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José Ortega y Gasset Missao do Bibliotecario ‘Traduglo posficio de Antonio Agenor Briquet de Lemos RES (©2006 erederes de fost Ontegn y Gasset (62006 da ade plc Amon Agen But de Lome Diets desta eto agus pot Lem Inirmagsoe Comucaio tid, “uo ovina: Min dt itr (Obras compl, 5, 207-294, Madd: lanza Patri, 1989), “Tao ond rsrvados. De sora com a 9 60 «421219, nena pate ess ro poe se ftecopi, grav, eprduida ou nrmasenada num seta de rectpeagio Reinorneio ou insntde sab qunlque forma ow por algase neo toa ou mecinico sem ocosenimento do ee Revisor Maca Lala Vie de Lamas Caps: Fomatoe Design rico ida ee attndotese baa omg So Seat nacongy Gres tndoe tie dente “Mos aset ‘negate cae tad tees ont gue eg de 8, de pc seni 206 ejguet de Lemoe/ Lives ‘sets = Qundea 701” loco O Leja? Tulle Centro Mluempreseal ai DF 7080.00 eons (6) 5229805 032291725 ‘wwnbriqetdlemescombe dtorabaguctlelemascombe Sumério Missao do bibliotecirio 1 Posfacio da tradug Circunstancia e recepefo de Missi do bibliotectrio 57 ostaria hoje de comportar-me de modo a dar continuidade & tradigio de uma virtude que j4 0s antigos gregos e romanos re- conheciam unanimemente nos espanhdis: a hospitalidade.* No entanto, na circunstancia presente, a melhor forma de hospitalidade me parece ser aquela em que, ao chegar oforastei- roa minha casa, eu a deixe e me torne um pou- co estrangeizo. Nesta ocasido em que vos dijo a palavra, minha casa ancestral é a lingua es- panhola, pouco habitual para muitos de vos. E pensei que, se houvesse de procurar um con- fato eficaz com vossas almas e néio vos fazer perder por completo uma hora de vossas vi- das, que as tém tio contadas, eu deveria fazer um esforgo e me expor A aventura de falar-vos em uma lingua que conhego muito pouco, em ‘que terei de balbuciare tropecar muitas vezes, {que nem sequer pronuncio bem, mas que, 20 fim e a0 cabo, creio que me farei entender. Es- + Estas piginae,veridas 20 francs, foram das como discur- so inaugural no Congresso Internacional de Bibiotecirios em v8 3 20 de mio de 1985. pero, de resto, vossa benevoléncia, quendio me denunciara policia por causa dos danos que infligirei a sutil gramatica francesa. E, sobretudo, gostaria de advertir-vos que o que ouvireis nao coincide exatamente com 0 titulo dadoa meu discurso, titulo que defrontei, como vés, ao ler o pro- grama deste congresso, Fago constar isso por- que esse titulo — Missio do bibliotectrio — & enorme e assustador, e aceité-lo passivamente seria uma formidavel pretensio de minha par- te. Nao posso pretender ensinar-vos algo acer- ca das técnicas muito complexas que integram. vyosso trabalho, Vés as conheceis muito bem, enquanto, para mim, so um mistério hermé- tico. Devo, pois, recolher-me ao menor rincao do gigantesco espaco que esse titulo anun Até a palavra ‘missio’, porsi sd, me assusta tum pouco, se me vejo obti- gadoaempregé-la com todaa forca de seu sig- nificado. F claro que 0 mesmo acontece com intimeras palavras que empregamos no dia-a- dia, Se, de siibito, comegassem a funcionar na plenitude do seu verdadeito significado, se, 20 pronuncid-las ou ouvi-las, nossas mentes en- tendessem correta ¢ prontamente seu sentido integral, sentir-nos-iamos atemotizados ou 2 pelo menos intimidados diante da dramatici- dade essencial que encerram. Felizmente, nos- sa linguagem corrente as emprega suméria ¢ mecanicamente, mal entendendo-as, com seu sentido enfraquecido, adormecido, nebuloso. [Nésas manejamos pelo lado de fora, nelas tes- valando rapidamente, sem submergirmos em seu abismo interior, Em suma, ao falar, faze- ‘mos saltar os vocabulos como os domadores de circo fazem saltar os tigres e os ledes, de- pois de haver alquebrado sua ferocidade com morfina ou cloroférmio. % Missi pessoal Bastaria, para demonstré-lo com um exemplo, que nos aproximassemos por um instante do cerne da palavra ‘missio’. Missio significa, antes de tudo, aquilo que um homem deve fa- zer em sua vida, Pelo visto, a missao é algo ex- clusivo do homem. Sem homem nao hé mis sio. Essa necessidade, porém, & qual alude a expressdo ‘dever fazer’, é uma condigio mui- to estranha e nao se parece de modo algum com a inevitabilidade com que a pedra gravita rumo ao centro da Terra. A pedra nao pode 3 deixar de cair, mas o homem pode muito bem no fazer aquilo que deve fazer. Isso nao é cutio- 80? Neste caso, a necessidade & exatamente 0 oposto da inevitabilidade: é um convite. Ha- verd algo mais elegante? O homem se vé con- vidado a dar sua anuéncia ao que é necessario. ‘Uma pedra que fosse meio inteligente, a0 ob- servar isso talvez.dissesse: “Que sorte ser ho- ‘mem! Nao tenho outro remédio sendocumprir inexoravelmente minha lei: devo cait, cair sern- pre... No entanto, 0 que o homem deve fazer, ou o que ohomem deve ser, néo Ihe éimposto, ‘mas proposto.” Mas essa pedra imaginaria pensaria assim porque é apenas meio inteligen- te, Se 0 fosse totalmente, perceberia que esse privilégio do homem é aterrador. Pois implica que em cada instante de sua vida o homem se encontra perante diversas possibilidades de fazer, de ser, e que¢ ele proprio quem, por stia exclusiva responsabilidade, tem que se deci- dirpor uma delas. E que para decidir fazerisso endoaquilo deve, queira ou nao, justificar para si préprio essa escolha, isto é, tem que desco- brir qual de suas agdes possiveis naquele ins- tante & a que da mais realidade 8 sua vida, a que possui mais sentido, a mais sua. Sendo es- colher essa, saberd que enganou a si préprio, 4 que falsificou sua prépria realidade e que ani- quilou um momento de seu tempo vital, o qual, como disse antes, tem seus instantes contaclos. Nio ha nisso que afirmo misticismo algum, pois éevidente que chomem nao pode dar um ‘inico passo sem o justificar perante seu pro- prio tribunal interior. Quando, daqui a uma hora, nos encontrarmos a porta deste edificio, teremos, queiramos ou nao, de decidir em qual diregao andaremos, e, pode-se dizer, veremos surgir diante denés a imagem do que teremos que fazer esta tarde, que, por sua vez, depen- de do que teremos que fazer amanhé, ¢ tudo isso, definitivamente, depende do modo geral de vide quenos parece ser o mais nosso, a vida que temos que viver para ser 0 que mais au- tenticamente somos. De modo quecada um de rnossos atos exige que 0 fagamos brotar da an- tecipagdo total de nosso destino e o derivemos dle um programa geral para nossa existéncia, E isso vale tanto para o homem honraclo e he- r6ico quanto para o perverso ou mesquinho, Pois também 0 perverso se vé obrigado ajusti- ficar seus atos perante si préprio, neles procu- rando significado e funcao em um programa de vida. De outro modo, ficaria imével, parali- sado como 0 asno de Buridan. 5 Entre 0s poucos papéis que Descartes nos legou ao morrer ha um, es- crito quando ele tinha seus vinte anos, que diz: “Quod vitze sectabor iter?” Qual caminho de vida escolherei? fa citacao de certo verso em. que AusOnio traduzuma antiga poesia pitago- rica intitulada: Denmbiguitateeligendee vite. “Da perplexidade na escolha da vida.” Hé no homem, pelo vis- to, ineludivel impressio de que sua vida, por- tanto, seu ser, 6 algo que deve ser escolhido. Isso ¢ espantoso, porque significa que, diferen- temente de todos os dlemais entes do univer 80, que possuem um ser que Ihes édado ja pre- definido, e, por iso, existem, ou seja, porque siio desde logo o que so, ohomem é a tinica e quase inconcebivel realidade que existe sem possuir esse ser irremediavelmente predefini- do, que nio é desde o inicio 0 que & mas que precisa escolher para si seu proprio ser. Como ‘oescolheré? Com certeza, representardem stia imaginagao muitos tipos possiveis de vida, e, 20 té-los diante de si, notaré que algum oatrai mais, puxa-o, reclama-o e o chama, Este cha- mado que ouvimos rumo a um tipo de vida, esta voz ou grito imperative que se eleva de nosso intimo mais radical, 6a vocagéo. 6 Na vocagao & proposto a0 homem, no imposto, o que ele deve fazer, Ea vida adquire, por isso, o caréter da realiza- ‘Go de um imperativo, Est em nossas maos {querer ou ndo realizé-lo, ser figis ou infidis & nossa vocagao. Mas esta, quer dizer, aquilo que verdadeiramente devemos fazer, nao esti em nossas méos, Chega até nds inexoravelmente proposto. Bis por que toda vida humana tem ‘uma missio. Missio ¢ isto: a consciéneia que cada homem tem de seu mais auténtico ser, daquilo que esta chamado a realizar. A idéi de missio é, pois, um ingtediente constitutive igo humana, e, como antes dizia que sem homem nao ha missio, podemos agora acrescentar que sem missio nao ha homem. 4 Missdo profissional E uma pena que nio seja possivel agora apro- fundar este tema, um dos mais fecundos e im- portantes que existem: o das relagoes entre 0 homem eo seu trabalho. Pois, a vida é, sobre- tudo, trabalho, Nao nos damos a vida, mas & ela que nos é dada, Encontramo-nos nela sem saber como nem por qué. Mas isso que nos & 7 dado — a vida — devemos fazé-onds mesmos, cada um astia. Em outras palavras, para viver devernos estar sempre fazendo algo, sob pena de sucumbir: Sim, a vida 6 trabalho, Sim, a vida da muito trabalho, e, omaior de todos, acertar fazer 0 que é preciso fazer, Para isso olhamos 8 nossa volta ou ambiente social e verificamos que esté constitufdo por um tecico de vidas tt picas, isto ¢, de vidas que apresentam certas I nhas gerais em comum. Encontramos & nossa volta, com efeito, médicos, engenheiros, profes- sores, fisicos,filésofos, agricultores, industei- ais, comerciantes, militares, pedreitos, sapatei 108, professoras, atrizes, bailarinas, freiras, cos tureiras, senhoras da sociedade. De inicio, nao vemos a vida individual de cada médico ou cada atriz, mas apenas a arquitetura genética e esquematica de cada uma dessas vidas. A di- ferenca entre essas vidas esta no predominio de uma classe ou tipo de ocupagao, como, por exemplo, 0 trabalho do militar, que é distinto do trabalho do cientista, E essas trajetdrias es- quemiticas de vida sdo as profissdes, as car- reiras ou caminhos de vida que encontramos jA estabelecidos, notérios, definidos e repula- dos em nossa sociedade. Entre eles escolhemos qual seré 0 n03s0, 0 nosso curriculum vitae, 8 Isso acontece também convosco. Naquele momento da adolescéncia ou da primeira juventude quando, com maior ou menor clazeza, 0 homem toma suas resolt- Ses mais decisivas, verificastes que em vosso ambiente social jé estava esbocado, antes de chegardes, omodo de vida eo modo de ser hu- mano que € ser bibliotecirio. Nao tivestes que inventé-lo: ja estava af, onde ‘at’ significa a so- ciedade a que pertencieis. ‘Aqui precisamos andar mais devagar. Disse que 0 modo de vida ¢ 0 tipo de ocupagéo humana que é ser bibliotecs- rio preexistiam a cada um de vés, ¢ que vos bastava olhar em volta para encontré-los pre- sentes na existéncia de muitos homens e mu- Iheres. Mas nem sempre foi assim. Houve épo- casem quenao havia bibliotecirios, embora ja houvesse livros — sem falar daquelas eras mui- to mais longinquas em que nao havia bibliote- cétios porque nem sequer havia livros. Quere- 14 isso dizer que naquelas épocas em que no havia bibliotecdrios, embora ja existissem li- ‘vros, nao houvesse homens que se ocupavam. dos livros de forma bastante parecida com 0 que constitui hoje vosso oficio? Sem ditvida, sem diivida, haveria algum homem que néo 9 se contentava, como os outros, em simplesmen- te ler livros, mas os colecionava, ordenava, ca- talogava, e cuidava deles. Mas se houvésseis nascido naquele tempo, por mais que olhés- seis a0 vosso redor nao terfeis reconhecido no trabalho desse homem aquilo que hoje deno- minamos ser bibliotecério, mas sua conduta vos teria parecido 0 que, com efeito, era: vima peculiaridade individual, um comportamento personalissimo, uma inclinacao intransferivel- mente inerente Aquele homem, como o timbre de sua voz ou a harmonia de seus gestos. A prova disso é que, ao morrer esse homem, sua ‘ocupagéo morria com ele, no continuava de pé além da vida individual que a exerceu. © que quero insinuar com isso fica claro quando nos transportamos Para 0 outro extremo da evolugio e nos per- guintamos: 0 que ocorre hoje quando morre a pessoa que rege uma biblioteca publica? Acon- tece que a vaga deixada permanece; sua ocu- ago continua intacta na forma de um posto oficial que 0 Estado, o municipio ou alguma instituigao mantém com sua vontade e sett po- der coletivos, embora transitoriamente nin- guém 0 ocupe, ao ponto de continuar vincu- Jando uma remuneragio a esse cargo vago. Por 10 conseguinte, hoje em dia, a ocupagio de cole- cionar, ordenar e catalogar os livros nao é mais, uum comportamento meramente individual, _mas um posto, um fopos ou lugar social, inde- pendente dos individuos, sustentado, reclama- do € decidido pela sociedade como tal e nio meramente pela vocagio ocasional dessa ou daquela pessoa. Por isso, agora encontramos © cuidado dos livros constituido de modo im- pessoal como carreira ou profissao ¢, por isso, ao olhar ao redor, o vemos tao clara e solida- mente definido como vemos um monumento piiblico. As carreiras ou profissdes sio tipos de atividade humana de que, pelo visto, a socie- dade necessita. E um deles, ha cerca de dois séculos, ¢ 0 do bibliotecdrio. Toda coletivida- de do Ocidente necessita hoje de certo nime- ro de médicos, magistrados, militares... bi bliotecdrios, Bisso porque, segundo parece, ¢s- ‘sas sociedades devemt cuidar de seus membros, ministrar-lhes justiga, defendé-lose fazé-los ler. Bis que reaparece aqui a mesma expresso que antes empreguei, mas que agora se refere A sociedade e nao ao indi- viduo. A sociedade deve fazer também certas coisas. Também possui set sistema de neces dades, de missées. 