gestão do sector ao mercado. Verifica-se,
1978: 4). Estavam reunidas as condições assim, nos media, um incremento substan-
sociais e culturais que tornaram o crime, o cial no volume de horas destinadas à função
baile de sociedade, os fait divers, o desporto de entretenimento; aumenta o espaço ocu-
e o combate de rua como noticiáveis. Por pado pelo desporto; escasseia a atenção dada
outro lado, embora a introdução da publici- a novos programas de informação sobretudo
dade tenha provocado maior democratização quando impliquem pesquisa e investigação;
do consumo das mensagens mediáticas, al- constata-se uma presença mais substancial
guns autores como James Curran entendem de reality shows e telenovelas; dilui-se, de
que este fenómeno também produziu uma modo acentuado, a separação tradicional en-

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tre informação e espectáculo; privilegia-se o fia. A televisão integra-se neste movimento,


espectáculo do quotidiano; proliferam as his- operando um momento de transição da inti-
tórias de vida da "gente vulgar". Há uma midade para uma exposição pública”. 2 Para
maior tendência para a escolha de formatos além dos talk shows, que privilegiam os no-
que exigem as convenções narrativas ineren- táveis da política, as estrelas do mundo do
tes ao espectáculo, assim como para a esco- espectáculo e outros VIP’s, novas variações
lha de temas que implicam uma certa per- surgiram, dando a palavra a pessoas comuns
sonalização e jogam com a intensidade das e abordando temas considerados “tabus” (cfr.
emoções (cfr. Traquina, 1997:13; 18-20). Traquina, 1997: 98). O fenómeno passa pela
Finalmente, o culto sedutor das aparên- transformação da realidade em espectáculo
cias, o frenesim das mensagens apelativas e e, por isso, pela transformação do indivíduo
de fácil compreensão, a insistência em pro- no papel de protagonista da sua história pes-
dutos que solicitam uma interpretação mí- soal. A argumentação do responsável da SIC
nima tornou-se o conteúdo fundamental da tem consistência sociológica. O problema
nova programação. O papel dos media apa- que se coloca é este: será que devemos re-
rece associado à gestão do desejo, à presença duzir toda a insistência no entretenimento e
do inédito, da transgressão, do choque, da na afirmação individual a um apelo às forças
mudança, à procura do prazer, da diferença, de mercado ou seja uma forma de alienação
do efémero, à ideia de uma sociedade pura- do self reduzido a um puro efeito de poder
mente “permissiva”, fundamento de uma ex- ou devemos, pelo contrário, ter em conta que
citação algo forçada que mobiliza o pensa- a insistência na fruição individual é um ele-
mento e a acção (cfr. Touraine, 1996: 10). mento que tem a ver com a vontade de reali-
O jogo arriscado dos afectos foi apropriado zação que é uma das conquistas da moderni-
por uma ficção que se identifica com uma in- dade?
versão da própria vida (cfr. Débord, 1991: A relação entre a comunicação de massa
9). e a construção da subjectividade é um pro-
cesso que conduz a leituras muito diversas.
As teorias críticas da cultura de massa as-
4 Espectáculo e subjectividade
sociaram a comunicação com a integração
A gestão mediática do imaginário parece, social. De Adorno a Débord e ao primeiro
recentemente, centrar-se, na insistência na Baudrillard, passando por Marcuse, assiste-
fruição individual em detrimento da acção se à hipótese da ortopedização do desejo de
pública. Manuel da Fonseca, Director da SIC modo a canalizá-lo para a compulsão consu-
em 1994 afirmava, então, muito antes da apa- mista. As correntes críticas, por um lado,
rição de Big Brother: “as pessoas sentiram insistiram na homogeneização, na massifi-
necessidade de se exibir, de aparecer, de pro- cação e na negação da subjectividade como
tagonizar. Este é realmente o século do povo efeito das indústrias culturais. Por outro
e isto manifesta-se através da afectividade. 2
Declarações deste responsável citadas pelo Pro-
Considera-se desejável a exposição dos afec- fessor Nelson Traquina, no livro Big show media(cfr.
tos, através da psicanálise, do envio de car- Traquina 1997: 97).
tas para os jornais, de diários, de autobiogra-

