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Ficha técnica:

Título: Repressão Sexual: essa nossa (des)conhecida


Coleção: Leituras afins
Autor: Marilena Chauí
Gênero: Filosofia - Sexualidade
Editora: Brasiliense
Digitalização: Marcilene Chaves e Vítor Chaves
Revisão: Marcilene Chaves
Numeração de páginas: Cabeçalho
Número total de páginas: 237
Marilena Chauí

Repressão Sexual
essa nossa (des)conhecida

. 1ª edição 1984
9ª edição
Copyright © Marilena de Souza Chaui
Capa: Ettore Bottini
Revisão: José G. Arruda Filho e Nobuka Rachi
Editora Brasiliense S.A.
R. General Jardim, 160 01223 - São Paulo - SP Fone (011) 231-1422
Coleção Leituras Afins
Canibalismo Amoroso — Affonso Romano de SantAnna
Colcha de Retalhos — Estudos sobre a Família no Brasil — Diversos
Autores
A Contestação Homossexual — Guy Hocquenghen
Crime e Cotidiano — A Criminalidade em São Paulo (1880-1924) — Boris
Fausto
Em Busca de Um Homem Sensível — Anais Nin
A Função do Orgasmo — Wilhelm Reich
Grafitos de Banheiro — A Literatura Proibida — Gustavo Barbosa
Nos Submundos da Antigüidade — Catherine Salles
Os Papéis Sexuais — John Money e Patrícia Tucker
Pornéia — Aline Rousselle
Sexo e Juventude: Um Programa Educacional — Fund. Carlos Chagas
Sexo e Poder — Diversos Autores
As Últimas Palavras do Herege Pier Paolo Pasolini
Um Ensaio Sobre a Revolução Sexual — Daniel Guérin
Vivência — História, Sexualidade e Imagens Femininas — Fund. Carlos
Chagas
Coleção Primeiros Passos
O que é Amor — Betty Milan
O que é Família — Danda Prado
O que é Feminismo — Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy
. O que é Homossexualidade — Peter Fry e Edward MacRae
O que é Ideologia — Marilena Chauí
O que é Psicanálise — Rubem Keinert
Coleção Tudo é História
A Chanchada no Cinema Brasileiro — Afrânio M. Catani e José Inácio de M.
Souza
Os Crimes da Paixão — Mariza Corrêa
A Família Brasileira — Eni de Mesquita Samara
Coleção Encanto Radical
Emma Goldman — A Vida como Revolução — Elisabeth S. Lobo
Henry Miller — Nenhuma Ousadia é Fatal — Marcos Moreira
Mae West — Nunca uma Santa — Mário Mendes
Pier Paolo Pasolini — Orfeu na Sociedade Industrial — Luiz Nazário
Sigmund Freud — A Conquista do Proibido — Renato Mezan
Coleção Cantadas Literárias
História de Piera — Dacia Maraini e Piera Degli Esposti
Porcos com Asas — Diário Sexo-Político de Dois Adolescentes — Marco L.
Radice e Lídia Ravera
Tanto Faz — Reinaldo Moraes
Circo de Letras
Cartas na Rua — Charles Bukowski
Mulheres — Charles Bukowski
Para Isabela, de amor eprazer recém-nascida
Agradeço à Ci, primeira leitora, tão exigente que sabe que ”Livros são
papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta. A
distinção entre nada e coisa nenhuma ”, como já disse Fernando Pessoa.
Agradeço ao Mike, cuja sensibilidade e lucidez, convertidas em fino humor,
arrancaram este livro da impossibilidade onde mergulhara.

Índice

Observações preliminares 9
Contos de fadas 30
Édipo-Rei 55
Repressões nossas conhecidas 77
Sexo e pecado 83
Sexo e imoralidade 113
Sexo e ciência 167
Não existe pecado ao sul do Equador? 188
Bibliografia 233

Por favor, leia este parágrafo


Este livro foi escrito para a Coleção Primeiros Passos, mas a autora, muito
prolixa, ultrapassou as medidas escrevendo mais páginas do que
comporta aquela Coleção (provavelmente, ao findar a leitura, o leitor
sorrirá, compreendendo o sentido do excesso verbal). O caso é que o
estilo adotado é o de Primeiros Passos {parágrafos curtos, pouca citação,
ausência de notas de rodapé, escolha de palavras acessíveis ao leitor mais
jovem). A autora pede desculpas pela extensão do texto. Será bem-vinda
a divergência de idéias e opiniões, ainda que perturbe o inevitável
narcisismo do ato de escrever.
Marilena Chauí
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Observações preliminares

Sob certos aspectos, poderíamos dizer que um livro sobre a repressão


sexual seria algo como uma obra que tivesse por título: Deus e sua Época.
E como Deus é eterno, já imaginaram a extensão de ”sua época”?
Por que essa analogia? Porque desde que o mundo é mundo, seres
humanos e animais são dotados de corpos sexuados e as práticas sexuais
obedecem a regras, exigências naturais e cerimônias humanas.
Quando, portanto, teria começado algo chamado repressão do sexo? E,
acaso, teria terminado, a ponto de que sobre ela fosse possível escrever
livros?
Falamos em regras e cerimônias.
A repressão sexual pode ser considerada como um conjunto de
interdições, permissões, normas, valores, regras estabelecidos histórica e
culturalmente para controlar o exercício da sexualidade, pois, como
inúmeras expressões sugerem, o sexo é encarado por diferentes
sociedades (e particularmente pela nossa) como uma torrente impetuosa
e cheia de perigos — estar ”perdido de amor”, ”cair de amores”, ser
”fulminado pela paixão”, beber o ”filtro de amor”, receber as ”flechas do
amor”, ”morrer de amor”.
As proibições e permissões são interiorizadas pela consciência individual,
graças a inúmeros procedimentos sociais (como a educação, por exemplo)
e também expulsas para longe da consciência, quando transgredidas
porque, neste

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caso, trazem sentimentos de dor, sofrimento e culpa que desejamos
esquecer ou ocultar.
Temos, assim, um fenômeno curioso, qual seja, o de que algo suposto ser
meramente biológico e meramente natural (sexo) sofre modificações
quanto ao seu sentido, à sua função e à sua regulação ao ser deslocado do
plano da Natureza para o da Sociedade, da Cultura e da História.
Deslocamento que aparece com maior nitidez quando nos lembramos que
reprimir, numa das acepções oferecidas pelos dicionários, significa ocultar,
dissimular, disfarçar. Com efeito, a repressão sexual será tanto mais eficaz
quanto mais conseguir ocultar, dissimular e disfarçar o caráter sexual
daquilo que está sendo reprimido, um dos melhores exemplos disso
estando nos sonhos nos quais objetos, pessoas e situações que parecem
nada ter de sexual estão sendo mobilizados para mascarar conteúdos e
desejos altamente sexualizados.
Via de regra, antropólogos e psicanalistas consideram que o momento da
passagem do sexo ”natural” ao sexo ”cultural”, isto é, simbolizado e
sujeito a códigos, ocorre com a determinação do primeiro e mais
importante dos interditos: a proibição do incesto.
Sobre isto convém fazermos duas observações. Em primeiro lugar, como
mostram os estudos antropológicos e históricos, o incesto não recai sobre
as mesmas relações em todas as sociedades. Se, em nossa sociedade, ele
se refere à chamada família restrita (cônjuges, filhos, irmãos), proibindo
relações sexuais entre pais e filhos, irmãos, avós e netos (e apenas
veladamente as relações entre primos de primeiro grau e entre tios e
sobrinhos de primeiro grau), em outras sociedades, além da proibição
referente à família restrita, muitas outras se acrescentam, atingindo o que
se denomina de família ampliada, em certos casos, um grupo social
inteiro. Há regras controlando a exogamia (alianças externas) e a
endogamia (alianças internas) e o chamado sistema de parentesco,
extremamente complexo em muitas sociedades.
Em segundo lugar, a eficácia da proibição do incesto dependerá não
apenas da força das normas e dos castigos, mas de sua interiorização
plena, inconsciente. Por esse motivo, os estudiosos falam no tabu do
incesto, isto é, na transformação do incesto em falta cuja gravidade não
pode ser reparada de modo algum, senão pela morte do infrator, porque
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seu ato põe em risco a vida de um grupo inteiro, de uma sociedade
inteira. A peculiaridade do pavor gerado pelo tabu está em que a morte do
infrator, na maioria dos casos, não precisa sequer da intervenção física ou
direta do grupo, pois o transgressor morre de culpa, medo, isolamento,
loucura. O tabu é interdição sagrada e divinizada, tanto mais respeitada
quanto mais distante no tempo estiver sua origem e quanto mais invisível
forem os poderes que o decretaram.
Nesta perspectiva, podemos dizer que o fenômeno ou o fato da repressão
sexual é tão antigo quanto a vida humana em sociedade, mas que o
conceito de repressão sexual é bastante recente, isto é, que a reflexão
sobre as origens, as formas e os sentidos desse fato, seu estudo explícito,
datam do século XIX. Em outras palavras, as práticas sociais de controle,
proibição e permissão do sexo são antiqüíssimas, porém o estudo de seu
sentido, de suas causas, de suas variações no tempo e no espaço é um
estudo recente, não sendo casual que os dicionários registrem como
tardio o surgimento da palavra sexualidade, momento em que o termo
sexo passa a ter um sentido muito alargado, especialmente quando os
estudiosos passaram a distinguir e diferenciar entre necessidade (física,
biológica), prazer (físico, psíquico) e desejo (imaginação, simbolização).
Esse alargamento fez com que o sexo deixasse de ser ”encarado apenas
como função natural de reprodução da espécie, como fonte de prazer ou
desprazer (como realização ou pecado), para ser encarado como um
fenômeno mais global que envolve nossa existência como um todo, dando
sentidos inesperados e ignorados a gestos, palavras, afetos, sonhos,
humor, erros, esquecimentos, tristezas, atividades sociais (como o
trabalho, a religião, a arte, a política) que, à primeira vista, nada têm de
sexual.
Quem consultar um dicionário, notará que o substantivo repressão é
referido ao verbo reprimir e que este possui seis sentidos principais: 1)
suster ou conter um movimento ou uma ação, reter, coibir, refrear,
moderar; 2) não manifestar, dissimular, ocultar, disfarçar; 3) violentar,
oprimir, vexar, tiranizar; 4) impedir pela ameaça e pelo castigo, proibir; 5)
castigar, punir; 6) conter-se, dominar-se, moderar-se, refrear-se.
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Por seu turno, repressão é definida como ato de reprimir (naqueles seis
sentidos) ou como efeito desse ato. Porém, aos sentidos do verbo vem
acrescentar-se mais um para o substantivo. Registra o dicionário: em
psicologia: mecanismo de defesa mediante o qual os sentimentos, as
lembranças dolorosas ou os impulsos desacordes com o meio social são
mantidos fora do campo da consciência. Este último sentido também
aparece nos dicionários de psicanálise, onde se lê que repressão é a
operação psíquica tendente a fazer desaparecer da consciência um
conteúdo desagradável ou inoportuno, conteúdo que pode ser uma idéia
ou um afeto.
O simples exame dos dicionários sugere algo curioso sobre a repressão e o
reprimir. Nota-se, em primeiro lugar, que reprimir à segurar ou
interromper um movimento ou uma ação e que isto é feito seja pela
punição e pelo castigo, seja pela proibição e pela ameaça, seja pelo
sentimento do desagrado que leva a dar sumiço em alguma idéia, afeto ou
ação, ocultando-os. Há, portanto, procedimentos visíveis e invisíveis de
repressão. Nota-se, em segundo lugar, uma oscilação entre atitudes
psíquicas de moderação e autocontrole e atitudes de dissimulação e
disfarce que podem ser voluntários ou conscientes (como atesta o uso do
pronome reflexivo ”se” para o verbo) tanto quanto involuntárias ou
inconscientes (embora a psicanálise, como veremos depois, prefira usar o
termo recalque ou recalcamento para a repressão inconsciente). Nota-se,
em terceiro lugar, a referência a procedimentos sociais (jurídicos,
políticos), uma vez que se fala em proibição, castigo, punição, violência,
opressão, tirania, ameaça. Compreende-se, então, porque repressão é
definida tanto como o ato de reprimir (um agir repressivo) quanto o efeito
desse ato (algo ou alguém reprimido). Enfim, nota-se que subjaz aos dois
termos a idéia de frear algo ou alguém que iria, por si mesmo, numa
direção não aceita ou não desejada.
Há uma duplicidade nesses termos: indicam um procedimento psíquico ou
interior a um sujeito individual e um conjunto de procedimentos sociais,
institucionais, exteriores ao indivíduo. Essa duplicidade reaparece quando
se define a repressão como operação psíquica que desloca para fora do
campo da consciência não só o que é desagradável ou doloroso para um
indivíduo determinado, mas também o que é sentido como desagradável
ou doloroso porque está em desacordo
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com o meio social. Isto indica que há operações psíquicas encarregadas de
interiorizar a repressão enquanto fenômeno social.
Vale a pena observar, desde já, que punir, castigar, proibir e ameaçar
pressupõem a existência de regras ou normas que, se não forem
obedecidas e se forem transgredidas, levam ao ato de repressão. No
entanto, o sentido de reprimir muda bastante quando passa a significar
opressão, violência e tirania. Neste caso, observa-se que reprimir é
exercer ação pela força, submetendo o reprimido. Oprimir é esmagar;
violentar é contrariar a natureza de alguma coisa ou de alguém; tiranizar é
manter alguém sob o poder de uma vontade alheia à sua apoderando-se
de outrem pela força e dominando-o. A repressão aparece, assim, como
ato de domínio e de dominação e o reprimido como submissão à vontade
e à força alheia — como que uma alienação.
Os dicionários também permitem supor a existência de uma cumplicidade
voluntária ou involuntária, consciente ou inconsciente, entre nosso
psiquismo individual e procedimentos repressivos institucionais que
conduzem à auto-repressão. Em outras palavras, a repressão não é
apenas uma imposição exterior que despenca sobre nós, mas também um
fenômeno sutil de interiorização das proibições e interdições externas (e,
conseqüentemente, também das permissões) que se convertem em
proibições e interdições (e permissões) internas, vividas por nós sob a
forma do desagrado, da inconveniência, da vergonha (pois reprimir, como
vimos, também significa: vexar, envergonhar), do sofrimento e da dor (e
dos sentimentos contrários a estes, no caso da obediência ao permitido).
Nossos sentimentos poderão ser disfarçados, ocultados ou dissimulados
desde que percebidos ou sentidos como incompatíveis com as normas, os
valores e as regras de nossa sociedade. Costuma-se dizer que a repressão
perfeita é aquela que já não é sentida como tal, isto é, aquela que se
realiza como auto-repressão graças à interiorização dos códigos de
permissão, proibição e punição de nossa sociedade.
Se retornarmos aos dicionários, buscando agora o adjetivo sexual,
notaremos coisas interessantes. O Dicionário Aurélio registra: 1)
pertencente ou relativo ao sexo; 2) referente à cópula, ato sexual; 3) que
possui sexo; 4) que caracteriza sexo, partes sexuais. O dicionário francês
Petit Robert registra:
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1) Biologia: relativo a sexo, às conformações e funções de reprodução
particulares ao macho e à fêmea, ao homem e à mulher; 2) que concerne
ao acasalamento, os comportamentos que determina e que dele derivam;
instinto sexual; atos, práticas sexuais. Relações sexuais, prazer sexual.
São seus sinônimos: coito, genital, felácio, carnal, erótico, físico, venéreo,
orgasmo. 3) Psicanálise: que concerne às pulsões sexuais (sexualidade),
às regiões do corpo cuja estimulação provoca prazer erótico,
compreendendo-se aí prazeres anteiores à puberdade (estágios oral, anal,
genital). Assim, o termo sexual aparece no dicionário ligado às práticas
sexuais chamadas genitais (os órgãos femininos e masculinos da
reprodução), enquanto na psicanálise o sentido se alarga, referindo-se a
qualquer região do corpo susceptível de prazer sexual (zonas erógenas) e
aos prazeres sexuais infantis (comer, excretar, fantasiar com partes do
corpo ou com objetos variados uma relação genital imaginária).
Para o substantivo sexualidade, o Dicionário Aurélio registra: 1) qualidade
do sexual; 2) conjunto dos fenômenos da vida sexual; 3) sexo. Por sua vez,
o Petit Robert registra: caráter do que é sexuado; conjunto dos caracteres
próprios a cada sexo. Na biologia, o termo só aparece em 1838 e, na
psicanálise, o dicionário oferece a data de 1924, o que é um equívoco se
nos lembrarmos de que Freud escreve em 1905 as Três Conferências
sobre a Teoria da Sexualidade. De qualquer modo, o termo não existe
antes do século XIX. Para a psicanálise, o Petit Robert registra o seguinte
sentido: conjunto de comportamentos relativos ao instinto sexual e à sua
satisfação, quer estejam ou não ligados à genitalidade. O equívoco, agora,
está em falar num ”instinto sexual”, pois uma das descobertas principais
de Freud foi a separação entre sexualidade e instinto.
Assim, o Dicionário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, considera que
a sexualidade não se confunde com um instinto sexual porque um instinto
é um comportamento fixo e pré-formado, característico de uma espécie,
enquanto a sexualidadde se caracteriza por grande plasticidade, invenção
e relação com a história pessoal de cada um de nós. Nesse dicionário,
sexualidade não designa apenas as atividades e o prazer que dependem
do funcionamento do aparelho genital, mas toda uma série de excitações
e atividades, presentes desde
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a infância, que proporcionam prazer irredutível a alguma necessidade
fisiológica fundamental (respiração, fome, excreção) e que se encontram
presentes como componentes da chamada forma normal do amor sexual.
A sexualidade não se confunde com um instinto, nem com um objeto
(parceiro), nem com um objetivo (união dos órgãos genitais no coito). Ela
é polimorfa, polivalente, ultrapassa a necessidade fisiológica e tem a ver
com a simbolização do desejo. Não se reduz aos órgãos genitais (ainda
que estes possam ser privilegiados na sexualidade adulta) porque
qualquer região do corpo é susceptível de prazer sexual, desde que tenha
sido investida de erotismo na vida de alguém, e porque a satisfação
sexual pode ser alcançada sem a união genital.
Se deixarmos de lado, por um momento, os verbetes definidos do ponto
de vista da psicanálise para ficarmos apenas com seus registros nos
dicionários vernáculos, notaremos que, no uso corrente, os termos sexual
e sexualidade não apresentam qualquer sentido, qualquer dimensão do
sexo que não seja de cunho puramente biológico, fisiológico, anatômico.
Pertence ao campo da Natureza e torna-se difícil compreender como pode
aparecer a expressão: repressão sexual. Noutras palavras, os dois
verbetes indicam características e práticas naturais de machos e fêmeas,
enquanto os verbetes reprimir e repressão indicam atitudes, práticas,
operações psíquicas, sociais, culturais.
Reprimir, como vimos, significa vexar, envergonhar. Ora, Chico Buarque e
Milton Nascimento não falam ”do que não tem vergonha nem nunca terá”?
Mas, não é curioso que ”isso” de que falam e que cantam, nunca é
nomeado? Não tem nome, não tem vergonha, ”o que será que será?”. É
essa ausência mesma de nome que pode nos oferecer uma pista para nos
aproximarmos do fenômeno da repressão sexual.
Vinda do dicionário e sugerida pela canção, a expressão repressão sexual
nos coloca diante de um fenômeno peculiar, qual seja, o da existência de
proibições, punições, permissões e recompensas concernentes a algo que
seria puramente natural. Para que os poetas pudessem cantar: ”e mesmo
o Padre Eterno, que nunca foi lá, olhando aquele inferno” é preciso
admitirmos que a repressão sexual nos coloca diante da quebra da
simples naturalidade biológico-animal do sexo e de sua passagem à
existência como fenômeno cultural ou histórico.
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Torna-se aquilo de que se deve ter vergonha. Aquele ”inferno” que é
preciso coibir, refrear, moderar, dissimular, ocultar e disfarçar. Como
escreveu o escritor Bataille, o sexo, nos humanos, é erotismo e este é
impossível sem as interdições e as transgressões.
Entre alguns cuidados teóricos preliminares ao tratar do tema da
repressão sexual está o de lembrar em que contexto sua discussão
começou, no século passado, em alguns países europeus.
O sexo, que até então era da responsabilidade de teólogos, confessores,
moralistas, juristas e artistas, foi deixando de pertencer exclusivamente
ao campo religioso, moral, jurídico e artístico e de concernir apenas às
exigências da vida amorosa (conjugal e extra-conjugal) para começar a
ser tratado como problema clínico e de saúde. Ou seja, passou a ser
estudado e investigado num contexto médico-científico preocupado em
classificar todos os casos de patologia física e psíquica, em estudar as
doenças venéreas, os desvios e as anomalias, tanto com finalidade
higiênica ou profilática quanto com a finalidade de normalização de
condutas tidas como desviantes ou anormais. O interesse maior volta-se
para o estudo das ”aberrações sexuais”, de um lado, e para o incentivo
pedagógico e terapêutico das formas ”normais”, de outro lado.
Michel Foucault observa que em quase todas as culturas existe uma arte
erótica (ars erótica), isto é, formas de iniciação ao prazer e à satisfação
sexual (como, por exemplo, o Khama Sutra ou a arte amorosa japonesa).
Em contrapartida, nossa cultura — cristã, européia, ocidental — deu
origem a algo insólito: uma ciência sexual (scientia sexualis), curiosidade
e vontade de tudo saber sobre o sexo para melhor controlá-lo. Foucault
considera que a passagem do contexto religioso para o científico não
alterou profundamente a atitude ocidental face ao sexo, pois tanto num
caso como no outro, o sexo é aquilo de que se deve falar e falar muito,
com detalhes, com minúcia, classificatoriamente. Se, no contexto moral,
fala-se para que seja estabelecida a fronteira entre o lícito e o ilícito, e no
contexto religioso para a demarcação dos limites entre o pecaminoso e o
não pecaminoso, no contexto científico, onde parecem desaparecer os
juízos de valor e as condenações, fala-se para que o sexo possa ser
administrado.
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Foto da Capa de um livro:
Oswaldo Brandão da Silva
Iniciação Sexual Educacional (Leitura reservada)
Com prefácio do Prof. Dr. Hamilton Nogueira
EDITORA ABC
Fim da descrição da foto.
Nota que encontra-se abaixo da foto:
Antes mesmo que se leia este livro, sua capa é uma expressão fascinante
da repressão sexual: o sexo é apresentado numa perspectiva pedagógica
(educacional) e a leitura do livro é ”reservada” (secreta e somente para
alguns — no caso, somente os rapazes sérios e responsáveis que
pretendem constituir uma família numerosa e saudável).
Fim da nota.
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Pertence ao campo da saúde pública. Nessa perspectiva, teremos de
admitir que a mudança não significou um avanço da liberação sexual ou
uma diminuição da repressão, mas a passagem a outras formas
repressivas que servem ao propósito da ”normalização”.
Um exemplo dessa atitude aparece num livro de 1938, editado no Rio de
Janeiro, escrito por Oswaldo Brandão da Silva. Já na capa do livro observa-
se algo interessante. Lê-se: Iniciação Sexual — Educacional (Leitura
Reservada). O autor procura, logo de início, esclarecer que não se trata de
um livro pornográfico ou obsceno (de sacanagem, diríamos hoje), mas
obra educativa. Pressupõe (e explicitará tal idéia no correr de todo o livro)
a distinção entre um sexo ”ruim” e um sexo ”bom”, o que, em si mesmo,
já é um exemplo de repressão interiorizada. Mais interessante, porém, é o
parêntese: Leitura Reservada. É que o livro se destina exclusivamente a
meninos, aos ”jovens que possuam vontade o bastante para quererem
aprendê-lo, pois se trata aqui de um método autoeducacional (grifos são
meus. MC).
A reserva do método é dupla: por um lado, diz o autor que as meninas não
devem lê-lo porque devem ser mantidas na inocência para que sejam
iniciadas ao sexo apenas por seus maridos que, antes do casamento,
devem ser castos e respeitar a virgindade da futura esposa. As meninas
estão excluídas porque não necessitam das informações, visto que não
terão vida sexual antes do casamento. Os meninos precisam desta
iniciação porque, além de encarregados da iniciação das esposas, correm
o risco ininterrupto das atrações do sexo com amigos e prostitutas
(percebe-se, portanto, que ao excluir as meninas, o autor pensa apenas
nas meninas de ”boa família”). Por outro lado, o livro é reservado a um
tipo especial de menino: ”A instrução sexual, mesmo inicialmente, exige
muito valor do jovem: inteligência franqueada à razão, vontade inflexível
nos princípios adotados, austeridade ao corpo para a mortificação
indispensável, ao caráter o senso da responsabilidade e ainda o da
discrição, pois um jovem, logo que compreender a seriedade do assunto,
não deve deixar de lançar sobre seus lábios a imposição de calar as
questões
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sexuais com os companheiros, geralmente levianos”. O livro se dedica, em
sua maior parte, a mostrar os perigos físicos e psíquicos de um sexo
”descontrolado” e a incentivar a castidade porque a saúde do pai é
indispensável para a da prole. Nessa medida, o autor combina preceitos
morais e religiosos com os conhecimentos científicos, ”a ciência médica
moderna, que estudou minuciosamente a função sexual, a higiene e a
profilaxia com suas estatísticas rigorosas baseadas na observação médico
hospitalar, que se impõem como preceitos imprescindíveis, e a psicologia
racional”. Sexo responsável, limpo, estatisticamente controlado e racional.
Sob vários aspectos, a ambigüidade dos estudos da sexualidade decorre
do fato de, em lugar de desvendar e tentar diminuir o peso da repressão
imposta no correr dos séculos (no ocidente cristão), acaba por reforçá-la
(como é o caso do livro citado, que faz tamanhas exigências ao menino
que este provavelmente terá dificuldades sexuais) ou deslocá-la (por
exemplo, ao deixar ao médico o que antes cabia ao teólogo). Há uma
espécie de círculo vicioso: uma sociedade repressora e uma moral
conservadora acarretam segredo e clandestinidade de inúmeras práticas
sexuais que, por seu turno, provocam tanto distúrbios físicos (a sífilis, por
exemplo) quanto psíquicos (a culpa, por exemplo) que a perspectiva
médico-profilática pretende evitar introduzindo conhecimentos e normas,
porém sem questionar os próprios códigos repressivos e, com isto, criando
novas dificuldades.
O risco do reforço à repressão sexual ou do conservadorismo aparece até
mesmo num estudioso e terapeuta como Freud, que revolucionou tudo
quanto se sabia e se dizia sobre a sexualidade. Não somente descobriu e
demonstrou, para escândalo geral, a existência da sexualidade infantil,
mas ainda inverteu a principal concepção existente sobre o sexo ao
afirmar que a libido (energia ou pulsão sexual presente em todas as
épocas de nossa vida, desde a infância, e em nossos sentimentos mais
profundos, determinando mesmo a linha de nosso destino pessoal) não é a
causa de doenças e distúrbios físicos e psíquicos, mas, pelo contrário, a
causa deles se encontra na repressão da libido. Em suas primeiras obras,
pretendia que a psicanálise auxiliasse a descobrir as formas dessa
repressão, seus efeitos e os meios de eliminar tanto as primeiras quanto
os segundos. No entanto, em suas últimas
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obras, Freud concluía melancolicamente que a civilização depende da
repressão sexual (dado o caráter agressivo e destrutivo das pulsões
sexuais conflitantes) e que embora fosse necessário diminuir a ignorância
e os preconceitos sexuais, não seria possível, para o bem da humanidade
e para a ordem social, eliminar toda a repressão.
Alguns críticos da psicanálise consideram que tal conclusão provém dos
próprios princípios psicanalíticos que converteram a psicanálise num
psicanalismo, isto é, numa terapia secreta, confinada, protegida, que
deixa inteiramente de lado os problemas do fazer sexo para apenas falar
de sexo, como se pudesse ficar imune à realidade social e política
repressiva. O mero falar de sexo, segundo tais críticos, deixaria intacta a
problemática do fazer sexo, procuraria adaptar as pessoas às imposições
da sociedade quanto à vida sexual ao lhes dar a ilusão de estarem
resolvendo suas dificuldades porque conversam com um terapeuta do
qual a psicanálise exige, para que seja um bom terapeuta, que seja
inteiramente assexuado, depósito das fantasias sexuais dos pacientes. A
psicanálise teria se tornado mais uma fonte de repressão sexual por dois
motivos principais: por um lado, porque abandonou os afetos e
sentimentos sexuais para ficar apenas com suas representações (isto é,
passou do que sentimos e fazemos para o que pensamos sobre o que
sentimos e fazemos, caindo no intelectualismo) e, por outro lado, porque
imaginou-se capaz de liberar as pessoas porque lhes permite exprimir o
”sexo em fantasia” (não havendo limites nem interdições para o
fantasiar), a fim de que não se exprima ”em realidade” (conservando
tabus e interdições existentes).
Para os críticos, tudo quanto havia de subversivo na psicanálise foi
absorvido e consumido pelas ideologias sexuais existentes e, em
particular, o psicanalismo teria reforçado uma das instituições mais
problemáticas para a sexualidade: a família.
No entanto, o simples passar do ”falar de sexo” para o ”fazer sexo” não
significa necessariamente diminuição ou compreensão crítica da repressão
sexual. Ainda mais próxima da medicalização do sexo estaria a moderna
sexologia — também conhecida como terapia do orgasmo e clínica do
orgasmo.
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Para a sexologia, a sexualidade se reduz ao ato do orgasmo. Este é
considerado do ponto de vista da ”democracia sexual” e, portanto, como
direito de todos. Porém, como ser feliz e sexualmente realizado é
conseguir muitos e bons orgasmos, o orgasmo passa, de um direito, a um
dever, o dever de orgasmo. É dever de todos, visto tratar-se de
”democracia sexual”.
O sexo é encarado pelo prisma da psicologia comportamental
(behaviorismo) que trabalha com a idéia de que somos um conjunto de
comportamentos adquiridos por condicionamento externo e interno, as
dificuldades sexuais (isto é, não conseguir orgasmo) sendo decorrentes de
condicionamentos defeituosos ou inadequados que produzem ”disfunções
sexuais”). O sexólogo seria, então, o especialista encarregado de
descondicionar e recondicionar as pessoas para garantir-lhes orgasmos
bons e contínuos.
As disfunções serão tratadas por psicólogos, médicos, ginecologistas; as
doenças venéreas deixam de ser um estigma e objeto de condenação,
ficando a cargo de um bom dermatologista e urologista; para as
”aberrações”, bastaria um bom psicocirurgião assessorado por um bom
endocrinologista e, a seguir, por um bom psicocondicionador. A
masturbação é pedagogicamente recomendada, pois a sexologia
considera que só é possível amar outra pessoa quando se ama a si mesmo
(nova versão do Segundo Mandamento e que os críticos julgam própria da
civilização do selfservice). O tratamento orgasmológico procura ensinar
truques e malabarismos, estimulando a descoberta do que os sexólogos
chamam de ”zonas estratégicas” (que substituíram as ”zonas erógenas”
da simbolização sexual, imaginada pelos psicanalistas).
Um sexólogo famoso escreveu que a finalidade da sexologia é livrar os
seres humanos da ”peste emocional”, graças a meios técnico-científicos
de administração de uma sexualidade sadia e feliz. Um outro propôs a
formação de pools de mulheres e de homens especializados em ”serviços
sexuais” para o atendimento de pessoas com dificuldades (uma espécie
de flatservice para o sexo e de holding sexual). Os críticos consideram o
sexólogo uma mescla de pedagogo e de programador de computador,
médico e higienista e uma nova figura da repressão sexual.
22
Essas observações preliminares foram feitas apenas com dois objetivos.
Em primeiro lugar, marcar a época em que se começa a elaborar o
conceito de repressão sexual e o contexto da criação de um saber sobre a
sexualidade que procurou desalojar conhecimentos e práticas anteriores.
Em segundo lugar, sugerir que o novo saber sobre o sexo, saber científico
e objetivo, não é necessária e automaticamente portador do fim da
repressão sexual, podendo ser apenas uma nova variante dela.
Um outro cuidado teórico preliminar, que seria bom termos ao tratar deste
assunto, é lembrar que a repressão sexual se diferencia bastante no
tempo e no espaço, estando articulada às formas complexas de
simbolização que diferentes culturas elaboram nas suas relações com a
Natureza, o espaço, o tempo, as diferenças sexuais, nas relações
interpessoais, com a vida e a morte, o sagrado e o profano, o visível e o
invisível. Nenhuma cultura lida com o sexo como um fato natural bruto,
mas já o vive e compreende simbolicamente, dando-lhe sentidos, valores,
criando normas, interditos e permissões.
Um exemplo. Em decorrência da forte repressão que nossa sociedade
exerce sobre o homossexualismo, muitos tendem a considerar que o fato
de o homossexualismo ser admitido na Grécia e em Roma provaria,
nessas sociedades, a ausência de repressão neste aspecto particular. Não
é exatamente o caso.
Na Grécia e em Roma, a homofilia (o termo homossexualismo é recente)
masculina era tolerada e, em certos casos, estimulada, havendo muitos
que julgavam o amor verdadeiro ser possível apenas entre pessoas do
mesmo sexo, o casamento implicando outros sentimentos (respeito,
amizade, dever, responsabilidade social) que não o amor. Muitos autores
escreveram louvores ao fato de só apreciarem outros homens; muitos, ao
fato de apreciarem homens e mulheres; muitos, ao de apreciarem apenas
mulheres. No entanto, não se admitia qualquer forma de relação de
homofilia (homo = o mesmo; filia amizade).
23
O valor fundamental, nessas sociedades, era atribuído à figura do homem
livre, identificada com a figura masculina ativa (política e socialmente).
Esse valor, sexualmente interpretado, levava ao privilégio da figura
masculina sexualmente ”ativa”. A mulher, considerada naturalmente
”passiva”, o jovem livre, do sexo masculino, considerado ”passivo” pela
pouca idade, e o escravo, considerado ”passivo” por sua condição de
dominado e por obrigação, faziam com que as relações homofílicas só
fossem admitidas entre um homem livre adulto e um jovem livre ou um
escravo, jovem ou adulto. O jovem, pela idade, podia ser livre e ”passivo”
sem desonra; o escravo, por sua condição desonrosa, só podia ser
”passivo”, mas um homem livre adulto que se prestasse a uma relação
homofílica no papel ”passivo” era considerado imoral e indigno. Assim, era
repudiada a homofilia entre os homens adultos livres, relação considerada
imoral, ilegítima e infame, designada como ”contra a natureza”. Não
porque houvesse impossibilidade biológica, anatômica, animal para essa
relação e sim porque contrariava a natureza do homem livre adulto, isto é,
do cidadão.
O pederasta e o homofílico não eram monstros, nem doentes nem
criminosos (como viriam a ser tratados depois), mas nem por isso
deixavam de existir códigos, normas, regras e valores regulando a
homofilia e, portanto, formas de repressão (para não mencionarmos ainda
a situação feminina e a dos escravos).
Também é possível observar que o homossexualismo, que viria a ser
inteiramente condenado como ”contranatureza” na sociedade européia
cristã, recebeu representações muito diferentes no correr do tempo.
Durante vários séculos, foi representado na pintura e na escultura através
da imagem do querubim, anjo-criança-juvenil, semi-assexuado, semi-
afeminado; mais tarde, passou-se para a imagem com traços e contornos
femininos, formas suaves, arredondadas, um delicado camafeu com
sorriso trocista dançando nos lábios. Hoje, sua imagem é viril: o
halterofilista musculoso, o esportista jovem e bronzeado, ou o motoqueiro
de roupas de couro negro, brinco numa orelha, lábios carnudos, cabelos
sedosos. Nesta última imagem (a mais recente), a ênfase recai no talhe
fino do corpo, servindo de modelo fundamental para homens e mulheres,
a partir do momento em que a moda unissex privilegia
24
o tipo homossexual masculino como imagem sexual ideal para todos. Em
cada época, portanto, valores, símbolos, fantasias, relações com outras
dimensões da vida social determinam a imagem e o sentido de uma figura
que apenas pela designação — homossexual — poderia ser considerada a
mesma. Diferentes serão as formas da repressão e diferentes as respostas
a ela.
Para essas questões, são de grande valia os trabalhos dos antropólogos
que nos ajudam a desmanchar as ilusões de que as formas e sentidos da
sexualidade e da repressão sexual seriam universais, idênticas para todas
as sociedades.
Assim, por exemplo, estudos feitos pela antropóloga Margareth Mead a
respeito de três sociedades diferentes mostram que, numa delas, homens
e mulheres são educados para serem carinhosos, pacíficos,
compreensivos, muito verbalizadores, possuindo sexo e temperamento do
tipo que nossa sociedade julga ”próprios do sexo feminino”; na outra,
homens e mulheres são educados para serem agressivos, belicosos,
violentos, pouco falantes, possuindo sexo e temperamento do tipo que
nossa sociedade julga ”próprio do sexo masculino”; na terceira, as
mulheres são educadas para o poder e o comando, enquanto os homens
são educados para a domesticidade, a lavoura, o artesanato e o cuidado
das crianças, realizando padrões exatamente opostos aos que nossa
sociedade imagina serem ”naturais” e universais. Estudos como estes nos
auxiliam a compreender os valores, mitos e preconceitos de nossa própria
sociedade e o modo como atuam na repressão da sexualidade ao
estabelecerem características que seriam ”naturalmente” femininas e
masculinas, estimulando-as e reprimindo as contrárias.
Os antropólogos também nos ajudam a evitar o risco de imaginarmos que
as formas da sexualidade e de sua repressão em nossa sociedade
poderiam ser universalizadas, isto é, imaginadas como presentes em
todas as outras.
Tendo a psicanálise nascido nos fins do século XIX, na Europa, seus
estudos focalizaram as questões sexuais pelo prisma da instituição
familiar e das relações familiares tais como existiam naquele momento.
Muitos psicanalistas, esquecendo essa determinação histórica, passaram a
universalizar aspectos particulares da sexualidade européia recente.
Estudando, por exemplo,as chamadas ”perversões sexuais”,
25
alguns analistas consideram que entre os vários fatores responsáveis por
elas está o comportamento dos pais e particularmente o da mãe. Se os
pais, e especialmente a mãe, recusam admitir que seus filhos são seres
sexuados e com desejos sexuais, a maioria dos quais diretamente
voltados para os genitores, tal atitude poderá comprometer
definitivamente o desenvolvimento sexual dos mais jovens. Se a mãe
anda nua diante dos filhos, se está sempre por perto para vê-los despidos,
se não lhes permite o uso solitário do quarto ou do banheiro, prepara os
desastres sexuais de sua prole. Ora, alguém poderia imaginar um menino
ou uma menina nhambiquara ou bororó tendo ”perversões sexuais” por
estes motivos? O historiador também poderia argumentar dizendo que
mesmo na sociedade européia, antes que fosse inventada a casa repartida
em cômodos, tal como a conhecemos, a idéia da privacidade (do quarto,
do banheiro) inexistindo, as ”perversões sexuais” não poderiam encontrar
aí suas causas.
Aliás, no caso dos índios, a visão européia acabou conduzindo a duas
concepções imaginárias: a dos missionários, que interpretavam a nudez
como prova de animalidade (o que justificava, para muitos, a
escravização) e a dos filósofos do século XVIII, que imaginaram a
inocência do ”bom selvagem”.
A partir da psicanálise sobretudo (mas não somente a partir dela),
considera-se a sociedade ocidental, de origem judaico-cristã, como uma
sociedade falocrata phalo = pênis; krathós = poder) e patriarcal (sob o
poder do Pai). O falo (isto é, o pênis como objeto simbólico), representado
consciente e inconscientemente como origem de todas as coisas (poder
criador), como autoridade (a Lei como lei do Pai) e sabedoria, é aquilo que
a mulher não possui e deseja. Marcada por uma falta ou carência
originária, por uma lacuna, a mulher seria um ser que sexualmente se
caracterizaria pela inveja do pênis, enquanto o homem, rival do Pai, seria
sexualmente marcado pelo medo da perda do pênis, isto é, pelo medo da
castração. Em nossa sociedade, portanto, a repressão sexual operaria a
partir daquela inveja e daquele medo. Pouco a pouco, os estudiosos
acabaram generalizando essa idéia para todas as sociedades patriarcais.
Ora, estudos antropológicos revelaram sociedades nas quais, se ”inveja”
houver, é dos homens em relação às mulheres:
26
invejariam o útero, a capacidade geradora das mulheres. Tanto assim que
os Baruya, da Nova Guiné, consideram que as mulheres criaram a flauta —
para a comunicação com os espíritos — e o arco — para a alimentação e a
guerra. Isto é, criaram os objetos simbólicos fundamentais de sua
sociedade. Porém, as mulheres não teriam sabido usar adequadamente
esses objetos e por isso estão proibidas de empregá-los, somente os
homens podendo usá-los para bem orientar a caça, a guerra e a religião.
Admite-se, portanto, a criação originária como feminina e somente a
seguir se acrescenta a violência simbólica contra elas, mantendo-as na
posição subordinada. É possível, dizem os antropólogos, que o pano de
fundo dessa mitologia seja a organização matriarcal que essa sociedade
teria tido inicialmente (as mulheres sem carência, sem lacuna e sem
inveja), antes de se tornar patriarcal.
Percebe-se, pois, que tanto a ”inveja do pênis”, nas mulheres, quanto a
”inveja do útero”, nos homens, não dependem diretamente da anatomia,
mas do processo de simbolização da diferença sexual no interior de uma
cultura determinada. É nesse processo que melhor se oculta e melhor se
revela a repressão sexual. Além disso, é nessa simbolização que melhor
transparece a sexualidade como desejo, carência, plenitude e criação.
Vida e morte.
Como veremos adiante, as considerações sobre as diferenças temporais e
espaciais, históricas e geográficas, não se referem apenas às existentes
entre nossa sociedade e outras, mas também às existentes em nossa
própria sociedade, na qual se transformam símbolos, representações,
fantasias, práticas, valores e preconceitos referentes ao corpo, ao
casamento, a família, à casa, à infância, à adolescência, à velhice, ao
amor, ao prazer, à culpa, à codificação dos interditos e das permissões.
Assim, por exemplo, é muito tardio o surgimento do que hoje entendemos
por casamento e por família. Não que em outras sociedades e no passado
da nossa não haja casamento ou família, mas sim que a forma, o
conteúdo, o sentido, a função que hoje lhes damos, em nossa sociedade,
não são perenes. O mesmo pode ser dito sobre o corpo, a infância, a
velhice, o feminino, o masculino. A título de exemplo, lembremos apenas
que durante um longo período (no passado
27
de nossa sociedade) o termo sexo referia-se exclusivamente às mulheres
— estas não tinham um sexo, eram o sexo (e, por isso mesmo, figuras por
excelência do Mal e da busca desenfreada do prazer, amolecendo corpo e
espírito dos homens guerreiros) precisando ser controladas, punidas,
vigiadas de todas as maneiras possíveis. Não é surpreendente, então,
quando voltamos os olhos para o século XIX, descobrirmos uma
representação da feminilidade na qual as mulheres são assexuadas,
frígidas, feitas para a maternidade e não para o sexo, a tal ponto que
houve necessidade de médicos e sexólogos para lhes ensinar sexo? Como
se a repressão da sexualidade feminina tivesse sido tão bem sucedida
que, no ponto final, encontrássemos a negação do ponto inicial.
Um outro cuidado que poderíamos ter ao estudar a repressão sexual seria
o de não imaginarmos uma oposição entre o ”passado repressivo” e o
”presente liberador”. Já fizemos referência aos problemas novos trazidos
pelas ciências sexuais.
Além disso, para estabelecermos tal oposição teríamos de supor a
existência de denominadores comuns entre passado e presente,
permitindo a comparação em termos de ”mais” e ”menos” repressivo.
Tratando-se de repressão e liberação sexuais, nossa tendência poderia ser
a de considerarmos o sexo como o denominador comum. Porém, se a
simbolização é essencial na constituição da sexualidade, se as
simbolizações são constituídas e constituintes das diferenças culturais, o
único jeito de considerar o sexo como denominador comum ao passado e
ao presente, seria tomá-lo apenas nos seus aspectos biológicos. Isto, no
entanto, tornaria inútil a comparação, já que teríamos deixado de lado
justamente o que faz do passado, passado, e do presente, presente. Em
contrapartida, talvez seja mais rico e interessante indagarmos uma outra
coisa em vez de perguntarmos qual é mais repressivo e qual mais
liberado. Poderíamos indagar: sobre quais aspectos da sexualidade recai a
repressão? Por quê? Em que a escolha das proibições e permissões torna
uma sociedade menos ou mais repressiva? As interdições explícitas nos
discursos (religioso, moral, jurídico, literário, científico) correspondem
efetivamente
28
às práticas sociais, ou estas se realizam de modo contrário e transgressor?
Por quê? O que uma sociedade diz e o que silencia sobre a sexualidade?
Qual a qualidade dessa fala e desse silêncio?
Alguns historiadores, como Jean-Louis Flandrin, estudaram o vocabulário
sexual usado em outras épocas e na nossa e verificaram modificações
expressivas. Até o século XIX, por exemplo, usavam-se palavras tais
como: coito, amor carnal, lubricidade, luxúria, libertinagem, ligação
amorosa, conotando o sexo como pecaminoso, perverso, indecente. Mas
também desejável, um abismo (bom e mau). Em contrapartida, a partir
dos meados do século XIX, os vocábulos pertencem ao campo da biologia
e da medicina: ninfomania, erotomania, homossexualismo, masoquismo,
sadismo, sadomasoquismo. Nas obras literárias, falava-se direta e
francamente coito, cópula. Hoje, fala-se em abraço, beijo, carícia, amor,
prazer. Houve, assim, um duplo deslocamento — da aberração
pecaminosa, passou-se para a doença e sua etiologia; do ato sexual pleno
passou-se a fragmentos dele.
Sob certos aspectos, dizem os historiadores, a passagem para o campo da
objetividade científica parece ter favorecido uma franqueza maior e uma
espécie de desnudamento da sexualidade. Porém, sob outros aspectos, a
convenção científica acaba operando como um manto protetor para
encobrir realidades proibidas — como se o discurso científico funcionasse,
por exemplo, como o da antiga mitologia greco-romana.
No caso dos textos literários, os historiadores observaram algo curioso,
além daquela fragmentação a que nos referimos: o número de vocábulos
para se referir à sexualidade diminuiu sensivelmente, como se houvesse
uma retração da linguagem na invenção sexual e amorosa.
Um outro fenômeno interessante que nos põe de sobreaviso quanto à
suposição de um passado repressivo e um presente liberado é o do
homossexualismo. Não nos referimos a casos recentes, como por exemplo
o do afastamento de um general alemão do comando de tropas na
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) por ser homossexual e,
por isso, sujeito a chantagens que poderiam prejudicar a arte da guerra.
Nem nos referimos ao pânico sexista em torno da
29
AIDS como ”doença homossexual”. Referimo-nos ao estatuto da
homossexualidade em nossa sociedade.
Vimos que em sociedades como a grega e a romana, a prática
homossexual está submetida a interditos e permissões (não sendo
”liberada”). Porém, nessas sociedades, como em muitas outras, o
homossexualismo é uma prática e um ato sexuais entre outros,
convivendo com outros num mesmo ser humano, é uma escolha
(ocasional ou definitiva) de parceiros sexuais. É uma atividade. Em nossa
sociedade, o homossexualismo não é encarado dessa maneira. Através da
medicalização classificatória, tornou-se uma espécie sexual (como há
espécies em botânica e em zoologia) e um tipo social. De atividade,
transformou-se num modo de ser que determina todas as outras
atividades e o destino pessoal de alguém. Não é apenas ”doença”,
”disfunção” ou ”perversão”: é quase uma coisa.
Seria impossível, pelas considerações que fizemos até aqui, pretendermos
escrever um livro sobre a repressão sexual. Tentaremos apenas focalizar
alguns aspectos desse fenômeno cultural em nossa sociedade,
considerando-a pelo prisma da origem judaico-cristã (que retrabalhou a
sexualidade pagã européia) e das relações sociais estabelecidas sob a
forma da divisão e da luta de classes, numa economia de tipo capitalista.
Antes de entrarmos pelas regiões mais sombrias da repressão sexual,
façamos breve visita a uma região luminosa onde ela também é exercida,
mas de modo sedutor e, por que não dizer?, fecundo: os contos de fadas.
Se nos perguntarem: por que não As mil e uma noites? Responderemos:
porque mereceriam muitos livros. E pertencem a um outro mundo.
Por que não os poemas de Santa Tereza d’Ávila? Ou Sade?Ou...
Com simplicidade, respondemos: porque estamos supondo algo que todos
os leitores conhecem e conhecem muito bem, pois conhecem com amor.
30
Contos de fadas