1 Encontramo-nos, por- tanto, — ¢ isso é mais importante do que tal- vez se possa imaginar — na presenga de uma dualidade:a misao do homem, o que cada ho- mem deve fazer para ser 0 que é ¢ a missio profissional, em nosso caso a missio do bibli- otecdrio, o que o bibliotecario deve fazer para ser um bom bibliotecatio. E muito importante que nao confundamos uma com a outra Originariamente — e no ha diivida a respeito — isso que hoje cons- titui uma profissdo ou oficio fot inspiracio ge- nial e criadora ce um homem que sentiu a ne- cessicade radical de dedicar sta vida a uma cocupagao até entio desconhecida, que inven- tou algo novo a fazer. Sua misso era aquilo ‘que era necessério para ele, Esse homem mor- re, © com ele morre suia missao, Mas, com 0 passar do tempo, a coletividade, a sociedade, percebe que aquela ocupacao, ou algo pareci- do com ela, é necessaria para que subsista ou floresca 0 conglomerado humano em que con- siste a sociedade. Por exemplo, houve em Roma um homem da gents Julia, chamado Caio ‘e apelidado César, a quem ocorreu fazer uma série de coisas que ninguém até entio fizera, entre elas proclamar o direito de Roma a deter 2 ocomando exclusive do mundo, €0 direito de um individuo ao comando exclusivo de Roma. Isso Ihe custou a vida. Uma geracio mais tar- de, porém, a sociedade romana sentit, como sociedade, a necessidade de que alguém vol- tasse a fazer o que Caio Jlio César fizera, Des se modo, o vazio que aquele homer deixou com seu personalissimo perfil ficou objetivado, despersonalizado, em uma magistratura, e a palavra César, nome de uma misao individu- al, passou a designar uma necessidade coleti- va, Note-se, no entanto, a profunda transfor magéo por que passa um tipo de trabalho hu- mano quando, em lugar de necessidade ou mis- so pessoal, torna-se mister coletivo, um ofi- cio e uma profissio. No primeiro caso, 0 ho- mem faz aquilo que ele e somente ele deve fa- zer, com total liberdade e sob sta exclusiva res- ponsabilidade. Por outro lado, esse mesmo homem, ao exercer uma profissao, comprome- te-se a fazer o que a sociedade necessita. Terd de renunciat, entao, a boa parte de sua liberda- dee se vera obrigado a desindividualizarse, a nao decidir suas agbes exclusivamente do pon- to de vista de sua pessoa, mas do ponto de vis- ta coletivo, sob pena de ser um mau profissio- nal e sofrer as conseqiiéncias graves com que a B sociedade, que é crudelissima, pune os que a servem mal, ‘Talvez um exemplo es- clarega 0 que pretendo dizer. Se, na casa onde vive um homem com muitas outras pessoas, irrompe um incéndio, ele pode, de seu ponto de vista pessoal, que talvez seja de extremo de- sespero, nao tentar apagé-lo e comprazer-se com a idéia de que sett corpo logo virara cin- as, Masse, por acaso, sobrevivere constar que poderia ter apagado o fogo que custou tantas vidas, a sociedad o puniré, porque nao fez 0 que socialmente, isto é, por necessidade cole- tiva endo individual, deveria ter feito. As pro- fissdes, portanto, representam, para quem as exerce, trabalhos desse tipo. Como o incéndio, sfo urgéncias a que ¢ ineludivel acudir e que a situagdo social nos apresenta, queiramos ou 1ndo. Por isso se chamam oficios. Por isso, espe- cialmente todas as atividades do Estado — no Estado aparece o social em grau superlativo, sublinhado, enfatizado, quase dria exagerado ~ todas as atividades do Estado, repito, cos- tumam ser qualificadas como oficiais. Os lingitistas encontram dificuldades para fixar a etimologia desta pa- avra com que os latinos designavam o dever, 4 @ as encontram porque, como Ihes acontece muitas vezes, ndo conseguem imaginar bem a situagéo vital original 8 qual © vocébuilo cor- responde e em que foi criado, Nao oferece di- ficuldade semantica reconhecer que officium vem de ob e facere, onde a preposigio ob, geral- mente, significa sair rapidamente ao encontro de algo, neste caso um fazer. Officium € fazer sem vacilar, sem demora, o que urge, a tarefa que se apresenta como inescusivel.* Isso é 0 que constitui a prépria idéia do dever. Quan- do algo nos é apresentado como dever, somos informados quenao nos resta margem para de- ‘iditmos se 6 preciso ou ndo cumpri-lo. Pode- remos ou nao, mas é inquestionavel que é ne- cessério faz8-lo, e por isso & dever. * Qoutro sentido de ofciun — por obsticulo ~, que parece ter sm sentido beliaso, Imbriea com o que fol explicndo. A turgincia, 0 dever’ mals carateristico da vida primitiva, 63 Ita contr oinimigo, enfrent-loe oporse ace. Epos, i- dlferent, que olin signifique primelto ‘por obsticule’ ede- pois se generalize como protstipo de rgéncia ou vice-versa ‘que odever genérica se expecilizeno dever mais notivel que oporse a inimigo. ‘urloso observor que amesma idéia de acudircom pres- teza a algo anima a palavra“obediénca’ deeb e mul, quer dizer exeevtarimediatamentea ordem que se owviu, Em ira be. a expressdo que designa obediéncia € una combinagio deduse palavras que signficam “ouvido fie, correspon dente 0 n0350"dito efit! 15 ‘Tudo isso nos mostra que, para determinar a missio do bibliotecé- rio, & preciso partir ndo do homem que a exer- ce, de seus gostos, ciriosidades ou convenién- cias, tampouco de um ideal abstrato que pre- tendesse definir de uma vex por todas o que é ‘uma biblioteca, mas da necessidade social aque serve vossa profissio. E estanecessidade, como tudo que ¢ propriamente humano, ndo consis- te em uma magnitude fixa, mas é, essencial- mente, variével, migratéria, evolutiva; em suma, histérica. 2% A histOria do bibliotectirio. O século xv Todos vés conheceis melhor que eu o passado de vossa profissdo. Se o observardes agora notareis quo claramente se manifesta nele que © trabalho do bibliotecério variou sempre em fungio, rigorosamente, do que o livro signifi- cava como necessiade social . Se fosse possivel agora reconstruir exatamente esse pasado, cescobri- rfamos com surpresa que a histéria do biblio- tecérionos mostraria de modo transparente os ‘mais recdnditos segredos da evolugao por que 16 passou o mundo ocidenial. Isso comprovaria que haviamos tomado nosso assunto, aparen- temente tio particular e excEntrico — a profis- sio do bibliotecirio —, conforme é devido, em sua efetiva e radical realidade, Quando toma- ‘mos em stiarealidade algo, seja o que for, mes- moo mais diminuto e subalterno, isso nos poe em contato com todas as outras realidades, si- tua-nos no centro do mundo e nos desvela em todas as diregSes as perspectivas ilimitadas e emocionanies do universo. Mas, repito, nao podemos agora nem mesmo iniciar essa hist6- ria profunda de vossa profissio. Fica aqui re- gistrada a tarefa como um desideratum para que algum de vés, mais bem dotado do que eu, venha a realizé-la, Porque essa funcionali- dade de que falei, entre o que fez. 0 bibliotecé- tio nas diferentes épocas e a importincia que 6 livzo foi adquirindo como necessidade nas sociedades do Ocidente, me parece inquestio- navel Para poupar tempo, dei- xemos de lado a Grécia e Roma, O que o livro foi para elas sera algo muito estranho para nds se tivermos que fazer uma descrig&o exata. Fa- Temos somente dos povos novos que sobre as v rafnas da Grécia e Roma iniciam um novo flo- rescimento, Quando, entdo, vemos esbogar-se, pela primeira vez, no tecido da paisagem soci- al, afigura humana do bibliotecério? Quando, quero dizer, um contemporaneo, olhando a0 seu redor, péde divisar como fisionomia pit- blica, ostensiva e ostentada, a figura do biblio- tecitio? Sem diivida, no comego do Renasci- mento. E, observai, um pouco antes de o livro impresso vir a existit! Durante a Idacle Média, 8 ocupagio com os livros ainda é infra-social, no aparece para o puiblico: esti latente, secre- ta, pode-se dizer, intestina, confinada no recin- to secreto dos mosteiros. Nas prdprias univer- sidades nao se destacava essa pratica, Nelas se guardavam os livros necessérios & pritica do ensino, do mesmo modo, nem mais nem me- ‘nos, como se guardariam os utensilios de lim- peza. Ser guardiao dos livros nao era algo es- pecial. Somente no alvorecer do Renascimen- to é que comega a delinear-se na rea ptiblica, a diferengar-se dos outros tipos genéricos de vida, a figura do bibliotecétio. E nao por coin- cidéncia! E precisamente a época em que tam- bem, pela primeira vez, olivro, no sentido mais estrito da palavre, nd00 livro religioso, nem o livro de leis, mas o livro eserito por um escr 18 tor, portanto, o livro que pretende ser somen- te livro e nao revelacio ou eédigo, é precisa- mente a época em que, também pela primeira vez, 0livro & sentido socialmente como neces sidade. Um ou outro individuo havia sentido essa necessidade muito antes, mas sentido como se sente um desejo ou uma dor, ot seja, cada um por sua propria conta e risco. Agora, porém, 0 individuo se dava conta que nio era reciso que ele sentisse originalmente essa ne- cessidade, pois a encontrava no ar, no ambien- te, como algo reconhecido, nao se sabia exata- ‘mente por quem, porque pareciam senti-la ‘os outros’, esse vago ‘os outros, que é0 misterio- 0 substrato de todo 0 social. O desejo pelo li- vio € a esperanga no livro nao estavam pre- sentes numa ou noutra vida individual, mas possuiam o cardter andnimo e impessoal prd- prio de toda vigéncia coletiva, A hist6tia, se- nhores, é, principalmente, a historia do surgi- mento, desenvolvimento e desaparecimento das vigéncias sociais, Estas sao as opini6es, nor- mas, preferéncias, negagdes e temores que todo individuo encontra constituidas em seu ambi- cente social, com as quais, queira ou nao, tem que contar, do mesmo modo que tem que con- tar coma natureza corpérea, H indiferente se a 19 pessoa est ou nao de acordo com elas: sua vi- gencia nfo depende de que tu ou eu preste- mos nossa aprovagao, Ao contrario, notamos melhor que é vigente quando nossa discrepan- cia se arrebenta contra sua granitica dureza. Neste sentido, digo que até o Renascimento a necessidade do livro nao foi vigéncia social. E como foi entao que se tor- nou vigéncia social af vemos surgir imediata- mente o bibliotecétio como profissao. Mas ain- da podemos ser mais precisos. A necessidade do livro assume nessa época 0 aspecto de £6 no livro. A revelagao, o que foi dito por Deus e por Ble ditado ao homem, diminui de eficécia ‘e se comega a esperar tudo daquilo que 0 ho- ‘mem pensa somente com sua razdo, portanto, daquilo que o homem escreve. Estranha e ra- dical aventura da humanidade ocidentall Vede como ao mal rogar a histéria de vossa profis- sao caimos, como se fosse por um algapao, nas entranhas recénditas da evolugio européia? A necessidade social do livro consiste nessa época na necessidade de que haja livros, porque sao poucos. A este tipo de necessidade corresponde a figura daqueles geniais bibliotecérios renascentistas, que so grandes cagadores de livros, astutos e tenazes. 