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Educação sexual e catolicismo no Brasil: notícias de um embate

discursivo
Marcela Franco FOSSEY
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)/Brasil

Deus fez o sexo seguro e o chamou de casamento.


(slogan cristão)

A sexualidade humana é uma temática transversal, pois envolve práticas diversas


e mobiliza saberes igualmente variados. Se nos ativermos especificamente àquela região
do discurso que trata da sexualidade no âmbito dos direitos humanos, observamos
emergir deste emaranhado que envolve o tema da sexualidade e do sexo um objeto um
pouco mais tangível, mais sólido, menos opaco, com fronteiras mais definidas. Ao
menos no que diz respeito à sua representação discursiva. A sexualidade passa a ser um
objeto específico dentro de um discurso definido, objeto que está essencialmente
relacionado a outros temas, tais como doenças sexualmente transmissíveis (DSTs),
reprodução controlada, natalidade, gravidez precoce, aborto, família – o que insere o
sexo na lista de problemas públicos de saúde, gestão, economia. Ainda nesta esfera das
questões de Estado, o sexo também tem sido descrito como um direito fundamental do
homem, envolvendo outros temas, como o preconceito e a violência sexual. O sexo é,
desta perspectiva, algo a ser tratado no âmbito dos direitos fundamentais, sendo dever
do Estado oferecer condições de exercício pleno da sexualidade a todos os indivíduos.
Neste trabalho de construção/consolidação da sexualidade como um direito –
trabalho que acreditamos ser em boa medida discursivo – certos eventos são
freqüentemente citados. Um deles tem sido considerado um marco na literatura acerca
desta problemática: a Conferência sobre População e Desenvolvimento, ocorrida em
1994, no Cairo (cf. Buglione, 2001; Corrêa e Ávila, 2003; Barsted, 2003; Vianna e
Lacerda, 2004; Farah, 2004). Seguindo a tendência de documentos mais gerais acerca
dos direitos humanos, estabeleceu-se, nesta conferência realizada pela ONU, um
consenso entre todas as nações ali representadas de que os temas da reprodução e da
sexualidade são centrais para a organização de uma sociedade e para o bem-estar de
seus indivíduos. A partir de então, a sexualidade passou, pelo menos oficialmente, para
o âmbito dos fenômenos relativos aos direitos humanos.
Assim, desta perspectiva, são associados à sexualidade o bem-estar individual, o
papel social do homem e da mulher, o respeito por si e pelo outro, as descriminações e
os estereótipos atribuídos e vivenciados em seus relacionamentos, o avanço da AIDS e
da gravidez indesejada na adolescência, entre outras coisas, que são problemas que
incidem, diretamente, na sociedade como um todo. Todos esses aspectos moveram a
sexualidade para o campo dos direitos humanos, o que fez com que a necessidade de
ações educativas que visem à gestão dos problemas oriundos das práticas sexuais dos
indivíduos seja um ponto pacífico nas esferas governamentais de quase todos os países,
especialmente os ocidentais.
A educação sexual aparece, neste cenário, como uma das formas de mostrar que
o “bom” sexo não só é algo natural, mas também necessário para o bem-estar físico e
mental dos indivíduos e que, portanto, deve ser garantido por lei. De fato, tem sido cada
vez mais difundida nas esferas políticas envolvidas com o tema (organizações,
ministérios, associações) a idéia de que a educação – seja por meio de uma educação
formal nas escolas, seja por meio de campanhas públicas – é a melhor forma de garantir
uma população sadia também no que diz respeito a sua sexualidade, por meio da difusão
de conceitos como sexo seguro, planejamento familiar, contracepção, saúde e direitos
reprodutivos, relações homoafetivas, entre outros.
No contexto nacional brasileiro, diversas campanhas governamentais estão em
andamento. Sob responsabilidade do Ministério da Saúde, o Programa Nacional de DST
e AIDS, fundado em 1986, tem como objetivo reduzir a incidência do HIV/aids e
melhorar a qualidade de vida das pessoas vivendo com a doença. O foco de suas
políticas é o “delineamento de ações que favoreçam a adoção de comportamentos
menos arriscados à saúde, a diversificação e a ampliação da oferta de serviços de
assistência e de prevenção” (informações disponíveis no site do Ministério da Saúde,
(www.saude.gov.br). Para tanto, difunde uma ampla gama de materiais educativos,
voltados para diferentes públicos. Por exemplo, no carnaval (época em que as
campanhas são intensificadas) de 2008, distribuiu gratuitamente 19,5 milhões de
preservativos masculinos1, 700 mil bandanas e tatuagens com o slogan “Eu tenho
atitude, uso camisinha” e mais de 3 milhões de folders informativos que, com o slogan
“Bom de cama é quem usa camisinha”, indicava com ilustrações e texto explicativo
como colocar o preservativo masculino. Além disso, no final informava: “Camisinha na