Nessa rápida visita aos contos de fadas, consideraremos a sexualidade


pelo prisma ampliado a que nos referimos no capítulo anterior e, portanto,
como atmosfera difusa e profunda que envolve toda nossa vida (nossas
relações com os outros, com nosso corpo e o alheio, com objetos e
situações que nos agradam ou desagradam, nossas esperanças, nossos
medos, sonhos, reais e imaginários, conscientes e inconscientes). Como
dimensão simbólica (individual e cultural) que articula nosso corpo e nossa
psiquê, suas máscaras, disfarces, astúcias e angústias.
Sem dúvida, seria absurdo tentar reduzir os contos de fadas à sexualidade
e à repressão sexual, pois se o fizéssemos perderíamos a riqueza e
multiplicidade de sentidos que possuem, tanto do ponto de vista literário,
filosófico, histórico e sociológico quanto do ponto de vista ideológico, das
relações de poder, etc. Qualquer redução, por ser ilusória e
empobrecedora, desemboca em ”esquemas explicativos” que nada
compreendem porque tudo explicam. Pretendemos apenas focalizar
alguns aspectos da sexualidade como uma entre outras dimensões do
conto de fadas cujo interesse maior reside justamente no fato de que seus
autores (anônimos ou conhecidos) não tinham a intenção explícita de falar
de sexo.
Numa perspectiva diversa da que adotaremos aqui, Bruno Bettelheim
estudou vários contos de fadas (num livro intitulado
31
Psicanálise dos Contos de Fadas) e de seu estudo cremos valer a pena
conservar algumas idéias. Em primeiro lugar, o conto de fadas é essencial
na formação da criança porque a ajuda, dando asas à sua imaginação, a
distinguir o real e o irreal sem, contudo, reduzir este último ao falso: o
irreal é verdadeiro, embora de maneira diferente do real. Em segundo
lugar, ajuda a criança a estabilizar afetos conflitantes, configurando
claramente o justo e o injusto, o bom e o mau, o verdadeiro e o falso nas
relações com as pessoas, especialmente as mais próximas, mostrando-lhe
que todos nós temos fantasias, mesmo as de destruição, sem deixarmos
de ser amados por isso. Em terceiro lugar, garante à criança que é amada,
e que esse amor não desaparecerá quando, ao crescer, ela se desligar de
seus próximos para viver sua própria vida noutro lugar e com outras
pessoas. Para Bettelheim, o conto de fadas ajuda a criança na aceitação
de um desejo que possui e que a atemoriza: o de separar-se para levar
sua própria vida, pois tal desejo lhe aparece como rejeição do amor que os
familiares lhe deram, produzindo culpa. O conto ajuda a criança a lidar
com esse desejo e a elaborar, no imaginário, várias soluções para ele.
Discordamos das análises de Bettelheim sob três aspectos. Em primeiro
lugar porque a idéia deixada pelo livro dissolve o aspecto repressivo,
também presente nos contos. Em segundo lugar, porque enfatiza o
aspecto pedagógico dos contos, aspecto que sem dúvida possuem
(sobretudo em certas elaborações românticas), mas que restringe seu
aspecto lúdico primordial. Em terceiro lugar, porque (como aconteceu com
a maioria dos psicanalistas) não põe em dúvida a moral sexual burguesa
veiculada pelos contos, em algumas de suas versões ou em alguns
remanejamentos.
Assim, por exemplo, o autor não leva em consideração o moralismo de Os
Três Porquinhos, o elogio ascético do trabalho contra os prazeres.
Também não analisa o fato de que nos contos, a sexualidade feminina
sempre é apresentada como dolorosa, mas compensada pela
maternidade, o caso típico sendo o da mãe de Branca de Neve que, ao
ferir o dedo no bordado, sangrar e manchar a alvura da neve, imagina a
felicidade de ter uma filha branca e rosada, logo depois nascendo a
criança. Ou como perigosa para os meninos, o caso
32
típico sendo o de João e o Pede Feijão que deve cortar a árvore para que
por ela não desça o gigante assassino.
Poderíamos considerar que numa sociedade como a nossa, que
dessacralizou a realidade e eliminou quase todos os ritos, os contos
funcionam como espécie de ”rito de passagem” antecipado. Isto é, não só
auxiliam a criança a lidar com o presente, mas ainda a preparam para o
que está por vir, a futura separação de seu mundo familiar e a entrada no
universo dos adultos.
Do ponto de vista da repressão sexual, os contos são interessantes porque
são ambíguos. Por um lado, possuem um aspecto lúdico e liberador ao
deixarem vir à tona desejos, fantasias, manifestações da sexualidade
infantil, oferecendo à criança recursos para lidar com eles no imaginário;
por outro lado, possuem um aspecto pedagógico que reforça os padrões
da repressão sexual vigente, uma vez que orientam a criança para desejos
apresentados como permitidos ou lícitos, narram as punições a que estão
sujeitos os transgressores e prescrevem o momento em que a sexualidade
genital deve ser aceita, qual sua forma correta ou normal. Reforçam,
dessa maneira, inúmeros estereótipos da feminilidade e da masculinidade,
ainda que, se tomarmos os contos em conjunto, os embaralhem bastante.
Se a psicanálise estiver certa ao diferenciar fases da sexualidade infantil,
podemos observar que a repressão atua nos contos seguindo essas fases:
as crianças são punidas se muito gulosas (fase oral), se perdulárias ou
avarentas (fase anal), se muito curiosas (fase fálica ou genital). Em certo
sentido, os contos operam com a divisão, estabelecida por Freud, entre o
princípio do prazer (excesso de gula, de avareza ou desperdício, de
curiosidade) e o princípio de realidade (aprender a protelar o prazer, a
discriminar os afetos e condutas, a moderar os impulsos).
Para facilitar a exposição, vamos dividir os contos em dois grandes
”tipos”: aqueles que asseguram à criança o retorno à casa e ao amor dos
familiares, depois de aventuras em que se perdeu tanto por desobediência
quanto por necessidade, e aqueles que lhe asseguram ser chegada a hora
da partida, que isso é bom, desejável e definitivo.
33
Nota que encontra-se abaixo da foto:
Nossa sociedade conseguiu transformar as diferenças anatômicas entre
homens e mulheres em papéis e em tipos sociais e sexuais, criando uma
verdadeira zoologiasociologia sexual. Reprime, assim, a ambigüidade
constitutiva do desejo e da sexualidade fazendo da diferença e
multiplicidade sexuais um tormento, um crime, uma doença e um castigo.
Fim da nota.
34
Nos contos que designamos aqui como contos de retorno, a sexualidade
aparece nas formas indiretas ou disfarçadas da genitalidade, que são
apresentadas como ameaçadoras, precisando ser evitadas porque a
criança ainda não está preparada para elas. Isto não significa que a
criança seja assexuada, pelo contrário, mas que a sexualidade permitida
ainda é oral ou anal. Em contrapartida, nos contos que aqui designamos
como contos de partida, a sexualidade genital terá prioridade sobre as
outras, com as quais vem misturada, e pode ser aceita depois que as
personagens passarem por várias provas que atestem sua maturidade.
No Chapeuzinho Vermelho (que, na canção infantil, é dito ”Chapeuzinho
cor de fogo”, o fogo sendo um dos símbolos e uma das metáforas mais
usados em nossa cultura para referir-se ao sexo), o lobo é mau, prepara-
se para comer a menina ingênua que, muito novinha, o confunde com a
vovó, precisando ser salva pelo caçador que, com um fuzil (na canção:
”com tiro certo”), mata o animal agressor e a reconduz à casa da mamãe.
Há duas figuras masculinas antagônicas: o sedutor animalesco e perverso,
que usa a boca (tanto para seduzir como para comer) e o salvador
humano e bom, que usa o fuzil (tanto para caçar quanto para salvar). Há
três figuras femininas: a mãe (ausente) que previne a filha dos perigos da
floresta; a vovó (velha e doente) que nada pode fazer, e a menina
(incauta) que se surpreende com o tamanho dos órgãos do lobo e,
fascinada, cai em sua goela. A sexualidade do lobo aparece não só como
animalesca e destrutiva, mas também ”infantilizada” ou oral, visto que
pretende digerir a menina (o que poderia sugerir, de nossa parte, uma
pequena reflexão sobre a gíria sexual brasileira no uso do verbo comer).
O comer também aparece num outro conto de retorno, João e Maria. A
curiosidade de João, depois acrescida pela gula diante da casa de
confeitos, arrasta os irmãozinhos para a armadilha da bruxa (que é, na
simbologia e mitologia da Europa medieval uma das figuras mais
sexualizadas, possuída pelo demônio (o sexo), ou tendo feito um pacto
com ele). A astúcia salva as crianças quando João exibe o rabinho mole e
fino de um camundongo no lugar do dedo grosso e duro (o
35
pênis adulto), evitando a queda do menino no caldeirão fervente (outro
símbolo europeu para o sexo feminino, tanto a vagina quanto o útero). Há
tempo para que o pai surja e os reconduza à casa, depois de matar a
bruxa. (A imagem do caldeirão fervente também aparece em O
Casamento de Dona Baratinha, o noivo nele caindo, vítima da gula, não
podendo consumar o casamento.)
Nos contos de partida, a adolescência é atravessada submetida a
provações e provas até ser ultrapassada rumo ao amor e à vida nova.
Nesses contos, a adolescência é um período de feitiço, encantamento,
sortilégio que tanto podem ser castigos merecidos quanto imerecidos,
mas que servem de refúgio ou de proteção para a passagem da infância à
idade adulta. É um período de espera: Gata Borralheira na cozinha, Branca
de Neve semimorta no caixão de vidro, Bela Adormecida em sono
profundo, Pele-de-Burro sob o disfarce repelente. Heróis e heroínas se
escondem, se disfarçam, adoecem, adormecem, são metamorfoseados
(como os príncipes nos Três Cisnes, a princesa em A Moura Torta, o
príncipe em A Bela e a Fera, etc). Em geral, as meninas adormecem ou
viram animaizinhos frágeis (pomba, corça) e os meninos adoecem, viram
animais repugnantes (freqüentemente, sapos, o sapo sendo um dos
companheiros simbólicos principais das bruxas) ou viram pássaros (o
pássaro sendo considerado um símbolo para o órgão sexual masculino). A
expressão, muito usada antigamente, ”esperar pelo príncipe encantado”
ou ”pela princesa encantada” não queria dizer apenas a espera por
alguém muito bom e belo, mas também a necessidade de aguardar os que
estão enfeitiçados porque ainda não chegou a hora do desencantamento.
Gata Borralheira vai ao baile (primeiros jogos amorosos, como a dança dos
insetos), mas não pode ficar até o fim (a relação sexual) sob pena de
perder os encantamentos antes da hora. Deve retornar à casa, deixando o
príncipe doente (de desejo), e com o par de sapatinhos
momentaneamente desfeito, ficando com um deles, que conserva
escondido sob as roupas. Borralheira e o príncipe devem aguardar que os
emissários do rei-pai a encontrem, calce os sapatos, completando o par.
Sapatos que são presente de uma mulher boa e poderosa (fada) e que
pertencem apenas à heroína, de nada adiantando os truques das filhas da
madrasta (cortar artelhos, calcanhar)
36
para deles se apossarem. As filhas da madrasta querem sangrar antes da
hora e sobretudo querem sangrar com o que não lhes pertence, de direito
(relação sexual ilícita, repressivamente punida pelo conto).
Branca de Neve, cujo corpo não foi violentado pelo fiel servidor (não lhe
arrancou o coração, a virgindade, substituindo-o pelo de uma corça) será
vítima da gula e da sedução da madrasta-bruxa, permanecendo imóvel
num caixão de cristal (seus órgãos sexuais) com a maçã atravessada na
garganta, sem poder engoli-la. Além da simbologia religiosa em torno da
tentação pelo fruto proibido (o sexo), o vermelho trazido pela bruxa liga-se
também à simbologia medieval onde as bruxas fabricam filtros de amor
usando esperma e sangue menstrual, bruxaria que indica não só a
puberdade de Branca, mas também a necessidade de expeli-la para poder
reviver. Despertará por um descuido dos anões vigilantes — a casinha na
floresta, os pequenos seres trabalhadores que penetram em túneis
escuros no fundo da terra (que na simbologia sexual é imagem da mãe
fértil), um ”Mestre”, um a ter sono permanente, outro a espirrar, outro não
podendo falar, não foram proteção suficiente, a morte aparente tendo sido
necessária para reter Branca. (Seria interessante observar a necrofilia do
belo príncipe, pois pretende levar a morta em sua companhia.)
Bela Adormecida será vítima da curiosidade que a faz tocar num objeto
proibido — o fuso, onde se fere (fluxo menstrual), mas sem ter culpa, visto
que fora mantida na ignorância da maldição que sobre ela pesava.
Sangrando antes da hora, adormece, devendo aguardar que um príncipe
valente, enfrentando e vencendo provas, graças à espada mágica
(também símbolo do órgão viril), venha salvá-la com um beijo. Em sua
forma genital, o sexo aqui aparece de duas maneiras: prematuro e ferida
mortal, no fuso; oportuno e vivificante, na espada.
De modo geral, heróis e heroínas são órfãos de pai (os heróis) ou de mãe
(as heroínas), vítimas do ciúme de madrastas, padrastos ou irmãos e
irmãs mais velhos. Essa armação tem uma finalidade. Graças a ela,
preservam-se as imagens de pais, mães e irmãos bons (pai morto na
guerra, mãe morta no parto, irmãos menores desamparados), enquanto a
criança pode lidar livremente com as imagens más.
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Há um desdobramento de cada membro da família em duas personagens,
o que permite à criança realizar na fantasia a elaboração de uma
experiência cotidiana e real, isto é, a da divisão de uma mesma pessoa
em ”boa” e ”má”, e dos sentimentos de amor e ódio que também
experimenta. Lutar contra padrastos, madrastas e seus filhos é mais fácil
do que lutar com pai, mãe e irmãos.
Freqüentemente, os contos se estruturam de modo mais complexo. Em A
Bela Adormecida, por exemplo, há várias figuras femininas superpostas: a
mãe ausente; a fada má que maldiz a criança; a fada boa que substitui a
morte pelo sono e promete um salvador; a velha fiandeira, desobediente,
que conservou o fuso proibido; a menina curiosa e desprevenida que,
andando por lugares desconhecidos e subindo por uma escada (símbolo
da relação sexual) se fere e adormece, à espera da espada e do beijo. A
fada má pune o rei que a excluiu de uma festa dedicada à fertilidade (o
nascimento da princesa), a punição consistindo em decretar a morte da
menina quando esta apresentar os sinais da fertilidade (maldição que
simboliza o medo das meninas diante da menstruação e da alteração de
seus corpos). A morte da menina decorre da curiosidade que a faz
antecipar com um objeto errado (masturbação) a sexualidade. A fada boa
está encarregada de contrabalançar o equívoco (e o descuido masculino,
que não suprimiu todos os fusos) colocando a menina na tranqüilidade
sonolenta da espera e entregando a espada ao príncipe (que, portanto,
recebe o objeto mágico de uma mulher, pois todos nascem de mulheres).
O beijo final contrabalança o medo que a espada poderia provocar, pois é
instrumento de guerra e morte (o beijo simboliza, em muitas culturas, não
só amor e amizade, mas também um pacto ou uma aliança).
Na maioria dos contos, o pai é indiretamente responsável pela maldição
ou pelas desventuras da filha. Mas em A Bela e a Fera o pai é diretamente
responsável ao arrancar de um jardim que não lhe pertence, uma rosa
branca, despertando a Fera. Há no roubo da flor a simbolização do desejo
e do medo inconsciente das meninas de serem raptadas ou violentadas. A
figura masculina se divide: há o pai-bom e o homem-fera, divisão que
obriga Bela a viver com o segundo para salvar o primeiro. Contudo,
desejando rever o pai doente, Bela deixa que Fera, abandonada, também
adoeça (de desejo). A imaturidade
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de Bela, seu medo da Fera, seu desejo de permanecer junto ao pai só são
superados quando, pela piedade e pela sedução, retorna ao castelo da
Fera, dedica-se a ela e, ao fazê-lo, quebra o encanto, surgindo o belo
príncipe com quem viverá. O conto se desenvolve como processo de
amadurecimento da heroína e de constituição da imagem masculina
através de seus desejos. Do pai à fera, da fera ao príncipe.
Em Pele-de-Burro, o desejo incestuoso do pai é a mola do conto. A
primeira tentativa da filha para evitar o incesto fracassa: pede vestidos
feitos de Natureza (sol, mar e lua), mas a Natureza não é contrária ao
incesto, o rei podendo perfeitamente conseguir os vestidos. A princesa
deve, então, fugir. Mas seu disfarce indica os efeitos do desejo incestuoso
do rei: cobre-se numa pele de burro, animalizando-se. Num outro reino
(que não o da Natureza), a princesa irá aos bailes da corte, mas, como a
Gata Borralheira, não pode ficar até o fim para não correr o risco de ser
descoberta. Porém, o príncipe apaixonado ficará doente e o remédio virá
no bolo feito pela princesa. Bolo que possui o mesmo sentido e o mesmo
efeito que a espada, mágica, porém com a marca do feminino: é no
interior do bolo que se encontra o remédio salvador, o anel.
Embora os contos reforcem estereótipos de feminilidade e masculinidade
e preconceitos sobre homem e mulher, são ambíguos e ricos e por isso
não são sexistas: a salvação pode ser trazida tanto pelo herói quanto pela
heroína. As fadas, aliás, possuem um objeto mágico supremo, talismã dos
talismãs: a vara de condão, sendo seres excepcionais porque reúnem
atributos femininos e masculinos, sonho e fantasia de todas as crianças (e
não só delas, evidentemente). Em Os Três Cisnes, é a menina quem
quebra o encantamento dos irmãos, tudo dependendo de sua força de
vontade (ficar em absoluto silêncio durante sete anos)ou moderar o
princípio de prazer, e de sua coragem e destreza para acertar as setas, no
momento exato, nos corações dos três cisnes, matando-os para que vivam
os irmãos. Ela é portadora de um objeto viril — o arco e flecha —, sabendo
usá-lo. Sua destreza é ímpar: deve usar, e usa, o arco tendo os olhos
vendados (no capítulo ”Repressões nossas conhecidas”, quando falarmos
da figura do Amor de olhos vendados, a imagem dessa irmã ficará ainda
mais interessante, pois a venda nos olhos é símbolo medieval para a
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morte. Este conto, portanto, realiza uma verdadeira crítica da relação
sexo-morte, pois morte dos cisnes é nascimento de sua virilidade, por obra
de uma mulher. E o incesto, aqui, é óbvio). Além de não serem sexistas e
de contornarem o incesto, os contos não condenam o sexo com animais: é
o amor e o afeto pelos animais que permitirá desencantá-los.
Alguns psicanalistas consideram que as primeiras manifestações da
sexualidade estão ligadas ao que denominam escolha de objeto e objeto
parcial. A mãe (ou quem faz o papel de mãe para a criança) seria o
primeiro objeto escolhido e seus seios seriam o primeiro objeto parcial. Por
outro lado, como a mãe não está permanentemente presente,
acarinhando e alimentando a criança, esta desenvolve fantasias sobre o
objeto parcial: ausente ou faltando, torna-se um mau objeto; presente e
satisfatório, torna-se um bom objeto. A criança desenvolve também
fantasias de agressão e de ternura com relação a esses objetos, sobretudo
a da perseguição, no caso do mau objeto. Assim, nos contos, frutas,
plantas, flores e alimentos venenosos ou ardilosos seriam objetos parciais
maus ou persecutórios, mas contrabalançados por bolos, filtros, poções,
jóias que trazem saúde e quebram feitiços, sendo objetos parciais bons,
com os quais a criança e os contos realizam a reparação do objeto
escolhido, amado e odiado.
O objeto parcial persecutório mais perfeito, porém, é aquele que não é
devorado pela criança, mas que ameaça devorá-la. Nos contos: os
dragões, os lobos, os ogros, as tempestades, as florestas sombrias, os
castelos cheios de armadilhas. E para contrabalançar tamanha
perseguição e reparar o objeto amado, nos contos de retorno, adultos
salvam as crianças da perseguição e, nos contos de partida, a sexualidade
amadurecida e vencedora das fantasias persecutórias mais antigas
aparece no próprio herói ou na heroína cujos objetos mágicos (oferecidos
por um bom adulto) lhes permitem, sozinhos, vencer a perseguição. Nesse
mesmo contexto, compreende-se que a fada tenha a vara e a princesa dos
Três Cisnes, o arco. É colocado em mãos femininas algo que poderia ser
fonte de temor para as meninas.
São raros os casos, nos contos de retorno, em que a criança consegue
voltar à casa sozinha, sem auxílio de algum adulto, mesmo porque a
finalidade do conto é mostrar o
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despreparo da criança para sair pelo mundo. A grande exceção é O
Pequeno Polegar, criança em tudo excepcional.
Como seu nome indica, Pequeno Polegar é uma anomalia (e talvez por isso
o entusiasmo das crianças por ele), o tamanho compensado pela
inteligência fora do comum. As botas de sete léguas, que com astúcia
consegue, além de serem capacidade mágica para vencer o espaço e o
tempo (a pouca idade), são também meio de assegurar à criança que seus
órgãos sexuais pequenos não exigem renúncia dos desejos, mas
imaginação para satisfazê-los. É interessante observar que, se nos Três
Cisnes a menina empunha o arco, aqui o menino entra num enorme e
protetor ”recipiente”: as botas. E se sai muito bem.
O Pequeno Polegar é um dos contos onde melhor aparecem tanto o medo
que a criança tem da rejeição (ser morta pelos pais) quanto a necessidade
de reparação, isto é, de recompor a bondade dos pais depois da fantasia
de sua imensa maldade. Por isso mesmo as proezas maiores são feitas.
Polegar substitui para si próprio e para os irmãozinhos o pai e a mãe por
pais ideais: as botas acolhedoras e salvadoras do menino que não
abandona os irmãos, os protege contra os perigos da floresta e contra o
gigante, os traz de volta à casa com fortuna, garantindo a sobrevivência
da família. Não há príncipes nem princesas, tudo depende da inteligência
e imaginação da criança pobre e minúscula.
Há nos contos contínua intervenção de bons adultos, mas que não
intervém de modo casual ou arbitrário e sim de acordo com várias regras,
entre as quais se destaca a escolha dos mais fracos (o caçula, o órfão, a
vítima) e dos que têm senso de justiça, além da coragem. O uso dos
talismãs também está submetido a regras, os transgressores sendo
punidos (perda da potência do objeto mágico, retorno do objeto contra o
usuário) ou protelada a chegada à meta (a seqüência de provas
recomeçando ou tornando-se mais árdua). Heróis e heroínas precisam
demonstrar que são dignos do talismã (seja por suas qualidades anteriores
à recepção do objeto, seja pelo uso que dele fazem, seja pela obediência
às regras de seu emprego). Em resumo: as condutas estão reguladas por
normas e valores, a finalidade do conto sendo persuadir a criança de que
tais normas são boas e verdadeiras e que o sofrimento
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decorre apenas de sua desobediência. É o compromisso do conto, situado
entre o lúdico e a repressão.
Na maioria dos contos, o talismã é dom de um adulto para uma criança
mesmo que esta não o saiba. Há, porém, uma formidável exceção: João e
o Pé de Feijão.
Obtido numa sabida transação (que os adultos não entendem e castigam)
o grãozinho de feijão, bom sêmen, plantado em boa terra, cresce durante
uma única noite. Gigantesco caule, sobe, sobe, eleva-se até às nuvens,
rijo e duro, o menino podendo nele trepar. Como era inevitável, João
penetra no castelo do gigante malvado (figura masculina ameaçadora)
que possui um segredo precioso, uma galinha que bota ovos de ouro
(imagem feminina da fertilidade, guardada em segredo, fonte de riqueza:
os que nascem). Dela se apodera João, fugindo pelo caule, perseguido pelo
gigante e, para salvar-se, o menino corta o belo pé de feijão.
O conto procura lidar com um elemento repressivo complicado. Obtida a
galinha chocadeira de riquezas por um furto (justo, pois o gigante é mau e
a família, pobre), esse ato tem clara significação incestuosa e pode ser um
risco para a vida da família e do menino, pois o gigante se põe a descer
pela árvore, a mesma por onde o menino trepara. É preciso cortar o pé de
feijão depois que o essencial foi conseguido, isto é, a fertilidade. O sexo
cresce livremente — é como um elemento da natureza, um vegetal —,
mas essa liberdade deve encontrar um limite e ser freada, cortada. O
menino que subiu é o gigante mau que desce. E vem com fúria assassina.
Os contos de fadas, tais como os conhecemos, são resultado de muitas
reelaborações na sociedade européia, fixados nos séculos XVIII e XIX,
carregando as concepções desses séculos sobre a sexualidade (e sobre
outras coisas também). Ora, é interessante observar que, no século XIX,
ao lado desses contos, surge, na Inglaterra, um outro tipo de estória, em
certos aspectos semelhante ao maravilhoso dos contos, mas com uma
diferença fundamental: o mundo adulto não é apresentado com divisões e
ambigüidades, bom e mau, difícil e desejável, mas como mau e
indesejável. Estamos pensando em Peter Pan e em Alice — o menino que
recusou crescer, ficando na Terra do Nunca, e a menina cujo autor não
desejou que ela crescesse, fazendo-a conhecer a luta mortal e absurda
com a Rainha do Baralho num tabuleiro de xadrez.
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Muitos comentadores, de formação psicanalítica, afirmam que o medo de
Peter Pan o faz preferir a imaturidade sexual, o homossexualismo e a
masturbação (o pó de pirlimpimpim e o vôo), e que as ”perversões” de
Lewis Carrol (o autor de Alice) o fazia sentir atração sexual pelas meninas,
não desejando que ficassem adultas.
Não pretendemos refutar nem concordar com esses comentadores.
Gostaríamos apenas de lembrar que essas estórias foram imaginadas num
período conhecido como o da ”moral vitoriana”, quando a Inglaterra,
passando pela segunda revolução industrial, mantinha o controle
capitalista sobre o mundo. A sociedade desse período é narrada e descrita
por inúmeros autores como uma das sociedades mais repressivas da
sexualidade. Assim sendo, podíamos considerar a recusa do mundo adulto
por Peter Pan e por Alice, em vez de ”anormal”, talvez muito saudável e
lúcida. A Terra do Nunca, apesar do Capitão Gancho, é perfeita, mas o País
das Maravilhas é feito de ameaças e de frustrações.
Num romance da escritora inglesa Virgínia Woolf, Orlando (estória de um
homem-mulher que vive em dois períodos diferentes da história da
Inglaterra), a romancista descreve o momento em que, adormecendo
como rapaz no século XVII, a personagem desperta como mulher, em
pleno século XIX: vê por toda parte casais com trajes cinza e negro, o céu
é tenebroso e opressivo e a moça despertada sente uma dor inexplicável
no dedo anular esquerdo (isto é, onde se coloca a aliança de casamento).
Muitos adultos ficam chocados com a violência dos contos de fadas e se
surpreendem com o fato de que não a percebiam quando eram crianças,
comprazendo-se nela. É que a maioria das crianças, além de aceitar
naturalmente o maravilhoso, espera com inabalável certeza aquilo que o
conto promete e sempre cumpre: ”e foram felizes para sempre”. A gente
se engana, portanto, quando tenta ”açucarar” os contos ou omitir as
passagens ”violentas”.
Muitos se surpreendem com o fato de as crianças não só desejarem ouvir
inúmeras vezes os mesmos contos (numa repetição que deixa os adultos
extenuados), mas também não
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admitirem qualquer mudança no enredo, por menor que seja (cobram do
adulto que ”encurta” a estória, omite ou esquece algum detalhe, altera
alguma ação). Essa relação quase maníaca e obsessiva da criança com a
narrativa é essencial.
A montagem do enredo, a configuração das personagens, os detalhes
constituem um mundo cuja estabilidade repousa no fato de poder ser
repetido sem alteração, contrariamente ao cotidiano da criança que, por
mais rotineiro, é feito de mudanças. Além disso, os contos, operando com
metamorfoses, desaparecimentos e reaparecimentos, morte incompleta
dos bons e morte definitiva dos maus, funcionam em consonância com as
fantasias da criança, particularmente o modo como estrutura o
desaparecimento e o reaparecimento das pessoas mais próximas, que
ama e de quem depende inúmeras crianças inventam jogos de esconder e
achar objetos, pois sabem onde estão. A vantagem do conto sobre a
realidade, neste aspecto, consiste no fato de que enquanto, nesta última,
a criança jamais terá certeza do retorno dos desaparecidos ou do sumiço
definitivo daqueles que teme ou odeia, no conto tudo isto lhe é
assegurado, a presença e a ausência ficando apenas na dependência dela
própria e, para tanto, exige a narração e a repetição.
Qual de nós não experimentou as emoções de brincar de ”pique” ou
”pegador”? Encontrar é vencer uma prova diante do desaparecimento.
Mas, aspecto relevante, o medo de ser encontrado também é importante
porque nos torna visíveis no que desejaríamos ocultar. E, por isso. não ser
encontrado também define o vencedor. Não é sugestivo que as crianças
menores adorem esse jogo, só que, esconder-se, para elas, é fechar os
olhos? Acreditam que o que não estão vendo as esconde. Maravilhosa
fantasia. Maravilhosa onipotência (como Adão, entre as árvores,
imaginando que Deus não o vê porque não é visto por ele).
Freqüentemente os adultos temem o prazer manifestado pela criança
diante da ”violência” das narrativas. Em geral, o adulto teme,
inconscientemente, ser identificado com os ”maus”, sem perceber que
essa identificação é sempre contrabalançada pela identificação com os
”bons” e, sobretudo, que ela é saudável para ele e para a criança que
pode, pela fantasia, fazer discriminações que lhe seriam difíceis ou quase
impossíveis sem o material imaginário.
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Não é raro vermos crianças que se sentindo ou se imaginando pouco
amadas e temerosas do ódio que experimentam por alguns adultos
tenderem a duas atitudes muito compreensíveis. Algumas ”torcem” pelas
bruxas, pelos ogros e dragões, identificando-se com eles e dando vazão à
agressividade que, doutro modo, poderia ser punida se manifestada.
Outras, se enchem de pavor, pois os ”bons” lhes parecem muito
longínquos e inalcançáveis, enquanto os ”maus” lhes parecem muito
próximos e poderosos. Em certo sentido, pode-se dizer que não o prazer e
sim o pavor sentido por algumas crianças é que poderia ser considerado
como uma espécie de aviso ou de alerta de uma sexualidade com
sofrimentos e dificuldades.
O prazer pelos contos não vai sem discriminação. A criança discrimina os
valores ali lançados e os organiza para si própria. Em contrapartida, como
observou Bettelheim, a maioria das crianças não aprecia fábulas. Qual a
criança que não sente ofendido o seu senso de justiça na fábula de A
Cigarra e a Formiga? Feitas por adultos para adultos, a fábula desagrada a
criança porque esta não é moralista. A ética infantil não passa pelos
códigos estreitos dos apólogos nem pelo cultivo da frustração, próprio das
fábulas — a raposa sem as uvas, o corvo sem o queijo, o cão sem a carne.
Se a criança tolera a exigência de moderação dos impulsos, não tolera vê-
los permanentemente frustrados. À patologia repressiva da fábula, ela
opõe uma outra economia do prazer. Como Emília, sempre sem-cerimônia,
que fábula a fábula, conta outro conto e muda a moral da estória, para
escândalo de Dona Benta.

Visitando Pele-de-Burro

Ao dar à luz uma menina, a rainha morre deixando viúvo e triste o rei que,
desde então, apenas cuida da princesa. Chegando esta aos quinze anos,
sua semelhança com a mãe é tão grande que o pai por ela se apaixona,
desejando casar-se com ela. Aterrorizada, a menina procura refúgio junto
à aia que a criara. Dando tratos à bola, finalmente a aia julga ter
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encontrado um estratagema para impedir o casamento. Instrui a menina
para que faça ao pai um pedido impossível de ser satisfeito, mas condição
para aceitá-lo como marido. Deve pedir-lhe um vestido feito de sol. Ouvido
o pedido, o rei convoca todos os tecelões e tecelãs do reino e ordena que
o vestido seja feito. Em três dias, está pronto. A aia repete o conselho,
mas agora o vestido deve ser de lua. Feito. Novo pedido, mas de um
vestido de mar. Também feito. Furioso com a recusa, o rei declara que se
casará com a princesa, de toda maneira, caso contrário mandará matá-la.
Apiedada, a aia obtém uma pele de burro, nela envolve a menina e a leva
para fora do reino, deixando-a entregue à própria sorte.
Assim disfarçada, Pele-de-Burro chega ao reino vizinho onde consegue
trabalho como cozinheira do palácio e, por causa de seu aspecto, dão-lhe
como morada o chiqueiro. Todas as noites, antes de dormir, Pele-de-Burro
usa seus vestidos e chora seu triste destino.
O filho do rei chega à idade do casamento. O pai convida todas as damas
solteiras do reino e dos reinos vizinhos para três bailes, quando o príncipe
deverá escolher a esposa. Usando seus vestidos de sol, lua e mar, Pele-de-
Burro comparece aos bailes e, desde a primeira noite, é a preferida do
príncipe que somente com ela dança. Ela não revela o nome, onde vive,
quem é. Ao fim do terceiro baile, retorna ao chiqueiro e à cozinha. O
príncipe adoece e médicos vindos de toda parte não conseguem curá-lo
porque desconhecem seu mal. Pele-de-Burro faz um bolo colocando seu
anel de princesa na massa. Leva ao príncipe que, na primeira dentada,
morde o anel, retira-o da boca e o reconhece. Indaga quem o colocou ali.
Pele-de-Burro é trazida e diante de todos retira a pele, aparecendo no
vestido de sol. Curado imediatamente, o príncipe se levanta, pede-a em
casamento, é aceito e logo se iniciam os festejos. E os dois foram felizes
para sempre.
Neste conto, a mãe morta não é substituída pela madrasta perversa, mas
pela boa aia que criou, aconselhou e protegeu a menina contra o desejo
incestuoso do pai. Este, diferentemente de outros contos, não é um pobre
velho infeliz, mas um fogoso senhor. A não ser por essas diferenças, no
restante o conto parece seguir o padrão dos demais: os quinze
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anos da princesa e os riscos daí advindos, a fuga, o esconderijo na pele de
burro, na cozinha e no chiqueiro, os bailes e o casamento com o príncipe,
depois de salvá-lo. No entanto, a trama é bem complicada.
A bondade da aia é ambígua e suspeita. Inicialmente procura esconder a
menina, conservando-a no quarto, longe, portanto, do desejo paterno.
Depois, sugere os vestidos que, além de serem feitos com elementos
naturais (a Natureza não proíbe o incesto) e não poderem proteger a
menina, ainda a transformam em sedutora, exacerbando o desejo
paterno, culminando na ameaça de morte (ameaça que alguns estudiosos
chamam de ”julgamento do Rei Lear”, para lembrar o rei da tragédia de
Shakespeare que repudia a filha Cordélia porque não julga suficiente seu
amor filial). Finalmente, é a aia quem coloca a menina no interior da pele
de burro repelente e a conduz para longe da casa (numa expulsão
benigna, mas expulsão de todo modo).
Aparentemente, as personagens se distribuem duas a duas: rei-princesa,
princesa-aia. Na realidade, a relação é ternária, pois entre o pai e a filha
se coloca a aia-mãe. Morta no parto, reaparece como ama-de-criação.
A figura da aia comanda toda a primeira parte do conto, numa atitude
vingadora contra o rei e a filha. Nessa primeira parte, a menina está sob a
ameaça de dois amores: o do pai e o da aia, mas se a ameaça do primeiro
é percebida por ela, a da segunda fica imperceptível sob o disfarce da
proteção. A personagem complexa, portanto, é a da aia e não a do rei.
Este, tudo mostra; aquela, tudo oculta. Relegada às partes servis do
castelo, nele reina.
A situação, porém, é mais complexa. A aia-mãe, falsa protetora, também
está a serviço de uma outra fantasia. Aparentemente, o desejo incestuoso
parte do pai. Na verdade, parte da filha, a aia estando a serviço do
ocultamento desse desejo, colocada, como nas peças teatrais, na
qualidade de comparsa e cúmplice. O amor da menina pelo pai não pode
aparecer porque sua aparição exigiria o ódio pela mãe. Ora, visto que o
que a faz amada pelo pai é sua total semelhança com a mãe, ela não só já
conseguiu ocupar o lugar materno, mas ainda colocar a mãe no lugar
subalterno de uma serviçal. Lugar, que a seguir, ela própria ocupará, ao
tornar-se cozinheira, desalojando a mãe de todos os lugares. Há uma
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luta surda e inteiramente dissimulada na relação princesaaia.
O disfarce da pele de burro é significativo. Não significa apenas a
animalização da menina por obra do pai e da mãe. Significa mais alguma
coisa. Em várias religiões existem rituais propiciatórios dedicados à
purificação e à fertilidade. Na Grécia, por exemplo, existe o rito dionisíaco
de morte do bode para expiação das culpas, renascimento e fertilização
da terra. Nesse ritual, os participantes se cobrem com peles de bode,
dançam, têm relações sexuais e bebem vinho, encenando a história do
deus Dioniso, morto por amor de sua mãe e ressuscitado pelo sacrifício
por ela feito. Coberta na pele de burro, a menina realiza um rito
semelhante, ao qual se acrescenta a morada no chiqueiro.
Diferentemente de Branca de Neve e de Bela Adormecida, sua espera ou
passagem não se realiza pelo sono, mas à semelhança de Borralheira, vive
na sujeira e na impureza e, à semelhança de Bela, vive com animais.
Essa impureza tem vários sentidos. É, por um lado, a menstruação,
encarada na maioria das culturas como impureza que isola as mulheres,
fazendo-as intocáveis. São os desejos proibidos, a masturbação (vestir os
vestidos antes de dormir), a fase anal, por outro lado. Mas não só isso.
Analisando o significado das cinzas e do borralho, na Borralheira, Bruno
Bettelheim lembra que na antiga Roma as Vestais (meninas da mais alta
estirpe romana que deveriam permanecer virgens até os trinta anos),
estavam encarregadas de uma das mais altas, nobres e importantes
funções: a conservação do fogo sagrado, protetor de Roma. Ora, Pele-de-
Burro vive no chiqueiro, mas é cozinheira no palácio, vivendo ao pé do
fogão. Esse lugar não só a transforma de recebedora de alimento (criança)
em doadora dele (mãe), mas também lhe dá uma nova figura: trabalha
com o trigo (o bolo) e este é símbolo de virgindade (a Virgem, do Zodíaco,
carrega um ramo de trigo) e de fertilidade. Articulam-se, assim, vida,
morte, pele de animal para purificação, virgindade e fertilidade.
Quanto aos bailes, já vimos seu sentido principal nos contos. Vestida de
natureza, a princesa dança e seduz.
Quanto ao bolo, também já mencionamos seu sentido.
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Resta o anel. Além de símbolo evidente da aliança matrimonial, o anel
assume sentido para a sexualidade da personagem masculina. Antes de
enfiá-lo no dedo, o príncipe o coloca na boca. Sua doença é a infantilidade.
Sua cura, transferir o anel da boca para o dedo, e reconhecê-lo como um
objeto doado por Pele-de-Burro, não podendo devorá-lo.
Os vestidos também são significativos, além do sentido geral de
elementos da natureza. Em inúmeras mitologias, esses elementos são
deuses e costumam formar uma trilogia ou trindade indissolúvel: sol-dia-
luz-fogo-sexo; lua-noite-treva-mistério-sexo; mar-água-abismo-sexo. Força
vital força mágica e força concebedora.
O número três, cujo significado preciso desconhecemos neste conto, é
considerado em muitas culturas o número perfeito ou número da
harmonia e da síntese dos contrários. Possui poderes mágicos (repetir três
vezes uma expressão ou um gesto). Na filosofia pitagórica, forma a figura
perfeita e sagrada do triângulo constituído pelos dez primeiros números.
Na Cabala, três são as luzes mais altas do infinito, formando o ”teto dos
tetos” e três são as letras do nome de Deus quando este passa de ”nada”
a ”Eu”. Três são as Pessoas da Santíssima Trindade. Três vezes Pedro
negou Cristo. Três são as essências ou hierarquias celestes (na primeira:
tronos, serafins e querubins; na segunda: poderes, senhorias e potências;
na terceira: anjos, arcanjos e potestades). Três são as partes da alma. Três
as virtudes cardeais (fé, esperança e caridade).
Três vestidos, três bailes. Em Branca de Neve, três vezes a madrasta vai à
casa dos anões (na primeira, com o cinto de fitas, na segunda, com o
pente, na terceira, com a maçã). Três são as filhas em A Bela e a Fera e na
Gata Borralheira, como três são as irmãs nos Três Cisnes e nas Três
Plumas.
Três vezes, na canção, ”Terezinha foi ao chão” e ”acudiram três
cavalheiros/ Todos três chapéu na mão/ o primeiro foi seu pai/ o segundo,
seu irmão/ o terceiro foi aquele a quem ela deu a mão”.
A referência que fizemos aos contos de fadas foi muito sumária, deixando
de lado aspectos importantes como, por
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exemplo, outros significados das próprias fadas e demais figuras
maravilhosas, ou outros sentidos da relação entre a bondade e a maldade,
para a criança, e a divisão dos bons e maus nos contos. Também não
analisamos os vários significados dos animais e das plantas (oriundos de
mitologias e simbologias de várias épocas), dos elementos naturais como
água, fogo, ar e terra (sobre os quais o filósofo Gaston Bachelard
escreveu, considerando-os arquétipos do inconsciente universal), das
poções e filtros preparados por fadas e bruxas (sobre os quais os
historiadores muito têm pesquisado), das palavras mágicas (que
aparecem em outros contextos, como no filme de Fellini, Oito e Meio,
onde, ao pronunciar as palavras ”Asa Nisa Masa”, o menino traz e expulsa
fantasmas e realiza desejos). Não analisamos os objetos mágicos, embora
tenhamos feito breve referência às espadas, aos bolos, às botas, aos
sapatinhos (mas nada dissemos sobre o espelho, em Branca de Neve e A
Bela e a Fera, o espelho aparecendo no pensamento ocidental em idéias
como ”os olhos são espelho da alma”, ou como feitiço perigoso, à maneira
de Narciso que se apaixonou por sua própria imagem, propiciando o
surgimento do conceito de narcisismo ou de fase do espelho, na
psicanálise).
Apesar dessas lacunas, gostaríamos de sugerir aqui que os contos
trabalham em dois níveis: um imaginário (a estória propriamente dita) e
um simbólico (a construção implícita do enredo, o lugar e a hora de cada
peripécia, os objetos, as cores, os números, as palavras). Gostaríamos
também de lembrar que os símbolos não estão no lugar de outra coisa,
não são substitutos, mas são a própria coisa presentificada por meio de
outras. O símbolo realiza ou traz a coisa por intermédio de outra.
Também não nos detivemos nas posições sociais e políticas das
personagens — reis, rainhas, príncipes, princesas, servos, camponeses.
Nem no fato de alguns serem estrangeiros ou deformados (não é curioso,
por exemplo, que haja uma Moura que é torta?). Nem nos demoramos na
estrutura da família encontrada nos contos. Numa palavra, as dimensões
históricas, ideológicas e políticas foram silenciadas.
Sobretudo não fizemos qualquer menção à alma dos contos, isto é, que
são obras literárias. Nada dissemos de sua construção artística, de suas
origens, transformações e reelaborações
50
no decorrer do tempo (situações medievais tratadas com recursos do
romantismo, por exemplo), do modo como participam de várias fontes
diferentes de pensamento (como a Cabala, presente na escolha dos
números, privilegiando o 2, o 3, o 7 e o 10; na escolha das horas,
particularmente a meia-noite; na escolha de vegetais, cores, metáforas),
do significado da ordem de aparição e desaparição de personagens ou da
seqüência dos eventos (uma análise de tipo estrutural poderia mostrar,
por exemplo, porque a seqüência é sempre a mesma). Essa ausência da
consideração artística é grave sobretudo quando consideramos dois fatos
culturais: a pasteurização dos contos de fadas por Disney e o surgimento
de uma literatura infantil ”realista”.
Na disneylândia (exceção feita para duas obras-primas de Disney:
Fantasia e Branca de Neve e os Sete Anões), opera-se uma curiosa
inversão. Em lugar de encontrarmos, como nos contos narrados, a criança
lidando consigo mesma ao lidar com a divisão dos bons e dos maus,
encontramos adultos fabricando a ”boa criança” com quem possam
conviver sem medo. O desenho só é lúdico se for ”bondoso” (a
contraprova sendo o horror de um filme como Pinóquio).
Para melhor avaliarmos essa perda, podemos relembrar A Bela e a Fera,
no filme de Jean Cocteau. Além da ambigüidade na relação entre pai e
filha e na rivalidade das irmãs pelo amor paterno, Cocteau dá especial
atenção à figura de Fera: na cena do desencantamento descobrimos que
um mesmo ator faz dois papéis; num deles, é um adolescente enamorado
de Bela que, voltada para o pai, sequer o percebe; noutro, é a Fera. O
desencantamento é a reunificação das figuras que sempre foram uma só,
estando duplicadas apenas por causa do medo de Bela. Medo
magistralmente tratado na cena do espelho, onde se revezam as imagens
de Bela, do pai, da Fera e do apaixonado. Na relação sexual, com que
termina o filme, Bela e o Príncipe, enlaçados, as roupas agitadas pelo
vento, suavemente elevam-se nos ares, sumindo por entre as nuvens.
Por sua vez, a chamada literatura infantil realista, além de privar a criança
do acesso ao imaginário maravilhoso, fundamental para sua constituição,
procura criar a ”criança útil” que compreende o mundo ”tal como é” (com
o detalhe de que é ”tal como é” para o adulto que escreveu a estória),
aceita a divisão social dos papéis como divisão sexual correta, faz do
trabalho e do sucesso valores centrais.
51
Nota abaixo da foto:
Será Freud o primeiro a captar que Eros e Psiquê não são dois entes
separados perpetuamente buscando um ao outro, mas que são um só e
mesmo ser: Eros (o desejo) habita Psique (a alma). Como no poema de
Fernando Pessoa, em que o príncipe destemido busca a princesa
encantada para descobrir que ele era ela. Desejo de indivisão e de fusão
perpétua (impossível), o laço que enlaça em terno e fundo abraço, é a
sexualidade humana, perpetuamente reprimida.
Fim da nota.
52
A fantasia é considerada perigosa ou inútil.
Essa literatura, pretensamente realista, substitui a criança sabida,
inventiva, crédula e astuta, amedrontada e valente, pela criança tonta e
”bem-intencionada”. Talvez fosse bom relembrarmos a obra de Monteiro
Lobato que não reprimiu ”perversões” (Narizinho e o Príncipe Escamado,
Emília e Rabicó), escrevendo na certeza de que a criança é inteligente,
sabida e crítica. Afinal, não realizou a mais extraordinária proeza quando,
trazendo ao Sítio do Pica-Pau Amarelo as personagens dos contos de
fadas, deu-lhes a oportunidade de convocar os autores dos contos e julgá-
los, Emília propondo recontar doutro jeito as estórias? Pena que a
televisão também tenha pasteurizado Lobato.
Enfim, não mencionamos o maravilhoso elaborado no folclore brasileiro.
Por que será que o canto da Uiara seduz e mata os homens? O Saci-Pererê
é preto, perneta, usa barrete vermelho e pita um pito de barro? O Curupira
tem os pés virados para trás? No conto do Sete Estrelo os filhos
abandonados viram estrelas, brilhando no céu? No conto A Figueira, a
madrasta enterra as enteadas, cujos cabelos se transformam em árvore e
cujo canto triste permite a um homem descobri-las e salvá-las? Mas não
custará ao jovem leitor partir em busca desse imaginário, se quiser.
Nós lhe recomendamos vivamente que, se o fizer, aceite a companhia do
Macunaíma de Mário de Andrade.
Quando iniciamos este tópico, dissemos que não concordávamos
inteiramente com as interpretações de Bruno Bettelheim e demos alguns
motivos de nossa discordância. Em particular, dizíamos, a excessiva
centralização das análises em torno das relações familiares.
Para que nossa afirmação não pareça descabida, sobretudo após a
pequena visita que fizemos à Pele de Burro, gostaríamos de transcrever
aqui um outro conto de fada que se volta, de maneira extraordinariamente
bela, para o fundo mais fundo, lá onde mergulha a busca do maravilhoso.
53
Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria
Um Infante, que viria De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa
vem.
A princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a
sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho
fadado. Ele dela ignorado. Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o DestinoEla dormindo encantada Ele buscando-a
sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem
seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera, à cabeça, em maresia, Ergue a mão, e
encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.
Este poema encontra-se no Cancioneiro do poeta Fernando Pessoa e se
chama Eros e Psiquê.
54
Nota abaixo da foto:
Num livro dedicado ao estudo da obra de Fernando Pessoa, intitulado:
Fernando Pessoa — Aquém do Eu, Além do Outro, a escritora Leyla
Perrone Moisés interpreta a figura desse poeta cuja obra se desdobra em
quatro, cada qual com um nome de poeta diferente, cada qual por ele
atribuída a umapessoa diferente. Na busca-recusa da identidade (aquém
do eu, além do outro), a escritora nos lembra que, em latim persona é a
máscara usada pelos atores no teatro, e que, em francês, personne quer
dizer: ninguém.
Eis aí a versão repressiva de Eros e Psiquê: dois seres, enclausurados num
cubículo e em suas vestes, sem corpo e sem rosto, enlaçados pelas
convenções. Encontro sem contato (as bocas não se beijam, beijam
trapos) e sem intimidade, pois, no cubículo fechado e sob os panos que
cobrem seus corpos e rostos, se descobre a presença da sociedade inteira,
vigiando e controlando o pobre par.
55
Édipo-Rei

