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8 es] # ho A dialética do avesso Anricos JORGE GRESPAN* Depois da morte de Marx, parece que Engels procurou em vao, entre os papéis deixados pelo amigo, 0 texto sobre dialética que ele prometera escrever, De fato, em carta ao préprio Engels, na época em que redigia os Grundrisse, Marx comenta 0 acaso que colocou em suas maos 0 exemplar da Légica de Hegel deixado em Londres por Bakunin. Acaso feliz, porque “folhear” o livro ajudou-o muito nos problemas relativos ao “método de elaboragio [Bearbeiten]” de seu préprio manuscrito. E acrescenta: “se houver novamente tempo para tais trabalhos, eu teria muito prazer [...] em tornar acessivel ao entendimento humano comum 0 racional no método que Hegel descobriu e em seguida mistificou”’. Deixemos de lado a lasti- ma tradicional por Marx nao ter escrito este texto. Afinal, sua reexposigao critica da economia politica, empreendida a partir desta época, constitui 0 substrato dos problemas metodolégicos e a base para sua discussio. E no campo desta obra sistematica que se deve propor a questao de uma dialéti- ca materialista. Se Marx nao redigiu o prometido trabalho, por outro lado seu comentario confessa claramente o “grande servigo” prestado a seu “método de elaboracao” pela dialética de Hegel, certamente referindo-se a sua parte “racional”. Assim, no conhecido texto acima citado, o fundamental é destacar a contraposi¢io entre o elemento “racional” ¢ o “mistificador” na interpreta- ¢ao da I6gica hegeliana. Mas o que seria o “racional no método” de Hegel? E como separé-lo da “mistificagao”? Tais perguntas vém desafiando hé mui- * Professor de Teoria da Historia, na FFLCH/USP. ‘Carta de 16 de janeiro de 1858. Marx-Engels Werke, vol. 29, p. 260. 26 * A DIALETICA DO AVESSO to tempo os intérpretes de Marx, e eu gostaria de retomar aqui algumas solu- Ges recentes e interessantes, que discutirei, acrescentando minhas proprias observagGes". A inversao materialista Antes de tudo, porém, voltemos a Marx. E preciso ficar claro, em primeiro lugar, que sua retomada da dialética na critica do capitalismo e da economia po- litica ndo decorre de uma mera adesao a este método’, como se ele devesse va- ler por si mesmo, independentemente do objeto a que se aplicasse. Esta indife- renga entre método e objeto, forma e contetido, seria em si mesma totalmente nao-dialética. Ao contrdrio, € porque seu objeto se constitui de modo contradi- t6rio que Marx percebe ter de investig4-lo dialeticamente. Por isso, ele afirma, numa famosa proposicao: “[...] toda a ciéncia seria supérflua, se a forma de aparecimento e a esséncia das coisas coincidissem imediatamente”*. Ou seja,em coisas que aparecem de forma distinta do que sfo essencialmente distinguem- se dois niveis de realidade — o da esséncia e o de suas manifestagdes. Melhor ainda, ambos os niveis coincidem, mas nao “imediatamente”, e sim por media- Ges, através das quais a esséncia aparece com uma apar€ncia diferente. Ea pro- pria esséncia, contudo, que determina esta sua forma diferente de manifestacio, e 86 0 faz por ser contradit6ria. Se nao o fosse, apareceria diretamente como © que 6, e “toda ciéncia seria supérflua”. A “ciéncia” a que Marx se refere, desta maneira, é dialética, tinica forma pela qual é possivel conceber a contradi¢éo real e, daf, as mediagées pelas quais ela se manifesta sob formas distintas. Nao € em qualquer objeto que Marx distingue dois niveis de realidade, em que se constitui uma esséncia para além das formas de aparecimento’. Bem como nao 2 Trata-se principalmente de dois artigos publicados em 1974 no Anudrio Hegeliano: Fulda, H. F. “These zur Dialektik als Darstellungsmethode (im ‘Kapital’ von Marx)", e também Theunissen, M. “Ktise der Macht. These zur Theorie des dialektischen Widerspruchs", in Hegel Jahrbuch, Koln, Pahl-Rugenstein Verlag. Embora nao esteja inteiramente de acordo com as “teses” af expostas, por Sua importancia e sua fecundidade elas deverdo ser criticamente consideradas no meu proprio texto. >£ 0 que sugere Theunissen, op. cit. pp. 323-325, e aqui temos j4 um desacordo, quando insiste em que Marx buscava desde os escritos de juventude “aplicar” a Iégica das “determinages da feflexao” hegelianas a historia e, mais tarde, 4 economia politica. “Marx, Das Kapital, Livro Ill, Manx-Engels Werke, volume 25, Berlim, Dietz Verlag, 1983, p. 825. (A seguir citado como K: |, Il ou Ill, conforme o livro, e depois a pagina.) A traducao brasileira utilizada é ada colecdo Os economistas, S40 Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 271. (A seguir citada entre parénteses depois da alema por C, seguida pelo némero do livro em algarismo latino e da pagina em arabico.) £0 que diz outro autor alemao, para quem a concepgao de ciéncia em geral por Marx seria “essen- jalista”. Cf. Lange, E. M. “Wertformanalyse, Geldkritik und Konstruktion des Fetischismus bei Marx”, in Neve Hefte fur Philosophie, Gottingen, Vanderhorch & Ruprecht, 1978, n® 13, pp. 1-46. CRITICA MARXISTA # 27 & todo objeto que deve ser considerado dialeticamente, portanto, mas especifi- camente 0 que tiver uma natureza contraditéria. Compreende-se, assim, 0 percurso da relagao de Marx com a dialética, as- sinalado por ele mesmo no importante posfacio da segunda edicao alema de O capital. L4, referindo-se certamente aos seus textos de juventude, ele diz ter criticado “o lado mistificador da dialética hegeliana ha 30 anos [...] numa €poca em que ela era ainda a moda do dia”. Depois, porém, quando “elabo- rava 0 primeiro livro de O capital”, aparentemente revoltou-se contra os “epigo- nos pretensiosos e medfocres” que tratavam Hegel como “cachorro morto” e “de- clarou-se abertamente discfpulo daquele grande pensador, flertando aqui e ali no capitulo sobre a teoria do valor com seu modo peculiar de expressio”*. Mas esta sua retomada dos méritos da dialética ocorre até antes da década de 1860: a carta a Engels, citada acima, pertence 4 época em que redigia a pri- meira versio madura da critica 4 economia politica (1858) e evidencia que a Légica de Hegel ja entao Ihe prestava grande servigo no “método de elabora- 40” do material’. Ou seja, depois das objecdes de juventude, que ressaltavam 0 aspecto erréneo e “mistificador” da dialética, o empreendimento da critica & economia politica fez com que ele resgatasse 0 aspecto positivo, o “racional” daquele método, pois enti percebe como contraditério o seu proprio objeto — 0 capitalismo. Daf perceber também a economia politica como contraditéria, que podia por isso ser alvo de uma critica interna, isto 6, aquela que aceita inicialmente os princfpios e conceitos do que quer criticar e os desenvolve, para deles deduzir seu contrério’. Esta inversao é, alias, 0 procedimento que define a dialética mesma desde Platao. Desse modo, no é por simples repulsa a atitude dos “epigonos” da cul- tura alema que ele se confessa “discfpulo” de Hegel, mas porque seu objeto de estudo e sua critica exigem tratamento dialético. Conforme a seqiiéncia do citado posficio: Em sua forma mistificada a dialética foi uma moda alemi, pois cla parecia transfigurar o existente. Em sua figura racional, ela é um escandalo e um hor- 6K, l, 27(C, 11, 20). 7Além desta carta de 16 de janeiro de 1858, citada a nota 1 acima, em 31 de maio deste mesmo ano Marx novamente escreve a Engels, referindo-se a dialética hegeliana como “sem divida, a tilti- ma palavra de toda a filosofia”. Marx-Engels Werke, vol. 29, p. 329. A insisténcia demonstra que Marx deve ter estudado a [égica por todos esses meses. “rinterna” aqui se opée a critica de juventude da economia politica, que a rejeitava praticamente em bloco, em nome da alienagdo e da desumanizagao que ela pressupunha. Sobre o significado desta critica intema, cf. meu texto: “A crise na critica @ economia politica”, in Critica Marxista, n® 10, 2000, pp. 94-110. 