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arma inofensiva de uma erianga do que agie contra armas bem reais E preciso admitir que a manipulagio de uma arma de bringuedo nio é, em geral, um ato violento, mas sim a representagio, talvez. necesséria, de um ato violento. Parece-me bem limitado pensar que a crianga 36 possa ter interesse, nas suas brincadeiras, pelo lado bom das coisas. Ousaria dizer que me parece saudével que, através de sva brincadeira, ela escubra a cukura em todos os seus aspectos. verdade que, em termos de educagio, isso nio € suficiente, Mas nenhuma brincadeira constitu o todo, nem mesmo a base de uma educagio. A iniciativa Iidica da crianga deve corresponder, em outros mo- mentos, a iniciativa edueativa do adulto 7 QUE POSSIBILIDADES TEM A BRINCADEIRA? Cada vez mais se desenvolve, a0 menos nos meios educacionais da erianga pequena, um diseurso relativo a0 valor da brincadeira. De um lado, esse Aiscurso. parece encobrir priticas bem diversns e, principalmente justficativas que, examinadas de per. to, fatam com 0 rigor. E necessario convir que, em relagio & brincadeira, estamos longe de now sitar rnum campo de certezas. Recusamo-nos, a priori a nos. situar, num discurso forgado sobre “0. valor positive da brincadeira, Nao existe af nenhuma evi dncia e confessamos que subemos pouca coisa sobre © papel da brincadeira, Antes de admit, an‘ecipando qualquer andlise, que a brincadeira € boa e, em seguida,ficarjustificando, da. melhor manera’ pos- sivel, a assereo de partida, € importante, se for 0 caso, ver o que permite atribur & brincadelra algum valor na educacio das eriangas, E, para comegar, & preciso compreender porque, nos dias de hoje. ate bumos tio facimente um valor positive a brincadeira inant Na verdade, esse discurso valorizador ni caiu do cév, mas relaciontse com uma historia, um conjunto de referencias que, a titulo de prolegomenos, é importante pereorrer rapidamentc. Parece-me que af existem duas origens, iesmo que clas esteem mais reprimidas do que manifestas: uma origem idcoligica © uma origem cientfica 89 ee eee De Rousseau ao Romantismo Quanto & origem ideoldgica, & importante lembrar ‘a mudanga de perspectiva, no infcio do século XIX, sobre a concepgio da crianga e, conseqiientemente, da brincadeira. De fato, devemos essa mudanga de perspectiva & ruptura romantica, Antigamente, a brin- ccadeira era considerada, quase sempre, como fitl ‘ou melhor, tendo como tinica utilidade a distragi © reereio (dat 0 papel delegado & recreagio) e, na pior das hipsteses, julgavam-na nefasta, O conceito dominante de crianga nao podia dar 0 menor valor a um comportam propria crianga, através de um comportamento pontineo. Foi preciso, depois de Rousseau, que hhouvesse uma mudanga profunda na imagem de ctianga e de natureza, para que se pudesse associat + 4 y ’ ’ , , ’ » y , ’ ’ ’ 9 uma visio positiva as suas atividades espontineas. ’ 9 ’ s 9 , , ’ ’ . , ' encontrava su origem na © romantismo, ao contrério, com Richter! e alguns outros, vai exaltar os comportamentos naturais que expressam uma verdade mais essencial do que as verdades racionais dos conhecimentos constituidos, ‘A crianga surge coma se estivesse em contato com uma verdade revelada que lhe desvenda 0 sentido do mundo de modo espontineo © 0 contato social pode destruir essa primeira verdade. A crianga, que tests préxima do poeta, do artista, exprime um co- nhecimento imediato que o adulto tera dificuldades para encontrar. Essa valorizagio da espontaneidade 1 RICHTER, Jean-Paul, Levana va tate a'éduction (1806), wo francesa, Caveange, 18S 90 natural 56 pode conduzir a uma total reavaliagdo da brincadeira, que aparece como 0 comportamento por exceléncia dessa crianga rica de potencialidades in- teriores. O aparecimento da valorizagao da brineadgira se apsia no mito de uma crianga portadora de verdade. Romances € (auto) biografias tornaram-se, amplamente, porta-vozes de tais conceitos que deli nearam a imagem dominante da