A tragédia de Édipo, rei de Tebas, que matou seu pai, casou-se com sua
mãe, trouxe por seus atos infames a peste e a desolação ao seu povo,
culminando no suicídio da mãe-esposa, na cegueira voluntária do herói
(que fura os olhos), no seu banimento e na execração de seus filhos,
tornou-se um tema central na discussão da sexualidade e de sua
repressão, desde o momento em que Freud elaborou, a partir da tragédia
de Sófocles, um conceito por ele designado: complexo de Édipo.
Embora haja na literatura dos primeiros Padres da Igreja algumas
referências a essa tragédia (no contexto da discussão mais geral sobre o
escândalo do sexo), propomos aqui examiná-la brevemente sob quatro
ângulos: o dos helenistas, que a interpretam em seu contexto histórico; o
de Freud, que a interpreta como núcleo universal da sexualidade; o do
psicanalista Hélio Pellegrino, para quem a tragédia envolve o período oral
ou pré-genital da sexualidade, às voltas com situações persecutórias; o do
antropólogo Lévi-Strauss, para quem o mito e a tragédia de Édipo
exprimem a tentativa de responder a uma questão universal (isto é,
presente em todas as culturas) concernente à origem dos seres humanos.
Evidentemente, no espaço deste livro não poderemos aprofundar a
discussão, mas simplesmente apresentá-la ao leitor para que dela se
informe.
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Diante do palácio de Édipo, rei de Tebas, o povo, em procissão, carrega
ramos para depositá-los nos altares dos deuses protetores da Cidade.
Pranto, gritos e preces, inda gações sem resposta nos fazem saber que a
peste assola Tebas, matando crianças, adultos, animais e plantas. Nascem
seres monstruosos e, pouco a pouco, reina a esterilidade. No alto do
palácio, aparece o rei, desolado, mas ameaçador, prometendo descobrir a
causa do infortúnio e que, se causado por algum humano, o fará confessar
o crime, mandando matá-lo a seguir.
Diz ao povo que aguarde com ele o retorno de seu cunhado, Creonte,
enviado a Delfos para consultar o oráculo, a fim de que este ofereça sinais
para a descoberta do culpado. De regresso, Creonte declara que o oráculo
afirmara estar o criminoso vivendo em Tebas e ser o mesmo que matara o
predecessor de Édipo, o rei Laio, havendo relação entre esse crime e a
desgraça da Cidade. Édipo considera impossível o que escuta, pois todas
as tentativas para encontrar o assassino haviam sido infrutíferas, mas tão
severas que ele não teria como viver em Tebas sem ser descoberto. O rei
desconfia de uma trama de Creonte para roubar-lhe o poder. Desconfiança
que aumenta quando Creonte traz o adivinho Tirésias (um cego, porque na
simbologia grega os que são dotados do dom da vidência sobre o passado
e o futuro, precisam não contar com os olhos do corpo, sempre sujeitos a
enganos) que ameaça Édipo com desgraças ainda maiores, se este
prosseguir a busca — Tirésias conhece o culpado, mas se recusa a
nomeálo apesar das ordens do rei. Jocasta, a rainha, também aconselha
Édipo a abandonar a busca, alegando que muito tempo se passara e não
haveria por que revolver o passado, melhor sendo realizar rituais
propiciatórios para que os deuses afastassem as desgraças. Mas Édipo
persiste.
No correr dos diálogos ficamos sabendo que Édipo se tornara rei de Tebas
porque livrara a cidade da perseguição da Esfinge (monstro com cabeça e
seios de mulher, corpo de cachorro, rabo de dragão, asas de pássaro e
unhas de leão) devoradora das virgens de Tebas e que impunha como
condição para findar a matança que um homem decifrasse o
57
enigma que propunha. Édipo o decifrou e salvou a cidade, tornando-se rei
porque Laio fora morto numa estrada por salteadores. Ficamos sabendo
também que Édipo viera para Tebas fugindo de sua cidade, Corinto,
porque soubera não ser filho legítimo de Polibo e Mérope, apenas seus
pais adotivos, partindo em busca dos pais verdadeiros, enfrentando
malfeitores no caminho e matando o mais velho deles com um bastão.
Sabemos também que pesava sobre a casa de Laio e Jocasta uma
maldição: que seu filho o mataria e se casaria com a mãe. E que para
evitar esse horror, Jocasta entregara o filho recém-nascido a um servidor
para que o matasse. Édipo diz que maldição semelhante pesara sobre ele
e que pretendia deixar Corinto, antes mesmo de saber-se adotivo, porque
temia matar Polibo e desposar Mérope, pensando até mesmo em lá ficar
se pudesse certificar-se de que tal risco não existiria, caso Polibo e Mérope
fossem seus pais adotivos. Por esse motivo fora consultar o oráculo de
Delfos que confirmara a maldição sem lhe dizer se os reis de Corinto eram
ou não seus verdadeiros pais. A dúvida afastou-o de Corinto, levando-o
rumo a Tebas.
As suspeitas crescem em Jocasta que procura demover Édipo da busca,
sem sucesso. Jocasta sabe que igual maldição pesara sobre seu filho com
Laio, mandando matá-lo para evitar que fosse consumada e, embora
esteja certa da morte da criança, a maldição de Édipo a perturba. Édipo
sente-se tranqüilo porque a descrição que os tebanos lhe fizeram da morte
de Laio não coincide com a lembrança que possui do encontro com os
salteadores, na encruzilhada que o levou a Tebas. Temendo que Édipo se
deixe abater pela lembrança da maldição e procurando apaziguar-se a si
mesma, Jocasta procura convencê-lo de que todos os homens sonham em
dormir com a mãe, o incesto sendo um desejo comum.
O desenlace ocorre quando um pastor, certo de que trará boas notícias ao
rei, vem a Tebas e conta a Édipo que, de fato, ele não é filho de Polibo e
Mérope, podendo regressar a Corinto sem medo, pois para lá fora levado
pelo pastor que o encontrara no fundo de um despenhadeiro, com uma
pedra amarrada aos pés, abandonado e à morte. Mostra ao rei as marcas
que este possui nos tornozelos e os pés que ficaram deformados com o
peso da pedra que os atava. Tudo se encaixa. Com horror, Édipo e Jocasta
reconstroem a estória.
58
Jocasta se suicida, Édipo fura os próprios olhos e sai de Tebas, banido.
Uma das artes maiores de Sófocles (e que é própria das tragédias),
consiste em oferecer às personagens todos os elementos e indícios para o
conhecimento da realidade, todos os sinais possíveis para decifrar os
enigmas, mas ao mesmo tempo (e nisto está a tragédia) enfatizar a
impossibilidade das personagens para compreenderem ou perceberem o
que lhes é oferecido. Cego, Tirésias tudo vê. Vidente, Édipo nada vê e
somente ao conhecer a verdade furará os olhos para que cegueira não lhe
deixe esquecer o que viu.
Segundo os helenistas, a tragédia não é apenas um gênero literário,
nascido e desenvolvido em Atenas entre o fin do século VI A.C e o início do
século IV A.C., mas é sobretudo, no dizer de Jean-Pierre Vernant, uma
instituição social e uma experiência política. Além de ser custeada pela
Cidade-Estado (a polis), de ser um concurso público de que participam os
cidadãos, de ser representada por atores profissionais e por um colégio
cívico de cidadãos (que fazem o coro), ela é uma interrogação que a
Cidade efetua, uma reflexão da Cidade sobre os conflitos entre a nova
ordem democrática (ordem humana e jurídica) e a ordem antiga,
aristocrática (ordem religiosa e fundada no sangue).
Nascida no momento em que também nascem a ordem democrática e os
tribunais, as assembléias e uma nova legislação, a tragédia confronta e
questiona o passado e o presente, o mundo humano e a ordem divina, as
idéias de destino e responsabilidade, força e justiça, e as tensões entre as
várias formas da autoridade (religiosa, política, familiar). Não é casual que
a tragédia de Êdipo seja escrita por Sófocles a partir de um antigo mito
tebano, anterior à ordem democrática, quando existia a realeza e a ordem
humana era inteiramente regida pela ordem divina, desconhecida e
impenetrável. As tragédias são sempre trilogias (três estórias) e se
desenvolvem a partir de um mesmo núcleo — o crime sangrento no
interior da família e que pede vingança com outro crime sangrento que
pedirá nova vingança e sem possibilidade de findar o ciclo das mortes.
Para esse núcleo, as tragédias sempre oferecem a mesma conclusão — a
necessidade de passar à ordem humana do Direito e da justiça pública
que pune os culpados, colocando um fim à vingança intrafamiliar, própria
da
59
realeza e da aristocracia. Em outras palavras, a redefinição do lugar do
poder como público (e não mais privativo de um grupo ligado por laços de
sangue) e da instância da lei como cívica.
A tragédia lida com as contradições entre passado (aristocrático, mítico e
heróico) e o presente (cívico e democrático); no interior do indivíduo
(destino/família, responsabilidade/ cidadania); no interior do direito (ordem
divina imposta aos homens/ordem humana da lei); no interior da
linguagem (as personagens usam as mesmas palavras para dizer coisas
opostas, ou usam palavras opostas para dizer as mesmas coisas),
predominando um vocabulário jurídico que indica estar a Cidade
elaborando sua própria realidade, uma verdadeira pesquisa coletiva sobre
o poder.
A tensão entre passado e presente aparece na própria forma teatral — os
atores, no palco, são representantes do tempo passado (reis, rainhas,
heróis míticos) enquanto, no coro, estão os cidadãos, representantes do
presente; e literária — os atores, embora representem o passado, falam
num gênero do presente, a prosa, enquanto o coro, embora figure o
presente, usa o gênero lírico, próprio do passado.
Para haver tragédia é preciso que o mundo divino e a ordem humana
sejam percebidos como diferentes, antagônicos e inseparáveis. Também é
preciso que tenha surgido a figura do ser humano como sujeito, isto é,
como agente dotado de vontade e responsável por suas ações, ainda que
saiba que, em última instância, o que faz é resultado de uma decisão
divina desconhecida. Isto é, sem a contradição entre a vontade livre e
responsável e o sentimento de cumprir um destino inevitável, não pode
haver tragédia.
Essa contradição aparece sobretudo no sentimento trágico da culpa, pois
é tratada simultaneamente como uma falta religiosa e como um delito ou
infração da lei humana, defendo ser julgada por dois tribunais (um divino-
religioso e um humano-político), a tarefa do autor trágico sendo
justamente a de fazer com que os dois tribunais venham a coincidir. No
caso de Édipo-Rei essa dupla dimensão do julgamento aparece através de
dois procedimentos: um religioso (a purificação da cidade e da casa régia)
e um político (o ostracismo ou banimento do rei criminoso).
60
Para os helenistas, não há ”complexo de Édipo” na tragédia de Sófocles,
nem a apresentação de uma natureza humana perene, universal. Essa
tragédia é considerada exemplar porque nela as contradições entre
passado e presente, família e Cidade, culpa e castigo, responsabilidade e
pena, destino e liberdade, direito e força, justiça e violência não se
distribuem, como nas outras tragédias, entre as várias personagens, mas
se concentram todas em Édipo que diz sempre o contrário do que pensa
estar dizendo e faz o contrário do que imagina estar fazendo, supondo que
controla as regras do jogo do poder quando, na verdade, é um joguete
delas.
Antes de mais nada, convém lembrar que a tragédia de Sófocles não se
intitula ÉdipoRei (Oidipous Basileus), mas Êdipo-Tirano (Oidipous
Tyrannós). Tanto a palavra Oidipous quanto a palavra Tyrannós são
essenciais para compreendermos qual é a tragédia de Édipo.
Édipo — Oidipous quer dizer: Pé Inchado. Como seu nome o diz, Édipo
carrega uma deformação física e, portanto, sêu corpo não está conforme à
Natureza. Através da ação, Édipo transferirá a deformação também para
sua psiquê e se tornará um ser contrário à natureza humana. Essa dupla
deformidade o coloca aquém ou abaixo dos demais seres humanos, faz
dele um monstro no sentido em que os gregos usam a palavra pharmakós
(vicioso, impuro, venenoso). Sua ação envenena Tebas, tornando-a impura
(a peste).
Como na maioria das religiões, a religião grega possuía rituais de
purificação. Um desses rituais encontra-se na origem da tragédia, que
antes de tornar-se uma representação teatral era um rito coletivo (o ritual
dionisíaco) de purificação, morte e fertilidade. Era o rito do bode expiatório
(bode, em grego, tragos), com apedrejamento e expulsão dos impuros e
criminosos para limpar a Cidade das culpas, garantir fertilidade e proteção
divina. Esse rito antigo está indicado na abertura da tragédia de Édipo
pela procissão dos suplicantes que depositam nos altares os ramos para o
ritual da purificação, da expulsão do pharmakós. Assim, desde o início, o
autor avisa o público que haverá bode expiatório e purificação.
Aliás, o filósofo Aristóteles escreveu que a tragédia possuía uma função
catártica ou purgadora (catársis purga purificação): o público, através da
representação, podia experimentar
61
sentimentos profundos provocados pelas ações terríveis representadas e,
dessa maneira, dar vazão a emoções perturbadoras, purificando-se delas
(alguns helenistas consideram que esse aspecto catártico apareceu mais
no final, quando não mais havia necessidade da reflexão política
justificadora da nova ordem estabelecida, já assegurada, restando o papel
religioso e psicológico da representação trágica).
Tyrannós, para os gregos, não significa, como para nós, o ditador violento
que domina pela força. Tyrannós se opõe a basileus isto é, ao rei por
hereditariedade ou linhagem. O tirano é aquele que conquista o poder, em
vez de herdá-lo, e que o conquista graças às suas altas e extremas
virtudes como guerreiro, protetor e sábio. É aquele que possui qualidades
acima ou superiores às dos outros homens, estando, por isso, acima das
leis da Cidade, sujeito apenas à sua própria vontade e à vontade dos
deuses. Porque decifrou o enigma da Esfinge, salvando a Cidade e
realizando o que ninguém realizara, Édipo torna-se tirano de Tebas. Como
tal, encontra-se acima e além dos demais.
Se lembrarmos que a tragédia pretende legitimar a nova ordem
democrática, também precisaremos lembrar que na democracia grega
dois princípios são essenciais: o da isonomia (iso = igual; nomos = lei) que
garante a igualdade de todos os cidadãos perante às leis, e o da isegoria
(iso — igual; agora = assembléia, praça pública) que garante a todos os
cidadãos o direito à palavra nas decisões políticas. Ora, o tirano, estando
acima dos demais, quebra a isonomia e a isegoria, é um desigual que fere
os princípios democráticos. Para os tiranos, a democracia possuía uma
pena: o ostracismo. Assim, o título da tragédia já indica uma figura que a
ordem democrática coloca no ostracismo.
Se unirmos Oidipous e Tyrannós, perceberemos que Édipo Tirano é uma
contradição viva: o homem que por sua deformação (física e moral) está
abaixo dos demais, um pharmakós, e o homem que por suas qualidades
militares e políticas está acima dos demais. Seu nome prepara o
banimento, seja comopharmakós, seja como tyrannós. Concentrando em
sua pessoa os dois pólos extremos de possibilidade para um humano —
degradação máxima e elevação máxima — Édipo é um ser internamente
contraditório ou dividido. Contrário à
62
Natureza — parricida e incestuoso — e contrário à Cidade — tirano. É um
monstro.
É neste contexto que se esclarece o desejo edipiano da verdade a
qualquer preço. Por um lado, a busca decorre do fato de que Édipo julga
Creonte culpado e, se puder prová-lo, eliminará o rival político. Por outro
lado, no entanto, ele é movido por uma questão originária (tanto no
sentido de ser a questão que dá origem à sua tragédia, quanto no sentido
de ser a questão da busca de sua própria origem): quem sou eu? quem
são meus pais?
Essa questão, dizem os helenistas, não é existencial ou psicológica, mas
política. Numa sociedade aristocrática, para ser rei ou tirano, para chegar
ao poder, um homem depende da origem de seu sangue, de sua família.
Se os pais de Édipo forem de baixa extração, estrangeiros ou escravos,
não poderá ser nem rei nem tirano. Assim, o medo da perda do poder leva
Édipo à busca da origem e ao encontro de uma resposta que o destruirá.
Sua falta de medida (própria do tyrannós) está em que Tirésias e Jocasta
tentaram impedi-lo da busca, mas seguro de encontrar uma resposta que
o salvaria, ele não ouve ninguém, senão sua própria vontade.
Enfim, tragédia suprema, Édipo escutara a verdade quando fora a Delfos
ouvir o oráculo e quando decifrou o enigma proposto pela Esfinge, porém
não foi capaz de compreender o sentido do que ouvira nem do que
decifrara.
Qual o enigma proposto pela Esfinge? ”Quem é, ao mesmo tempo, quatro
pés (tetrapous), três pés (tripous) e dois pés (dipous)” Oidipous imagina
tê-lo decifrado ao responder: ”É o homem. A criança que engatinha, o
adulto ereto e o velho apoiado no bordão”.
Ora, o mito conta que Édipo não falou, mas, silenciosamente, voltou o
dedo indicador para si mesmo. Tanto ele quanto os demais supuseram
que o gesto significasse ”o homem”, tanto que a Esfinge aceitou a
resposta. No entanto, o que ela perguntara? Perguntara: ”quem é, ao
mesmo tempo...?” Em sua resposta, correta e ilusória, Édipo se esquece
do ”ao mesmo tempo” e coloca o simultâneo como sucessivo — criança,
adulto, velho. Na verdade, porém, o que ele descobrira, sem o saber, era
ele próprio e não todos os seres humanos. Pois, quem é ao mesmo tempo
criança (filho),
63
adulto (marido, pai) e velho (avô), senão Édipo, pai e avô de seus filhos,
filho e marido de sua mãe?
Partindo do mito e da tragédia de Édipo-Rei, Freud elaborou um conceito:
complexo de Édipo, também chamado por ele de complexo nuclear. Trata-
se de um sistema ou de uma rede intrincada (donde, complexo) de afetos
e fantasias que a criança possui, entre os três e quatro anos, ao perceber
que faz parte de uma tríada ou relação triangular constituída por ela, pela
mãe e pelo pai. Esse complexo seria nuclear não só por ser universal,
presente em todas as culturas, mas por ser o ponto central de cuja
resolução ou irresolução depende nossa vida pessoal, psíquica, afetiva,
sexual. Nossa saúde e nossa doença.
Antes de examinarmos o modo como Freud elaborou esse conceito, é
conveniente considerarmos, de modo breve (e, infelizmente, muito
esquemático e simplificado), alguns aspectos da teoria freudiana da
sexualidade (sem considerarmos aqui as diferentes transformações que
sofreu na obra de Freud nem nas obras dos psicanalistas posteriores a
ele).
A libido existe em nós desde o nascimento (e, segundo alguns, antes do
nascimento). A partir dela organizam-se as relações entre dois princípios:
o princípio do prazer (querer imediatamente algo satisfatório e querê-lo
cada vez mais) e o princípio da realidade (compreender e aceitar que nem
tudo o que se deseja é possível, que se for possível, nem sempre é
imediato, que nem sempre pode ser conservado e muitas vezes não pode
ser aumentado). O princípio de realidade é o que nos ensina a tolerar as
frustrações. Também da libido, nascem dois princípios antagônicos que
lutam em nosso inconsciente: Eros (do grego, amor) e Thânatos (do grego,
morte), um Princípio de vida ou vital e um princípio de morte ou mortal.
Esses dois princípios tornam o princípio do prazer extremamente ambíguo,
pois o prazer não estará necessariamente vinculado a Eros, mas, de modo
profundo, a Thânatos. Se o desejo supremo dos seres humanos for o
equilíbrio, o repouso, a paz, o imutável, somente Thânatos ou a morte
poderá satisfazer tal desejo e produzir verdadeiro prazer, enquanto Eros
colocando-nos no interior de afetos conflitantes, pode
64
não ser a realização do princípio do prazer. O ponto essencial é que o
princípio de morte não é apenas o desejo de destruição dos outros que
seriam obstáculos ao repouso, mas de autodestruição.
Qual a maior dor que sente um ser humano? Qual o traumatismo
originário? Nascer. Sair do aconchego e do repouso uterino, separar-se do
corpo materno. Thânatos é o princípio profundo do desejo de não
separação, de retorno à situação uterina ou fetal, de regresso à paz e ao
nada primordiais. Por isso é tão potente, mais poderoso do que Eros, que
nos força a viver.
A libido se manifesta de formas múltiplas em nossa vida e Freud, embora
considerando que na vida adulta todas essas formas podem estar
simultaneamente presentes, classificou as fases da libido, segundo a
origem do prazer, as regiões prazerosas do corpo (zonas erógenas) e os
objetos (escolha de objeto) que são sentidos como os mais prazerosos.
A primeira fase é oral: o prazer vem do ato de comer ou sugar, da
ingestão de alimentos; as zonas erógenas principais são os lábios e a
boca; os objetos escolhidos são os seios e seus substitutos (dedo, chupeta,
objetos que se possa sugar, alimentos). A prova de que a fase oral não
desaparece para muitos de nós, mas realiza uma fixação, está na
existência dos fumantes, dos que gostam de beber, declamar, fazer
discursos e no chamado sexo oral. A segunda fase é anal: a fonte do
prazer é expelir ou reter as fezes; o órgão privilegiado do prazer ou zona
erógena é o ânus; são substitutos prazerosos das fezes, o barro, a massa
de modelar, a massa de pão ou bolo, etc. A fixação dessa fase na vida
adulta aparece nos pintores, escultores, nas pessoas perdulárias ou
generosas, nas pessoas avarentas, e no chamado sexo anal. A terceira e
última fase é fálica ou genital: a origem e o lugar do prazer zonas
erógenas) são os órgãos genitais, há gosto pela masturbação e é o
momento do exibicionismo e da curiosidade infantis. É nessa fase, entre
os três e quatro anos, que Freud localiza o surgimento do complexo de
Édipo que permanecerá latente até o fim da puberdade quando deverá
resolver-se (ou não).
Nas fases oral e anal a criança mantém relações duais, seja porque se
relaciona com a mãe ou com parte dela ou com substitutos dela (os
objetos parciais), seja porque se relaciona
65
com seu próprio corpo, tanto com partes dele (como se fossem pedaços
separados ou autônomos, objetos) como com seu corpo inteiro, mas como
se fosse o de outrém, como se estivesse diante de um espelho e
considerasse a imagem refletida como de outra pessoa que ela deseja ou
admira (como no mito de Narciso, enamorado de sua própria imagem
refletida no espelho das águas). Na fase fálica, a criança passa a uma
relação ternária (ela, o pai e a mãe ou quem faça o papel deles) que já
envolve os corpos inteiros dos participantes da tríada, ainda que certas
partes sejam privilegiadas. Essa relação ternária, feita de amor, medo,
ódio, inveja, fantasias agressivas e amorosas, forma o núcleo do Édipo.
Vários psicanalistas, como Serge Leclaire, observam que as zonas
erógenas não se limitam aos órgãos preferenciais de cada fase, nosso
corpo tendo inúmeras outras. A constituição de uma parte do corpo em
zona erógena estaria ligada aos investimentos afetivos que nela deposita
a criança, nos primeiros anos de vida, ao receber, nessa parte, carícias da
mãe (ou de quem faça o seu papel). A carícia erotiza para sempre todo o
nosso corpo.
Uma das maiores descobertas de Freud, além do sentido da sexualidade
ampliada e não confundida com um instinto, da sexualidade infantil e da
idéia de que é a repressão da libido e não a própria libido a causa dos
distúrbios físicos e psíquicos, é a descoberta de um fundo invisível,
aparentemente surdo e mudo, designado por ele com o nome de
inconsciente. A psicanálise foi criada para alcançar, compreender, decifrar
e interpretar o inconsciente, para fazê-lo falar e para saber escutá-lo.
O inconsciente não é uma coisa nem um lugar, mas uma energia e uma
lógica em tudo oposta à lógica da consciência. Freud dizia que o
inconsciente desconhece o tempo, a negação e a contradição. Essa lógica
peculiar do inconsciente faz com que suas aparições não sejam vistas nem
compreendidas imediatamente pela consciência, que opera noutro
registro. Por isso requer deciframento e interpretação. Oferece-se de
modo fragmentado, disfarçado e enigmático, à maneira de uma charada
ou de um jogo de adivinha. Não é casual, portanto, que Freud tivesse tido
tanto interesse pela tragédia de Sófocles, onde a verdade, posta diante
dos olhos da consciência,
66
se oferece por enigmas, fragmentos, indícios e disfarces que a tornam
invisível e incompreensível.
Freud elaborou várias teorias sobre a estrutura de nossa psiquê e a mais
conhecida é aquela que divide nosso psiquismo em três instâncias
articuladas entre si, a forma, o conteúdo e o sentido dessa articulação
dependendo tanto de fatores individuais (nossa história pessoal),
genéticos (a história da espécie humana), culturais ou coletivos (a vida
social). Essas instâncias são; o id (do latim: isso, neutro, sem qualificação
de gênero e número), ou seja, a libido plena, sem freios e sem limite, pura
energia em busca de satisfação; o ego (do latim: eu, o sujeito, a primeira
pessoa), isto é, nossa parte consciente, voluntária e racional; o super-ego,
isto é, a instância repressora do id e do ego, tão inconsciente quanto o id,
proveniente tanto das proibições culturais interiorizadas quanto das
proibições que cada um de nós elabora inconscientemente sobre os
afetos.
O id não conhece limites e o super-ego só conhece limites (o id, na canção
de Chico Buarque e Milton Nascimento é o sem nome, sem vergonha, sem
restrições, enquanto o super ego é a censura forçando o id, obrigando-o a
satisfazer-se nos escuros, nos cantos, nos esconderijos). O ego é nossa
maneira consciente de lidar com o que desconhecemos, embora
imagínemos que estamos a lidar com afetos, impulsos, desejos cujas
causas, sentido, finalidade poderíamos conhecer e controlar sem maiores
problemas. É nossa maneira de elaborar a sexualidade sob as exigências
irrefreáveis do id e sob as exigências repressoras do super-ego. A saúde,
julga Freud, depende de nossa capacidade consciente para lidar com esse
conflito inconsciente e a doença vem de sucumbirmos seja aos excessos
do id, seja aos excessos do super-ego. Tudo depende de conseguirmos
”colar” essa ”rachadura” originária, essa divisão. Freud preferia usar o
termo repressão para os processos conscientes e pré-conscientes, usando
o conceito de recalque ou recalcamento para os processos inconscientes.
O recalque se realizaria quando a satisfação de uma pulsão sexual (que
poderia proporcionar prazer) aparece como capaz de suscitar desprazer e
sobretudo como ameaçadora para o sujeito. Tal pode ser uma censura
(repressão) como uma defesa (um ato de desinvestir numa pulsão,
investindo em outras não ameaçadoras). Existem recalques originários (os
que vão constituir os
67
primeiros conteúdos e as primeiras formações inconscientes) e
segundados (os que se realizam já sob os efeitos ou motivações dos
primeiros, sendo variantes deles). A repressão (recalque) difere da
supressão porque nesta realmente fazemos desaparecer definitivamente
alguma coisa.
A peculiaridade do recalque (repressão sexual profunda ou inconsciente)
está no fato de que nosso inconsciente, astuciosamente, encontra meios
para fazer o recalcado reaparecer sem danos ou sem ameaças,
reaparecimento que não depende nem de nossa vontade nem de nossa
razão, fazendo parte do cotidiano normal de nossa vida (sendo mesmo
necessário, como descarga de energia): sonhos, atos falhos
(esquecimentos, enganos de linguagem, gestos involuntários), humor,
apego ou desagrado por certos objetos, certas situações ou pessoas sem
que saibamos a causa do amor ou da repulsa, da simpatia ou da antipatia,
da satisfação ou do medo.
Também há retorno do reprimido ou recalcado através de um
procedimento muito fecundo ou criador: a sublimação, isto é, o desvio das
pulsões proibidas para um alvo não sexual e socialmente valorizado. Para
Freud, a atividade artística e a atividade intelectual são as formas mais
altas da sublimação.
Entretanto, o retorno do reprimido ou do recalcado pode ocorrer de forma
violenta, doentia, patológica com muitos danos quando o próprio recalque
foi violento, doentio, traumático. O recalcado ou reprimido volta, então,
sob a forma de sintomas, de neuroses, psicoses e perversões. O ponto de
partida de Freud, aliás, foi o estudo desse tipo de retorno numa forma
particular, conhecida como histeria, e que ele vinculou ao traumatismo na
repressão ou recalque do complexo de Édipo, à impossibilidade da
supressão desse complexo.
Para Freud, tanto a saúde quanto a patologia se definem
preferencialmente no momento do Édipo, tanto assim que a fixação nas
fases oral ou anal são consideradas por ele como regressões, isto é,
resultado da irresolução do complexo edipiano. (Opinião que não será
unânime entre os psicanalistas, sobretudo aqueles que dão grande
importância à fase oral, considerada matriz das formas da sexualidade.)
É a solução satisfatória ou sua impossibilidade durante o complexo de
Édipo como complexo afetivo-sexual central que, segundo Freud, decide o
destino de nossa vida consciente e inconsciente. No momento do Édipo, a
criança conhecerá pela
68
primeira vez, segundo o psicanalista Lacan, que o desejo está submetido a
uma lei — a lei do Falo, a lei do Pai, a Lei das leis. Descobrirá, através do
interdito do incesto, através do medo da castração (meninos) e da falta ou
da lacuna (meninas), a repressão sexual, a articulação entre desejo e
existência humana. Se puder aceitar a Lei, sobreviverá com saúde; se não
puder aceitá-la, sucumbirá à doença.
Que diz Freud sobre Édipo?
Num de seus livros — A Interpretação dos Sonhos — Freud escreve: ”Se o
ÉdipoRei é capaz de comover o leitor ou o espectador moderno não menos
do que comovia os gregos do tempo de Sófocles, a única explicação
possível desse fato singular é a de que o impacto trágico da obra grega
não decorre da oposição entre o destino e a vontade humana, porém do
caráter peculiar da fábula em que tal oposição é objetivada. Sem dúvida,
há uma voz interior que nos impulsiona a reconhecer o poder compulsivo
do destino em Édipo, enquanto outras tragédias, construídas sobre as
mesmas bases, nos parecem inaceitavelmente arbitrárias. É que a lenda
do rei tebano aprofunda algo que fere em todo ser humano uma íntima
essência natural. Se o destino de Édipo nos comove é porque poderia ser
o nosso e porque o oráculo lançou sobre nossas cabeças maldição igual,
antes que nascêssemos. Talvez estivesse reservado a nós todos dirigirmos
à nossa mãe nosso primeiro impulso sexual e ao nosso pai nosso primeiro
sentimento de ódio e o primeiro desejo de destruição. Nossos sonhos disso
dão testemunho. O rei Édipo, que matou o pai e casou-se com a mãe, não
é senão a realização de nossos desejos infantis. Porém, mais felizes do
que ele, nos foi possível, em épocas posteriores à infância e quando não
contraímos uma psicose, desviar nossos desejos sexuais de nossa mãe e
esquecer o ciúme que nosso pai nos inspirou. Diante daquelas pessoas
que chegaram à realização daqueles desejos infantis recuamos com
horror, com toda a energia do elevado montante da repressão que sobre
eles se acumulou em nós, desde a infância. Enquanto o poeta traz à luz o
processo de investigação que constitui o desenvolvimento da obra, isto é,
a culpa de Édipo, também nos obriga a uma introspecção em que
descobrimos que aqueles impulsos infantis ainda existem em nós, embora
reprimidos (...). Como Édipo, vivemos na ignorância daqueles desejos
imorais que a Natureza nos impõe e,
69
ao descobri-los, queremos, como ele, afastar dos olhos as cenas de nossa
infância”.
O complexo de Édipo não é apenas o amor da criança pela mãe (menino)
e o ciúme e a inveja do pai, ou o amor pelo pai (menina) e o ciúme e a
inveja da mãe. Para ser amado pelo pai, o menino tenta ser como a mãe,
adotando atitudes que seriam femininas, enquanto a menina, para ser
amada pela mãe, adota atitudes que seriam masculinas. Há um complexo
intrincado de sentimentos, comportamentos, atitudes ambivalentes, a
criança procurando formas de se adaptar ao triângulo onde a escolha de
objeto (a mãe) das primeiras fases combina-se com as escolhas da fase
fálica. Essa ambivalência explica, por exemplo, a presença, natural, de
tendências homossexuais no menino e na menina. Para esta, a situação é
mais complicada porque a passagem de uma fase para outra implica a
capacidade de substituir o objeto do amor, passando da mãe para o pai.
A fase edipiana é nuclear, para Freud, porque o fato de ser superada na
puberdade não significa que não tenha deixado marcas definitivas, os
investimentos afetivos em objetos e as identificações que faremos na vida
adulta dependendo do modo como experimentamos o Édipo e a proibição
do incesto, na infância.
Assim, por exemplo, Freud considera o homossexualismo uma fixação
infantil, uma forma de não resolução do complexo de Édipo, a
identificação com a mãe (no caso dos meninos) sendo um substituto
imaginário para a impossibilidade de possuí-la (ser a mãe por não ter a
mãe) e um mecanismo para reparar o ódio que ela inspira por não
entregar-se à criança. A mãe é conservada como objeto de amor (pela
identificação) e de ódio (pela ocupação imaginária de seu lugar). Ao
mesmo tempo, o ódio pelo pai é substituído pela tentativa de seduzi-lo
(tornando-se a mãe para ele) e de impedi-lo de castrar o menino (que,
sendo feminino, não possui o pênis a ser cortado). No caso da menina, a
situação é mais complexa, pois odeia a mãe não só como rival, mas
porque imagina que ela possui pênis e só por maldade não deu um à filha.
Para conseguir o pai, a menina se identifica com ele (ser o pai por não ter
o pai), mas também com ele se identifica para expressar seu ódio à mãe,
que a privou do que poderia ter (pênis).
70
Independentemente das críticas que possam ser feitas à teoria freudiana
do homossexualismo, um ponto merece ser considerado: o
homossexualismo não resulta da ausência de repressão (”imoralidade”,
”maus costumes”), mas da violência da repressão sexual inconsciente.
Freud considera que do complexo de Édipo dependem a estruturação do
super-ego (sua atuação mais repressiva ou menos repressiva) e o que a
psicanálise chama de ideal do ego, isto é, a convergência da idealização
de si mesma feita pela criança, e das identificações com os pais, com seus
substitutos e com os ideais coletivos. (O psicanalista Reich, por exemplo,
tece considerações sobre a personalidade nazi-fascista a partir do ideal do
ego paterno engrandecido, figurado pelo Führer, Guia ou Pai Supremo).
A superação do complexo de Édipo depende não só do comportamento
dos pais e da família, mas também do sucesso da criança para suprimi-lo,
pois se for apenas recalcado ou reprimido, retornará mais tarde e de
forma patológica.
No menino, o complexo será vencido graças ao medo da castração pelo
pai, como punição do desejo incestuoso. Para conservar o pênis, o menino
aceita renunciar à mãe. Na menina, a solução será mais demorada porque
precisa aceitar e conseguir um substituto para o pai, o que só lhe será
possível na puberdade. (Observa-se que Freud protela a solução para a
menina porque a solução estaria na dependência do encontro de um
parceiro sexual que lhe dê o substituto do pênis: tal substituto são os
filhos. Dessa maneira, aqui, como no caso do homossexualismo, o
fundador da psicanálise põe água no moinho da moral vigente.)
É importante lembrarmos que Freud iniciou suas reflexões sobre o
complexo de Édipo imaginando tratar-se de uma situação concreta,
acontecida com cada criança em sua historia pessoal, vivida diretamente
por todos, dependente da relação com os pais e da família restrita
ocidental e moderna, como se esta fosse universal. Mais tarde, Freud
procurou elaborar uma outra hipótese para o Édipo e que não dependeria
diretamente da influência do casal parental sobre a criança, mas da
presença de uma interdição que não pode ser transgredida e que freia o
desejo na satisfação procurada.
Essa hipótese foi elaborada por ele numa obra intitulada Totem e Tabu,
um mito primitivo no qual os filhos, ciumentos
71
e invejosos, matam o pai para se apossar da mãe, mas, invadidos pela
culpa, pelo remorso e pelo medo, imortalizam e sacralizam o pai num
totem protetor (substituindo a perseguição pela proteção) e proíbem o
incesto, dele fazendo um tabu, isto é, proibição que não pode ser
desobedecida, sob pena de morte. Foi essa elaboração que levou o
psicanalista Lacan a dizer que o Édipo é a revelação da revelação entre
desejo e lei e também a distinguir um plano imaginário e um plano
simbólico no desejo.
O psicanalista Hélio Pellegrino considera haver um equívoco na
interpretação freudiana da tragédia sofocleana do rei Édipo, isto é, o fato
de Freud haver situado a tragédia na fase fálica ou genital. Essa
interpretação teria sido conseqüência do papel que a sexualidade genital
teve nas elaborações teóricas de Freud, cujo ponto de partida fora a
análise da histeria, isto é, de um tipo de neurose (na época, considerada
apenas feminina) ligada ao desejo incestuoso da filha pelo pai e que,
recalcado, retorna sob a forma de sintomas ou de doença.
Para Hélio Pellegrino, a tragédia de Édipo se situa antes da fase fálica e
determina os problemas para essa fase. O núcleo da tragédia é a rejeição
e o abandono de Édipo por Jocasta e a ordem para que seja morto. A
tragédia se situa nas primeiras relações de objeto. Na verdade, Édipo não
ama Jocasta, mas a odeia.
O abandono e a condenação à morte logo após o nascimento é o núcleo
traumático de Édipo, a fonte profunda e ameaçadora de sua angústia da
qual procura defender-se pelo impulso incestuoso, modo de negar o
abandono materno insuportável. A fixação edipiana ou incestuosa é um
sintoma defensivo de traumatismos ocorridos na primeira relação de
objeto: a fome incestuosa pretende disfarçar e negar as frustrações da
fase oral e os impulsos destrutivos ligados a tais frustrações.
Acompanhando a psicanalista Melanie Klein (que se dedicou à análise de
crianças), Pellegrino considera que a criança, já na fase oral, sente-se
estimulada para desejos genitais, colorindo a oralidade com a genitalidade
e, a seguir,
72
sua sexualidade genital será fortemente colorida pelos ressentimentos e
agressividades orais (o desejo de devorar e o medo de ser devorado). Isto
ocorre com as crianças que não são ou não se sentem amadas pela mãe.
Por outro lado, no esforço para preservar o objeto materno, a criança
transfere para o pai o ódio e a agressividade, os impulsos destrutivos. O
medo da perda definitiva da mãe colore o ódio oral com as cores do amor
genital, compensatório. Como, vitalmente, a criança não depende do pai
para sobreviver, se for mal amada investirá a imagem paterna com os
impulsos destrutivos, com a agressividade arcaica sem nada
compensatório para isso. Não há como não matar Laio.
Tendo sido criado e amado por Mérope e Polibo, Édipo atravessou
satisfatoriamente as fases de sua sexualidade na relação com a mãe boa
e o pai bom. O conflito incestuoso veio situar-se na relação com Jocasta e
Laio, os pais maus que o abandonaram e o odiaram até à morte. A
revelação de que Mérope e Polibo não são seus verdadeiros pais desperta
em Édipo o terror pelos objetos persecutórios que estavam interiorizados e
ocultos no inconsciente, isto é, Jocasta e Laio. Partindo para Delfos para
ouvir o oráculo que lhe diga quem ele é e quem são seus pais, ouve aquilo
que em seu inconsciente já ”sabia”, só que ouve como algo futuro,
embora no plano dos afetos já seja algo acontecido e passado. Isto é, o
desejo incestuoso e o parricídio foram os impulsos de Édipo recém-nascido
e abandonado para morrer.
O oráculo — isto é, a voz de seu inconsciente — ao profetizar as desgraças
futuras apenas revelou o que Édipo já trazia consigo e que iria destruí-lo.
Seu esforço para livrar-se da angústia o leva a construir uma defesa
inexpugnável — aquilo que a psicanálise chama de racionalização, isto é,
uma construção imaginária com aparência de coerência, lógica e
racionalidade para ocultar o pavor do que vem do inconsciente (veremos
depois como a racionalização é essencial para a repressão sexual, dando-
lhe aparência de algo lógico e coerente). No caso de Édipo, essa defesa
racionalizadora ou imaginária teria sido a seguinte: se eu puder destruir
fora de mim aqueles objetos que um dia tentaram me destruir e que
continuam tentando essa destruição no meu mundo interior, então, estou
salvo porque mato quem queria me matar. Imaginando salvar-se, irá
perder-se
73
Para ter o direito de nascer, crescer e viver, precisa matar e ao matar,
perde o direito à vida.
A morte de Laio na encruzilhada que levava a Tebas é toda ela um
episódio altamente simbolizado. A encruzilhada: a escolha do caminho.
Laio impedindo Édipo de trilhar o caminho: o pai assassino, objeto mau
que joga a criança fora da estrada da vida. O assassinato de um velho
com o golpe de bastão do jovem: o falo de Édipo destruindo o de Laio. O
filho oralmente insatisfeito precisa da relação genital com a mãe, o que só
pode conseguir através do parricídio.
A Esfinge é a imagem interiorizada de Jocasta: monstro destruidor (unhas
e dentes prontos para dilacerar, como nas fantasias agressivas orais em
que a criança fantasia devorar o seio mau). A frase inicial da Esfinge é
significativa: ”Decifra-me ou devoro-te”. Vencendo a Esfinge, Édipo
venceu a mãe persecutória da fase oral e teve aberto o caminho para o
incesto. Nada há de genital no casamento com Jocasta, mas realização,
sob forma genital, de um desejo oral e destrutivo, pois como rei e senhor,
Édipo domina e submete Jocasta.
Mas a paz de Édipo é precária. A peste, enviada pelas Fúrias (as Eríneas
Vingadoras, que na mitologia grega são protetoras da família e
particularmente das mulheres), é a vingança da mãe má. Afirmando-se na
grandeza humana, Édipo tentará enfrentar a verdade e desvendar o
enigma desse castigo, superando os terrores persecutórios, ainda que
durante essa busca tentasse também livrar-se da verdade, culpando e
acusando outros, colocando fora de si o que estava dentro de si.
Parricida e incestuoso, com o suicídio de Jocasta Édipo também se torna
matricida, destruindo a mãe como objeto total e sucumbindo na culpa. Ao
furar os olhos com as agulhas que prendiam as vestes da mãe (seus seios
protegidos) e ao mutilar-se pela destruição que causara, Édipo mergulha
nas trevas da morte, mas também, pela situação de dependência em que
fica, regride à situação infantil, ao ponto de onde nunca conseguira sair a
vida toda. Incapaz de andar por si só — primeiro por causa dos pés
amarrados e depois por causa da cegueira — Édipo completa o círculo de
seu destino, sua infância interminável.
74
O antropólogo Lévi-Strauss interessou-se pelo mito de ] Édipo mais do que
por sua transcrição na tragédia de Sófocles. Seu interesse, porém, não se
volta para a história ou conteúdo narrado e sim para a estrutura do mito,
isto é, o sistema de relações que o constituem.
Esse interesse se deve ao fato de que Lévi-Strauss considera que a
passagem da Natureza à Cultura ocorre quando é estabelecida a proibição
do incesto e, com ela, as regras do parentesco ou das alianças,
fundamentais na constituição de todas as sociedades arcaicas. Por esse
motivo, Lévi-Strauss procurou demonstrar que a estrutura (e não a história
narrada) do mito é universal, ou seja, todas as sociedades possuem mitos
para explicar sua origem e sua organização e em todos esses mitos
encontraremos sempre a mesma estrutura presente no mito de Édipo.
Essa estrutura apresenta as seguintes relações fundamentais: 1) as
narrativas começam e terminam com relações de parentesco ou
consangüíneas hipervalorizadas (no caso do mito de Édipo, a narrativa
começa com a história de Cádmo procurando sua irmã Europa, raptada
pelo deus Zeus, passa pelo casamento de Êdipo com Jocasta e termina
com a história de Antígona, filha de Êdipo, dando sepultura ao irmão,
Polinice; 2) as narrativas sempre contêm episódios em que as relações de
parentesco ou consangüíneas são superdesvalorizadas (no caso do mito
de Édipo, no início, os espartanos se matam entre si, depois Édipo mata o
pai Laio e, no final, o filho de Édipo, Etéocles, mata o irmão Polinice); 3) as
narrativas sempre contêm um episódio no qual um humano destrói um
monstro subterrâneo ou ctônico, vindo da Terra (no mito de Édipo, no
início da narrativa, Cádmo mata o dragão e, no meio, Édipo mata a
Esfinge), episódio que simboliza o conflito entre duas explicações sobre a
origem dos humanos: a da ofífem autóctone (os humanos brotam da
Terra) e a da negação da autoctonia (a morte dos monstros ctônicos); 4)
as narrativas sempre contêm uma referência a humanos com dificuldade
para andar (no mito de Édipo, o pai de Cádmo e Europa, chama-se
Lábdaco, que quer dizer coxo; Laio significa torto; e Édipo, pé inchado; em
outros mitos americanos e africanos aparecem Pé Frouxo, Manco, Pé
Torto), simbolizando a reafirmação da autoctonia e a dificuldade para
andar dos que nascem da Terra.
75
Lévi-Strauss examinou grande quantidade de mitos das mais diferentes
culturas (americanas, africanas, asiáticas) encontrando sempre a mesma
estrutura em histórias de conteúdos muito diferentes. Observou ainda que
a estrutura do mito é um trabalho para resolver duas contradições: de um
lado, a afirmação e negação da autoctonia e, de outro lado, a valorização
e desvalorização das relações de parentesco.
Caso os humanos não tenham brotado da Terra, de onde vieram?
Nascemos de um único ser, a Terra, ou de dois, um homem e uma
mulher? Por que temos dois genitores em lugar de um? O mesmo vem do
mesmo (da Terra nascem os ctônicos, dos humanos nascem os humanos)?
Ou o diferente vem do diferente (da Terra nascem os humanos; de um
homem e de uma mulher nasce um ser com um único sexo, a cada vez)?
Segundo Lévi-Strauss, o mito é reflexão anônima e coletiva sobre o
enigma da origem (a autoctonia aparece como monstruosa — dragão,
esfinge; ou como deformante — coxo, torto, inchado), sobre o enigma da
diferença sexual (como o mesmo gera o outro?) e sobre a necessidade de
regras regulando as relações entre os sexos (o sistema de parentesco),
cuja infração é delito mortal.
A lei do incesto torna-se válida apenas quando são reconhecidas a não-
autoctonia e a diferença sexual, portanto, quando se consuma a ruptura
com a Natureza, tornando possível o advento da Cultura.
As análises de Lévi-Strauss nos levam a ousar aqui uma pequena
extrapolação (cuja validade não sabemos demonstrar, se é que há alguma
validade).
Na Gênese bíblica, o mito da origem combina a idéia de origem divina com
a de origem autóctone, pois Deus, que criara todas as coisas apenas pela
Palavra (”Faça-se”), no caso dos humanos, modelou no barro o primeiro
homem (e, no momento da condenação lhe dirá: ”Tu és pó e ao pó
retornarás”). A deformidade aparece, então, visto haver um elemento de
autoctonia: a perda de uma costela. E também aparece um monstro
ctônico: a serpente que rasteja. A diferença sexual também é enfrentada:
olhando os animais, Deus decide dar ao homem uma companheira, porém
como até esse
76
momento estamos no reino da Natureza, lemos: ”Esta sim é osso de meus
ossos e carne da minha carne!”, portanto o mesmo vem do mesmo. ”Ela
será chamada mulher (em hebraico, mulher = ishshà) porque foi tirada do
homem (em hebraico, homem = ish)”, a diferença sexual sendo obtida por
uma extração do corpo feminino do interior do corpo masculino, sem
procriação. Também encontramos a supervalorização do parentesco:
”Sede fecundos, multiplicai-vos e cobri a terra”; e a superdesvalorização:
Caim mata Abel. E, por fim, aparece a lei do incesto quando Deus, olhando
a terra povoada, viu ”que estava toda pervertida porque toda carne tinha
uma conduta perversa” e enviou a purificação: o Dilúvio e a distribuição
dos seres na Arca por casais.
O advento da Cultura aparece em dois momentos de ruptura: na expulsão
do Paraíso e no Dilúvio.
A expulsão do Paraíso é a saída do estado natural de inocência, ocorrendo
no momento em que, tendo pecado, os humanos ”perceberam que
estavam nus e se envergonharam, cobrindo-se com folhas de figueira”,
isto é, percebem a diferença sexual e a diferença entre seus corpos e os
dos animais, donde o sentimento cultural da vergonha, pois, como
escreveu o filósofo Merleau-Ponty, os humanos não se cobrem porque
tenham medo das intempéries e do frio, mas porque sabem que estão
nus. A ruptura se consuma com a condenação divina: o homem deve
trabalhar a terra estéril para obter frutos e a mulher deve passar pela dor
no trabalho do parto. Duplo cultivo, cultura.
O Dilúvio decorre da queda dos humanos pelo retorno a uma
naturalização, impossível após o pecado original: poligamia, sodomia,
fratricídio e incesto. Mas a Arca é reposição da ordem cultural: não só é
produto de cálculos e de trabalho] mas em seu interior estarão casais de
animais (que posteriormente praticarão ”incesto”, pois são animais) e a
família de Noé, esposa, filhos e noras. E sua descendência será
abençoada, quando nos céus aparecer o arco da aliança.
77
Repressões nossas conhecidas

Apesar das contribuições da psicanálise e da antropologia acerca do


caráter inconsciente da repressão sexual mais intensa, costuma-se falar
de repressão sexual tendo-se como referência conjuntos de regras
proibidoras que são explícitas e conscientemente conhecidas por todos os
membros de uma sociedade. É delas que procuraremos falar agora.
De modo geral, entende-se por repressão sexual o sistema de normas,
regras, leis e valores explícitos que uma sociedade estabelece no tocante
a permissões e proibições nas práticas sexuais genitais (mesmo porque
um dos aspectos profundos da repressão está justamente em não admitir
a sexualidade infantil e não genital). Essas regras, normas, leis e valores
são definidos explicitamente pela religião, pela moral, pelo direito e, no
caso de nossa sociedade, pela ciência também.
Justificativas diferentes, no decorrer da história de uma sociedade,
decidem quanto à permissão e à proibição de práticas sexuais que possam
conservar ou contrariar as finalidades que tal sociedade atribui ao sexo.
Na maioria das vezes, as justificativas serão racionalizações (no sentido
exposto no capítulo ”Édipo-Rei”).
Assim, por exemplo, numa sociedade que considera o sexo apenas sob o
prisma da reprodução da espécie, ou como função biológica procriadora,
serão reprimidas todas as atividades sexuais em que o sexo genital for
praticado sem cumprir aquela função: masturbação ou onanismo,
homossexualismo
78
masculino e feminino (ou sodomia), sexo oral (felácio, cunilíngua), sexo
anal, coito interrompido, polução sem penetração (voyeurismo).
Também são reprimidas as práticas que possam perturbar as finalidades
atribuídas à procriação. É o caso, por exemplo, da transformação do
adultério em crime previsto em lei, nas sociedades onde a família,
juridicamente constituída, tem como função a conservação e transmissão
de um patrimônio ou a reprodução da força de trabalho.
Embora, de direito, o crime de adultério se refira tanto a homens quanto a
mulheres, a repressão social se dirige, de fato, para o adultério feminino.
Tanto assim que, no Brasil, os chamados ”crimes passionais em defesa da
honra”, isto é, o assassinato da esposa e do amante, mas sobretudo o da
esposa, não são passíveis de punição (ainda que os movimentos
feministas estejam tentando modificar essa situação). No caso da família
de classe dominante, o adultério é punido porque nele há risco de geração
de um bastardo que participará da partilha dos bens ou da gestão dos
capitais; no caso da família de classe explorada, o adultério é reprimido
porque há risco de gerar, para um outro, uma boca a mais a alimentar,
sem que o gerador seja responsabilizado pela criança.
O cuidado na repressão desse crime é tão grande que uma parte da
Medicina Legal, a Sexologia Forense, desenvolveu técnicas médico-
policiais muito minuciosas para a determinação da maternidade e da
paternidade reais, evitando, com tais procedimentos, que uma família
tenha que se responsabilizar pelo filho ilegítimo.
No entanto, os que matam ou espancam mulheres adúlteras, quando
indagados dos motivos, não oferecem os que acabamos de mencionar. Se
o assassinato é tido como ”crime rassional”, ato de alguém que ficou fora
de si e perdeu, momentaneamente, o uso da razão, é porque os acusados
assim encaram seus atos. Se analisarmos o que se passa, perceberemos
um caso típico de racionalização nessa ”perda da razão” momentânea. De
fato, os homens afirmam que sua honra foi manchada. O que isso quer
dizer?
Do lado dos homens da classe dominante, significa não só o surgimento
de uma suspeita quanto à sua virilidade (e numa sociedade procriativa,
como não valorizar a virilidade?), mas também o medo de perder postos
de comando, de
79
autoridade e poder. É isso a desonra. Perda de poder e de prestígio.
No caso dos homens das classes exploradas, além da questão da
virilidade, mais um elemento complicador aparece. Esses homens,
desprovidos de poder e de autoridade no espaço público (no trabalho e na
política), são assegurados de possuí-los no espaço privado, isto é, na casa
e sobre a família. A perda desse poder e dessa autoridade é sua desonra.
Perdem os substitutos compensatórios para sua falta de poder.
Quanto às mulheres, que também são capazes de matar por causa do
adultério (ou de se matar, se o cometerem, como a Ana Karenina, de
Tolstói), na imensa maioria dos casos tendem à acomodação, pois o
adultério masculino é considerado o exercício, infelizmente excessivo e
abusado, de autoridade e de uma sexualidade mais exigente do que a
feminina. Além disso, os homens não ficam grávidos. Também a situação
de dependência econômica e emocional em que são educadas as
mulheres facilita a acomodação, pois a ruptura matrimonial as deixa
despreparadas para uma nova vida (quantas mulheres de classe média,
na qual o problema do patrimônio é menor e o dos recursos para criar
uma criança também é menor, não adotam os filhos bastardos dos
maridos?).
Também são reprimidas a violação sexual de crianças por adultos, a curra
e o estupro. Se, por um lado, a proibição e punição se referem aos
aspectos de violência presentes nesses atos, por outro lado, no entanto, a
curra e o estupro estão referidos ao problema da gravidez indesejada e ao
aborto, que, por sua vez, não é aceito. Além disso, como veremos
posteriormente, nesses dois casos há uma série de investigações
(policiais) para averiguar se a mulher currada ou estuprada realmente não
consentiu na relação sexual, o que indica a existência de uma
desconfiança implícita acerca das mulheres, no tocante ao sexo.
Desconfiança que atesta a presença difusa de uma repressão sexual mais
sutil e quase invisível.
Sociedades que dão ao sexo a função genital procriadora e o vinculam à
estrutura da família restrita são forçadas a atitudes ambíguas. É o caso da
atitude face à prostituição, por exemplo.
Porque não tem função procriadora, a prostituição (como as relações
sexuais fora do casamento) é socialmente condenada.
80
Ao mesmo tempo, porém, é tolerada e até mesmo estimulada nas
sociedades que defendem a virgindade das meninas púberes solteiras, de
um lado, mas que, de outro lado, precisam resolver as frustrações sexuais
dos jovens solteiros e dos homens que se consideram mal casados ou que
foram educados para jamais confundirem suas honestas esposas com
amantes voluptuosas e desavergonhadas. Essas sociedades criam a
necessidade de mulheres que tenham por tarefa oferecer gozo sexual aos
homens jovens solteiros e aos homens casados insatisfeitos.
Inúmeros estudos têm mostrado como, na geografia das cidades
(anteriores às megalópolis contemporâneas), o bordel é tão indispensável
quanto a igreja, o cemitério, a cadeia e a escola, integrando-se à
paisagem, ainda que significativamente localizado na fronteira da cidade,
quase seu exterior. Nas grandes cidades contemporâneas, a localização
torna-se central, mas sob a forma de guetos e, portanto, de espaço
segregado, significativamente designado em São Paulo como ”boca do
lixo”.
Também há estudos sobre a prostituta como tipo social determinado: não
apenas sua origem social e sua articulação com um mercado muito
particular (o tráfico de mulheres), mas o vestuário, a postura, a
gesticulação, a linguagem, os códigos de conduta. Um conjunto de traços
que a distinguem das demais mulheres (até há pouco, de norte a sul do
Brasil, nas cidades do interior, a prostituta era reconhecida não só pelos
traços que acabamos de mencionar, mas também pela condução que
eram obrigadas a usar — a charrete).
Em suma, a sociedade elabora procedimentos de segregação visível e de
integração invisível, fazendo da prostituta peça fundamental da lógica
social. Ela é um caso de polícia do ponto de vista da segregação tanto
quanto do ponto de vista da integração, desde que nos lembremos que a
palavra polícia não significa apenas a vigilância e a força da ordem, mas
também (vinda da palavra grega, polis, a cidade legislada) significa
civilização (se a palavra de referência for latina, isto é, civitas, a cidade
legislada).
Aliás, não custa lembrar que também constitui prática civilizatória
(policial) aquela que resolve a desordem familiar desencadeada pela
presença de uma esposa muito ”erótica” — se o lugar da puta é o bordel,
o da esposa perturbadora é o
81
manicômio ou o hospital psiquiátrico, para onde é levada na qualidade de
”ninfomaníaca” ou de portadora de uma moléstia, conhecida como ”furor
uterino”, que, só pelo nome, parece ser mesmo terrível.
Um excelente exemplo do jogo segregação-integração e da relação
indissolúvel entre prostituição e família encontra-se no romance de Mário
de Andrade, Amar Verbo Intransitivo, onde a integração se dá por meio do
contrato de trabalho e a segregação, pelo prazo limitado de validade do
contrato e pela caracterização da prostituta como estrangeira (outra
língua, outros hábitos, outras terras).
O pai de família, pertencente à alta burguesia paulista dos anos 20,
resolve imitar amigos que solucionaram o espinhoso problema da iniciação
sexual de seus filhos adolescentes. Para evitar que o menino contraia
doenças venéreas freqüentando bordéis, ou se apaixone por uma
prostituta criando dificuldades para a família, contrata uma jovem alemã
como preceptora, mas com a função real de iniciar sexualmente o menino,
de modo higiênico, afetuoso, hábil, lento, gradual e seguro, sob o controle
da família.
Entre outros aspectos, o romance de Mário de Andrade possui três pontos
muito sugestivos. Em primeiro lugar, situa a prostituição como peça
fundamental para conservação da instituição familiar, fazendo da
prostituta parte da família literalmente, visto que mora sob o mesmo teto
que a família e atua sob os olhos vigilantes do pai e da mãe. Além disso,
para uma sociedade como a brasileira do período, muito agrária e próxima
da escravidão, onde as escravas tinham o papel dessa iniciação sexual
dos meninos, o romance acentua o caráter urbano, moderno e capitalista
de mercado (compra e venda de mão-de-obra) da nova prostituta. A
imigrante que substitui a escrava, como os camponeses e operários que
substituíram os escravos, racionalizando e modernizando a produção.
Em segundo lugar, o menino possui duas irmãs, uma delas quase de sua
idade, mas por quem ninguém mostra a menor preocupação, sua
sexualidade sendo tão reprimida pela família que é como se não existisse
ou não merecesse cuidado e atenção. Sexualidade à flor da pele, que o
romancista apresenta nos impulsos incestuosos da menina pelo irmão, nos
seus impulsos homossexuais pela preceptora, que tanto é sua rival quanto
objeto de seu amor na rivalidade com
82
o irmão; na agitação e ansiedade que a fazem amassar flores, rasgar
vestidos, matar insetos, arrebentar bonecas.
Em terceiro lugar, com fina ironia, o romancista inventa uma professora-
prostituta alemã e jovem, zombando do imaginário sexual brasileiro que
fantasia a mulher européia como experiente ”professora de sexo” que, por
vir de clima frio, não cai em envolvimentos sentimentais, coisa de gente
dos trópicos. Zomba, ainda, do modo como, no Brasil, foi interpretada a
tentativa de educação e liberação sexuais feita na Alemanha, naquela
década — o que era busca de nova atitude perante o sexo, aqui
transposta, deu em prostituição de luxo. Além disso, na qualidade de
mulher branca, a preceptora-prostituta será necessariamente superior,
limpa e cultivada. Em suma, as fantasias sexuais repressivas estão
carregadas de mitologias, preconceitos e racismo.
O título do livro fala por si mesmo: para a ”professora de sexo” alemã, o
verbo amar é intransitivo. Mas será transitivo na relação amorosa que
mantém por carta com o distante noivo alemão, com quem, graças à
prostituição que lhe dá recursos financeiros, poderá casar-se e constituir
uma família honesta. Assim, a prostituição fecha o círculo, reaparecendo
indissoluvelmente ligada à existência e conservação da família, tal como a
conhecemos.
Nos romances românticos, como Lucíola, de Alencar, a menina se prostitui
para salvar a família e, ao ser salva por um amor verdadeiro, renuncia a
ele, pois sente-se indigna de constituir nova família, fazendo, porém, que
esta se constitua através do casamento do amado com sua irmã (troca
que daria um prato cheio para um psicanalista).
Em A Dama das Camélias (e não é casual que sejam camélias) a atriz,
identificada na sociedade européia dos séculos precedentes com a
prostituta, tudo abandona pelo amor verdadeiro, mas pressionada pela
família do amado, vê-se forçada a repeli-lo, caindo doente. Quando o
apaixonado descobre a trama familiar, volta. Mas é tarde: Margarida,
tuberculosa, morre.
Nos três romances que mencionamos, os autores criticam a hipocrisia da
moral burguesa repressiva. Porém, no caso de Alencar e de Dumas, a
crítica permanece ambígua, presa ao quadro de referência dessa mesma
moral, pois Lucíola e Margarida, cujas qualidades são enaltecidas contra o
preconceito
83
e o moralismo burgueses, parecem valiosas porque puras, a prostituição
aparecendo como um funesto acidente em suas vidas. São castas e
poderiam ter sido esposas perfeitas, a renúncia de que se mostraram
capazes provando seu respeito pela família honesta, honrada e sem
mácula, que não puderam ter. Uma prostituta que fosse realmente
prostituta provavelmente valeria menos aos olhos dos dois autores.
Na exposição que se segue, tentaremos, de modo breve, indicar alguns
aspectos da repressão sexual elaborados na perspectiva religiosa, moral,
jurídica e científica e seu aproveitamento pelos meios de comunicação de
massa.
Embora muito sumária (com várias simplificações inevitáveis), nossa
exposição tentará, de um lado, articular repressão e racionalização (pois
cremos que sem esta última a eficácia daquela seria muito reduzida) e,
por outro lado, adotar uma perspectiva algo semelhante à de Foucault
quando considera que a repressão (seja qual for) não se reduz aos
aspectos proibitivos ou negadores (ao ”não faça, não diga, não pense, não
queira”), mas só pode operar graças a aspectos positivos. Estes não se
reduzem às permissões (aos ”sim”). São sobretudo procedimentos criados
por uma sociedade para realizar a repressão, estando tanto em idéias
quanto em instituições (como, por exemplo, o bordel e o manicômio, que
mencionamos acima).