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Os administradores de ilusões 11

lado, associaram os media à diversidade, ao aprofundamento da subjectividade com um


hedonismo e à obtenção do prazer pessoal. traço fundamental da nossa modernidade. A
Esta contradição é apenas aparente: a enfati- pessoa moderna, privada de um telos unifica-
zação da diferença é apenas uma forma de se dor, afirma-se como um conjunto de possibi-
proceder à celebração do mesmo. lidades que implicam uma decisão (cfr. Sar-
Na sociedade de consumo, o jogo do de- tre 1999: 49). A modernidade é uma ordem
sejo e da manipulação de necessidades faz-se pós-convencional, onde a pergunta “como
a partir da gestão desse moderno fenómeno viverei?” é respondida através de decisões
que é a permanente espera da transformação diárias, comportando crescentes elementos
da vida. Há uma compulsão que faz o consu- de contingência. A reflexividade moderna
midor habitar essa fé única na possibilidade traduzida numa abertura permanente ao auto
de mudar a sua vida. Para Adorno e Horkhei- questionamento estende-se até ao núcleo do
mer, como isto é, claramente, uma impossi- self. Nas novas condições abertas pela mo-
bilidade, tal promessa é puro ilusionismo, ou dernidade, é-se sendo, o que faz cada uma
melhor, pura ideologia. A gestão do desejo das nossas maneiras de ser, estilos de vida e
é a forma de garantir a busca inútil da sua situações biográficas algo que podia ser de
satisfação. A indústria cultural desempenha outro modo.
a missão apaziguar e de tranquilizar a insa- A erupção do estilo de vida é, indiscuti-
tisfação individual. “Nada torna um homem velmente, um dos traços desta sociedade. A
mais suspeito do que não estar de acordo, construção do corpo, a cultura dietética, des-
desde o mais fundo de si mesmo, com a vida portiva e higiénica, a organização dos pra-
tal como ela é. O bom humor regulamentar zeres (cfr. Lipovetsky, 1994: 55-56), a bi-
é portanto bem diferente da aspiração aos ologização da experiência associada à cor-
prazeres da vida, da alegria que proporci- poreidade (cfr. Rodrigues, 1990:25) envol-
ona a verdadeira satisfação das necessida- vem a construção da identidade pessoal. A
des” (Horkheimer, 1974: 152). Na conste- tomada de decisões sobre o corpo ou a al-
lação crítica que reúne um conjunto de auto- teração de regularidades biológicas tidas por
res preocupados com a categoria da reifica- adquiridas (a fruição da sexualidade, a con-
ção, o espectáculo “é o lugar do olhar iludido figuração estética ou a reprodução) passam
e da falsa consciência” (Débord, 1991:10). a fazer parte das possibilidades abertas pelo
Induz-se a crença numa ficção negociada en- "estilo de vida". Na discussão sobre o gé-
tre os programadores e os anunciantes. No nero a reflexão passa a incidir muitas das ve-
limite, como sugerem Deleuze e Guattari, a zes em perguntas como sejam “quem sou?”,
economia é marcada pela prática do vazio, “como posso ser?” e “porque sou obrigada/o
pela organização da falta, pelo desejo de de- a ser de certo modo”? Ao enveredar neste
sejar. Mesmo as formas mais repressivas e caminho, a reflexão sobre o género interpela,
mortíferas de reprodução social são produ- de modo radical, as relações entre a natureza
zidas pelo desejo (cfr. Deleuze e Guattari, e a cultura.
1995: 32-33; 36-37). Finalmente, as novas narrativas mediáti-
Ao invés deste criticismo, um conjunto di- cas põem os problemas do indivíduo no cen-
versificado de teorias adoptou a ideia de um tro do seu discurso. A informação privilegia