crianga?. BsT.A. Hoffmann que. popularizou a filosofia. romantica, associou intimamente essa imagem da criangi na~ turalmente portadora da verdade, com a valorizagio da brincadeira, em seu conto “L'enfant étranger”. centro da educagio da crianga pequena, mas a exal- tagdo da naturalidade, uma ‘ilosofia que se imps como ruptura com 0 racionalismo das Luzes. Para abrir a via que levasse em conta a brincadeira, foi preciso perceber « crianga como portadora do valor da verdade, da poesia (diriaimos, atualmente, da criatividade), foi preciso, sobretudo, que se desen- volvesse uma confianga quase cega na natureza. A brincadeira é boa porque a natureza pura, representada pela crianga, é boa. Tomar a brincadeira um suporte pedagégico € seguir a natureza. Fribel aplicard tais idéias num sistema de educagio pré-escolar para criangas.pequenas, baseado, em grande parte, na brincadeira (0 Kindergarten, jardim de infancia, cujo nome traduz todo 0 naturalismo dessa concepeao). Porém, ao ler Frobel, constatamos que esse herdeiro 2. Consular sobre ese assunto LAUWE, M. J. Chomban de Un monde auire, Venfance, Pats, 1979, Trad, Edvep do pensamento romantico fundamenta sua pedagogia sobre uma filosofia, uma teosofia, que nio dé lugar @ uma argumentagao racional. Na verdade, @ brin- cadeira € pereebida como a expressio direta da verdade na crianca, que se deve incentivar: A brincadeira é 0 mais alto grav do desenvolvimento, infantil nessa idade, porque ela é a manifestaglo livre © espontinea do interior, a manifestagio do interior exigida pelo proprio interior (..). Foi 0 romantismo que forneceu 0 cenério no qual se pode pensar numa valorizagio da brincadeira infantil, Depois disso, psiesto, io fundawentar, cientificamente, esse valor de aprendizagem outor. ado a brincadeira. Mas, tanto em Clapatéde quanto em Stanley Hall encontramos, no inicio deste século, @ alegagio da natureza como boa educadora da crianga. Claparéde, para continuar com esse exemplo, vé na brincadeira um modelo educativo proposto pela natureza, que deve ser seguido na medida em que a natureza, melhor do que homem, sabe 0 que € bom para a crianga. Por detrés de uma concepeio que € responsével por numerosos conceitos cientificos da época, como a teoria da evolugao, encontramos @ valorizagao romantica da natureza, que justifica em tltima andlise, o crédito concedido a brincadeira A valorizagao da brincadeira ap6ia-se na supressio da dimensao social da educagio da crianga pequena ue, tal como um animal, surge como dominada, 3. FROREL. Léaucasion de homme, ado frances, Broxels, 1881, ps, 92 ‘as, também, como conduzida pela natureza, da sual a brincadeira é © meio principal de educagae Dar lugar & brincadeira consiste em propor sina educagao natural. F, portanto, sobre’ um concelte que ndo podemos aceitar, atualmente, que se fun, damenta a origem da alegagio da brincedeira como meio educativo Brincadeira e etologia . Nio € surpreendente que o discurso cientifico, gue vai interferir com o anterior, tenha resultado do. estudo do comportamento dos animais. daquilo qe chamamos, atualmente, etologia ou psicofisiologia animal. K. Groos, através de sua_obra sobre a brincadeira dos animais, € um precursor no assunto. Ao se inscrever no quadro darwiniano da teoria da evolugdo, ele justifica o papel biolégico da brincadeira como uma necessidade para qualquer animal pequeno superior: € 0 meio indispensavel para treinamento Ge instintos latentes. A brincadeira resultou da selegao natural, como um instinto que, guiando a aprendi- zagem do jovem, melhora o desempenho do adulto, © que 0 leva a enunciar: “os animais no brincam porque so jovens, mas so jovens porque deve brincar" e, mais adiante, 98. animais possuem a juventude para que possam brincars pois, somente dessa maneira podem aperteigosn 8 tempo, pela experiéncia individual, os meios herdat ¢ insuficientes por si mesmos, a fim de estar 8 alta das tarefas da. vidat 4. GROOS, K. Le jew der animanr, p68 93 PPOs ees eeeceesa eRe « « ~ . « « . . e . . se c- f-, 4 * Y 4 ’ eneneeeeeesessesecrercre Muitas vezes a referéneia animal justifica o valor essencial, porque esti fundamentado na natureza enquanto lei biol6gica da brincadeira, inclusive na crianga humana. Contudo, o que foi feito da reflexio ‘atual da etologia, no que diz respeito ao valor da brincadeira animal?