28 @ A DIALETICA DO AVESSO ror para a burguesia e seus porta-vozes doutrindrios, porque ela inclui no en- tendimento positivo do existente ao mesmo tempo também o entendimento de sua negagdo, de seu declinio necessario, apreendendo cada forma passada no fluxo do movimento, portanto, conforme seu lado ef€mero; ela nao se deixa impressionar com nada, € critica e revoluciondria por natureza.” A dimensio “critica”, que define a “figura racional” da dialética e deter- mina sua retomada pelo Marx da maturidade, é ela mesma dialética, por sua vez, porque é interna: ela apreende o negativo dentro do positivo e expée esta contradig&o. Além disso, o positivo, negativamente apreendido, é autonega- dor, explicitando daf seu carater “efémero”, sua determinag&o “no fluxo do movimento” e do tempo — por isso é “revoluciondrio”. Por outro lado, esta passagem permite j4 comegar a esclarecer o signifi- cado dos termos “racional” e “mistificador” pelos quais Marx se refere ao “método que Hegel descobriu”. O lado “racional” € 0 “critico e revolucionario”, que “inclui no entendimento positivo do existente a0 mesmo tempo também 0 entendimento de sua negacdio”, isto é, que aponta a presenca do negativo na autonegacdo do positivo. Neste sentido deve ser compreendido 0 comentario sobre Stuart Mill, em que Marx diz: “tanto quanto € estranha para ele a ‘con- tradicao’ hegeliana, a fonte de toda a dialética, ele se sente 4 vontade em con- tradigGes triviais”"”. Diferentemente de uma simples contradi¢ao formal, no Ambito apenas da légica do discurso, a contradigao a que Marx se refere como “hegeliana” é a dialética do real, que produz efetivamente tendéncias opostas. Porque nao percebe e nao reconhece esta tiltima, Stuart Mill a esca- moteia com um discurso harmonizador e af, sim, incorre em contradigGes, s6 que “triviais”. A contradig&o do real é a de tipo “hegeliano”, dessas maneira, de acordo com a qual uma certa realidade se constitui de modo autonegador €, com isso, autocritico. Até aqui Marx resgata o lado “racional” da dialética de Hegel. Mas assim como foi seu objeto de estudo, ¢ nao uma preferéncia filoséfica subjetiva, que Ihe impés tal resgate, € esse mesmo objeto que o leva a criticar 0 lado err6- neo daquele método. Conforme ainda 0 texto do posfacio, a dialética hegeliana assumiu uma “forma mistificada” porque parecia “transfigurar 0 existente”, usando aqui a mesma expressio utilizada na religiao para a “transfiguragao de Cristo” (Verkldrung): trata-se da transposigao de algo que est na terra para 0 céu. Sem diivida esta objego alude ao carater hiperbélico da dialética de He- gel, que vé todo o real — natureza e espirito — como contraditério, enquanto 9K, 1,27 (C,11, 21). "°K, 1, 623, nota 41 (C, 12, 176, nota 41). CRITICA MARXISTA ¢ 29 para Marx sé 0 é certo tipo de relagao social historicamente constituida, a sa- ber, o das sociedades de classe em geral e da capitalista em particular. Nesse sentido € que costuma ser interpretado 0 procedimento pelo qual a dimensao “racional” da dialética € depurada do “misticismo” hegeliano. O texto do posfacio diz sobre isso o seguinte: Meu método dialético é fundamentalmente nao sé diverso do hegeliano, como seu oposto direto. [...] A mistificagdo que a dialética sofre nas maos de Hegel nao impede de modo algum que ele tenha exposto suas formas gerais de mo- vimento pela primeira vez. de forma abrangente e consciente. Ela est para ele de cabega para baixo. Deve-se inverté-la [umstiilpen], para descobrir 0 carogo [Kern] racional no envoltério [Hiille] mistico.” De acordo com este texto conhecido e, sem diivida, crucial, nao é 0 caso de apenas se depurar a dimensio “racional” da dialética hegeliana para obter aquilo que dela se mantém em Marx. Trata-se de duas dialéticas distintas. Mais ainda, “nao s6 diversas”, como diretamente “opostas”.” Com isso, 0 procedimento de obtengao do “carogo racional” passa a se definir como uma “inversao”, pela qual o que “est4 de cabeca para baixo” assume sua posicao verdadeira. Se a “transfiguragao mistificadora” operada por Hegel esta associada a u “idealismo”, que na critica de Marx inverte a relago entre materialidade e pensamento”, colocando este tiltimo como produtor daquela, entao pér a dialé- tica de volta de cabega para cima implica corrigir o viés idealista e apresen- tar corretamente a vida material como produtora das representag6es mentais. Certamente, este significado da “inversdo” da dialética aponta para uma in- terpretac4o possivel e fértil em conseqiiéncias, tendo sido o caminho tradicio nal seguido pelos comentadores da obra de Marx. O problema é que, nesta interpretagao, o que se “inverte” é apenas a or- dem do real sobre 0 qual opera a dialética, € seu contetido ou substrato efeti- vo. Posta a vida material no lugar da idéia onipotente de Hegel, a mesma ope- "K, 1, 27 (C,11, 20-21). " Sobre a distingdo entre “diversidade” e “oposicao”, ver a segunda secao deste trabalho. "© mesmo posfécio que venho citando diz: “para Hegel, o proceso de pensamento, que ele até transforma num sujeito autnomo sob o nome de Idéia, é o demiurgo do real, que forma s6 sua man- ifestacao externa. Para mim, ao contrario, 0 ideal nada é seno o material transposto e traduzido na cabega humana". K, |, 27 (C, 11, 20). Cf. também a famosa Introdugao de 1857, em que define o “concreto” como “sintese de multiplas determinagées”: Marx, K. Grundrisse der Kritik der Politischen Okonomie, Dietz Verlag, Berlim, 19/4, p. 21; a tradugdo brasileira no caso desta Introdugao foi publicada com o titulo “Para a critica da economia politica” na colegio Os econo- mistas, So Paulo, Abril Cultural, 1982, pp. 14-15. 30 * A DIALETICA DO AVESSO racdo descobriria contradigdes agora nas relagées sociais de produgao e nas forcas produtivas, endo mais nos conceitos criadores. “Inverte-se” a ordem do real, mas a forma de dialética seria a mesma: seria 0 método de descoberta das contradigées e de sua apresentagao categorial. Deste modo, porém, con- tetido e forma so separados e concebidos numa dicotomia nao-dialética, em que a “inversao” do contetido nao implica a da forma, como se ambos fossem aspectos indiferentes um ao outro, no relacionados. Neste caso, a dialética materialista nfo poderia ser chamada exatamente de dialética, e Marx teria construido seu materialismo mediante 0 sacrificio dela. Contudo, o préprio Marx diz que nao s6 sua concepgao da realidade, mas 0 seu “método” € 0 oposto do de Hegel, de modo que ha também uma oposi¢ao formal entre eles. Impée-se, pois, pensar dialeticamente todo o procedimento, de modo, que também a forma légica se altere com seu contetido real. De acordo com a interpretacdo de Fulda", neste sentido, o préprio termo utilizado por Marx para definir a “inversio” admite um significado um pouco diferente, tam- bém coerente com sua critica a Hegel. De fato, 0 verbo umstiilpen, empre- gado no texto do posfacio, pode querer dizer “entornar” um vasilhame, vird-lo para baixo e derramar 0 que contém — significado adequado ao ato de colocar de cabega para cima o que estava de “cabega para baixo”, confor- me a interpretagio tradicional. No entanto, 0 verbo se refere muito mais fre- qiientemente ao gesto de arregacgar a manga de uma camisa ou a boca de uma calga, pois vem do substantivo Stulpe, que designa justamente estas partes do vestudrio, bem como o cano de uma bota ou de uma luva compri- da. Assim, a “inversdo” proposta por Marx pode ser entendida como 0 ato de virar do avesso, ou melhor, desvirar do avesso algo que estava nesta po- sigdo trocada. Fulda propée a elegante metéfora de uma luva que, ao ser des- calgada, fica do avesso, e umstiilpen quer dizer colocé-la do lado certo. A