Sexo e pecado

Costuma-se enfatizar os aspectos conservadores e reacionários da religião


(no caso, a cristã) face à sexualidade: bulas e encíclicas papais proibindo
os anticoncepcionais, condenando o aborto, o adultério, o
homossexualismo, o divórcio; seitas protestantes, como a pentecostal,
bradando que é chegado o fim do mundo porque os homens reconstruíram
Sodoma e Gomorra; a severa austeridade do vestuário protestante e o
obsessivo controle do corpo de crianças e adolescentes; a atribuição dos
males e doenças ao gosto pelo prazer carnal, na fala inflamada dos
pregadores.
84
No entanto, para que fatos como estes ocorram é preciso que uma certa
concepção da sexualidade informe essas idéias e atitudes. Convém,
portanto, examinarmos o que é o sexo numa religião como a cristã (aqui
nos deteremos apenas nos aspectos comuns às várias tendências cristãs;
privilegiaremos as posições da Igreja Católica, reservando as protestantes
para o item seguinte, quando relacionaremos sexo e trabalho, o trabalho
sendo central na ética protestante).
O relato bíblico sobre a origem humana possui duas versões diferentes no
livro da Gênese. Numa delas, Deus criou o mundo em seis dias,
descansando no sétimo. Os humanos foram criados no sexto dia, coroando
a obra da Criação. É dito que Deus criou os humanos ”à sua imagem e
semelhança”, abençoou-os e lhes disse: ”Sede fecundos, multiplicai-vos,
enchei a terra e submetei-a”. Nesse relato, nada sugere nem prepara o
pecado original, pois se este estiver relacionado com a descoberta do
sexo, o relato narra que Deus fez os humanos fecundos e, portanto,
abençoou a sexualidade; e se o pecado for o desejo de dominar o mundo,
também não aparece no relato, visto que Deus disse aos humanos que
submetessem a terra e tudo que nela existe, dando-lhes poder. Os que
redigiram esse relato, ao que consta, segundo os estudos bíblicos,
também redigiram a narrativa do Dilúvio e a iniciam dizendo que Deus
olhou a terra e a viu toda pervertida, sem que houvesse explicação para o
fato. Tanto assim que, desgostoso, prepara-se para destruir sua obra, só
não o fazendo integralmente em decorrência dos rogos de Noé.
Curiosamente, as perversidades e perversões vistas por Deus são todas
sexuais.
Em contrapartida, o segundo relato, feito no mesmo livro, mas, ao que
parece, escrito por autores que possuíam uma perspectiva messiânica,
isto é, de que o povo de Deus, ainda que perdendo o rumo certo, seria
salvo pelo Enviado Divino (Messias), está centrado no advento do pecado
original. É o relato mais conhecido: Deus faz o primeiro homem (Adão)
modelando-o no barro, faz a primeira mulher (Eva) retirando uma costela
do homem, oferece-lhes o jardim do Éden para que dele vivessem, dá-lhes
o direito de comer o fruto da árvore da vida (da imortalidade) e os proíbe
de comer o fruto da árvore do bem e do mal (prova da inocência
originária, pois inocente (não ciente) é aquele que desconhece o bem e o
mal, sendo naturalmente bom).
85
Nota abaixo da foto:
Curiosamente, a Vênus de Cranach é identificada à Eva por ele pintada
num quadro sobre a tentação no Paraíso - é a mesma figura feminina. No
entanto, Eva tem o rosto culpado, enquanto Vênus traz um sorriso
enigmaticamente sedutor e o véu transparente que mostra em lugar de
esconder seu sexo. Durante a Idade Média e a Renascença considera-se
que a mulher é, por essência, um ser lascivo, destinado à luxúria,
insaciável e que a beleza demoníaca de suas formas é a causa do
enfraquecimento masculino, de homens destinados à força da guerra. A
ironia de Cranach está em mostrar que a força feminina vem da
fragilidade de sua graça e leveza corporais.
Fim da nota.
86
Tanto assim, narra o autor bíblico, que estavam nus e não se
envergonhavam. Adão e Eva são sexuados, pois Adão afirma não haver
maior alegria e delícia do que homem e mulher se tornarem ”uma só
carne”. Afirmação que será transformada num dos mais belos trechos do
poema Paraíso Perdido, escrito pelo poeta inglês Milton.
A questão que os dois relatos bíblicos nos deixam é a seguinte: se Deus
fez os humanos sexuados, se o prazer sexual existe no Paraíso como uma
de suas delícias (talvez a maior), como entender a condenação do sexo
pelo cristianismo? Para tentar respondê-la, examinemos o pecado original.
O pecado original possui duas faces: é o deixar-se seduzir (tentação) pela
promessa de bens maiores do que os possuídos (como se houvesse
alguém mais potente do que Deus para distribuí-los) e é transgressão de
um interdito concernente ao conhecimento do bem e do mal. Seu primeiro
efeito: a descoberta da nudez e o sentimento da vergonha, de um lado, e
o medo do castigo, de outro. Seu segundo efeito: a perda do Paraíso.
Que é perder o Paraíso? Tornar-se mortal, separar-se de Deus e conhecer
a dor (lavrar a terra estéril, parir no sofrimento). O pecado original (tanto
no sentido de primeiro pecado quanto no de pecado da origem) é uma
queda: separarse de Deus, descobrir a morte e a dor, conhecer a carência
e a falta. É nessa constelação de sentidos que se desenvolverá a
meditação dos primeiros Padres da Igreja sobre o sexo.
A queda, o distanciar-se para sempre de Deus, é o sentimento de um
rebaixamento real e do qual a descoberta do sexo como vergonha e dor
futura é o momento privilegiado. Com ele, os humanos descobrem o que é
possuir corpo. Corporeidade significa carência (necessidade de outra coisa
para ”sobreviver), desejo (necessidade de outrem para viver), limite
(percepção de obstáculos) e mortalidade (pois nascer significa que não se
é eterno, é ter começo e fim). O pecado original é originário porque
descobre a essência dos humanos: somos seres finitos. A finitude é a
queda.
Separar-se de Deus é descobrir os efeitos de não possuir atributos divinos:
eternidade, infinitude, incorporeidade, auto-suficiência e plenitude. Ora,
pelo sexo, os humanos não somente reafirmam sem cessar que são
corpóreos e carentes,
87
mas também não cessam de reproduzir seres finitos. O sexo é o mal
porque é a perpetuação da finitude. Nele, está inscrita a morte como diria,
séculos mais tarde, Freud. Ou o poeta, respondendo à pergunta: o que é o
homem? com a resposta: ”cadáver adiado que procria”.
Os primeiros cristãos, julgando que a morte e ressurreição de Cristo eram
sinais de que logo viria o Juízo final e a imortalidade seria reconquistada,
graças à Redenção, consideraram desnecessárias as relações sexuais,
pois já não havia por que nem para que perpetuar a espécie humana,
inúmeras seitas proibindo o sexo. Essa idéia ressurgiu com a aproximação
do ano 1.000, o primeiro milênio; reapareceu na grande crise do Papado e
do Sacro Império Romano-Germano, no século XIII, quando muitos
esperavam a vinda do AntiCristo; e parece estar recomeçando em vários
lugares agora, com a aproximação do segundo milênio, o ano 2.000.
A vinculação do sexo com a morte e, conseqüentemente, do sexo com a
procriação, faz com que na religião cristã a sexualidade se restrinja à
função reprodutora. Embora o sexo esteja essencialmente atado ao
pecado, todas as atividades sexuais que não tenham finalidade
procriadora são consideradas ainda mais pecaminosas, colocadas sob a
categoria da concupiscência e da luxúria e como pecados mortais. Além
disso, como o sexo é função vital de um ser decaído, quanto menor a
necessidade sexual sentida, tanto menos decaído alguém se torna,
purificando-se cada vez mais. Donde toda uma pedagogia cristã que
incentiva e estimula a prática da continência (moderação) e da
abstinência (supressão) sexuais, graças a disciplinas corporais e
espirituais, de tal modo que a elevação espiritual traz como conseqüência
o abaixamento da intensidade do desejo e, conforme à mesma mecânica,
a elevação da intensidade do desejo sexual traz o abaixamento espiritual.
A identificação entre sexo e morte aparece já no Antigo Testamento, no
Livro de Jó (O homem, nascido de mulher, tem vida curta e cheia de
tormentos”) e reaparece em quase todos os textos dos Primeiros Padres.
São Gregório de Niza, Por exemplo, escreve: ”A procriação corporal é
muito mais um princípio de morte do que vida para os homens, pois a
corruptibilidade começa com a geração. Aqueles que com ela romperam,
fixaram para si mesmos, pela virgindade, um
88
limite para a morte”. Por isso, um corpo que não tenha trabalhado a
serviço da vida corruptível e não aceitou tornar-se instrumento de uma
sucessão mortal é dito, com razão, isento de corrupção.
A virgindade é interrupção do ciclo da morte e São Gregório escreve:
”quando a morte, depois de haver reinado desde Adão até Maria Virgem,
nela encontrando uma barreira intransponível, também dela se
aproximou, batendo num rochedo, quebrou-se. Assim também, em toda
alma que ultrapassa a vida carnal pela virgindade, o poder da morte se
quebra e se dissolve, por não saber onde enfiar o seu dardo”. Maria
Virgem, na relação com seu Filho e com a ressurreição, realiza e impõe
uma inversão no curso do fruto da morte. Donde a invocação: ”Ave Maria
cheia de graça... bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.”
Por isso, em inúmeras pinturas, a Virgem Maria aparece no alto de um
rochedo incólume ao mar tempestuoso. Nas ladainhas, é chamada Mãe
castíssima, Mãe inviolável, Mãe intacta, Virgem Poderosa. Porque é
designada como Imaculada e porque é levada ao céu como seu Filho.
Também é sugestiva a referência ao dardo. Nas representações da
antigüidade, o Amor (Eros, Cupido) é figurado tendo nas mãos um arco
assestado, pronto a disparar um dardo (carregando outros dardos às
costas). Na frase de São Gregório, há uma síntese entre morte e amor,
através da referência ao dardo. Também em inúmeras pinturas medievais,
o Amor é representado com uma venda nos olhos, disparando seus dardos
sem ver. Essa venda, como mostraram os estudos iconográficos do
estudioso da pintura, Panofsky (num livro intitulado Ensaios de
Iconografia), não significa apenas, como pensamos correntemente, que o
amor é cego. Nos códigos pictóricos medievais, a venda nos olhos é um
atributo que permite identificar uma figura precisa: a morte. Assim, a
pintura também exprime a síntese teológica entre sexo e morte.
Mas por que, sendo a virgindade vitória sobre a morte, os seres humanos
a rejeitam e continuam sucumbindo ao sexo? Por que a virgindade não é
espontaneamente desejada, mas obtida por férrea imposição ou disciplina
da vontade? Porque, como filhos de Adão e Eva, somos corpos sexuados e
almas enfraquecidas. A virgindade, quando não é uma graça ou
89
dom de Deus (como o foi Maria, cheia de graça), é uma conquista. Escreve
ainda São Gregório: ”O fogo, se nele não jogamos lenha, graveto ou palha,
nem qualquer matéria combustível, não é de natureza a conservar-se a si
mesmo. Assim, a potência da morte não se exercerá se o casamento não
lhe fornecer matéria”. Vem de muito longe a imagem do fogo como
representação do sexo, como incêndio que se propaga, se alimentado.
Donde a expressão: arder de desejo. No Antigo Testamento, no poema
Cântico dos Cânticos, diz o poeta: ”pois o amor é forte como a
morte!/Cruel como o abismo é a paixão;/suas chamas são chamas de
fogo/uma faísca de Javé.”
A idéia de propagação toma duas direções. Por um lado, o sexo se espalha
por todo o corpo e consome o espírito que a ele sucumbiu; por outro lado,
espalha-se para os demais seres que estiverem em contacto com aquele
que arde de desejo. A idéia de ”matéria combustível”, isto é, que o sexo
só prossegue se lhe for dado objeto de prazer, ainda significa (e é esse o
ponto) que poderá extinguir-se por si mesmo, sem alimento. Mas significa
algo ainda mais profundo: que o prazer obtido por seres finitos também é
finito, fugaz, passageiro, que a busca recomeça sem cessar tão logo
passado o efeito da satisfação, dela só restando uma lembrança que
estimula o recomeço, como se os mortais esperassem da multiplicação e
repetição dos prazeres dar-lhes perenidade. Mas nunca será possível o
pleno contentamento. Como nos versos de Camões: ”Amor é fogo que
arde sem se ver... É nunca contentar-se de contente”.
Uma das conseqüências dessa percepção, será a distinção feita pelo
cristianismo entre amor profano (amor carnal) e amor divino (amor
espiritual).
Numa das perspectivas cristãs, essa diferença aparece como oposição e
antagonismo: o amor profano, sempre insatisfeito, desvia e distrai a alma
do amor divino, único a dar contentamento pleno. Nas pinturas medievais,
essa oposição é representada por duas mulheres, em geral uma nua e
outra vestida, representando a Sensualidade e a Razão, ou por duas
mulheres vestidas trazendo vários símbolos que, pelos códigos Pictóricos
da época, permitem distinguir entre Felicidade breve e Felicidade Eterna.
O amor profano tem ao fundo uma cidade fortificada e lebres ou coelhos
(sexo animal e fertilidade),
90
enquanto o amor divino tem ao fundo uma paisagem campestre, uma
igreja e um rebanho de cordeiros (Jesus, cordeiro de Deus).
Numa outra perspectiva cristã, mais tardia (da época do Renascimento), a
diferença se transforma em hierarquia: o amor profano não é inteiramente
rejeitado, mas é hierarquicamente menos perfeito do que o amor divino.
No quadro do pintor Ticiano, Amor Divino e Amor Profano, o estudioso
Panofsky interpreta a presença de um mesmo princípio (o amor) em dois
modos de existência e dois níveis de perfeição. Enfim, noutra perspectiva
cristã, a relação entre os dois amores poderá ser a da representação, isto
é, há amores profanos que são uma expressão de amor divino: é o caso,
por exemplo, do amor pela família. Essa transformação será perceptível
quando, nas casas, ao lado das imagens do Sagrado Coração de Jesus e de
Maria, a da Sagrada Família também estiver pendurada na parede. Mas
para chegar a essa perspectiva, um longo e complicado percurso terá de
ser feito: nele, o casamento, abominado por Gregório, Tertuliano, Graciano
e outros Padres da Igreja, irá transformar-se em sacramento.
Na linha de Gregório de Niza, Tertuliano e Graciano, o pecado original,
inscrevendo a morte no corpo humano, só poderá encontrar duas
soluções: ou ser alimentado pelas relações carnais, tornando-se morte
interminável, ou ser destruído pela virgindade, fruto da disciplina.
Compreendemos, então, o sentido da expressão cristã: mortificação da
carne. Matar a morte. E por que, em inúmeras pinturas, a Virgem Maria
aparece pisoteando a cabeça da serpente (cabeça em forma de dardo),
ascendendo ao céu, acima das labaredas (e lembrando que na Gênese, no
momento da maldição divina, Deus declara a inimizade mortal que reinará
entre a raça da Mulher e a da serpente). Também compreendemos por
que, em muitas pinturas, os seres situados mais próximos dos tronos de
Jesus e de Maria, logo abaixo dos seres celestes, são homens e mulheres
que guardaram a virgindade.
Que terá havido para que, da condenação do casamento) o cristianismo
passasse ao pólo oposto, transformando-o em sacramento? Essa
transformação será muito lenta e só se completará no século XIII. Seus
passos iniciais foram dados
91
por São Paulo e Santo Agostinho que definiram o matrimônio como
remédio.
São Paulo classifica os pecados em cinco categorias: contra Deus, contra a
vida humana, contra o corpo, contra as coisas e os bens e por palavras. (É
interessante observar que coloca os pecados contra o corpo logo após o
homicídio e antes do crime contra a propriedade, localização que fará um
longo percurso até que a ideologia burguesa venha a definir o próprio
corpo como propriedade privada, contra a qual se cometem crimes de
homicídio e sexuais, considerados agora como crimes porque violação de
propriedade).
Considerado por São Paulo, ”templo do Espírito Santo” (na ladainha de
Nossa Senhora, Maria é invocada como torre de marfim e casa de ouro) e
também como vaso de argila modelado pelo oleiro divino (Nossa Senhora
também é invocada como vaso honorífico, vaso de devoção, vaso
espiritual), o corpo não pode ser tratado de qualquer maneira, pois é
recinto sagrado. Contra ele, erguem-se os pecados da carne, em número
de quatro: fornicação (isto é, sujeira, prostituição), adultério, masturbação
e homossexualismo. Essa classificação esclarece por que, na
impossibilidade da virgindade, somente o casamento servirá como
remédio.
Na Epístola aos Coríntios, escreve: ”Penso que é bom para o homem que
não toque em mulher. Entretanto, para evitar a impudicícia, que cada um
tenha sua mulher e cada mulher tenha seu marido. Que o marido dê à sua
mulher o que lhe deve e que a mulher aja da mesma maneira com relação
ao seu marido”.
O Apóstolo introduz uma inovação sem precedentes, face à antigüidade: a
igualdade sexual. Embora diga que a mulher deve obediência ao marido,
no tocante ao sexo a igualdade é a regra. Isto se deve a dois motivos. Em
primeiro lugar, sendo a mulher a culpada do pecado original, é mais
sensual e mais sexuada do que o homem, mais fraca e sujeita a sucumbir
a tentações, por isso, o casamento é para ela um freio e uma segurança.
Em segundo lugar, indo o homem à procura de mulher na fornicação e no
adultério, melhor será que não exista mulher disponível para isso,
casando-as todas. O homem tem o direito de obrigar sua mulher ao sexo,
mas ela tem também o mesmo direito, de sorte que o casamento
transforma o sexo em dever recíproco (idéia que no protestantismo
92
subjacente à sexologia dos anglo-saxões contemporâneos aparece como
”dever de orgasmo” e ”democracia sexual”).
Escreveu São Jerônimo: ”Atacar o casamento é abrir as portas para o
deboche das concubinas, dos incestuosos, dos poluídos e dos homens que
se deitam com outros”. Essa idéia do casamento como remédio aparece
na gravura medieval onde Amor (Eros, Cupido), de venda nos olhos, está
amarrado numa árvore cujos galhos representam os remédios contra as
paixões sensuais: Casamento, Oração, Abstinência, Trabalho; seu arco e
os dardos jazem no chão e à volta deles estão os males que acarreta:
Miséria, Volúpia, Derrisão. Ao longe, vê-se o Diabo, caracterizado como
Morte Eterna, fugindo.
Santo Agostinho, por sua vez, irá combinar duas tradições: a de Tertuliano
e a de São Paulo. Assim, como o primeiro, prefere evitar o casamento,
escrevendo: ”Quanto ao matrimônio, apesar de o permitirdes, ensinastes-
me que havia outro estado melhor. E porque mo concedestes, abracei-o
antes de ser nomeado dispensador de vosso sacramento”. Mas, como o
segundo, partindo do primeiro relato bíblico (”Sede fecundos, multiplicai-
vos”), toma o casamento como lei divina e remédio. Dessa maneira, nele
encontramos o núcleo do ideário cristão que conserva o par
virgindade/castidade privilegiado, como atesta o celibato dos padres
católicos e das freiras, e o casamento-remédio, que levará, durante a
Idade Média, ao elogio do casamento casto (isto é, sem sexo após o
cumprimento do dever da procriação, dever tanto mais sagrado se
cumprido sem prazer, muitos dos teólogos considerando o prazer no
casamento adultério e, portanto, pecado). Esse elogio iria produzir, no
correr dos séculos, a imagem da mulher ideal como mãe assexuada e
honesta esposa frígida. Vitória contra Eva.
E é em Santo Agostinho que encontramos uma das mais belas descrições
da passagem do amor profano ao amor divino como experiência mística: a
experiência de Mônica, sua mãe, capaz de ”entrar no gozo do Senhor” e
desvendar que ”as delícias dos sentimentos do corpo (...) não são dignas
de comparar-se à felicidade daquela vida, nem merecem que delas se faça
menção”.
Resta saber como a teologia sexual transformou o remédio em
sacramento, o menor dos males em bênção divina. E
93
como surgiu o casamento monogâmico indissolúvel que hoje conhecemos
e que tanta gente estaria pronta a jurar que é eterno, encontrando no
Velho e no Novo Testamento ”provas concludentes” dessa curiosa
eternidade. O Catecismo da Doutrina Cristã afirma que foi instituído ”por
Deus no Paraíso terrestre e no Novo Testamento foi elevado por Jesus
Cristo à dignidade de sacramento”, estranha maneira de ler a Bíblia e de
ignorar a realidade histórica...
A Igreja Católica Romana só muito tardiamente conseguiu hegemonia
sobre a Europa e isto às custas de lutas, conflitos, guerras e de muitas
concessões iniciais (que deixaria de fazer depois de tomado o poder),
entre as quais a do casamento tal como realizado pela aristocracia.
Apesar de cristianizada (batizada) e temente a Deus, fazendo dons à
instituição eclesiástica para garantir a vida eterna, pois o verdadeiro Reino
não é deste mundo, a aristocracia européia possuía suas próprias idéias e
práticas relativas ao casamento, muitas delas vindas de costumes antigos
da Roma pagã e dos grupos ”bárbaros” que invadiram o império romano.
Também os camponeses possuíam suas idéias e práticas, como, por
exemplo, a relação sexual pré-conjugal para verificar a fertilidade da
futura esposa (se estéril, não havia casamento), coisa necessária numa
época de alta taxa de mortalidade e de grande necessidade de braços
para trabalhar na terra e fornecer homens para os exércitos nobres.
O casamento aristocrático era uma cerimônia antecedida, de vários anos,
por um conjunto de ritos (a promessa, o pacto conjugal, o dote), até
culminar nas núpcias. Esta era decisão e cerimônia domésticas ou de
caráter privado: as famílias faziam as escolhas e a cerimônia se realizava
na casa do futuro casal, ou nas dependências do Castelo paterno se ali
fosse habitar o novo casal. O pai do noivo os abençoava diante de todos, o
leito conjugal também recebia a bênção paterna e iniciavam-se dias de
festejos. Os escribas da casa registravam o casamento para o controle da
genealogia.
O casamento não era universal nem indissolúvel. Não era universal porque
nem todas as pessoas precisavam ou deviam casar-se (prostitutas serviam
à satisfação masculina e as meninas se contentavam com raptos curtos),
não sendo desejável que todos se casassem porque não interessava a
existência de muitos herdeiros para o patrimônio e também porque era
94
necessário manter uma reserva de moços e moças por causa da alta taxa
de mortalidade que poderia criar a necessidade de substituir um dos
cônjuges morto por seu irmão ou por sua irmã. Não era indissolúvel: a
aliança poderia ser rompida em caso de esterilidade, de descoberta de
incesto, ou por uma guerra entre os antigos aliados. Quando a Igreja
começa a impor seu poderio, uma das primeiras lutas será contra a
bigamia, isto é, contra a ruptura de um casamento e a realização de outro
mais conveniente. A monogamia será transformada em regra divina e a
bigamia punida com a excomunhão
Enquanto aristocracia e os camponeses prosseguiam em suas práticas, a
Igreja ia lentamente elaborando sua teoria do casamento, um modelo que
seria imposto de forma completa apenas no século XIII, sua implantação
parcial fazendo-se ao longo dos séculos.
O primeiro passo está sintetizado num texto do século IX: ”O laço do
matrimônio legítimo existe quando estabelecido entre pessoas livres e
iguais e quando une em núpcias públicas, para uma fusão honesta dos
sexos com o consentimento paterno, um homem e uma mulher livre,
legitimament dotada”.
São três as inovações: 1) exigência, vinda desde São Paulo, que homem e
mulher consintam no ato (ponto fundamental para a intervenção da Igreja
que poderia impedir uma aliança entre famílias, se julgada inconveniente
para os interesses eclesiásticos, instruindo o noivo ou a noiva para o não
consentimento); 2) exigência de que as núpcias sejam públicas e não mais
cerimônia privada oficiada pelo pai do noivo (inicialmente, a cerimônia
será feita à porta das igrejas oficiada pelo pai e pelo padre; depois será no
interior da igreja e oficiada somente pelo padre, os pais sendo apenas
testemunhas); 3) exigência de que o sexo seja honesto, isto é, sen prazer
e sem luxúria.
Dessas inovações, a segunda é a mais importante porquí transfere a
cerimônia da casa para a igreja, garantindo o controle eclesiástico sobre a
sociedade. A Igreja batiza, casa e dá a extrema-unção; registra
nascimentos, casamentos e óbitos.
A fase final, no século XIII, acrescenta que o casamento, sendo um
sacramento, é indissolúvel. Isto interessa ao Papado porque lhe permite
exercer o controle das alianças na nobreza
95
e sobretudo na realeza, quando nos lembramos que a idade considerada
”idade da razão” para que o homem e a mulher dessem o livre
consentimento (sem o qual não haveria matrimônio) era a idade de 7
anos, os padres preceptores e conselheiros instruindo a criança para
consentir ou não. Ao mesmo tempo, a indissolubilidade é posta como
condição da estabilidade matrimonial e da comunidade, esta ficando
também sob controle da Igreja. Esse ponto foi facilitado porque,
sabiamente, a Igreja impôs o modelo primeiro nas classes populares,
tornou-o fato consumado e necessário na mentalidade dos fiéis, o que lhe
garantia o sucesso ao ameaçar nobreza e realeza com excomunhão caso o
sacramento não fosse respeitado.
Sem dúvida, essa transformação também interessava à classe dominante.
Na altura dos séculos XI e XII, há duas etapas no matrimônio: a do
esponsalício, e a da núpcia, realizada muito tempo depois da primeira.
Nesta, a noiva, que durante a fase inicial (a da promessa) entregava ao
noivo um dote, agora recebe deste um outro e muito mais importante: ao
tornar-se esposa, nas núpcias, será senhora de uma parte do patrimônio,
para dele fazer o que desejar e, no caso de morte do marido, uma parte
dos bens do morto será distribuída entre os filhos (privilegiado o
primogênito) e a outra ficará para a viúva. Resultado: os maridos temem
continuamente o adultério (a esposa usando o dote esponsalício com o
amante) e o assassinato (a esposa cometendo homicídio para ficar com o
restante dos bens). Assim, o controle eclesiástico do matrimônio favorece
à nobreza e à realeza, facilitando sua implantação.
A implantação do modelo eclesiástico é acompanhada, evidentemente, de
uma teologia sexual que convém mencionarmos.
São Jerônimo, como São Gregório e outros Padres da Igreja, ainda que
divergindo sobre a aceitação ou não do casamento, tocam sempre num
problema: o do incesto. Assim, as tragédias gregas são condenadas
porque se dedicam ao incesto e suas conseqüências (parricídio, matricídio,
fratricídio). Um dos problemas a enfrentar é justamente o da primeira
família bíblica, na qual teria sido impossível evitar o incesto e suas
conseqüências, e é assim que muitos interpretam a passagem em que
Deus viu a terra pervertida pela
96
carne, a perversão significando, aqui, o mesmo que no pensamento greco-
romano, isto é, como perda da conformidade com a natureza das coisas,
inversão do curso natural, desordem e caos. É nesse contexto que, para
muitos, se reforça a condenação do casamento, enquanto para outros se
reforça a idéia de remédio.
Santo Agostinho retoma o casamento pelo prisma do freio e do remédio,
mas sua meditação é muito mais completa e ampla porque inserida numa
meditação sobre a transmissão do pecado pelos filhos de Adão e Eva e
pela busca atormentada da inocência, sob o peso da consciência da culpa.
Em seu livro, Confissões, narra sua vida pecaminosa, até à conversão,
graças à mãe, Mônica. No centro da narrativa que é um exame profundo
da interioridade, coloca a memória (que permite o que, mais tarde, seria
chamado de exame de consciência), o problema do conhecimento e a luta
contra o prazer, luta inevitável porque, escreve ele, ”ninguém deve pôr
seguro nesta vida, porque toda ela se chama tentação” e o ”o prazer é
companheiro perigoso”.
Que pecados mais o atormentavam? A concupiscência da carne (a
luxúria), a dos olhos e dos perfumes, a gula e ambição do mundo (o
poder). Mas, arrastado pela luxúria também era arrastado por pecado de
igual gravidade: a curiosidade, o desejo de tudo saber, de conhecer pela
razão os mistérios da fé. Insiste na palavra tentação porque sua teoria do
homem dá lugar central à liberdade da vontade, conceito de ambigüidade
insuperável (como ficará mais patente no protestantismo), pois da
vontade depende nossa perdição (sucumbi voluntariamente à tentação, ao
que vem de fora e de dentro de nós pela carne), mas dela não depende
nossa salvação: a salvação é um dom misterioso e indecifrável de Deus,
uma graça imerecida. Várias vezes, confessa a felicidade que seria poder
tornar-se eunuco (castrado), pois a virtude mais desejada é a continência
(que freia a luxúria e a curiosidade), sempre impedida pela tentação.
Com extrema agudeza, Santo Agostinho percebe a relação entre desejo de
saber e sexo (pela via do prazer), donde a necessidade de conter a
curiosidade, tanto dos olhos como do intelecto, preparando, com isso, a
ação repressiva que o cristianismo iria exercer sobre o desejo de
conhecimento (o qual,
97
contraditória e necessariamente, cresceria em igual proporção à sua
repressão).
Também com extrema agudeza fala da criança: ”A debilidade dos
membros infantis é inocente, mas não a alma das crianças”, preparando,
sobretudo com o advento do protestantismo (que nele se inspirou
profundamente), a vigilância que seria exercida sobre as crianças a partir
do momento em que a sociedade européia descobrir a existência da
infância como algo específico. Nesse ponto, o cristianismo negou a fala de
Jesus: ”deixai vir a mim as criancinhas, que delas é o reino dos céus”,
preferindo conservar a afirmação do Livro de Jó ”como pode o homem ser
puro, ou inocente o nascido de mulher? Quem fará o puro sair do impuro?
Ninguém”. Tanto assim que, nas Confissões, lemos: ”Tudo quanto se
oculta nas trevas de meu esquecimento é para mim igual ao tempo em
que vivi no seio materno. E se “fui concebido em iniqüidade” e se “em
pecado me alimentou, no ventre, minha mãe’, onde e quando esteve
inocente este vosso servo?”. A reação furiosa dos burgueses europeus
contra Freud é, afinal, um mistério (e certamente nunca haviam lido a
passagem das Confissões onde Santo Agostinho descreve o entusiasmo de
seu pai ao ver o corpo adolescente do filho e os temores de sua mãe).
Ainda que nada possa apagar a marca do pecado original, é preciso pelo
menos torná-la mais enevoada. Para quem conheceu os pecados da carne
e as tentações, o casamento é um remédio. Quem não tem força para
obter a abstinência ou conseguir a continência, pelo menos procure ”a
praia do matrimônio — já que de outro modo não é possível a
tranqüilidade — e encontre o fim natural na geração de filhos, como
prescreve vossa lei, ó Senhor, que criais a descendência de nossa raça
mortal e podei suavizar, com mão bondosa, os espinhos desconhecidos no
Paraíso” (e na canção: ”e mesmo o Padre Eterno, que nunca foi lá,
olhando aquele inferno...”).
Mas, para o sucesso repressivo do modelo mais uma exigência é colocada,
além da sacramentação do casamento: conseguir o controle sobre as
mulheres.
Sendo elas o lado da luxúria e do pecado, no casal, a Parte mais fraca, os
teólogos, recorrendo à Epístola aos Efésos de São Paulo, a Santo Ambrósio
e a Santo Agostinho, estabelecem que:
1) não deve haver prazer na relação conjugal
98
(senão, estamos de volta à ”matéria combustível”), e, para tanto, o
marido deve limitar-se à penetração na esposa, sem tocá-la em qualquer
outra parte, o mesmo devendo fazer a mulher;
2) o marido deve domar e submeter a esposa que a ele deve total
obediência, pois ”a ordem natural é que a mulher sirva ao homem”; como
conseqüência, no leito conjugal, a esposa deve ser passiva, jamais ficando
em posições ”contrárias à Natureza”, isto é, sobre o homem (essa
exigência era, evidentemente, racionalizada num segundo grau: a posição
sob o marido garantia fertilidade, filhos normais e numerosos, enquanto a
esterilidade e a deformidade dos filhos eram provas de coito contrário à
Natureza e a Deus;
3) como a Gênese afirma que foi ao criar o homem, e não a mulher, que o
Senhor decidiu fazê-lo à sua imagem e semelhança, a mulher deve estar
sempre coberta, fora e no leito conjugal, porque seu corpo não manifesta
nem a imagem nem a glória de Deus;
4) se uma mulher for concubina de um homem, mas ele a tratar como
esposa, automaticamente deverão contrair matrimônio ou considerar-se
casados (solução para o problema das relações sexuais pré-nupciais e
para impedir bigamia); 5) se um dos cônjuges for herético, incestuoso ou
adúltero, o divórcio dos corpos pode ser concedido, mas não o das almas,
em virtude do sacramento, não podendo haver novo casamento (modo de
impedir que o esponsalício se transferisse para outro homem); 6) deve ou
não a mulher ter prazer para procriar? Esse último parágrafo nunca
conseguiu ser decidido. Os partidários do médico Galeno, considerando
que a procriação só ocorre se houver lançamento de sêmen pelos dois
cônjuges e que esse lançamento exige prazer, afirmam que a mulher
necessita do prazer, mas este deve ser o mínimo necessário e o mais
breve possível. Os partidários do filósofo Aristóteles, considerando que a
mulher contribui para a procriação com o Cangue menstrual, acumulado
no útero, no momento em que recebe o esperma, declaravam inútil o
prazer feminino para a procriação e, portanto, condenável. Porém,
curiosamente, num ponto todos concordavam: se o casamento é remédio
e se a mulher é a parte luxuriosa fraca, caso tenha sido excitada pelo
marido até que este consiga ejacular, é necessário que ela tenha prazer
para evitar que se masturbe ou que procure outro homem. Neste caso, o
marido deve prolongar-se nela ate que perceba seu prazer, ou então, após
o coito, masturbá-la
99
Como observou um historiador, no leito conjugal os cônjuges nunca estão
sozinhos: partilham a cama com a sombra da Igreja.
O interessante nessa longa discussão que atravessou séculos é que nela a
repressão da sexualidade se realiza através do controle minucioso do ato
sexual e particularmente do corpo feminino. Nenhuma das colocações que
mencionamos acima foi feita sem longa exposição de motivos e as
explicações anatômicas, fisiológicas e teológicas caminhavam juntas,
acrescidas de justificativas jurídicas.
Com relação às mulheres, podemos observar dois aspectos. O dever
conjugal (transformado em dívida — debitum —, isto é, num termo do
vocabulário jurídico e não mais religioso) não significava que a igualdade,
afirmada por São Paulo, fosse igualdade na relação sexual: a mulher,
como o homem, possuía um papel sexual (e o conservou até hoje, com
raras exceções) e esse papel era o passivo. Em segundo lugar, um dos
resultados curiosos do controle ou da repressão foi a exigência de que as
mulheres da nobreza e da realeza fossem alfabetizadas. Reconhecimento
de uma inteligência feminina? Reconhecimento dos direitos femininos de
participação cultural? De modo algum. As mulheres, iletradas, possuíam
uma cultura própria ou uma ”cultura feminina”. Ora, eram elas
encarregadas da educação dos filhos (o menino, na puberdade, seria
educado pelo pai, mas as meninas continuavam a cargo das mulheres).
Tornava-se essencial que transmitissem aos filhos não suas próprias
idéias, mas as do universo masculino letrado que, por ser letrado, era
eclesiástico. Assim, a leitura continuava a obra do confessor e apagava,
pouco a pouco, o risco de uma hegemonia feminina, através da educação.
Somente com a consolidação das revoluções burguesas, com aquilo que
alguns designam como o ”desencantamento do mundo” (isto é, a perda do
poderio religioso católico-romano sobre a sociedade) e com o advento do
Estado moderno, o casamento passou a ser cerimônia civil, sob controle
do Estado. Isto não significa, porém, que a religião tenha perdido o
controle sobre as almas dos cônjuges. Afinal, como diz o Catecismo da
Doutrina Cristã (na versão brasileira de 1921), ”o sacramento do
matrimônio produz o aumento da graça santificante e dá graça especial
para se cumprirem fielmente todos os deveres matrimoniais”.
100
No prefácio ao Catecismo, pode-se ler: ”Oferecemos esse livrinho aos
nossos filhos para concorrer eficazmente para dilatar o conhecimento e
amor de nosso senhor Jesus Cristo e o respeito e obediência à sua Igreja,
reformar os costumes (...). Oferecemos especialmente esse livrinho às
pessoas constituídas em elevadas posições sociais, para que lhes seja de
luz nas dificuldades de suas graves obrigações; porque se seguirem seus
ditames, além de concorrerem para o bem social, merecerão uma coroa
imortal, depois dos serviços prestados nesta vida”.
Como se vê, será preciso esperar o Concilio Vaticano II, a Ideologia da
Libertação e os encontros da Igreja Latina-americana em Medelin e Puebla
para que uma ”Coroa imortal” também seja prometida aos pobres e
oprimidos.
Muitos dos leitores, sobretudo os que conhecem as resoluções do Concilio
Vaticano II, certamente dirão que o que aqui expusemos está superado
pela Igreja.
De fato, a partir do século XX muda a posição da Igreja porque muda o
foco da discussão. Até nosso século, a questão do sexo e do casamento
sempre foi tratada pela Igreja a partir de duas oposições fundamentais:
prazer/dever, prazer/procriação. O amor sempre esteve ausente. Agora é
ele o centro da formulação. Até o século XX, a Igreja tratou o amor sob
dois ângulos: como amor profano a ser afastado, e como amor divino; o
amor sempre foi emasculado ou transformado em caridade. Agora, o amor
profano recupera dignidade.
Essa mudança de foco possui causas precisas.
Em primeiro lugar, para conservar o controle socialsexual, a Igreja não
poderia ignorar as mudanças da sociedade contemporânea, o advento da
psicanálise e a consolidação de uma cultura leiga. Em certo sentido, aliás,
a Igreja foi responsável pelo interesse dessa cultura pelo amor (a começar
pelo chamado amor cortês, desenvolvido nos séculos precedentes, no qual
o jovem escolhe a amada para servi-la, sem dar contas à família e à
religião), pois, ao colocá-lo fora do casamento que ela controlava, deixou-o
nas mãos dos leigos, que dele trataram de cuidar.
Em segundo lugar, a idéia atual do casamento como ”comunidade de vida
e de destino”, na qual o amor é o centro da vida conjugal pensada a partir
das pessoas envolvidas, de modo personalizado ou psicológico (e não
apenas teológico),
101
não é uma revelação. Assim como a Igreja combateu a ”heresia” chamada
gnosticismo (que condenava absolutamente o sexo) e a ”heresia”
chamada antinomista (que sacralizava todas as experiências sexuais,
desde que desvinculadas da procriação), também deixou na sombra e no
silêncio, posições como as de Pedro Lombardo (no século XII) ou algumas
das idéias de São Tomás de Aquino (no século XIII) para os quais o amor
profano, amor natural, é um auxílio para o amor divino, e uma relação
pessoal entre seres humanos ligados pela amizade, pelo afeto e pelo
desejo. A tese de São Tomás (contrariando a de Santo Agostinho),
segundo a qual a Natureza auxilia a Graça, sustenta várias de suas idéias
sobre o amor, mas que ficaram silenciadas sob suas teses ”ortodoxas”
sobre o casamento.
Que essas idéias, silenciadas pela Igreja, se desenvolveram na sociedade
cristã, duas pequenas provas o atestam: o quadro de Ticiano — Amor
Profano e Amor Divino —, que já mencionamos, e um dos mais belos
trechos do Inferno, na Divina Comédia, do poeta florentino Dante: o
encontro do poeta, no segundo círculo do inferno, com o casal de amantes
Francesca e Paolo de Rimini. Houve adultério (Francesca era casada com o
irmão de Paolo) e por isso há castigo infernal (os corpos, arrebatados pelo
vento, tentam desesperadamente unir-se sem o conseguir), mas neste
inferno, Dante coloca na boca de Francesca as mais ternas, belas, doces
palavras de amor, e a piedade do poeta (em vez do horror pela pecadora)
o faz concluir o poema com o verso: ”Enquanto a história triste um tinha
dito/ Tanto carpia o outro, que eu, absorto/ Em piedade, senti letal
conflito/ E tombei, como tomba corpo morto”. Letal conflito: por que Paolo
e Francesca hão de merecer as penas do inferno?
Em terceiro lugar, o papel dado ao amor, forma de valorizar enormemente
a família (a parede adornada pela Sagrada Família), tem um significado
político: é a resposta da Igreja contra os movimentos socialistas,
sobretudo os do final do século XIX e início do século XX, que pretendiam
desfazer todas as instituições repressivas da sociedade burguesa, aí
compreendida a família na forma do casamento monogâmico indissolúvel.
102
Não é apenas através do sacramento do matrimônio que a religião cristã
reprime a sexualidade e a controla. Um outro sacramento está a serviço
do mesmo fim: o da confissão.
Neste, a sexualidade será catalogada, classificada, codificada de modo
minucioso e exaustivo, deixando perdida na noite dos tempos a
simplicidade da lista dos quatro pecados de São Paulo.
Aliás, é possível notar que, embora a lista dos sete pecados capitais
(soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça) pareça distingui-los
entre si pelas causas, formas e efeitos, na verdade, o pecado sexual
domina todos os outros. Em primeiro lugar, porque qualquer ato (dominar,
reter, encolerizar-se, comer, querer alguma coisa vista com outrem
descansar) converte-se num dos pecados capitais toda vez que for
praticado com excesso e o excesso se chama: luxúria. Em segundo lugar,
nas representações dos sete pecados, nas iluminuras e gravuras
medievais e nas pinturas renascentistas, todos eles trazem traços de forte
sexualização do prazer. A melhor figuração do prazer se encontra no
quadro de Bronzino, A Luxúria, representada por uma mulher nua, de
formas exuberantes, acariciada num dos seios por um menino (que traz os
sinais de ser Cupido) ajoelhado numa almofada (e a almofada, no código
pictórico da época, significa relação sexual), tendo ela numa das mãos o
dardo. Em terceiro lugar, nos quadros que representam as tentações,
sobretudo nos do pintor Jerônimo Bosch, o resultado da presença
simultânea dos sete pecados é a geração de todos os tipos possíveis de
monstros e de todas as metamorfoses possíveis, enfatizando, assim, o
caráterprocriativo contra-natureza da reunião de todos os vícios da carne.
A evolução dos procedimentos da confissão é espantosa.
Numa primeira época, o confessor indagava se o penitente cometera
algum dos pecados listados por São Paulo e, no caso dos pecados sexuais,
indagava se o penitente os praticara. Era, portanto, a ação que era julgada
pecaminosa.
Inspirando-se nas discussões de Santo Agostinho sobre os conflitos e
dramas da interioridade, numa época seguinte o confessor passou a
indagar ao penitente se, além de atos, também havia desejado praticá-los,
ainda que não o tivesse feito. Agora, o pecado concerne também às
intenções.
A seguir, o confessor é instruído para conhecer uma verdadeira anatomia
do pecado carnal. Aprende quais os pecados
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carnais possíveis para cada uma das partes do corpo; quais os objetos e
situações que podem estimular cada um desses pecados. O pecado, além
de espalhar-se pelo corpo do penitente, também envolve o mundo no qual
ele vive.
Isto explica, por exemplo, a exigência de que as mulheres se cubram com
muitas vestes, que não pisem em certos lugares, não falem certas
palavras nem falem com determinadas pessoas para não serem ocasião
de tentação, pois agora a simples tentação já é pecaminosa. Do mesmo
modo, regras são estabelecidas para quem não deseja correr o risco da
tentação. Assim, o Padre Bernardes, num livro intitulado Nova Floresta,
escreve: ”Ao gloriosíssimo doutor da Igreja (São Tomás de Aquino) disse
uma senhora: por que se estranhava tanto das mulheres, pois nascera de
uma? Respondeu: Porque nasci de uma, é que fujo de todas (...). Os olhos
baixos em presença de mulheres denotam estar o coração levantado, e os
olhos levantados, denotam estar baixo e caído. Religioso ou sacerdote,
que fita os olhos em mulher, bem poderá ser religioso ou sacerdote, mas
então não parece”.
Esse trecho de Bernardes é sugestivo porque nos informa de um outro
aspecto da confissão. Ao dizer o que significa ter os olhos levantados ou
os olhos baixados, Bernades apenas retoma uma norma fundamental do
confessor, qual seja, a de saber decodificar todos os sinais do pecado e da
virtude por mais ínfimos que sejam e apareçam onde aparecerem. A
seguir, deve transformar esse código em pedagogia. As meninas não
aprendem desde cedo que é sinal de modéstia manter os olhos baixos?
Levarão alguns anos para descobrir que a valorização da modéstia apenas
serve de máscara para impedi-las do uso sensual do olhar, pois o pecado
não está apenas em sucumbir à tentação, mas também em ser fonte dela,
sendo o maior pecado quando a tentação é deliberada, evidentemente.
Uma leitura dos livros de boas-maneiras para meninos e meninas das
classes dominantes católicas é suficiente para percorrermos o minucioso
controle do corpo, apresentado como boa-educação. Os meninos, por
exemplo, não devem conservar as mãos nos bolsos. Conservá-las ali seria
sinal de avareza? Talvez. Mas a proibição visa a outro fim: impedir a
tentação da masturbação. As meninas não devem cruzar as
104
pernas na altura dos joelhos, mas apenas na dos calcanhares. Sinal de
elegância? Assim o diz a racionalização. Na verdade, trata-se de impedir
que, pela fricção das coxas, a menina também se masturbe. Não se deve
falar com superior fitando-o nos olhos. Sinal de modéstia e de obediência?
Não. Risco de sedução sensual. Em suma, o ”templo do Espírito Santo”
parece ter-se convertido num baú do diabo...
Enfim, completando a cerimônia confessional, o confessor não se
contentará em indagar do penitente se participou, teve a intenção de
praticar, ou fantasiou este ou aquele pecado. Procura fazê-lo falar por si
mesmo para que, através das traições das palavras, capture o pecado
escondido. Procedimento generalizado para todos os penitentes, mas
particularmente empregado para os réus da Inquisição, pois esta só
dispunha do direito para condenar, se obtivesse a confissão voluntária do
acusado. Evidentemente, ela dispunha de excelentes métodos para
chegar a essa decisão ”voluntária”, mas um dos métodos, que não
empregava tortura física e sim mental, era levar o acusado a falar para
que caísse em contradição, se enganasse, tivesse lapsos de memória,
sinais de que ocultava alguma coisa, traindo-se sem o saber.
A historiadora liana Novinsky, num ensaio intitulado Heresia, Mulher e
Sexualidade, estudando processos de mulheres no Norte e Nordeste no
Brasil nos séculos XVI e XVII, selecionou os das que foram submetidas à
Inquisição sob acusação de feitiçaria, sodomia, bigamia, blasfêmia e
incesto. Essas mulheres não eram nem as sinhás nem as escravas, mas
pertenciam à camada dos comerciantes, artesãos, pequenos funcionários
da Coroa e a um grupo chamado, sugestivamente, ”das vagabundas”, isto
é, mulheres profissionalizadas, tecelãs, vendeiras, viúvas que
sustentavam a família, etc.
Os inquisidores, em toda parte, Brasil ou Europa, usavam um manual
denominado Malíeus Maleficarum que fornecia ao interrogador todos os
elementos para descobrir os sinais de bruxaria numa mulher, por mais
dissimulados ou ínfimos que fossem. A idéia central do manual era a de
que o mal está em toda parte, mas que é de dois tipos: natural (pestes,
secas, inundações) e maléfico (decisão voluntária de destruir ou sabotar a
ordem do mundo, decisão vinda do rival de Deus, o Diabo, o Maléfico ou
Maligno).
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As mulheres, sem exceção, são colocadas como mal maléfico porque, por
natureza, são crédulas, faladoras, coléricas, vingativas, de vontade e
memória fracas e insaciáveis, prestando-se a todas torpezas sexuais.
Consideradas como desordem (isto é, como Natureza ainda não submetida
à regra, à ordem e, portanto, à Cultura), todas as mulheres, sejam elas
esposas, parteiras, bruxas, prostitutas ou freiras, são sempre descritas
exclusivamente em termos sexuais (a bruxa dorme com o diabo e a freira,
com Deus; a puta dorme com todos, a freira, só com Jesus — uma canção
de Chico Buarque nos revela como essas imagens exclusivamente
sexuadas das mulheres ainda permanecem no imaginário e no cotidiano
brasileiro, de tal modo que o encontro matinal da puta, voltando do
trabalho, com a freira, indo à missa, é uma espécie da síntese da imagem
feminina brasileira para o olhar masculino).
A finalidade da confissão das acusadas, perante o Inquisidor, era a de ser
transformada em peça fundamental da própria acusação, sobretudo como
auto-acusação e como delação de todas as pessoas próximas envolvidas
(muitas vezes, como se sabe, um processo inquisitorial era feito menos
para condenar um acusado e mais para que ele, através da delação,
apontasse alguém que, de fato, era a pessoa visada pela inquisição).
Aceitando confessar-se, a acusada realizava a finalidade principal da
Inquisição como instituição: reconhecia o tribunal e, portanto, reforçava o
sistema.
Através das confissões, a historiadora nos mostra o quadro da repressão
sexual dessas mulheres: a acusação de bigamia decorre da luta entre
homens rivais e revela a estrutura do casamento como relação de força; a
de sodomia, é meio para eliminar uma mulher indesejável e justificar a
separação lícita sem que os espancamentos anteriores recebam punição e
sem que o dote da esposa precise ser devolvido, perdendo ela também a
dotação do marido (nessa acusação, a prova é obtida pela resposta
afirmativa à pergunta: ”houve deleitação?”, isto é, prazer). Mas, de todas
as acusações, é a confissão da feiticeira que melhor ilumina a situação
sexual dessas mulheres. A acusação de feitiçaria é sempre sexual, pois a
feiticeira é aquela que dorme com o diabo. Mas as confissões mostram as
dificuldades matrimoniais das mulheres que procuravam solucioná-las
pela magia, com poções e filtros, na
106
esperança que os maridos lhes ”dessem a boa vida” e lhes tivessem
”amor e amizade”. A procura da feitiçaria revela a incapacidade da Igreja
para ajudá-las.
Todavia, a preocupação da Igreja com as feiticeiras e a sodomia
(homossexualidade feminina) se deve ao temor de que criassem um
”mundo feminino”, próprio, desvinculado do controle eclesiástico (mundo
feito de solidariedade e sobretudo de profissionalização das mulheres).
Reencontramos aqui algo semelhante ao que vimos quando a Igreja
decidiu ensinar a ler às mulheres. O mesmo medo de perder o controle
sobre elas.
Regressemos, porém, à confissão sacramental.
Tendo o corpo se tornado microscopicamente pecaminoso, tanto como
receptáculo da tentação quanto como provocador dela, ocorrerá com ele o
mesmo que assinalamos a respeito dos sete pecados capitais, isto é, a
sexualização de todos os pecados reaparece agora como sexualização do
corpo inteiro.
Nesta perspectiva, o pecado da palavra, que São Paulo colocara como um
pecado específico (podendo ser contra Deus ou contra o próximo, como a
blasfêmia ou a calúnia), torna-se também pecado sexual.
A sexualização dos pecados e do corpo significa, simplesmente, a
preocupação cristã com todas as formas da concupiscência, visto ser esta
a manifestação da fraqueza da carne, e, conseqüentemente, a
preocupação está voltada para a percepção, captura e controle de tudo
quanto desperte prazer. É pela via da caça ao prazer que os pecados e o
corpo vão sendo sexualizados. E é pela via do prazer que a palavra
passará a ser um pecado sexual. Faladas, escritas ou simplesmente
pensadas em silêncio (isto é, sem comunicação), ouvidas ou lidas, estão
submetidas a rigoroso exame. A peculiaridade da palavra, sob o regime da
confissão, não se acha apenas no fato de haver um vocabulário sexual que
precisa ser usado com moderação e através dos eufemismos, e sim no
fato de que toda e qualquer palavra, dependendo de quem a usa, como,
quando e por que a usa, estar investida de prazer sexual. Donde, em
muitas ordens religiosas, a obrigatoriedade do voto de silêncio. Mas o
espantoso da palavra, descoberta que o confessor hábil consegue produzir
no penitente, é que a pronunciamos sem saber o que dizemos
107
e que ela nos faz dizer o que não suspeitávamos existir em nós (um dia,
isso receberá nome: inconsciente e retorno do reprimido).
A confissão é o corpo e o mundo postos sob suspeita; mas a palavra é
ainda acrescida de outro atributo: é reveladora e por isso mesmo
perigosa.
Uma síntese da suspeição-revelação e de seu perigo, ligado ao
conhecimento e à diminuição da censura, aparece admiravelmente no
romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, no qual o crime, a suspeita, o
pecado, o poder e a queda estão distribuídos à volta de um centro, um
local feito apenas de palavras: a biblioteca. E o livro proibido, aquele que
entre todos os da biblioteca ninguém poderá ler, os que o fizeram tendo
sido assassinados, é um livro de elogio ao riso à alegria, ao humor e à
graça. Nesse romance, as meditações de Santo Agostinho sobre o pecado
da curiosidade ligado diretamente ao conhecimento intelectual e
inconscientemente ao prazer sexual constitui uma das tramas da
narrativa: ler e escrever são janelas e portas preferenciais do Diabo, por
isso a biblioteca não tem janelas e sua única porta é guardada a chaves,
antecedida por um corredor onde jazem ossadas. E o guardião do livro
proibido, que para protegê-lo assassina, é cego.
Porém, o quadro confessional ainda não está completo.
Nas Confissões, perplexo e atormentado, Santo Agostinho escrevia que
todos os esforços de controle da vontade, realizados durante a vigília,
eram inteiramente perdidos durante o sono: sonhava pecados.
Assim, à lista dos pecados e de suas ocasiões, o confessor acrescentará os
sonhos. Quando nosso corpo e nossa alma relaxam para o descanso,
melhor oportunidade dão ao demônio para infiltrar-se sem que haja como
combatê-lo e vencê-lo. Donde as regras que serão estabelecidas para
diminuir o risco de sonhar: as preces antes de adormecer (para as
crianças, a invocação do Anjo da Guarda), a frugalidade da refeição
vespertina (o que mostra a relação entre gula e sexo), o cuidado com os
divertimentos noturnos para que não deixem a alma preparada para a
infiltração demoníaca (donde a recomendação da leitura de vidas de
santos, dos livros de oração, da Bíblia; a reticência religiosa face aos
bailes e festas noturnas; a regulamentação das ocasiões em que a relação
sexual
108
conjugal pode acontecer), e o elogio, levado ao máximo no
protestantismo, do trabalho, pois ”mente desocupada, oficina do diabo” (o
que mostra a relação entre preguiça e sexo).
A confissão é, poderíamos dizer, uma técnica da fala. O confessor atua
num crescendo: indaga inicialmente se houve ato pecaminoso ou intenção
pecaminosa; sendo afirmativa a resposta, indaga: houve deleitação?, pois
a falta é maior em caso de prazer. Afirmativa a resposta, indaga quais os
órgãos que se deleitaram (a falta variando de gravidade conforme os
órgãos de prazer), quanto tempo durou a deleitação (a gravidade da falta
sendo proporcional ao tempo de prazer), quantos se envolveram nela e
onde aconteceu (havendo uma codificação do pecado conforme o número
de participantes e os locais). Por fim, o confessor indaga se o penitente
está arrependido, pronto para a contrição verdadeira e para não mais
pecar. Exige, portanto, que o pecador diga a verdade sobre a sexualidade
e que essa verdade, através do ato de contrição ou do arrependimento,
atue sobre o comportamento futuro, modificando o ser do penitente. É na
exigência da modificação que o controle melhor manifesta o papel da
repressão sexual: não se trata apenas de proibir atos, palavras e
pensamentos, mas de conseguir que outros venham colocar-se no lugar
dos pecaminosos.
Algo também é exigido do próprio confessor, posto que é um ser humano,
apesar da graça santificante recebida pelo sacramento da Ordem: não
deve pecar ao ouvir a confissão. Esse risco existe se o confessor sentir
prazer no que ouve, fantasiar a partir do que escuta, tornar-se cúmplice
involuntário do penitente, fazendo-o alongar a fala e detalhar o próprio
prazer. O risco da confissão para o confessor foi admiravelmente descrito
pelo romancista Eça de Queiroz num romance intitulado O Crime do Padre
Amaro.
O Catecismo da Doutrina Cristã, no capítulo dedicado à confissão, explica
sua necessidade, por que se chama penitência ou confissão e quais suas
regras. É necessária para perdão dos pecados cometidos após o batismo;
é penitência porque o pecador deve submeter-se às penas que o
confessor lhe impuser; é confissão ”porque para obter o perdão dos
pecados não basta detestá-los, mas é necessário acusá-los ao confessor
(no nível da racionalização, a explicação é simples: trata-se de
109
manifestar a virtude da humildade, confessando-se; no nível invisível, o
motivo é outro: é meio de controle).
O poder do confessor é total, pois a ”forma do sacramento da penitência
é: Eu te absolvo dos teus pecados”, absolvição feita em nome de Deus,
por quem o confessor foi investido. Enfim, a confissão deve ser precedida
do exame de consciência (visto que o pecador o é em sua alma e
consciência) e o Catecismo explica como fazê-lo: examinar com diligência
os pecados ”cometidos por pensamentos, palavras, obras e omissões”,
examinar os maus hábitos e as ocasiões de pecado; se os pecados forem
mortais, saber o número deles e o tempo em que se permaneceu neles;
examinar as circunstâncias, pois estas podem transformar um pecado
venial em pecado mortal, e examinar as ”que aumentam muito a malícia
do pecado”. Como facilitar esse exame? ”O exame de consciência torna-se
fácil pensando nós nos lugares em que estivemos, nas pessoas que
freqüentamos e nas coisas com que nos ocupamos; é muito mais fácil
para os que têm o costume louvável de examinar todos os dias a
consciência, coisa tão recomendada a quem quer viver cristãmente.”
O Catecismo ainda prevê o risco do esquecimento e da vergonha. O
Esquecimento pode ser corrigido na confissão seguinte, mas quem omitiu
um pecado por vergonha, comete sacrilégio (o mais grave dos pecados
mortais). Diante dessa exigência de desnudamento incondicional, o
Catecismo prevê a objeção do fiel: não é terrível ter de confessar a ou
trem o que nos causa vergonha? Resposta: ”Ainda que pareça duro, é
preciso fazê-lo, porque de outro modo não se pode conseguir o perdão dos
pecados cometidos e porque a dificuldade de confessar-se fica
compensada por muitas vantagens e grandes consolações”. Assim, é o
aspecto catártico ou purificador, a exteriorização do tormento
interiorizado, que torna a confissão um bem. O que, sem dúvida, é
verdade. E como não seria assim, depois que aprendemos a nos
atormentar? O mecanismo fundamental consiste, pois, em nos liberar
depois de nos haver reprimido, mas sob a condição de aceitar nova
repressão. Por isso o Catecismo faz duas exigências: a boa confissão só
pode ser feita por quem conhece a doutrina cristã e quando o penitente
não escolhe um confessor ”demasiadamente indulgente”.
110
Sem dúvida, entre a decisão repressiva e sua plena execução há uma boa
distância e nem sempre a religião cristã obteve o sucesso almejado, a
história do cristianismo e da sociedade ocidentais sendo a melhor prova
disso. No entanto, o fundamental não se encontra tanto no sucesso visível
conseguido ou não pelas regulações religiosas, mas na sua implantação
invisível como ideal de vida e de perfeição, passando a determinar o
conjunto da existência social. E as transgressões, se são prova do
insucesso visível, por serem transgressões também são a prova da
implantação das regras.
Poucas serão as pessoas, hoje em dia, que seguem as regras dos
”Exercícios do Cristão para Santificar o Dia”, tais como apresentadas pelo
Catecismo da Doutrina Cristã, onde são codificadas todas práticas
cotidianas do cristão (o que deve fazer ao levantar-se, ao vestir-se, ao
alimentar-se, no trabalho, no lazer, durante o toque da Ave-Maria, ou dos
dobres do sino anunciando uma morte), mesmo porque já são poucas as
cidades cujo tempo é regulado pelo Livro das Horas e pelos sinos da
igreja, o cronômetro da produção capitalista tendo alterado radicalmente
nossa relação com o tempo.
No entanto, é a presença difusa, invisível e modificada desse estilo de
vida, da relação com o corpo e o mundo, que permanece no fundo da
sociedade cristianizada, não sendo uma aberração, mas uma
conseqüência perfeitamente racional, o surgimento contínuo de seitas ou
de tendências no interior das igrejas hegemônicas (católica e protestante)
que pretendem lutar contra o avanço da dessacralização do mundo
através do Reerguimento Moral da sociedade, o primeiro alvo sendo,
evidentemente, a sexualidade.
Ainda que não pretendamos aprofundá-la, não gostaríamos de passar em
silêncio uma outra dimensão da repressão sexual religiosa: sua forma
extraordinariamente bela e comovente, sua sublimação no êxtase místico,
dos santos cristãos, como San Juan de La Cruz e Santa Tereza d’Ávila.
Santa Tereza escreve um livro — O Castelo Interior.
O castelo interior é a alma e nele existem sete Moradas: na primeira, a
alma enfrenta feras imundas que desejam agarrá-la, segurá-la para que
não siga o caminho, serpentes
111
enrolando-se em seus pés; na sétima, a alma se une ao Divino Esposo em
núpcias espirituais, cujos preparativos foram feitos na travessia do
caminho e cujas delícias as últimas moradas anunciavam num crescendo.
Como nas epopéias ou nas gestas da Cavalaria Medieval (que Santa
Tereza lera com paixão), como nos contos maravilhosos (inspirados
também nas gestas e legendas), a alma, Cavaleiro Andante, puro, honrado
e corajoso, passa pelas provas da estrada, dos labirintos, das florestas
para encontrar, no final da caminhada, o prêmio da desejada pousada.
Pouso. Repouso.
Paolo e Francesca disseram a Dante, no V Canto do Inferno, que se
amaram enquanto liam o romance de Lancelot do Lago e a Dama
Guinever — romance dentro do romance, pois Lancelot e Guinever
também foram vítimas da paixão que os levou ao adultério. ”Amor nos
conduziu a uma Morte”, soluça Francesca.
Santa Tereza d’Ávila atravessa incólume as tentações do caminho, qual Sir
Galahad, cavaleiro da Imaculada Pureza, digno do Santo Graal — o Divino
Cálice. Guiada pelo canto bíblico — ”Senhor, eu não sou digna de que
entreis em minha morada, mas se nela entrades, minh’alma será salva” —
Santa Tereza alcança o êxtase místico.
Êxtase (do grego, ekstásis sair de si, arrebatamento interior, transe,
deleitação, estado espiritual para além da razão e do autocontrole,
esquecimento e perda de si no interior de um outro ser), místico (do
grego: mustikos, mustês pessoa iniciada nos mistérios sagrados,
revelados divinamente por meios inalcançáveis pela simples razão
humana), êxtase místico é arrebatamento e exaltação interiores, entrega
de si à divindade para nela e dela receber a revelação do oculto, fusão
plena vivida como encontro de si ao perder-se no seio de Deus.
Como todo mistério, o êxtase místico se realiza como Iniciação,
aprendizado lento, difícil no qual o corpo precisa ser preparado (o iniciante
aprende a ver com os olhos fechados, a ouvir com os ouvidos tapados, a
falar com a boca fechada) para voltar-se sobre si mesmo a fim de que
possa sair de si e desvendar a presença oculta do espírito nas dobras da
carne, preparando-se para a revelação suprema: a presença do espírito
divino no espírito humano e deste naquele. O transporte místico é esse
encontro consigo mesmo no encontro
112
com o ser divino. Fusão e esquecimento. Paixão-passividade que é
conhecimento-atividade. Entrega que é recepção. Contemplação que é
imersão. Rendição que é liberação. Abismo na treva que é luz — ver com o
olho do espírito.
Visão. Os gregos diziam que os olhos podem ver a luz porque são parentes
do sol, e, em latim, olhos se dizem: lumina, luzes. Visão mística: o olho do
espírito é parente do sol divino. ”No princípio era o Verbo. E o Verbo era
Deus, Luz ilumina toda a terra”, assim principia o Evangelho de São João.
Experiência da vida como morte, da morte como vida, o êxtase místico
realiza a desencarnação do espírito através da carne: Santa Tereza fala
em Núpcias com o Divino Esposo. Sua linguagem, como a de todos os
místicos, não é metafórica: não fala ”como se” visse — vê —, nem ”como
se” ouvisse — ouve —, nem ”como se” tocasse ou fosse tocada — toca e é
tocada —, nem ”como se” sentisse — sente. O mistério é isso. Que
experimente na carne de seu corpo o que vive em puro espírito. Se o
místico aspira pelo silêncio é porque aspira pela unidade com o indizível.
Unidade que não é apenas a da criatura com o criador, mas também da
criatura consigo mesma através do criador, unindo o separado, corpo e
espírito. Por isso o sentimento da plenitude plena que os livros sagrados
chamam pelo nome de: Glória. Movimento imóvel de reversibilidade, no
qual o sair de si é entrar em si, o entrar em si é sair de si. Reversibilidade
que o filósofo MerleauPonty designou, depois de Hegel, como: o Espírito.
”... e começo a falar com o Senhor, uma linguagem singela porque muita
vez nem sei o que digo. É amor que fala e a alma está fora de si, tão fora
de si que não vejo diferença entre ela e Deus. O amor sabe quem é Sua
Majestade, mas esquece-se de si mesmo, sente estar n’Ele como em coisa
própria, sem separação. E diz loucuras...”
”... Vigia, que tudo é breve, ainda que teu desejo faça parecer duvidoso o
que certo é. Sabe que quanto mais combateres, mais mostrarás teu amor
ao teu Deus e mais te deleitarás com teu Amado, em alegrias e delícias
que não terão fim...”
”... Ó alma minha! Admirável é a batalha, essa luta e como tudo se
cumpre à risca! Portanto o meu Amado é meu e eu sou do meu Amado...”
113
”... Quem ousaria separar e apagar duas chamas tão ardentes? Vão seria o
esforço, porque duas, elas fazem uma
”... o meu Senhor me fala, me leva junto a Si como o âmbar atrai a palha,
fere minh’alma com ferida tão gozoza que não quereria curar-me nunca...”
“...ô deliciosa loucura, minhas irmãs!... Como água do céu caindo num rio
ou nascente forma única massa líquida, a água do rio inseparável da que
veio do Céu... ou como luz que entra por duas janelas num quarto: inda
que separadas à entrada, formam uma única mancha luminosa... A alma e
Deus gozam uma da outra, num silêncio absoluto... É assim a núpcia
espiritual...”
Unidade do finito consigo mesmo na unidade com o infinito no infinito,
absorção da parte no todo. Vida e morte. Unidade cósmica e, no entanto,
experiência da individualidade. Por isso mesmo, vida só é possível com a
morte.
Vivo sin vivir en mi
Y de tal maneira espero
Que muero por que não muero...
Como num eco prolongada, responde o Amor Profano, falando pela boca
do poeta Lorca:
Amor de mis entrañas, viva muerte, En vano espero tu palabra escrita
Y pienso, con la flor que se marchita, Que si vivo sin mi quiero perderte.