20 A catalogagéo nao é ainda urgente. A aquisi- Gio e a produgio de livros, em compensacio, adquirem tragos de heroismo. Estamos no sé- cutloxy. Nao parece um mero caso que, precisamente nessa época em que é sentida, tao vivamente, a necessidade de que hhaja mais livros, aconteca o nascimento da jimprensa © O séeulo xix Com um esforgo de desportiva agilidade sal- temos trés séculos e nos detenhamos em 1800. © que aconteceut entrementes com os livros? Publicaram-se muitos e a impressio tornou-se mais barata, Jé nao se sente que haja poucos livros. Sao tantos os que existem que se sente a necessidade de catalogé-los. Isso quanto a sua materialidacle. Quanto ao seu conteitdo, a ne~ cessidacle sentida pela sociedad também mu- dou. Boa parte das esperancas depositadas nos livros parece cumprida, No mundo existe ago- ra oque antes nao havia: as ciéncias danature- za e do passado, os conhecimentos técnicos. Agora se sente a necessidade nao de buscar li- 21 vyros — isso deixou de ser um problema real —, mas de promover a leitura e buscar leito- res. E, de fato, nessa etapa as bibliotecas se multiplicam e com elas os bibliotecdrios. Ja & ‘uma profissao que ocupa muitas pessoas, mas ainda é uma profissdo social espontanea. O Es- tado ainda ndo a tornara oficial. Opasso decisivona evo- Tugio de vossa carreira comega a se verificar al- gues décadas mais tarde, cerca de 1850. Vos- sa profissio, como oficio do Estado, nao é, pois, nada antiga, ¢ este detalhe da idade de vossa profissdo é de enorme importancia, porque a histéria e tudo que é histrico, quer dizer, 0 humano, é tempo vivente, eo tempo vivente é sempre idade. Portanto, tudo que é humano ‘est sempre ou em sua infaincia ou em sua ju- ventude, em sua madureza ou em sua velhice. Receio um pouco haver -mostrado para vés, de passagem, essa perspec- tiva como se fosse através de uma clarabéia de ‘meu discurso, porque temo que me perguntels, com veemente curiosidade, em qual idade eu creia que esteja vossa profissao, e se ser biblio- tecario é ser algo historicamente jovem, ma- duro ou caduco. Veremos, veremos se afinal poderei sugerir-vos algo sobre o tema! 2 Voltemos antes, porém, a0 ponto da evolugao onde estévamos, 0 mo- ‘mento em que, hd aproximadamente cem anos, a profissao de bibliotecadrio foi oficialmente constituida. O incidente mais importante — cettamente pensareis comigo — que pode acontecer a uma profissio é passar de ocupa- ‘slo espontaneamente fomentada pela socieda- dea burocracia do Estado. A que se deve mu- danga to importante? Ou, pelo menos, isso & sintoma de qué? O Estado é também a socie~ dade, mas nao todaela. E apenas um modo ou porcio dela. A sociedade, por néo set o Esta- do, procede por meio de usos, costumes, opi- nido piblica, linguagem, mercado livre, ete; ‘em suma, por meio de vigéncias imprecisas e difusas. No Estado, em compensagiio, 0 caré- ter de vigéncia efetiva, prépria de todo 0 soci- al, adquire sua maxima poténcia ese torna, por assim dizer, algo sélido, perfeitamente claro e preciso. O Estado procede por meio deleis, que io enunciados terrivelmente taxativos, de ri- {gor quase matemético. Por isso mostrava eu antes que a ordem estatal é a forma extrema do coletivo, o superlative do social. Se aplicar- _mos isso a nosso problema presente, teremos que uma profissdo nao se tomnard oficial, esta- 23 tal, ando ser no momento em que a necessida- de coletiva por ela servida se torne sobremo- do aguda, em que ndo seja sentida como sim- ples necessidade mecanica, mas como necessi- dade ineludivel, literalmente como urgéncia. O Estado nao admite em sua drbita propria ocupagées supérfluas. A sociedade sente, em cada momento, que deve fazer coisas, mas o Estado cuida para nao intervir, a nao ser na- quelas que, pelo visto, tém, irremediavelmen- te, que ser feitas, Houve época em que se acre- ditava ser imprescindivel para a existéncia da sociedade consultar os auspicios e outros si- nais misteriosos que os deuses enviavam aos ovos. Por essa razao, a cerimOnia de inaugu- ragio tornou-se instituicao e atividade oficial, € 08 éugures e artispices formavam uma buro- cracia importantissima, A Revolugo Francesa havia transformado, passacla sua melodramé- tica turbuléncia, a sociedade européia. A sua antiga anatomia aristocrética sucedeu uma anatomia que se dizia democratica. Esta socie- dade foi a conseqiiéncia tiltima daquela fé no livro sentida pelo Renascimento. A sociedade demoeritica é filha do livro, é 0 triunfo do li- vvr0 escrito pelo homem escritor sobre o livro 4 revelado por Deus e sobre o livro das leis dita- das pela autocracia. A rebelido dos povos se fizera em nome de tudo isso que denomina- mos razdo, cultura, ete. Estas entidades vagas vieram ocupar no coraco dos homens a mes- ma posigo central antes ocupada por Deus, outra entidade nao menos vaga. Ha uma es- tranha propensio nos homens a alimentar-se, principalmente, de vaguezas. Ocorre que, por volta de 1840, 0 livro ja ndo ¢ necessidade meramente no sentido de desejo ou esperanca, mas, uma vez demitido Deus, volatilizada a autoridade tradicional e carismética, nao sobra outra ins- tncia diltima sobre a qual apoiar todo o social, a nao ser 0 livro. E preciso, pois, agarrar-se a ele como a uma tabua de salvacdo. O livro tor- ‘na-se socialmente imprescindivel. If a época, Por isso, em que surge o fenémeno das enor- mes tiragens. As massas atiram-se aos volumes ‘com uma avidez, quase respiratéria, como se fossem bal6es de oxigénio. ‘A conseqtiéncia disso foi que, pela primeira vez na histéria do Ocidente, acultura tornou-se uma ragione di Stato, O Bs- tado oficializa as ciéncias e as letras. Reconhe- ceno livio uma fungio publica eo considera um 25 organismo politico fundamental. Em virtude disso, a profissdo de bibliotecario se converte em burocracia, por uma razio de Estado. Chegamos, pois, no pro- «cesso da hist6ria, no processo da vida humana européia, & fase em que o livro se tornou uma necessidade imprescindivel. Sem as ciéncias, sem as técnicas, no podem, materialmente, existir estas sociedades tao densas de popula- ‘Go € com to alto nivel de vida. Muito menos podem viver moralmente sem um grande re- pertério de idéias. A tinica vaga possibilidade ara que a democracia chegasse a ser efetiva consistia em que as massas deixassem de ser massas As custas de enormes doses de cultura, entendla-se, cultura efetiva, brotando de modo inquestiondvel em cada homem, nao simples- mente recebida, ouvida ou lida. O século xx percebe isso desde 0 inicio com plena clareza. E umerto acreditar que esse século experimen. tasse a democracia sem levarem conta, apriori, sua improbabilidade, Viu perfeitamente o que cra preciso fazer ~ relede Saint-Simon, Auguste Comte, Tocqueville, Macaulay —, e tentou fa- ‘*Omesmo processo qu na China, onde nio havia Devens ‘uma forte autoridace, det oigent a0 mandarinato, 26 zé-lo. No entanto, éforgoso reconhecer que pri- ‘meio com tibieza e depois com frivolidade. Mas deixemos isso de lado e passemos ao que por ora se reveste de maior interesse para nés, Chegamos ao ponto final — e afirmo que é final para aliviar vosso cansaco de ouvintes —, a0 ponto final que exi- ge de nés o mais vigilante esforgo de atencao, porque o tema do livro e do bibliatecério, até aqui tio placido, quase idilico, ra logo transfor- mar-se em drama. Esse drama, ento, constitui- x4, em minha opinido, a mais auténtica misséo do bibliotecério. Atéagora haviamos visto ape- zag o que foi essa missio, como se configurava noseu pasado, Agora, porém, surgira diante de nds 0 perfil de uma nova tarefa, incompara- velmente mais elevada, mais importante, mais, essencial. Caberia dizer que até agora vossa profissdo tem vivido apenas as horas de jogo e prelidio — Tanz und Vorspiel. Agora vem 0 momento sétio, porque aqui comeca o drama, © A nove missio Até meados do século xx nossas sociedades do Ocidente sentiam que o livro era uma ne- a cessidade para elas, mas uma necessidade de sinal positivo, Esclarecerei brevemente 0 que entendo por essa expressio. Como de inicio vos di- ia, essa vida com a qual nos encontramos, que nos foi dada, nao nos foi dada pronta. Temos ‘que construi-la para nés. Isso quer dizer que a vida consiste em uma série de dificuldades que 6 preciso resolver; umas, corporais, como ali- mentar-se; outras, chamadas espirituais, como nao morrer de tédio. © homem reage a essas, dificuldades inventando instrumentos corpo- rais ¢ espirituais, que facilitam sua luta contra elas. A soma dessas facilidacles que o homem. ria para si é a cultura, As idéias que forjamos sobre as coisas sao 0 melhor exemplo desse ins- trumental que interpomos entre nés e as difi- culdades que nos rodeiam. Uma idéia clara sobre um problema é como um aparelho ma- ravilhoso que converte sua angustiante dificul- dade em divertida e dgil facilidade. Mas aidéia 6 fugaz; por um instante nos ilumina a clarida- de, como magica, de sua evidéncia, mas logo se extingue. E preciso que a meméria se esfor- ‘ce por conservé-la. Mas a meméria nao é se- ‘quer capaz. de conservar todas nossas propt as idéias, e é muito importante que possamos 28 conservar as de outros homens. fi tao impor- tante que ¢ isso 0 que mais caracteriza nossa condigéo humana. O tigre de hoje tem que ser tigre como se jamais houvesse existido tigre al- gum: nao tira proveito das experiéneias mile- nares por que passaram seus semelhantes no profundo fragor das selvas. Todo tigee é um primeiro tigre; deve comecar desde 0 princi- pio sua profissao de tigre. Mas 0 homem de hoje no comega sendo um homem, mas, a0 contratio, herda as formas de existéncia, as idéi- as, as experiéncias vitais de seus ancestrais e parte, portanto, do nivel representado pelo passado humano acumulado sob seus pés. Em face de qualquer problema, 0 homem nao se ‘encontra sozinho com sua reagéo pessoal, com ‘0 que lhe ocorre voluntariamente, mascom to- das ou muitas das reagdes, idéias e invengdes de seus antepassados. Por isso sua vida ¢ feita coma acumulagio de outras vidas; por isso sua vida € substancialmente progresso. Nao dis- ‘cutamos agora se progresso para melhor, para pior ou para nada. Dai que fosse tio impor- tante acrescentar ao instrumento que é a idéia ‘um instrumento que reduzisse a dificuldade de conservar todas as ideias. Este instrumento 29 6 olivro. Inevitavelmente, quanto mais se acu- mule do passado, maior sera 0 progresso. E aconteceu que mal a imprensa resolveu o pro- blema técnico da existéncia de livros, 0 tempo? da histéria, a velocidade do progresso, come- ‘gou a acelerar, alcangando em nossos dias wim ritmo que mesmo para nés parece vertigino- ‘0, sem falar do que pareceria ahomens de épo- ‘cas mais vagarosas. Porque, senhores, nao se trata apenas de que nossas maquinas produ- zam a velocidades espantosas, de que nossos veiculos desloquem nossos corpos com uma celeridade quase mitolégica. Trata-se de que a realidade total que é nossa vida, 0 volume in- teiro da histéria, aumentou prodigiosamente a freqiiéncia de suas mudangas, e, portanto, seu movimento absoluto, sett progresso. Tudo isso devido, principalmente, 4 facilidade que o li- vro representa. Eis por quenossas socie- dades sentiram o livro comonecessidade: a ne- cessidade de uma fecilidade, de um instrumen- to benéfico, Mas imaginai que o instrumento inventado pelo homem para facilitar-The uma dimensao da vida se converta, por sua vez, em * fm tatiana, no orginal: andamento (s.) 30 uma nova dificuldade, que se rebele contra 0 hhomem, que se torne insubmisso eindécil, que