® Parece ter sido questionada em muitos pontos de vista, Especialmente os, estudos tempiricos (sobre os gatos, os chacais, os rates) nao ymuderam demonstrar nenhuma desvantagem (em par- ticular nos comportamentos predatérios) junto aos: sujeitos. privados da brincadeira, ¢ nenhum ganho iqueles para quem a brincadeira havia sido cestimulada, A andlise da literatura mostra a impos- iulutade de demonstrar, de modo rigoroso. um heneficio seguro, a longo prazo, dos comportamentos ide brincadeira e a propria definigdo desses compor- amentos pressupte a auséncia de beneficio imediato. Mais grave, ainda, para nbs, uma répida revisio da literatura, consagrada & brincadeira das criangas, le- vanta muitas dividas sobre os beneficios visiveis lesse comportamento nos humanos. Isso nio significa «que 2 invisibilidade do ganho prove sua inexistencia, mas, em todo caso, no possivel ressaltar sua vidéncia, Isso parece contradizer a teoria da evolucao {que supde que todo comportamento mantido € acom- ppanhado de um beneficio superior a0 seu custo. Os punto «rant toda esa pate erica, ev me apsio no antigo dive de MARTIN, P. & CARO, TM, “Or the functions of play and is ie bhavirst development” Advances inthe study of behavior, I 1 TORS, Agraego 2 Alain Lenoir, pofessor de psicofisiologia we Mlwentte Bans Nord, por haver chamado minha atengSo para 94 estudos sobre 0 gusto da brincadeira em tempo © fem energia, junto 20s animais, permitem descobrit seu baixo custo, contra as teoris que postulam uma importincia quantitativa; foram obtidos. resultados aque variam entre 2% © 10% de energia e de tempo * dispendidos por um individvo. Se ® custo & baixo, © proprio beneficio pode ser baixo. Além do mais € um comportamento ausente nas espécies vizinhas das espécies “que brincam”, um comportamento que desaparece facilmente quando o contexto muda, fim, os adultos brincam, sem que se possa jugjficar seu comportamento através da aprendizagem, Todos esses argumentos convidam a reavaliar nosso conceito de brineadeira. E preciso admitir que seu beneficio fraco, talvez imediato © no cMerenciado. sua fraqueza que pode justificar a afirmagao de que ela no foi percebida pelos pesquisadores, Pode-se, tam hém, encarar a possbilidade de que se tala de um comportamento ndo necessério, na medida em que pode ser substitufdo por outros comportamento, para farantir a0 futuro adulo a mesma. contibuigio. Bneontramo-nos, talvez mais modestamente, diante de um facilitador de desenvolvimento, de importincia menor, a0 meio de adaptagao imediata para jovem, fem efeitos importantes, a longo prazo. Essas novas hipdteses nos afastam dos conceitos anteriores, que tendem a fazer da. brincadeiraa panacéia do. desenvolvimento. Entretanto, no que femos repelir o ero daqueles que viram na anilise ddo comportamento animal a chave do comportamento dda crianga, Sem divida, fo existe uma medida ccomum entre os dois: o que é essencial na brineadeirs 95 infantit (a dimensdo simbélica) esti ausemte na brin- cadeira animal. Simplesmente, deduziremos que nio se pode apoiar na etologia para impor a idéia de um valor educative da brincadcira da crianga mas, também, que € preciso reconhecer que, tanto na erianga quanto no animal, nao dispomos de provas exatas de um papel essencial da brincadeira na educasao, A posicio daqueles ‘que postulam um interesse pela brincadeira na aprendizagem parece bem enfra- quecida a partir do momento em que os modelos ideolégicos romanticos e etolégicos foram desfeitos, ambos valorizando uma atividade Iddica espontinea hha crianga, como fonte de aprendizagem Compreen dem-se entio, mais facilmente, certas reticéncias