imagem € boa, até porque condiz com a do texto de Marx, que falava de um “caroco racional” a ser descoberto dentro de seu “envoltério mistico”: para extrai-lo, é preciso rasgar a casca ¢ a carne da fruta, expondo-o, ¢ nao sim- plesmente volté-la para baixo. Na metéfora da luva, quando ela é desvirada do avesso, 0 lado de fora, que havia ficado para dentro ao descaleé-la, volta para fora; o de dentro, que estava para fora, volta para dentro. Para além deste aparente jogo de pa- lavras hd uma implicagao lgica fundamental: segundo Fulda, A dialética especulativa, como pensava Marx, é uma inversio das relagGes reais, na medida em que explica o real [...] como mera manifestaco exterior, ¢ na medida em que afirma haver um lado interno das coisas; este lado é o essen- Fulda, op. cit. na nota 2, p. 27. CRITICA MARXISTA © 31 cial; e com isso toda a miiltipla e conflitante realidade forma uma unidade perfeita e harménica. ...] Esta dialética 6 adquirida — fraudulentamente - as custas da inversdo de todas as relagdes reais do interno e do externo, do uno e do miltiplo, da manifestacdo e da esséncia, do sujeito e do predicado.” Do mesmo modo que para Marx, para Hegel ha uma esséncia que se ma- nifesta na realidade exterior de forma diferente, até contraria ao que €, sendo necessdria uma “ciéncia” dialética e rigorosa para descobri-la e entender por que ela se exterioriza ao mesmo tempo em que se inverte. $6 que a superficie de onde parte a “ciéncia” é diferente em cada autor, bem como a esséncia inter- na que ela alcanga. Melhor ainda, manifestacao e esséncia se definem inver- samente em cada autor. Por isso Marx diz que seu “método dialético” é 0 “oposto direto” do idealista. Para Hegel, a realidade teria uma figura “milti- pla e conflitante” de coisas diversas e sé a dialética seria capaz de descobrir, por baixo desse caos aparente, a “unidade perfeita e harménica” da esséncia interior. Como seria possfvel uma férmula oposta? Segundo Fulda, ela decorre da avaliacao da filosofia hegeliana em geral que Marx vinha elaborando desde a juventude. Assim, se a dialética deves- se descobrir uma “unidade harménica” e conciliadora para além dos confli- tos e diferengas aparentes, ela teria uma fungao eminentemente apaziguado- ra — seria tudo menos critica. O erro principal de Hegel consistiria em “que ele apreende a contradigao dos fendmenos como unidade na esséncia, na Idéia”"’, enquanto uma verdadeira critica deveria explicar a “contradigao dos fenémenos” através de uma contradico ainda mais rica e profunda, essen- cial. De fato, é interessante recordar aqui o comentario sobre Stuart Mill, acima citado, em que Marx distingue contradigées “triviais” € a contradigao dialética: aquelas poderiam ser as aparentes na superficie do real, sob as quais seria preciso encontrar esta Ultima, isto €, uma contradigdo interna e essencial. Também é interessante retomar outro texto j4 mencionado (nota 10), que define o método materialista pela tarefa de estabelecer “no entendi- mento positivo do existente ao mesmo tempo também o entendimento de sua negacao”, ou seja, encontrar a negacdo no “existente positivamente” apreen- dido, determinando assim 0 positivo, aparentemente harmé6nico, como resul- tado de sua propria esséncia autonegadora, contraditéria. A “inversao” da dialética hegeliana por Marx consiste, portanto, em que as figuras légicas — as “determinagées da reflexao” de Hegel - “diferenga” e “{dentidade” esto em posigdes contrarias para cada um dos autores. A “mis- 5 Idem, ibidem, p. 206. "6 Marx, K. Frithe Schriften, apud Fulda, op. cit., p. 207. 32 # A DIALETICA DO AVESSO tificagio” idealista, tradicionalmente interpretada como pensar que a base material da sociedade seria produzida pela superestrutura das representagdes mentais, tem aqui ainda outro sentido, formalmente oposto: a “diferenga” se- ria 0 externo e aparente, determinada essencialmente, porém, por uma unidade ou “identidade” profunda e oculta que a dialética deveria revelar. Como re- sultado do procedimento de “inversao” materialista, por outro lado, extrai-se 0 “carogo racional”, sendo sua figura Idgica a descoberta da diferenga contra- ditoria e fundante de identidades superficiais. Ou seja, retomando a metéfora da luva desvirada do avesso: em Hegel a diferenga estaria no lado de fora e a identidade no de dentro; enquanto em Marx, ao contrério, a identidade é que aparece no lado de fora, determinada por uma diferenga no lado de dentro. Se para Hegel a identidade € 0 “mo- mento” preponderante na determinacdo da diferenga, para Marx, “inversa- mente”, é a diferenga que predomina sobre a identidade e a determina, mais do que € por ela determinada. Em outras palavras, ambas as figuras ldgicas se determinam reciprocamente, conforme a exigéncia da dialética; mas 0 idealismo afirma gue é a identidade que constitui 0 todo maior, englobando a diferenca e a resolvendo; enquanto 0 materialismo pensa, senao a prepon- derAncia da diferenga, pelo menos que é irredutivel a qualquer unidade iden- titdria e conciliadora. Hegel teria o mérito de haver “descoberto” esta muitua determinagao de identidade ¢ diferenga, que € a propria contradigéio; mas “em seguida mistificou” esta relagéio Iégica, ao estabelecer que a identidade predomina para compor um mundo uno em sua diversidade e conflito s6 aparentes. Mas ainda hd mais do que isso. O argumento de Fulda explica a transforma- co da dialética idealista em materialista a partir das consideragdes de Marx so- bre a filosofia hegeliana em geral, a partir das observagées e objegGes metodolé- gicas que ele fez a essa filosofia desde seus escritos de juventude. E preciso ter em mente, porém, que a elaboracao de uma dialética materialista se da princi- palmente no contexto da critica interna 4 economia politica, realizada na obra de maturidade, conio vimos. Assim, 0 substrato para a “inversdo” da dialética € muito mais especifico, reportando-se a critica de Marx & concepcao hegeliana da socie- dade civil, tal como é exposta na Filosofia do direito. Esta critica, também for- mulada na juventude, s6 depois integra-se organicamente @ outra, interna, da economia politica. E com isso vemos como foi 0 objeto de estudo que impés a Marx, conforme dito acima, o resgate critico da dialética de Hegel. Mais exatamente, esta tiltima foi virada do avesso, porque pareceu insufi- ciente a Marx a perspectiva hegeliana, pela qual a sociedade civil seria uma multiplicidade de caréncias individuais e tenderia av desyaramento, se ndo fosse a agao do Estado, efetivamente capaz de conciliar as pendéncias priva- das e de conferir ao todo unidade politica. O elemento universal, produtor ape- CRITICA MARXISTA © 33 nas de mais diferencas no “momento” da sociedade civil, 36 seria “posto para si” com o Estado, podendo dar coesao a um todo que ent&o aparece enquanto totalidade dialética. A identidade politica predominaria sobre as diferengas privadas, embora as conservasse como sua base. Ora, a objecio de Marx, como sabemos, é que tal unidade estatal ocorre somente no plano juridico, nao conseguindo resolver no plano social os conflitos de interesse particular, que se determinam justamente no plano social. Assim, se juridicamente a socieda- de civil e seu Estado se articulam como um todo identitario, em que todos in- dividuos s&o iguais perante a lei, por outro lado essa identidade superficial, aparente, repousa numa desigualdade profunda, social, entre a classe dos pro- prietdrios privados dos meios de produgao e a dos trabalhadores, “privados” dessa propriedade, isto é, dela exclufdos. Como na imagem da luva, em Hegel a diferenga inicial, externa, no plano da sociedade civil passa a uma unidade profunda, politica; enquanto em Marx a igualdade juridica, externa, se deter- mina pela desigualdade