1
Vale mencionar que os preservativos gratuitos são entregues ao logo de todo o ano nos postos de saúde.
Em 2008, o governo federal repassou 406 milhões de camisinhas para serem entregues à população
sexualmente ativa em todos os estados e municípios brasileiros.

2
Farmácia Popular a preço de custo. Mulheres também podem contar com a camisinha
feminina”, seguido do site do Ministério da Saúde. Além desses materiais educativos
distribuídos para os foliões, veiculou nos canais de TV abertos um vídeo 30 segundos,
que também difundia o uso do preservativo masculino.
Além desse programa voltado para a prevenção da AIDS, há o Programa de
Assistência Integral à Saúde da Mulher, fundado também em 1984. O programa
contempla diversas políticas de saúde das mulheres e adolescentes, envolvendo não
apenas aspectos sexuais e reprodutivos, mas também o câncer, a saúde da mulher na
terceira idade, entre outros. As ações desenvolvidas especificamente no campo da
educação sexual envolvem distribuição de cartilhas – como a cartilha “Direitos sexuais,
direitos reprodutivos e métodos anticoncepcionais” (2006) – e de métodos
anticoncepcionais (pílulas e camisinhas femininas e masculinas), inclusive os de
emergência2.
No campo da educação nas escolas, vale mencionar a introdução, por
determinação do Ministério da Educação, do programa de educação sexual no currículo
escolar a partir da elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1997.
Orientação sexual é um dos temas transversais propostos3: os temas transversais têm
um funcionamento, dentro da grade curricular, diferente do das disciplinas
convencionais (Português, Ciências, Matemática...). Estas devem integrar as áreas dos
temas transversais, de acordo com a compatibilidade temática. A proposta é que o
assunto seja trazido para a sala de aula conforme a compatibilidade temática, dentro do
horário das disciplinas tradicionais.
Todas essas ações – tanto as da área da saúde quanto da educação escolar – têm
por base dois princípios:
i. O de que a sexualidade é uma necessidade humana básica, que tem reflexos na
personalidade de todo indivíduo e que tem papel essencial para o bem-estar
individual, interpessoal e social. Os direitos sexuais são, então, associados aos
direitos humanos universais, os quais, por sua vez, estão embasados nas noções
de liberdade inerente, dignidade e igualdade de todos os seres humanos;
ii. E o de que é necessário proporcionar a todos os cidadãos acesso a um saber a

2
Todos os materiais educativos mencionados neste trabalho estão disponíveis para download no site do
Ministério da Saúde: www.saude.gov.br
3
Os outros temas transversais propostos são: ética, saúde, meio ambiente, pluralidade cultural – temas
abordados nas 9 séries do ensino fundamental – e trabalho e consumo – tema abordado nas três últimas
séries.