dante da brincadeira, que convidam a praticas que introduzem a brincadeira sem, no entanto, aceitar essa confianga na natureza. E uma pritica antiga, anterior & valorizagio da brincadeira. Trata-se de um artificio, como bem enunciou Erasmo’. Uma atividade de aprendizagem, controlada pelo educador, toma 0 aspecto de brincadeira para seduzir a crianga, Porém, a crianga no toma a iniciativa da brincadeira, hem tem o dominio de seu contesdo e de seu desenvolvimento, O dominio pertence a0 adulto, que 6 ERASMO. De Léducation des enfant, (152), uauygo fences, Genera, 1965: "Em tas at cots, oy poe'ae "Dpto provid magne quer vorex fr copies © mal, sso one een ent. '0 pope! pce eed nuts aed bona) Forge ease nsanloe com esto seon 9 408 pode certificarse do valor do contetido didético transmitido dessa forma, Trata-se de wiilizar o inte. ‘pss da crianga pela brincadeira a fim de desvid-i, de utilizé-la para uma boa causa. Compreendemes ve ai s6 existe brincadeira por analogia, por uma remota semethanga. Desse modo, encontramo-nos, de um lado, diante de uma brineadeira que respeita as dificuldades de uma aprendizagem definida socialmente, mas que no € mais brincadeira e, de outro lado, diante de uma brineadeira como tal, mas cujo valor repousa no mito de uma natureza boa No entanto, precisamos fundamentar interesse a ‘brineadeira em outra coisa além de_palavies favordveis on mitos, precisamos tentar saber quais a possiblidades da brincadeira. E necessério, por. tanto, partir de uma andlise dos aspectos especiticos a brincadeira, tal como € vivenciada pela erianga (as, também, pelo adulto quando brinca porque aver e ndo para impor uma brincadeira a ertangs), Brincadeira e cultura ‘Trataremos aqui da brineadeira humana que supa contexto social € cultural. E preciso, efetivamente, romper com o mito da brincadeica natural. A eriange std inserida, desde © seu nascimento, num contexe Social ¢ seus comportamentos estao impreanados pun Ess8 imersdo inevitavel. Nao existe na crianga, ume brincadeira natural. A brincadeira é um processo relagdes interindividuais, portanto de cultura ¥ a , . . ’ » » , ® ® . . ® e ciso partir dos elementos que ela vai encontrar em seu ambiente imediato, em parte estruturado por seu meio, para se adaptar as suas capacidades. A brin- ‘cadeira pressupde uma aprendizagem social. Apren- de-se a brincar. A brincadeira no é inata, pelo menos nas formas que ela adquire junto ao homem. ‘A crianga pequena é iniciada na brincadeira por pessoas que cuidam dela, particularmente sua mie. Nao tem sentido afirmar gue uma crianga de poucos dias, ou de algumas semanas, brinca por iniciativa propria. E 0 adulto que, como destaca Wallon, por metafora, batizou de brincadeira todos 0s compor- tamentos de descoberta da crianga, Fuiém, € cet que os adultos brincam com a erianga. A. erianga centra progressivamente na brincadeira do adulto, de quem ela é inicialmente o brinquedo, o espectador ativo e, depois, 0 real parceito. Ela é introduzida rho espago © nto tempo particulares ao jogo. Além dessa iniciagdo, seus comportamentos se originam, es de mais nada, nas descobertas. Ao querer ‘chamar de brincadeira o conjunto da atividade juvenil, perdemos a propria especificidade desse comporta- mento, Contudo, © que a crianga aprende através dessa iniciagio progressiva na brincadeira? Ela aprende, jstamente, a compreender, dominar, ¢ depois pro- duzir_umasituago especifica, distinta de outras situagbes. Bateson (1977) nos informa que essa brincadeira supe uma comunicagso especifiea que & de fato, Jina metacomunicagio, Para que exista uma brinca: eat, & preciso que os parceiros entrem num acordo 98 sobre as modalidades de sua comunicagio e indiquem (€ 0 contesido dessa metacomunicagdo) que se trata de uma brincadeira: A brincadeira 55 & possivel se os seres que d ela se dedicam forem capazes de vm certo gray de metaco- runicagio, ou sea, se forem capazes de tocar sinais que veiculem a mensagem isto & wma brincadeira’ ‘As maneiras