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F IOLFOI S
A ODFAI A C D
I ÊAN C I Ê
AN C I A
As interpretações
da
mecânica
quântica
“Mas em 1952 eu vi o impossível ser feito.” Com essas palavras, o à luz, indicando que essa radiação, bem como todo
físico norte-irlandês John Stewart Bell (1928-1990) o restante do espectro eletromagnético (microondas,
exprimiu sua surpresa ao tomar conhecimento da infravermelho, ultravioleta, raios X etc.), é consti-
nova interpretação da física quântica proposta pelo tuída por esses pacotes de energia, mais tarde bati-
norte-americano David Bohm (1917-1992), alguns zados de fótons.
meses antes de este se exilar no Brasil, em conse-
qüência da perseguição política em seu país depois
da Segunda Guerra.
O que era considerado impossível, antes dessa
Interpretações
data, era que o mundo da física atômica pudesse ser realistas versus
determinista, ou seja, que ele pudesse seguir uma
causalidade estrita, como parece ocorrer com os positivistas
fenômenos macroscópicos de nosso cotidiano, ex-
plicados pela chamada mecânica clássica, dita de- Que conseqüências esse resultado de Bohm teria
terminista (ou causal). Uma das características mais para o trabalho dos físicos? Praticamente nenhuma.
marcantes da teoria que lida com o diminuto uni- Isso porque as novidades introduzidas pelo norte-
verso atômico e subatômico, a chamada mecânica americano não podiam ser testadas experimental-
quântica, é o fato de ela fornecer apenas a probabi- mente: sua abordagem concordava com todas as
lidade de um fenômeno ocorrer. previsões experimentais da mecânica quântica. Ou
Foi motivo de grande debate entre os físicos (e, seja, ela era consistente com o formalismo mínimo
de certo modo, ainda é) a seguinte questão: esse da teoria, que é o nome dado ao conjunto de regras
caráter probabilístico é uma característica inerente e leis básicas da teoria, com o qual todos os físicos
à própria natureza ou advém do fato de a mecânica concordam. Nesse sentido, a teoria causal de Bohm
quântica ser uma teoria incompleta? é chamada uma ‘interpretação’ da teoria quântica.
Antes de prosseguirmos, vale apresentar aqui, de Uma interpretação é um conjunto de teses ou ima-
modo simples e conciso, alguns elementos da me- gens que se agrega ao formalismo mínimo de uma
cânica quântica. Quantum é o termo, em latim, para teoria, sem afetar as previsões observacionais da teo
quantidade. Essa idéia foi lançada em 1900 pelo ria. Pode ser que, no futuro, haja um teste experimen
físico alemão Max Planck (1858-1947) ao propor tal que diferencie duas interpretações: nesse caso,
que, na natureza, a energia é gerada e absorvida em a rigor, teríamos duas teorias diferentes. No entanto,
diminutos pacotes, os quanta (quantum, no singular). enquanto esse teste não puder ser realizado, é cos-
Cinco anos depois, o físico de origem alemã Albert tume chamar as duas versões de interpretações da
Einstein (1879-1955) aplicou o conceito de quantum mesma teoria quântica.
onda na qual a carga elétrica distribui-se uniforme Com a mecânica quântica, descobriu-se que a luz
mente. Segundo sua interpretação ondulatória, o é detectada por meio de pacotes mínimos de energia,
mundo flui continuamente como uma onda. De localizados pontualmente, os chamados fótons. O
Broglie, por sua vez, interpretava a nova mecânica acúmulo de um grande número de fótons em uma
quântica de modo dualista: um elétron no átomo tela resulta nas franjas de interferência que obser-
em física quântica. Uma saída é postular um ‘colap- Essa foi a razão pela qual Einstein – um realista
so’ da onda, ou seja, a transição de uma onda esten- convicto que debateu por quase três décadas a me-
dida (como a ilustrada por meio de círculos na fi- cânica quântica com Bohr, opondo-se à interpretação
gura 2) para um pacote de onda bem comprimido ortodoxa – desinteressou-se pela redescoberta da
(que observaríamos como um ponto na tela detec- teoria da onda-piloto por Bohm, em 1952.
tora). Essa transição seria tão rápida que ocorreria
a uma velocidade maior do que a da luz, de um
modo denominado pelos físicos ‘não-local’.
Isso é considerado um dos problemas dessa in- ‘Paixão’ a distância
terpretação, pois, segundo a teoria da relatividade
restrita de Einstein, de 1905, nenhum corpo pode
Bohm aperfeiçoou a interpretação de De Broglie,
viajar a uma velocidade superior à da luz no vácuo
ao levar em conta não só as variáveis ocultas do ob
(300 mil km/s).
jeto quântico, mas também as do aparelho de me-
Um modo de evitar essa não-localidade, no ex-
dição. Foi dessa maneira que sua teoria determinis
perimento da dupla fenda, seria adotar a concepção
ta conseguiu escapar da chamada prova de impos-
da ‘onda-piloto’, de De Broglie. Chamaremos essa
sibilidade, deduzida pelo matemático húngaro John
interpretação realista dualista. O objeto quântico
von Neumann (1903-1957), que, em 1932, havia su
consistiria de duas partes: um corpúsculo, que car-
gerido ser impossível construir uma versão deter-
rega energia e é detectado, e uma onda, que guia a
minista da mecânica quântica (mais tarde, mostrou-
partícula, mas não carrega energia nem é detectada.
se que o alcance desse teorema não era o inicial-
O corpúsculo seria uma ‘variável oculta’, com posi-
mente pensado). No determinismo, o estado com-
ção e velocidade bem definidas a cada instante, que
pleto do universo em certo instante determinaria
‘surfaria’ na onda que o acompanha, de forma que
univocamente o estado completo em qualquer ins-
a probabilidade de ele se encontrar em certa posição
tante futuro. Ou seja, no determinismo, não existe
seria proporcional ao quadrado da ‘altura do pico’
acaso real: o que acontece é que nosso conhecimen-
(amplitude) da onda-piloto. O termo variável oculta
to limitado do mundo impede que possamos fazer
é atribuído ao pretenso corpúsculo, porque ele não
previsões exatas.