social, por diferencas e antagonismos essenciais. A diferenca social é que predomina sobre a igualdade juridica, sendo por- tanto irredutivel a cla, no sentido de que nao pode ser eliminada nem solu- cionada por seu intermédio. Mais ainda, a desigualdade social determina 0 proprio ordenamento juridico civil-burgués, na medida em que ele se baseia na propriedade privada. E, uma vez que essa instituigdo define as regras do intercambio comercial e dos contratos a partir do direito de que os indivi- duos se revestem enquanto proprietérios privados de mercadorias, é ela que estabelece as condigdes em que estes aparecem reciprocamente como iguais. Por seu turno, tal igualdade permite a livre movimentag&o dos recursos ma- teriais e humanos, condigio sine qua non da acumulacio de capital. Enfim, essa acumulacao reproduz a situagdo social de diferenciacao entre trabalha- dores “livres”, juridicamente iguais a seus empregadores, e estes, proprieté- rios exclusivos e excludentes dos meios de produgao. Fecha-se um circulo de miitua determinacdo entre a identidade externa e a diferenga profunda, mas é esse tiltimo “momento” que compée 0 todo. Toda essa engenhosa, interessante e extremamente fértil formulagao da complexa e espinhosa relagao entre a dialética idealista e a materialista, en- tretanto, também apresenta seus problemas. Em particular, a concepgao he- geliana af aparece um tanto simplificada. Realmente, o caminho légico que parte da mera diferenga externa —a diversidade — para a identidade do funda- mento é percorrido mediante a negacdo: a diferenga passa a ser vista como oposicao, quando a negatividade externa dos diferentes é interiorizada em cada um deles; e a oposi¢ao se descobre resultante de uma contradic¢ao, pois a diferenga dos opostos € ela mesma determinada pela relagdo entre eles, isto é, por sua unidade contraditéria. Assim, 0 momento essencial nao é uma sim- ples identidade. O conceito inicial de identidade —a coincidéncia de algo con- 34 * A DIALETICA DO AVESSO sigo mesmo — também se altera, passando a ser a coincidéncia consigo atra- vés do outro, 0 retorno a si que tem na oposicao com este outro um momen- to que ndo pode ser eliminado. A identidade é, ela propria, contraditéria. Fulda tenta contornar esta questdo, relativizando a contraposigao entre a diferenga externa e a identidade interna, de Hegel, e a identidade exter- na e a diferenga interna, de Marx. Afirma entao: Para a dialética resulta que ela ndo pode mais avangar de uma unidade ime- diata para uma unidade mediada mais profunda; mas que ela deve levar de uma contradigao imediata e relativamente superficial a uma contradigao mais essencial, que preside um campo mais amplo de fenémenos.” No entanto, a “unidade mediada mais profunda” hegeliana é contradi- toria da mesma forma que a “contradic¢do mais essencial” de Marx, justa- mente porque “presidem um campo mais amplo de fendmenos” enquanto forcas sintetizadoras, unificadoras. Em que medida, entao, nao € um tanto forcada a contraposigao das duas “unidades” em Hegel com as duas “con- tradigdes” de Marx? Em que sentido poderiam seguir valendo as criticas de Marx A concepcfo hegeliana da sociedade civil e 4 economia politica, vistas acima? Alids, analisando bem, vemos claramente que a relagio da ex- posicao sistematica do capitalismo por Marx com a dialética hegeliana ul- trapassa o simples “flerte” confessado por ele. A resposta a essas questées requer, enfim, uma consideragdo ainda mais detalhada dos problemas Idgicos ai presentes. J4 que para ambos os autores a contradigao € 0 momento fundamental, sua diferenga nao estaria no modo com que definem 0 conceito de contradigao? Neste caso, a “mistificagao” operada pela dialética idealista nao estaria em sua pretensa reducao da dife- renca a uma simples identidade, mas em como ela resolve o jogo da negagao. Examinemos o problema mais de perto. “A contradicao, fonte de toda dialética” O caminho das chamadas “determinages da reflexao” na Logica de Hegel, de fato, parte da contraposicao da identidade e da diferenga absolutas, no sen- tido de que cada uma parece ser absolutamente distinta da outra. A diferenga pura entre coisas €, entdo, a auséncia de qualquer relacdo entre elas, como se fossem apenas diversas umas das outras. E 0 percurso dialético comeca com essa figura Igica da “diversidade” porque af, ao contrario da pura identidade de algo consigo mesmo, existe alteridade e, portanto, movimento de uma coi- sa a outra. A seguir, porém, Hegel mostra que a negac¢&o reciproca das coisas * Fulda, op. cit., p. 207. CRITICA MARXISTA © 35 diversas, que aparece inicialmente como existindo fora das préprias coisas, na verdade faz parte constitutiva do modo com que cada uma delas se define: ela € o que € por nao ser 0 que nao é, de forma que, para se-determinar, tem de se referir as outras, a alteridade, & negagao. Assim é como aparece na dialética a famosa proposicio espinosista de que “toda determinacao é negagio””". Dessa maneira, a especificagao do que algo “é” tem de se referir ao que ele “nao €”, também especificamente. Afirmacao e negacao se relacionam mutuamente, pois para afirmar é preciso negar e, ao negar de modo determi- nado, ao mesmo tempo se afirma o oposto. Surge, com isso, a segunda figura légica da diferenga, que € a “oposicio”. Nela, as coisas diferentes 0 sdo por- que estado numa relagdo que as diferencia, isto é, que as retine e, por outro lado, separa. Dai que a diferenga surja de seu oposto, da unidade enquanto re- lacdo dos diferentes; e que a unidade, por sua vez, ndo dependa de uma igual- dade ou identidade absoluta de algo consigo, sendo, ao contrario, a unidade dos diferentes — a oposic¢ao. Os opostos tém cada qual no outro o seu negati- vo determinado, 0 seu outro, e nado um outro qualquer. Por isso, aparecem re- ciprocamente como 0 positivo e 0 negativo. Mas, na medida'em que 0 positivo tem de se referir ao negativo para se determinar enquanto positivo, e vice-versa, cada um deles inclui 0 outro co- mo “momento” constitutivo, parte integrante de um todo formado por ele mesmo e por seu oposto que ele incluiu. $6 que o outro continua como opos- to do primeiro, mesmo quando integrado a ele. Nesse sentido, cada um dos opostos é um todo que deve abarcar, contraditoriamente, sua negacio. Se algo consegue afirmar o que é apenas pela negacio necessdria do que nao é, ent&o ele se afirma negando o outro que, porém, faz parte dele mesmo; ou seja, ele se afirma, negando-se. Na oposi¢ao desponta ja a contradigao, figura logica que se define na unidade dos opostos, por sua simultanea e miitua inclusdo e exclusio. A contradi¢ao nao elimina, entretanto, os dois termos opostos. Ao contré- rio, € 0 que os determina, que os afirma em sua oposigao. Ela é, para Hegel, criativa, viva: Algo é vivo apenas na medida em que ele contém a contradicao em si, € de fato, ele € a forga de abrigar [sich fassen] em si e suportar a contradigao. Quando um existente no consegue compreender [iibergreifi] na sua determinagao positiva "8 A férmula determinatio est negatio est na carta n® 50 da correspondéncia de Espinosa, escrita em 2 de junho de 1674 a seu amigo Jarig Jelles, a respeito da matéria e da figura dos compos. Cf. Espinosa, col. Os Pensadores, 2? ed., Sio Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 293. Mais tarde, foi cita- da em varios livros de Hegel, como a Enciclopédia das ciéncias filosdficas (12 parte, § 91, aden- do), a Ciéncia da légica, (Livro | = a doutyina do ser=, 12 parte — qualidade -, cap. 2, A, b, obser- vacio) ¢ ainda as Licdes sobre histéria da filosofia (12 parte, 12 seco, cap. 1) 36 © A DIALETICA DO AVESSO 20 mesmo tempo a sua negativa, entio ele nao é a propria unidade viva, nao © fundamento, mas se afunda na contradicao. S6 como forga