3
respeito do sexo por meio de políticas educacionais, tornando-os aptos a assumir
sua sexualidade de modo positivo e responsável.
Ou seja, a sexualidade, desta perspectiva enunciativa, envolve não apenas
direitos, devido a sua natureza psico-social, mas também responsabilidades, pelas
conseqüências que as práticas sexuais apresentam. Assim, a noção de “sujeito que sabe
e é responsável” atravessa todo o conjunto de diretrizes e recomendações que estão
buscando formar cidadãos conscientes de sua sexualidade.
Embora essas sejam campanhas e documentos que indicam diretrizes para
educação e saúde no Brasil, eles representam um movimento que se dá em uma escala
mais ampla que a nacional. Isto é, pelas citações presentes ao longo dos textos, pelas
bibliografias, pelos termos usados e pelo incentivo a certo tipo de atitudes (uso de
anticoncepcionais e camisinha, por exemplo) – ou seja, pelo seu intertexto – esses
documentos dão voz a organizações mundiais como UNESCO, OMS, ONU, UNICEF,
indicando o vínculo institucional profundo entre as decisões tomadas em território
nacional e em outras instâncias de representação mundial.
No entanto, ainda que tais instâncias reguladoras sejam detentoras de forte
credibilidade em uma sociedade como a nossa, essas propostas encontram forte
oposição de outras instituições sociais. Falamos, no caso, da Igreja Católica4, que,
atualmente, parece reger o coro dos que vêem em uma campanha pelo uso de
preservativo feita nas escolas, por exemplo, um incentivo à promiscuidade precoce.
A sexualidade humana, para a Igreja Católica, tem outras conotações e está
profundamente associada à união conjugal entre um homem e uma mulher. Não se pode
– diz a Igreja – separar arbitrariamente as “duas dimensões do ato conjugal” (“unitiva” e
“procriativa”). Somente no matrimônio, cuja função é a formação da família, é que a
prática sexual pode ser uma prática legítima. Por isso, a sexualidade só pode ser
expressão do amor divino, tornando-se verdadeiramente humana, quando integrada à
relação conjugal e associada ao nascimento dos filhos, o que torna o sexo uma prática
cujo objetivo está além da satisfação dos desejos da carne. Dom Rafael Llano Cifuentes,
titular da diocese de Nova Friburgo (RJ/Brasil), em “Sexualidade humana: verdade e
significado” (s/d), afirma:

4
Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000, 73,8% dos
brasileiros – cerca de 125 milhões de pessoas – eram católicos. O catolicismo tem uma presença sólida no
Brasil, o que tem reflexos bastante concretos na elaboração de leis e diretrizes de saúde pública, como
veremos adiante

4
“Todos os instintos têm uma finalidade, uma imediata e outra mediata ou final. O
instinto alimentar, por exemplo, satisfaz primeiro o apetite [...] mas não é esta a
sua finalidade última. Esta finalidade é a sustentação do organismo, a nutrição do
nosso corpo. Quando uma pessoa come em excesso para satisfazer apenas o
apetite, o prazer de comer está prejudicando a sua saúde, está desvirtuando a
finalidade última do instinto. Por isso a gula é um pecado. Não é pecado por
experimentar o prazer da comida, mas por subverter a ordem do instinto alimentar,
colocando o prazer acima da função nutritiva. [...] Pois bem, com o instinto sexual
acontece o mesmo. Ele satisfaz primeiro o apetite, o prazer sexual, consegue
depois a vinculação dos corações e dos corpos e, por último, a união das moléculas
masculina e feminina, a união do espermatozóide com o óvulo. Há uma seqüência
perfeita. Deus nos deu a atração sexual para cumprimos uma nobre finalidade: o
amor e, em decorrência, o nascimento de uma nova vida humana.”