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12 João Carlos Correia

a história de vida de uma mulher que procura ponto de vista ético, ao relativismo norma-
o filho, os relatos sobre mulheres e crianças tivo, e sob o ponto de vista estético, a fe-
maltratadas, os dramas de filhos de pais de- nómenos triviais e fugazes como a moda.
ficientes, as polémicas sobre a genética e a O discurso sobre o elitismo dos críticos é
clonagem, às notícias sobre o défice do orça- acompanhado pela certeza cultivada por al-
mento e os mistérios da economia. O entre- guns teóricos de que as obras da cultura de
tenimento privilegia o encontro entre famili- massa ajudam a superar o fosso entre a arte
ares desavindos, os namoros que se recom- e a vida pelo que a democracia cultural pode
põem, as operações de mudança de sexo, os ser realizada aqui e agora (cfr. Wolin, 1995:
problemas de obesidade, o erotismo-soft, as 45).
histórias de sucesso e o casamento dos con- Quanto ao segundo ponto, objecto de re-
correntes dos reality-shows. Estimula-se a flexões mais sofisticadas acredita-se que os
fama individual, o golpe de sucesso mediá- media teriam sido determinantes para a dis-
tico, o meio ano de fama e os heróis fugazes. solução dos pontos de vista centrais e das
No pensamento pós-moderno, emerge um grandes narrativas. Ter-se-ia atingido um
conjunto de teorias que afirmam uma espécie pluralismo desinibido: os tabus da sociedade
de auto-complacência sofisticada em relação unidimensional teriam sido eliminados. Não
à indústria cultural. A acção dos media é há nenhum tema que seja demasiadamente
descrita como aquela onde tudo é permitido. arriscado (cfr. Wolin, 1995: 50). O que ca-
No novo modo de encarar a comunicação de racteriza a sociedade da comunicação e dos
massa há algumas tendências que urge detec- mass media não é a sua maior transparên-
tar: a) um certo sentido de resignação polí- cia no sentido iluminista do termo, mas a sua
tico cultural; b) o fascínio pela fragmentação maior complexidade, entropia e caos na qual
cultural, um desenho da cultura que convive alguns autores pós-modernos julgam residir
bem com a busca da alteridade e da poliva- as nossas esperanças de emancipação (cfr.
lência cultural (cfr. Wolin, 1995: 44-45). Vattimo, 1992: 10).
No que respeita ao primeiro ponto, a cul- Quer a Teoria Crítica na sua formulação
tura mediática parece tão mais valorizada mais ortodoxa quer o pós-modernismo nas
quanto aparece intrinsecamente ligada não suas versões mais triviais são leituras line-
apenas à recusa da tirania de qualquer pro- ares da realidade. Na primeira, a autonomia
jecto relacionado com um princípio ou su- do sujeito funda-se na decepção e no engano.
jeito propulsor da história mas à própria ética Na segunda, vai-se pouco mais para além de
ou a qualquer sobrevivência de espírito crí- uma certa exaltação sofisticada das atitudes
tico. “A ética não vende” é a frase que me- consumistas das sociedades marcadas pelo
lhor espelha o espírito do tempo. As tendên- liberalismo económico. O sujeito de qual-
cias da reflexão pós-moderna que, de modo quer das duas concepções tem até parecenças
mais acrítico, expressam semelhantes virtua- substanciais: é um entusiasta do consumo,
lidades da indústria mediática traduzem-se, da excitação e da euforia que este produz,
muitas vezes, numa veia de cepticismo no procura a satisfação das suas necessidades
que diz respeito a qualquer forma de destino culturais nos media e dedica-se ao esforço
colectivo. A cultura surge associada, sob o