viva, que se determina contraditoriamente por sua determi- nacao positiva e também pela negativa, no conflito criativo das duas, é que algo € vivo e “funda” a partir de si outras coisas. O “fundamento”, portanto, nao € uma identidade simples desse algo consigo mesmo, mas € contradité- tio. Ele “se afunda na contradig’o”, mas nao pode por isso anular-se: deve fazé-lo, s6 para dai superar e repor continuamente a contradigao enquanto forga criadora, “fundamento”. Esse “afundar-se na contradigao” €, contudo, uma categoria légica preci- sa. Na oposicao, o lado positivo € 0 negativo referem-se um ao outro, ¢ assim cada um inclui seu outro como parte integrante de si. Por outro lado, nenhum dos dois se rebaixa a ser simples parte do outro; cada um s6 pode se definir como algo inteiro, um todo. De acordo com Theunissen, “eles contém um ao ou- tro como momentos e excluem um ao outro enquanto totalidade””. Ou seja, se, para 0 lado positivo, o negativo é apenas um momento a que ele tem de se referir, este negativo nao poderia ser, portanto, ele mesmo, uma totalidade da qual o proprio positivo seria sé simples parte componente. Para definir-se como algo — necessariamente algo inteiro —, 0 positivo nao pode se deixar re- duzir a “momento” da definigao de seu oposto. Daf que recuse a ele 0 estatuto de totalidade que reivindica para si proprio. E o mesmo vale, inversamente, para 0 outro. Desse modo, a oposi¢o dos dois termos se apresenta como opo- sigdo entre a inclusao e a exclusao mituas, que pauta sua relagao. A prdpria contradicao muda de figura, entio, na dialética hegeliana. Ini- cialmente, ela aparece na oposi¢ao dos dois termos mutuamente. negativos, que sao “em si” mesmos contraditérios. Eles incluem 0 outro como “momen- to” e simultaneamente o excluem, como totalidade. Sao, cada qual, totalida- des mutuamente excludentes. Na medida, porém, em que cada uma se deter- mina somente através da negago da outra; na medida em que tudo, e nao s6 parte, do que cada uma € se define pela outra; nessa medida, excluir a outra implica excluir a si completamente de si; negar a outra € negar-se inteiramen- te, e ndo sé parcialmente. Essa negagao é, no fundo (no “fundamento” con- traditorio), autonegacio. E, com isso, a contradig&o aparece plenamente de- terminada enquanto contradigao: “para si” ou “posta”, e nao somente “em si”, de acordo com o “modo peculiar de expressao” de Hegel. B aqui que a con- tradigao “se afunda” e em que emerge como fundamento criador, vivo. Ela se 1 Hegel. Wissenschaft der Logik, Il, p. 59, apud Theunissen, op. cit., p. 319. 2 Theunissen, op. cit., p- 321. CRITICA MARXISTA # 37 “p6e” e, daf, se resolve contraditoriamente. Esta € sua defini¢ao completa na dialética idealista. E numa dialética materialista, como ela poderia ser definida? Diz Theunissen, num dos mais importantes estudos sobre 0 tema, que “em He- gel [...] 0 mesmo todo se separa em duas totalidades. Fundamentar desta forma a contradicao, é impossfvel para Marx. Pois em seu modelo € 6 0 capital, e nao o trabalho, que se pde como totalidade””". Retomemos, por- tanto, a relaco entre capital e trabalho na obra de Marx, base tanto de sua critica 4 economia politica como, dai, de qualquer discussao sobre suas concepgies légicas. Como vimos no item anterior, 4 primeira vista o trabalhador assalariado e o capitalista sao juridicamente iguais, por se defrontarem como proprietarios de mercadorias. Por outro lado, de acordo com as proprias determinagées da cir- culagao de mercadorias, ambos aparecem numa oposi¢4o: um é proprietario de dinheiro, que pagar4 como salario, e 0 outro, da mercadoria forga de trabalho, que venderd ao primeiro. Sua oposig&o decorre do fato de eles atuarem como portadores das duas formas opostas do valor — mercadoria e dinheiro. De qual- quer modo, lembrando as figuras légicas da dialética, Marx jd ultrapassou o ni- vel da identidade, ou igualdade juridica, alcangando o da diferenga dos opos- tos. Mas nessa esfera da circulacdo a forga de trabalho se apresenta como uma mercadoria em geral, oposta ao capital que aparece enquanto dinheiro em ge- ral, e nao especificamente enquanto capital. Nas palavras de Marx, contudo, © contrério mesmo do capital nao pode ser de novo uma mercadoria especifica, pois, enquanto tal, ela nao forma oposigao ao capital, j4 que a substancia do pr6- priv capital é valur-de-uso; ele nao é esta ou aquela mercadoria, mas toda mer- cadoria. [...] Portanto, 0 tinico valor-de-uso que pode formar uma oposi¢ao ao capital € 0 trabalho.” Para explicar, entéo, por que na circulacao o trabalhador é vendedor da mercadoria forga de trabalho e o capitalista, seu comprador, Marx tem de aban- donar essa esfera e descer ao nivel mais profundo das condigGes de produgio, caracterizadas pelo divércio entre trabalho e propriedade privada. Aqui ocorre a desigualdade decisiva, configurando uma oposigao de capital ¢ trabalho que determina todas as outras do sistema capitalista. A partir dessa desigualdade, constitui-se tanto a igualdade juridica entre proprietérios de mercadorias como a conseqiiente compra da forca de trabalho *" Idem, ibidem, p. 327. lax, K. - Grundrisse der Kritik der Politischen Okonomie (aqui, a edigio do Marx-Engels Werke, vol. 42, a seguir citada como G, seguido pelo n® da pagina), Dietz Verlag, Berlim, 1974, pp. 182-183 38 ¢ A DIALETICA DO AVESSO pelo capital, num ato denominado por Marx de subordinagao “formal”, aludin- do & formalidade da lei e do contrato. Essa forga de trabalho é obrigada a pro- duzir para o capital segundo circunstancias impostas por ele, passando a ser nele incluida como seu momento, como capital varidvel. E o capital se apre- senta como uma totalidade estabelecida formalmente, pela compra do trabalho vivo. Por isso, Theunissen observa que Marx “aceita a estrutura hegeliana, na medida em que ele concebe 0 dominio do capital sobre 0 trabalho como o de um todo que se ope, enquanto momento ao qual ele préprio se rebaixa, ao “seu outro’, como seu préprio momento””. Em outras palavras, mesmo tendo integrado a si a forga de trabalho, chamando-a de capital (varidvel), o capital s6 pode obrigé-la a produzir para ele se reproduzir na esfera da produgao o despojamento original, a desigualdade fundamental. Para isso, ele aparece en- carnado nos meios de produgao diante do trabalho vivo — sua parte constante posta A parte varidvel —, “rebaixando-se” ele mesmo a momento da totalida- de maior que ele compoe com “seu outro”, o trabalho. Enquanto momento, corporificado nos meios de produgio, ele exclui de si o outro momento; 0 tra- balho vivo; por outro lado, enquanto totalidade, ele inclui em si “seu outro” como capital varidvel. Ea mesma “estrutura” légica da oposigo contraditéria de Hegel, vista pelo ngulo de um dos termos, 0 capital. Mas com seu oposto, 0 trabalho, nfo ocorre o mesmo. Segundo uma pas- sagem importante e dificil dos Grundrisse, separagdo de propriedade e trabalho aparece como lei necesséria deste inter- cAmbio entre capital ¢ trabalho. © trabalho posto como 0 ndo-capital en- quanto tal €: 1- trabalho ndo-objetivado, negativamente apreendido [...] 