Sexo e imoralidade
O Marquês de Sade, escritor francês do século XVIII, foi preso várias vezes
por causa de seus costumes sexuais considerados imorais (de suas idéias
e práticas sexuais vieram as palavras sadismo e sádico/a). Acusado por
maridos e esposas traídos, por pais cujas filhas teria seduzido e
maltratado, passou anos na Bastilha e depois foi enviado para um
hospício, onde veio a morrer. Estranhamente, Sade, acusado de
114
identificar coito e crueldade, sexo e porcaria, de desejar o sofrimento dos
parceiros, durante um período de liberdade, nomeado para o júri de
tribunal de acusação, recusou-se a prejudicar uma das famílias que mais o
haviam perseguido e cuja sorte, durante a Revolução Francesa, esteve em
suas mãos. Renunciando a ser parte do tribunal, escreveu a um amigo
dizendo que o fizera porque ”queriam que eu cometesse um horror, uma
desumanidade e eu não assenti”. Para ele, o Terror, instaurado pela
Revolução, era inaceitável, pois era crueldade e violência praticadas em
nome de princípios abstratos.
Sade faz parte de uma geração literária conhecida como libertina. Um
escritor e poeta, chamado Rétif de la Bretonne, também escreve e pratica
uma sexualidade transgressora, o prazer tempestuoso e sem limites; o
filósofo Diderot escreve um livro chamado A Religiosa no qual freiras se
entregam a todos tipos de transgressão sexual porque, segundo o
romancista, reprimem seus desejos e só podem liberá-los de forma
perversa. Inúmeros outros escritores do período viram o sexo e o amor
pelo lado satânico. No entanto, embora tendo aqui e ali problemas com as
polícias de costumes e com a censura literária, não tiveram o destino
trágico de Sade. Por quê?, indaga a escritora francesa Simone de
Beauvoir. Responde: porque todos os outros consideravam a Natureza
essencialmente boa, fonte de uma moral pura que a civilização tendia a
corromper e a sexualidade demoníaca de seus livros era a demonstração
da perda da bondade natural. Sade, pelo contrário, é o único a não
idealizar a bondade natural, a considerar a Natureza ”como é” e a segui-la
assim mesmo. Ê o único para quem a relação sexual não é o encontro de
dois seres, considerando que ”todo gozo partilhado se enfraquece”. É o
único a descobrir a sexualidade como egoísmo e egocentrismo,
valorizando o amante cerebral e lúcido que não se perde nem se
abandona.
Simone de Beauvoir considera ser esta a ”maldição de Sade”. Talvez, no
entanto, valha a pena indagar se não é isto um julgamento moral que
pressupõe uma certa idéia da sexualidade exclusivamente ligada ao
sentimento do encontro e da entrega recíproca, excluindo por isso outras
escolhas sexuais, como a de Sade. Em suma, não haveria, na opinião de
Simone sobre Sade, o pressuposto de que há uma forma de sexualidade, a
generosa e do encontro, em vez de considerá-la uma entre outras,
pressuposto que conteria um secreto moralismo?
115
Nota abaixo da foto:
Dos sete pecados capitais, a Luxúria é o mais terrível porque o mais
sedutor e porque dela nascem os outros seis ou por ela são eles
estimulados. No quadro de Bronzino, o dardo na mão de Luxúria e a
almofada sobre o qual se ajoelha Cupido, simbolizam o ato sexual, apenas
esboçado nos gestos das figuras. A beleza e perfeição dos efebos e da
mulher se contrapõe a velhice do Tempo (ao fundo), que retém a chegada
dos frutos da Luxúria, isto é, os monstros contorcidos, à esquerda do
quadro.
Fim da nota.
116
Se o Marquês de Sade, politicamente contrário ao Terror, é condenado é
porque sua sexualidade é perigosa. Não pelo vínculo entre coito e
crueldade (a discutir), mas pelo vínculo entre sexualidade e egoísmo. Com
dificuldade, a sociedade européia aceitou o sexo, mas uma das condições
para aceitá-lo era garantir sua generosidade, sua relação necessária com
a doação de si ao outro — isto é, aquilo que a moral burguesa definirá
como amor conjugal e familiar, para o qual um filósofo, como Rousseau,
educou seu discípulo imaginário, Emílio, e sua noiva, Sofia.
No século XIX vitoriano, o escritor e poeta Oscar Wilde foi preso e
socialmente desqualificado, além de literariamente esquecido (quando
alcançava o auge de sua criação), acusado de homossexualismo. Num
texto, intitulado De Profundis, meditando sobre a degradação e o castigo,
escreve: ”Se depois de tudo eu não sentir vergonha de meu castigo —
como espero não sentir — serei capaz de pensar, caminhar e viver
livremente. Há muitos homens que, ao serem libertados, carregam a
prisão dentro de si e a ocultam como uma secreta desgraça em seus
corações, até que acabam por enfiar-se numa cova qualquer para morrer
como se fossem pobres animais envenenados. É terrível que se vejam
forçados a agir assim e errado, terrivelmente errado, que a sociedade a
isso os obrigue. A sociedade, que se arroga o direito de inflingir ao
indivíduo os mais medonhos castigos, comete também o supremo pecado
da negligência ao não perceber as conseqüências de seus atos. Depois
que o homem cumpre a pena, ela o abandona, isto é, o deixa entregue à
própria sorte, no maior momento em que deveria zelar por ele”.
Wilde indaga a razão desse abandono, depois que o condenado cumpriu
as exigências da punição social. Sua resposta nos esclarece por que
afirmara que sairia livre sem lançar-se numa cova como pobre animal
envenenado, isto é, por que não sucumbiria à interiorização da culpa
imposta e cultivada pela sociedade.
”Mas a verdade é que a sociedade se envergonha de seus próprios atos e
despreza aquele a quem puniu, assim como as
117
pessoas desprezam o credor cuja dívida não tenham como pagar, ou a
alguém contra quem tenham cometido um ato irreparável e irredimível.”
Texto admirável, que desce ao âmago da repressão: lançar sobre a vítima
o medo, a vergonha e o ressentimento que deveriam ser do carrasco.
Reflexão semelhante faz Divina dos Santos, internada desde os 23 anos no
Juqueri (está com 31, agora). Expulsa da mesa de parto diretamente para
a rua, com o filho nos braços, sem dinheiro para comer, nem para a
condução, sem condições físicas para alimentar a criança, percorrendo as
ruas sob sol ardente, a mãe solteira busca o pai de seu filho. Ao encontrá-
lo, é por ele espancada e precisa proteger a criança contra a fúria
assassina do pai. Foge e doa o filho, ”para que pudesse ter uma vida boa,
melhor do que a minha”. E indaga: ”Então, a senhora me diga, não era pra
eu ficar louca mesmo?”.
Mas Divina prossegue: ”A senhora me responda, por favor, por que é que
quando a gente fica boa e consciente, sai daqui e leva um documento
dizendo que foi internada, ninguém dá trabalho pra nós?” Eu respondo: ”É
porque as pessoas, lá fora, têm medo e raiva da gente. Elas não entendem
que o que aconteceu com a gente pode acontecer com qualquer um, um
acidente, como uma pedra que cai na cabeça, sem a gente querer. Mas,
de verdade, elas sabem disso e ficam com raiva da gente porque, quando
olham pra gente, a gente lembra pra elas que isso também pode
acontecer com elas. Por que as pessoas, lá fora, são tão ruins?”. Mãe
solteira espancada e rejeitada pelo companheiro, que doou o filho e
enlouqueceu, como Divina poderia esperar que ”as pessoas lá fora” não
fossem ruins?
Pasolini foi assassinado por ser homossexual. Um general alemão, em
1984, foi destituído do posto de comando na Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN) por ser homossexual e, por isso, sujeito a
chantagens que poderiam fazê-lo entregar segredos militares a inimigos.
Nas grandes empresas, os jovens executivos que assumem altos postos,
são forçados a se casar, demonstrando serem ”normais”, viris e com
direito ao mando. Na China Comunista, adultério e homossexualismo são
punidos com prisão perpétua em ”campos de trabalho”, ou com a pena de
morte. Em Cuba, os homossexuais são punidos pela lei.
118
Nos Estados Unidos, a indústria política descobriu que uma das imagens
que mais produz confiança nos eleitores é a do candidato pai-de-família. A
propaganda, invariavelmente, exibe fotos do candidato acompanhado de
esposa, filhos, pais, irmãos, cães e gatos. Ingrid Bergman, no ápice de sua
carreira, foi escorraçada de Hollywood por adultério: apaixonara-se por
Rosselini e, ainda casada, foi viver em sua companhia. E perdeu o direito
de tutela da filha. Atores e atrizes homossexuais, possuem um ”cônjuge”
oficial, fabricado pelos agentes, para garantir a ”boa imagem” dos clientes
perante o público protestante puritano.
Pelos capítulos precedentes, não é difícil compreender que fatos como
esses (e tantos outros) aconteçam nem por que acontecem. Também não
é surpreendente que encontremos para eles as mais diversas e curiosas
justificativas, encarregadas de torná-los racionais, inteligíveis, lógicos e
aceitáveis. Isto é, racionalizações.
Encarados pelo ângulo da moral, as práticas e idéias sexuais que não se
conformam aos padrões morais vigentes são considerados vícios, pois os
seus contrários, os padrões, são tratados como virtudes. O vício possui
três sentidos principais. Em primeiro lugar, é disposição habitual para o
mal (aproximando-se, neste caso, do pecado); em segundo lugar, é uma
tendência ou impulso reprovável, incontrolável, decorrente de uma
imperfeição que torna alguém incapaz de seguir sua destinação natural; é
defeito (e, neste caso, se aproxima da doença). Mas, em terceiro lugar,
significa depravação e, neste terceiro sentido, vício é diretamente
sinônimo de gosto ou prática sexual reprovados pela moral e pela
sociedade. Assim, a palavra vício traz inscrita, em sua definição, a
referência ao sexo.
Na perspectiva moral, portanto, as racionalizações que justificam a
repressão sexual ligam-se às idéias de hábito para o vício (uma espécie de
segunda natureza), de impulso incontrolável causado por uma imperfeição
(um defeito que gera uma conduta quase instintivamente viciosa) e de
corrupção e desvio das normas (portanto, algo deliberado). Nos três
sentidos, há referência à norma. No primeiro caso, a norma é produto da
natureza e o vício, tendência antinatural; no segundo sentido, a norma
tanto pode ser natural quanto social e o vício, face ao natural é
imperfeição contranatureza, e face
119
ao social é impulso anti-social; no terceiro sentido, a norma é inteiramente
social é o vício é corrupção e anti-social (veremos, no tópico seguinte,
como a idéia de doença nasce dessa constelação moral, não sendo casual
que, no texto de Oscar Wilde, o escritor fale em gente que se sente
envenenada).
Essas significações,apontam a direção que a repressão sexual tomará, do
ponto de vista moral: será pedagogia (para corrigir hábitos e criar os
hábitos sexuais virtuosos ou morais), será punição (para fazer o desvio
deliberado regressar aos trilhos), será vigilância (para captar os momentos
de risco de desvio e depravação) e sobretudo será estigmatização (o vício
”por natureza” e a corrupção-depravação sedimentada ou irreversível,
devem ser apontados, condenados publicamente e sinalizados, isto é,
marcados para que os demais membros da sociedade possam dispor de
instrumentos para identificar os viciosos ”naturais”, corruptos e
depravados). Em todos esses casos, o vício sexual aparece ligado à idéia
de impureza e de má-vontade.
Do ponto de vista moral, portanto, a repressão sexual opera de modo
duplo: pela criação de obstáculo ao vício (educação da vontade) e pela
mostração dele, se incorrigível. No centro da disposição repressiva
encontra-se, portanto, a corretiva e a edificante — impedir ou exibir para
exemplo (Sade, Wilde, Divina).
A racionalização fundamental será oferecida pela idéia de proteção:
proteger os indivíduos contra o vício e proteger as instituições sociais
contra os viciosos.
Assim, por exemplo, Oswaldo Brandão da Silva, cujo livro citamos no
primeiro capítulo, procura explicar a prostituição e algo muito curioso que
chama de ”naturalismo”. A prostituição, diz ele. ”nasce da falha da
educação do caráter, e quem diz falha de caráter diz também errônea
educação sexual. Dando-se o caso, que uma jovem se abeire do vício
premida pelas circunstâncias da fome, qual será o epílogo a esperar? Se
encontrar um homem que não seja bom, só receberá um pedaço de pão a
troco da honra e, talvez mesmo, da condição de ser lançada no vício
infamante (...). Por isso mesmo, muitas das mulheres que alugam o corpo
a troco de dinheiro, exercem sem o saberem, uma cruel vingança,
veiculando os gérmens de moléstias incuráveis, fazendo centenas de
vítimas por uma vítima que foi talvez ela própria”. A prostituição
120
é, portanto, um problema moral e de higiene. E é um engano imaginar que
uma mulher prostituída seja irrecuperável, bastando para provar o
contrário a figura bíblica de Madalena Arrependida.
O naturalismo, segundo o autor, é uma forma hipócrita de tolerar
perversões sexuais, uma complacência prejudicial. Trata-se de um vício da
vida urbana moderna que partiu de ”um ponto fraco: supor o homem
sempre tendente ao bem em lugar do mal, o que é o fato”. O cinema, as
revistas e a moda exagerada, são os responsáveis pelo naturalismo. Mas,
afinal, o que é o naturalismo? Só indiretamente chegamos a perceber o
que o autor pretende com essa palavra. Diz ele que o naturalismo se
desenvolve porque exacerba o instinto sexual: ”um pouco mais
descobertas as pernas, um pouco mais desnudo o colo, um pouco mais de
plástica realçada pela arte, são suficientes para excitar a sexualidade
doentia”. O naturalismo, como se percebe, é deixar o corpo à mostra,
comportamento que o autor qualifica de baixo e obsceno.
Ao concluir seu livro de educação sexual dos jovens de boa vontade,
Brandão da Silva passa em revista a psicanálise, terminando o exame com
a condenação dela: ”A psicanálise, com respeito à sexualidade, é uma
teoria falha e perigosa, já porque inverte a ordem dos fatores psicológicos,
já porque destrói as bases do caráter, quando considera as imposições da
moral e conseqüentemente a educação, como desvirtuações das
finalidades da vida e causa responsável de neuroses, aberrações e
inversões sexuais”. O risco maior da psicanálise é moral: ela abre as
comportas para o naturalismo.
Ora, Brandão da Silva coloca como uma das manifestações do naturalismo
o que designa pelo nome de co-educação dos sexos, tema discutido por
Rui Barbosa, ao tratar da Reforma do Ensino no Brasil
Rui Barbosa, ao propor a reestruturação do ensino no Brasil, no início do
século, comenta a inviabilidade da chamada co-educação sexual,
criticando sua imitação pelos brasileiros, por terem notícia de sua
existência em países europeus, no Japão e sobretudo nos Estados Unidos,
que tanto fascínio exerce sobre os brasileiros (anos mais tarde, esse
fascínio seria conceituado com a expressão ”importação de ideologias
estrangeiras”).
121
Argumenta Rui: ”Será indiferentemente acomodável a todas as
nacionalidades, a todas as raças, a todos os estados sociais essa
peculiaridade típica da escola americana? (...) não há peculiaridade
escolar que mais se ligue à essência do organismo nacional, nos Estados
Unidos à sua vida mesma, que constitua uma expansão mais natural, mais
direta, mais inevitável dos seus costumes, do que a co-educação dos
sexos. Não é, pois, uma questão propriamente pedagógica a que ora nos
defronta; é estritamente um dos aspectos de uma questão social”.
A naturalidade e inevitabilidade da co-educação dos sexos sexos
americanos decorre, segundo o autor, da formação protestante do caráter,
muito diversa da católica, brasileira. Além disso, toda imposição estranha
aos costumes nacionais pode ser uma violência. Não seria violência,
indaga ele, exigir que as mulheres árabes não cobrissem o rosto com
véus, só porque as americanas não o cobrem? (A resposta afirmativa foi
dada pelo Ayatolá Komehini, quando eliminou a influência americana no
Irã.)
Por outro lado, prossegue Rui, mesmo nos Estados Unidos, a co-educação
dos sexos não atinge a todas as idades. Assim que meninos e meninas
atingem a puberdade, as escolas se separam, provando que os
americanos também não desconhecem os riscos dessa educação (o que
fez com que as mulheres americanas, até o levante feminista dos anos 60,
não pudessem freqüentar as chamadas grandes universidades, nem como
alunas nem como professoras).
O curioso, porém, é que para poder demonstrar que se trata de uma
questão social, Rui tenha de demonstrar primeiro que se trata de uma
questão moral. Para poder abordar o aspecto moral do problema, porém,
oferece antes um conjunto de justificativas médicas e fisiológicas,
apresentadas por especialistas. Combinando dados médicos e fisiológicos,
obtém, paradoxalmente, uma conclusão moral, que é a que lhe interessa.
Dizemos haver paradoxo na argumentação porque todo mundo considera
que o que diferencia uma explicação científica de outras é o fato de que
nela a verdade é obtida graças à neutralidade, própria do conhecimento
objetivo, enquanto uma ordenação moral se caracteriza por aceitar e
ajeitar valores (bom, mau, justo, injusto), não sendo neutra. Ora nosso
autor não parece encontrar a menor dificuldade
122
em extrair uma conclusão moral (valorativa) de explicações científicas
(supostamente neutras ou não-valorativas).
A co-educação dos sexos, escreve, é cientificamente contra-indicada
porque estimula a atitude da emulação (imitação, rivalidade e
competição) entre os sexos e a emulação ”atua com energia
notavelmente superior no sexo feminino, altera, podemos dizer quase
invariavelmente, a saúde do organismo normal da mulher, preparando a
extenuação crescente das gerações que se sucedem”. Portanto, colocar a
moça nessa competição com o rapaz é ”submeter à prova desse violento
estimulante o amor-próprio, o brio, a sensibilidade, tão melindrosos na
moça; é imprudência e artifício”.
Vê-se qual a diferença entre protestantismo e catolicismo: o primeiro é
doentiamente competitivo (evidentemente, Rui não estabelece qualquer
relação entre protestantismo e capitalismo). A questão da co-educação
dos sexos é uma questão moral porque, além, de tocar na higiene mental
e corporal da mulher, diz respeito à sua integridade e à sua honra (muito
melindrosas).
Evidentemente, diz Rui, ninguém porá em dúvida a capacidade intelectual
e a alta inteligência das mulheres (basta dar-lhes escolas femininas para
que essas qualidades se desenvolvam). Não há discriminação. Há
proteção da honra feminina, através da proteção da saúde feminina, pois,
na escola mista, a mulher será obrigada a acompanhar ”o ritmo
acelerado” dos rapazes e que não é o ritmo dela, o que trará ”danos
certos e prejuízos irreparáveis para o futuro seu e de seus filhos”. A
proteção, portanto, é da futura mãe, pois a maternidade define a natureza
da mulher.
A questão da co-educação é moral porque a ciência mostra que não é
natural. De fato, Rui afirmou que impor esse tipo de educação é
imprudência e é artificial. O contrário do artifício, todos sabemos, é o
natural.
A argumentação de Rui tem uma aparência de grande simplicidade e
parece fundada em apenas duas teses: a coeducação dos sexos depende
dos costumes e da organização de uma sociedade, sendo um dado
cultural e social; a ciência prova que ela não é o conveniente para a
mulher, por ser artificial. Na verdade, a argumentação é bastante
complexa e cheia de silêncios ou de elipses. Sua armação depende da
possibilidade de combinar Natureza e Cultura, pois disso
123
depende a moral (se esta fosse apenas cultural, seria arbitrária,
convencional e revogável, sem valores humanos universais; mas se fosse
apenas natural, não seria moral, não conteria valores e não dependeria da
vontade e da liberdade, pois seria espontânea e instintiva).
Ora, a primeira parte da argumentação (elogio da coeducação dos sexos
européia e americana, em decorrência da organização social) é
inteiramente cultural: é por uma convenção, própria da sociedade
americana, que há co-educação nos Estados Unidos e, por ser uma
decisão social, não é generalizável. Mas a segunda parte da argumentação
é inteiramente natural: a ciência (que é universal) mostra que a
coeducação é artificial ou antinatural para as mulheres. Com isto, o
segundo argumento reflui sobre o primeiro e o critica sob dois aspectos: 1)
a atitude americana decorre de uma concepção antinatural, portanto a
brasileira é correta; 2) a atitude americana decorre de uma sociedade que
produz naturezas humanas doentiamente competitivas, o que não é
moralmente recomendável.
Fizemos essa longa análise de texto porque nos parece importante para
compreendermos a conclusão do artigo de Rui. Nesta, ele universaliza ou
generaliza a crítica à co-educação, que fora elogiada, no início, para países
evoluídos. Além do aspecto doentio da emulação, a conclusão nos
esclarece por que o contacto dos sexos, além de ser questão moral, é
questão social, aspecto que ficara nebuloso no decorrer do texto.
Na conclusão, Rui cita Laporte, inspetor escolar francês e conhecedor da
pedagogia norte-americana. Diz Laporte: ”O contacto imediato nos bancos
das escolas públicas entre crianças de condição, educação e sexo diversos
não poderá, noutro sentido, encerrar inconvenientes, resultantes de certas
antipatias, ora voluntárias, ora irrefletidas? Elas se manifestam entre
crianças do mesmo sexo, e, no outro caso, não se acentuaria? Não
venham gabar-nos os benefícios desse regímen igualista, que pode
assentar ombro a ombro, acotovelando-se, o filho grosseiro de uma família
qualquer ao pé de uma jovem educada por mãe instruída, casta e de
grande coração. Apelo Para as mães de todos os países”.
Antipatias irrefletidas.
124
Filhos grosseiros de família qualquer e filhas de famílias de bem.
Mães instruídas, castas e de grande coração de todos os países, uni-vos!
Será preciso algum comentário?
(Lembrete: caso o leitor não o saiba, o termo questão social era usado, no
Brasil e noutras partes, para designar a luta de classes, sem nomeá-la.)
Em nossa sociedade, a moralização do sexo (depois que este recebe a
purgação ou purificação de estilo religioso) é feita preferencialmente pela
família e pelo trabalho — a escola e o Estado oferecendo recursos formais
e legais para o que se realiza nas outras duas instituições.
Tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista conceitual não
há como falar na família sem falar no trabalho (na divisão social do
trabalho). Isto não apenas porque, desde Engels e Marx, nos acostumamos
a considerar que a primeira divisão social do trabalho é sua divisão sexual
(quer no sentido aristotélico de trabalho masculino sobre o objeto
feminino para a procriação, quer no sentido bíblico de trabalho da terra
para o homem e trabalho de parto para a mulher, quer, enfim, no sentido
sociológico de divisão de papéis, funções, deveres e direitos entre os
membros da família). Nem só porque os antropólogos, que seguem as
análises de LéviStrauss, estabelecem uma conexão interna ou estrutural
entre sistema de parentesco e economia de subsistência. Mas
simplesmente porque a história da família está ligada à diferenciação
histórica da economia. Basta aqui um exemplo para esclarecer o que
estamos querendo dizer.
Na Grécia, a família é a casa. Em grego, casa se diz: óikos, e sua
atividade, definidora de sua estrutura e função, se chama: óikonomia,
economia.
O chefe da família — em grego: despotês — é dotado de poder de vida e
morte sobre os membros do óikos. Como seu poder e sua autoridade,
enquanto despotês, se referem ao espaço doméstico e, portanto privado,
não é como chefe de família que ele é cidadão, a cidadania se definindo
por outros
125
critérios que não o óikos (aliás, quando vimos a tragédia, aludimos ao fato
de que nela se elabora justamente uma reflexão sobre a ordem política
por oposição à ordem familiar; e a palavra despotismo vem da linguagem
grega, significando o regime político injusto e ilegal porque nele a coisa
pública é tratada como se fosse propriedade privada do déspota, tudo
submetendo à sua vontade pessoal e arbitrária).
Óikos-oikonomia significa que a casa-família é uma unidade produtiva,
uma realidade social diretamente econômica e da qual depende, por
exemplo, o recebimento de honras religiosas e o cumprimento de deveres
religiosos, como a liturgia, isto é, a doação que o chefe de família faz de
bens à religião da cidade, pois o vínculo religião-família é indestrutível. Em
contrapartida, a política é o que se realiza fora da casa, na praça e nas
assembléias masculinas. Se delas os escravos não participam é
justamente porque, entre outras razões, que incluem também a ausência
das mulheres, pertencem a uma outra esfera, a da família.
Ora, se dermos um salto no tempo e viermos à sociedade capitalista,
descobriremos o surgimento de uma coisa inimaginável na Grécia: a
Economia Política.
Essa expressão indica que a economia não mais depende diretamente da
família nem a ela se articula diretamente, sua relação fundamental sendo
estabelecida diretamente no e com o espaço público — o mercado, a
sociedade e o Estado.
Tanto assim que, no século XIX, o filósofo Hegel, num livro intitulado
Filosofia do Direito, dizia que a família é constituída por indivíduos ligados
pelo parentesco e definidos como sujeitos morais (isto é, livres e
responsáveis), mas que a sociedade é constituída por pessoas, isto é, por
entidades jurídicas definidas pela propriedade privada e que se relacionam
não mais por alianças matrimoniais e de sangue, mas por contratos. Essa
sociedade, é, portanto, econômica. E o economista inglês, Adam Smith,
escreveu um livro chamado A Riqueza das Nações, definindo a riqueza
como produto da atividade social.
Enfim, Marx mostrou que a economia não é exatamente política, no
sentido de riqueza social produzida por homens livres e iguais, definidos
como pessoas ou proprietários ligados por contratos, mas é produção
social da riqueza pela exploração
126
do trabalho de uma classe (cuja única propriedade são os braços e os
músculos, força física e social de trabalho) por outra classe que se
apropria privadamente (e não politicamente, no sentido forte da palavra
política, isto é, coletividade pública) do produto do trabalho, sob a forma
do capital. Neste caso, a família volta a ligar-se diretamente à economia,
mas mediada por uma determinação social: a classe social. A família
burguesa procria herdeiros e gestores do capital; a família trabalhadora
procria a mão-de-obra. Enfim, Marx assinala que considerar a sociedade
como constituída por famílias ou por pessoas jurídicas é um meio de
dissimular que ela é constituída por classes sociais, que se perpetuam,
física e juridicamente, pelas famílias de proprietários e de não-
proprietários.
No caso do Brasil, os estudiosos têm enorme dificuldade para definir o que
seja a família brasileira, anterior à abolição da escravatura e anterior à
industrialização, porque, no Brasil, a família antiga é ainda uma unidade
de produção (a família é o engenho, por exemplo), nela o trabalho é
escravo e não de trabalhadores ”livres” vendendo trabalho no mercado (a
família é a casa-grande e a senzala(, de modo que ela existe como se
fosse uma espécie muito curiosa de óikos quando já existe a economia
política. Por isso, alguns estudiosos dizem que se trata de uma família
patrimonial articulada com o mercado. Muitos também consideram que o
caráter autoritário e repressivo da família brasileira (em todas as classes
sociais) vem dessa origem, da casa com o chefe de família dotado de
poder de vida e morte sobre a ”família” (escravos, esposa, filhos, bois,
cavalos, cães e gatos).
Essas observações, muito sumárias, tiveram a intenção de sugerir a
dificuldade e os riscos de separar família e trabalho.
Além disso, como tentaremos mostrar mais adiante, o elogio do trabalho
na sua forma burguesa-capitalista (elogio que o sociólogo e historiador
alemão Max Weber estudou com o nome de ética protestante) é
inseparável de formas determinadas da repressão sexual que conhecemos
e cuja realização depende, entre outros fatores, da família moderna.
Todavia, para facilitar a exposição (e correndo o risco de enganos,
imprecisões e omissões), vamos tratar separadamente
127
família e trabalho, fazendo referência a uma e a outro nos momentos em
que for indispensável.
Nos anos 20, o psicanalista alemão Reich dizia ser a família ”fábrica da
estrutura ideológica” das sociedades de classe (e o termo fábrica indica
que ele usa para a família uma palavra que pertence ao vocabulário do
trabalho). Essa fábrica é tão eficaz que, atualmente, alguns críticos
mostram que a própria psicanálise (de onde partia Reich para elaborar sua
crítica) sucumbiu a ela, desembocando naquilo que o ex-psicanalista
francês Guattari chama de familialismo (existente, segundo ele, tanto no
privilégio do Édipo, por Freud, como no privilégio do seio materno, por
Melanie Klein; isto é, a psicanálise dá à família um lugar excessivo e
incorreto).
Antes de indagarmos como trabalha a fábrica familiar na repressão sexual,
convém abordarmos um aspecto que, em nosso entender, explica uma
das causas do sucesso ideológico da família: a crença que temos de que a
família, tal como a conhecemos hoje em nossa sociedade, é eterna,
natural, universal e necessária, de tal modo que, graças a esses atributos,
ela está aparelhada para justificar, reforçar e reproduzir a repressão
sexual. Isto é, os vícios sexuais são vícios porque destroem, corrompem,
pervertem, envenenam, desviam, depravam uma instituição essencial da
humanidade.
Nós não percebemos que a família, por definição, não pode ser natural
(Natureza = incesto; família proibição do incesto); não é universal (suas
formas, conteúdos e funções variam enormemente); não é eterna (até
para um cristão isto deveria ser óbvio, já que a família teria começado
depois da expulsão do Paraíso, não existindo antes); não é necessária
(pelo menos do ponto de vista das necessidades que preenchia para a
sociedade capitalista, a família deixou de ser indispensável).
Que não é eterna nem universal, a referência breve que fizemos à família
grega já o indica. Mesmo se nos voltarmos para a família da qual a nossa
seria proveniente, isto é, a família romana cristianizada, não
encontraremos nela (salvo quanto à posição dependente das mulheres,
que sequer tinham nome próprio, seus nomes sendo o do pai com a
terminação
128
em ”a”) nada que lembre a nossa (a não ser nos filmes de Hollywood,
onde o marido conta à esposa as discussões no Senado e só falta o filho
jogar beisebol e a filha ganhar uma flor, grudar na túnica e ir com o par ao
baile do liceu).
Nem mesmo a palavra família que vem do latim, quer dizer o mesmo para
nós e para os romanos. Seria inimaginável (a não ser em Hollywood ou
nalguma novela da TV Globo), um chefe de família romano dizer: ”Vou
levar minha família à praia”. E isto porque não haveria transporte
suficiente: a família era o conjunto formado pela esposa, os filhos, as
viúvas e os filhos dos filhos homens, os clientes, os libertos, os escravos,
os ancestrais mortos, terras, plantações, animais, objetos e a construção
física, isto é, a casa e suas adjacências, nas quais os jardins eram
essenciais (portanto, nem todos os caminhões das transportadoras
Lusitana e Granero conseguiriam levar a família à praia).
Família é o conjunto de todas as pessoas, objetos e bens que estão sob a
autoridade de um chefe doméstico, o pater famílias que não precisa ser o
genitor ou o pai. Família é, em segundo lugar, todos os descendentes de
um ancestral comum. Família é, em terceiro lugar, todas as propriedades
e todos os servidores do pater-familias. A família é uma estrutura de
poder: além do poder de vida e morte sobre todos os membros, o pater-
familias, como cidadão, participava de inúmeras instituições públicas
(políticas e religiosas), autoridade e prestígio dependiam da antigüidade
da família, de suas posses, dos feitos militares do pater-familias, da
regulação severa dos casamentos para impedir diminuição de poder com
alianças com estrangeiros, com ex-escravos e com ordens inferiores livres.
Família é a genealogia, parentes próximos, servidores e protegidos (um
remanescente do significado romano de família é a ”família” na Máfia
italiana).
No mundo cristão, além da família romana, coexistiam inúmeras outras
sejam as pertencentes aos povos conquistados pelo Império Romano (que
não tocava nas estruturas fundamentais das sociedades conquistadas,
embora acabasse por transformá-las), sejam as dos grupos ”bárbaros” que
invadiram o Império. Bastaria comparar três tipos de Direito — o Direito
Romano, o Direito Germânico e o Direito Saxônico — para avaliarmos a
multiplicidade de estruturas familiares existentes. Foi obra da Igreja
Católica a homogeneização
129
lentíssima da estrutura familiar, como vimos no capítulo precedente. Ora,
nem mesmo a família cristã é a mesma hoje, se comparada aos séculos
precedentes.
O historiador francês, Aries, num livro intitulado História da Família e da
Criança no Antigo Regime, nos ajuda a perceber a lenta caminhada até à
constituição da nossa família, consolidada apenas no século XIX, com os
preparativos finais feitos na segunda metade do século XVIII.
Pelo exame de gravuras, pinturas, iluminuras e documentos medievais,
Aries mostra que, até o século XVI, a família existe fundamentalmente
como linhagem, como instituição política e não como espaço doméstico (a
não ser o sacrossanto leito conjugal, evidentemente). As casas senhoriais
não possuíam divisões, senão as que separavam capela, refeitório-
cozinha, dormitório e estrebarias. O dormitório era comum: pais filhos de
todos sexos e idades, amas e lacaios, dormiam juntos, nus ou seminus,
viam-se uns aos outros vestirem-se, despirem-se, fazer sexo (não estranha
que a Igreja tanto se preocupasse com a nudez, a fornicação, o incesto, a
masturbação, a sodomia). Família é um grande espaço aberto de
sociabilidade constituído por pais, filhos, genros, noras, servidores,
amigos, clientes, parentes, confessores, vassalos do exército do senhor
feudal, em relações hierarquizadas, fixas e precisas, comandadas pelo
chefe da família.
Não existia a infância (senão como dado natural-biológico evidente). A
criança era um adulto em miniatura, como provam os trajes. Nas gravuras,
a diferença de idade é feita através do tamanho das imagens, mas, ainda
assim, embaralhadas por um outro dado, pois o tamanho também era
comandado pelo princípio do ”quem manda em quem” e do ”quem bate
em quem”, podendo uma criança ser representada maior do que um servo
adulto. Nas escolas, não havia divisão das classes por idade, meninos de 5
anos convivendo com rapazes de 20 (ponto que a Igreja trataria de
modificar quando considerasse perniciosa a influência sexual dos mais
velhos sobre os mais novos).
Nos séculos XVI e XVII (à medida que se consolida social e politicamente a
burguesia) a linhagem, evidentemente, começa a perder lugar, sendo
substituída pela família conjugal e o espaço privado começa a receber
divisões. Nas gravuras e
130
pinturas a mudança aparece: privilégio de cenas de reunião da família (a
família do chefe da casa sendo representada com os atributos da Sagrada
Família, a criança mais nova sempre lendo o livro de orações,
simbolizando a perpetuação da família, a nova geração). As festas
religiosas privilegiadas passam a ser as familiares: Natal e Páscoa. E São
José começa a ser objeto de grande devoção, sendo representado como
chefe da família (à cabeceira da mesa) e como chefe da oficina (onde
estão os artesãos, os burgueses).
(Um parêntese: Num estudo feito pelo antropólogo Antônio Augusto
Arantes sobre a instituição do compadrio como essencial para a
constituição da família no Brasil e seu modo de relação interclasse, São
José também passa a ter um lugar privilegiado. Os Evangelhos são
interpretados de modo a distinguir entre genitor (Deus Pai gera o Filho) e
pai espiritual (São José), distinção que aparece na família com o
surgimento do padrinho de batismo. A família passa a ser constituída
pelos genitores, filhos, padrinhos e afilhados, procedimento com duas
direções básicas: ou a de aliança entre iguais (econômica, política e
militarmente importante), ou aliança entre um inferior e um superior, este
na qualidade de padrinho dos filhos ao inferior (com a troca de serviços:
proteção do padrinho, vassalagem do afilhado — os jagunços e capangas
eram sempre afilhados). O segundo tipo de aliança, segundo Arantes, é
um elemento e embaralhamento das diferenças de classes, porque o
inferior se torna parente do superior. (Na Máfia, o chefe é o Padrinho,
como se sabe.)
No século XVIII a privatização da família (acompanhando a privatização da
propriedade e da apropriação do produto do trabalho) prossegue. A família
é conjugal, a casa se reparte em cômodos definidos, separando os lugares
comuns e os privativos, os dos donos e os dos servidores, os quartos dos
pais e dos filhos, mas a separação definitiva só se completará como
separação por idade e por sexo, no século XIX.
Nas classes dominantes, com o aparecimento dos hábitos noturnos
(bailes, festas profanas, recepções nos chamados Salões) surgem alguns
fatos novos: a grande sala de jantar, adornada com quadros profanos
(caçadas, guerras) ao lado da imagem da Sagrada Família; o salão de
festas, onde nasce a cortesia amorosa ou o amor galante (jogos, regras,
palavras
131
com que os homens cortejam as mulheres e estas seduzem os homens,
aprendendo técnicas para isto, como, por exemplo, a arte de usar o leque
que, conforme a cor, o tamanho, a velocidade e a altura do abano, aberto,
fechado, é uma verdadeira linguagem sexual, as mulheres exprimindo,
pelo artifício galante, seus desejos); e o dormitório dos donos da casa,
onde o móvel principal (pelo tamanho, pelos adornos e pela riqueza) é a
cama, onde visitas são recebidas para conversas, cantos, leitura de
poemas, de onde partem as ordens, cercada de visitantes, amigos e
servidores (na corte dos reis da França, era uma honra poder assistir as
relações sexuais do rei, ajudálo a despir-se e a vestir-se, prepará-lo para
defecar e urinar).
Mas, o aburguesamento da sociedade, condenando as depravações da
nobreza (sobretudo a católica quando vista pela burguesia puritana),
começa a valorizar o pudor, a decência, a limpeza e o isolamento ou
privacidade. Em vez do Salão galante, surge a separação da sala das
mulheres e dos homens, que, em comum, haviam participado de um
jantar ou que, em comum, dançavam nos bailes, mas que tinham espaços
reservados para as conversas íntimas. O quarto do casal se fecha,
recolhido, secreto e respeitado como um templo inviolável: só os
cônjuges, a partir do século XIX, o freqüentam, os servidores aí entrando
apenas para a limpeza e na ausência do casal, os únicos a terem trânsito
mais livre no santuário sendo o médico e o padre confessor ou o pastor.
Os trajes de dormir se multiplicam: além da camisola, o roupão e a toca,
escondendo cada vez mais os corpos conjugais, mas também os dos
irmãos e servidores.
Surge um novo cômodo: o quarto dos bebês e crianças novinhas, com
suas amas (é na nursery (quarto do bebê) que Peter Pan virá buscar
Wendy e seus irmãozinhos). O banheiro com portas. A nítida separação
entre ”área de serviço” e ”área social”, pois a partir do momento em que
o sangue nobre, as cerimônias de vassalagem e de servidão não existirem
mais, será preciso marcar a diferença social com outros sinais visíveis. Se
a nobreza não receava a mistura no interior da casa, pois as regras
hierárquicas eram suficientes, em contrapartida a burguesia, para a qual
todo mundo, em princípio, é igual, precisa da arquitetura para dizer que
há os desiguais. Sala de jantar e de festas ficam distantes dos quartos. Os
maridos possuem o escritório, onde se fecham à chave.
132
As esposas possuem o boudoir, antigo lugar de recepção dos amantes,
transformado em sala de costura, leitura e música.
Muda o vestuário. O puritanismo, voltando ao ”templo do Espírito Santo” e
ao elogio da modéstia contra a ostentação da nobreza, escolhe o preto
para os homens, inclui a gravata, as luvas e o chapéu obrigatórios.
Escolhe tons claros e pastel para as mulheres, luvas, meias e chapéus
obrigatórios, grande quantidade de saias e anáguas, achatamento do
busto.
Mas, enriquecida e satisfeita consigo mesma, começará a transgredir: nos
bailes, os decotes e os braços nus, e o escândalo dos escândalos, a valsa,
o par enlaçado. Quantos romances românticos não giram em torno da
paixão e do sexo desacontentado pela valsa? E não é pela visão fugidia de
um tornozelo que se apaixona o herói de A Pata da Gazela, de Alencar?
Estão dadas as condições para que Freud descubra o Édipo como
complexo nuclear.
A partir do século XVIII, começa a idéia de infância propriamente dita, sua
melhor expressão sendo o livro do filósofo Rousseau, Emílio, ou da
Educação. Não que antes não houvesse preocupação com as crianças e
sua educação — os confessores, de um lado, os livros do filósofo
humanista, Erasmo de Roterdã, de outro lado, provam essa preocupação.
Porém, somente com Rousseau há diferenciação das idades e do que é
próprio a cada uma; diferenciação dos sexos e do que é próprio a cada
um; preparação do menino para as responsabilidades sociais, a primeira e
mais importante sendo o casamento e a paternidade (no livro,Rousseau
considera terminada a educação de seu discípulo quando este anuncia
que será pai); preparação da menina também para o casamento e para a
maternidade, instrução para que seja firme e modesta, submissa, mas
orientadora do marido em tudo quanto se refira à sensibilidade.
Elabora-se a imagem romântica da família idílica, refúgio seguro contra
um mundo hostil ou depravado. Prepara-se a fidelidade feminina:
obediência ao pai e lealdade absoluta ao marido. Começa-se a morrer de
amor. Exemplo: o romance A Condessa Clèves, a heroína morta de amor,
sem sucumbir à tentação da traição. Os romances de amor impossível:
Eurico, oPresbítero, de Alexandre Herculano, e a obra-prima do gênero, o
Werther, de Goethe. A preservação do casamento
133
mesmo quando a natureza foi traída pela sociedade que não permitiu, a
tempo, o encontro dos que deviam naturalmente se amar, fazendo os
amorosos, destinados naturalmente um ao outro, renunciarem ao amor,
transferi-lo para o que possam, sem sexo, fazer em comum e aceitar a
morte como solução: As Afinidades Eletivas, de Goethe.
E o desmoronamento do belo edifício burguês, afirmado e negado: À
Procura do Tempo Perdido, de Proust. O devassamento da relação entre
sexo e capital, relação que dirige, como verdadeiro destino, os seres
humanos na sociedade burguesa: A Comédia Humana, de Balzac A relação
subterrânea entre sexo e poder: Memórias Póstumas de Braz Cubas, de
Machado de Assis.
Do século XVI ao XIX, a família enfrenta uma ambigüidade: o elogio da
prole numerosa (prova da bênção divina) e, no caso da classe dominante,
a fragmentação do patrimônio. A primeira solução encontrada é a herança
ficar com o primogênito, os filhos restantes procurando uma rica
primogênita ou as benesses da vida religiosa.
Essa ambigüidade acarretava também a prática dos anticoncepcionais,
condenada pela Igreja. A solução foi dupla: interrupção das relações
sexuais após a obtenção da prole certa. Para os maridos, as prostitutas.
Para as esposas, a abstinência. Em segundo lugar, retardamento do
casamento (facilitado pela obrigatoriedade feminina da virgindade e pelo
elogio da castidade masculina) e as racionalizações necessárias, além
dessas duas: imposição da responsabilidade aos meninos (casar-se
depende, primeiro, de assegurar os meios para o sustento da família,
portanto, da profissionalização ou da participação nos negócios paternos,
para o futuro herdeiro); e a compensação cerimonial para as meninas (os
prazeres do namoro prolongado, primeiros encontros na presença dos
pais, depois a sós, depois o noivado e a preparação do enxoval e, enfim,
as núpcias). Em suma: combinação de repressão negativa e repressão
positiva.
Esses recursos foram ainda mais estimulados quando o Código
Napoleônico, que se converteria em modelo dos códigos do mundo
burguês, retirou os direitos do primogênito, a herança devendo ser
repartida entre todos os filhos.
Em contrapartida, nas classes populares, a interdição religiosa dos
anticoncepcionais favoreceu à classe dominante:
134
o poder consolador-ameaçador da religião sobre os pobres levava à prole
numerosa. Surge um proletariado imenso, mãode-obra barata no
mercado, exército industrial de reserva e imigrantes para as Américas. A
repressão positiva foi de grande eficácia: as classes populares se
convenceram de que os filhos, bênção divina, eram também sua riqueza
(verdade parcial e problemática; verdade, porque o aumento da classe
poderia levá-la a lutas sociais e políticas; verdade problemática porque a
pobreza limitava o poder de barganha pelo próprio número).
A regulamentação da família pelo Estado se faz por meio do casamento
civil (o contrato de casamento e não mais o sacramento) e sua proteção
se faz pelos Código Civil e Penal. Sua manutenção é garantida também
por meio da Escola Pública, onde as crianças passam a compreender que
a família é a célula-mater da sociedade e do Estado, ficando na sombra
que era resultado de uma transação social (um contrato) e que se
diferenciava, segundo as classes.
É nessa qualidade, dissimulada pela legalidade e pela religião, que passa a
ser definida como ”base da sociedade e do Estado”, pois pensar a
sociedade em termos de conjuntos de famílias é ocultar que a base da
sociedade e do Estado são classes sociais antagônicas. A definição da
família como realidade sagrada (pela Igreja), jurídica (pelo Estado), moral
(pela ideologia) é o que a transforma na ”fábrica de ideologia”, de que
falava Reich.
Ora, a família é organizada por relações de autoridade, de papéis
distribuídos por sexo e idade, de deveres, obrigações e direitos, definidos
tanto pelo sacramento do matrimônio quanto pelo casamento civil. É
nesse contexto que a família realizará a repressão sexual, sobre a qual
fizemos menção na abertura deste capítulo e no início deste tópico, isto é,
pelo vínculo entre sexualidade virtuosa e procriação e sexualidade viciosa
e não-procriação.
Consolidam-se as imagens sexuais-sociais da mulher como mãe e do
homem como pai. Consolidação que se realiza tanto pela repressão
negativa (as proibições do sexo não-procriativo, o vício) quanto pela
positiva. Nesta, a mulher é construída como um ser frágil, sensível e
dependente, numa curiosa inversão dos valores desses atributos. Vimos
que tais atributos eram os responsáveis pela excessiva sensualidade
135
feminina e por sua transformação em feiticeira, mal maléfico. Agora, esses
mesmos atributos são valores positivos, provas da inocência e bondade
naturais da mulher, cuja preservação só pode ser conseguida pela
maternidade. Graças à construção de uma figura assexuada, os valores
negativos se convertem em positivos. Por outro lado, como interessa
conservar as mulheres fora da força de trabalho e da competição pela
herança paterna, há uma verdadeira naturalização do feminino: tudo, na
mulher, vem da natureza e é por natureza que está destinada a ser mãe.
Seu espaço é a casa.
A figura masculina, em contrapartida, encontra-se inteiramente do lado da
Cultura. Afora a virilidade, que é um dado natural, os demais atributos
masculinos são sociais: responsabilidade, autoridade, austeridade.
Provedor da casa, seu espaço próprio é o público: o mercado e a política.
Está constituído nosso cotidiano indubitável. Não o sentimos, a não ser em
casos excepcionais, como violento ou repressivo. Talvez, então, para
alcançarmos sua violência simbólica, valha a pena uma referência à
família nazi-fascista (estudada por Reich e pelos filósofos alemães
Horkheimer e Adorno), onde os traços suaves de nosso cotidiano ganham
as cores fortes e os traços nítidos do real.
A família tradicional, seja ela burguesa ou trabalhadora, realiza a
socialização de seus membros através da figura paterna que se situa
como mediadora entre a família e a sociedade (através do trabalho) e
entre ela e o Estado (através do casamento civil). No nazismo, esse papel
será dado à criança e ao adolescente.
O culto nazista da juventude, da militância e da Pátria, ao mesmo tempo
em que dá um lugar privilegiado à criança e aos jovens, também substitui
a referência à família pela referência ao Estado, na figura de seu dirigente
máximo, o Condutor (Führer). Uma das provas dessa substituição é o
papel que passam a ter a Educação Moral e Cívica e o estímulo aos filhos
para que denunciem os pais, se estes não estiverem em conformidade
com o civismo. Essa delação é facilitada porque a relação amorosa
fundamental é dirigida ao Condutor, ficando aos pais a relação do ódio e
do ressentimento. Em suma, a criança passa a ter um novo e grande Pai.
Dado o gigantismo dessa figura, os medos e angústias das crianças
aumentam numa intensidade sem precedentes, a compensação
136
para isso sendo a irrestrita devoção ao Grande Pai, o que se realiza
através da militância e da vigilância sobre a família.
Só em aparência, porém, a família foi desfeita. Em lugar de uma
politização da família, que a dissolveria no Estado, ocorre o contrário: o
Estado é que se torna uma grande família. Há uma familização da política.
Nela, os dois aspectos sexualmente mais significativos são: o
nacionalismo, como culto à Mãe Pátria, e o incentivo às mulheres jovens e
sadias à procriação. O detalhe, porém, e nele está o centro repressivo, é
que o parceiro procriador torna-se irrelevante: a mulher está dando filhos
na qualidade de parte da Mãe Pátria cujo esposo verdadeiro é o Condutor.
Em espírito, sua relação sexual se realiza com o Führer.
Tem lugar um culto perverso do corpo. Através da Educação Física e da
purificação do sangue, devem ser produzidos (e a palavra é esta:
produzidos) corpos perfeitos em beleza. O modelo do corpo masculino é o
do jovem ariano, guerreiro e viril. O modelo do corpo feminino é o da
jovem ariana fértil. Em nome da eugenia racial, não se matam apenas
judeus, poloneses, tchecos ou russos. Esterilizam-se meninos e meninas
que não realizam o padrão corporal esteticamente definido. Quanto aos
disformes (física ou mentalmente), são eliminados ao nascer.
Ao lado desse mundo jovem, viril e fértil, subsiste um outro que é pilar e
condição do nazismo: a família pequenoburguesa (e nela, muitos traços da
família brasileira, sobretudo nos últimos anos, aparecem).
A família pequeno-burguesa é aquela que, no capitalismo, é a menos
importante: não tem poder econômico nem político; não é indispensável
como força de trabalho criadora do capital. Sua falta de importância a
transforma numa entidade repositório de dois afetos nucleares: o ódio à
burguesia e o horror ao proletariado. É ela que vive à cata da corrupção e
imoralidade dos burgueses, e da depravação e revolta proletárias. Na
sociedade capitalista, ela se define a si mesma como ”repositório das
tradições” (normalmente é ela que sai marchando pelas ruas em defesa
da Família, da Tradição, de Deus, da Propriedade e contra a devassidão
sexual). Como ”repositório das tradições” é conservadora, moralista,
contra-revolucionária, repressiva e farejadora dos vícios, particularmente
os sexuais, destruidores dos bons costumes e da família.
137
No nazismo, ela é elevada à condição de ”sadia influência moral
conservadora”.
São seus valores: a honra (tanto assim que está pronta a processar na
justiça qualquer coisa que lhe pareça ofensa à honra) e o dever (tanto
assim que considera o trabalho um valor em si e por si, já que de seu
trabalho não sai nada mesmo). Seus grandes inimigos: a luxúria, o prazer
e a impureza (os judeus, os loucos, os negros, os proletários, as putas, as
bichas, as lésbicas isto é, todos os que para ela são a imundície e a
escória). Suas armas: a inibição sexual, o culto da autoridade paterna e da
fertilidade materna. Em sua homenagem, o nazismo acrescentou uma
festa ao calendário: o Dia das Mães. Suas devoções: o Estado, a Nação, a
Raça e a Natureza.
A importância dessa família está no fato de que ela, se precisa da política
nazista para aparecer na cena pública, disso não precisa para existir como
força ideológica (uma ditadura lhe basta). A união sacrossanta que
estabelece entre família, nação, estado, tradição e moral torna sua
capacidade sexualmente repressiva quase indestrutível.
Todavia, ao mesmo tempo em que a família ”pequenoburguesa” (como
tipo ideológico, mais do que como realidade sociológica palpável) persiste,
a estrutura da família, cuja constituição acompanhamos sumariamente
neste tópico, parece estar em vias de desaparição, pelo menos nos países
de capitalismo avançado.
Em primeiro lugar, a automação do processo de trabalho eliminou a
necessidade de grande controle da sexualidade operária com fins
procriativos. É o momento em que se iniciam as campanhas de controle
da natalidade (não que esta prática não tenha sido proposta antes. Ela foi
defendida, no século XIX, por Malthus. Mas possuía outra razão: dada a
expansão dos movimentos políticos e sociais proletários, a classe
trabalhadora, na qualidade de ”massa”, passou a ser considerada perigosa
e procurava-se diminuí-la numericamente).
Em segundo lugar, a forma oligopolista do capitalismo e a nova forma da
gestão e administração dos capitais já não dependem da transmissão e
conservação do patrimônio através da família burguesa. Também aqui
aparece a idéia de
138
controle da natalidade, mas sob a forma da liberação sexual e do direito
ao prazer, sem obrigação procriativa.
Em terceiro lugar, o surgimento do chamado Estado do Bem-Estar, isto é,
o Estado que dá grande lugar à política social (alimentação, transporte,
saúde, educação, aposentadoria, saneamento) como forma de controle
estatal do capital e de barganha nos conflitos sociais e políticos, faz com
que o Estado e a sociedade se encarreguem não só da sobrevivência dos
velhos (para os quais, anteriormente, a família era essencial), mas
também das crianças e dos jovens. Recebem fora não só os
conhecimentos, via escola, mas também treino psicológico, físico e social
dado por especialistas: médicos, psiquiatras, psicólogos, assistentes
sociais, conselheiros sexuais e matrimoniais. As crianças ”difíceis” ou
abandonadas são encaminhadas para os reformatórios. Os loucos, para o
hospício. Os delinqüentes, para a cadeia.
O obstetra se encarrega do nascimento; o pediatra, da saúde e da
alimentação; o professor, da inteligência e do treino profissional; o
supermercado, da alimentação; e os meios de comunicação de massa, da
imaginação. Os antigos papéis, funções e serviços de pais, mães, amas,
tias, tios, avôs já não são necessários.
O que assistimos, portanto, é o fim da antiga família. A que agora existe
se define fundamentalmente como unidade de consumo (pois tudo é feito
fora dela e se passa fora dela). Ora, ao que parece, em lugar dessa
dissolução promover uma diminuição da repressão sexual, visto que esta
ligava-se à finalidade procriativa e à fixação de papéis sexuais-sociais,
tudo indica estar havendo uma reformulação invisível e difusa de novas
formas repressivas — um pouco à maneira da reacomodação da terra,
após um terremoto. Se a moralização do sexo passava por sua definição
como vício e virtude, ousamos avançar aqui a seguinte hipótese: a idéia
de vício sumiu (porque o sexo vai virar doença), isto é, sumiu pelo menos
para os que não pertencem à grande unidade ideológica que designamos
aqui como ”família pequenoburguesa”. Mas restou a idéia de virtude. E
cremos que de modo muito peculiar.
Se os especialistas passaram a se encarregar das antigas atribuições que
definiam a família, os que decidem constituir
139
família sabem que, de duas uma: ou seus problemas serão resolvidos por
especialistas (a família vive os conflitos, mas os especialistas a ajudam a
compreendê-los e a resolvê-los), ou serão capazes de não ter problemas. É
esta idéia que aqui designamos como permanência da virtude.
Sexualmente ela aparece no desejo do orgasmo perfeito e contínuo; na
elaboração da mãe ideal (não tanto a ”boa” mãe, mas bela mãe, jovem
sadia, compreensiva, grávida em plena atividade esportiva e profissional,
e que é bela por dois motivos: porque decidiu ter o filho e porque escolheu