provoque efeitos nocivos antes imprevistos. Nem por isso deixar de ser necessiriono sen- tido de facilitar aquele problema em vista do qual foi inventado. O que acontece é que, ade- mais, e exatamente por ser necesséio para iss0, ‘vem acrescentar & nossa vida umanova e ines- perada angiistia. Antes era para nés pura faci- lidadee, portanto, representava em nossa vida tum fator que tinha tio-somente sinal positivo. Agora, sua relagao conosco se complica e se carrega com sinal negativo. Pois bem, senhores, este caso néo é hipo- tético, Tudo que o homem inventa e cria para facilitar-lhe a vida, tuclo que chamamos civili- zagio ¢ cultura, chega a um ponto em que se rebela contra ele, Precisamente porque é uma ctiagao, permanece no mundo, fora do sujeito que 0 criou, goza de existéncia prépria, con- verte-se em coisa, em mundo perante 0 ho- mem, ¢, langado a seu destino particular inexorivel, separa-se da intengao corn que 0 hhomem o criou para se livrar de um apuro oca- sional. E 0 inconveniente de ser criador. Ao Deus do cristianismo jé aconteceu isso: criou o anjo de grandes asas misticas e 0 anjo se rebe- Pr lou contra Ele. Criou o homem sem asas, exce- toas da fantasia, mas o homem também se re- belou, revoltou-se contra ele e comecou a lhe causar dificuldades. Maravilhosamente,o car- deal Cusano’ dizia que ohomem, por ser livre, ctia, mas livre e cria inserido no instante tem. poral, pressionado pela circunstincia, e por isso merece o titulo de Deus accasionatus, ‘Deus de ocasiio’, Por isso, suas criagdes também se revoltam contra ele. Hoje vivemos uma épo- ‘ca muito caracteristica desse tragico incidente, A economia, a técnica eas facilidades que o ho- ‘mem inventa sitiaram-no hoje e ameagam es- trangulé-lo. As ciéncias, ao crescer espetacu- Jarmente, multiplicar-se eespecializar-se, ultra Passam as capacidades de aquisi¢ao que o ho- mem possut ¢ o afligem e oprimem como pra- gas da natureza, Ohomem corre o risco de con- verter-se em escravo de suas ciéncias. O estudo nao € mais o otium, a skholé como na Grécia, Comega jé ainundar a vida do homem e ultra- Passar seus limites. A inversio caracteristica dessa rebelifo das criagSes humanas contrasett ? Nicolas de Cusa (1401-1464) fsofoeematemstic alemio, naseido em Kies. (4:7) 32 criador ¢ iminente. © homem, ao invés de es- tudar para viver, terd que viver para estudar. De uma ou outra manei- ra isso jé aconteceu varias vezes na histéria. 0 homem se perde em sua prépria riqueza: sua prépria cultura, vicejando tropicalmente ao seu redor, acabou por asfixié-lo, As chamadas cri- ses histéricas sto, afinal, apenasisso. Ohomem fio pode ser demasiadamente rico: se um ex- cesso de capacidades e possibilidades se ofe- rece a sua escolha, naufraga nelas ¢, confundi- do pelas possibilidades, perdeo sentido done- cessirio.* Este foi permanentemente 0 trégico destino das aristocracias: todas, ao fim e a0 cabo, degeneram, porque 0 excesso cle meios, de facilidades, atrofia sua energia. Seré demais convidar- ‘vosa refletir sobre se as sociedades do Ocidente ‘ndio comecam a sentir o livro como instrumen- to rebelado e como nova dificuldade? Na Ale- ae manha lé-se o livro do senhor Jiinger,* onde encontramos frases mais ou menos como esta: “Pena que tenhamos chegado a esta altura de nossa histéria sem uma quantidade suficiente de analfabetos!” Direis que isso é um exagero. Mas nao tenhamos ilus6es: um exagero ésem- pre o exagero de algo que nio 0 €. Em toda a Furopa existe a impressio de que ha demasiados livros, 20 contrétio do que acontecia no Renascimento. O livro deixou de ser um desejo e € sentido como um peso! O préprio homem de ciéncia adverte que uma das grandes dificuldades de seu trabalho esta em orientar-se na bibliogra- fia de seu tema. Nao esquecais que sem- pre, quando um instrumento criado pelo ho- mem se revolta contra ele, a sociedade, por sua vez, se revolta contra aquela ctiagao, duvida de sua eficdcia, sente antipatia por ela e exige que cumpra sua primitiva missdo de pura facilidade. ‘Temos, pois, uma situa- ‘do dramatica: o livro é imprescindivel nesta etapa da histéria, mas o livro corre perigo por- que se tomou um perigo para o homem. ¢ mst finger (1895-1958) romancista censait alemfo. (vr) 4a Pode-se dizer que uma necessidade humana deixa de ser puramente positiva e comecaa carregar-se de negatividade ‘no momento em que comea a parecer impres- cindivel.* De fato, no convém que algo seja rigorosamente imprescindivel, mesmo que 0 possuamos em abundancia e queseu tiso.e pro veito ndo venham a criar mais uma dificulda- de paranés. O simples carter deimprescindi- + toda neces human Sees pd a form, er gualifcadadeimprescindivel so dbvio. Stas sce tentarchegar aim comet claro de newessidade ‘i obigaoredade logo se descabre um duplo sigrfieado cyesera preci tbl ao ero impresiniveNGopos- Sagal determescbreo eae elit atraraeeverpala- ‘raid curso sobre’ Drncipioe detalii, que mitch tm 1983, na Universidade Madrid do qual slg rechos foram publics, "Chamo secesidade Fumana tudo aqui- lodqeu sentido como ieraimnte imprescnaivel isto 6 {ca mo gun eo acranon oe ie o 1 ebora posnmos de fata dss preslnd,coninari SS Sveti om un vaio ou cence em now vids ‘Roi, comer ¢ uma necesidadeIteralmenteimpescndt Sel Mis elie eae liz de determinado jet, tambo lima necesidad, No entato, no somos flies ito & de tno presindines da edad eviveron nfl, Mas — coat nsmnagio dese preinmonda fbeidadepere- Tasempreativaem nis, Diese que ser fli nfo 6a ne- Cessidae, nas um mero desea De fat, mas iso nos mes {Te que enquanonmtosdenosso ess so apenas dese jos porta, algo de que podemos presindt por comple- {Gem que eta endnca deine ua mutlagSo, ma amp 35 vel faz. com que nos sintamos escravizados a isso. Nesse sentido, cabe dizer que as necessi dades sociais tornam-se propriamente assun- to de Estado quando ja sao negativas. Por isso é tao triste ¢ penoso tudo que é estatal, sem que haja modo de dele extirpar por completo um desagradavel aspecto de hospital, quartel ou cércere. ; No entanto, o pleno ca- Titer negativo brota quando o instrumento cri- ado como facilidade suscita espontaneamente uma dificuldade imprevista e se volta agressi- vamente contra o homem. Iss0 6 o que hoje co- mega a acontecer com 0 livro e que fez com queem toda a Europa desaparecesse quase por completo a antiga alegria diante do impresso. O que significa para mim que vossa profissio inicia sua idade madura, ‘Sea vida é trabalho, quer dizer que cada idade dela se diferencia pelo estilo predominante na atividade do homem. A juventude nao costu- tng um vce nse vide —, hi outa dag de ge, ‘ime dees, podemos pressor toe uc ot le fo teamos deveined gus tle deh. des, no podermos presen dels co bora qetamos, or hse qu of Snemos ne 36 ma fazer o que faz porque tenha que fazé-lo, por consideré-lo inescusavel. Ao contrario, quando percebe que algo ¢ compulsério, ine- ludivel, procuraré evité-lo e, se ndo © conse~ guir, cumpriré a tarefa com tristeza emé von- tade. A falta de ldgica que isso implica perten- cao tesouro magnifico de ineongruéneias em que, por sorte sua, consiste a mocidade. O jo- ‘vem somente embarca com entusiasmo naque- las ocupagdes que se Ihe apresentam com oas- pecto de revogaveis, isto é, que nao sao com- pulsérias, que poderiam perfeitamente ser substituidas por outras, nem mais nem menos oportunas e recomendaveis. © jovern precisa pensar quea todo momento esté em sttas mos largar uma tarefa e pegar outra, como que evi- ta sentir-se prisioneiro de um tinico trabalho. Em suma, 0 jovem nao se subjuga ao que faz, ‘ou, 0 que dé no mesmo, embora 0 faa com todo o esmero e herofsmo, nao o faz quase nunca completamente a sério, e em seu intimo secreto rechaca sentir-seirrevocavelmente com= prometido e prefere ficar em permanente di ponibilidade para fazer outra coisa diferente & ‘mesmo oposta, Deste modo, sta ocupacio con- creta se Ihe aparece como um mero exemplo das inumeraveis outras coisas a que poderia 37 dedicar-se naquele instante. Gragas a este ar- dilintimo consegue virtualmente o que ambi- ciona: fazer todas as coisas ao mesmo tempo, ser, com uma tinica cartada, todos os modos de ser humano. F intitil tentar negar: 0 jovem: & por esséncia pouco leal consigo mesmo e se esquiva de sua missio, Seu fazer conserva algo de brinquedo infantil e é quase sempre mero ensaio, prova, éckantillon sans valeur.* A idade madura se comporta de modo posto. Bla sente a fruigio da realidade e a re- alidade do fazer é exatamente 0 contrério do que é capricho, daquilo que pouco importa fa- zer ou deixar de fazer, mas o que parece ines- cusavel e urgente. Nessa idade a vida chega & verdade de si prépria e descobre este trulsmo cessencial: nao se podem viver todas as vidas, ‘mas, a0 contrétio, cada vida consiste em des- viver todas as outras, fieando sozinho consi- g0. Esta vivida consciéncia de que nio possa- ‘mos ser ou ndo possamos fazer mais de uma coisa de cada vez torna-nos mais exigentes na escolha de qual seré ela, Repugna-nos o narci- sismo juvenil que faz qualquer coisa precisa- ‘mente por ser qualquer coisa e, no entanto, + Amostea gris. (vn) 38 acredita vaidosamente estar fazendo algo. Para a maturidade a tinica coisa que the costuma parecer digna de ser feita seria aquilo que é ilusério evitar porque é inescusavel. Dai sua preferéncia pelos problemas que so superla- tivos, pelos problemas que ja sdo contflitos, ne- cessidades de sinal negativo. Se transferirmos esta di- ferenca entre as idades da vida pessoal para a ‘vida’ coletiva e as profissdes, descobriremos como vossa profissio chega a0 momento de ter que se haver com o livro na condigao de contlito. # aqui, portanto, onde vejo surgir a nova misao do bibliotecério, in- comparavelmente superior a todas as anterio- res. Atéhojeeela tem se ocupado principalmen- te do livro como coisa, como objeto material A partir de hoje terd que cuidar do livro como fangio viva: tera de exercer a policia do livroe tornar-se domador do livro enfurecido, % O Livro como conflito (Os mais graves atributos negativos que come- amos hoje a perceber no livto so: 39 1.) Jéhallivrosem dema- sia, Mesmo reduzindo bastante o riimero de temas a que cada homem dedica sua atencio, a quantidade de livros que ele precisa absor- ver é tio gigantesca que supera os limites de seu tempo e sua capacidade de assimilagao, A ‘mera orientagao na bibliografia de um assun- to representa hoje para cada autor um esforco. consideravel, em que perde muito tempo. Mas, ‘uma vez despendido esse esforgo, constata que nao pode ler tudo o que deveria ler. Isso 0 leva aller as pressas, a ler mal e, ademais, deixa-o com uuma impressao de impoténcia e fracasso, a0 fim eo cabo, de ceticismo em relagéo & sua propria obra, Se cadanova geracéo con- tinuar acumulando papel impresso na mesma Proporgao em que o fizeram as tiltimas gera- Ges, 0 problema que o excesso de livros cau- sara seré aterrador. A cultura, que havia liber- tado 0 homem da selva primeva, langa-o de novo em uma selva de livros, néo menos inex- tricével e sufocante. E init querer resolver © conflito supondo que nao existe essa neces- sidade de ler 0s livros acumulados pelo passa- do, que se trata de um dos muitos Ingares-co- 40 muns, vazios de significado, inventados por essa beataria da ‘cultura’, vigente ainda em al- guns espiritos hé poucos anos. A verdade é 0 contrério. Soba superficie de nosso tempo esta germinando, sem que os individuos 0 perce- bam, um novo ¢ radical imperativo da inteli- _géncia: 0 imperativo da consciéncia histérica, Logo brotara com vigorosa evidénciaa convic- ‘lo de que, se © homem quiser realmente es- clarecer seu ser e seu destino, serd preciso que consiga adquirir a consciéncia histérica de si -mesmo, isto é, que passe seriamente a fazer his- téria, do mesmo modo que, por volta de 1600, passou seriamente a fazer fisica, E essa histé- tia seré nao a utopia de ciéncia que tem sido até agora, mas um conhecimento efetivo. E, para que o soja, faltam muitos ingredientes re- quintados, dos