0 trabalho separado de todo meiv de Uabalho, de todo objeto de trabalho, de sua inteira objetividade [...] completo despojamento, destituido de toda obje- tividade, pura existéncia subjetiva do trabalho. O trabalho como a pobreza abso- uta: a pobreza nfo enquanto caréncia, mas como plena exclusao da riqueza objetiva. Ou ainda como 0 ndo-valor existente [.. do, néo-valor, positivamente apreendido, ou negatividade referida a si mesma [...] O trabalho no como objeto, mas como atividade; nao como valor por si mesmo, e sim como a fonte viva do valor. [...] Nao € de modo algum contra- dit6rio que o trabalho seja por um lado a pobreza absoluta enquanto objeto e, por outro lado, a possibilidade universal de riqueza enquanto sujeito e ati- vidade; ou melhor, que ele seja a proposig&o de qualquer forma contradit6- ria, [em que ambos os lados — JG] condicionam-se mutuamente e decorrem % Theunissen, op. cit., p. 327 CRITICA MARXISTA # 39 diveseBnciarde trabalhortal:cotie ¢le:é.pressuposto coin o/oposte docapi- tal, como existéncia oposta do capital, e por outro lado, por seu turno pres- supde o capital.” Definido como 0 oposto do capital, 0 trabalho é “posto como 0 néo-capi- tal”, isto €, trabalho nao-objetivado, vivo. “Negativamente apreendido”, ele é “exclusdo completa da riqueza objetiva”, sendo despojado dos meios materiais para produzir, ao se defrontar com a “riqueza objetiva” enquanto proprieda- de alheia que o domina. Dai que ele nao possa também incluir e rebaixar o capital a seu momento, compondo por seu lado uma totalidade. Em principio, ele deveria poder fazé-lo, j4 que “positivamente apreendido” o trabalho nao- objetivado aparece enquanto substancia, “como a fonte viva do valor [...] co- mo possibilidade universal da riqueza”. Além disso, ele & “sujeito e atividade”, ou seja, é relagéo consigo mediada pela relag&o com seu outro, com 0 objeto sobre © qual trabalha e que transforma. Como “€ destitufdo de toda objetivi- dade”, porém, nao tem como formar uma totalidade, rebaixando, no caso, 0 capital a seu momento. Assim, como dizia Theunissen numa citagio anterior, “6 $6 0 capital, e nao o trabalho, que se poe como totalidade”. O capital, de qualquer forma, é contraditério em sua oposi¢ao ao traba- Iho assalariado. Numa bela passagem, Marx deixa isso claro, com uma meté- fora poderosa: O capital tem um impulso vital peculiar, o impulso a se valorizar, a criar mais-valia, a sugar a maior massa possivel de mais-trabalho com sua parte constante, os meios de produgio. O capital é trabalho morto que s6 se vivifi- ca vampirescamente, sugando trabalho vivo, € vive tanto mais quanto mais deste sugar.” Os meios de produgao — trabalho morto — encarnam o poder autonomiza- do do capital em face do trabalho. Neles, o capital se apresenta simultanea- mente enquanto parte e enquanto totalidade de seu processo de constituigio; e através deles 0 capital se opde ao trabalho vivo, obrigando-o a produzir mais-valia, “sugando” sua atividade, sua vitalidade. Desse modo, 0 “impulso vital” do trabalho morto vem, na verdade, de seu outro, do trabalho vivo, pois 6 este produz valor. Na imagem do “vampiro”, a vida do capital nao vem ori- ginalmente de si mesmo, mas da forga de trabalho, cuja objetivagao constitui a substncia do valor das mercadorias, pois apenas “sugando trabalho vivo” o “morto” retorna a vida e nela permanece. Ao fazé-lo, porém, ele lhe retira a vida da qual, por outro lado, depende. ¥G, 217-218, grifo do autor. K, I, 247 (C, 11, 189). 40 © A DIALETICA DO AVESSO Em outras palavras, ao mesmo tempo em que tem de incluir em si a forca de trabalho como seu momento varidvel, para se valorizar e se definir enquan- to capital, ele também tem de exclui-la enquanto possivel totalidade, pois, se esta o fosse, deixaria de produzir para ele e, com isso, ele deixaria de ser capital. Este impulso de exclusao determina a tendéncia de o trabalho morto negar 0 vivo, manifesta na tendéncia ao aumento da composigiio orginica do capital. A exclusao de seu oposto, no entanto, significa eliminar a “fonte viva do va- lor” de que vive o proprio capital, definido como valor que se valoriza. Se dei- xar de se valorizar, ele deixard de existir enquanto capital. Excluir seu oposto implica, entio, excluir-se de si mesmo, negar a si proprio, contradizer-se. Na medida em que tal contradig&o se estabelece apenas pelo angulo do capital, porém, ela corresponde a primeira figura da ldgica hegeliana, ou seja, A contradigao “em si” — oposi¢ao contradit6ria. Pois s6 0 capital compée uma totalidade com seu outro, incluindo-o a si e simultaneamente excluindo-o de si. Embora “substancialmente”, enquanto valor, o capital seja inteiramente cons- titufdo pelo trabalho, formalmente ele o subordina de tal modo que o define como “pobreza absoluta”, despojado da propriedade dos meios de producao e mera parte integrante de um todo maior. Formalmente o capital transcende 0 trabalho vivo, de modo que, ao negé-lo, afirma sua outra parte, 0 capital cons- tante. Embora seja contradit6rio que ele tenda a diminuir sua parte variavel em favor da constante, com o aumento da composigao organica, ele com isso ndo se elimina completamente, ndo se exclui totalmente de si ao excluir 0 outro que, formalmente, é s6 uma parte dele. O capital ndo “se afunda na contradi- 40” inteiramente. Dai Theunissen afirmar (nota 23) que “fundamentar desta forma a contradigao é impossfvel para Marx”. Essa assimetria na relacao entre capital e trabalho assalariado éa forma assumida pela contradigao na dialética materialista. Em Hegel sem dtivida a esséncia nao é uma identidade imediata, como vimos no primeiro item; nem sequer € correto dizer apenas que ela € uma identidade mediada, pois suas mediagdes poderiam ser logicamente consistentes com ela. Ao contrario, suas mediacdes a contradizem, com o que a esséncia se constitui enquanto contradi- go. Por outro lado, como esta contradigdo é plenamente desenvolvida, € “pos- ta para si”, ela é forma viva de um fundamento criador. Nao s6 se encontra na esséncia interna da realidade uma dimensao negativa, contradit6ria, mas tam- ‘bém, nesta mesma negagiio, uma dimensao positiva, que “poe”, cria realidades novas. Em Marx, porém, o aspecto positivo est4 completamente inserido no negativo, subordinado a este, que € o predominante, pois a contradigio, de- terminada unilateralmente pelo capital, nunca se resolve de modo pleno. Por isso mesmo est4 afastada a pussibilidade de uma solugéio idealista para os conflitos no mundo do capital. E também por isso sua dialética € caracteriza- da como irredutivelmente “critica e revolucionaria”. CRITICA MARXISTA # 41 Mas por que, de qualquer modo, a estrutura Iégica da contradi¢aio mate- rialista nao pode passar de uma forma a outra, isto é, de “em si” a “para si”? Por que “é impossivel para Marx” completar a transig&o dialética? Certa- mente, nao devido a opgGes filoséficas pessoais, a uma necessidade talvez de coer€ncia com seu projeto materialista, que seria externa a seu objeto es- pecifico; mas sim devido a necessidade determinada por este objeto mesmo. Recapitulemos. O capital se constitui compondo uma totalidade apenas formal com o tra- balho assalariado, ¢ nao também substancial, pois a “substancia” do valor, con- forme a defini¢ao de O capital, € o trabalho abstrato™. Daf ser este ultimo que compoe substancialmente 0 todo, jé que o capital é valor que se valoriza. Ao excluir a possibilidade de que cssc momento sc realize, isto €, de que o tra- balho efetivamente o rebaixe a parte integrante, o capital est impedindo que a substancia apareca como o que é na verdade — a totalidade “do valor e da riqueza”. Ora, a dialética hegeliana se define justamente pela elevagao da “substancia” real a “sujeito” através da reflexdo, do dobrar-se sobre si dessa substancia, que no $6 se determina, como se autodetermina. “Sujeito” signi- fica aqui o movimento de reflexao em que o real retorna a si a partir do ou- tro em que antes se projetara; movimento pelo qual ele apreende nao apenas sua existéncia substancial, mas também que esta, com suas especificagdes e particularidades, é fruto dele mesmo em seu processo de autoconstituicio. Mas 0 capital nao pode descrever perfeitamente tal movimento, porque ele nao é a verdadeira substincia. Quem deveria elevar-se de “substAncia” a “sujeito” € a forga de trabalho, a “fonte” efetiva do valor. E ela se define de fa- to como “atividade, negatividade referida a si