o tempo certo do nascimento); na elaboração do pai ideal (também belo,
mas sobretudo bom: jovem, compreensivo, com tempo e alegria para os
filhos); na elaboração da criança ideal (para isto, é suficiente meia hora de
anúncio de televisão e saberemos o que é a bela-boa criança). Ora, por
mais críticos que sejamos da psicanálise, uma coisa ela nos ensinou: a
fantasia dos ideais do ego pode ser uma das fantasias mais repressivas e
autodestrutivas.
Enfim, outro aspecto que não parece ser irrelevante, diz respeito à nova
moral sexual dos jovens dos países desenvolvidos e dos grandes centros
urbanos dos países subdesenvolvidos (sobre o culto da adolescência como
forma de repressão sexual, falaremos depois, quando nos referirmos aos
meios de comunicação).
Os jovens parecem comportar-se invertendo ou negando ponto por ponto
a moral sexual tradicional: recusam o casamento religioso e civil para se
constituírem como casal; recusam o casamento como relação indissolúvel
e permanente; negam a obrigatoriedade da procriação como finalidade da
vida em comum, os filhos sendo decisão e livre escolha do casal; negam a
obrigatoriedade da fidelidade conjugal e a monogamia; recusam a
profissionalização estável como precondição para a vida em comum;
recusam a dependência com relação às suas famílias de origem; negam a
obrigatoriedade de possuir ou alugar uma casa com a disposição
arquitetônica convencional, inventando sua própria morada; recusam a
divisão sexual dos papéis, dividindo tarefas domésticas e tendo vida
profissional independente; valorizam a atração sexual ardente e a ternura,
a amizade que os faz confidentes, sem que pais e mães tenham a antiga
função de ouvir queixas ou dar conselhos; valorizam a estabilidade da
relação, mesmo
140
que não seja permanente, o casal se defendendo do que um estudioso
chamou de ”nomadismo sexual obrigatório” cujos paradigmas seriam: a
massa (palavra de ordem: ”vamos circular, pessoal”) e a fila de espera
(palavra de ordem: ”o seguinte, por favor”).
As inovações são imensas e imensas as dificuldades, situações novas
ainda não tendo formas fixas e sinais de solução, em caso de conflitos. Até
que ponto essa criação original será capaz de diminuir a repressão sexual
em lugar de substituí-la por outra, invisível, não saberíamos dizer.
Que a ideologia da adolescência saudável, livre e feliz, de um lado, e a do
elogio do trabalho santificante (hoje em dia se diz: espontâneo) poderão
pesar sobre a inovação e determinar nova repressão sexual, talvez
insidiosa porque revestida com a capa da liberação, é uma hipótese que
não descartaríamos. Nós a deixamos aqui, caso o leitor queira refletir
sobre ela ou tenha nisso algum interesse. Mesmo porque nossas
considerações, além de poderem estar completamente equivocadas,
podem ser muito tontas.
Se, na versão religiosa (o sacramento), a cerimônia do casamento tem a
dupla finalidade de garantir, por um lado, a circunscrição da sexualidade
permitida e, por outro, a subordinação da esposa ao marido, na versão
civil (contrato), essa dupla finalidade não deveria aparecer. Mas aparece.
Na fórmula civil-legal, o marido assume o compromisso de responsabilizar-
se pela mulher e pelos filhos, protegê-los e sustentá-los, enquanto a
esposa assume o compromisso de respeitar a autoridade do marido,
cuidar dele e dos filhos e prover os serviços necessários à manutenção da
casa (seja com sèu próprio trabalho, seja com o de pessoas pagas para
isto). Ora, num contrato civil esses compromissos são descabidos.
De fato, a principal característica da idéia de contrato é a de que uma
relação só é contratual se for estabelecida entre duas ou mais pessoas
livres e iguais. Sem a igualdade e sem a liberdade, não há contrato, mas
hierarquia, subordinação, mando, desigualdade e dominação.
Se examinarmos, portanto, o contrato de casamento poderemos fazer três
observações: em primeiro lugar, estabelecendo
141
a subordinação da esposa ao marido, o casamento não é um contrato
legítimo, ainda que seja legal; em segundo lugar, o Estado reproduz na
forma civil a perspectiva religiosa, em vez de romper com ela; em terceiro
lugar, a fórmula civil inclui no contrato os filhos, exatamente como na
fórmula religiosa do ”crescei e multiplicai-vos”, embora dito de outra
maneira (o marido será pai responsável e a esposa será mãe cuidadosa).
Se procurarmos compreender essa terceira cláusula do contrato, veremos
que sua finalidade é simples: a lei estabelece que casamento é relação
duradoura, socialmente reconhecida apenas para a ligação entre um
homem e uma mulher, não podendo haver, legalmente, casamento entre
homens ou entre mulheres. Essas ligações, sendo ilegais, são crime (e não
apenas pecado ou vício). A fórmula civil, tão simples e óbvia para nós,
legaliza a repressão sexual.
Se examinarmos o segundo aspecto — o Estado repetindo a religião —,
notaremos que não só o Estado se apropria do que a religião criara, isto é,
o casamento como fato público, mas também torna pública a família.
Faz parte de nossa imaginação social a crença na família como intimidade,
privacidade, refúgio contra o mundo hostil, domesticidade que não pode
ser violada (senão quando um regime político se torna violento e, para
proteger seus interesses, invade casas). Basta, porém, que nos
lembremos de que o Estado regula e controla o casamento e através dele
a família — leis sobre aborto, adultério, divórcio, tutela de filhos, herança,
pensão familiar, responsabilidades paterna e materna; registro de
nascimento, de casamento, de maioridade, de eleitor, de serviço militar,
de aposentadoria, de trabalho e atestado de óbito —, para perdermos
nossas ilusões. A família não é apenas instituição social, mas também
política. Ora, como através dela o Estado regula a sexualidade, o sexo é,
também, uma questão política. Basta nos lembrarmos de que, em muitos
países, as propostas de controle da natalidade são feitas pelo Estado, ou
são por ele regulamentadas.
É preciso, porém, que examinemos a primeira observação que fizemos
sobre a cerimônia civil para compreendermos esses dois aspectos que
acabamos de analisar. Isto é, precisamos examinar o que é um contrato
de casamento que fere a
142
legitimidade da idéia de contrato, ao instaurar desigualdade e hierarquia
entre os contratantes, supostos livres e iguais.
Quando iniciamos este tópico, dissemos que seria muito difícil separar
família e trabalho e demos um exemplo dessa dificuldade pela referência
ao par óikos-óikonomia e à idéia de Economia Política. Ora, é exatamente
com o advento da Economia Política (isto é, da economia capitalista de
mercado) que surge a idéia de que a sociedade é constituída por
conjuntos de contratos — os contratos sociais —, entre os quais estão o
contrato de trabalho e o contrato de casamento.
Na perspectiva da Economia Política, a sociedade é constituída por
indivíduos independentes que a Natureza fez iguais e livres quanto aos
seus direitos {direito natural), ainda que física e intelectualmente esses
indivíduos sejam diferentes e mesmo desiguais. Para que essas diferenças
e desigualdades não fossem um perigo para a liberdade natural dos
indivíduos, a sociedade criou um direito {direito civil) que, por meio de
leis, preserva a igualdade e liberdade que todos temos ”por natureza”.
Como somos todos livres e iguais, a única relação legítima e legal que
pode ser reconhecida pelo direito civil é a relação contratual.
No contrato de trabalho, duas pessoas livres e iguais combinam que uma
delas prestará um serviço e que a outra pagará por ele. O contrato regula
a compra e venda do trabalho, estipulando suas condições.
O contrato é contrato entre pessoas e já vimos que, para o direito civil,
pessoa é o proprietário privado de alguma coisa: de terras, de objetos, de
fábricas, de capacidades corporais e intelectuais. As pessoas são todas
iguais porque todas são, pelo direito natural e pelo direito civil,
proprietárias de seu corpo. É por isso que pode haver contrato de
trabalho, pois a relação se estabelece entre dois proprietários: o
proprietário do corpo ou de sua força de trabalho e o proprietário dos
meios para pagar o trabalho vendido.
A idéia de contrato entre pessoas (proprietários), iguais e livres pelo
direito natural e garantidas em sua igualdade e liberdade pelas leis do
direito civil, forma a base de uma teoria política nascida com a burguesia.
Chama-se liberalismo.
Do ponto de vista do liberalismo, portanto, o contrato de casamento e o
contrato de trabalho possuem a mesma estrutura, isto é, são contratos
sociais. Observemos, porém, que no
143
caso do contrato de casamento, a igualdade e liberdade dos contratantes
é rompida pelo próprio contrato e que, além disso, ele não considera livres
homens e mulheres que queiram casar-se entre si.
Se examinarmos o contrato de trabalho, notaremos que uma
transformação semelhante também ocorre, isto é, uma das partes se
subordina à outra.
Em geral, quando se aponta essa peculiaridade dos contratos que acabam
destruindo a situação inicial que os tornava legalmente possíveis,
costuma-se encontrar a seguinte resposta: o contrato se conserva na
legalidade e na legitimidade porque os contratantes não foram obrigados
a fazer o contrato, se o fizeram, sabiam o que estavam fazendo,
conheciam as cláusulas de compromissos e foi livremente que as
aceitaram. Do mesmo modo que a Igreja havia posto como condição do
sacramento do matrimônio o livre consentimento (a ponto de considerar
que embora a cerimônia seja oficiada por um sacerdote, ela é realmente
realizada pelos noivos), também a teoria contratualista considera que o
livre consentimento dos contratantes aos termos do contrato os
responsabiliza pelos compromissos assumidos.
Mas, neste caso, estamos diante de um paradoxo: uma pessoa, livre e
igual a outra, consente em tornar-se subordinada a essa outra, perder a
igualdade e a liberdade. Não é estranho isso? Em geral, costuma-se dizer
que as compensações trazidas por essa concessão são tão grandes que as
pessoas a fazem para se beneficiar. A mulher não ganha proteção? Aquele
que vende o trabalho não tem a certeza de que receberá um salário, em
vez de depender das circunstâncias para vender algo que tenha fabricado
ou plantado?
Mas, essa resposta cria um problema novo: no caso da mulher, se era
igual e livre, por que, de repente, precisa de proteção? No caso do que
vende trabalho, se era livre e igual, por que agora depende de um outro
que pode querer ou não comprar seu trabalho? Em outras palavras: será
que os contratantes, no momento em que vão firmar um contrato, são
mesmo livres e iguais?
A mulher que vai casar-se não brotou da Natureza, não estava livre e
contente pelos bosques em flor quando deu de cara com um homem e
com ele resolveu firmar um contrato de casamento. Ela é filha de alguém,
pertence a uma família,
144
a uma certa condição social e, como filha, é dependente ou subordinada
ao pai ou ao tutor. Chega ao casamento, portanto, sem possuir a tal
liberdade estipulada pelo contrato. O homem que vai-se casar também
não brotou da Natureza, não estava feliz da vida comendo frutos silvestres
ou pescando num ribeirão quando deu de cara com uma mulher e decidiu
casar-se com ela. Visto que o contrato de casamento estipula que deve
ser responsável pela esposa e pelos filhos, devendo protegê-los e
sustentá-los, então, para preencher essas cláusulas, ele deve ter de onde
tirar os recursos. Se vier de uma família rica, seus recursos vêm da
riqueza familiar; se vier de uma família pobre, os recursos vêm da venda
de seu trabalho. Ora, se a família rica decidir não ajudar o filho, este
deverá, como o pobre, vender trabalho. Neste caso, não são livres como
estipula o contrato, ou porque dependem dos recursos que dependem da
família, ou porque dependem diretamente de um outro contrato, o de
trabalho, no qual já uma parte subordina-se à outra.
Para a mulher (sempre supondo que ela não trabalhe, evidentemente), o
contrato de casamento pressupõe um contrato anterior: o que criou sua
própria família, no contrato de seu pai e de sua mãe. Para o homem, além
de ser pressuposto um contrato de casamento anterior (o de sua família),
também é pressuposto o contrato de trabalho no qual, se for rico,
subordina outro, e se for pobre, se subordina a outro.
Em resumo: os contratos sempre pressupõem contratos anteriores e,
portanto, vida social, desigualdades, dependências, subordinações, etc.
Para resolver esse enigma (quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?), a
teoria liberal contratualista possui uma resposta e nela vamos encontrar a
origem da idéia de pessoa, o lugar central aí ocupado pelo trabalho, e o
próprio contrato.
- Vamos acompanhar essa resposta em dois níveis: no do senso comum (o
que ouvimos todo dia em qualquer lugar) e no da elaboração teórica mais
sofisticada e racional.
O senso comum pensa da seguinte maneira. Estavam todos os seres
humanos livres e iguais desfrutando os recursos oferecidos pela Natureza.
Alguns, mais inteligentes, mais responsáveis, mais previdentes
perceberam que poderiam desfrutar melhor das coisas se, em vez de
depender de encontrá-las (num inverno rigoroso, numa seca rigorosa, nas
enchentes
145
não se encontra coisa alguma) resolvessem guardar as que não eram
perecíveis e também cultivar a terra, criar animais, fabricar instrumentos
para trabalhar. Outros, perdulários, irresponsáveis, pouco inteligentes,
nada fizeram, ficando sempre à espera da bondade da Natureza. Como se
vê, o senso comum adora a fábula de A Cigarra e a Formiga (que foi
inventada por um escritor francês, chamado La Fontaine, justamente na
época em que apareciam a Economia Política e as teorias contratualistas)
Prossegue o senso comum. Um belo dia, a Natureza não deu os frutos nem
os animais aos perdulários e irresponsáveis. Estes, para não morrer, só
tiveram uma saída: vender a única coisa que tinham — seus braços e
músculos — aos que haviam trabalhado, em troca de casa e comida, ou
em troca de salário. Porém, como os ricos não eram perversos e não
queriam ter escravos (como acontecia na Idade Média), criaram o contrato
de trabalho, defendendo a igualdade e liberdade de todos.
Os seres humanos são cheios de paixões. Algumas são boas (amor,
sentimentos de honra e do dever, poupança, moderação) e outras são
más (ódio, preguiça, inveja). Os bons decidiram, então, educar os maus e
criaram leis proibindo a preguiça e a inveja. A preguiça faz o perdulário
não querer trabalhar e desejar viver às custas dos outros; a inveja faz os
que não trabalharam desejarem roubar o fruto do trabalho alheio. O
melhor meio para não haver miseráveis nem ladrões é fazer leis proibindo
a preguiça e a inveja e capazes de forçar todo mundo à virtude do
trabalho. Os que não respeitarem essas leis serão punidos com a morte ou
a prisão.
Desse modo, ficamos sabendo como surgiram ricos e pobres, os contratos
de trabalho, as leis punindo vagabundagem e roubo, e como o trabalho se
tornou virtude suprema, graças à qual os pobres também podem ficar
ricos, se souberem ter as mesmas qualidades que estes (sobretudo o
espírito de poupança).
O senso comum também nos explica por que os ricos ficam mais ricos e a
maioria dos pobres fica mais pobre, e por que os pobres não mudam tal
situação.
Os ricos ficam cada vez mais ricos porque com o fruto do trabalho que
compraram, além de pagarem o trabalho alheio, ”vestem o lucro que
conseguiram ao vender os produtos do
146
trabalho. Podem investir tanto poupando o dinheiro quanto comprando
mais terras, montando oficinas e fábricas e comprando mais trabalho para
o cultivo das terras e o trabalho nas oficinas e fábricas. Os pobres, como
são preguiçosos, perdulários e irresponsáveis, não guardam o salário:
gastam em bebidas, jogos e sobretudo com mulheres. Em particular, como
são preguiçosos, e o pecado capital da preguiça estimula o pecado capital
da luxúria, os pobres gostam muito de sexo. É por isso que quando se
casam não param de ter filhos e, tendo uma prole numerosa, gastam todo
o dinheiro para sustentá-la, ficando cada vez mais pobres.
Por que não mudam isso? Porque são ignorantes, não têm interesse em
melhorar de vida, não imitam o bom exemplo dos ricos e, sobretudo,
porque ficaram muito crédulos nas coisas ditas pela Igreja Católica, como
por exemplo, que o Reino de Deus foi feito para receber os pobres. Ficam
esperando a felicidade no outro mundo, em vez de lutarem neste. E os
ricos também acabam sendo responsáveis. Como são bons, fazem obras
de caridade e de filantropia, e os pobres, satisfeitos, ficam incorrigíveis.
Pois, até não há países onde os patrões pagam aos empregados um
salário a mais do que o necessário (o)?
Todavia, embora bons, os ricos não são burros. Sabem que a inveja leva
ao roubo e por isso criaram o castigo para os ladrões. Sabem também que
a preguiça é alimentada pelo sexo e que o melhor meio para diminuir a
falta de continência sexual é forçar o corpo ao máximo no trabalho, pois
só assim não haverá muita energia disponível para gastar com sexo. Por
isso, os contratos de trabalho, no início da sociedade contratual,
estipulavam até mais de 14 horas de trabalho diário, incluindo o domingo.
E sem férias, pois nas férias os vícios voltam — ”mente desocupada
oficina do diabo”.
O senso comum, portanto, não está nem um pouco interessado em
estudar as condições históricas nas quais surgiram os contratos de
trabalho, isto é, em que condições se encontrava a sociedade européia
que permitiram a alguns a compra do trabalho alheio e a outros só restou
vender a força de trabalho.
Já a explicação teórica, lógica, sistemática e racional percorre um outro
caminho. Assim, por exemplo, o filósofo inglês Locke, num livro intitulado
Segundo Tratado Sobre o
147
Governo, além de considerar que, pelo direito natural, somos todos livres
e iguais e proprietários de nosso corpo, dele podendo dispor segundo
nossa vontade, também se preocupa em fundamentar a legalidade e
legitimidade da propriedade privada, da qual dependem os contratos de
trabalho.
Diz ele que, pelo direito natural, temos a posse legítima de tudo quanto
seja necessário para a sobrevivência de nosso corpo. Porém, indaga ele,
por que o fruto colhido e armazenado por alguém, o animal caçado e
cozido por alguém, o peixe pescado e preparado por alguém, que seriam
indispensáveis para a sobrevivência do corpo de qualquer pessoa, não
podem, legitimamente, ser tomados pela pessoa que não colheu o fruto,
não caçou o animal, não pescou o peixe? É que esses objetos foram
conseguidos pelo trabalho de alguém e nenhum outro tem o direito de se
apropriar dos frutos desse trabalho. O trabalho é a origem legítima e legal
da propriedade sobre terras, animais, objetos. Propriedade tanto mais
legal e tanto mais legítima quanto mais trabalho tiver sido necessário para
consegui-la. Quem cultiva um campo, tem o direito de cercá-lo e
apropriar-se privadamente das colheitas, podendo punir quem delas
desejar se apropriar. O mesmo com os rebanhos, as oficinas, o dinheiro no
comércio, etc.
Por outro lado, como é crime (pelo direito civil) apropriar-se dos produtos
do trabalho alheio, ninguém poderia apropriar-se dos produtos produzidos
por um outro trabalhador. Como, porém, o número de terras férteis é
limitado, o de animais procriadores também, e, depois de uma
propriedade ser cercada ninguém mais pode nela penetrar para tomar
objetos com que fabricar instrumentos de trabalho e obter matéria-prima
com que montar uma oficina, uma olaria, uma fábrica de calçados, e muito
menos para vender o que um outro cultivou, aqueles que não
conseguiram meios de sobrevivência (propriedades e instrumentos de
trabalho) são forçados a trabalhar para os que têm propriedades. Como,
então, impedir o crime de apropriar-se dos produtos do trabalho desses
trabalhadores? Por meio do contrato de trabalho qual o produto do
trabalho é apropriado por outrem porque pagou pela força de trabalho
usada para a produção.
Não é nossa intenção discutir se as teses do senso comum e as da filosofia
são verdadeiras ou falsas (não estamos discutindo o nascimento do
capitalismo). Nossas breves indicações
148
pretenderam apenas assinalar como o trabalho, numa sociedade sem
”escravos”, tornou-se valor, virtude e regra fundamentais. Pelo lado do
senso comum, como combate aos vícios da preguiça e do roubo. Pelo lado
da filosofia, como conceito indispensável para a teoria da legitimidade e
legalidade da propriedade privada.
Porém, qual a relação entre sexo e trabalho?
Quando nos referimos a Santo Agostinho, dissemos que ele havia
elaborado uma concepção profunda e enigmática a respeito da vontade
humana. Para ele, nossa vontade é livre e é essa liberdade que nos faz
pecar (o nosso livre-arbítrio acaba se transformando em servo-arbítrio).
Porém, essa mesma vontade, por ser a vontade de seres finitos,
pecadores e herdeiros do pecado original de Adão e Eva, não possui, por si
mesma, a força para nos salvar. A salvação depende de um dom
misterioso de Deus: a graça ou graça santificante. A perdição é nossa
obra; a salvação, obra divina.
Deus é justo. Por justiça, deveria condenar-nos, a todos, às penas do
inferno, pois a mancha do pecado original nos tornou para sempre
indignos. Deus é Pai misericordioso: não só envia o Filho para nos redimir
dos pecados, mas ainda escolhe alguns dentre nós para a salvação eterna,
imerecida. Por ser imerecida, não depende de nós. Façamos o que
fizermos, não conseguiremos a salvação: ela não depende de nossos atos
e de nossas obras, mas da decisão indecifrável da vontade divina. A
vontade divina indecifrável se chama: Divina Providência. A condenação
de uns e a salvação de outros, decreto eterno e insondável, se chama:
Predestinação. Esse conceito aparece em São Paulo quando diz que, nas
mãos de Deus, somos como barro nas mãos do oleiro que faz vasos para a
honra e para a desonra.
A concepção de Santo Agostinho nem sempre foi inteiramente aceita pela
Igreja, passando por modificações, alterações e até mesmo por recusas.
Mas jamais desapareceu e reaparecerá com força nova com a Reforma
Protestante.
As várias tendências protestantes irão interpretar de modos diferentes a
teoria da Predestinação, particularmente a questão de saber se podemos
ou não nos salvar pelas obras realizadas. Para alguns, a salvação não
depende das obras porque esta é decidida por Deus desde toda a
eternidade e supor que nossas obras possam mudar o decreto divino e
149
supor que o homem pode mais que Deus, o que é uma blasfêmia.
Para outros, Deus nos escolhe ou nos condena e nos oferece sinais dessa
decisão. Um desses sinais é a boa qualidade das obras que fazemos. As
obras não mudam o decreto: apenas o revelam. A prosperidade de quem
trabalha, a riqueza, por exemplo, é um desses sinais da eleição divina
(perspectiva que só poderia florescer no capitalismo, evidentemente).
Outros, por fim, combinam as idéias das duas tendências anteriores. Se a
perdição depende de nossa vontade, se Deus, no Livro Santo, disse o que
é o bem e o mal, desviar-se do mal é evitar a perdição, colocar-se em
estado de receber a salvação, se formos escolhidos. E o trabalho é um dos
meios mais eficazes para fugir da tentação e evitar os caminhos do mal.
A primeira posição prevalece no luteranismo inicial; a segunda, no
calvinismo; e a terceira, num ramo inglês do calvinismo, o puritanismo.
Nestas duas tendências, o trabalho e a prosperidade dele decorrente são
transformados naquilo que Weber denomina: a idéia protestante de
vocação (ser chamado por Deus).
Estudando obras de líderes religiosos do século XVII, especialmente a do
líder puritano inglês, Baxter, e a do líder quacre inglês, Barclay, o
sociólogo e historiador alemão, Max Weber, num livro intitulado A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo, elaborou o conceito de ideal de
vida ascética, como núcleo da ética protestante, e seu vínculo interno com
idéias e práticas do capitalismo. Weber fala num ”parentesco eletivo”,
numa afinidade interna, entre essa ética e a nova economia, constituindo
o universo burguês.
Ascese quer dizer: limpar-se, purificar-se por meio de exercícios físicos,
morais e espirituais que liberam a alma das impurezas e imundícies do
corpo, particularmente daquela que está na origem de todas as outras: o
sexo.
A vida ascética ou o ideal da vida ascética, postos como vocação cristã
(chamado divino e, portanto, eleição por Deus), colocarão em seu centro a
virtude do trabalho (os que trabalham formam o novo povo eleito por
Deus). O melhor exercício de purificação é trabalhar, trabalhar muito, sem
descanso, trabalhar até à exaustão. Por isso, a riqueza não é finalidade do
trabalho e os ricos devem continuar trabalhando,
150
como se fossem pobres. Porém, a condenação não recai sobre a riqueza
enquanto tal (como acontece nas ordens mendicantes católicas ou no
elogio da pobreza pelos Fratricelli de São Francisco de Assis), mas sobre o
gozo da riqueza, isto é, em fazer da riqueza pretexto para o descanso, o
lazer e o ócio. Somente o trabalho canta glórias e honras a Deus.
Escreve Weber: ”A perda de tempo, portanto, é o primeiro e principal de
todos os pecados”; trata-se do equivalente espiritual da idéia central de
Benjamin Franklin e do capitalismo americano, isto é, time is money,
tempo é dinheiro. E se o domingo existe, não é para o descanso, mas para
que o trabalho físico deixe um tempo para o trabalho espiritual de
adoração a Deus.
O trabalho é o grande purificador daquilo que o puritanismo chama de
vida suja. Nesta, o sexo é central e os puritanos defendem para todos os
seres humanos aquela disciplina e contenção que a Igreja Católica havia
reservado para vida monacal. Como a ética puritana é como se o mundo
todo virasse um imenso mosteiro. E as idéias sobre o casamento retomam
as dos Primeiros Padres da Igreja: freio, remédio e casto, após a
procriação.
O trabalho é a finalidade da vida e a vida em estado de graça é a vida
operosa. Lutando contra o catolicismo e contra o anglicanismo dos reis
ingleses, os puritanos condenavam as leis que instituíam os divertimentos
populares: os bailes, os esportes e as representações teatrais.
O esporte era condenado por ser lazer e por ser exibição corporal. Para ser
reconhecido pelo ideal ascético transformou-se em treino para aumentar a
eficiência do corpo no trabalho. Isto é, a idéia do trabalho como vocação
estará ligada estreitamente à de racionalidade ou racionalização: tudo
quanto é, em si mesmo, condenável, pode ser transformado em aceitável
se for racionalizado. Racionalizar alguma coisa significa: torná-la útil ao
trabalho.
O teatro era condenado por seu fundo erótico e corpóreo que não poderia
ser racionalizado de modo algum. A literatura, também condenada por ser
supérflua e ociosa, poderia ser racionalizada: os escritos edificantes e os
textos para melhoria do rendimento do trabalho.
A ostentação no vestuário, tanto por seu erotismo quanto pelo
exibicionismo, era condenada. A racionalização neste
151
caso, consistiu não apenas na sobriedade do vestir-se, mas num fato novo
que marcaria o capitalismo: a padronização. O mesmo ideal ou busca do
padrão valendo para a casa e os objetos de uso. A padronização tinha o
mérito de ser duas vezes racionalizadora: não só evitava o individualismo
erótico, mas a produção de objetos padronizados é muito mais eficiente e
rápida, um maior número de objetos passando a ser produzido num tempo
menor (”tempo é dinheiro”).
Por fim, a vocação, de um lado, e a racionalização, de outro, iriam dar as
duas configurações principais do trabalho no mundo capitalista. Se o
trabalho é vocação, todo homem deve desejar profissionalizar-se, pois a
profissão é uma vocação (mais tarde, quando a psicologia científica
substituísse a Bíblia, a vocação profissional, de chamado divino, iria
tornarse tendência psíquica controlável enquanto a escolha da profissão
certa, o atendimento à vocação, passaria a ser avaliado por testes
vocacionais; a vocação profissional acertada será não apenas meio de
realização individual, mas fornecimento racional de mão-de-obra
adequada ao mercado de trabalho).
Quanto à racionalização, imbricada na idéia de ”tempo é dinheiro”, seu
resultado será a divisão crescente do processo de trabalho, a
profissionalização como especialização.
Weber, no livro que mencionamos, refere-se à importância que alguns
pensadores, como Adam Smith, deram à especialização como
racionalização do trabalho: a especialização aumenta o rendimento de
cada trabalhador, a quantidade global da produção e da riqueza e a
qualidade dos produtos. Sob todos os aspectos, portanto, ela é útil e
desejável. Se, ainda por cima, for sentida como realização pessoal, como
cumprimento da vocação, então, pode ser considerada perfeita.
Se deixarmos, agora, a perspectiva weberiana, que nos colocou diante dos
primórdios da constituição do universo social, ético e econômico do
capitalismo, e nos voltarmos para a sociedade contemporânea, veremos
os resultados daquelas concepções dos Pais Fundadores da moral
burguesa.
Antes de mais nada, porém, é conveniente observarmos que a ética do
trabalho pelo trabalho é muito mais eficaz na repressão da sexualidade do
que a ética do casamento.
Em primeiro lugar, porque o casamento com todas as restrições e todas as
suas regras, ainda é ”matéria combustível
152
” (a esposa insatisfeita, ou se masturba, ou comete adultério, ou descobre
a felicidade na ternura da relação lésbica; o marido insatisfeito, ou se
masturba, ou procura a prostituta ou também descobre os prazeres da
relação homossexual). No caso do trabalho, a exaustão impede o
surgimento da energia sexual porque ela será inteiramente desviada para
a ”produção”.
Em segundo lugar, porém, ocorre com o trabalho algo semelhante ao que
ocorrera com o sacramento da confissão. Antes de mais nada, ao contrário
do casamento, ele não é apenas um freio para o sexo: é um substituto
para ele e o melhor dos substitutos, pois é virtude, vocação espiritual,
reconhecimento profissional, legitimidade da propriedade e da riqueza,
enfim valor positivamente positivo. É sublimação. Por outro lado, como na
confissão, que começara pelos pecados cometidos na relação com outrem
e terminava na relação solitária do pecador consigo mesmo, também no
trabalho é o corpo individualizado e solitário o que mais interessa. A
sociedade capitalista, como escreveu Michel Foucault, num livro intitulado
Vigiar e Punir, desenvolve não apenas técnicas para transformar todo o
corpo numa máquina de trabalho (a racionalização puritana), mas ainda
técnicas para corrigir, disciplinar, vigiar e punir os corpos que não se
ajustaram à produção, criando os corpos dóceis: disciplinados, operosos,
assexuados.
”A função tripla do trabalho sempre está presente: função produtiva,
função simbólica e função de adestramento ou disciplinar”, escreve
Foucault. para quem a função simbólica e disciplinar são as mais
importantes porque estão ligadas ao problema da dominação (de que
falaremos mais adiante).
Quando nos transportamos do período inicial de construção da ética do
trabalho, como vocação e ideal ascético, para as formas posteriores de
organização do processo de trabalho na indústria moderna, melhor
podemos avaliar o papel reservado ao trabalho. Ao descrever a
manufatura e, a seguir, a grande indústria, Marx observava que o local de
trabalho se transformara numa grande máquina constituída de peças que
a faziam funcionar: os corpos dos trabalhadores. Cada operário já não
produzia um objeto por inteiro, nem mesmo partes inteiras de um objeto,
mas partes das partes, apertando
153
parafusos ou porcas durante horas, dias, semanas, meses anos, uma vida
inteira. Alienação.
Essa divisão do processo de trabalho é insignificante se a compararmos
com as etapas posteriores da industrialização, em particular com o
taylorismo. Neste, também conhecido como gerência científica, o
administrador de empresa, Taylor, concebeu a racionalização do trabalho
moderno.
Racionalização, porque a idéia central da gerência científica é dupla: por
um lado, obter, no interior das fábricas e dos escritórios, controle absoluto
sobre o trabalhador durante as tarefas, graças à separação entre
concepção/decisão (que são reservadas aos gerentes) e execução (o
trabalhador é mero executante de tarefas cujo sentido, causas, meios e
fins ignora), e, por outro lado, obter absoluto rendimento do trabalho,
graças ao total controle sobre o corpo do trabalhador pela divisão de cada
tarefa em partes as menores possíveis, correspondentes a divisões do
corpo do trabalhador.
Tempo é dinheiro. Taylor começou usando um cronômetro. Cronometrava
o tempo usado por um trabalhador, na fábrica, para executar um gesto ou
um movimento; depois, graças a treinos, qual o tempo mínimo
indispensável para cada gesto ou movimento; depois, aumento da rapidez
pela especialização, isto é, cada trabalhador, em vez de realizar muitos
gestos e movimentos, passa a realizar dois ou três, embora o ideal seja
que realize um só, no mais breve tempo possível. Depois dessa
fragmentação do corpo do trabalhador. Taylor adaptou as máquinas a
esse treino: também elas foram subdivididas nos elementos menores
possíveis e cada qual operando no tempo menor possível.
Esse mesmo procedimento, Taylor aplicou ao trabalho nos escritórios,
calculando gestos e movimentos necessários Para pegar um papel numa
gaveta e colocá-lo na máquina Para datilografia, para pegar lápis,
borracha, e não só concebeu as mesas de trabalho de tal modo que fosse
mínimo o tempo necessário para cada gesto ou movimento, mas também
especializou os empregados de escritório em funções mínimas
combinadas com as de outros. Foi cronometrando o tempo que cada dedo
levava para bater uma letra no teclado que o taylorismo conseguiu a
padronização das máquinas de escrever, concebidas para a dedilhagem
mais rápida possível.
O tamanho dos clips, o peso da tesoura e do pincel de cola,
154
a altura da cadeira, a distância entre as mesas — tudo foi ”racionalizado”
pelo taylorismo.
Um outro especialista de gerência científica, chamado Brigth, sofisticou o
taylorismo para o período da automação (que quase não existe ainda no
Brasil, mas está a caminho). Elaborou, a partir da observação e do treino,
uma escala de rendimento do trabalho (válido para todos os lugares e não
mais para fábricas e escritórios apenas) que é inversamente proporcional
ao esforço físico, mental, à especialidade, à instrução, à experiência, à
tomada de decisão. Isto é, um trabalho alcança o máximo de rendimento
quando nele não há esforço físico e mental, não exige especialização nem
experiência prévia, nenhuma instrução e sobretudo nenhuma necessidade
de tomar decisão. Em suma, o rendimento aumenta quando, graças à
automação, o trabalho reduz o trabalhador a um autômato, encarregado
de vigiar a máquina, enquanto seu vigilante é vigiado por outra máquina
que é vigiada por um vigia final.
Um pequeno exemplo disso é o da moça na caixa registradora do
supermercado: a máquina faz todas as operações, a moça e a máquina
são vigiadas por televisores múltiplos numa sala escondida, que também
serve para a vigilância dos fregueses, e uma pessoa controla os vigilantes
dos televisores. Com graus diferentes de variação e intensidade, assim
funciona o trabalho em todas as instituições, da escola ao centro esportivo
e cultural, do hospital à prisão.
Um exemplo interessante da cronometria aparece no filme Klut, onde Jane
Fonda, usando o intervalo entre dois trabalhos, trabalha como prostituta:
enquanto cumpre seu papel (gemidos, palavras, risos, abraços e beijos),
espia o relógio de pulso e termina a atividade assim que os ponteiros
indicam que o tempo disponível para o comprador está esgotado.
A racionalização do processo de trabalho possui ainda uma outra face:
permite racionalizar o consumo. Os objetos que consumimos como se
fossem neutros ou desejados porque a propaganda criou em nós a
vontade e a necessidade de possuí-los, não são objetos simples. Cada um
deles foi calculado para nos proporcionar uma quantidade determinada de
satisfação, após a qual precisa ser substituído por outro (como se
fôssemos eternas crianças na tentativa sempre frustrada de
155
satisfazermos o princípio de prazer, sem consegui-lo). Mas o cálculo é
mais sutil quando se trata de objetos de consumo que devem auxiliar
nossa reposição de energias para o trabalho e sobretudo evitar que
percamos muito tempo nesse consumo: copos, garrafas, pratos, talheres,
recipientes são calculados quanto ao tamanho, ao volume, ao peso, de
modo a permitirem um consumo rápido em que possamos satisfazer fome
e sede sem gastarmos muita energia nem muito tempo. Em resumo:
nosso corpo está administrado racionalmente.
A fragmentação do corpo está presente, por exemplo, na medicina, onde
um médico é capaz de curar nosso olho dando-nos a ingerir um
medicamento que destrói nosso estômago porque o especialista já não vê
o corpo como um todo ou organismo, mas como partes de partes
independentes. Essa mesma fragmentação aparece noutro fenômeno que
conhecemos muito bem porque cotidiano: a peculiar divisão dos
programas de televisão em módulos que duram de 10 a 15 minutos.
Estudos de psicologia e de psicobiologia revelam que, após o trabalho
extenuante e o tempo dispendioso no transporte e nas refeições, nossa
atenção cai quase a zero. Nenhum de nós, nessas condições, concentra a
atenção mais do que por alguns minutos. O detalhe importante, porém, é
que a recuperação da atenção, como os estudos científicos demonstram,
não precisa ser feita pelo repouso, mas pela mudança de objeto, e por isso
os anúncios, entre os módulos, são curtos e numerosos.
Numa obra intitulada Eros e Civilização, o filósofo Marcuse aplicou
conceitos da psicanálise na compreensão da repressão sexual obtida
através da racionalização exercida sobre o trabalho e sobre toda a nossa
vida pela sociedade contemporânea, que ele chama de sociedade
unidimensional (isto é, uma sociedade sem dimensões e diferenciações,
onde tudo equivale a tudo, se troca por tudo, tudo sendo mercadoria e
objeto de consumo) e também de sociedade administrada (isto é, onde
todas as nossas atividades, idéias, todos os nossos desejos e pensamentos
estão são controle de instâncias exteriores a nós e que desconhecemos).
Marcuse fala em super-repressão e em princípio de rendimento.
A super-repressão não é apenas a repressão no sentido do recalque, tal
como o vimos definido em Freud. Nem no sentido
156
freudiano de contenção do princípio do prazer por exigências do princípio
de realidade. A super-repressão é um conjunto de restrições e de
imposições que têm como finalidade obter e conservar a dominação. É um
fenômeno sóciopolítico.
Na teoria freudiana, a contenção do princípio do prazer pelo de realidade
tinha um pressuposto: os seres humanos vivem em estado de penúria e
precisam trabalhar para sobreviver. É preciso, portanto, que a libido não
só seja reprimida para que energias se dirijam ao trabalho, mas também
que o prazer aprenda a protelar-se e, em certos casos, a suportar
frustrações definitivas. O trabalho podia, simultaneamente, tomar o lugar
da libido para fins sociais úteis e podia também ser uma sublimação da
libido, um meio para satisfazê-la indireta ou simbolicamente.
Ora, diz Marcuse, Freud não levou em conta um aspecto essencial da
questão: a desigualdade. Isto é, que há indivíduos, grupos ou classes
sociais cuja penúria é resolvida graças à condenação permanente de
outros indivíduos, grupos ou classes sociais à penúria e ao trabalho
forçado. A vitória do princípio de realidade sobre o do prazer foi obtida
pela dominação de uma parte da sociedade ou outra. É isto a
superrepressão.
Assim como a super-repressão produz a fragmentação do processo de
trabalho para que o trabalhador se transforme num incompetente e não
tenha o menor controle sobre o que faz, nenhum poder de decisão e de
transformação; assim como ela produz a fragmentação da produção e do
consumo sob o controle da gerência científica e dos especialistas em
merchandising assim como fragmenta o lazer e os conhecimentos em mil
pequenas especialidades, também fragmenta a sexualidade. Para que o
trabalho se torne central, valor e virtude, condenação e destino, a super-
repressão dessexualiza e deserotiza o corpo, destrói as múltiplas zonas
erógenas (cuja satisfação, se for conservada, será chamada de perversão,
crime, imoralidade) e reduz a sexualidade exclusivamente à zona genital,
com finalidade procriativa. A sociedade racionalizada é uma sociedade
funcional, isto é, nela tudo o que existe, só tem direito à existência se for
definido por uma função útil, adequada e aceita: a sexualidade será,
então,
157
função especializada em procriar e função especializada de alguns órgãos
do corpo.
A super-repressão não se contenta com a dominação e a funcionalização.
O trabalho que ela valoriza e transforma em virtude é o trabalho alienado,
isto é, aquele que não traz satisfação, nem alegria, nem compensações,
que não é fonte de criação, nem possibilidade de sublimação. Trabalho
ascético da vida ascética, o trabalho super-reprimido não protela nem
substitui o prazer: apenas o mata.
A super-repressão, porém, só pode operar se estiver interiorizada, se as
pessoas considerarem normal, natural e desejável viver dessa maneira.
Para isso ela recorre à divisão racionalizadora do tempo e do espaço, de
tal modo que restem um tempo mínimo e um espaço mínimo para a
sexualidade: umas horas noturnas no leito conjugal, no quarto secreto do
casal, num bordel, num camping. No entanto, como também as horas de
lazer são controladas, porque estão ligadas ao consumo, assim como o
consumo controla também os espaços de lazer, só restam duas saídas: ou
o lazer exclui um tempo para a sexualidade, ou a coloca sob o controle do
consumo, isto é, da pornografia, do motel, da sauna, da casa de
massagem. Especialização do espaço e ilusão da sexualidade liberada.
Por esse caminho, a super-repressão se articula com o princípio do
rendimento. Este, diz Marcuse, é a forma contemporânea assumida pelo
princípio de realidade: produzir para consumir e consumir para produzir;
sentir-se culpado, humilhado, diminuído quando não se produz o quanto e
o que a sociedade estipula, e quando não se consome o quanto, o que e
como a sociedade estipula. A identidade de cada um, Portanto, não
depende mais da relação peculiar que se estabelece entre nosso corpo,
nossa psiquê, nosso inconsciente e nossa consciência com a Natureza e a
Cultura, mas do modo como somos avaliados pelos critérios da
administração que governa a sociedade. Por esses critérios, nossa
sexualidade é definida, avaliada, julgada, aceita ou condenada. Nossa
precária liberdade, desfeita pela heteronomia (do grego hetero: utro;
nomia, nomos: lei, regra; autonomia, do grego, autos: eu mesmo, eu
mesmo; nomia, nomos: lei, regra. Autonomia: dar-se suas próprias leis;
heteronomia: ser determinado por leis alheias).
158
Super-repressão e princípio de rendimento reduzem a libido ou Eros a
quase nada, realizando de modo cruel e perverso o desejo de Thânatos, a
morte, o vazio, o nada. No entanto, assim como o recalcado retorna, a
libido reprimida retorna também. Esse retorno assume três modalidades
principais: numa delas, a libido se transforma em princípio de destruição,
a agressividade realizando o prazer (o nazismo, o fascismo, os genocídios,
a destruição da Natureza, o cataclismo atômico); numa outra, ela reduz os
autômatos humanos à infantilização, ao conformismo, à dessublimação
repressiva (como, por exemplo, a exibição dos corpos nus pela
propaganda como profanação); numa terceira, enfim, ela torna possível a
rebeldia de Eros, a transgressão que não é afirmação do existente, mas
sua negação (por exemplo, as ”perversões” sexuais como fonte de saúde
e de vida). Nesta terceira via, a sexualidade rebelde parte em busca da
unidade perdida, da recomposição do corpo e do espírito, e recusa
funções.
”O homem de grandes negócios fecha a pasta de zíper e toma o avião da
tarde. O homem de negócios miúdos enche o bolso de miudezas e toma o
ônibus da madrugada. A mulher elegante faz Cooper e sauna na quinta-
feira. A mulher não elegante faz feira no sábado. A freira faz orações
diariamente em horas certas. A prostituta faz o trottoir todos os dias em
certas horas. O patriarca joga bridge e faz amor segundo o calendário. O
operário joga bilhar e faz amor nos feriados. Homens, mulheres e crianças
— todos com seus dias previstos e organizados: amanhã tem missa de
sétimo dia, depois de amanhã tem casamento. Batizado na terça e na
quarta, macarronada, que a feijoada fica para o sábado, comemoração
prévia do futebol de domingo, vitória certa, ora se!... As obedientes
engrenagens da máquina funcionando com suas rodinhas ensinadas,
umas de ouro, outras de aço, estas mais simples, mais complexas aquelas
lá adiante, azeitadas para o movimento que é uma fatalidade, taque-taque
taque-taque... Apáticos e não apáticos, convulsos e apaziguados, atentos
e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável
Este texto é da escritora Lygia Fagundes Telles, retirado de seu livro A
Disciplina do Amor.
159
A propaganda é um bom filão para acompanharmos a repressão sexual na
sociedade administrada. Não só porque nela o sistema de equivalências,
próprio do mercado, exibe-se a si mesmo, qual imenso espelho, mas
também porque nela a domesticação e manipulação do desejo atinge
momentos de perfeição.
Desejar é desejar alguma coisa ou alguém. É sentir carência, falta. É
buscar preenchimento, satisfação. Donde o vínculo interior entre desejo e
prazer.
O desejo não é a necessidade, ainda que possamos sentilo com igual ou
maior força do que a necessidade. Necessidade é relação dual: fome-
comida, sede-bebida, cansaço-sono (numa perspectiva biologizante, o
sexo também é reduzido à necessidade). O desejo não é dual, mas
ternário: o desejante, desejado e a coisa imaginada como realização da
relação entre o desejante e o desejado (donde o papel do amor no sexo).
Temos necessidade de comida, mas talvez tenhamos desejo de uma
comida determinada (donde os célebres desejos das grávidas).
O que desejamos, no desejo? Alguns filósofos disseram que desejamos
que uma outra pessoa aceite nosso desejo, que o reconheça e que o
deseje. Assim, desejamos o desejo de um outro ser humano (real ou
imaginário). A criança ”boazinha” faz a lição de casa porque deseja o amor
de seus pais, a aprovação dos professores, a admiração dos amigos, o
reconhecimento de que deseja ser amada, aprovada, admirada. O
adolescente ”rebelde” que não cumpre seus ”deveres” deseja ser
reconhecido como livre por aqueles que sobre ele exercem autoridade. As
mulheres são treinadas para a docilidade porque esta lhes é imposta como
condição do amor.
Desejo é relação entre seres humanos carentes. Por isso amamos até à
loucura e odiámos até à morte: nosso ser está em jogo em cada e em
todos os afetos. Desejo é paixão, diziam os clássicos.
No entanto, a marca funda e indelével do desejo é o jamais oferecer-nos a
garantia de haver sido realizado. Porque desejamos o desejo de uma outra
pessoa, a liberdade de cada um, os acidentes e destinos de cada um, o
jogo das relações sociais, tudo impede (a não ser na tirania) a certeza do
definitivo e da plenitude. Por isso distingue-se não apenas da necessidade,
mas também do prazer. Afinal, por que Don
160
Juan precisaria da ”lista numerosa”, das célebres 1003, ”milie tre”?
É nesse núcleo infinito do desejo que a propaganda vem tocar. E o faz com
perfeição porque o essencial do consumo é oferecer ”provas” de nosso
reconhecimento pelos outros e objetos de prazer efêmero para que outros
venham a ser consumidos. A propaganda é a realização perversa da
irrealização essencial do desejo.
Oferece-nos objetos, ao mesmo tempo, como individualizados (satisfação
do meu desejo pelo meu prazer), como portadores de reconhecimento
(este objeto, e somente este, me faz ser desejada pelo desejo de outra
pessoa) e como intercambiáveis ou indiferentes (qualquer objeto pode
satisfazer o meu desejo). E visto tratar-se de uma relação mercantil, ainda
nos garante que podemos ”levar vantagem em tudo”, uma espécie de
suplemento de prazer e desejo. ”Leve dois e pague um.”
Na propaganda, os estereótipos dos papéis sexuais-sociais reconhecidos,
respeitados ou admirados, são reforçados: os produtos são anunciados de
modo a manter e legitimar o que é ”próprio de mulher”, ”próprio de
homem”, ”próprio de adulto”, ”próprio de criança”, ”próprio de
adolescente”, ”próprio de velho” evidentemente, nada é anunciado
diretamente como ”próprio” dos ”pervertidos”). Não apenas mulheres
anunciam produtos para mulheres, homens para homens, crianças para
crianças, adolescentes para adolescentes, velhos para velhos (pois cada
qual teria seu mundo próprio), mas ainda há trocas de ofertantes:
mulheres e homens anunciam produtos através da sedução, erotizando o
objeto pela mediação de quem o oferece: crianças são usadas para
garantir a veracidade do produto, pois a criança é inocente e sincera seus
atributos se transferem para os objetos; velhos garantem a utilidade ou
eficácia do produto porque os velhos são experientes e esse atributo é
transferido para os objetos; e, anúncio perfeito, o recurso aos especialistas
(médicos, dentistas, engenheiros, professores, psicólogos, executivos,
etc.) porque são conhecedores da verdade, garantem a autenticidade e
boa qualidade dos produtos.
Porém, não é apenas como reforço de papéis ou de ”identidades sexuais”
que o anúncio funciona. Dissemos haver uma
161
transferência das qualidades ou atributos, que se supõe pertencerem à
”essência” do anunciante, para os objetos anunciados. Essa transferência,
decorrente da própria natureza do desejo (ser objeto do desejo alheio) não
apenas torna impossível distinguir gente e coisa (pois a coisa passa a ter
qualidades e atributos humanos, não sendo casual, por exemplo, o
”namoro” da margarina e do pão), mas ainda deserotiza as pessoas e
erotiza os objetos.
Sem dúvida, como vimos no decorrer deste livro, um dos traços de nossa
sexualidade é o investimento libidinoso e amoroso-agressivo dos objetos,
conforme seu sentido inconsciente na história pessoal de nosso desejo. No
caso da propaganda, porém, não é isto o que ocorre e sim um duplo
processo: por um lado, a função dos objetos é a de ocupar o lugar do
desejado, em vez de trazer o desejado (a propaganda é a forma perversa
dos contos de fadas, das artes, da literatura); mas, por outro lado, e
sobretudo, a propaganda padroniza os desejos e os objetos de sua
satisfação. Os seres humanos, na qualidade de anunciantes, estão
encarregados de depositar sobre objetos anônimos e homogêneos a
máscara da pessoalidade e da diferença.
Mas não só isto. A propaganda produz uma contradição insuperável: nossa
sociedade condena como pecado, vício e crime a sexualidade chamada
fetichista (desejo e prazer sexual através de alguns objetos; nos filmes de
Luis Bunuel, por exemplo, um dos fetiches masculinos mais constantes é o
sapato feminino (Cinderela, A Pata da Gazela) como fonte de delícias).
Ora, a propaganda transforma em ideal social aquilo mesmo que a moral
repressiva condena, pois a transferência das qualidades humanas aos
objetos é própria do fetichismo. Moralista, a propaganda nos induz ao
proibidoconsentido porque dá lucro. Explora, portanto, as profundezas do
corpo e da alma.
A propaganda é repressiva ainda noutra dimensão. A infância, como
sugerimos em outros capítulos, não é apenas uma fase cronológica de
nossa vida sexual. Como dizia Freud, o inconsciente desconhece o tempo
e conserva como presente aquilo que a consciência lança para o passado.
A infância é o fundo arcaico de nossa vida: o desejo da satisfação plena,
imediata e crescente de um prazer. A propaganda manipula nossa
dimensão infantil.
162
Não só porque trata os adultos e as crianças como se fossem criaturas
sem discernimento e sem discriminação, mas porque oferece a nós todos
a ilusão da infância feliz: os produtos são anunciados como portadores
imediatos e contínuos de satisfação. Ter um objeto é, em si e por si
mesmo, a garantia do desejo satisfeito. Tanto assim, que a propaganda
perfeita é aquela que exibe muito pouco o produto, exibindo muito mais
as conseqüências felizes dele (o ”sucesso”, o ”amor”, a ”limpeza”, a
”inteligência”, a ”felicidade”). A propaganda estimula em nós a busca da
gratificação imediata. Sem dúvida, a isto aspiramos e a repressão sexual
aí está para frustrar nossa aspiração. O que a propaganda faz é ocultar a
moral repressiva, dando-nos a ilusão de que alguns objetos (os
enunciados) permitem o que a sociedade proíbe.
Ao fazê-lo, porém, passa a manipular nossas frustrações. De fato, a
principal característica do objeto moderno de consumo, além da total
padronização, é sua pouca duração: vivemos num universo de
descartáveis. Ora, prometendo a gratificação instantânea e a satisfação
imediata, a propaganda nos oferece objetos que só poderão cumprir esse
papel se forem ininterruptamente substituídos uns pelos outros. Não só
estimula o consumo (afinal, essa é sua finalidade e seria absurdo se não o
fizesse), mas o manipula em duas direções: por um lado, torna o consumo
compulsivo, como vimos, e, por outro lado, cria frustrações necessárias
para a repetição do ato consumista. Essa manipulação da frustração é
calculada minuciosamente pelo merchandising. Assim, por exemplo, o
lançamento de uma série de produtos nunca se dá de uma só vez: cada
produto da série é apresentado sucessivamente de modo que o sucessor
”acrescente” qualidades ao anterior, suprindo a frustração
deliberadamente criada pelo primeiro.
Além disso, o aspecto gratificante dos objetos é enfatizado não só porque
são objetos ”mágicos” (produzem efeito instantâneo), mas porque sua
magia os transforma em dons: a não ser em casos excepcionais, nunca o
objeto é apresentado como produto de um trabalho. Dessa maneira, não
só o trabalho (o tempo necessário entre a concepção e a realização) é
ocultado, mas esse ocultamento é inerente à própria ética laboriosa na
qual um objeto é tanto mais valioso quanto menos trouxer as marcas de
sua fabricação, visto que o fabricante é apenas um instrumento (como o
barro nas mãos do
163
oleiro). Esse ocultamento aparece na expressão conhecida: fino
acabamento, isto é, sem marcas de trabalho.
A propaganda é um caso exemplar, se quisermos retomar a expressão de
Marcuse, da dessublimação repressiva. Não apenas no sentido sugerido
por Marcuse de profanação dos corpos (o corpo nu, diz Marcuse, não é
ameaçador porque o corpo como unidade não existe mais). Mas num outro
sentido também. A propaganda sabe que os consumidores preferenciais
são os adolescentes (a função social e econômica dos adolescentes é a de
serem úteis antes mesmo de entrarem no mercado de trabalho; essa
”utilidade” é seu poder de consumo). Transforma, então, a adolescência
num ideal de vida para todas as idades: corpos jovens, nus ou seminus,
viris, sensuais, bronzeados, saudáveis, belos, felizes e plenos estão a
serviço não só da venda de sabonete, desodorante, roupa, cigarro,
máquina, móveis, casas, livros, cosméticos, turismos (os objetos passando
a ter os atributos de juventude, saúde, beleza e felicidade de seus
oferecedores), mas ainda estão a serviço da disciplina corporal (ginástica,
exercícios, dietas alimentares). Assim, a propaganda consegue, por uma
inversão imaginária fantástica, repor, na forma da sensualidade, a vida
ascética dos puritanos.
Aliás, essa reposição é mais visível nos chamados países desenvolvidos ou
de ”economia da abundância”. Como nestes países a automação e a
alienação do trabalho alcançaram um índice muito alto, as propagandas
oferecendo empregos e trabalhos são feitas de modo muito peculiar: o
serviço é apresentado como prazeroso, feliz, fácil, o trabalho como um
lazer Em contrapartida, o lazer é apresentado como hobby (pois se lazer
fosse ficar de papo pro ar não precisaria de objetos para se realizar), e os
anúncios dos hobbies enfatizam o aspecto laborioso e criativo da
atividade, o lazer como trabalho.