quais 0 mais dbvio é a preci- sio. Este atributo da preciséo, aparentemente formal e extrinseco, 60 primeiro que surge em ‘uma ciéneia quando chega a hora de sua au- ‘téntica constituiggo. A histéria que se faré ama- nha nao falara tao superficialmente de épocas € centétias, mas articularé 0 passado em eta- pas muito curtas de carter orgnico, em gera- ‘Ges, ¢ tentaré definir com todo rigor a estru- tura da vida humana em cada uma delas. E, 41 ara fazer isso, nfo se contentaré com desta- car uma ou outra obra que arbitrariamente se qualifiquem como ‘representativas’, mas pre- cisaré, de modo real ¢ efetivo, ler todos os li- vros de uma época ¢ identificé-los criteriosa- mente, chegando a estabelecer o que eu cha- maria uma estatistica das idéias’, a fim de de- terminar com todo rigor o instante cronolégi- co quando nasce uma idéia, 0 proceso de sua difusdo, 0 perfodo exato durante 0 qual per- dura como vigéncia coletiva e, por fim, a hora de seu deciinio, de seu anquilosamento como ‘mero lugar-comum, enfim, seu ocaso além do horizonte do tempo hist6rico. Essa enorme tarefa ja- mais poderd ser concretizada, a nao set que 0 bibliotecério trate de reduzir sua dificuldade, na medida do que seja de sua competéncia, li berando de esforgos intiteis as pessoas cuja tris- te missdo & ¢ deve ser ler muitos livros, tantos quantos for possivel: 0 naturalista, 0 médico, © fildlogo, o historiador. E preciso que deixe de ser problema para um autor reunir a biblio- gratia descritivae seletiva sobre assunto de seu interesse. Que isso ainda no ocorra nos dias atuais parece incompativel com este momenta dahistéria. A economia do esforco mental exi- 42 ge isso com preméncia. E, preciso, pois, criar ‘uma nova técnica bibliografica de um automa- tismo rigoroso, Nela alcangaré sua poténcia miéxima 0 que vosso oficio iniciou ha séculos com a figura da catalogacio. 2.0) Mas nao sb de fato existem liveos em demasia, como também so produzidos de modo constante e em abundan- cia torrencial. Muitos deles sio intiteis ou es- ‘tpidos, e sua existéncia e conservagio consti- tuem um astro a mais paraa humanidade, que jdanda excessivamente curvada sob o peso de outras cargas. Ao mesmo tempo, em todas as disciplinas, com freqiiéncia, ¢ sentida a falta de certos livros cuja auséncia prejudicao avan- G0 das pesquisas. Isso é muito mais grave do qque faz supor este vago enunciado. E incalcu- Tavel quantas solugdes importantes sobre as qquestes mais diversas nao chegam a amadu- recer porque tropecam com lactinas em pes- quisas anteriores. © excesso e a escassez. de li- vros tém a mesma origem: a produgao se faz sem governo, abandonada quase totalmente & espontaneidade do acaso. Sera demasiadamente utépico imaginar que em futuro nao longin- quo vossa profissio sera incumbida pela soci- 8 edade de regular a produgao do livro, a fim de evitar que se publiquem os que forem dlesne- cessétios, e que, em compensagio, nao faltem aqueles que so exigidos pelo conjunto de pro- blemas vivos de cada época? Todas as ativida- des humanas comegam com um exercicio es- ontneo e sem regra. Mas todas elas, quan- do, devido a sua propria extensao, se compli- cam e atropelam, entram em um periodo em quese submetem a organizacio. Parece-me que chegou a hora de organizar coletivamente a producio do livro. Para o proprio livro, como modo humano, éuma questo de vida ou mor- te, E que nao se venha com a bobagem de que tal organizagao seria aten- tatdria 4 iberdade. A liberdade nao surgiu no planeta para garrotar 0 senso comum. Porque alguns quiseram empregé-la com essa finali- dade, porque pretenderam dela fazer o gran- de instrumento da insensatez, & que a liberda- de est atravessando no mundo um mau mo- mento. A organizagdo coletiva da produgao de livros nada tem a ver com o tema da liberda- de, como nada tem a ver ele com a necessida- de que se impés de regulamentar o transito nas grandes cidades. Além de tudo, essa organi- 4 zacio — dificultar a edigéo de livros intiteis ou tolos e promover a de determinadas obras cuja auséncia é prejudicial — nao precisaria ter caréter autoritirio, como nao o tem a organi- zag&o intema dos trabalhos em uma boa aca demia de ciéncias. 3°) Por outro lado, 0 bliotecdrio do futuro teré que orientar o leitor no especializado na selon seloaggiat dos livros, e ser 0 médico, o higienista de suas leituras, ‘Também neste ponto defrontamos uma situa- 40 com sinal invertido em relagao & de 1800. Hoje em dia, lé-se demais: a comodidade de poder receber com pouico ou nenhum esforgo inumerdveis idéias armazenadas nos livrose pe- riddicos vai habituando 0 homem, jé acostu- mou o homem comum, a ndo pensar por sua conta e ano repensar o que Ié, tinica maneira de se apropriar verdadeiramente do que leu. 4+ Nel mezzo del cammin i nostra vita /mi ova per una selva oseura /ché la rita vin era smarrita, Abi quanto a ir qual era cosa dura /esta selva selvaggia © spre e forte {che nel pensiorrinova la paural” Tradusso de Cristiano Martins: “A meio do caminto desta vida /achei-me a errr or uma selva escura, /longe da boa via, entio perdi. / [Ald Mostrar quali Gempresa dura, /essa selva Selvagern, dlensae fort, / queso relembrélaa mente tortura!” (Dante ‘A divin coméi, canto 1-63 0.2.) 45 Este€ 0 cardter mais grave, mais radicalmente negativo co livro. Por isso merece quea ele de- diquemos, como o farei em seguida, nossas til- timas consideragées. Boa parte dos terriveis problemas ptiblicos hoje existentes procede do fato dea cabeca do homem comum estar abar- rotada de idéias recebidas por inércia, compre endidas pela metade, desvirtualizadas — abar- rotada, portanto, de pseudo-idéias. Nesta di- mensao de seu oficio imagino o futuro biblio- tecdrio como um filtro que se interpde entre a torrente de livros eo homem. Em suma, senhores, em minha opinio, a missao do bibliotecario deve- 14 ser, nao como até hoje, a mera administra- fo da coisa chamada livro, mas 0 ajustamen- to, a mise au point da fungio vital que é 0 livro. & O que é um lioro?* Fala-se muito, ¢jé estou falando um pouco, so- bre a misao do bibliotecério, sobre o que ele * As piginas que se seguem até o fim fcarnm reduzidas a lgumas linbas, quando da letura deste discs, para nao ‘ansar os ouvintese porque seu conte, im pouto diff, nose presta a sr faslmante entendilo. 46 faz ou deve fazer com os livros. Mas é curioso que, 20 falar disso, nao se costume falar sobre © préprio livro, sobre essa entidade cuja ges- tio constitu a profissio do bibliotecério. Na~ turalmente, quem nos ouve sabe o que é o lie vroe, além disso, o tem presente na meméria. Nao é ut6pico? E mais, tem direito quem ouve, ‘6s, neste caso, a supor que aquele que fala sabe o que 60 livro eo tem presente? Nao cor- remos 0 risco de que ele préprio, ao pensar 0 quenos diz, d8 isso como certo e, portanto, que jamais haja pensado nisso pelo simples fato de acreditar que 0 sabe desde sempre, que é ‘coi- sa sabida’? Em muitas esferas inte- lectuais isso acontece sem parar: que infinitas vvezes damos como ‘certo e sabido’ o que é es- |,o substantivo, Essa é uma cas mais gra- ves doengas do pensamento, principalmente do pensamento contemporéneo, Pois tudo que ¢ pensado ou ouvido sobre, por exemplo, o livro, em que no atue com pleno vigor a consciéncia sensi- vel do que €o livro — essa tremendia realidade humana que éo livro —, carecerd de sentido au- ‘Gntico, serd coisa morta, frases cujo sujeito no entendemos e, portanto, puro despropésito. a7 Nao pretendo que seja preciso, sempre que se fala sobre livro, fazer ‘uma longa dissertagio sobre o que ele & E-me indiferente se so necessarias muitas ou pou- cas palavras: exijo apenas as que sio suficien- tes, e para bom entencledor meia palavra basta, Por este motivo, nfo por- ‘que o ignoreis, mas porque em um congresso como este convém partir de uma consciéncia muito aguda em que conste o que é 0 livro, porque a dignidade de vossa reuniao exige uma espécie de garantia oficial de que isso acontega. E por isso que me vejo obrigado a vos lembrar 0 que ja conheceis melhor do que eu: o que é um livro, Faz vinte e trés séculos que Platéo, no Fedro, esforgou-se para deixar isso esclarecido. Abram-se as paginas e por ali passa todo.o processo do livro. Relede esse ma- avilhoso didlogo onde se define a asa, define- seo anjo, define-se a alma, define-se o livro! Se adicionarmos alguns complementos a0 texto platénico, teremos o soguinte: Os livros sio “dizeres escritos” — Adyous yeypayyévous, 275¢— edi- zer, é claro, constitui apenas uma das coisas que 0 homem faz, Ora, tudo 0 que se faz, faz~ 48 se para algoe por algo; estes dois ingredientes definem o fazer e, gracas a eles, existe no uni- verso semelhante realidad, f um grande erro confundi-la com o que se costuma chamar ati- vidade: 0 atomo que vibra, a pedra que cai ea célula que se multiptica atuam, mas nao ‘fa- zem’, O proprio pensar e o proprio querer, como estritas fungdes psiquicas, sfo atividades, mas nio sio ‘fazer’. Quando mobilizamos para algo e por algo nossa atividade de pensar oua atividade denossos misculos, entéo’fazemos’ propriamente algo. Dizemos: “Ondeestio as chaves?”, “A esquerdal”, “Meu amor!” Em to- dos estes casos a finalidade de nosso dizer, sua justificagtio, encontra-se fora dele, mais além, Dizemos isso precisamente para que certas coi- sas acontegam, para poder abrir um armario, ara que se ande em uma tinica diregéo, para que a mulher amada conhega nosso sentimen- to ou que este se deleite consigo mesmo em. sua exteriorizagio. Mas quando o gedmetra enuncia um teorema da geometria, que acaba de descobrir, ele nao se propée com seu dizer nada mais do que isso. Ao contratio, o que se propie édeixé-lo dito e nada mais. Odizer tem 49 aqui em si préprioa finalidade e a justificacio. (© mesmo acontece com o soneto & rosa. © po- eta faz 0 soneto, que é um dizer, precisamente por fazé-lo, para que o soneto exista, para que seu postico dizer sea. Nesta segunda espécie de dizeres aparece, portanto, o dizer substan- tivado e rico de um valor que Ihe é imanente. Por que esta diferenca tio radical com relacéo aos casos anteriores? Sem diivida porque o ge- dmetra cxé haver dito sobre o tridngulo no o que lhe convém para tal ou qual finalidade, mas 0 que é preciso dizer sobre ele, como ao po- eta Ihe parece haver dito sobre a rosa 0 que sobre ela deve ser dito. Naqueles casos empre- gava-se o dizer como um meio, postoa servigo de utilidades foraneas, enquanto aqui o dizer é finalidade do préprio dizer, satisfaz-se e se justifica com sua simples execugio. Mas issonos leva, ao mesmo tempo, a suspeitar de que o fa- zer vital, a fungao viva que é 0 dizex, culmina rnaquele de seus modios que consiste em dizer oqueé preciso dizer sobre algo, e que todos os outros modos sao utilizagées secundarias e su- balternas daquela fungi. Somente este dizer exige essencialmente sua conservagao €, portanto, 50 que petmanega escrito, Nao tem sentido pre- servar nossa frase cotidiana: “Onde estdo as chaves?”, motivada por uma urgéncia transi- t6ria, Existe um pouco mais de sentido em fi- xat em um eartaz. piblico o imperativo muni- cipal: “Dobre & esquerda” ¢, em geral, escre- ver as leis para que fiquem registradas para todos e produzam suas conseqiiéncias sociais. ‘Mas isso ndo significa que aquilo que é dito na lei merega ser conservado por si mesmo e sim- plesmente porque foi dito. livto & pois, o dizer exemplar que, por isso mesmo, traz em si es- sencialmente 0 requisito de ser escrito, fixado, pois, a0 ser escrito, fixado, é como se virtual- mente uma voz anénima o estivesse dizendo sempre, assim como os ‘moinhos de oragoes’, no Tibete, incumbem ao vento orar perpetua- mente. Este & 0 primeiro momento do livro como auténtica fungao vivente: que est, em. poténcia, dizendo sempre o que preciso di- zet — v6 Béovte. eipnydr0s, 240, Existe, portanto, um abu- so substancial da forma de vida humana que é © livro, sempre que alguém se poe a escrever ‘um livro sem ter antecipadamente algo a di- zer do que existe para dizer e quendo