mesma”, nas palavras dos Grundrisse citadas acima, aproximando-se da definigao hegeliana de “‘sujeito”. Contudo, ela é colocada nesta posic&o de mera atividade “ndo-objetivada” ao ser despojada da propriedade dos “objets”, meios de produgao. Seu cardter “subjetivo” vem da sua “pobreza [...] como plena exclusao da riqueza objeti- va”. Nao € esta riqueza, enquanto “substancia”, que se eleva 4 autodetermina- ¢4o, 4 posicao de um verdadeiro “sujeito”. Ao contrario, ela se coloca como 0 oposto da “atividade” que a cria, definindo-a como atividade vazia de obje- tividade, incapaz mesmo de existir por si propria enquanto atividade. A subs- tancia € como que cindida, por forga do despojamento original, em uma pura subjetividade e uma pura objetividade. E esta tiltima, autonomizada enquan- to capital, subordina formalmente a outra parte, pretendendo por isso elevar-se a posigao de “sujeito”, pois a forca de trabalho sé é posta em atividade quando © capital a emprega, organiza e associa tecnicamente aos meios de produgao. % K, 1, 52-53 (C, 1 1, 47-48), 42 #A DIALETICA DO AVESSO Dai ele se apresentar como “sujeito” do proceso. Mas ele somente se apresenta como se o fosse, na medida em que “vampirescamente” rouba a vi- talidade criadora da forga de trabalho, a parte subjetiva da “substancia” que ele separou da parte objetiva. B por meio dessa separagao real e da conse- giiente subordinacdo formal do trabalho ao capital que ocorre © quid pro quod, a inversio do movimento dialético. A forga de trabalho é uma “negati- vidade referida a si mesma”, isto é, uma relacdo consigo mediada pela rela- ¢do com seu outro, com 0 objeto sobre o qual trabalha e que transforma. Mas esse objeto nao pertence mais a ela, de forma que ela retorna a si de mios va- zias. Por isso, se a forga de trabalho é uma “negatividade referida a si”, esse cardter negativo mesmo resulta de sua “exclusao da riqueza objetiva”, da ci- sao na “substancia” que a impede de passar a “sujeito” e confere a seu opos- to essa condi¢ao formal. Por outro lado, devido & simples formalidade dessa sua condigao, 0 capi- tal também no é um “sujeito” pleno, mas cego e “automatico”, no dizer de O capital’: enquanto “sujeito”, ele sera sempre inadequado a “substincia’, j4 que esta consiste nao nele mesmo, mas em “seu outro”. De acordo com Theu- nissen, “S6 aparentemente capital posto em sua totalidade é a substancia consumada como sujeito, sé aparentemente seu contetido encontrou a forma aele adequada”™. O cardter de “sujeito” deveria ser a atividade da “substan- cia”, que se torna “contetido” ao conferir a sia forma adequada de movimen- to. Mas esse nao € 0 caso no mundo capitalista, Entende-se, desse modo, que nem sempre 0 capital consegue presidir bem o processo pelo qual ele adota as formas necessarias para sua circulagao ~ mercadoria e dinheiro — ¢ para sua produgiio e reprodugao, gerando desproporcionalidades e, em geral, uma tendéncia crdnica ao desmedido, base de suas crises recorrentes. Além disso, enquanto na contradi¢ao “posta” de Hegel a negatividade se refere plenamente a si, com o retorno a si da substncia, esse retorno nao acontece perfeitamente para o capital. A totalidade formal composta por ele tem de impedir que a substancial, pelo lado do trabalho, deixe de ser algo pu- ramente passivo e reivindique a atividade de verdadeiro “sujeito”. Ambas as totalidades sempre se excluem, portanto, mas jamais se incluem a ponto de configurat um mesmo todo, considerado de dois pontos de vista completa- mente superpostos, que é precisamente a definigao acabada da contradigao hegeliana, Para alcancar esse ponto, as totalidades, substancial e formal, de- veriam coincidir, Mas a substancial, do trabalho, nunca pode ascender acon- digdo de “sujeito”, atividade auténoma e autodeterminada, sob pena de des- ™K, |, 168-9 (C, 11, 130). 8 Theunissen, op. cit., p. 328. CRITICA MARXISTA * 43 truir 0 capital; ¢ a totalidade formal, composta por este tiltimo, é “sujeito” apenas porque rouba a substancialidade do trabalho e confere a ela um movi- mento, uma subjetividade que Ihe é alheia. Permanece, pois, uma diferenga irredutivel entre as duas e a contradicao se constitui sé como formalidade e pelo lado do capital, jamais podendo se resolver num fundamento positivo. Ha assim uma oposigao radical e insolivel no fundamento da realidade capi- talista, que sempre se repde e apenas se oculta por trés de identidades super- ficiais. A inadequagao crénica entre contetido e forma do capital repousa, por- tanto, na inversdo de substancia e sujeito, que implica a inversdo da posicao l6gica da identidade e da diferenga, de que tratou o item anterior. Ao contra- rio da dialética hegeliana, em Marx a contradigao profunda, apenas “em si”, nao se resolve porque consiste nao numa simples oposigdo entre substancia e sujeito, mas sim numa toreao em que a subjetividade € um poder alheio A substancia. Desse modo, por um lado, a contradigao materialista continua marcada pela diferenga, enquanto a idealista passa a se definir como funda- mento — contraditério, mas positivo. Por outro lado, a usurpagio da subjeti- vidade do trabalho constitui 0 fetichismo do capital: como todo formal, o tra- balho morto, objetivado, adquire uma vida artificial, atividade de empregar e organizar o trabalho vivo, Ou seja, inverte-se a relagaio de sujeito e objeto, pois a forca de trabalho é objetivada e 0 capital aparece como 0 sujeito. Essa torcao fetichista € que define a dialética materialista, 0 “carogo racional” de toda a dialética, de que se desenvolve a concepcao inteira da obra de Marx, cujas repercuss6es sobre sua arquiteténica e seu modo de exposigao devem ser enfim examinadas. O que est em jogo aqui é, mais que tudo, o proprio diagnéstico marxista da sociedade burguesa. Conclusao: o fetichismo revisitado E a assimetria da oposicao contradit6ria entre capital ¢ trabalho assala- tiado que explica 0 movimento complexo da exposi¢ao das categorias pelas quais O capital descteve 0 processo contraditério efetivo. Tal como na rea- lidade do sistema capitalista, as formas mais abstratas sempre se integram como momento das mais “concretas”, apresentadas depois e a partir delas, embora ambas se oponham dialeticamente. E mesmo com essa oposi¢aio 0 nivel mais abstrato nao chega a configurar uma totalidade da mesma enverga- dura que o mais “concreto”, 0 que constituiria uma contradigdo “para si” e fundaria um quadro categorial novo. Apesar de dialeticamente a exposi¢ao ter uma forma recursivo-progressiva, com 0 que vem depois sendo pressu- posto do que vem antes, tanto quanto este é daquele, ha um dominio das for- mas mais ricas e complexas, nas quais as mais abstratas e iniciais nao sao eliminadas, mas redefinidas em seu papel. Dai que o caminho da exposi¢ao 44 © A DIALETICA DO AVESSO categorial seja o da “concre¢ao”, no sentido do “concreto enquanto sintese de muiltiplas determinages” contradit6rias, como diz a Introdugdo de 1857”. Assim pode ser entendida, por exemplo, a j4 mencionada relagdo entre ‘a subsungao formal e a real do trabalho ao capital. A propriedade privada dos meios de produgao, juridicamente assegurada ao capitalista, exclui 0 trabalhador e o obriga a vender sua forga de trabalho. Quando essa aliena- ¢4o penetra no proprio processo de produgao imediata, o trabalhador nao tem sequer o controle técnico desse processo, pois a ferramenta escapa de suas maos e passa 4 maquina, para quem agora ele trabalha. Esse monopé- Tio do uso e do saber da técnica pel capital nao invalida seu monopélio juridico também da propriedade sobre 0 meio de produgao; ao contrario, tem neste sua base. Pur outro lado, se a subsungio formal se realiza na es- fera da circulagéo da mercadoria forga de trabalho, a real se realiza como processo posterior na da