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Os administradores de ilusões 13

solitário de ser feliz através das oportunida- tratado enquanto veículos principais de pro-
des que a sociedade capitalista proporciona. gresso no plano moral (Rorty, 1994: 19).
É possível esperar algo mais desta indeter- O pensamento pós-moderno através de
minação, desta contingência e fragmentação, Vattimo afirma que a multiplicação do “to-
tão celebradas pelos pós-modernos? Limita- mar a palavra” por parte de numerosas sub-
se a induzir um relativismo permissivo no culturas que só conheciam uma remota vi-
qual o sujeito se perde a si próprio ou, pelo sibilidade é, talvez, o efeito mais evidente
contrário, relaciona-se com novas e decerto dos mass media (cfr. Vattimo, 1992: 11-12).
inqualificáveis, porque não testadas, possibi- Esta constatação -e as possibilidades eman-
lidades emancipatórias? O filósofo canadi- cipatórias que dela se concluem – é impor-
ano Charles Taylor admite que o hedonismo tante pelo facto de acentuar a profunda di-
contemporâneo resulta numa espécie de ab- mensão conflitual e simbólica da construção
surdo atrás do qual surgem novas formas de das identidades nas sociedades actuais. Po-
dependência e de insegurança na constru- rém, é difícil partilhar da euforia expressa
ção da personalidade (cfr. Taylor, 1992:15). pelo autor quando afirma “que a rádio, a te-
Porém, simultaneamente, considera que por levisão e os jornais se tornaram elementos de
detrás da aparente generalização do hedo- uma grande explosão e multiplicação de Wel-
nismo, se esconde um ideal de autentici- tanschaungenn, de visões do mundo” (Vat-
dade susceptível de ser considerado como timo, 1992: 11). A tomada da palavra por
moral ou ético e que tem implícito a aspi- novas minorias emergentes é um factor cen-
ração a uma existência melhor e mais ele- tral que Vattimo valoriza acertadamente. Po-
vada, relacionada com os projectos de auto- rém essa valorização não é acompanhada por
realização pessoal decorrentes da moderni- uma força crítica que permita pensar para
dade (cfr. Taylor, 1992: 16-17). À luz desta além de uma certa complacência para com
concepção, é possível admitir que os meca- a permissividade neo-liberal. A reformula-
nismos desejantes impliquem ou, pelo me- ção da realidade do mundo, entendida como
nos, se relacionem com uma vontade, ainda o contexto das múltiplas fabulações (cfr. Vat-
que frustrada, de mudar a vida. timo, 1992: 32); a análise do papel dos
O projecto minimalista dos pós-modernos media na libertação dos dialectos, na exibi-
tem a virtualidade de chamar a atenção para ção do carácter aleatório e não definitivo dos
o facto de que, hoje, em vez da concentra- “mundos reais” que as diferentes subculturas
ção das notícias em umas poucas e reduzidas partilham (cfr. Vattimo, 1992: 15) são fun-
figuras oficiais, se verifica o acesso à progra- damentais, mas só por si arriscam-se a ser
mação e até à informação por parte de tipos uma mera celebração inodora da tolerância
sociais que finalmente adquirem alguma vi- liberal. Vattimo não explica como é possí-
sibilidade pública. Rorty vai mais longe e vel uma recusa da hegemonia de um ponto
considera que enunciados como texto jorna- de vista unitário, sem implicar uma ideia uni-
lístico, a banda desenhada, o filme e o pro- versalista de tolerância para com a diferença.
grama de televisão oferecem-nos pormeno- A emancipação resultante da emergência da
res sobre tipos de sofrimento que não co- diferença e do pluralismo implica que indiví-
nhecíamos tendo substituído o sermão e o duo adquira a capacidade de avaliar as suas

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14 João Carlos Correia

convicções morais em termos um certo uni- sivo reconhecimento de um relativismo soft?