Ou seja, na tradição católica, o sexo só será aceito dentro do casamento, somente


entre um homem e uma mulher, como meio de fortalecer os laços familiares e,
principalmente, como forma de concepção de uma nova vida. O prazer que o sexo pode
proporcionar jamais deve ser colocado em primeiro plano. Por isso, a função sexual só
tem seu verdadeiro sentido dentro do matrimônio. O que escapa a esta regra é desvio
moral e contrário à vontade de Deus.
Para difundir esta concepção de sexualidade humana, o Vaticano, por meio do
Pontifício Conselho para a Família5 e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB)6, tem feito circular diversos textos que, em geral, ou buscam orientar os fiéis a
respeito de uma boa conduta sexual (tanto para si mesmos quanto para a educação de
seus filhos) ou expõem o posicionamento de membros da Igreja a respeito de questões
relacionada à sexualidade (casamento, família, aborto e também educação sexual, o que
abarca tanto os programas a serem desenvolvidos nas escolas quanto as campanhas de
prevenção às DSTs, gravidez precoce, etc.).
É o caso, por exemplo, do artigo “Programa de Distribuição de Preservativos”
(2003), disponível no site da CNBB, em que o autor, Dom Rafael Llano Cifuentes,
questiona a eficácia e o embasamento moral do programa Federal de distribuição de

5
Os Pontifícios Conselhos (para os Leigos, para a Unidade dos Cristãos, entre outros), juntamente com
a Secretaria do Estado do Vaticano, as Congregações, os Tribunais, as Comissões e as Academias
Pontifícias e os Pontifícios Comitês, formam parte do corpo administrativo do Vaticano – a Cúria
Romana.
6
Outras organizações ligadas (mais ou menos institucionalmente) ao Vaticano também fazem circular
uma grande quantidade de textos a respeito da sexualidade humana. Só na internet, há uma enorme
variedade de sites que são total ou parcialmente voltados para a divulgação da “sexualidade cristã”. Há,
por exemplo, a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, uma organização fundada em julho de
1993, com sede em Brasília-DF, cuja finalidade é, segundo informações disponíveis em seu site oficial
(www.providafamilia.org.br), a) defesa da vida humana desde a concepção até a morte natural, sem
exceções e b) defesa dos valores morais e éticos da família, relacionados, direta ou indiretamente com a
finalidade de que trata a letra "a" acima. No entanto, para o presente trabalho, vamos levar em
consideração apenas os sites oficiais ligados ao Vaticano.

5
preservativos nas escolas públicas do ensino fundamental e médio. E também do artigo
“Sexualidade humana: verdade e significado” (1995), disponível no site do Vaticano,
em que Trujillo e Sgreccia, defendem o direito inalienável dos pais de instruírem seus
filhos a respeito da sexualidade. Os autores afirmam:

“Através de um diálogo confiante e aberto, os pais poderão não só guiar as filhas


para enfrentar toda a perplexidade emotiva, mas ainda manter o valor da castidade
cristã na consideração do outro sexo. A instrução tanto das meninas como dos
rapazes deve procurar evidenciar a beleza da maternidade e a maravilhosa
realidade da procriação, assim como o profundo significado da virgindade. Deste
modo, serão ajudados a opor-se à mentalidade hedonista hoje muito presente e, em
particular, prevenir, num período tão decisivo, aquela ‘mentalidade contraceptiva’
desgraçadamente muito difusa e com a qual as filhas deverão defrontar-se mais
tarde, no matrimônio”.