haja sido esctito antes, Enquanto 0 livro foi anseio indi- vidual conservou-se seu sentido auténtico com relativa pureza. Fazer livros, porém, to logo se converteu em interesse social passou a ser uma atividade econdmica ou de prestigio, co- mecou a fabricagio do falso livro, de objetos impressos que se aproveitam do fato de terem ‘uma aparéncia que se parece com a do verda- deiro livro. Isso nao deve nos surpreender por- que obedece a uma lei que faz. parte do social. Em coniparacao com a vida pessoal, tudo que &coletivo & mais ou menos, inauténtico e en- ganador, Somente a ignoréncia pavorosa hoje existente sobre o que seja propriamente a’ vida’ coletiva, asociedade, ete. impede a clara visio disso. © que dissemos até ago- 1a ndo basta para saber o que & um livro. bvio sentir alguma curiosidade sobre o que acontece a umn dizer quando é fixado, isto & quando é escrito. Evidentemente, tenta-se assim proporcionar ao dizer algo que no tinha em a permanéncia. O dizer, como tudo que vive, é fungivel, Nele, nascer j é comegar a morrer. O dizer & tempo e o tempo é 0 grande suicida, Gragas amemétia,o homem pode salvar um pou- co do que disse ow do que ouviu da fulminan- te decadéncia intrinseca a tudo que é tempo- zal, Antes do livromanuscrito nao havia, de ato, outra forma em que se pudesse conservar e acumular o saber pretérito — do passado de si mesmo ou de outrem —, anfo ser a meméria, Ocultivo da meméria com essa finalidade con- creta chegou, por exemplo, na fndia, a resuilta- dos quase prodigiosos. A meméria, porém, é intransferivel, é adscrita & pessoa. Eis um dos fundamentos mais vigorosos para a autorida- de dos anciios: eram os que sabiam mais por- que tinham maior meméria, eram mais livros vivos' do que os jovens, livros, por assim di- zer, com mais paginas. A invengao da escrita, porém, 20 criar 0 livro libertou da meméria o saber e acabou com a autoridade dos ancitos. O livro, ao objetivar a meméria, materializando-a, torna-a, em prin- cipio, ilimitada e coloca os dizeres dos séculos a disposigao de todo o mundo. Mas sera isso mesmo verdade? Teré o alfabeto poder tao magico que consiga, sem mais nem menos, salvar o viven- te de seu congénito morrer? O dizer que se es- creve fica assim vivo? — Gvta, 275 4. Ou ~ 0 que vem a dar no mesmo — continua dizendo sempre 0 que quis dizer? ‘Tudo que o homem faz © faz em vista das circunstancias. Principal- ‘mente quando o que faz é dizer. O dizer sem- pre brota de uma situagio ese referea ela. Mas, por isso mesmo, ele nao diz essa situagao: dei- xaca técita, pressuposta. O que significa que todo dizer é incompleto, é fragmento de si mesmo e tem, no palco da vida, onde nasce, a maior parte de seu proprio sentido, Imaginem- se todos os pressupostos tacitos sem os quais ‘mais simples enunciado matematico resulta ria ininteligivel. Para entendé-lo seria preciso, pelo menos, haver-se dado conta ce que quem nos fala pretende fazer uma coisa chamada ci &ncia ou teoria. Ora, a ciéncia, a teoria, nao é sendo uma situagio em que o homem se en- controu diante das coisas a partir de uma data determinada e somente em certos lugares do planeta. Essa situagio perdura, no essencial, hd muitos séculos, nela continuamos e, por isso, entenclemoso enunciadomatematico, Mas nao foi sempre assim nem ha garantia de que per- dure indefinidamente. Isso nos coloca de imedi- ato diante de um paradoxo, em si impertinen- te, mas que¢ ineludivel, asaber:o dizer se com- poe sobretudo de siléncios, de coisas que, por ea serem sabidas, se calam, ou que sfo completa- mente ineféveis e nas quais, no entanto, se apéia, como em uma terra nutriz, 0 que efeti- vamente declaramos, Nossas palavras so, a rigor, inseparaveis da situagio vital em que surgem. Sem esta carecem de sentido preciso, isto é, de evidéncia A escrita, pois, ao fixar tum dizer, somente pode conservar as palavras, ‘mas ndo as intuigées vivas que integram seu sentido. A situagao vital onde brotaram se volatiliza inexoravelmente; 0 tempo, em seu galope incessante, leva-a na garupa. O livro, pois, ao conservar aperias as palavras, conser- vva somente as cinzas do pensamento efetivo. Para que este reviva e sobreviva nao basta 0 livro, E preciso que outro homem reproduza em stia pessoa a situagao vital a qual aquele pensamento respondia, Somente entéo poder- se afirmar que as frases do livro foram en- tendlidas e que odizer pretérito foi salvo. Platio expressa isso ao dizer que somente entéo os pensamentos do livro sao filhos legitimos — vieis yvnaioug, 278 » — porque 56 entio ficam verdadeiramente pensados e recuperam sua evidéncia nativa — évapyeé. Mas isso somente poder fazer quem estiver seguindo o mesmo 55 caminho do autor — 16 tasbrOv twos wenidve, 2764 —, portanto, que antes de ler o livro pen- ou pot conta prépria sobre o tema e conhece suas trilhas. Quando nao se faz isso, quando se 1é muito e se pensa pouco, 0 ivro & ‘um instrumento terrivelmente eficaz para a fal- sificaggo da vida humana: “confiando os ho- mens no escrito, acreditario compreender as idéias, e assim as tomam por sua aparéncia, g1acas a indicios exteriores, e nao a partir de dentro, por si mesmos [...] Abarrotados de su- postos conhecimentos, quendo adquiriram de verdade, julgar-se-Ao aptos para julgar tudo, quando, a rigor, nada sabem e, ademais, fica rio insuportiveis porque, ao invés de sdbios, ‘como se imaginam, serdo apenas carregamen- tos de frases” 275, Assim falava Plato ha vin- tee trés séculos, Revisa de Oceldeme, malo, 1988. 56 Posfacio da tradugao 7 Foi usado nesta traducia, como testo de partida,o de Mision el bibigecnio (ie Obras compas, v.58, p. 207-29, Madi ‘Alianza Editorial, 1983). Consultadas a teaduedo para o fran- ‘8s (isson di bbiodcnr ida por Ortega y Gasset na aber- turado congress publicada em Archives et Botha, Rete «de Documentation Cladale (0.2 p 65-86, 1995) entio reeéa- fandada em Pars que circulot até 199; a traducio para 0 inglés de James Lewis e Ray Carpenter (Antioch Renew, Yellow Springs of, v.21. 2,p. 139-154, Summer 1961: ea tradu- { itallana, de Amparo Loeano Maneiro e Claudio Rocco, niseione det bib iotenrio (Carnage Sugaren Edizion, 194). ‘A seguinte nota de rodapé aparece no texto francis: "O S {gundo CongressoInternscinal de BbliotecaseBibliograis, {Que acaba dese realizar em Made e Barcelona, ensejou vi ‘Sscomuncagies importantes, queserao publicadas:nesanais ocongriste. St, Joes Ortega y Cassel, professor ce meta- Fisica na universdade de Mad, houve por bem, entrementes, autorizat Archioe ef Bibiotioques a pubicar 0 belo estudo {sobre a misszo de bibiotcio, com 0 qual foram abertos os. traballios do congresso." 58 Circunstincia e recepcio de Missiio do bibliotectrio [Antonio Acenor Briguer pe Leos Em 1935, fazia pouco mais de nove anos que a onda de movimentos ditatoriais de direita tive ralnicio na Europa ocidental coma vitria dos fas- cistas nas eleigSes para o parlamento italiano. Na dAlemanha,a partir de 1918, terminada a Primeira Guerra Mundial, sucederam-se as crises que acabaram culminando com o fimda chamada Repitblica de Weimar (1919-1993), Com a ascen- sao de Adolf Hitler ao cargo de chanceler (primei- ro-ministro), 0s nazistas logo desencadearam in- tensa e brutal perseguicio aos adversérios politi- 08 € a grupos ou individuos estigmatizados pela ideologia do regime, principalmente a comunida- de judaica 'Na Espanha, a situagdo também era intran- iil, Ali, ocorriam fatos que guardavam parale- Iismo como que se passava na Alemanha. E1923, diante de uma séria crise politica, e depois de um golpe de Estado aplicado pelos militares, o rei ‘Afonso x1 reconheceu o general Primo de Rivera como primeizo-ministro. Foi implantada uma di- tadura que governou o pais até 1990. Acrise, que info era hova, acabou criando as condigSes para a dereubada do governo, Em 1931, 0 rei, sem abdi- 59 cat, fugiu para @ Franga, Foi entéo implantnda a chamaca Segunda Republica, que durarin prat camente até 0 inicio da Guerra Civil Espanhola 1m 1936, Tr8s anos depois, em 1959, terminada a guerra, a Espanhe entrox num dos mais longos ¢ Fepressivos regimes ditatorinis que ocorreramn na Europa, que somente acabaria em 1975, ‘Apesar da sitwacio de instabilidade politica ¢ econbinica, as bibliotecas espanholas diveram tua fase de intenso desenvolvimento, de 1531 a 1936. © governo considerou prioritiria a instal so de bibliotecas populares, e havin dias insti- {uigbesresponsiveis por isso a Janta de intetcar- bioy Adquisicién de Libros, que atuava nas freas urbanas,e 0 Patronato de Misiones Pedagegicas, que trabathava nas zonas rurais, Tarabém as edi- ‘ras livrarias pertciparam de iniciativas que vi- savam & democtatizagéo do acess0 a0 livro, como 4 instalagfo, com recursos préprios, de pequenas Dibliotecas em zonas eurais e a realizagao de fer ras do liveo, Nas palavras ce Martinez Rus, esse perlodo caracterizouse pela “ruptura dos ercui- fos de leitura socialmente restrtos” aié entdo vi gentes; gracas ao programa de bibliotecas es fel es de livros “que iam eo encontro do leitor”* Ooferecimento feito pelo govemo espanhol a Federagao Internacional de Associagdes de Bi- bliotecrios (rua), para que 0 Segundo Congresso Mundial de Bibliotecss® Bibliogra‘in, por ela or ganized, se realizasse em Mad ignvarse ao fato dle haver uma politica biblitecisia, que poderia 60 ganhar impulso com um evento que reunisse bi- Esha denon oes Sern tants guemoninay op pibcntnemonlgue Stell tnd ani Tid sn lina ess pet do antes apron ds ae des em colocar & frente das bibliotecas “bibliote- i popunny spd pore bac mpi dmenesForomle Geen propre ominous ‘Rina tocongeno dM eoaetnas Tinadds mate B85 fhe cone c= Asin cos sets ort Comes Sond Jans elas agent ne cesa de noticias Havas, enviado de Madri: Sieg epee trea Sool Sree riers Sheehan catia modern oa era Orin dale in We ates Un hindse sos psoclidadesdas lta, case aes. Naser fn eda i rept shasta taken ets ihe rete Secuaeera tient tna SSccngei iar 61 O nome de José Ortega y Gasset fora escothido pelas comissGes nao-espanholas da ir. para pro- ferir a conferéncia inaugural do congresso. No pe- riodo da Replica, de 1931 a 1936, 0 filésofo era ‘um dos intelectuais mais respeitados e renomados da Espanha.‘Seu livro A rebelio das massas, edita- do em 1930, aumentara grandemente sua reputa- ‘edo na Espanha e nos paises ibero-americanos. A partir da tradugdo para o inglés (The revolt of the ‘masee,feita em Londres, em 1932, seu reconheci- mento chegou ao resto do mundo europeu e aos Extados Unidos Por utr lado sn igagio como mundo do livro e da edigfo era um qualificativo adicional para falar aos biblioteedrios reuniddos em congresso internacional: desde 1919, participara a formagio e desenvolvimento da editora Calpe (depois Espasa-Calpe) e fundara a Revista de Occi- dente (1923) respectiva editora, para nao falar de suas ligagies de familia com o mundo da impren- sa? Por meio de suas atividades editoriais pro- ‘moveu intensa divulgacgo, na Espanha e paises da América do Sul, das idéias modemas no cam- po da filosofia, historia literatura e sociologia que estavam em curso em outros paises europeus. ‘Além disso fomentou a edigio de textos de mui- tos jovens autores espanhdis. Sua luta a favor da modemidade o qualificava ainda maisa abrir um ‘congresso que teria como uma de suas sessGes ple- nétias 0 tema "Les bibliothéques et la vie moder- ne” (As bibliotecas e a vida moderna), 62 ‘Quatorze meses depois do congresso, em 18 de julho de 1936, comegou o levante militar que ‘marcou o inicio da Guerra Civil Espanhola. No fi- nal de agosto, Ortega conseguiu sair da Espanha se exilou em Paris. Em 1939, poucos meses antes da invasio da Franga pelo exézcito alemio, que ocorred em maio de 1940, tomou o destino de Buenos Aires, onde permaneceu até 1942, Da Ar- ¢gentina foi para Portugal, passou alum tempo em Lisboa e regressou em 1946 a Madri. Adversario da ditadura franquista ¢ das forgas reacionérias que a apoiavam, levou uma vida de quase isola- mento, até morrer em 1955. A recepgio do discurso de Ortega © texto de Ortega foi imediatamente publicado, tem espanhol, na Revista de Occidente, eem francés na revista Archives et Biblithdques, de Paris. No cli- sma de guerra generalizacia em que vivett a Euro- pa, é provavel que seu discurso néo tenha encon- {trado muitos leitores. Fim janeiro de 1936, no entanto, sete meses depois de pronunciado o discurso em Madzi, a re- vista norte-americana Wilson Bulletin for Librarians publicou uma tradiucdo parcial do texto que apa~ recera na Revista de Occidente. Na realidade, um resumo das partes intituladas “A nova missio” e "O livro como conflito”. A revista dew a esse cexcerto o titulo de "Man must tame the book” (O homem deve domar o livro). A matéria aparece 63 ‘em destague, como a primeira do fasciculo e ilus- trada com um retrato do autor! No mesmo nimero da revista, seu editor, Stanley J. Kunitz, que viriaa ganhar o prémio Pu. litzer de poesia de 1959, assinava uma coluna per- ‘manente ~ “The roving eye” — onde comentou 0 {echo publicado do discurso de Ortege, a quer acusou de “detrator” do livro e que teria falado para uma platéia que nao percebia que seu “far ‘oso convidado estava tranguillamente empenha- lo em justificar 0 aniquilamento” dos biblioteca ios.’ Sua erftica se voltou principalmente contra aadverténcia de Ortega para o niimero excessivo de livros e sua proposta de que o bibliotecaio as- sumisse a organizaao da producao de livros. 56, como assinava a coluna, era um intelectual liberal, 4 seja, progressista, e um paladino da liberdade de expressio, Em ntimeros subseqiientes da te- vista (fevereiro, marco e junho de 1936) alguns lei- tores extemaram sua opinigo, favorivel ou desfa- vordvel, sobre o texto de Ortega e o comentiitio do editor. Um deles chegou a classificar as idéias de Ortega sobre olivro de “histeria fascista”* Em 1961, HJ. de Vieeschauwer, filésofo ¢ professor de biblioteconomia da universidade da frica do Sul, publicou extenso comentiitio onde assinalava sua concordancia em geral com as idéias de Ortega. Reconhecia que as preocupagées do f- 16sofo espanhol quanto a0 excesso de livros eram legitimas, mas que a idéia de atribuir ao bibliote- caro a missio de controlar a qualidade da produ- 64 fo bibliografica, embora vilida como utopia, era de realizacio impossivel.” O texto completo da conferéneia foi tradu- ido para o inglés, coincicentemente também em 1961, por James Lewis e Ray Carpenter, e publica- ddo na Antigch Review, mas sem a parte final intitu- Jada “Que é um livro?”. No mesmo ano, aeditora GX. Fill promoveu uma edigio, limitada a mil ‘exemplares, de uma separata para distribuiggo a seus clientes." ‘A Missdo do bibliotecirio voltou a ser objeto de anise, nos eva, no final de 1970, no artigo em aque Daniel Gore expés sua posigio contréria as idéias de Ortega e que pode ser sintetizada com cesta transcrigéo: que ane dew fling que nko pode enserga dit Sidtine cn ngeonentotaeg iets ologs seston Onn pd ee ale ie nl repulannntae no presen seats? Quem {oternosdisraventem mufloron poocostros quando ‘Sepang pret ‘mOregay Caso pois que solu etn goa ‘Gaede nse ie sine oii e opata qe dl surge apa pts nt Seana erocrrs ‘Simbu os pose orbiter bacon rn? ‘Quatro anos depois, chegou a vez dese ouvir uma vor britines. James Thompson externou, em It ‘ro que propanha “uma nova filosofia da biblio tecoriomia”, sta concordincia comas dias deOr tega, coi excegio da proposta ("muito ousada ¢ radical”) de ateibuir a0 bibliotecério a nova mis- so de regulador da prodsfo de livros, pois isso 65 seria uma fungdo de censor. Bele acrescentava que a censuta é algo abominado, corretamente, pela ‘maioria dos bibliotecdrios. Ao fazer consideragdes sobre o futuro da profissio, Thompson antevia que seria marcado pela promogio do amplo acesso & informagio (learning materials), nogio que, segun- do ele, “esta cle acordo com algumas das idéias expressadas por Ortega y Gasset”? Em 1982, Lester Asheim publicou o artigo “Ortega revisited”, onde reconhece que, 20 tentar definir a missio do bibliotecério, poucos foram tao felizes quanto 0 fildsofo espanhol. Ortega conse- guira empregar termos capazes de “prender a imaginacéo, servir como lema e, ao mesmo tem- po, chegar a uma verdade universal subjacente tanto & prética do dia-a-dia quanto a seus alicer- ces flas6ficos”, Asheim salientou quea téo.comen- tada metéfora do bibliotecério como filtro assu- ria novas e cada vez mais desafiadloras implica- Ges tendo em vista as mudangas por que tem pas- sad a profissio e 0s novos desafios que se colo- cavam perante a fungi social da biblioteca." Mas, como lembra Nitecki, ‘Asheim az uma dating fundamental ene dls gs de finer nests pio bot) sli og to formar o scerve da bibliotees prac ution poten tise 2) asia prestada coma finalidade de tender ttnetesidaes epeicas de cada clint, fi de possi lta qut os audio tern como sets pp on™ ‘Mesmo a questao aparentemente plena de subje- tivismo e elitismo (elitista éum adjetivo usado por muitos autores 20 se referirem a Ortega)!” pre- 66 sente na necessidade de definir os livros que sao bons e os que sio rains assume outra conotagao rna forma como Asheim a reexamina. Para ele, a roposta que Ortega apresentou para uma nova isso do biblioteeério continua vilida, misao essa em que o livro ndo seria um objeto material, ‘mas 0 conceito orteguiano de uma ‘fungao viva’, isto 6,“um estimulo para pensar, assimilar, fazer com que o contetido do livro seja verdadeiramen- te apropriado pelo usuério” ‘Em 1990, uma dissertagao de mestrado apre- sentada a University of Kentucky estudou a pro- posta de Ortega do ponto de vista da era da infor- ‘magao. Resume o texto do fildsofo e procura en- tender por que houve to ampla aceltagao entre cexpoentes do pensamento bibliotecérionorte-ame- ricano de outras obras orteguianas, como A rebe- Tigo des massas e Missio da universidade, ao mesmo ‘tempo que recusavam as ida presentes na Mis- sto do bibliotecria, por serem contratias & concep- 20 que tém dessa missio. Em sua opinio, a pro- posta “elitista’, “antidemocratica” e “autoritaria” de Ortega coincidia com o discurso de bibliotecé riosnorle-americanos contrérios cultura de mas- sa-em detrimento dos ideais da alta cultura. Os ‘autores associam as concepgées de Daniel Bell acerca da ‘sociedade pés-industrial’ edo paradig- ‘ma da informagio com a proposta controladora, “paternalista” e intervencionista de Ortega. Para cles, existiria na biblioteconomia norte-america- na uma grande divisio entre os bibliotecdrios 7 0 inst em gu 0 Uibiotsros deve {Enpromein com s neues pasta, es ‘no casts de setts potion ec quent cm ues biotcnos deve air rida prs sabe iceosaleces da aide rtsonal mcm do pardigna dinero. 6 € ta conrad gue os Bice cnn ds edn cron Pel do bolo na seedaue norte amram este ‘terisns otra canard okay nore J. Christopher McConnell tratou de identificar no discurso de Ortega sua vertente mais relevante para a filosofia da biblioteconomia.” Para cle, 0 texto de Ortega é “um exemplo maravilhoso de reflexio sobre a biblioteconomia com relagio a uma primeira filosofia da qual depende e da qual deriva”. As sugesties de Ortega sobre a bibliote- conomia "possum grande coeréncia eso ainda ‘mais significativas por terem sido colocadas no contexto maior em que ocorrem as atividades dos bibliotecérios". Para McConnell, as questées teleolégicas e de valor nao poderiam ser respon didas acequaclamente se uma anilise da bibliote- conomia incluisse apenas atividades isoladas, como aquisisio, catalogagio ecirculagso. E diz: Segundo soa prices de Org) inaidade dos ‘ies regres slides aed li. Aginde asin or bibles congistm ose “alr eo prover o conto deers paeaas toe ‘hoe te dle peetsam como ana fm spy par de ‘ii po un oo penal em stn, pata Ve Aas ‘Most para existence boetros as ant pats ‘fade aorta props ate dada Luis Hemando Lopera encontrou no texto de Or- 68 tegasugestées e sustentagio tebrica para uma ané- lise sobre a responsabilidade ética da biblioteco- nomia e dos bibliotecirios nos tempos atuais. Seu cestudo parte da dia onteguins do seaman como um sr que ev fSrendocm meio das creuotancis do mundo, acrindo ‘Scr certo ne torando deer ngando sa ‘ocnee su projet de vids, cumpindo uma miso pe {Sate profisignal que correspond a uma neesiande so cia” ‘Na Espanha, Javier Lasso de la Vega, que pattici- pou do congresso de 1935, invocou argumentos de Ortega em apoio a algumas de suas observa- 4g6es sobre o trabalho do bibliotecério.® Alias, na intervengio que pronunciou durante 0 congresso de Madi, Lasso de la Vega jé repercutia as pala- vvras do discurso inaugural de Ortega." Em 1978, José Lépez. Yepes, ao examina 05 principais elementos tedricos cia documentagao, resumit o discurso de Ortega e observou que ali se encontra a formulagio de uma teoria sobre documento, na qual predominam as caracteristi- ‘eas de "finalidade, perman€ncia e vocagio de re- gist fil da realidade” (p.78).* Chamouatengéo também para fato de o discurso continuar sendo de grande utilidade, pois nos transmite incon cf aor co Semen por sc data de ima dpesmparante para shite dn documenta "ent man dep dpb do tat des” No Brasil, as idéias de Ortega sobre a missio do Dibliotecdrio encontraram ressonéncia, principal: 69 ‘mente, em textos de Edson Nery da Fonseca. Em {és coleténeas de 74 artigos e outros trabalhos, Ortega é mencionado 26 vezes, isto 6 em quase 35% dos textos. 2% Também em seu livro ltro- dugao a biblioteconomia, as idias de Ortega sobre a nova missio do bibliotecario ea grande producso de livros sao usadas reiteradamente como abona- fo &s suas afirmagées.* Para Edson Nery da Fonseca, 0 discurso de Ortega “éo que de mais profundo se escreveu até hoje sobre o assunto”, “melhor texto que se escre- vveu em qualquer lingua sobre missio do bibliote- citio’,” “um dos mais belos e profindos docu- mentos até hoje produzidos sobre a missio do bi- bliotecdrio,™ “a mais profunda meditagao sobre o assunto, cieia de antecipagies geniais sobre o que viria a ocorrer em nossos dias”. Edson Nery da Fonseca divulgou, assim, no Brasil, reiteradamente, os conceitos de Ortega s0- bre livros e a missio do bibliotecério, Em relacao a proposta de Ortega sobre a nova missao de re- sulador da produgio de livros, Edson a conside- rava impraticdvel, pois os bibliotecarios do tt melo deexect a sees april sugerida por Ortega O se sles podem e covem fer & a ego» onto anda de sd oon nao ei {ose que se referia ogra eetsta epantol Em 1981, ele apresentou sua visio do que seria uma nova missio: “fomecer leitura e informagio 05 neo-alfabetizados. Tanto com eles como com 60s socialmente marginalizados & que deve, prin- 70 cipalmente, preocupar-se o bibliotecério brasilel- 10". Essa seria uma funcio “especifica e inaliené- vel” das bibliotecas piblicas™ {Em 1986, a0 fazer conferéncia sobre automa- fo de bibliotecas, Edson Nery da Fonseca apro- Yeitou para lembrar que a possibilidade do em- ‘prego da automagiio em bibliotecas teria sidoaven {ada pela primeira vez por Ortega a0 propor 0es- tabelecimento de uma “estatistica de idéias”, cuja finalidade muito se aproxima do que foi realizax do por Eugene Garfield, a partir de 1963, com os indices de citagées e a conseqitente produgao de indicadores estatisticos em ciéncia e tecnologia.