é previsto pelo formalismo mínimo da mecânica
O próprio Bohm percebeu claramente outra ca-
quântica, e, apesar de sua posição ser observável,
racterística de sua interpretação: ao descrever duas
sua velocidade não o é.
partículas interagentes que se separam a uma gran-
No experimento da dupla fenda, os corpúsculos
de distância, é necessário estipular uma ‘ação a
de De Broglie não seguiriam uma trajetória reta, mas
distância’, ou seja, o ato de medição feito em uma
sim surfariam em ziguezague, passando pelas re-
partícula afetaria instantaneamente a onda locali-
giões proibidas (partes escuras da franja) com velo-
zada muito longe da partícula medida, aparente-
cidades altíssimas (figura 3). Há outros problemas
mente violando a teoria da relatividade restrita
conceituais dessa interpretação: situações em que
(pois essa influência se daria instantaneamente;
se prevê que o corpúsculo ficaria parado, quando
portanto, com velocidade maior que a da luz). Essa
se esperaria que se movesse juntamente com a onda.
não-localidade já foi menciona-
da quando nos referimos ao co-
lapso da onda, na interpretação
realista ondulatória.
Bell, cuja exclamação abriu
este artigo, teve a sagacidade de
fazer a pergunta certa: será que a
não-localidade é uma caracterís
tica de toda interpretação realista
da teoria quântica? Em poucas
semanas, em 1964, provou teori
camente que sim.
Um experimento ilustrativo
Um exemplo de fenômeno cor
puscular no experimento da du-
pla fenda está na figura 4, onde
se colocam filtros ópticos espe
ciais (polarizadores) orientados
em direções ortogonais após cada
fenda. Cada polarizador absorve
metade da luz incidente e deixa
passar a outra metade. A porção
de luz que é transmitida oscila
transversalmente à direção de
propagação. Na figura, o ângulo
que a luz transmitida forma com
Figura 4. No experimento da dupla fenda para a luz, a colocação de polarizadores
o plano horizontal é 0° para a fen ortogonais torna o fenômeno corpuscular, e sabendo-se a polarização do fóton
da A e 90° para a fenda B. O encon detectado, sabe-se sua trajetória
tro de ondas polarizadas em dire
ções ortogonais não faz com que
elas se somem ou se destruam (ou
seja, não ocorre nem a interfe
rência destrutiva, nem a constru
tiva), como no caso sem polariza
dores, de forma que o que se ob
serva na tela detectora é uma
iluminação uniforme, sem franjas
de interferência.
Note-se que utilizamos uma
explicação típica de um quadro
ondulatório, mas esse fenômeno
é considerado corpuscular, por-
que ao fóton pontual observado Figura 5. A informação de trajetória pode ser apagada, e o quantum detectado
na tela pode ser atribuída uma passa a ser associado a um fenômeno ondulatório
trajetória bem definida, ou pela
fenda A, ou pela fenda B. Isso fica de a informação’ sobre por qual rada’, e introduzir o polarizador
ria mais claro se, no lugar da tela fenda ela teria passado. Segundo a 45°, transformando o experi
detectora, puséssemos um de a interpretação da complemen- mento em um fenômeno ondula
tector sensível à polarização da taridade, o fenômeno associado tório. Ou seja, a atribuição de um
luz. Esse detector indicaria clara aos fótons incidentes na região quadro clássico (corpuscular ou
mente a polarização do fóton: se central da tela é ondulatório, o ondulatório) só pode ser feita
a polarização medida fosse 0°, po que é confirmado pelas franjas de após o encerramento do experi
deríamos dizer que a partícula interferência observadas naque- mento. Antes disso, não se pode
passou pela fenda A; se fosse 90°, la região. Já os fótons detecta- atribuir à realidade do objeto
pela fenda B. Ao atribuirmos tra dos fora daquela região conti quântico uma natureza de partí
jetórias bem definidas à partícula nuam associados a um quadro cula ou de onda.
(associada ao fóton detectado), corpuscular. Em suma, como essa interpre
adotamos um quadro corpuscular. Poderíamos montar um expe tação não associa nenhuma re
No entanto, a situação muda rimento como o da figura 4 e, presentação à realidade antes do
na figura 5. Agora, outro polariza antes de encerrado o experimento, final do experimento, ela pode
dor, orientado em um ângulo in sermos tentados a dizer que o ser considerada positivista. A ela,
termediário (45°), é colocado dian fenômeno será corpuscular. Mas, só interessa representar o que é
te da tela detectora. A luz que logo em seguida, alguém poderia observado, não aquilo que é ino
passa por esse polarizador ‘per pôr em ação uma ‘escolha demo bservável.