É importante notar que a sexualidade humana é um tema católico por excelência,


o que se evidencia, por exemplo, pela obrigatoriedade do celibato e da castidade para
padres e freiras católicos – e para todos os que não se encontram casados. Sem
mencionar o valor simbólico da Virgem Maria. Assim, sexualidade e “capacidade de
controle dos instintos” caminham lado a lado no discurso da Igreja desde tempos
“imemoriais”. Como afirma Foucault (1976), ainda que cerceados por uma polícia
discursiva bastante rigorosa, os discursos sobre o sexo, inicialmente decorrentes da
necessidade de confissão dos pecados da carne, proliferam desde o século XVII. Ou
seja, mesmo com um propósito repressor ou de controle, o sexo está na ordem do
discurso desde uma época reconhecida pela repressão.
No entanto, o que parece instigante são os novos temas que a igreja decidiu
abordar desde o final do século passado – período em que também foram fundados os
diversos programas governamentais na área da Saúde e da Educação (mencionados mais
acima). É a partir da década de 80 que começam a circular textos produzidos pelo
Vaticano, tanto para reafirmar seus valores tradicionais (casamento, família, castidade)
quanto para negar as novas propostas que desde então entraram em pauta.
Considerando, então, essa efervescência discursiva a respeito de como a
sociedade deve lidar com as práticas sexuais dos indivíduos é que essa proposta de
pesquisa tem como recorte histórico textos produzidos a partir de 1980. De nosso ponto
de vista teórico (que é, a saber, o da Análise do Discurso Francesa), os discursos se
apresentam simultaneamente como “integralmente históricos” e “integralmente
lingüísticos”. Como afirma Maingueneau, “as unidades do discurso constituem, com
efeito, sistemas, sistemas significantes, enunciados, e, nesse sentido, têm a ver com uma

6
semiótica textual; mas eles também têm a ver com a história que fornece a razão para as
estruturas de sentido que elas manifestam” (1984:16). Isso significa que a análise que
propomos leva em conta tanto as condições históricas que tornam possível falar, desde
meados da década de 80 do século passado, de um modo específico sobre educação
sexual – e os debates e injunções que derivam deste falar – quanto a textualidade que
materializa tais discursos. O que buscamos, enfim, é descrever a articulação de um
funcionamento textual e discursivo e sua inscrição histórica.
Desta forma, o que podemos observar, a partir do posicionamento de instituições
laicas e da Igreja, em relação à sexualidade humana, e mais especificamente, em relação
à educação sexual, é que há um intercruzamento de discursos institucionais. Todos eles
parecem buscar “o verdadeiro sentido da sexualidade humana”, que deve ser ensinado
aos indivíduos de nossa sociedade. Salvação da alma ou do corpo, Estado e Igreja lutam
pela verdade deste espaço discursivo.
Um modo bastante produtivo de constatar como esses discursos circulam na
sociedade brasileira e os valores sociais e políticos a eles associados é observar a
influência destas instituições na elaboração de leis e de políticas públicas de saúde –
inclusive porque, muitas vezes essas questões não são vistas como questões de saúde
pública. De tempos em tempos, tem-se a oportunidade de observar, em diversos
veículos midiáticos, como enunciadores representantes dos posicionamentos laico e
cristão “reagem” diante de temas que se relacionam com a sexualidade humana. Por
exemplo, em maio de 2007, o governo federal brasileiro apresentou um novo programa
de planejamento familiar que previa, entre outras medidas, a venda de anticoncepcionais
com 90% de desconto em farmácias credenciadas e o aumento da oferta de
contraceptivos gratuitos em postos de saúde. Representantes católicos criticaram o novo
programa, afirmando, por exemplo, que “que a saúde brasileira tem questões mais
urgentes e que a decisão atende a interesses de ‘empresas que querem vender os seus
produtos’”7, enquanto que representantes do governo defenderam a medida, afirmando
que “[Os métodos anticoncepcionais] não estão chegando na quantidade e com a
regularidade necessária para que as famílias possam planejar quantos filhos querem
ter”8.
Também em maio de 2007, outro debate estampou as folhas dos jornais: a
proposta de um plebiscito sobre a legalização do aborto deu mais uma vez a

7
“Arcebispo faz crítica a pílula mais barata”. Folha de São Paulo, Cotidiano, 29 de maio de 2007.
8
“Governo anuncia anticoncepcional a R$0,40”. Folha de São Paulo, Cotidiano, 29 de maio de 2007.