versalismo ético. Só as ideias de reciproci- Será que a multiplicação de tomadas de pa-
dade mútua podem permitir a apresentação lavra não é um efeito da desregulamentação
de pretensões de validade por novos dialec- do mercado? Será que afinal a importância
tos e subculturas. Isso implica a adesão a que os pós – modernos dão ao pluralismo e
critérios universais: todos se devem abster à contingência não é compensada por uma
da obtenção de uma hegemonia que imponha certa resignação e pela ausência de atitude
uma verdade totalizante. crítica?
O limite do pós-modernismo é o seu en- Vattimo interroga-se, então, se esta posi-
cerramento numa crítica estética da moder- ção não será uma apologia demasiado ex-
nidade através dos valores da provocação, da pedita da cultura de massa (cfr. Vattimo,
transgressão e do divertimento. É na experi- 1992: 64). A sua resposta antecipa-se a críti-
ência estética que Vattimo, na esteira de Ben- cas previsíveis. “Contrariamente ao que du-
jamin, se apercebe do efeito de choque da rante muito tempo – e com boas razões, in-
indústria cultural, o qual evidencia a contin- felizmente – acreditou a sociologia crítica,
gência da existência, a insistência no desen- a massificação niveladora, a manipulação
raizamento considerado como constitutivo e do consenso, os erros do totalitarismo não
não provisório. É neste horizonte de oscila- são o único resultado possível do advento
ção e desenraizamento – tema retomado por da comunicação generalizada, dos mass me-
Giddens e Beck a propósito do risco e da re- dia, da reprodutibilidade. Ao lado desta
flexividade – que Vattimo descortina as vias possibilidade – que deve ser decidida poli-
que permitem o exercício da criatividade e a ticamente – destes resultados, abre-se tam-
liberdade. A tomada da palavra será sempre bém uma possibilidade alternativa: o ad-
acompanhada por um sentimento de insegu- vento dos “media” comporta também uma
rança que nega a possibilidade das respostas acentuada mobilidade e superficialidade da
definitivas. experiência, que contrasta com as tendên-
Vattimo admite, curiosamente, que “esta cias para a generalização do domínio, ao
tomada de palavra não correspondeu a uma mesmo tempo que dá lugar a uma espécie de
verdadeira emancipação política – o poder “enfraquecimento” da noção de realidade,
económico ainda está nas mãos do grande com o consequente enfraquecimento de toda
capital.” Mas acrescenta imediatamente: a sua coacção. A sociedade do espectáculo
“Será – não quero alargar demasiado a dis- de que falaram os situacionistas não é ape-
cussão nesse campo” (Vattimo, 1992: 11- nas a sociedade das aparências manipulada
12). Ora, esta discussão é que vale a pena pelo poder; é também a sociedade em que
alargar: será que ao poder económico nas a realidade se apresenta com características
mãos do grande capital não corresponde, mais brandas e fluidas, e em que a experi-
com todas as suas contradições, um poder ência pode adquirir os aspectos da oscila-
cultural e informativo concentrado nos títe- ção, do desenraizamento, do jogo” (Vattimo,
res das indústrias culturais? Será que a eu- 1992:65). Parece-nos razoável admitir que
foria pela multiplicação de visões do mundo no seguimento dos anos 60, as sociedades in-
não se pode identificar apenas com o exces- dustriais modernas já não correspondem ao

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Os administradores de ilusões 15

“mundo unidimensional” ou “totalmente es- a resistência de diversas minorias seja no de-