da significagdo sdo variadas: pode ser explicita ou implicita, verbal ov nat-verbal. Citaremos como exemplo o condicional lidico ("se a gente”). Porém, o simples gesto de estender um brinquedo pode servir de me “omunieagia suficiente € deflagar a brincadeira, espago especifico onde as atividades vo ter um outro valor. A brincadeira supée, portanto, a capacidade de considerar uma ago de um modo diferente, porque 0 parceiro em potencial the teré dado um valor de comunicagao particular: € © que permite distinguir a briga de verdade daquela que ndo passa de uma brincadeira Para que isso acontega, € preciso que haja acordo € compreensio de determinados sinais. Essa meta- comunicagio transforma o valo: de certos atos, para torné-los falsas aparéncias, atos que tém um sentido diferente daquele que poderfamos depreender & pri meira vista, A brincadeira € uma mutaglio do sentido, da realidade: as coisas af tornam-se outras. & um espago a margem da vida comum, que obedece a regras 7. BATESON, G. “Une théore de jeu et du fanasme” in Vers tne écologle de Mesprit, U1, wadeto Srancess, Pass, 977 99 criadas pela circunstancia. Os objetos, no caso, podem ser diferentes daquilo que aparentam, Entretanto, os ‘comportamentos so idénticos aos da vida cotidiana: © carster Iidico de um ato nao provém da naturera aquilo que € feito, mas da maneita como € feito [..) AA brincadeira no comporta nenhuma atividade instru mental que Ihe seja propria, Ela tira suas configuragses ‘de comportamentos de outros sistemas afetive-compor: tamentais! A brincadeira ndo & um comportamento especifico, ‘mas uma situago na qual esse comportamento toma ‘uma significago especifica. E possivel ver em que 2 brincadeira suptie comnnicacio e interpretagio Para que essa situagio particular surja, existe uma deciso por parte daqueles que brincam: decisio de ” entrar na brincadeira, mas também de construi-la segundo modalidades particulares. Sem livre escolha, ou seja, possibilidade real de decidir, nfo existe ‘mais brincadeira, mas uma sucessio de comporta- ‘mentos que tém sua origem fora daquele que brinca. Se um jogador de xadrez nao é livre para decidir seu préximo lance, nao & ele quem joga, Se uma crianga nao é livre para decidir se sua boneca deve dormir, de modo idéntico, nao € ela quem brinca, A brincadeira aparece como um sistema de sucesso de decisbes, Esse sistema se exprime através de um conjunto de regras, porque as decisoes constroem 8. REYNOLDS, PC, “Pay, langage and human evolution” 1972, sitado por BRUNER, 1S, Le développement de Cenfant ~ Sait faire, savor dive, sda (ances, Pars, 1983, 2 um Universo Iidico, partilhado ow partilhével com outros, Regra e livre escolha 2 _ Para brinca, existe um acordo sobre as regras (6 0 caso de jogos clissicos jd existntes, tm toe 0 jogadores, de comunnacordo, podem tansfortes certos aspectos. das eegras) ou uma construe de tegras. E 0 caso das brincadciras simbdhcas, que supBem um acordo sobre’ os papeis e of ates. Me regras no preexisem a brincadsra, mas sie pre duzidas 4 medida que seo desenvolve a brinenne ygotsky” mosteou,claramente, que imagindio da brincadeira era produzido pela repr. Nio caste jogo sem regra. Contudo, € preciso ver ques reg i € 4 lei, nem mesmo a regia social gue € anposts de fora. Uma regra da brincadera s6 tem valor se for aceita por agucles que brincam e 46 vale durat a brincadera, Bla pode ser wansformade. por um tcordo entre os que brincam. Isto, mesa bem? specifcidade de Uma situapay que se const pel decisio de brincar, e que é 8 tao, desta qu esa decisio € questionada, A rear permite, ass eriar uma outa sitagao. que litera os lites real 9-VYGOTSKY, LS. "Ph of child” in Senet Paychalo rp. 6, nd its oe in the mental develops Primivera de 1962, vol Vo Beene aeceecaenerzeerse weer eee Essa situago especifica pode aparecer como um. ‘espago de experiéncias bem original wece [Na brincadeira, o comportamento se encontra dissociado (¢ protegido contra) de suas conseqiigncias normais. E