produgao imediata. Mas ai, recursivamente, ocor- re a alienacdo entre trabalho e propriedade que funda a propria subsungao formal. Desse modo, esta passa a se definir como parte integrante da sub- sungao real. Ea propria relacdo em geral entre a esfera da circulacao e a da produgao também obedece a essa légica. As determinagGes ja da circulacdo simples nao so simplesmente anuladas pelas da producao capitalista, mas também nao sio mantidas como se a elas nao se acrescentasse algo fundamental, isto 6, que Ihes dé um novo fundamento. E superado justamente 0 contetido da cir culago simples, 0 objetivo de vender para comprar valores-de-uso, produtos que satisfacam necessidades de consumo. Mas a circulagao simples existe dentro da capitalista, quando o que circula sao simples mercadorias e dinhei- ro, e nao capital-mercadoria e capital-dinheiro; quando nao ha investimento, mas simples compra de bens de consumo pelos assalariados ou pelos capita- listas que também usam assim parte da mais-valia. Nao € que a circulagdo simples seja mera hipétese irrealista, portanto mero pressuposto légico para desenvolver 0 conceito de capital; ela existe, embora de modo subordinado & circulagdo e produgao capitalista. Com sua transformagaéo em momento de um processo maior, € dado a ela agora o papel de executar fases do movimen- to mais amplo. Nao é um erro, entéo, constatar sua existéncia, mas sim cons- tatar s6 sua existéncia, reduzindo os objetivos do capital a apenas atender a necessidades sociais de consumo. Daf que os principios constitutivos dessas duas esferas — a igualdade ju- ridica dos vendedores e compradores na circulagao € a desigualdade social entre trabalhadores e capitalistas na produgao — tenha também a forma da contra- Texto jd mencionado na nota 12, com respectiva tradugao brasileira, CRITICA MARXISTA # 45 dicao “em si”. Acredita-se muitas vezes que essa desigualdade anule aquela igualdade, definindo-a como simples ilusdo ideolégica. Mas permanece o prinefpio da troca de equivalentes — suposto basico da circulaciio simples — nas compras e vendas das mercadorias que entram no processo de producaio do capital, admitindo-se inclusive, para se definir adequadamente a mais-va- lia, que especialmente a forca de trabalho é paga conforme seu valor. Mesmo quando a reprodugao dos processos sociais de alienacdio e compra da forga de trabalho “inverte a lei burguesa de apropriagao”, conserva-se essa relacaio en- tre as duas esferas. Marx diz, a esse respeito: © que aparecia antes como processo real e aqui como relagdo juridica, isto é, reconhecido como condi¢ao geral da produgdo e, dai, legalmente reconhecido, posto [gesetz] como expiessav da vunlade geral — inverte-se, revela-se [zeigr nach], através de uma dialética necessdria, enquanto div6rcio de trabalho e propriedade e enquanto apropriagio de trabalho alheio sem troca, sem equiva- lente.” Como vimos ao final do primeiro item, hé uma contradigao entre a érbi- ta juridica e a social. Mas nao no sentido de que esta faria daquela uma ilu- sao. A igualdade nao € apar€ncia iluséria da desigualdade verdadeira; é sua forma de aparecimento. Os homens se defrontam na esfera da circulacdio ja em situag6es sociais opostas, mas também ainda como possuidores de mer- cadorias equivalentes. Sua igualdade e sua desigualdade sao opostas enquanto processo superficial e processo subjacente, que nao se invalidam mutuamente, configurando uma dualidade que é 0 nticleo da apreensio da sociedade bur- guesa por Marx. Para entender sua relagao e decifrar a apar€ncia de igualda- de, é preciso ter em mente que, como a circulagdo € parte do processo global, a igualdade é momento da desigualdade mais profunda, que necesita daquela aparéncia: o trabalhador tem de ser “livre” para que o capital possa contraté- lo ou demiti-lo conforme os interesses de sua valorizacéio. O que € ilusdrio € que sé exista igualdade e liberdade, e nao também de- sigualdade. Explicar as relacdes sociais burguesas apenas ou principalmente como sendo de igualdade seria considerar o todo extrapolando o prinefpio vi- gente em seu momento ndo-fundamental. Marx acredita que a igualdade seja decisiva para distinguir 0 capitalismo dos outros modos de produgao em que se obtém o excedente pela coercio violenta. Mas isso nao significa que ela seja o fundamento do sistema, baseado, antes, na desigualdade, esta sim de- terminante da igualdade no mercado. A critica € que apontar a igualdade como a caracteristica mais importante significa reduzir a relacdo entre capi- talista e trabalhador 4 de comprador e vendedor da forga de trabalho, quando *G, 421 46 © A DIALETICA DO AVESSO realmente esta tiltima relacdo s6 existe porque o trabalhador é desapropriado dos meios de produgio. Tal desigualdade é que permite a situago em que ambos aparecem como iguais, em que o trabalhador vende a sua mercadoria em troca de uma soma de dinheiro a ela equivalente. Mesmo com a “inversao da lei burguesa de apropriacao”, do ponto de vis- ta da forma, da subsungao formal, juridica, a situagéo da troca de equivalentes é preservada. Uma forma decisiva para que 0 mercado aparega como o media- dor das relagdes entre capitalista e assalariado, compelindo apenas economica- mente este tiltimo ao trabalho e, com isso, assegurando sua “liberdade” para poder ser desempregado ou transferido de uma ocupagao para outra, conforme a necessidade do capital. Nesse sentido, a alienagio significa que a forma da apropriagao pelo trabalho ¢ da troca de cquivalentes deve permanccer, embora seja outro seu contetido. E a “mistificagao”, conseqiientemente, é que a forma parega adequada ao contetido, que a produgdo capitalista se caracterize s6 pela igualdade dos agentes, definidos simplesmente enquanto vendedores e compra- dores em geral. A ilusdo ideol6gica é, enfim, tomar a parte pelo todo. A forma légica da oposigao contraditéria permeia toda essa apreensao da sociedade burguesa por Marx. Ambas as instancias — a formal da circulagfio ea real da produgao, a igualdade juridica e a desigualdade social — séo opos- tas, e nao simplesmente complementares; negam-se, mas também se afirmam reciprocamente. Como, porém, a insténcia formal € mero momento oposto incluido da instncia real, que por outro lado a transcende, a contradigao se apresenta af apenas “em si” mesma. Para que ela passasse a sua segunda de- terminagio, contradig&o “para si”, a instancia real também deveria ser rebai- xada a momento da formal, que apareceria do mesmo modo como totalidade. S6 que, entiio, a contradic se resolveria dialeticamente, definindo-se como “fundamento” de outra realidade, numa solucdo puramente ldgica que 0 ma- terialismo recusa. Nao haveria, assim, “mistificagZio”, pois a parte e 0 todo coincidiriam no duplo movimento que vai da forma ao contetido e deste 4 forma. Mas se s6 a forma € parte e sé 0 contetido é todo, confundi-los é “mistificar” a sociedade burguesa através de uma “mistificagao” légica da identidade e da diferenga. Somente a diferenca, contudo, enquanto desigualdade social, € que forma um todo, subordinando a si a identidade, enquanto igualdade juridica. E porque a dialética idealista completa logicamente a passagem dessa contra- digo “em si” para a contradicao “posta”, que ela acredita ser o Estado capaz de resolver os conflitos da sociedade civil. Por isso, e nao tanto por uma con- fusdo de base material e superestrutura juridica, 0 idealismo nao possui o conceito de “ideologia”. Recusar sua solugao légica, apreendendo o capita- lismo conforme a primeira determinagao da contradi¢o, que no passa por si mesma a segunda, implica, finalmente, encontrar 0 “caroco racional” da dia- Iética, desvirando do avesso seu “envoltério mistico”. CRITICA MARXISTA ¢ 47

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