truturado” retratado pela primeira geração de senvolvimento dos seus próprios media es-
teóricos críticos (cfr. Wolin, 1995: 48). Po- pecializados ou influenciando o seu próprio
rém, só por, si a fragmentação cultural re- retrato nos media maioritários.
cente não permite a emancipação. Oferece- Ao admitir-se esta possibilidade restitui-
nos a ilusão omnipresente da emancipação se aos media algum do olhar positivo que
(“a nossa cultura é uma cultura onde tudo Benjamin lançou sobre as possibilidades de
é permitido”) para que se possa negar mais emancipação que vislumbrou nas artes re-
eficazmente a sua realização. (cfr. Wolin, produtíveis. (cfr. Vattimo, 1992: 57). Po-
1995: 50). rém, esta releitura de Benjamin também im-
Para que as possibilidades emancipatórias plica a sua confrontação com aquelas que se
da multiplicação de visões do mundo possam julgam serem as coordenadas deste tempo:
ser analisadas, o processo de fragmentação abandono de uma posição essencialista de
cultural deve ser visto, sobretudo, como um classe; reconhecimento de que a fragmenta-
ponto de partida para uma nova reflexão crí- ção implica a existência não da emancipa-
tica aberta à pluralidade. Só enquanto ponto ção mas de emancipações; reconhecimento
de partida e não como ponto de chegada, o de novos movimentos, direitos e formas de
pluralismo cultural induzido, de forma con- dominação como sejam os que se articulam
traditória e ambígua, pelos media pode con- com a vivência da individualidade, do con-
duzir a oportunidade para criar e pensar no- sumo, do género, da relação entre culturas,
vos direitos que se traduzam numa relação do papel da mulher e da configuração da fa-
mais directa com a vida quotidiana, que se mília, afinal temas a que os media, melhor ou
traduzam em formas novas de cidadania. pior, conferiram visibilidade; descoberta de
O relevo que hoje se faz sentir nas ques- uma certa utopia auto-limitada que não im-
tões relacionadas com a auto-realização pes- plica a eliminação do mercado; invenção de
soal pode repercutir-se na defesa de direitos um pluralismo regulado que articule a frag-
que privilegiam as questões relativas à quali- mentação cultural com uma concepção afir-
dade de vida e à realização do indivíduo (cfr. mativa da cidadania; a consideração de que
Esteves, 1998:67). Aí terá sentido defender o esta ideia de cidadania passe sobretudo pela
renascimento de subculturas autónomas, dis- perseguição de circunstâncias e contextos de
postas a lutar pela criação de novas formas diálogo em que não se não verifique a he-
de vida, que se oponham à colonização buro- gemonia de uma particular visão do mundo.
crática sem caírem na trivialidade que os pós Ora este último ponto não pode significar a
modernos têm dificuldade em discernir. Se pura complacência com a diversidade cultu-
os momentos de afirmação do mercado coin- ral vigente nos modelos liberais, tal como
cidem quase sempre com a explosão da in- por vezes se insinua no pensamento pós mo-
fortainment e do sensacionalismo, a verdade derno.
é que esses momentos devem também ser
aproveitados para a compreensão de outras
formas de estar e a afirmação de novos direi-
tos. Haverá, por exemplo, que ter em conta

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16 João Carlos Correia

5 Espectáculo, desejo e 1995: 29). O sujeito é quase reduzido a um


ideologia: efeito ideológico dos mecanismos culturais
de socialização.
Este conjunto de reflexões que se debruça- Graças ao conjunto de transformações que
ram sobre a relação entre a comunicação resultam da fragmentação cultural induzida
de massa e o sujeito despertou atitudes si- pelos media, a análise da cultura de massa
métricas na importante questão da ideolo- como ideologia, tema introduzido no criti-
gia, figura central das abordagens sociológi- cismo cultural mais ou menos longinqua-
cas, filosóficas e antropológicas da cultura. mente relacionado com o marxismo, conhe-
Quanto mais determinista se demonstrava a ceu uma reformulação que se traduziu numa
relação entre a comunicação de massa e o su- viragem acentuada. A tendência induzida
jeito, mais a concepção de ideologia se reve- pelos media para valorizar a diferença trouxe
lou, ela própria, também determinista, om- uma erosão substancial a este conceito uni-
nipresente, dotada de capacidades socializa- lateral, à luz do qual a negação da autono-
doras implacáveis que deixavam ao sujeito mia das formas simbólicas tinha dado con-
escassa margem para a sua autonomia en- sistência a uma visão reificada da comuni-
quanto agente social. Deixando de lado os cação de massa. A concepção de ideologia
já sobejamente conhecidos antepassados da enquanto mero reflexo de uma realidade pré-
análise das ideias (Du Tracy e, de um modo dada confronta-se com dificuldades crescen-
geral os idéologues) importa sobretudo pas- tes numa sociedade onde se aprofunda um
sar a atenção pela primeira grande reflexão espaço de luta entre definições conflituais da
moderna sobre ideologia formulada por K. realidade. A visão da comunicação de massa
Marx e perante a qual a maior parte dos pen- como aparelho ideológico que procura reali-
sadores respondem. Para Marx, a cultura zar o consenso através da ocultação das di-
fazia parte da superstrutura fundada em úl- nâmicas sociais conflituais parece desafiada.
tima instância nas relações sociais de produ- Autores oriundos da Filosofia e da Sociolo-
ção e nas forças produtivas que constituíam gia como Noel Carrol e Thompson têm de-
a base económica (infra-estrutura) da socie- safiado este tipo de conceptualização outrora
dade (cfr. Marx, 1971: 20-21). em voga.
Na Teoria Crítica, a comunicação de Para estes autores, a comunicação de
massa era abordada enquanto ideologia na massa é um dos meios principais pelas quais
medida em que glorificaria a sociedade pre- a ideologia é transmitida (cfr. Carrol, 1997:
sente, dissolveria o seu antagonismo com a 362). Este facto deve-se à sua enorme capa-
realidade social, perdendo a sua dimensão cidade de produzir e transmitir formas sim-
crítica (cfr. Adorno, 1996-a: 68) A cul- bólicas, capazes de circular numa escala sem
tura mediática é entendida em relação directa precedentes, alcançando milhões de pessoas
com a interiorização das formas de domina- que pouco têm em comum além das men-
ção do sujeito emergentes com a racionali- sagens mediadas. Thompson chega, pois, a
dade instrumental: “. Hoje, a teoria já nem propor que se substitua a análise da ideologia
existe e a ideologia soa a partir das engre- relacionada com as transformações culturais
nagens de uma praxis irresistível” (Adorno, associadas ao surgimento das sociedades in-