Fantasmagoria sem fim.

O anúncio das vantagens de ser cliente de um certo banco termina com a


frase: ”O Banco X resolve no ato”. A cena que prepara essa frase é a
queixa de uma esposa, arrastando o pobre marido, sobre a ineficiência
dos bancos. A frase final indica não só que o Banco X é melhor do que os
outros (não demora, resolve no ato), mas ainda que esse Banco é
virilmachão, pois os demais bancos são impotentes (não resolvem ”no
ato”). Sobretudo, ele se oferece como compensação para
164
a pobre esposa queixosa, pois a imagem escolhida para o marido é a do
homem irresoluto, fraco, ”impotente”. A perfeição do anúncio não está
apenas nos seus aspectos implícitos ou sugestivos, mas no fato de que
oferece como substituto da frustração sexual um objeto a partir do qual
todos os objetos podem ser consumidos: o dinheiro. ”No ato”: o Banco é
procriador.
O anúncio de uma geladeira, feito em quadros diferentes, apresenta
sempre uma cena em família na qual alguém chega com um alimento
saboroso e volumoso e lhe é dito: ”Põe na X”. Peixes, doces, verduras,
carnes, sorvetes, tudo se ”Põe na X”. Numa das vezes, a menina chega
com o namorado para apresentá-lo à família e o pai, distraído, diz ”Põe na
X”. Depois da surpresa, riso coletivo. Numa outra vez, o menininho, que
deveria estar dormindo, vem sorrateiramente à cozinha, abre a geladeira,
conversa carinhosamente com ela e lambe o chantilly de um imenso bolo.
Pressurosa, a mãe aparece, fecha a geladeira e, com ternura, diz ao
menino: Agora vai dormir. Quando você crescer, terá muito tempo para
conversar com aX”.
Ütero imenso, localizado na cozinha, o interior gelado da X está aberto
para tudo quanto se queira ali colocar ou encontrar, permanentemente
grávida, generosa, doadora, Grande Mãe inesgotável. Vagina também.
”Mete nela”, é a frase do pai ao namorado. Seio também: o imenso bolo
cremoso, leitoso, mole e disponível para um menino que já não mama o
seio materno. Mas seio que será vagina e útero: ”quando você crescer,
terá muito tempo para conversar com a X”. Quais os atributos de X?
Objeto doméstico (está na cozinha); objeto frio ou gelado (útero, mas,
também, gaveta de necrotério; frígida e mortal); objeto penetrável (”mete
nela”, vagina); fonte de alimentos, mas não produzido por ela (receptáculo
e não geratriz); promessa de gozo futuro (quando o seio tornarse vagina).
Genital, X é mulher, portadora de todos os atributos que em nossa
sociedade são definidores do feminino: buraco gelado, vazio e assustador
à espera de preenchimento; generosidade alimentar; localização
doméstica; passividade; objeto manipulável.
165
Transcrevemos, aqui, alguns trechos do ensaio Interesse pelo Corpo,
localizado num livro intitulado Dialética do Iluminismo, da autoria dos
filósofos alemães Horkheimer e Adorno.
”Sob a história conhecida da Europa, corre uma história subterrânea. É a
história do destino dos instintos e das paixões humanas reprimidos ou
desfigurados pela civilização. Graças ao presente fascista, no qual o que
estava oculto vem à luz, também a história manifesta aparece em sua
relação com esse lado noturno, descuidado tanto pela lenda oficial dos
estados nacionais quanto por sua crítica progressista.
A relação com o corpo encontra-se golpeada pela mutilação. A divisão do
trabalho traduziu-se numa proibição com respeito à força bruta. Quanto
menos os senhores podiam prescindir do trabalho dos outros, mais
proclamavam vulgar o trabalho. Como o escravo, também o trabalho
recebeu uma marca. O Cristianismo exaltou o trabalho, porém, em
compensação, humilhou muito mais a carne como origem de todo mal. O
Cristianismo anunciou a ordem burguesa moderna (segundo o pagão
Maquiavel) com seu elogio do trabalho que, no Antigo Testamento,
sempre fora definido como maldição. Com os padres eremitas Doroteu,
Moisés, o Ladrão, Paulo, o Simples, e outros pobres de espírito, o trabalho
servia de forma direta para entrar no Reino dos Céus. Em Lutero e Calvino,
o nexo que unia trabalho e salvação tornou-se tão mediato e complexo
que a exortação ao trabalho, pela Reforma, soa quase como um
sarcasmo(...).
(...) A liberação do indivíduo europeu produziu-se no interior do quadro de
uma transformação cultural geral que cavou mais fundo a cisão no íntimo
dos liberados, à medida que se atenuava a coação física vinda do exterior.
O corpo condenado devia ser, para os inferiores, o mal; e o espírito, ao
qual os superiores podiam dedicar-se, o bem. Esse processo habilitou a
Europa para suas criações culturais mais altas. Porém, a suspeita de que
havia uma confusão — evidente desde o princípio — reforçou, juntamente
com o controle do corpo, a maldade obscena, o ódio-amor pelo corpo que
impregnou o pensamento das massas através dos séculos e encontrou sua
genuína expressão na linguagem de Lutero. Na relação do indivíduo com o
corpo — tanto o próprio quanto o alheio — a irracionalidade e a injustiça
da dominação retornam como crueldade. Esta se acha tão distante da
reflexão feliz, da relação de compreensão, quanto distante da liberdade se
acha a dominação (...).
(...) Oódio-amor pelo corpo tinge toda a civilização moderna. O corpo,
como o que é inferior e submetido, é objeto de zombaria e maltrato e, ao
mesmo tempo, se o deseja, como o proibido, reificado,
166
alienado. Somente a civilização conhece o corpo como uma coisa que se
pode possuir; somente na civilização o corpo separou-se do espírito —
quintessência do poder de mando — como coisa morta, corpus.*
(...) Na civilização ocidental, e provavelmente em todas, o corpo é tabu,
objeto de atração e de repugnância (...).
(...) Os artistas, sem o querer, preparam para a publicidade a imagem
perdida da unidade da alma e do corpo. A exaltação dos fenômenos vitais,
desde a fera vermelha (o ”fauvisme”) até o ilhéu dos mares do Sul (em
Gauguin), desemboca inevitavelmente no filme ”exótico”, nos manifestos
publicitários das vitaminas e dos cremes de beleza que ocupam somente o
lugar de fim imanente do anúncio, o novo e nobre tipo humano: o chefe e
suas tropas.
O corpo físico já não pode voltar a ser corpo vivente. Continua sendo um
cadáver, apesar de tudo que o fortifique e por mais robusto que se torne.
A transformação em coisa morta, que se cumpre em seu nome, é parte do
processo constante que reduziu a natureza material e a matéria. As obras
da civilização são fruto da sublimação, do ódio-amor adquirido pelo corpo
e pela terra, dos quais os homens foram separados à força pela
dominação (...) Os assassinos, o sicárío, os gigantes embrutecidos,
utilizados secretamente como carrascos pelos poderosos legais ou ilegais,
grandes e pequenos, os seres brutais que estão sempre à disposição
quando se trata de liquidar alguém, os linchadores, os membros da Klu
Klux Klan, o tipo forçudo que se levanta quando alguém abre o bico (...)
todos os lobisomens que vivem na obscuridade da história e alimentam o
pavor, sem o qual não haveria dominação, todos eles dão alento ao ódio-
amor pelo corpo de forma brutal e imediata, violam tudo o que tocam,
destroem o que vem à luz, e essa destruição é o rancor pela reificação.
Todos eles repetem com fúria cega sobre o objeto vivente o que não
podem impedir que tenha acontecido: a cisão da vida no espírito e no seu
objeto(...).
(...) Aqueles que, na Alemanha, exaltavam o corpo, ginastas e gente de
outro caráter, sempre tiveram a máxima afinidade com o homicídio, como
os amantes da natureza com a caça. Enxergam o corpo como mecanismo
móvel, com as partes em suas articulações e a carne como recheio do
esqueleto. Manipulam o corpo, tratam seus membros como se já
estivessem separados. A tradição judaica conserva a repugnância de
medir um homem porque os que se medem são os mortos, a fim de lhes
preparar o caixão. Esse é o gozo que sentem os manipuladores do corpo.
Sem o saber, medem o outro com olhar do construtor funerário.
Atraiçoam-se quando enunciam o resultado:
Nota de rodapé:
(*) Corpus, em latim, é o cadáver, como em inglês, corpse — MC
Fim da nota de rodapé.
167
dizem que o homem é alto, baixo, pesado. Estão interessados na doença
(...) A linguagem tornou-se adequada a eles: o passeio foi reduzido a
movimento e a comida, a calorias (...).
(...) Na diabólica humilhação dos prisioneiros nos campos de
concentração, que sem motivo racional o carrasco moderno acrescenta ao
martírio, rebenta a revolta não sublimada da natureza reprimida.
Essa revolta golpeia com todo seu horror o mártir do amor, o suposto
criminoso sexual e libertino, porque o sexo é o corpo não reduzido, a
expressão daquilo que os carrascos, em segredo, desejam
desesperadamente. Na sexualidade livre, o carrasco teme a imediatez
perdida, a unidade originária na qual ele já não pode viver. A sexualidade
livre, é o morto que ressurge e vive. Para o assassino, a vítima representa
a vida que superou a cisão. Por isso deve ser despedaçada e o universo
deve converter-se unicamente em pó e em poder abstrato.”

Sexo e ciência

Em muitas sociedades, e particularmente na nossa, o corpo é uma das


entidades privilegiadas para o exercício da dominação. A divisão social do
trabalho e do processo de trabalho, as pedagogias (nas escolas, nas
prisões, nos hospitais), o direito penal, a medicina, o consumo ou a
filosofia evidenciam a presença de idéias e práticas que procuram confinar
o corpo à região das coisas observáveis, manipuláveis e controláveis.
Considerado pelo direito civil como propriedade alienável num contrato
(de casamento, de trabalho); pela economia, como força de trabalho, força
produtiva ou instrumento; pela medicina, como conjunto de funções e
disfunções; pela escola e instituições ”reformatórias” como disciplináveis;
pelo consumo, como espetáculo, o corpo é o lado menor, a parte inferior,
curiosamente útil (pelo trabalho), carente (pelo desejo) e perigosa.
Tanto pela religião quanto pela filosofia e pela ciência, fomos habituados
pelo chamado pensamento ocidental a estabelecer clara diferença entre
corpo e alma, matéria e espírito
168
coisa e consciência, e a relacioná-los de modo hierárquico, um dos termos
sendo sempre superior ao outro e, nessa qualidade, dotado do direito de
mando. A hierarquia e a dominação não aparecem apenas nas relações
interpessoais e sociais, mas no interior de cada um de nós quando
considerarmos que nossa vontade e nosso espírito, nosso intelecto e
nossa consciência devem comandar nosso corpo. Ser adulto, normal e
racional é realizar esse comando.
De modo geral, filosofia e ciência distinguem entre os dois termos e as
duas realidades considerando o corpo coisa física e biológica (portanto,
mecânica e orgânica), submetido a leis necessárias e desprovido de
liberdade, enquanto a consciência ou espírito, imateriais, constituem o
que chamamos de sujeito ou subjetividade, isto é, a capacidade de
pensar, refletir (pensar-se a si mesmo) e decidir ou escolher, portanto
como vontade autônoma ou liberdade.
As idéias sobre o corpo humano modificam-se bastante, desde o advento
da chamada ciência moderna. Inicialmente, o modelo de elaboração da
idéia de corpo era fornecido pela principal ciência, a mecânica, e, como
conseqüência, o corpo era pensado como máquina. Porém, uma máquina
de tipo muito especial: o autômato, particularmente o relógio. O corpo
animal e humano é sensível e vivente, mas desprovido de alma ou
espírito; para que funcione, suas partes devem estar anatomicamente
dispostas de tal modo que possa operar sozinho depois de receber um
comando vindo da alma (a corda no relógio). Assim, o corpo, conjunto de
dispositivos mecânicos e causal, recebe o impulso inicial da consciência e
depois opera sozinho. Como escreveu o filósofo Canguilhem, num livro
intitulado Conhecimento da Vida, o corpo é concebido como operário.
Posteriormente, com o desenvolvimento das chamadas ciências da vida,
particularmente a biologia e seus ramos, o corpo passa a ser considerado
não mais montagem de partes separadas ligadas por relações de causa e
efeito, mas como organismo. Uma totalidade dotada de funções e
finalidades próprias, capaz de realizar a mais importante das funções: a
adaptação ao meio e a reprodução, isto é, funções de sobrevivência. As
noções de experiência, invenção e transformação ligam-se às atividades
corporais e justamente porque o corpo não é máquina inteiramente
controlável e previsível é que
169
podem surgir seres muito especiais: os monstros. A fecundidade corporal
é responsável pela monstruosidade. Já podemos imaginar o que sucederá
à sexualidade...
Como o organismo realiza suas funções para atender a certas finalidades
externas e internas, o modelo do corpo, agora, é o da execução de ordens
comandadas à distância isto é, o corpo é concebido como soldado.
Contemporaneamente, o modelo da máquina voltou a ser privilegiado na
elaboração das idéias sobre o corpo, não sendo casual o surgimento de
ciências como a biofísica, a bioquímica e a sócio-físico-biologia. Não só o
corpo volta a ser pensado como objeto técnico e técnico-instrumental (isto
é, o corpo como realidade que pode ser construída), mas a máquina que
lhe serve de modelo é um outro autômato muito mais sofisticado do que o
relógio: o computador.
Pensado a partir do computador, o corpo deixa de ser pensado como vida
e processo vital no sentido antigo em que vida era relação com o meio,
reprodução, capacidade de auto-regulação por uma avaliação do ambiente
(sentir a agresividade ou hostilidade do meio, confiar no meio mantendo o
equilíbrio, estabelecer relação competitiva com o ambiente, através da
adaptação como vitória sobre as condições dadas, aptidão que permitia
distinguir a saúde e a doença pelo critério da capacidade para criar
normas vitais novas e da incapacidade para isto, reagindo ao meio de
modo monótono e catastrófico). O novo modelo elimina a relação com o
exterior: o corpo realiza por si mesmo operações e cálculos para
conservação de seu ”programa”, isto é, do código genético. O modelo do
computador, pensam muitos, daria ao sistema nervoso o lugar principal na
elaboração do corpo e explicaria a descida rumo ao microscópico (da
célula ao micróbio, deste à bactéria, desta ao vírus e deste à enzima), de
tal modo que a máquina corporal é fundamentalmente invisível. Todavia, o
sentido desse modelo é mais complexo. Pensado como realidade de tipo
informacional e operando a partir de códigos genéticos, o corpo se torna
inteiramente previsível e controlável: não somente conhecemos seu futuro
no útero materno, mas tudo quanto lhe será possível ou impossível ao
nascer e no decorrer da vida. Além de ser possível interferir em sua vida,
alterando seu ”programa” ou o código genético. Mas não só isto.
170
Deixando de ser pensado como máquina natural para tornar-se máquina
construída, o corpo, sob o controle da biofísica e da bioquímica, tornou-se
capaz de uma operação espantosa: reproduzir-se sem sexo.
Não se trata, como poderíamos pensar, do bebê de proveta. Este ainda
necessita o encontro do esperma e do óvulo. É ainda uma operação
macroscópica. Trata-se de outra coisa. A biofísica e a bioquímica são
capazes de provocar surgimento vital graças a reações físico-químicas
microscópicas para reprodução de um corpo novo a partir de uma enzima
ou de um elemento microscópico qualquer retirado de um outro corpo
vivo. Trata-se do surgimento dos chamados clones, seres vivos obtidos por
multiplicação físico-química de um elemento qualquer. A ciência
conseguiu, assim, liberar a humanidade de seu maior castigo, de seu
maior estigma e tormento: o sexo.
Assim como o pecado e o trabalho se deslocaram do exterior para o
interior, se voltaram menos para as relações interpessoais, intersubjetivas
e sociais e mais para a solidão do corpo penitente e do corpo laborioso,
assim também a ciência conseguiu a solidão perfeita, o isolamento
perfeito. O corpo não precisa do meio para viver — precisa apenas de seu
código — e não precisa de outro para nascer — basta-lhe o fragmento
isolado a crescer por conta própria.
A questão que se coloca, para nosso assunto, não é tanto: teria isto sido
sempre possível e a descoberta dependeu do progresso científico? Nem:
isto não foi descoberto (não era uma potencialidade natural preé-
existente), mas foi construído pelo laboratório? Não se trata de
discutirmos se essa concepção do corpo é algo natural (que estava
escondido) ou se é puramente artificial (completamente inventado). A
questão é: por que houve interesse nessa modalidade de pesquisa? Seja
para descobrir, seja para inventar, o essencial é que a ciência tenha
escolhido um rumo no qual pôde eliminar a relação sexo-vida. Não só
eliminou a única justificativa que, através dos séculos, suportava a
existência de seres sexuados, mas ainda demonstrou que a vida vem da
não-vida. Poderia ter sido maior a vitória de Thânatos? O corpo seria
mesmo ”corpus”?
171
Deixemos, porém, essa discussão que concerne ao futuro (seria essa
descoberta-invenção propícia à liberação sexual, ao desligar sexo e
reprodução? Ou numa sociedade administrada, voltada para o rendimento
e para o controle, essa descoberta-invenção levaria a novas formas de
repressão sexual?).
Antes de examinarmos o longo percurso de constituição de uma ciência
sobre o sexo ou sua cientificização, examinemos uma curiosa instituição,
espécie de coroamento do processo que veremos posteriormente: a
sexologia ou orgasmologia, nascida com a finalidade de produzir a
liberação sexual, graças ao extermínio da ”peste emocional”, isto é, das
paixões e dos afetos conflitantes que seriam responsáveis pela repressão
e infelicidades sexuais. Tanto a liberação quanto a felicidade sexuais
dependerão de um único fator: o orgasmo satisfatório.
A sexologia é uma instituição curiosa porque é uma espécie de
combinação do erotismo como arte ou técnica do amor e da ciência como
conhecimento teórico sobre o sexo, sua atuação mesclando pedagogia e
terapia, procurando substituir a coerção pela informação correta.
A sexologia combina medicina e psicologia comportamental, parte de um
estudo das doenças sexuais físicas e de comportamento, propõe um
tratamento rápido (mínimo de uma semana e máximo de um mês),
promete o orgasmo perfeito, tolera o homossexualismo, recomenda a
masturbação e defende a democracia sexual (direito e dever de orgasmo
para todos). Trabalha com as idéias de função adequada e disfunção (as
disfunções principais são: impotência, frigidez, ejaculação precoce e
ausência de ejaculação), atribuindo estas a maus condicionamentos ou
condicionamentos inadequados do comportamento (a terapia consistindo
em mudar os condicionamentos e obter a funcionalidade) e recomenda
medidas de higiene e profilaxia, pois com elas o orgasmo pode começar
muito cedo e terminar muito tarde, não havendo necessidade de aguardar
o momento de iniciar a vida sexual nem de interrompê-la — juventude e
velhice não têm valor para a orgasmoterapia.
A democracia sexual apóia-se em três idéias: a primeira é a do altruísmo
social (donde o dever de produzir orgasmo no parceiro); a segunda, é a de
direito à felicidade (donde o dever
172
de obter seu próprio orgasmo); a terceira, inclui as virtudes públicas:
tolerância, racionalidade (as relações sexuais devem ser refletidas,
calculadas, decididas e programadas segundo seus custos e vantagens),
aceitação da opinião pública (no caso, a dos especialistas) e liberdade de
expressão sexual (na medida em que a liberdade de expressão é um dos
direitos fundamentais do homem e do cidadão).
A sexologia é uma pedagogia sexual: ensina a cada um o controle racional
de suas paixões, o momento em que podem ter livre curso e o melhor
meio para fazê-lo (conhecimento das ”zonas estratégicas” de seu próprio
corpo e do corpo do parceiro; preparação ao ato sexual pela masturbação
e outras técnicas de lubrificação). O sexólogo ensina como controlar os
impulsos imediatos do desejo, como se preparar para sua satisfação, quais
as técnicas para fantasiar durante a relação sexual de modo que, graças
às fantasias solitárias, o gozo do casal seja maior, e sobretudo ensina cada
parceiro a respeitar os interesses sexuais do outro (a relação sexual é
pensada como um contrato).
Como escreveu um estudioso, a sexologia combina prazer e ascetismo;
intelectualismo (conhecer os interesses sexuais do parceiro, seus direitos
e deveres, as ocasiões oportunas, as zonas estratégicas) e sensualidade
(técnicas de preparação ao prazer); espontaneidade e programação;
participar (agir sexualmente) e ser espectador (ter suas fantasias próprias
e vigiar para saber se o parceiro já conseguiu o orgasmo); querer a
segurança (sempre o orgasmo perfeito pelo bom conhecimento do
parceiro) e o abismo do presente (esse talvez seja o único orgasmo
perfeito de toda a vida); querer a uniformidade (respeitar as regras e
técnicas aprendidas) e a diferença (querer ser original em cada relação
sexual). Em suma: a esquizofrenia e a liberdade vigiada.
A sexologia não é uma disciplina isolada. Além do médico psiquiatra e de
psicólogos, as clínicas de orgasmoterapia incluem: médico clínico,
urologista, endocrinologista, ginecologista, obstetra, neurologista,
dermatologista, venereologista e cirurgiões (além dos serviços paralelos
como salão de beleza, ginástica, cirurgia plástica, massagem, etc).
Basicamente ela opera graças ao ”respeito à opinião pública”, isto é, dos
especialistas, de sorte que o sexo fica subordinado à idéia de
competência, que determina o saber sexológico e seu caráter
173
pedagógico-profilático, operando menos por pressões e mais por
informações.
Enfim, a tolerância sexológica não é ilimitada: o tipo de terapia
empregada se aplica a casais (mesmo que se apresentem grupos e façam
experiências ”comunitárias”, pois devem sair aos pares, como entraram)
e, no caso dos homossexuais, também os estimula para que formem
casais.
Nos anos 30, o cineasta francês Jean Renoir fez um filme que até hoje não
cessa de interessar a todos os que amam e estudam cinema. O filme foi
censurado, criticado pela direita (a classe dominante aparece retratada
com traços impiedosos de cinismo, hipocrisia e cripto-fascismo) e pela
esquerda (a classe trabalhadora aparece cúmplice dos dominantes e
repondo a ordem burguesa, malgrado si mesma). O filme, que se chama A
Regra do Jogo, é montado sobre três grandes cenas-chave: uma caçada
num castelo, um teatrinho amador representado pelos convidados do
castelão, um crime passional. Essas cenas são pontuadas por uma
personagem especial, participante e espectador dos acontecimentos: um
poeta, apaixonado pela castelã e que, conhecedor da regra do jogo, sabe
que não é possível transgredi-la.
Num fim de semana, reúnem-se para uma caçada, um baile, uma
representação teatral e banquetes, os convidados de um casal e um
séquito de admiradores e servidores. Regra do Jogo: amores ou sexo
clandestinos entre as paredes do castelo, vazão da agressividade e do
ressentimento recíproco através da caçada, expressão das críticas e dos
desejos através do teatrinho amador. Regra do Jogo: os casais legais não
podem ser desfeitos; o matrimônio monogâmico indissolúvel se conserva,
passada a transgressão consentida do fim de semana. Regra do Jogo: as
classes dominantes não se misturam amorosamente com as classes
dominadas, senão pelo sexo clandestino. Mas, alguém tentará impedir o
jogo de continuar: um jovem intelectual se apaixona pela castelã, é
correspondido, planeja a fuga aproveitando-se do momento em que todos
estão mascarados, representando papéis clássicos (pierrôs, colombinas,
arlequins) no teatrinho do castelo.
174
Mas, para quebrar a regra do jogo, a castelã tenta usar a trapaça: a patroa
pede à empregada que lhe empreste o manto com capuz, disfarçando-se
para fugir (sutil referência tanto à fuga de Maria Antonieta, quanto à
duplicação dos disfarces da colombina, além de ser o traje clássico de
Chapeuzinho Vermelho).
A Regra do Jogo é restaurada: o marido da empregada, guarda-caça do
castelo, hábil atirador, julgando ser sua a mulher que foge, ”matou com
um tiro certo o lobo mau”, isto é, fuzila o jovem apaixonado. Descoberto o
engano, consternação geral, mas arranjo para que o assassinato se
transforme em morte acidental. E ”ninguém fala mais nisso”.
Que acontece com a densidade trágico-burlesca, com a crítica social e
política de A Regra do Jogo quando passamos à sua versão Masters and
Johnson?
No filme Bob, Ted, Carol e Alice (que a televisão brasileira reprisa pelo
menos uma vez por semestre), um dos casais vai a uma clínica
orgasmoterapêutica (lindinha: bosques, música invisível, ambiente fino)
onde aprende a ser sincero, autêntico e corporalmente sensível. Cura-se
numa semana.
Primeira prova dos novos iniciados: o marido, chegando do trabalho, dá de
cara com a esposa na cama com o jovem atlético treinador de tênis. Início
da cena clássica de fúria, logo interrompida pela lembrança do
aprendizado da tolerância. E o treinador, apalermado, não entende por
que o marido e esposa o ajudam a se vestir, querem saber se está tudo
bem e o despedem com carinho.
Inicia-se a missão pedagógica do novo casal: vai, agora, ”sensibilizar” um
casal amigo. Proposta terapêutica, depois de explicados os princípios
teóricos da nova doutrina: ida a um hotel de luxo para troca de casais. Os
quatro na mesma cama, desenxabidos. Não dá muito certo, apesar dos
esforços. Mas, em contrapartida, como dá certo quando cada qual faz sexo
com o seu verdadeiro parceiro! Uma beleza.
Pacificados, enternecidos e felizes, lá vão os quatro, quase levitando em
meio à multidão indiferente, comprimida e apinhada pelas ruas, mas que,
um dia, graças aos novos missionários sexuais, também será feliz.
Qual a diferença entre A Regra do Jogo e Bob, Ted, Carol e Alice (não,
evidentemente, do ponto de vista cinematográfico,
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pois não há como comparar uma obra-prima e um filmeco)?
Enquanto em A Regra do Jogo são postas a nu as engrenagens violentas
do mundo burguês, a trama secreta que urde os fios de sexo-poder, sexo-
divisão social, sexo-amor, transgressão-permissão, como se ela tivesse
quase a força inelutável do destino, trabalhada com a minúcia da filigrana
(um olhar, um gesto, uma caçada, um teatro, uma troca de vestuário, um
fuzilamento, as acomodações internas), emBob, Ted, Carol e Alice, essa
mesma sociedade é transformada num cartão postal em leves tons pastel,
idílica, diluída na ”sensibilização corporal” e na obrigação da
”autenticidade”. Em A Regra do Jogo, a vida conjugal é marcada pela
convenção, pelos interesses, pela hipocrisia e pelo ocultamento da
violência que impede a ruptura definitiva da regra. Em Bob, Ted, Carol e
Alice ela se converte no paraíso da sinceridade, desejável e prazeroso. Se,
em A Regra do Jogo, o exercício da liberdade é cerceado pela força
impiedosa das imposições sociais interiorizadas, em Bob, Ted, Carol e
Alice, converter a regra do casal autêntico e feliz em liberdade é operação
realizada graças ao que se convencionou chamar de ”liberação sexual”, a
mesma que torna toleráveis homossexuais e lésbicas, desde que
”funcionem” com o recato e a discrição própria dos cônjuges.
A Regra do Jogo exibe os resultados da sociedade burguesa. A cena da
caçada é alusão a uma outra caçada, célebre no cinema, a do Conde
Zaroff, caçada humana que fracassa: Jean Renoir nos mostra que o que a
nobreza não conseguiu, a burguesia realizou. Bob, Ted, Carol e Alice
oculta esse resultado e substitui a caçada pela evangelização sexual da
multidão.
Evidentemente, se a sexologia orgasmoterapêutica e orgasmológica é a
tentativa para garantir aos adultos (jovens e velhos aí incluídos) que
”sejam felizes para sempre”, em contrapartida, a sexologia forense tem a
triste tarefa de se ocupar com os infelizes: homossexuais, homens
impotentes, mulheres frígidas, mulheres estupradas, adúlteros, filhos
ilegítimos, os
176
libidinosos e os obscenos. O que é doença, para uma, é crime para a
outra.
O núcleo da sexologia forense é a proteção da família: discute e resolve os
impedimentos matrimoniais, o defloramento de virgens, a violência contra
crianças, o estupro, os escândalos contra a família (homossexualismo,
doenças venéreas, excessos sexuais, adultério, ilegitimidade de filhos).
Aquilo que a sexologia terapêutica pretende ”curar”, é o que a sexologia
forense está encarregada de criminalizar.
Seria impossível, aqui, detalharmos idéias e procedimentos empregados.
Daremos, por isso, apenas alguns exemplos para que o leitor, que
desconheça a sexologia forense, informe-se um pouco a respeito dela.
São impedimentos matrimoniais: a identidade dos sexos (portanto,
mantida a proibição do homossexualismo, agora convertido em crime); a
consangüinidade (pelo Código Civil Brasileiro, não podem casar-se:
ascendentes com descendentes, irmãos e os colaterais até o terceiro grau,
os de terceiro grau, só com autorização médica; trata-se do incesto, como
se vê); a insuficiência de idade (determinada por critérios fisiológicos,
psicológicos e incapacidade econômica: para os meninos, 18 anos, e para
as meninas, 16 anos, embora não seja esta a ”idade ideal para casar-se”
porque o corpo feminino ainda não está pronto para maternidade sem
complicações); a diversidade de raças (o matrimônio de raças fisicamente
”desarmônicas” ou em ”graus de desenvolvimento” diferentes não é
permitido sem autorização prévia); doenças (o exame pré-nupcial é
obrigatório, tendo em vista a eugenia da raça, a higiene e a saúde da
prole).
Como é possível observar, as condições para o casamento legalmente
reconhecido incluem dados econômicos, previsão de maternidade e o
racismo. A ”mistura de raças” é desaconselhada porque os ”híbridos” são
menos saudáveis e mentalmente menos desenvolvidos do que os ”puros”,
a sexologia forense apresentando grande número de provas dessa
”verdade científica”.
O que é fascinante na sexologia forense é a minúcia com que cada caso é
discutido, os argumentos sendo de três ordens: médicos, jurídicos e
sociais. Estes últimos se explicam pelo seguinte motivo: os argumentos
médicos* e jurídicos são
177
considerados científicos e, como tais, possuem validade universal, mas
nem sempre suas indicações, prescrições ou valores se coadunam com a
sociedade particular a que se aplicam e cujos costumes devem ser
levados em conta. Verifica-se, então, o mais interessante cruzamento de
ideologias médicas, ideologias jurídicas e ideologias locais.
Na questão da impotência, por exemplo, distingue-se a masculina e a
feminina. Na primeira, três tipos cujos graus de doença e de crime são
variáveis porque as causas podem ser anatômicas ou fisiológicas, mas
também podem ser perversões. Assim, por exemplo, considera-se mais
criminosa a impotência causada por masturbação ou homossexualismo,
este e aquela definidos como impotência por perversão; fala-se em
impotência psíquica, isto é, a ejaculação precoce. No caso da mulher,
porém, são oferecidos apenas sintomas anatômicos e fisiológicos sem
qualquer referência a ”perversões”. Os detalhes descritivos dos órgãos
genitais femininos e masculinos são exaustivos e o motivo é simples: no
caso da mulher, a impotência não justifica anulação do matrimônio, mas
no caso do homem, sim. É interessante observar que a impotência
masculina está vinculada à incapacidade para penetrar e fecundar a
mulher, a ereção e a ejaculação sendo minuciosamente estudadas. Em
contrapartida, a impotência feminina se identifica com a esterilidade, nada
sendo dito de sua atuação sexual, pois não é relevante.
Mas a situação muda inteiramente de figura quando se trata da
verificação do estupro, pois além do exame pericial do corpo feminino, há
investigação para saber se a mulher permitiu ou não, provocou ou não,
desejou ou não o estupro, isto é, há ”investigação psicológica” simultânea
à do hímen e dos órgãos genitais. E a mesma exigência para os casos de
violência, em que, por exemplo, as roupas rasgadas são prova importante,
pois a roupa intacta sugere consentimento.
Nota-se não só a transformação em lei e crime dos papéis sexuais
atribuídos a homens e a mulheres, mas também o recurso aos
estereótipos de feminilidade e masculinidade na produção das provas.
Observa-se também a dualidade feminina: nenhuma ”perversão” é
mencionada na análise da esposa impotente, tudo se resumindo à
descrição do estado defeituoso de seus órgãos genitais e como se fosse
um ser assexuado;
178
mas no caso da estuprada e violentada, há enorme interesse por suas
atitudes sexuais e muito cuidado até que sua ”inocência” esteja
demonstrada.
De todo modo, tanto homens como mulheres são submetidas a verdadeira
humilhação: a sexologia forense vasculha seus corpos e sentimentos à
procura do crime.
O capítulo mais longo da sexologia forense, como não poderia deixar de
ser, refere-se ao exame de verificação da paternidade e da maternidade
duvidosas. O capítulo é longo não só pela quantidade de exames médicos
e periciais exigidos (cujos detalhes e justificativas são apresentados), mas
também porque há um histórico das provas, isto é, as várias provas
inventadas no correr dos últimos séculos, suas falhas e virtudes. As provas
são médico-legais, genéticas (pré-mendelianas e mendelianas — nas
primeiras, por exemplo, procuravam-se os traços fisionômicos
semelhantes), sangüíneas, não-sangüíneas. O valor de cada prova e o
significado do conjunto são também discutidos. Além delas, há recurso a
provas circunstanciais (por exemplo, uma testemunha que viu o encontro
clandestino de um dos cônjuges), cuja importância é decisiva para o crime
do adultério.
E o capítulo mais interessante, por ser o mais revelador, trata dos atos
libidinosos e obscenos, que são crimes de atentado ao pudor e de ultraje
público ao pudor. Atos libidinosos, são aqueles com os quais alguém
”procura satisfazer sua “fome sexual” ou libido sem recorrer à conjunção
carnal”. São eles: toques impudicos (massagens, beliscões, compressões,
masturbações), beijo e sucção (porque, além de equimoses, são
transmissores de sífilis, através da saliva) e as cópulas ectópicas (sexo
oral, anal, uretal, cunilíngua). Atos obscenos são os que ofendem o pudor,
praticados em lugares públicos. São eles: exibicionismo, bestialidade
(relação sexual com animal) e pigmalionismo (relação sexual com
estátuas; do mito grego segundo o qual o escultor Pigmalião fez uma
estátua tão perfeita, Galatéa, que por ela se apaixonou e os deuses,
apiedados, deram-lhe vida).
Mas, o que é o pudor, segundo a sexologia forense?
O pudor é um sentimento de respeito e temor pelo sexo. Os temores que
constituem o pudor são três: receio de fluidos mágicos que emanam dos
órgãos genitais; temor da concorrência,
179
isto é, que um outro homem deseje nossa mulher ou irmã ou filha ou mãe,
donde a necessidade de cuidar para que andem vestidos de modo a não
suscitarem tal desejo; e o desagrado. Este, é de três tipos: desagrado
pelos órgãos genitais porque os órgãos de reprodução estão próximos dos
de excreção: é o desagrado material, que faz homens e mulheres não
desejarem ser repugnantes uns para os outros, escondendo as partes
genitais; desagrado estético, isto é, descoberta feita pela menina do efeito
sedutor, bestial e brutal de suas formas sobre os homens, levando-a a
esconder todo o corpo; desagrado moral: a mulher sabe que a melhor
maneira de conquistar um homem e seu respeito é o recato nos gestos,
nas palavras e no vestuário.
Independentemente da tentativa de definir o pudor como sentimento
masculino e feminino, a sexologia forense o apresenta fundamentalmente
como sentimento das mulheres. Donde sua ambigüidade: a mulher precisa
do pudor como arma de sedução, de tal modo que a virtude é o lado
manifesto do vício oculto, que os libidinosos e obscenos não são capazes
de dissimular. Crime é recair na Natureza em plena civilização.
Além de reforçar ideologias acerca do feminino (do ”eterno feminino”), a
definição do pudor pela sexologia forense deixa escapar o essencial: a
descoberta espantosa e assustadora da diferença sexual, as simbolizações
que circunscrevem religiosamente essa descoberta (as idéias de pureza,
impureza e o tabu do corpo, sobretudo o corpo feminino menstruado,
grávido ou no aleitamento), a ritualização social dessa descoberta
(virgindade, castidade, fertilidade) e a percepção difusa de seu perigo. O
pudor, a seguirmos o Gênese, é a descoberta do corpo sexuado e uma das
formas mais arcaicas da repressão sexual. Donde ser virtude e sua
transgressão, pecado ou crime.
A sexologia forense banaliza o pudor.
Num estudo sobre a feminidade (e não ”feminilidade”), a psicanalista
Piera Auligner procurou decifrar a diferença sexual (não como ter ou não
ter determinados órgãos, ter ou não ter determinadas condutas, mas
como forma da relação entre desejo e amor, de sorte que há homens
femininos e mulheres masculinas). Nesse estudo, o pudor ocupa um lugar
especial.
180
Masculidade (e não ”masculinidade”) é separar desejo e amor. O homem
quer afirmar o caráter autônomo do seu desejo, prova de sua virilidade e
que permite considerar todas as mulheres como intercambiáveis (as
célebres 1003 de Don Juan). Mas por quê? Porque se houver necessidade
de amor, o desejo perde a autonomia: não só torna-se desejo desta
pessoa (amada) e de nenhuma outra, mas também revela que, para
realizar-se, o desejo precisa de uma outra pessoa e, dependendo de
outrem, já não é livre nem autônomo (ideologicamente, isto vira
machismo, que é exatamente o contrário da liberdade desejada).
Feminidade(e não ”feminilidade”) é não separar amor e desejo. A mulher
afirma que só pode desejar se, primeiro, amar e faz da fidelidade o centro
da relação amorosa (ideologicamente, isto vira mulher romântica, que é
exatamente a impossibilidade do amor). O amor funciona como álibi para
o desejo porque é a maneira da feminidade esconder que poderia ter um
desejo autônomo — seu desejo é sempre desejo de uma pessoa
determinada e por isso chama-se amor, isto é, relação com um outro. Ao
mesmo tempo em que essa disposição abre caminho para o masoquismo
(ser objeto do desejo alheio, por amor) também abre campo para uma das
mais fundas fantasias da feminidade: a liberdade da prostituta (a
masculidade de quem deseja sem precisar amar).
Mas o que essa complexa teia de sentimentos significa? Que homem e
mulher (tomados evidentemente sem nenhuma conotação anatômica)
reivindicam o direito de escolha (a liberdade): o homem exibe sinais de
escolhedor, exibindo sinais de seu desejo; a mulher exibe sinais de
escolhedora, exibindo a falta de sinais de desejo. Um diz que não precisa
de nada — qualquer mulher lhe serve. A outra também diz que nada lhe
falta, seu amor sendo a causa de ceder ao desejo do homem, ao qual não
precisaria ceder se não o amasse. Em suma: cada qual precisa demonstrar
a si mesmo e ao outro que não é carente, quando são, no âmago de seus
seres, carência pura.
O pudor é a necessidade de um véu que cubra essa nudez fundamental da
feminidade e da masculidade.
181
Finalizaremos este tópico apresentando algumas idéias desenvolvidas por
um filósofo e historiador francês, Michel Foucault, que estudou a história
da sexualidade ocidental moderna.
Antes de passarmos ao seu estudo, gostaríamos de oferecer ao leitor
algumas informações sobre o estilo dos trabalhos de Foucault, que
pretende abordar arqueologicamente os fatos discursivos. A arqueologia
se apresenta como o estudo dos vestígios escondidos que subjazem aos
edifícios teóricos e às práticas sociais, uma trama de idéias, instituições,
atitudes, condutas (filosóficas, científicas, políticas, econômicas, artísticas,
etc.) que são operantes numa sociedade graças ao silêncio em torno do
que as tornou possíveis.
Ao mesmo tempo, Foucault procura escavar esse silêncio num lugar muito
curioso: nos discursos. O silêncio não é o que os discursos não dizem, mas
são os conjuntos de estratégias empregadas para a montagem desses
discursos. Foucault considera também que o modo como uma sociedade
lida com o saber e o poder (termos sinônimos) se realiza através da
montagem de dispositivos discursivos. Isto é, conhecer uma sociedade ou
uma época de uma sociedade, é descobrir o que ela diz, como o diz, por
que o diz, para que o diz, a quem o diz, como foi possível esse dizer, que
práticas o suscitaram e foram suscitadas por ele, e o que não é dito.
Muitos estudiosos criticam o ”método” de Foucault considerando-o
incapaz de acompanhar a gênese histórica necessária de determinadas
formas de saber, de poder e de discurso. Também o criticam por dar um
lugar tão central aos ”fatos discursivos” sem considerar, por exemplo, a
luta de classes. Outros ainda o criticam por considerar que o saber, o
poder e os discursos são estratégias, pois isto os tornaria ou maquinações
sem respaldo na realidade, ou construções arbitrárias que se impõem sem
dificuldade, pela simples persuasão. Enfim, muitos o criticam por
considerar que o poder não se encontra localizado em algum espaço
próprio que seria o lugar do poder (o Estado, a Lei, por exemplo), mas se
encontra espalhado vertical e horizontalmente por toda a sociedade,
numa microfísica do poder. Dizem os críticos que Foucault acaba
confundindo autoridade e poder, coerção e lei, desconhecendo a esfera do
Direito e da Política.
182
Não tentaremos aqui discutir as posições de Foucault nem a de seus
críticos, mas apenas resumir brevemente seus estudos sobre a montagem
do fato discursivo sexualidade, a partir de um conjunto de estratégias
teóricas e práticas em torno de um objeto criado pelo discurso da
sexualidade: o sexo.
A idéia central de Foucault é que a liberação sexual, se for possível, não
passa pela crítica da repressão sexual, mas pelo abandono do discurso da
sexualidade e do objeto sexo e pela descoberta de uma nova relação com
o corpo e com o prazer. Isto significa não só a crítica da medicina, da
pedagogia, do direito, da psiquiatria, da psicanálise e da sexologia, mas
também a crítica de suas críticas, pois estas permanecem no mesmo
campo definido pelas estratégias do discurso da sexualidade.
Foulcaultianamente, este livro seria um caso exemplar de submissão a tais
estratégias, visto que não só falamos o tempo todo em sexualidade, mas
ainda lhe demos um lugar privilegiado na relação com o desejo. Ora, para
Foucault, a liberação sexual passa, entre outras coisas, pelo abandono da
perspectiva do desejo, isto é, do simbólico.
Deixamos ao leitor a decisão a esse respeito.
Se, por um lado, consideramos os estudos de Foucault luz que ilumina o
tema e as práticas da repressão sexual, entretanto, não temos certeza de
que escolheríamos sua solução. Ainda cremos no inconsciente e no desejo
(além de crermos, como ele, no prazer e no amor, evidentemente).
Se acompanharmos Michel Foucault, num livro intitulado História da
Sexualidade — A Vontade de Saber, muito do que dissemos até aqui teria
de ser abandonado. Embora tenhamos insistido no fato de que a repressão
sexual não se realiza apenas pelo conjunto explícito de interdições e
censuras, mas sobretudo pelas práticas, idéias e instituições que
regulamentam o permitido, mantivemos presente a idéia da repressão
como um processo de mutilação, desvalorização e controle da sexualidade
como pecaminosa, imoral, viciosa. Ora, Foucault apresenta um quadro
bastante diverso, a partir do que designa como ciência sexual, cuja
nascente é religiosa.
A ciência sexual, nascida no fim do século XVIII e desenvolvida durante os
séculos XIX e XX, é, na verdade, um conjunto
183
de disciplinas científicas e de técnicas relativas ao comportamento sexual:
pedagogia, medicina, direito, economia, demografia, psiquiatria e
psicanálise seriam suas principais componentes.
A ciência sexual se opõe a uma outra instituição, existente em quase
todas as culturas, sobretudo nas orientais: a arte erótica. Sendo arte (em
grego, arte se diz techné, técnica), é um conjunto de técnicas e
ensinamentos secretos (rituais de iniciação e preparação erótica de
homens e mulheres) destinados à plenitude sexual. Nela, procuram-se o
domínio corporal do corpo (e não seu domínio pelo intelecto), o gozo
perfeito, o esquecimento do tempo e dos limites e o elixir da longa vida,
isto é, o prazer perfeito como adversário da morte (como se nota, o
cristianismo não poderia possuir arte erótica, uma vez que, como vimos,
nele sexo e morte são inseparáveis).
Em contrapartida, na ciência sexual, procura-se dividir o corpo,
regulamentar o tempo e o espaço, limitar o prazer para que não conduza à
loucura ou à morte. Na qualidade de ciência, procura a verdade e a
falsidade sobre o sexo.
Na arte erótica, se faz sexo. Na ciência sexual, se fala de sexo.
Segundo Foucault, contrariamente do que se pensa, isto é, que a
repressão sexual se exerce pela censura, pela proibição e pelos interditos,
na realidade essa ”hipótese repressiva” (como a chama Foucault) está
enganada. Em nenhuma sociedade falou-se tanto, escutou-se tanto,
discutiu-se tanto, detalhou-se tanto, estudou-se tanto e regulamentou-se
tanto o sexo como na nossa. O sexo, em nossa sociedade, sempre foi
aquilo de que se deve falar, falar muito e falar tudo. Até o mutismo não é
censura, mas uma certa estratégia de silêncio para maior eficácia do
discurso sobre o sexo.
A ciência sexual é inseparável da relação poder-prazer, mas não como
logo imaginaríamos. Há prazer em ter poder sobre o sexo (vigiar, espiar,
revelar, fiscalizar, regular, punir, premiar) e há poder em ter prazer
(escapar da fiscalização, da regulação, da punição, resistir, transgredir,
escandalizar). Uma verdadeira trama de sedução se espalha pela casa,
pela escola, pelo dormitório dos colegiais, pelos quartéis, pelas salas de
consulta médica: pais e filhos, adultos e crianças,
184
mestres e alunos, inferiores e superiores, médicos e pacientes seduzem-se
uns aos outros na trama poder-prazer. A peculiaridade dessa trama é que
nela o sexo transita sem ser monogâmico, heterossexual nem
necessariamente genital. E esse trânsito não é reprimido, mas é parte da
estratégia geral da sexualidade controlada.
O que é essa estratégia? É a produção de um objeto de conhecimento: o
sexo.
Iniciada nos fins do século XVIII, quando os Estados começam a se
preocupar com os problemas de população, isto é, com a demografia na
sua relação com a economia, a ciência sexual se consolida no século XIX,
inscrevendo-se em dois registros: no da biologia da reprodução ampliada
e no da medicina, voltada para a higiene sexual e a terapia de doenças
sexuais (as doenças venéreas), impotência masculina e frigidez feminina).
É o momento também em que se prepara o surgimento de uma idéia que
viria a tornar-se central na antropologia social: a da relação entre
proibição do incesto e nascimento da cultura. Segundo Foucault, essa
elaboração é decorrência dos estudos demográficos que levaram à
codificação das relações de parentesco e à sua legislação para melhor
controle populacional, por parte do Estado.
Quatro serão os recursos empregados:
1) a codificação das técnicas de ”fazer falar” (perguntas, lembranças,
associações livres, associações causais);
2) a postulação de uma causalidade sexual difusa e geral (o sexo pode ser
causa de tudo, desde a apoplexia até a degenerescência da raça);
3) postulação de um princípio de clandestinidade ou de latência do sexo
(tudo o que à primeira vista não é sexual, pode muito bem sê-lo);
4) medicalização do sexo pela classificação das anomalias, disfunções e
moléstias e pela proposta de terapias.
Quatro serão as estratégias empregadas:
1) histerização do corpo feminino (hipersexualizada e fecunda, a mulher
se distribuir em dois papéis, a mãe e a histérica);
2) pedagogização do sexo infantil (a criança é um ser sexuado polimorfo,
desconhecendo a sexualidade saudável, de modo que suas práticas
sexuais colocam em risco sua vida, sua sanidade mental e a da futura
prole; o risco principal é a masturbação);
3) socialização das condutas de procriação ou regulação demográfica
185
(interdição das práticas anticoncepcionais pelo Estado e pela medicina);
4) psiquiatrização do prazer perverso (que, de pecado e vício, se torna
doença).
O essencial, diz Foucault, é perceber que os recursos e as estratégias
produziram algo até então inexistente: a sexualidade (como vimos, logo
no início deste livro, ao examinarmos os dicionários e as datas de aparição
do vocábulo). Assim, em lugar de encontrarmos repressão sexual, nos
deparamos com a produção da sexualidade como um saber que diz o
verdadeiro e o falso sobre o sexo, e cujo ponto de partida foram regras e
técnicas para maximizar a vida, para o crescimento demográfico e
controle familiar da população.
A pedagogia, encarregando-se da criança; a medicina, das mulheres; a
psiquiatria, da degenerescência; a economiademografia, da população; e
o Estado, da ”moralização dos costumes sexuais dos pobres”, fizeram da
família não o lugar da repressão, mas o espaço fundamental da
sexualização dos corpos e de todas as práticas que, aparentemente, ferem
a vida familiar. Está preparado o campo para a psicanálise. Lembra
Foucault que o surgimento do conceito freudiano de complexo de Édipo
coincide com o momento em que o Código Civil eliminou a figura jurídica
do Pátrio Poder (o poder do pai, a lei do pai).
O dispositivo da sexualidade, elaborado na sociedade burguesa, substitui
o critério do sangue pelo do sexo e, ao fazê-lo, torna possível a idéia
central da psicanálise: o sexo como simbolização Essa simbolização,
porém, diz Foucault, é um mecanismo do poder para dirigir o corpo, a
vida, a proliferação. ”Saúde, progenitura, raça, futuro da espécie,
vitalidade do corpo social, o poder fala da sexualidade e para a
sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e alvo”.
Através dela é construído um objeto específico: o sexo.
Na histerização da mulher, o sexo foi definido de três maneiras: como algo
comum ao homem e à mulher; como o que pertence por excelência ao
homem e falta à mulher; mas ainda o que constitui, por si só, o corpo da
mulher, tanto para ordená-lo à reprodução quanto para perturbá-lo.
Na sexualização da infância, elabora-se a idéia de um sexo presente
(anatomicamente) e ausente (fisiologicamente); também presente, se
considerado em sua deficiência reprodutora;
186
e presente, mas escondido, através de manifestações cujos graves efeitos
só aparecerão na vida adulta.
Na psiquiatrização das perversões, o sexo foi referido a funções biológicas
e ao aparelho anatomofisiológico que lhe dá sentido ou finalidade;
também como instinto, cujo desenvolvimento pode ser perturbado por
causas endógenas ou exógenas, produzindo as perversões. O sexo é
função e instinto, portanto, sujeito a disfunção ou a desvio.
Na socialização das condutas procriadoras, o sexo é descrito como uma lei
da realidade e uma economia de prazer que tenta contornar a lei, uma das
fraudes principais sendo o coito interrompido.
O objeto sexo aparece, portanto, definido em quatro grandes disposições:
todo-parte, presença-ausência, excesso-deficiência, função e instinto. No
jogo entre o real e o prazer se definem a histeria, o onanismo, o fetichismo
e o coito interrompido como principais doenças, desvios, perversões ou
crimes. Seus contrários são a saúde, a normalidade, a virtude e a lei.
Ora, diz Foucault, essa estratégia acaba sexualizando tudo, criando uma
verdadeira ”monarquia do sexo” na qual não só o sexo é vigiado e
regulado, mas sobretudo torna-se fonte da inteligibilidade de nosso ser.
Para sabermos o que somos, temos de conhecer nossa sexualidade. É isto
a psicanálise, resultado de um certo imaginário social.
É neste contexto que Foucault conclui: a liberação do dispositivo da
sexualidade não passa pelo sexo-desejo como contra-ataque, mas pelos
corpos e pelos prazeres. É o discurso da sexualidade e o objeto sexo que
precisam ser abandonados.
”Suga-me com força, Amante, até que eu desfaleça e possa amar”
Novalis
”É bom morrer d’amor mas não viver do referido material
É bom cantar d’amor mas não desencantar o clássico animal.”
Rubens Rodrigues Torres Filho
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”A alegria é a prova dos nove.
Contra a realidade social vestida e opressora, cadastrada por Freud — a
realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições, sem
penitenciárias, do matriarcado de Pindorama.”
Oswald de Andrade — Manifesto Antropófago
O sexo é o pecado original: primeiro pecado e pecado da origem. É a
queda vertiginosa dos seres humanos que se descobrem separados e
diferentes de Deus porque possuem corpo, nascem e morrem, isto é, não
são seres infinitos nem eternos, mas finitos e mortais. O pecado original é
a descoberta e a articulação, impossível de ser desfeita, entre sexo e
morte. É também a descoberta da vida como pena e trabalho: trabalho da
terra (para sobreviver) e trabalho do parto (para perpetuar a espécie
mortal). Destruição da felicidade primordial.
188
Não existe pecado ao sul do Equador?