® [Essa semelhanga entre a utopia de Ortega e aand- lise de citages hoje possibilitada pelas bases de actos do Institute for Scientific Information tam- ‘bém foi verificada por Sosa e Harris em 1991.” Tgualmente, lembra que Ortega falou da necessi- dade de criagio de “uma nova técnica bibliografi- a, de um automatismo rigoroso”. Tissa associagio entre a informatica aplicada as bibliotecas e as idias antecipadoras de Ortega ¥y Gasset foi explorada por Rafael Capurro Conelusio Decorridos 71 anos, 0 diseurso de Ortega y Gasset suscita polémica, abre o caminho para novas de- dlugSes ¢ aproximagées, e, sobretudo, mostra-se tual, quer se concorde ou nao com a suaandlise € ‘suas sugestdes. Alguns dos t6picos por ele susci- n tadlos nfo exam novidade, nem ele disse que eram. ‘A questio do excesso de livros, por exemplo, re- ‘montaria, de forma documentada, a0 anode 1613, quando um autor inglés afirmou que sm dos ales ses tempos a mulipiidade de ros ‘es de fate sobeeseregun de al odo a gente que no onspuimos fgets toundanes de mata nit gue, toons die €geadaedespeada no mundo" Na época em que isso foi escrito havia uma proli- feragao de panfletos de toda espécie, muitos de natueza satirica, politica e difamatéria, Estaria se referindo a eles, mais do que a livros como tals? Ralph Waldo Emerson, em seu ensaio Books (1870) fala dos falsos (fase) e verdladeiros (true) l= ‘vros ~ as mesmas palavras que Ortega sou." A ididia de alguém que orientasse 0 leitor no cipoal de livros — um filtro entre a torrente de livros e 0 homem — foi decerta forma antecipada por Emer son ao propor que diante da quantidade de titu- los oferecidos pelas bibliotecas aos leitores, estes teriam mais proveito se contassem com a orienta 0 de um professor of books.* Emerson nao diz que 6 bibliotecério seria esse professor. Mas também niio diz que o bibliotecario nfo poderia ser esse professor. O que vale, no presente argumento, & a coincidéncia com os argumentos de Ortega. ‘No discurso que W.W. Bishop proferiat ime- diatamente antes do de Ortega, ele se queixava do * Credo e apradego 20 Pro. Trciso Zandonade a lembranga a pevtinent tego de Ralph Wild Emerson 2 cexcesso de publicagées ¢ que uma das respons: bilidades dos bibliotecarios seria atuar como o i tro necessirio entze editores, autores e leitores Teria ele sido privilegiado coma leitura prévia do discurso de Ortega? E teria Ortega y Gasset lido 0 Tinité de docu- mentation, de Otlet, publicado um ano antes de pronunciar seu discurso? Otlet falava também do -nimero erescente de publicagdes. Ortega y Gasset adorava metaforas. Essa era ‘uma caracteristica de seu estilo, mesmo quando cescrevia textos filosoficos.” $6 que as metiforas nem sempre tornam a comunicagao mais precisa, principalmente quando os conceitos que elas in- YYocam se acham de alguma forma carregados de conotagbes negativas, Criticos do discurso de Or- tega preferiram, As vezes, ater-sea ilacao negativa sugetida pela metifora e no ao que ela estaria designandono contexto do discurso que fora pro ferido. E, se evarmos em conta 0 contexto histori co (as circanstincias), tudo favorecia, durante a Segunda Guerra Mundial e nos decénios que se seguiram, que o texto fosse interpretado comouma peca autoritiria, para nao dizer anticultural ou nazi-fascista “Aquila era uma época de radicalizagao ide- ol6gicae politica, Na Alemanha, no dia 10 demaio de 1933, por iniciativa da associagao alema de es- tudantes, jovens universitérios nazistas, com 0 apoio do governo, organizaram, em Berlim e ou tras cidades, fogueiras de livros de autores consi- 2 derados’antialemses’,como Bertolt Brecht, Helen Keller, Karl Marx, Emest Hemingvray e tantos outros, A reagio norte-americana foi imediata, Mais de cem mil pessoas manifestaram-se em pas- seata, em Nova York, contra esse crime — alguém © denominou ‘bibliocausto’ — do regime hitieris- tam Na Espanha, desde 1991, ¢ especialmente durante os anos da guerra civil, ocorreram, em ambos os lados que combatiam, ocontiscoe a quei- ima de livzos, a destruigio de arquivos e obras de arte” [Em todos os regimes ditatoriais que entio viegjaram, inclusive no Brasil, a censua, a busca, apreensio e destruiglo de livros eram uma pri «a sistematica, Para os bibliotecéios norte-ameri- anos, de longa tradigéo de luta pela iberdade de expressio, consubstanciada na famosa Primeira Emenda 4 Constituigfo, de 1791, qualquer decla- ragio que implicasse cerceamento a essa iberda~ de era imediatamente repelida. 'Nos pafses que conseguiram manter as li berdades democraticas durante esse perfodo, di er que havia livros ruins fals0s ow tolos,cuja pro- dugdo deveria ser impedida e que os bibliotecir 0s seriam os profissionais a quem caberia contro- Jar (domar) a produgio dos livros seria no mini- ‘mo uma temeridade. ‘Teeminada a Segunda Guerra Mundial, sur- sgeminos wa, na esteira da Guerra Fria, manifesta- ses de intolerancia © perseguicao a intelectuais, "4 que se tornaram conhecidas como macarthismo, ‘Areagio ao macarthismo, que teve stas variantes ‘em outros paises, fortaleceria entre os intelectuais sua resisténcia a qualquer palavra que pudesse sugerir ameaga 8 liberdade de expressio. As idéias de planejamento estatal nao s6 no campo da economia, mas também da vida social adquiriram forga nos anos que se seguiram & Re- voligao Russa de 1917. Essas idélas, as vezes de ‘modo diluido, se faziam presentes em diferentes setores, inclusive no campo do livro e das biblio- tecas. Talvez. um ressaibo dessa admiragao pelas possibilidades de organizar a vida social em to- clos seus aspectos estivesse presente na proposta de organizar a produgio do livro explicitada por ‘Ortega. Nesse quadro, 0 Traité de documentation, de Ollet, pode ser lido como uma proposta de Ambito planetério que permittia ordenar omun- do da informagio. Seu pensamento nao diverge do de Ortega quando afirma que, em tempos de smuidanga e renovagiio, marcados por quatro fato- res importantes (0 comercial, 0 cientifico, o politi- co €0 social) a indiistria editorial evolui no efrcu- lo desses quatro fatores e cabe a ela coordené-los de modo a atingir seu objetivo: “produzir livros eficientes quanto 8 quantidade e & qualidade’”.® Em 1939, quatro anos depois do congresso ‘de Madi, quando vivia em Buenos Aires, Ortega escreveu um prélogo para 0 Diccionario enciclopé- dco abreviado, publicado pela Espasa-Calpe argen- tina. Como titulo de “El ibro-méquina", esse tex- 75 to foi posteriormente incluido em Misi del bibl otecario y otras ensayos afines. Sua leitura de certo modo pode ampliar e complementar o entendi- mento las idias que o filésofo emitiu no discur- so de 1935. Ali reaparecem a metafora do fendme- ro da multiplicagao do saber como algo indoma- vel ea imagem dantesca de selva impenetravel: ‘Acar saber nos present ans como um chavt {ue ox permite dominarocaosesconfuosoda vida mak Srcana devido ase prepioercment fabs, con ‘eres por we na anva onde ohomem se pede ( iy [Nao se tratava mais da constatagao de que existi- am muitos livros, Ortega antecipava oconceito que seria mais tarde explorado até A exaustio: a ex- plosdo da informagio. Nesse texto de 1939, Orte- ‘ga nfo mais invocou a metéfora do bibliotecdrio ‘como policial, como guarda de trdnsito, como hi- sienista da produgio de livros. Agora, decertafor- ma antecipando 0 conceito bibliotecario de desse- ecko, seleglo negativa, descarte ou desaquisicao, cle reconhece ser chegada a hora de uma “reacao ‘ais fecunda diante da efetiva ejustificada angtis- tia cultural” (hoje dirfamos ‘sobrecarga de infor- ‘magio’ (information overload). Para superar essa angtistia cultural Ortega considerava necessérias trés novas tarefas: ‘A primeira delas consistiria na poda de tudo que nao mais tivesse utilidade, embora ele reco- mhecesse a dificuldade de “discemnir o supérfiuo do que & necessario”. (Observe-se que na literatu- 76 za bibliotecondmica de lingua inglesa também se ‘usa a mesma metéfora: pruning; outra figura em- prestada da terminologia agricola, em ingles, & ‘weeding (capina, eliminagio de ervas daninhas), para designar o trabalho de desbaste,) Aqui ve- ‘mos idéia deobsolescéncia da informacio, quea partir das décadas de 1960 ¢ 1970 viria a merecer estudos que a confirmariam, Numa segunda etapa seria preciso encon- trar os meios que permitissem, de modo facil, que se assimilasse e processasse o que viesse a sobrar. Ortega fala em possuir e manejar. ‘A terceira etapa consistiria em um trabalho quealiviasse as pessoas do esforgomental que témm de despender no “manejo de seu tesouro cultu- zal’ Isso exigiria uma solugdo mecanizada que li berasse a meméria, a fim de que ela cuidasse da- quilo que énecessério conservar ali, e delegasse a livros-maquina o resto “que é também necessé- rio, mas nao necessério na meméria’.* Para Ortega um exemplo de livro-maquina seriam a5 enciclopédias, como o préprio diciond- rio enciclopédico para o qual escreveu esse texto ‘como prélogo. Seria muito ousado deduzir que ‘Ortega estivesse a imaginar algo realmente meci- rico, como 0 Memex, de Vannevar Bush, Sobre esse onto e outros relativos ao livro esta funao his- {rica e social, convém cotejar as idias de Arlindo Machado,* Rafael Capurro,2 Edson Nery da Fon- seca"? 2 e Patrick H. Dust 7 Em tempos de internet e publicagGes eletr- riicas, nesta era em que praticamente tudo se re- uz a informagio, em que o bibliotecério tem de estar a todo instante pensandlo e repensando s0- bre seu papel social, as palavras do fildsofo espa- nnhol permanecem ricas de estimuilo para o debate ‘que busca compreender qual deve ser hoje a mis- ‘io do bibliotecario e das bibliotecas, E parece que ainda hé caminhos no discurso de Ortega & espe- rade serem palmilhados e desbravados. Nora & Rerenewcias 1 Mato Ru, A La poi dl io y as feria del iro de ‘ade (901930 Ceres de stort Coneporien, Made, 28 p. 217234, 205. 20 ja do Comma do Rio de Jeo, 71d rsa do 125, ‘oils “Md 20) A tera fa doi espana ine tad no Paseo de Revolt, gue € a masta ave da apt ta ebtve wm sucesso bom saperoy o atid pean moi {ies prrednts do mes geo fais, bem mal importa te que adios otas fas precedente, plo nmr de cass ‘llores representadas pot nimer de cba expose pela ‘Sst ergunyo ur Ine dnb anda do tore xp ‘hd Garni cig cnt eitorat psn ste mas {isto consapraes ao rablos de astm, geavadores as {Terese um encadrags rpenel Tnaupurnd rob preci doco do stad, Se Alt amor daningy da 8d core epoio &wlaa amen pr sumerosaepesone de todas scabs soi ‘Cates qur eve das0 00 aos dsthriedosos har ian donsinnd x vonascescerapidamentstingind> 30000 suse der da ‘Or ogeizadores lament que a Amica espantola nfo seach pcan se fn O Mido gentinakam Drometdo enviar coe mas deidirae ato muito tarde: Elves no puderam chegar emp para ainaagurag. 78 Sinise Eatones Repaid que afi de 1836 seja sunda mais impstante quest aspranco sobre 8 part ‘Shogo de tds o pes ngs espana. Or delegadas da ‘Amésca do el erto héspedes do com de organzestoerece- ‘et datingoes honorificare ecompenss Ser aero um en ‘sito para antl da pone foto, de que pteipatdo a ‘ules expands esulameicanos” ‘dura da ors ot polngada, a e permit a vista ‘il dos prtspantes do congress da. 2 Grea Ontan uta Mara Matinee ns portaconet a poten ‘Wblotecris dele Segunda Replica Bolt dele Aecintn A- ai de Bltecr, Maga, a 15,1. 62, 4-6, ae 20 «4 HamuOare, Anton. Emovizientottstteai ey Andale Ih Anaran Andslur de Bbtersoe Balt dela Aroticn ‘Aust de Bible Malaga, 0 19,576, 23-9, jan) {Sept 20. 195, hala na Espana apenas 125 Rb cpundo Laswo de In Voga clad por Bows Poth, Mariano Save: Hegacon, Miguel Angel: Lasbibotsas en as Misiones adage Bolen dela Azooibe Andale de Blots, Malaga, ao 19,5.74 p. A151, mar 208, 15 O telegrams fl publendo na pagina internacional do font do Comers, do Ro de Janez, de 21 de malo Ge 1935. 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Garton de ensar oa ‘ossenquanto Hinbre dea oz lvemene rouco por eausado [no trouve se pouco a pouco maigclaroe insinuate” (Gala ‘Meas Justa, Ortega y Gasset es itil, Bli dl 79 va, Madd 82m. p A249, 1983 Sobre reaco neg {Grades cangestatis no ofrecimenio do govero amo prs Sedan na Alemaha congress cept df ver Cost, Serpi {de Foundation and development of ex 1925-1999. Lirary (Quartet, Cheng 5. p. 58,1982 17 Save Rockwell since of meri nlc! Boge plyo/ fine Onegay Got Berkley: Univer ofCaieenis Pes, {939 8 Onto Gu ok. Man ms ae I ook io Bulletin arin 0.n3 p07, an. 98 9 5}. On toring ie ck, io Bult 10,5 p20 fan ak centr dos eres ne mes vi Tap 8 pa Are 0) p70 (Mae SO, pS erie 9368 1 asennad. Alina drs Prt: ver ‘tervan Su athta 1631 pusson 8) 11 Onsen Gufs. he of he ren Tas by anes eos Ray Capt: a Rese, low Spigot Binds p. 1ebise Sumer 1961 Rempress como spar fs GA Hal eh ™ 12 Gon bare. 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