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Os administradores de ilusões 17

dustriais por uma análise da ideologia rela- produzidas pela comunicação de massa, se-
cionada com as formas simbólicas produzi- jam objecto de uma utilização ideológica.
das pelos meios técnicos de comunicação de Esta intuição parte do pressuposto que o con-
massa. A nova análise proposta teria como ceito de ideologia se refere às maneiras como
quadro de referência fundamental a mediati- o sentido serve em circunstâncias particu-
zação da experiência cultural (cfr. Thomp- lares, para estabelecer e sustentar relações
son, 1995: 342). de dominação (cfr. Thompson, 1995: 16).
Simultaneamente, nega-se a ideologia Porém, não implica o pressuposto utilizado
como um momento coercivo, unilateral e re- sistematicamente pelo criticismo cultural de
dutor, perante o qual o sujeito se vê reme- que todas as formulações simbólicas se de-
tido a uma posição passiva de pura inte- finam, irredutivelmente, como ideológicas.
riorização de mecanismos de socialização. As formas simbólicas produzidas pela comu-
Esta intuição tem um impacto considerável nicação de massa podem surgir como ideo-
no processo de socialização, de aprendiza- lógicas num contexto podendo surgir como
gem de valores básicos, geralmente referen- subversivas em outro contexto (cfr. Thomp-
ciada na senda de Gramsci, por hegemo- son, 1995: 18)
nia. Com a emergência das democracias de Aceitando a pluralidade de modos de con-
massa, Gramsci já compreendera que o ele- flitualidade das sociedades modernas, as re-
mento decisivo deixa de ser o exercício da lações de dominação – e, consequentemente,
coacção pelo Estado para passar a ser a ha- a sua legitimação através do uso da ideologia
bilidade em obter um poder hegemónico en- – deixam de ser vistas, exclusivamente, en-
raizado nas organizações da sociedade civil e quanto relações de classe, designando ape-
na mediação exercida pelos intelectuais (cfr. nas um eixo da desigualdade e da explora-
Gramsci, 1977: 24), acentuando – se o peso ção (cfr. Thompson, 1995: 77). Marx des-
da cultura e dos elementos simbólicos, es- prezou “a importância das relações entre os
senciais na sociedade civil como factores de sexos, entre os grupos étnicos, entre os in-
obtenção da hegemonia política. A ideologia divíduos e o Estado, entre o Estado-nação e
articula-se com a luta pela hegemonia. Na blocos de Estado-nação” (Thompson, 1995:
luta pela obtenção da hegemonia, os mundos 77). A concepção de ideologia continua a
imaginários funcionam como matéria simbó- ser relevante para o criticismo contemporâ-
lica para um consenso reordenador das rela- neo, porém deve ser antes associada com
ções sociais. Este tipo de abordagem traduz- qualquer forma de dominação ou de opres-
se no plano da análise dos media, por uma são social, independentemente de esta reflec-
conflitualidade em torno das normas e sig- tir homofobia, sexismo, racismo (cfr. Carrol,
nificados dominantes e sua respectiva inter- 1997:371). Pode-se, assim, falar de um novo
pretação, admitindo, mesmo, a possibilidade pólo dinamizador das lutas sociais, que in-
de uma actividade cultural contra hegemó- clui a promoção simbólica das escolhas iden-
nica em relação à correlação de forças do- titárias, e que pode ser incluído na ideia de
minante. “cidadania das minorias”. O centro dos con-
Simultaneamente, nega-se que todas as flitos sociais já não se situa apenas nas esfe-
formulações simbólicas, nomeadamente, as ras de reprodução material, como supunha o