7
oportunidade de ambos os posicionamentos declararem suas opiniões. Interrupção de
gravidez indesejada ou assassinato, exercício de um direito ou violação da vida de
outrem, questão de fé ou de saúde pública, o aborto novamente fez falar enunciadores
cristãos e laicos.
A questão do aborto é absolutamente polêmica, não apenas no Brasil: por um
lado, defende-se que o feto é uma individualidade e uma vida, e que não cabe a mulher
decidir pela manutenção ou não desta vida. É esta a premissa que faz do aborto um
crime no Brasil. No entanto, ainda que seja um crime, estima-se que são realizados,
anualmente, cerca de 1 milhão de abortos em clínicas clandestinas, o que torna o
procedimento altamente inseguro e o quarto responsável por morte materna, segundo
dados do Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda segundo dados oficiais, cerca de 250
mil mulheres são internadas anualmente em hospitais da rede pública de saúde para
fazerem raspagem na região do útero após um aborto inseguro. A maioria delas é jovem
e pobre.
Assim, o Estado, embora ainda a considere uma prática ilegal em quase todas as
circunstâncias (com exceção dos casos em que há risco de vida para a gestante e em que
a gestação é decorrente de violência sexual), tem mostrado interesse na ampliação das
possibilidades de aborto legal. Em junho de 2008, a descriminalização do aborto foi
tema de debates na Câmara dos Deputados. Essa série de debates foi realizada com o
objetivo de ouvir os favoráveis e os contrários ao projeto de lei 1.135/91, que pede a
supressão do artigo do Código Penal que torna crime a gestante praticar aborto. A
matéria tramita há 17 anos na Câmara. Para essa audiência pública, foram convidados
ministros, especialistas, religiosos, representantes de diversos setores da sociedade
considerados aptos a dar contribuições relevantes a respeito do tema em questão. As
audiências foram acompanhadas por manifestantes pró e contra o aborto e, depois de
um mês, em julho de 2008, a Câmara rejeitou o projeto de lei, refletindo, de certa forma,
o modo como o aborto é visto pela população em geral: uma pesquisa feita pela Data
Folha (instituto de pesquisa pertencente ao grupo Folha, do qual faz parte o jornal Folha
de São Paulo) em abril de 2008 indicou que 68% dos brasileiros querem que a lei de
aborto não sofra qualquer mudança.
Outro exemplo é a iniciativa do Supremo Tribunal Federal de discutir, em
setembro de 2008, a possibilidade de interrupção da gravidez em casos de anencefalia.
Novamente, médicos, cientistas e parlamentares foram ouvidos ao longo de quatro
sessões e o julgamento final – que, caso favorável, dispensará autorização jurídica às

8
mães que optarem pelo aborto em caso de anencefalia – deverá ser realizado este ano.
Vale mencionar também a celeuma que causou entre enunciadores de ambos os
posicionamentos a decisão do Ministério da Saúde de dispensar a necessidade de receita
médica para ter acesso a métodos de contracepção de emergência (ou pílula do dia
seguinte) e de distribuir gratuitamente o medicamento nos postos de saúde. A tese
central defendida por aqueles contrários a distribuição é que a vida humana, com seus
46 cromossomos, surge no instante da fecundação e que a pílula do dia seguinte tem,
deste modo, uma ação abortiva, pois não impede uma gravidez, mas que uma vida siga
seu “desenvolvimento natural” até a “morte por velhice”. Por esse motivo, a pílula do
dia seguinte não poderia nem sem vendida nas farmácias nem ser distribuída à
população, pois se trata de uma medicação abortiva e o aborto não é permitido no
Brasil. Além disso, assim como outros métodos anticoncepcionais, à contracepção de
emergência subjaz o sexo sem fins reprodutivos e, eventualmente, o sexo fora do
casamento.
Por sua vez, os favoráveis à ação governamental, defendem que a distribuição
gratuita é uma forma de ampliar os direitos de cidadania das mulheres das camadas
populares e que a facilitação do acesso é imprescindível devido à necessidade de se
tomar a pílula o quanto antes: depois de 5 dias, ela não funciona na prevenção da
gravidez indesejada. É interessante que um dos argumentos usados é que a ampliação do
uso do medicamento é uma maneira de diminuir a necessidade do recurso ao aborto, o
que mostra que a “ação abortiva” da pílula está longe de ser um consenso.
A apresentação de algumas situações polêmicas como as acima tem como
objetivo chamar a atenção para a força política e social de ambas as instituições –
católica e laica – em decisões sobre o melhor modo de gerir a sexualidade dos
indivíduos da nossa sociedade. No que diz respeito à Igreja Católica, sua força se deve,
em boa medida, ao fato do catolicismo e seus valores serem predominantes entre a
população brasileira e também pelo fato de haver uma grande quantidade de
parlamentares católicos.
Embora o Estado esteja separado da Igreja desde a Constituição de 1981, sempre
que se torna necessário colocar em pauta propostas de ações governamentais que de
alguma forma são contrárias aos dogmas da Igreja, volta à tona o questionamento de
muitos sobre se, de fato, vivemos em um Estado laico. Enquanto que para alguns a
interferência da Igreja em assuntos como os citados acima fere o laicismo do Estado
brasileiro, representantes da fé católica defendem que, sendo uma organização da