af que residem, a0 mesmo tempo, a flexibifidatle © a frivolidade da brincadeira" Essa situagao, frivota diante da parada das obri- Bes © condigdes da vida cotidiana, surge como Gum espaco tinico de experiéneias para aquele que glvinca, Ele pode tentar, sem medo, a confirmagao do real. Assim, “a brincadeira fornece a ocasiio de tenlar combinagdes de conduta. que, sob pressbes fincionais, ndo seriam (eniadas""', Por causa disso, 9° wr espago de inovacio, de criago, para a eianga wu se trata, nesse caso, de fazer Fessurgir a criae @yvidade romantica atribufda & infancia, mas de con- wlerar que a crianga, nessa situagdo, experimenta oe aaa novos para ela, criatividade relativa jn absoluta, mas essencial para a descoberta de @svas competéncias. E uma criatividade ds mesma natureza daquela que, segundo Chomsky", funciona agem. A partir de palavras e de estruturas @ jranvaticais conhecidas, 0 locutor pode pronunciar @Fwneciados que nunce ouviu, que sio novos para re. enibora mihares de outras pessoas tenlvam podido jenuncilos antes dele © Hrutanto, a brincadeira € um espago social, uma @ + awe no € eriada espontaneamente, mas em ° — {i PUYNOLDS, PC. op. sit, 224 @ 1 timer, 3S. ibid. ps3. eISSN, Niet case conseqiiéncia de uma aprendizagem social ¢ supde ‘uma significagio conferida por todos que dela par- ticipam (convengio). Porém, muitas atividades ele mentares da crianga pequena, que usualmente cha- mamos de brincadeira, no scr brincadgiras. nesse sentido, Esse espago social supe regras. Na intro- dugio € no desenvolvimento da brincadeira, existe uma eseolha e decisdes continuas da crianga. Nada mantém 0 acordo 2 no sero desejo de todos 0s parceiros. Na falta desse acordo, que pode ser lon- gamente negociado, 0 jogo se desmancha” A regra produz. um mundo especifico marcado pelo exercicio, pelo fazer de conta, pelo imaginério. A crianga pode, ‘sem riscos. inventar.criar_tentar. nesse universo, A brincadeira é “um meio de minimizar as conseqien cias de seus prOprios atos e, por isso, aprender numa situag3o gue comporta menos riscos”"?. Contudo, 6 também um mundo aberto, incerto, Nao se sabe, com antecedéncia, 0 que se vai encontrar: a brin- cadeira possui uma dimensdo aleat6ria. Nela encon- tramos © acaso ou a indeterminagio, resultantes da complexidade das causas que esto em agio. E um espago que no pode ser totalmente dominado de fora. Toda coaglo interna faz ressurgir a brincadeira toda coagio externa arrisca-se a destruta A ssituagio assim descrita parece um meio de educago da crianga, mesmo que precisemos ser reservados quanto aos beneficios reais que a crianga pode retirar dela, na falta de poder colocé-les dite~ lamente em evidéncia: aparentemente & um espago de socializagio, de dominio da relagio com 0 outro, 13, BRUNER, 1S, Opcit, p52 de apropriagao da cultura, de exercicio da decisio © da invengao. Mas, tudo isso ocorre segundo 0 ritmo da crianga, € possvi um aspecto aleat6rio € incerto. Nao se pode fundamentar, na brincadeira, ‘um programa pedagdgico preciso. Quem brinca pode sempre evitar aquilo que Ihe desagrada, Se a liberdade valoriza as aprendizagens adquiridas na brincadeira, ela produz, também, uma incerteza quanto aos re- sultados. Daf a impossibilidade de assegurar apren- dizagens, de um modo preciso, na brincadeira. Eo paradoxo da brincadeira, espaco de aprendizagem cultural fabuloso e incerto Além do mais, a brincadeira € ambigua sob um outro ponte de vista: cla pode, as veces, ser muais ‘um lugar de conformismo, de adaptagio 2 cultura, fal como a cultura existe. Nada garante que a inovagdo, a abertura, tenham sempre um papel im- Portante. Como conseqiiéncia, temos valores educa- tivos que nio podem se contentar com a brincadeira Nao se pode confiar na brincadeira, mas nao se pode evitar um convite para a brincadeira. Nao femos nenhuma certeza quanto ao valor final da brincadcira, mas cen.as aprendizagens essenciais pa- recem ganhar com o desenvolvimento da brincadeira, Estamos diante de