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18 João Carlos Correia

marxismo, mas também nas esferas da vida paço público não significam a emergência de
simbólica. qualquer realidade emancipada. Limitam-se
A aproximação entre a ideologia e a vida a ser, eventualmente, os traços de incerteza,
quotidiana é outra das tendências consisten- de indeterminação, de contingência que po-
tes nesta tendência. Ao aceitarem elemen- dem, eventualmente, alimentar os movimen-
tos da vida quotidiana como essenciais para tos sociais dinamizadores de uma racionali-
a questão da análise da dominação, abrem- dade menos unilateral, menos coesiva e mais
se as portas a uma reflexão sobre as pos- crítica e multiforme.
sibilidades da emancipação mais enraizada
no mundo da vida e nas questões que dizem
6 Bibliografia
respeito a uma política puramente centrada
num universalismo abstracto. A vulgaridade Adorno, T. W. e Horkheimer, M.,(1995), Di-
à qual os media abrem as suas portas pode alectic of Enlightment, Londres: Verso.
ser considerada sob o ponto de vista da cons-
tituição de um espaço público permeável às Adorno, T. W. (1995), Prisms, Cambridge:
questões da própria vida. Apesar da sua tri- MIT Press.
vialidade e do modo quantas vezes reificador Adorno, Theodor W. (1996-a), The schema
como os media abordam estas questões, a of mass culture. In Culture Industry,
verdade é que não deixam de induzir possibi- Londres: Routledge
lidades de redefinir a relação entre a política
e o quotidiano, de modo a que os assuntos da Adorno, Theodor W., (1996-b) Cultural in-
vida das gentes comuns, tantas vezes, redu- dustry reconsidered. In Culture Indus-
zidos ao universo do privado, ascendam ao try, London, Routledge.
público. Com efeito, quantitativa e qualitati-
vamente, a partir do capitalismo avançado do Adorno, T. W. (1996), Culture Industry,
século XX, os media ganharam uma respon- Londres: Routledge.
sabilidade acrescida por fornecerem as ba-
Benjamin, Walter (1987), A Obra de arte na
ses para a construção das imagens, valores e
era da sua reprodutibilidade técnica. In
representações que se erguem no mundo da
Obras Escolhidas, São Paulo: Editora
vida quotidiano.
Brasiliense.
Nestas teses, a sociedade civil, convocada
pela reflexão teórica, comparece como soci- Carrol, N. (1997), The Philosophy of Mass
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sempenha o papel que outrora identificava
Débord, G.(1991), A sociedade do espectá-
Marx: dissolve antigos consensos e “liberta”
culo, Lisboa mobilis in mobile.
novos dialectos, como antes na sociedade in-
dustrial o capital criava os seus adversários.
Esses novos dialectos que vêm à luz no es-

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