9
sociedade, a Igreja não pode ficar a parte de decisões que envolvam grandes temas
referentes ao bem comum da nação. Estes afirmam que ser um Estado laico não
significa impedir que pessoas participem ativamente da decisão ou proibição de
propostas governamentais unicamente por seguirem uma doutrina religiosa. Segundo
Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, em entrevista à revista Época (ed.468,
14/maio/2007), “o Estado é laico, mas a sociedade não. Não se pode confundir o Estado
com a s
Vimos que o que Estado e Igreja entendem por “sexo seguro” difere
radicalmente. Outras noções fortemente relacionadas à sexualidade humana também se
tornam distintas na medida em que muda o posicionamento dos enunciadores, como é o
caso da noção de “família” e a da própria função da educação sexual. Outra diferença
radical entre os dois posicionamentos é que, enquanto os textos produzidos pela Igreja
se voltam quase exclusivamente para casais sem filhos (ainda) e para os pais – que
seriam os responsáveis por excelência pela educação sexual de seus filhos – os textos
laicos dirigem-se a diversos co-enunciadores possíveis: além dos pais, crianças e
adolescentes, secretarias de educação, educadores.
Há, no entanto, um aspecto que é comum tanto aos textos produzidos pelos
órgãos governamentais quanto aos que são produzidos pelos eclesiásticos: a natureza
normativa de seus conteúdos. Em geral, o que se busca é instruir seus “leitores” (pais,
educadores ou os próprios jovens) sobre condutas sexuais adequadas.
Assim, atrás da aparente “liberdade” das ações governamentais, há um “saber”
que deve ser disponibilizados aos indivíduos e que gera uma responsabilidade. Este
saber estipula práticas sexuais legítimas e, com isso, torna válido apenas aquilo que é
reconhecido como o “bom sexo”. Ou seja, há controle de uma suposta liberdade
absoluta e, assim como a Igreja, o Estado impõe regras de comportamento sexual.
Necessidades políticas, econômicas, técnicas instauraram, ao longo dos últimos
três séculos, a produção de um saber, de uma racionalidade que leva em conta o sexo e
as conseqüências de sua prática. Segundo Foucault, “cumpre falar do sexo como uma
coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar mas gerir, inserir em sistemas
de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo”. E,
sendo assim, é relevante considerar “quem fala, os lugares e pontos de vista de que se
fala, as instituições que incitam a fazê-lo, que armazenam e difundem o que dele se diz,
em suma, o 'fato discursivo' global, a colocação do sexo em discurso” (1976:27). A
organização de uma sociedade (e sua “fortuna”) parece estar atrelada, desta perspectiva,

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inevitavelmente à forma como o sexo é praticado. As conseqüências das práticas sexuais
dos indivíduos as tiram do âmbito privado para colocá-las no centro de decisões
políticas. Toda uma rede de observações sobre o sexo faz do “comportamento sexual
dos casais uma conduta econômica e política deliberada”.

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