um paradoxo que explica bem as reagées, quer elas sejam favoraveis ou desfavo- raveis & utilizagdo da brincadeira. Entdo, o que pode fazer 0 educador? O ambiente indutor Voltemos & propria I6gica da brineadeira; nao quegamos que ela € uma confrontagio com wma cultura, 4 erianga nao brinca numa ilha deserta, Ela brinca com as substincias materiais e imateriais que Ihe sio propostas. Ela brinea com o que tem & mio €.com o que tem na cabeca, Os bringuedos orientam a brincadeira, trazem-Ihe a matéria, Algumas pessoas sto tentadas a dizer que eles a condicionam, mas, entio, toda brincadeira estd condicionada pelo meio ambiente. $6 se pode brincar com 0 que s# tem, & 4 criatividade, tal como a evocamos, permite, jus- tamente, ultrapassar esse ambiente, sempre particular « limitado. © educador pode, portanto, construit um ambiente que estimule 2 brincadeira em fungao dos resultados desejados. Nao se tem certeza de que a crianga va agir, com esse material, como desejaria ‘mos, mas aumentamos, assim, as chances de que ela o faga; num universo sem certezas, s6 podemos trabalhar com probabilidades. Portanto, é importante analisar_ seus objetives © tentar, por isso, propor Imateriais que otimizem as chances de preencher tais objetivos. Nao hd somente o material, é preciso levar em conta as outras contribuigdes, tudo aquilo que propicie & crianga pontos de apoio para’ sua atividade Midica. Percebe-se a dimensio circular da brincadeira: aprendizagens anteriores reforgam a ri- ‘queza potencial da brincadeira, Ela ndo é um ponto de partida. A brincadeira, sem’ duivida, traz mais Aqueles que tém mais, 0 que no € uma razio para gue dela se privem aqueles que tém menos, pelo contrétio. Um estudo desenvolvido no Québec, snbre os “cantos" de brincadeira de imitagiio das’ classes de bré-escola (criangas de 5 a 6 anos) mostra, claramente ue @ qualidade das brincadeiras (importincia das eeee ft+eeee Ceeetesectecetet ‘lagdes entre as criangas, atos adaptados a situagao colocada) depende muito do material proposto © de ‘ sua organizagio. Quatro eritérios foram colocados em evidéncia: disposigd0 légica dos méveis, diver- sificagdo dos papéis sugeridos, presenga de um ma- terial completo para os roteiros sugeridos, aimbiente protegido que garanta uma privacidade das eriangas", Outros estudos sobre os bonecos fantésticos nas classes de pré-escola francesas (criangas de 2 a 6 nos) mostram como © mesmo bringuedo, de acordo ‘com © contexto, pode produzir jogos repetitivos © cstereotipados ou ricos em invengdes © diversidade. As com jangas sfo importantes, iias lamhém a disposig&io do lugar, 0 material proposto, 4 atitude do professor etc. weewesevereeesse Diante da indeterminagao da brincadeira, a tinica ji que se pode conciliar com o respeito por essa ividade parece ser a intervengo sobre 0 contexto, seja através do ambiente material, seja pela propria cultura da crianga, mas fora da hora da brincadeira Podemos, para concluir, voltar ao paradoxo da bincadeira ligado & sua indeterminago, que é, a0 riesmo tempo, seu atrativo e seu limite, Na verdade, @ s brincadeira dé testemunho da abertura e da invengio 6‘! possivel, do qual <.a € 0 espago potencial do ungimento. A brincadeira que pode ser, as vezes, vu escola de conformismo social, de adequagio as s @ 41 THERAULT, 1, DOYON, D., DOUCET, M,, VAN THAM, Vs poitation de materiel dans Vaire des’ jens symboliques, ® vse Nepanement dee Sciences de MEducsion, Universit de ° ® her Chit, Chisoutin 1987 106 situagdes propostas, pode, do mesmo modo, tornar-se lum espago de invengao, de curiosidade © de expe- riéncias diversificadas, por menos que a_sociedade oferega as criangas os meios para isso.” A¢ontece ue essa abertura marca um dos aspectos essenciais das sociedades modemnas, caracterizadas pela inde- terminagao do futuro de cada individuo. A eventua. lidade da brincadeira corresponde, intimaihente, imprevisibilidade de um futuro aberto. 107

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