A luz difusa do abajur lilás, ao som deste bolero, vida, disse o campônio à
sua amada:
— Minha idolatrada, cabocla seu olhar está me dizendo que você está me
querendo, que você gosta de mim.
— Ai ioiô, tenha pena de mim. Fui olhar pra você, meus olhinhos...
Não existe pecado ao sul do Equador, vamos fazer um pecado rasgado. Se
o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois? São dois pra cá, dois pra lá.
Mas a normalista linda, não pode casar ainda, só depois que se formar. O
pai da moça é zangado e o remédio é esperar.
— Quem não tem seu sassarico, sassarica mesmo só, porque sem
sassaricar, esta vida é um nó, nó, nó.
— Ai, como esse bem demorou a chegar.
— Quem sabe, sabe como é gostoso gostar de alguém. Ai, morena, deixa
eu gostar de você. Vem sentir o calor dos lábios meus, essa paixão que
me devora o coração. Vem, vem, vem.
Existencialista, com toda razão, só faz o que manda o seu coração.
— E que tudo mais vá para o inferno. Quero ficar no teu corpo feito
tatuagem que é pra te dar coragem pra seguir viagem quando a noite
vem; me perpetuar em tua escrava, que você, pega, esfrega, mas não
larga.
189
Mas hoje daria um milhão para ser outra vez Conceição.
— Meu primeiro amor, foi como uma flor que desabrochou e logo
murchou. A vergonha foi a herança maior que meu pai me deixou. Só
vingança, vingança aos santos clamar. Você há de rolar como as pedras
que rolam na estrada, sem ter nunca um cantinho de seu para poder
descansar.
— Quem inventou o amor, não fui eu, nem você, nem ninguém. Não fazes
favor nenhum em gostar de alguém. O amor acontece na vida. Estavas
desprevenida e, por acaso, eu também. Risque meu nome do seu caderno.
— Não suporto o inferno do nosso amor fracassado. Quando a lembrança
com você morar e, de saudades bem baixinho você chorar, vai lembrar
que um dia existiu um alguém que só carinho pediu e você fez questão de
não dar, fez questão de negar.
— Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Ao som desse bolero,
vida, vamos recomeçar.
— O teu cabelo não nega, mulata, que és mulata na cor. Mas como a cor
não pega, mulata, mulata eu quero o teu amor.
— Ai, ioiô, fui olhar pra você. Ai, como esse bem demorou a chegar.
Estava jogando sinuca quando:
— Uma nega maluca me apareceu. Vinha com o filho no colo e dizia pro
povo que o filho era meu. Não Senhor!
— Sim senhor!
— Não senhor!
— Sim senhor! Tome que o filho é seu. Tome que Deus lhe deu!
Criança feliz, feliz a cantar. Alegre a embalar no seu coração. ô meu bom
Jesus, que a todos conduz, olhai as crianças do nosso Brasil.
— Não posso ficar nem um minuto mais, mulher. Sou filho único, tenho
minha mãe para cuidar. Não posso ficar. Minha mãezinha querida,
mãezinha do coração. Te adorarei, toda vida, com toda devoção. ô minha
mãe, minha santa querida, és tudo o que eu tenho na vida, mãezinha do
coração.
Chega à choupana o campônio. Encontra a mãezinha a rezar. Tira do peito
sangrando, da velha mãezinha o pobre
190
coração. ”Vem buscar-me, filho, aqui estou, que ainda sou teu.”
— Mamãe me deu um conselho, na hora d’eu embarcar meu filho, anda
direito, que é pra Deus te ajudar. Que também significa: eu desconfio que
o nosso caso está na hora de acabar.
— Mentira, foi tudo mentira, você não me amou. Mentira, foi tanta mentira
que você contou. Cansei de ilusões.
Ao som desse bolero, vida, vamos recomeçar.
— Você, um sonho tão real, dizendo que me ama, deitada em minha
cama. Tão minha, tão linda e tão mulher.
— Ah! Eu quero amor, o amor mais profundo. Eu quero toda a beleza do
mundo, para enfeitar a noite do meu bem.
— Nosso amor, que eu não esqueço, e que teve seu começo numa festa
de São João, morre hoje sem foguete, sem luar nem violão. Pois é, falaram
tanto que a morena foi embora. Disseram que ela era a maioral; que eu é
quem não soube aproveitar. A maldade desta gente é uma arte. Como
estás, onde estás, com quem estás, agora?
— A gente briga, fica pensando que não vai sofrer, que não faz mal se
tudo terminar. Mas chega um dia, a gente vê que ficou sozinha, vem a
vontade de chorar baixinho. Foi isso mesmo que se deu comigo. Eu tive
orgulho e tenho por castigo a vida inteira pra me arrepender. Para as
pessoas que eu detesto, diga sempre que eu não presto, que o meu lar é o
botequim, que eu não mereço a comida que você pagou pra mim.
— Detalhes. Você vai lembrar de mim. Você vai pensar em mim.
— Se alguma pessoa amiga, pedir que você lhe diga. Diga que você me
adora, que você lamenta e chora a nossa separação.
Ao som desse bolero, vida, vamos recomeçar.
— Mas, se ela voltar? Que coisa linda, que coisa boa. Beijinhos e carinhos
sem ter fim. Que é pra acabar esse negócio de você longe de mim. Que é
pra acabar com esse negócio de você viver sem mim. Mas a base é uma
só: tanto faz no sul como no norte, eu sou homem, muito homem, eu sou
homem com agá. Meu pai na cama, minha mãe no pisador. Ela no céu, ele
no mar.
191
— Que será, da minha vida sem o seu amor, da minha boca sem os beijos
teus? Da minha alma sem o teu calor?
— Vem, vem, vem. E só então serei feliz, bem feliz. Olha que coisa mais
linda, mais cheia de graça...
Que coisa mais linda, mais cheia de graça, Maria, Maria. É ela que passa,
lata d’água na cabeça, lá vai Maria. Sobe o morro e não se cansa, pela
mão leva a criança, lá vai Maria. Mais cheia de graça.
— Cuidado, garoto, eu sou perigosa. Eu vou fazer você ficar louco.
— Já me aborreci, me zanguei. Amélia é que era mulher de verdade.
Marina, morena, Marina, você se pintou. Não pinte esse rosto que é só
meu. Amélia não tinha a menor vaidade, Amélia é que era mulher de
verdade. Marina, morena, não sei perdoar. Saiu dizendo: vou ali, já volto
já. Mas não voltou, por quê? Por que será? Maria, Marina, Maria, onde
estás, com quem estás agora?
— Porque esta vida tá ficando um osso duro de roer. E então eu acho bom
lembrar que o passarinho da gaiola não esquece de cantar.
— Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma
mulher? E depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um
outro qualquer? É preciso ter nervos de aço, sem sangue nas veias e sem
coração. Vai dar na primeira edição: Crime de sangue e paixão, num bar
da Avenida São João.
Escracho, esculacho.
— Pafunça, que pena, Pafunça, que o nosso amor virou bagunça.
— Que será, da minha alma sem o teu calor? Se a luz difusa do abajur lilás
nunca mais iluminar outras noites iguais?
Escracho, esculacho.
— Olha a cabeleira do José! Será que ele é? Será que eleé?
Que não tem governo porque não faz sentido.
— Mas não voltou, por quê? Por que será?
— Ela diz que com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher. Ela diz
que vai ser o que sempre quis, inventando um lugar onde a gente e a
natureza feliz vivam em comunhão. E a tigresa possa mais do que o leão.
192
Escracho, esculacho.
— Olha a cabeleira do José, homem com agá. Vem, vem, vem. Vem sentir
o calor dos lábios meus.
Não tem censura, não tem juízo.
— Lança, lança perfume na banheira de Afrodite. Me deixa de quatro no
ato. Me enche de amor, de amor. Lança, lança perfume.
Está na natureza.
Ai de quem mergulhar nesse mar de veneno. Ai de quem negar esse mar
de veneno mil vezes maldito.
Na viola que ponteia, disse o campônio à sua amada:
— Minha idolatrada, você se lembra da casinha pequenina, onde o nosso
amor nasceu? Tinha um coqueiro do lado que, coitado, de saudade já
morreu.
Viva a palhoça, ça, ça.
Meu Brasil, brasileiro, terra de amor e pandeiro, e como a cor não pega,
mulata, mulata eu quero o teu amor. Opa! E não voltou, por quê? Por que
será? Nega do cabelo duro, cadê o pente que penteia! A cor não pega,
mulata. A cor não pega. E não voltou, por quê? Por que será?
— Mora na filosofia: que também significa: eu já lhe dei meu corpo, minha
alegria, deixa em paz meu coração, que ele é um pote, até aqui, de
mágoa. E qualquer desatenção, faça não. Pode ser a gota d’água.
— Mas a cor não pega, mulata.
— Pode ser a gota d’água. Pode ser a gota d’água. Até aqui, de mágoa.
O monumento é de papel crepon e prata, meu Brasil, brasileiro.
Teus cabelos graúna
tentando o vôo
tremendo as asas
e pairando sobre mim
Teus olhos dois grandes lagos
serenos, serenos
onde bebo toda tua sede
e me embriago
e me enveneno
Tua boca papoula enfebrecida
molhada pelo sereno
vermelha papoula viva
193
Tuas mãos uma carícia
do vento
arrepio, arrepio, sofreguidão
Teu corpo susto moreno
surpresa solta
e sonidos, sonidos
de medo e solidão.*
— Chega de tentar dissimular. Chega de temer. Chorar. Sofrer.
Desvirginando a madrugada, eu quero meu amor se derramando. Não dá
mais pra segurar. Explode coração.
”A maior liberdade sexual existente determina freqüentemente maior
número de relações sexuais, além da facilidade inusitada na variação de
parceiros. Tanto a freqüência como a variação são causas verdadeiras de
maior risco de contágio. O progresso universal que, de qualquer forma,
trouxe essa maior liberdade aos homens parece que contribuiu
favoravelmente para a transformação dos conceitos radicais quanto ao
uso do sexo. Este, atualmente, é usado não somente para servir à causa
biológica da procriação, como demonstrar amor, mas também serve como
recreação ou tão-somente para revelar afeições fugazes e pouco intensas.
O indiscutível aumento dos desquites, a procura de parceiros novos, a
insegurança e inquietude conjugais, que induzem mais facilmente às
relações extra-conjugais, constituem fatores atuantes para o aumento da
freqüência sexual indiscriminada. Somem-se a isso as facilidades da
anticoncepção, a falta de esclarecimento sobre o tema e o despreparo da
população. E, finalmente, como fatores importantes no aumento das
doenças venéreas, a inexistência de serviços especializados de
venerologia (...) A conclusão é que se admite, na realidade, um verdadeiro
aumento das doenças venéreas determinado pelo maior número de
relações entre os jovens e os casais desajustados, com maior risco de
contágio venéreo” (Dr. Fernando Pedrosa Filho, médico ginecologista, RJ).
”Na clínica privada, onde também fazemos ginecologia, verificamos um
fato interessante: quer em pacientes casadas, como nas solteiras, o
período de maior número de consultas por moléstias venéreas ocorria
imediatamente após o mês de fevereiro (...) A virgindade já era — é o que
os jovens apregoam. Os jovens, que antigamente mantinham relações
sexuais apenas com prostitutas controladas pelo Departamento Estadual
de Saúde, de repente, descobriram uma maneira mais barata e mais
prática de se satisfazerem — com as amadoras que, quando adquirem
uma moléstia qualquer, por falta de controle, coragem e instrução,
transformam-se em transmissoras eficazes do mal.
Nota:
(*) Sonidos, sonidos, de Ednardo.
Fim da nota.
194
No verão, os maridos permanecem nas cidades e vão apenas nos fins de
semana para a praia visitar as famílias. Tanto o marido borboleta como a
mulher ou moça, trocam de parceiros no sexo e isto explica o fato de
tantas esposas retornarem de veraneios com problemas venéreos,
adquiridos através do marido ou do rapazinho que permanecia na praia
durante a semana” (Dr. Paulo Padilha Duarte, ginecologista, RS).
”De 1960 para cá, tem-se notado um progressivo e constante aumento na
incidência de moléstias venéreas. Dentre os diferentes fatores que
contribuem para esse assunto, devemos citar:
1) o uso indiscriminado de qualquer antibiótico para qualquer infecção;
2) a perda do medo da geração atual em contrair moléstias venéreas, pois
“os antibióticos curam todas”;
3) a liberação sexual, principalmente entre os grupos mais jovens (15-19
anos), onde os hábitos higiênicos ainda não se desenvolveram;
4) o aparecimento dos chamados hippies que, com suas andanças e maus
hábitos higiênicos, são grandes vetores na disseminação das moléstias
venéreas;
5) as facilidades da rápida locomoção aérea, permitindo que em algumas
horas as moléstias venéreas sejam transmitidas e transferidas em vários
continentes;
6) o número dos chamados “portadores assintomáticos” (que não
parecem estar doentes) é crescente, sua incidência no sexo feminino
sendo de 40%. A chamada jovem-guarda está em franca atividade sexual
e grande número de blenorragia aguda e sífilis em virgens é decorrente do
coito anal, lembrando-se que a moléstia venérea localizada na região ano-
retal é comumente de diagnóstico tardio. Enquadram-se aí os
homossexuais cujo aumento é bastante expressivo em todo o mundo.”
(Dr. José Cury, urologista, SP).
”A prática da homossexualidade, em Recife, faz-se presente bem
acentuada, com boates de travestis e lésbicas (exclusivas), provocando
conseqüentemente, trabalho constante e de vigilância permanente da
polícia especializada de costumes” (Dr. Venâncio Gonçalves de Lima,
titular da Delegacia de Costumes, PE).
”Dentro de nossa estrutura funcional, cabe à Divisão de Investigações,
através da Delegacia de Costumes, a prevenção e repressão da prática de
diversos delitos ligados, de uma forma ou de outra, à problemática da
prostituição, hoje acrescida com o comportamento escandaloso dos
travestis, que disputam “par e passo” com as prostitutas, inclusive no
“trottoir”. Como medida saneadora para tais atitudes conturbadoras da
moral e dos bons costumes, adotamos a sistemática da autuação por
infração ao dispositivo contravencional da Vadiagem (art. 59 da Lei de
Contravenções Penais)... Isto fez com que houvesse um arrefecimento
nessas mazelas sociais. Frise-se
195
ainda a boa acolhida que teve essa prática policial-judiciária junto ao
Poder Judiciário” (Dr. Antônio Diniz Alves de Oliveira, diretor da Divisão de
Investigações, RS).
”Algumas observações pessoais nos levam a dizer que os homossexuais
são vistos com certa indiferença pelas pessoas da classe menos
favorecida, que, por ignorância, não dão importância alguma ao
problema” (Ana Elizbeth Perrucci do Amaral, socióloga, PE).
Essas falas de especialistas (isto é, daqueles que em nossa sociedade são
considerados competentes porque estão na posse de conhecimentos que
outros não possuem, posse que lhes dá o direito de controlar, disciplinar,
explicar e regular a vida das pessoas) foram retiradas de um livro
intitulado Comportamento Sexual do Brasileiro, da autoria de Délcio
Monteiro de Lima. O livro é de 1976. Ainda estava faltando AIDS, como se
nota (os grifos, nos depoimentos, são meus).
A intenção do autor, jornalista, era a de compreender e auxiliar homens e
mulheres cujas cartas a jornais e revistas exprimiam medos, angústias,
frustrações quanto ao seu corpo e ao sexo. Além das cartas, o autor ouviu
e recebeu respostas a questionários que distribuiu por todo o país. A
intervenção dos especialistas, ao que tudo indica, tinha a função de servir
de esclarecimento, ajuda e compreensão dos problemas. Não sabemos se
o autor se considerou satisfeito com os esclarecimentos, nem se
auxiliaram as pessoas, como era sua intenção. A nós, o que mais
impressiona (embora não nos surpreenda) é a mescla de
conservadorismo, autoritarismo e moralismo por parte dos especialistas.
Que os problemas apontados existem, que as pessoas se atormentam com
eles, que seria desejável poder resolvê-los, quem duvidaria? Mas a fala
dos especialistas possui três características principais: culpabiliza as
pessoas por suas dificuldades sexuais, atribui essas dificuldades à
liberdade sexual e propõe medidas saneadoras física, moral, jurídica e
policialmente. Isto é, a fala dos especialistas faz da repressão científica e
policial a solução das tragédias sexuais ou a resposta às aspirações de
cada um.
Não existe pecado ao sul do Equador?
Nosso céu tem mais estrelas, nossos bosques têm mais flores, nossa vida,
mais amores. ”A natureza aqui, perpetuamente em festa, é um seio de
mãe a transbordar carinhos.”
196
País telúrico (ah! essa seca nordestina...) País tropical (ah! essa enchente
sulina...). País da democracia racial (e como a cor não pega...). País
sensual (ah! esses hippies, esses aviões, essas amadoras, essas
borboletas, essas mariposas, esses homossexuais, essas lésbicas, esses
travestis, essas prostitutas, essas doenças venéreas, esses maus
costumes, essas classes desfavorecidas ignorantes...). País de gente
pacífica, ordeira e cristã... Explode coração!
Afinal, que é o Álbum de Família, de Nelson Rodrigues?
Incestos cruzados (pai-filha mãe-filho, irmão-irmã) e suas conseqüências:
loucura, suicídio, castração voluntária, assassinatos. Adultério (com
requinte: ao pai de família são trazidas, pela cunhada alcoviteira ou por
outros pais de família, meninas de 12 a 15 anos que, grávidas, são
deixadas para morrer). Rancor e ressentimento de machos e fêmeas que
desejam o que eles mesmos julgam pútrido e infame. Lesbianismo.
Necrofilia. Inimigos mortais resguardados pelo segredo de família,
conservados no grande fetiche: o álbum de família.
Qual o segredo da família? Qual a história desse álbum?
”Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais
existisse, a não ser nós, quer dizer, você, papai, eu e meus irmãos. Como
se a nossa família fosse a única e a primeira. Então, o amor e o ódio
teriam de nascer de nós.”
Mas, em que a radiografia do álbum é repressiva?
No fato de que Nelson Rodrigues substitui o tom trágico e revelador pelo
tom moralista: a família, apresentada com os traços fortes da tara, da
doença e da perversão, significa, apenas, que esta família não é uma
família normal.
O que seria o tom não-moralista? Talvez o tom, entre cético e irônico, de
quem aceita a confusão, apesar da pretenção ordeira da lei e da exigência
hipócrita da moral? Algo assim, como o conto de Clarice Lispector, Um
Caso Complicado
”Pois é. Cujo pai era amante, com seu alfinete de gravata, amante da
mulher do médico que tratava da filha, quer dizer da filha do amante e
todos sabiam (...) Pois a filha teve gangrena na perna e tiveram que
amputá-la (...) daí a três meses morreu (...) a morte é de grande
escuridão. Ou talvez não, não sei como é, ainda não morri (...) Essa
197
mulher lá um dia teve ciúmes. E — tão requintada como Nelson Rodrigues
que não negligencia detalhes cruéis. Mas, onde estava eu, que me perdi?
(...) A mulher teve ciúmes e enquanto o Bastos dormia despejou água
fervendo do bico da chaleira dentro do ouvido dele (...) pegou um ano e
pouco de cadeia (...) Aí é que entra o pai dela (da menina de 17 anos,
morta há muito tempo), como quem não quer nada. Continuou sendo
amante da mulher do médico que tratara sua filha com devoção. Filha,
quero dizer, do amante. E todos sabiam, o médico e a mãe da ex-noiva.
Acho que me perdi de novo, está confuso, mas que posso fazer? (...) A
mulher do pai, portanto mãe da ex-noivinha, sabia das elegâncias
adulterinas do marido que usava relógio de ouro e anel que era jóia,
alfinete de gravata de brilhante negociante abastado, como se diz, pois as
gentes respeitam e cumprimentam largamente os ricos, os vitoriosos, está
certo? (...) Ãs vezes me dá enjôo de gente. Depois passa e fico de novo
toda curiosa e atenta. É só.”
Ou, talvez, quem sabe, no tom amargo, entre amoroso e desesperançado
do poema de Manoel Carlos, Família?
Na cristaleira, sem prata e porcelana,
um jogo de cristal com falhas bem humanas
reflete atentamente a vida do casal.
No mais as coisas correm muito bem
e o pai aposentado ainda sorri
ao cumprir com a mulher o seu dever:
se escavam e se devoram longamente
com as mãos, que agora dão maior prazer.
o pai liga a tevê num gesto natural: a sala se incendeia, a dor se nega, e o
bicho da ilusão diverte e cega a noite amordaçada do casal.”
Ou, quem sabe, talvez o tom não-moralista se encontre no tom ético? Na
revelação trágica das profundezas? O que seria a saga da família
desnudada?
”... entenda, Ana, que a mãe não gerou só os filhos quando povoou a casa,
fomos embebidos no mais fino caldo dos nossos pomares, enrolados em
mel transparente de abelhas verdadeiras, e, entre tantos aromas
esfregados em nossas peles, fomos entorpecidos pelo mazar
198
suave das laranjeiras; que culpa temos nós dessa planta da infância, de
sua sedução, de seu viço e constância? (...) Ana, ainda é tempo, não me
libere com a tua recusa, não deixe tanto à minha escolha, não quero ser
tão livre, não me obrigue a me perder na dimensão amarga deste espaço
imenso, não me empurre, não me conduza, não me abandone na entrada
franca desta senda larga, já disse e repito ainda uma vez: estou cansado,
quero com urgência o meu lugar na mesa da família! (...) Ana, te chamo
ainda à simplicidade, te incito agora a responder só por reflexo e não por
reflexão, te exorto a reconhecer comigo o fio atávico desta paixão: se o
pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe,
transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição
(...) não tenho culpa deste sol florido, desta chama alucinada, não tenho
culpa do meu delírio: uma conta do teu rosário para minha paixão, duas
contas para meus testículos, todas as contas deste cordão para os meus
olhos, dez terços bem rezados pelo irmão acometido (...)...
Ana ergueu-se num impulso violento, empurrando com a vibração da
atmosfera a chama indecisa das velas, fazendo cambaleante o transtorno
ruivo da capela: vi o pavor no seu rosto, era um susto de medusa cedendo
aos poucos, e, logo depois, nos seus olhos, senti profundamente a irmã
amorável temendo por mim, e sofrendo por mim, e chorando por mim, e
eu que mal acabava de me jogar no ritual deste calor antigo inscrito
sempre em ouro na lombada dos livros sacros (...)
... Ana (que todos julgavam sempre na capela) surgiu impaciente numa só
lufada, os cabelos soltos espalhando lavas, só ligeiramente apanhados
num dos lados por um coalho de sangue (que assimetria mais
provocadora!), toda ela ostentando um deboche exuberante, uma borra
gordurosa no lugar da boca, uma pinta de carvão acima do queixo, a
gargantilha de veludo roxo apertando o pescoço (...) foi assim que Ana,
coberta com as quinquilharias mundanas da minha caixa, tomou de
assalto a minha festa, varando com a peste no corpo o círculo que
dansava (...)
... a testa nobre de meu pai, ele próprio ainda úmido de vinho, brilhou um
instante à luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se cobriu de um
branco súbito e tenebroso: e a partir daí todas as rédeas cederam,
desencadeando-se o raio numa velocidade fatal: o alfanje estava ao
alcance da mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai
atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais
pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe nos meus
olhos!), não teria a mesma gravidade se uma ovelha se inflamasse, ou se
outro membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio
patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina
(pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava...”
199
Esses trechos foram recolhidos do livro de Raduan Nassar, Lavoura
Arcaica.
Muitos estudos têm sido feitos nos últimos tempos, no Brasil, sobre a
sexualidade e sua repressão. Tanto movimentos feministas,
homossexuais, negros, quanto trabalhos de antropólogos, historiadores,
psicólogos, além de tentativas diversas no campo da educação sexual têm
contribuído para a compreensão das formas visíveis e invisíveis da
repressão sexual, com suas componentes racistas e classistas, formando
intrincada rede de idéias, práticas e instituições, sustentadas por um
imaginário social contraditório onde se cruzam e se entrecruzam sem
cessar a crença na espontaneidade sensual do povo brasileiro, o
conservadorismo e a confiança na modernidade científica.
Seria impossível, neste livro, abordarmos e comentarmos essa vasta
bibliografia. Aqui apenas apontaremos, de modo esparso e breve, alguns
temas ou questões que nos parecem sugestivos para o assunto.
Assim, por exemplo, valeria a pena realizar, para a linguagem erótica
obscena contemporânea, um estudo semelhante ao que foi feito pelo
professor Dino Preti em seu livro A Linguagem Proibida — um estudo sobre
a linguagem erótica, no qual o autor examina o Diccionário Moderno
(escrito por volta de 1903), cujos verbetes eram publicados num pasquim
carioca, O Coió.
A origem da palavra coió, diz Preti, é confusa, mas seu uso é claro. Coió é
o namorador, o amante, o conquistador. A expressão ”coió sem sorte”,
referida ao fanfarrão, mas ridículo ou mal sucedido, vem dar no coió que
conhecemos: tonto, bobo.
Datado do fim do período áureo da boêmia carioca, o Diccionário Moderno
apresenta frases feitas e vocábulos gírios que contêm a idéia de injúria ou
blasfêmia (os palavrões), os que se referem a tabus sexuais através de
imagens populares, os que aludem aos órgãos genitais masculinos e
femininos como grosseiros, os que se referem diretamente a atos sexuais
em aspectos degradantes ou viciosos e os que aludem a contextos
também considerados grosseiros, degradantes ou viciosos.
200
Vão constituir a gíria sexual ou erótica e, detalhe interessante, muitas
vezes as palavras já pertenciam à gíria, mas sem conotação sexual,
passando para a ”linguagem proibida” ao receberem a conotação sexual
nos sentidos acima mencionados.
É o que ocorre, por exemplo, com a palavra cacete, na gíria comum
significando maçante, na erótica, pênis. Ou com a palavra bolacha,
anteriormente significando bofetada e, na gíria erótica, nádegas. Grude
que, de comida e namora, passa a esperma. Lata que, de rosto e ser
recusado, passa a ânus. Trepar que, na gíria comum, significa falar da vida
alheia, passa a significar o ato de copular. A passagem de um contexto
para o outro se dá por referência figurada aos atos e órgãos sexuais, ou à
vida amorosa, ou a linguagens de grupos fechados ou à fala na
prostituição. Fogosa é excitada; espirro é aborto; zé pereira, gravidez;
canhão, mulher velha e feia; menelau, marido enganado; mina, prostituta;
tipógrafo, o cafetão; zona, o local do meretrício.
Preti estuda os procedimentos sociolingüísticos que permitem o
deslizamento do sentido de uma palavra para um outro, seja por afinidade
sonora, visual ou táctil, seja pelo universo de significações a que
pertencem (como, por exemplo, a relação existente em quase todas as
línguas entre sexualidade e comida ou o ato de comer), seja pela
transferência do conteúdo não erótico para o erótico, na forma da
obscenidade ou da pornografia.
O Diccionário Moderno é um catálogo de vocábulos e de frases feitas
referentes a todas as atividades direta ou indiretamente sexuais
(genitais), classificadas da letra a à letra z, abrangendo adultério, namoro,
casamento, prostituição, homossexualismo masculino e feminino,
conquista, sedução, impotência, frigidez, formas variadas (colocadas como
anormais de relacionamento sexual. Passagem de palavras da gíria
referente a dinheiro para a do erotismo (os órgãos sexuais femininos são
chamados mina, os masculinos, bagos, que na gíria dos gatunos
significava dinheiro), assim como as da culinária (azeite, para namoro;
azeiteiro, para cafetão; filé para mulher de nádegas salientes; ostra para
mulher velha); de vocábulos pertencentes, por exemplo, à linguagem
portuária ou à de algumas profissões {costureira, a meretriz; catraia,
também a prostituta; fragata, para mulher gorda), etc.
201
O Diccionário Moderno, diz a que vem: ”Vocabulário galante ao paladar do
povo da lyra contendo a technologia completa da gyria carioca,
significados positivos do calão nacional e maneira especial de dizer as
cousas que não se dizem. Especialmente feito para uso das escolas
normaes e anormaes, e approvado pelo Conselho Superior da Instituição
deCoiós”.
A função do léxico de frases feitas e de vocábulos é tríplice (não valendo
apenas para este Diccionário, mas para toda a gíria pornográfica,
evidentemente): a transgressão (dizer o proibido), a preservação dos
estereótipos sexuais (machismo, normalidade, anormalidade), a garantia
da repressão (sujar o proibido ou mantê-lo sujo, humilhá-lo e
ridicularizálo). Num estudo sobre o papel inconsciente do humor e do
chiste, assim como das palavras de baixo calão, Freud procurava mostrar
seus aspectos ambíguos, isto é, como funcionam simultaneamente na
qualidade de instrumentos para dar vazão à libido e na qualidade de seus
repressores — dizer sem dizer, dizer sem perceber que se diz, ou não dizer
para poder dizer.
A partir dos estudos de Preti e de Freud, podemos fazer algumas
observações para nosso assunto. Em primeiro lugar, observa-se que a
linguagem proibida (pelo menos de modo geral) é elaborada num contexto
masculino e para uso masculino em espaços masculinos (bares, bordéis,
conversas reservadas após o jantar ou em festas). Mesmo que atualmente
as mulheres empreguem essa linguagem, raramente a criação dos
vocábulos é de sua autoria. Em segundo lugar, essa linguagem realiza o
que havíamos sugerido acontecer com outras instituições: a segregação
(um vocabulário para os ”iniciados”) e a integração (sua proximidade do
léxico de nosso cotidiano). Em terceiro lugar, no caso específico do
Diccionário, podemos notar que alguns termos ainda permanecem em uso
no Brasil, outros desapareceram e outros foram substituídos por
referências a situações e objetos contemporâneos. Permaneceram, por
exemplo, bago, cacete, canhão, mina (que o Diccionário define como:
coisa rendosa que as mulheres têm), brocha (definido como: pincel que os
senhores de mais de sessenta anos usam; o sentido, como se vê, foi
largamente ampliado nos tempos contemporâneos). Mas surgiu, por
exemplo, coroa (para a mulher velha ou madura e também,
202
hoje em dia, para homens), provavelmente vinda da linguagem dentária (o
dente postiço) e da funerária (não enviar flores nem coroas).
Frases feitas permaneceram e muitos de nós as usamos sem saber de seu
sentido pornográfico. Por exemplo: ”pintar o rosto” refere-se a adultério
feminino (”Marina, morena, você se pintou/ não pinte esse rosto”); ”sair
para compras” ou ”sair sozinha” também possui o mesmo significado
(”Cadê Zazá, saiu dizendo: vou alija volto já, e não voltou, por quê, por
que será?”). E a letra o. Diz o Diccionário que a letra a éa primeira do
alfabeto, que quer dizer muitas coisas e que é ”coisa por onde a gente
começa. Naturalmente por já ter as pernas abertas. Alguns porém,
começam pelo ó”. Na marchinha carnavalesca: ”Maria Candelária, é alta
funcionária, saltou de pára-quedas, caiu na letra ó”, avisando-nos quais
foram as provas para a contração da alta funcionária, o coito anal.
Nos anos 40, no interior do Estado de São Paulo, usava-se a expressão
”tem gente descalça” sempre que, numa roda, a conversa iria girar sobre
sexo, mas havia mulheres e, particularmente, meninas. Nos anos 50, a
expressão ”amizade americana” era usada para o namoro livre, idéia que
aparecia aos jovens brasileiros interioranos vinda dos filmes americanos,
nos quais as meninas, em lugar de irem a festas com pais, irmãos ou tias
(à brasileira) iam acompanhadas apenas por um par — evidentemente, a
juventude interiorana não sabia que esse hábito americano era, lá em sua
própria terra, uma das formas da repressão sexual (o par, conhecido da
família, era a garantia da virgindade da mocinha nos bailes da vida, além
de seu marido em potencial e um tormento para meninos e meninas
porque, sem o par, não se podia ir à festa).
Enfim, seria interessante também analisar o deslizamento contrário, isto é,
palavras ou expressões ligadas à linguagem erótica obscena que passam
para um contexto deserotizado: ”saco cheio”, ”encher o saco”, ”fodido/a”,
”fodido/a e mal pago/a”, ”filho/a da puta”, ”porra louca”, ”picas”, etc.
Observando-se que em todas elas permanecem as idéias de desagrado,
degradação, ridículo, humilhação.
É interessante observarmos que a elaboração do Diccionário Moderno se
situa entre dois acontecimentos: um, posterior, a que já aludimos, isto é, a
discussão sobre a co-educação
203
dos sexos; outro, anterior, concernente à medicalização da prostituição.
Embora situados em tempos cronologicamente sucessivos, ainda que
próximos, esses três acontecimentos formam uma constelação de
significado evidente quanto ao controle e à repressão sexual.
Estudando o fenômeno da medicalização da prostituição, e não só dela
(mas também o da medicalização da loucura, da escola, da prisão), os
autores do livro Danação da Norma (título que joga com três sentidos
simultâneos: dano ou injúria, danação ou condenação, e da nação, isto é,
feito pelo Estado) escrevem: ”... a prostituição é constituída como perigo
físico e moral, causa de doenças e devassidão dos costumes. Daí ser, a
partir de então, objeto da medicina, que tem “o direito e o dever de emitir
um discurso e formular propostas a seu respeito”.
Teses, artigos, conferências, debates, congressos médicos em torno da
prostituição para cercar suas causas, conseqüências e oferecer medidas
de saneamento físico e moral. No centro da periculosidade: o ataque que a
prostituta faz à integridade da família brasileira. Quer porque
desencaminha meninos e meninas, quer porque transmite ou causa as
doenças venéreas, particularmente a sífilis, quer porque estimula o
celibato, impedindo o surgimento de novas famílias. Além disso, é um
estímulo ao ócio e à vadiagem: retira as energias do ”libertino” e estimula
a ociosidade das mulheres. Também abre caminho para a criminalidade,
visto que ”à concupiscência está ligado o esquecimento da própria
dignidade, por sua vez ligado a todos os vícios”, como já sabemos, desde
o início do cristianismo romano ocidental.
Pela leitura do livro, no qual são examinados os motivos pelos quais a
prostituição não pode ser eliminada e por isso precisa ser medicamente
controlada e saneada como caso de saúde pública tanto quanto de polícia,
observa-se que, ao lado da defesa da família, a crítica da prostituição já se
encaminha também para o elogio do trabalho.
A prostituição não só é responsável pelo ócio, mas ainda tem franca
ligação com a existência da escravidão. Pelos seguintes motivos: num país
onde trabalho é coisa de escravo, trabalhar é uma vergonha e os pobres,
envergonhados de prestar serviço a outros iguais (brancos), preferem a
vadiagem (prostituição das mulheres, cafetinagem dos homens); num
204
país onde escravo trabalha, os ricos senhores se entregam à indolência e
à soberba, nada respeitando, favorecendo a luxúria e seu cortejo de
males; enfim, como os escravos negros são broncos e ignorantes, ignoram
o pudor e são muito libidinosos nas relações com todos os membros da
família, os meninos passam a gostar das prostitutas e as meninas, de se
prostituir.
Infelizmente, os autores não fazem a menor vinculação entre essa visão
médica da escravidão como fonte de prostituição e os argumentos de uma
parte da oligarquia brasileira em favor do trabalho ”livre”, isto é, do
trabalho como relação de mercado e, portanto, em favor da abolição da
escravatura. Se o fizessem, o círculo se fecharia com perfeição: defesa da
família, do trabalho e da higiene na prostituição, ”mal necessário”, isto é,
da criação dos bordéis sob controle público. Vimos, pelos depoimentos
contidos no livro de Délcio Monteiro de Lima, como médicos e delegados
de polícia lamentam a diminuição dos bordéis, causada pela ”excessiva
liberdade sexual”.
Uma outra linha de estudos, muito sugestiva, aparece no ensaio ”Aí a
Porca Torce o Rabo”, no livro intitulado Vivência.
As autoras Cynthia Sarti e Maria Quartim de Morais analisam as revistas
femininas, particularmente Cláudia, Nova e Carícia, enfatizando não só as
formas de reforço dos estereótipos dos papéis sexuais-sociais de homens
e mulheres, mas o fato de as mudanças sociais (sobretudo
profissionalização feminina e anticoncepcionais) terem forçado, por razões
comerciais, o aparecimento de Nova e Carícia e uma certa
”modernização” de Cláudia. Esta se volta para a dona-de-casa moderna;
Nova, para as profissionais, e Carícia, para as adolescentes.
No primeiro caso, no que se refere ao sexo, a receita é: como segurar seu
homem sendo esposa-amante-mãe perfeita (limpinha, perfumadinha,
quituteira, informadinha, discreta, sempre jovem e jovial). No caso de
Nova, a receita é: como ser inteligente e sedutora, sem assustar o macho
e, para tal, a nova mulher precisa gostar de si mesma, tal como é (o
”como é”, evidentemente, recebe uma ajudazinha de cremes, massagens,
cosméticos, ginásticas, cirurgias plásticas, modistas, cabeleireiros, etc. —
arriscaríamos aqui a expressão: a mulher
205
”naturalmente” produzida). No caso de Carícia, ensina-se às meninas que
devem ser livres, mas com limites, e respeitar a liberdade masculina, sem
limites, como provam os dados científicos. A idéia geral sobre a
sexualidade provém da sexologia: técnicas sexuais de fácil aprendizado e
eficazes (para as cláudias, a fim de ”salvar o casamento”, para as novas, a
fim de manterem a sedução e para as carícias, a fim de estarem bem
informadas para o momento oportuno), tolerância (caso ”outra” apareça),
ter vida própria, conversar muito com o marido e esquecer os equívocos
inevitáveis. E em todas elas, evidentemente, o ideal materno, como fim
natural da feminilidade, aqui a sexologia recebendo peitadas de
psicanálise, com o Édipo, a castração e a inveja ”ao alcance de todos”.
Esse ensaio torna-se ainda mais relevante quando o completamos com um
outro, no mesmo livro, intitulado ”Sexualidade e Desconhecimento: A
Negação do Saber”, no qual a autora analisa o que designa como a
estratégia do silêncio, isto é, o treino feminino para não falar de sexo, não
ouvir sobre sexo e tecer fantasias de angústias sobre o próprio corpo. Esse
treinamento possui dois resultados precisos. Por um lado, como vimos no
início deste livro ao comentarmos a Iniciação Sexual de Brandão da Silva,
o ”aprendizado” sexual fica na dependência da informação masculina
(maridos, namorados, amantes), de sorte a abafar o que as mulheres
possam saber ou sentir por conta própria. Por outro lado, a informação
pode vir, e vem, das revistas ”especializadas” que reforçam os
estereótipos e garantem a repressão sexual.
Além disso, como observa Branca Maria Moreira Alves, esse silêncio, que
favorece a interiorização dos padrões sobre o feminino e o masculino, é
reforçado não só pelas idéias banalizadas sobre o pudor, mas ainda pela
necessidade de provar a adequação feminina ao seu ”tipo” essencial: a
passividade.
Se nos lembramos das análises de Foucault sobre a sociedade ocidental
como aquela que mais fala de e sobre sexo e a que mais exige a
”verdade” sobre e do sexo, o silêncio estudado por Branca Maria ganha
ainda novo relevo para a repressão sexual: nesta sociedade falante e
tagarela, não é todo mundo que tem direito àfala. Mulheres e
homossexuais masculinos, por exemplo, estão destinados ao silêncio.
Outros falam por eles e deles.
Tantos outros aspectos mereceriam análise...
206
Por exemplo, a nova pornografia. Isto é, o fato de que a antiga pornografia
(herdada da chamada ”pornografia vitoriana”) apresentava a mulher como
dócil, passiva, languidamente provocadora, à espera de toda sorte de
manipulação masculina, a simples mostração de seu corpo enlanguescido
parecido suficiente para despertar desejos e fantasias, enquanto, na nova
pornografia, a imagem feminina é viril, agressiva, auto-suficiente (pois a
maioria das imagens enfatiza poses de masturbação) e sobretudo
insaciável, mulher que nenhum supermacho conseguiria satisfazer. Por
que essa mudança? Por que a passagem da doce para a atrevida? Que
fantasias se deseja mobilizar com essa nova imagem? Seria ela a
interpretação, hostil, da liberação feminina feita através da ótica
machista? Sinal de novos medos? Ou a simples nudez já não é suficiente,
na medida em que a moda reduziu sensivelmente o vestuário? De
qualquer modo, fica a pergunta: por que a pornografia antiga enfatizava a
mulher ”masoquista” enquanto a nova privilegia a ”sádica”?
Por que surgiu uma pornografia para mulheres, isto é, os corpos
masculinos nus, genitais imensos e erectos, sorriso provocativo nos
lábios? Há ou não uma ambigüidade nessa pornografia? Isto é, admite que
as mulheres tenham desejos sexuais, mas procura canalizá-los para a
direção ”certa”: os homens?
Por que, na pornografia para homossexuais femininos e masculinos, se
repetem os padrões da pornografia heterossexual? Os ”ativos” nas poses
”sádicas”, os ”passivos”, nas ”masoquistas”?
Por que, nas várias pornografias, repete-se a mesma exigência sexual-
social, isto é, que as mulheres sejam jovens (mais novas do que os
homens) e os homens sejam adultos ou maduros (mais velhos do que as
mulheres)? Isto é, por que, na suposta transgressão, a reiteração da
norma: mulher-jovemdependente (na pornografia, a ninfeta) e homem-
adulto-realizado profissionalmente-protetor? Por que a suposta
transgressão repete a condenação que pesa sobre mulheres cujos
parceiros são mais jovens e conserva o elogio dos homens que conseguem
parceiras mais jovens, sinal de virilidade inesgotável?
Enfim, por que a especialização na própria pornografia? Para homens,
para mulheres, para homossexuais, para jovens,
207
para adultos. Somente as regras do mercado a explicariam, como
deveriam explicar o surgimento e multiplicação das pornoshops? Ou
estamos diante de formas novas e mais sofisticadas de controle da
fantasia?
Em resumo: as pornografias são transgressões ou reposição forçada das
normas repressivas pela manipulação das fantasias, em obediência aos
padrões sexuais permitidos e codificados?
Partindo da pornografia (tanto na linguagem proibida quanto nas imagens
”reservadas”) talvez possamos pensar na repressão sexual se realizando
sob o signo de algo conhecido pelo nome de duplo nó. O duplo nó consiste
em afirmar e negar, proibir e consentir alguma coisa ao mesmo tempo (os
lógicos afirmam que o duplo nó conduz à impossibilidade da decisão, os
psiquiatras o consideram causa maior da esquizofrenia e os
antipsiquiatras o consideram a prática típica da família e da ciência
médica).
Talvez o duplo nó seja inevitável na repressão sexual que conhecemos na
medida em que nossa cultura, como tentamos assinalar nos capítulos
precedentes, opera um cruzamento ou uma urdidura quase indestrutível
unindo sexo, vida e morte.
Um exemplo privilegiado dessa urdidura encontra-se numa figura bastante
desenvolvida na época romântica e retomada pela ”moral vitoriana”: o
vampiro. Necrófilo, sexualidade oral, desejo noturno insaciável, horror à
luz, ferocidade canina (e o Cão, como se sabe, é um dos nomes do diabo),
o vampiro é a figuração quase perfeita do duplo nó: macho mortífero que
vive do sangue virginal. A virgem, como vimos, é interrupção da morte. A
vida do vampiro é morte da virgem. Lobisomem e alma penada, o vampiro
é sanguessuga — o parasita (a burguesia romântica o representava como
aristocrata decadente; e, curiosamente, na nova pornografia, a mulher
tem traços vampirescos, é a vamp, como se dizia antigamente a respeito
de mulheres que, mais tarde, se dizia terem sex-appeal).
No caso do Brasil, o regime do duplo nó parece estar em toda parte.
Por exemplo, na afirmação do destino essencial da mulher à maternidade
e no desemprego das grávidas e mães. Ou na humilhação das mães
solteiras da classe trabalhadora (se a menina está na escola, é expulsa
para não ”contaminar” as
208
outras; se é empregada doméstica, é despedida para não dar mau
exemplo às filhas de família, e despedida tanto mais depressa se, por
acaso, a gravidez tiver sido causada pelo filho da família). Para as meninas
da burguesia e da classe média urbana intelectualizada, três saídas: ida
para uma ”escola na Suíça”; aborto rápido e seguro; glorificação da
independência.
Outro exemplo de duplo nó aparece na afirmação de que os homossexuais
são doentes (física e moralmente) e, ao mesmo tempo, que devem ”se
assumir” — nada de ”bicha louca enrustida”. Ora, o que é esse ”assumir-
se”? Várias coisas simultâneas.
Formar um gueto, é a primeira opção: ”Agora há duas alternativas. A mais
freqüente, o supermacho, bigodes e outros pêlos decorativos, vestido de
couro, músculos e uniformes vários de bravos guerreiros. A outra, o
transexual, que cultiva peitinhos, mas guarda o caralho, para ficar na
fronteira de todos os sexos. Já não mais homens com mamas, nem mulher
com pênis a figura de um louco desejo, o desejo do homem por si mesmo.
Não se creia que o travesti imita a mulher. De jeito nenhum. Ele elimina a
mulher. Assim, a rua é o antro de uma virgindade falocrática. Mundo de
machos”, escreve Herbert Daniel em Passagem para o próximo sonho.
Ou, então, a normalidade da vida conjugal, homossexuais femininos e
masculinos divididos em ”ativos” e ”passivos”, modelando a relação
amorosa pelo padrão estereotipado da vida conjugal heterossexual,
reproduzindo deveres, direitos e obrigações, como se a afirmação de uma
outra possibilidade sexual só pudesse ser configurada pela repetição da
repressão, trazendo, com a repetição, os problemas dos casais
convencionais, como suplemento necessário à ruptura que, desta maneira,
não se consuma. Com esta segunda opção, também se abre o campo da
prostituição. Ainda de Herbert Daniel: ”Homossexual e triste e um tanto
cego na minha feiúra (...) fizera um enorme esforço para remodelar o
corpo, os tradicionais métodos do culto do deus da época:
emagrecimentos, esportes, roupas e decorações, poses e teatros. Dera
certo. (...) N. com sua objetiva cotação do desejo me tornou desejável,
concretamente, sem disfarce, sem remorso. (..) fezme entrar no diálogo
cru da sedução. Mercado. Cruamente a coisa eu, objeto de desejo,
comprável. N. introduziu-me
209
no mundo fascinante da venda e sua compra, apresentou-me uma certa
iluminação a respeito do meu corpo e do meu desejo. Creio que foi a
primeira vez que notei os horizontes da obscenidade fortificada da
mecânica da sedução.”
Em suma, como o descreve Herbert Daniel, ó ”assumir-se” é procurar uma
identidade ”homossexual”, uma diferença ”homossexual” que transforme
alguém num tipo social e numa espécie zoológica que, depois de
manipulada pela fábrica da indústria sexual (das dietas alimentares ao
vestuário), passa diretamente ao mercado: rua, boate, sauna e lardoce-lar.
O homossexual suportando, em nome dessa ”identidade assumida”, até o
dever de ter doenças específicas, como AIDS.
O duplo nó aparece no ”namoro sério pra casar”, criando uma contradição
intolerável para a menina e o menino, pois a virgindade é exigida como
prova de amor, ao mesmo tempo em que a excitação recíproca, levada à
exasperação, cria nos parceiros a dúvida: me ama ou não me ama? A
”prova de amor” é a resistência ou a rendição?
Também há duplo nó, para homens e mulheres, no medo ou na angústia
suscitados pelo tamanho dos órgãos sexuais.
Nos homens, o medo e a angústia quanto ao tamanho do pênis: medo de
não satisfazer a mulher, de ser por ela interiorizado ou ridicularizado pelos
amigos, de que (muitos, por cartas aos correios sentimentais de jornais e
revistas, enviam a medida do pênis em ereção) seja causa de esterilidade
ou impotência ou homossexualismo. Nas mulheres, angústia com o
tamanho dos seios e das nádegas; medo de que, se muito pequenos ou
muito grandes, não despertem atração e desejo nos parceiros, nem sejam
excitáveis e prazerosos para elas próprias.
Onde o duplo nó? Jornais e revistas procuram auxiliar homens e mulheres,
tentando diminuir-lhes a angústia garantindo-lhes que ”tamanho não é
documento”. Oferecem exemplos ”históricos” dessa ausência de
importância ou da variação dos critérios, conforme as sociedades. A
seguir, porém, oferecem soluções: cirurgia plástica, ginásticas, alimentos
especiais, cremes, massagens (no caso dos seios, processos depilatórios
para quem não gosta de pêlos à volta dos mamilos), etc. Assim, ao mesmo
tempo em que se assegura a homens e mulheres que seus medos são
infundados, se oferece a eles
210
meios que, não tendo a menor exeqüibilidade, para uns (por exemplo,
falta de recursos financeiros), nem a menor garantia de eficácia, para
todos, recria e redobra o medo inicial. Isto para não falarmos nas páginas
dedicadas aos ”tipos ideais” e nas quais tudo quanto fora expresso como
temor ressurge valorizado.
Também há duplo nó, por exemplo, na situação das mulheres estupradas
que procuram o ”amparo legal”. Ao mesmo tempo em que a lei lhes
garante o direito de reparação pela violência sofrida, essa mesma lei as
submete às maiores humilhações, não só pelo exame do ”corpo de delito”,
mas também pelainvestigação, exigida pela sexologia forense, das provas
de ”resistência” ou de ”não consentimento”. Isto para nem falarmos no
tratamento que recebem nas delegacias de polícia, onde delegados,
advogados e policiais as encaram como ”desfrutáveis” e lhes fazem
propostas obscenas.
Talvez um dos lugares privilegiados para o aparecimento do duplo nó
esteja na nova atitude da religião cristã (particularmente a católica, no
Brasil) diante da sexualidade.
Num livro intitulado Conversas de Amor e Sexo, o autor, João Batista
Megale, procura desfazer os antigos preconceitos e as antigas
superstições que, segundo ele, certas filosofias e certas interpretações das
Sagradas Escrituras, acabaram acarretando. As ciências humanas, a
psicanálise, a antropologia e as condições contemporâneas de vida não
poderiam conservar aquelas antigas idéias. Por outro lado, escreve o
autor, o mundo contemporâneo parece tentar um caminho enganoso ao
conferir ao sexo importância central na vida humana.
Os procedimentos empregados pelo autor são de três tipos: invoca
argumentos clínicos e psiquiátricos para explicar o sexo e seu
funcionamento, procurando desvinculá-lo da idéia de pecado (tanto assim
que declara o homossexualismo uma doença de origem hormonal ou
glandular ou um desequilíbrio psíquico, oriundo de traumas infantis e
familiares); invoca argumentos científicos que demonstram ser o sexo um
instinto e, portanto, natural, mas ao mesmo tempo, enquanto sexo
humano, é ternura, amor e obediência a valores; invoca argumentos
religiosos, demonstrando que o sexo é abençoado por Deus (”sede
fecundos”) e por Jesus Cristo através da Igreja (o sacramento do
matrimônio).
Onde está o duplo nó?
211
O autor admite que o sexo é fonte de prazer — nisto está seu mistério, sua
alegria, mas também o perigo. A relação sexual é oferenda recíproca de
dons e desejos entre homem e mulher e a educação sexual, necessária,
ensina ”a viver com prazer e alegria os momentos do sexo”. Porém, e aqui
o nó: ”Qual o momento mais lindo da união? Quando os corpos têm o seu
gozo? Não. Quando os olhos, se encontrando, podem convidar os lábios a
confessar bem baixinho: “Como é bom estarmos juntos!.” Em suma: o
prazer supremo vem depois do gozo sexual. E, evidentemente, só é lícito
ao receber a bênção matrimonial.
A seguir, o livro afirma que o prazer é real e necessário, mas que, sendo
físico e efêmero, não pode ser confundido com a felicidade. É esta que
Deus nos deseja. O prazer tem seus direitos e seria absurdo recusá-los,
mas ”o homem e a mulher não podem olhar o casamento como a busca
do prazer sexual”.
E há os pecados do sexo. A modificação é sensível, como se nota. Não
mais o sexo é pecado, mas está sujeito a tornar-se pecaminoso:
masturbação, homossexualismo, adultério e relações sexuais pré-
conjugais. Porém, nova nuança: os dois primeiros, podem ser causados
por perturbações físicas e mentais que diminuem a responsabilidade de
seu autor; o quarto pode ser decorrência da impossibilidade de contrair
matrimônio num tempo bem próximo; somente o terceiro permanece
imperdoável (e não poderia deixar de sê-lo, visto ferir o Sexto
Mandamento da Lei de Deus).
Outro duplo nó: a virgindade é pureza e, como tal, o mais alto bem
desejável pela mulher. Mas, pureza se diz tanto do corpo quanto da alma:
há muita mãe solteira e muita moça não virgem que são puras de alma.
Outro duplo nó: o sexo é instrumento de comunhão entre homem e
mulher, mas o mistério do sexo é que ele é um estado de solidão
insuperável. Somente a comunhão com Deus pode realizar a superação
dessa solidão radical: o sexo, na sua solidão irreparável, nos ensina que
”algo mais nos espera para além de todas as criaturas”, a união das almas
e delas com o espírito divino. Por isso a ”primeira revolucionária do sexo”,
segundo o autor, foi Maria Virgem que ”renunciou à dimensão erótica do
sexo, para melhor fazer dele um instrumento de comunhão”, ela é a
”história de amor entre Deus e nós”.
212
O percurso de desculpabilização científica sociológica e teológica do sexo
conduz à seguinte conclusão: ”Livre,pura, virgem, mãe”. Longo caminho
que, através de linguagem nova, conduz ao antigo ponto de partida. Mas
agravado. Os primeiros Padres da Igreja, como vimos, não apresentavam
argumentos que desvinculassem sexo e pecado, de modo que só tinham a
oferecer remédios para diminuir seus danos. Agora, não. Retira-se a carga
pecaminosa do sexo para tornála mais pesada que antes: o sexo é bom,
melhor depois dele, melhor ainda sem ele.
Como não poderia deixar de ser, o duplo nó surge com intensidade no
caso do aborto. Aparentemente, seria absurdo imaginar duplo nó neste
caso: o aborto é proibido por lei humana e interditado por lei divina. Não
há ambigüidade alguma a seu respeito. Não é bem o caso, todavia.
Via de regra, as discussões sobre o aborto giram em torno de três eixos
principais: o religioso — é pecado? —, o jurídico — é crime? — e o
biológico — é morte?
Na perspectiva conservadora, a discussão do assunto deixa de lado a mãe
e privilegia o feto porque enfatiza uma noção abstrata de vida, encara a
sexualidade pelo prisma da procriação e oferece uma resposta afirmativa
às três questões acima. O melhor exemplo da atitude conservadora é uma
antiga novela de rádio e televisão: O Direito de Nascer.
Na perspectiva das feministas liberais, a ênfase não recai nas
idéias de vida e de procriação. e a discussão se refere ao feto
porque há maior preocupação com a idéia da mulher como pessoa,
entendida como individualidade racional, afetiva, consciente, capaz
de comunicação e de interação, livre e dotada de direitos. Assim, a
mulher grávida é uma pessoa, enquanto o feto ainda não o é.
Portanto, não podendo o feto ser injuriado pessoalmente, o aborto
não é pecado, nem crime, nem morte. É encarado como direito de
autodefesa da pessoa feminina e como livre decisão à
maternidade.
A discussão entre conservadores e liberais pressupõe duas atitudes
antagônicas com relação ao que se entende por ”feminino”: no primeiro
caso, a mulher é identificada com a maternidade, enquanto no segundo, é
encarada como um ser humano que pode escolher ou não a maternidade.
Esta deixa de ser, portanto, um destino e uma essência das mulheres.
213
No entanto, a discussão mantém os adversários no interior do mesmo
campo de questões cujos termos não são alterados, mas apenas
valorizados com sinais opostos e, ao fim de certo tempo, o debate acaba
patinhando sem mudar de rumo. Tanto conservadores como liberais
discutem, por exemplo, a possibilidade de determinar em que momento
um feto é vida. Para os primeiros, seguindo Aristóteles e São Tomás de
Aquino, há vida a partir do momento da concepção. Aproveitando-se da
controvérsia sobre o assunto (para os muçulmanos, há vida 14 dias antes
da concepção e, para os médicos ocidentais, há vida somente algum
tempo depois da concepção), as feministas liberais afirmam que só há
vida, como vida humana, com o nascimento.
A manutenção do mesmo campo de questões para os adversários tem
conseqüências práticas. É o que se pode observar pelo exame das várias
legislações existentes legalizando o aborto. Nelas, implicitamente, vigora
o ponto de vista conservador.
Em quase todas as legislações, quatro pontos principais sempre
aparecem: 1) o aborto só pode ser realizado em hospitais que tenham
licença especial e nos quais deve haver uma ”comissão para caso de
aborto” que decide se este pode ser ou não efetuado, independentemente
da decisão da mulher grávida; 2) somente médicos devidamente
autorizados podem fazê-lo (o que, segundo as feministas, significa não só
aumento dos custos da intervenção e que são decididos exclusivamente
por quem a realiza, mas também a criação de um aparato institucional
complicado desproporcional para a simplicidade da intervenção, que pode
ser efetuada com um simples aparelho, tipo ”aspirador”); 3) somente pode
ser efetuado o aborto até uma certa fase da gravidez na qual a mulher
não corre perigo, sendo excepcionalmente permitido em casos de algum
acidente que tenha tornado a gravidez ou o parto perigosos (as feministas
alegam que se o aborto é possível neste segundo caso é porque pode ser
realizado em qualquer etapa da gravidez, métodos diferentes sendo
necessários em cada situação); 4) o aborto só poderá ser feito na mulher
casada com o consentimento do marido e, na mulher solteira, com o
consentimento dos pais ou responsáveis (as feministas alegam que nos
dois casos a liberdade feminina é totalmente desconsiderada).
214
Onde surge o primeiro dos duplos nós?
No fato de que, numa sociedade que define o ser feminino pela
maternidade, a legalização do aborto, nas condições acima mencionadas,
simplesmente reforçam a culpa através da lei tolerante, uma vez que esta
pede às mães (por natureza e por essência) que decidam livre e
conscientemente a não serem mães. Por que o pedido estranho? Porque a
maternidade, apesar de destino natural, está vinculada ao casamento.
Dessa maneira, o aborto surge como inaceitável (para as casadas) e como
necessário (para as solteiras) e, conseqüentemente, como condenável
para ambas — a lei produz a condenação daquelas que ela inocenta.
Surge, com isto, o segundo duplo nó. Se, naturalmente, as mulheres são
mães, ainda que sob certas condições, por que a decisão sobre o aborto
depende de maridos e pais?
Este segundo duplo nó tem, no entanto, a vantagem de nos esclarecer
porque as discussões privilegiam o feto. Esse privilégio não é apenas
conseqüência de haver sido o aborto sempre discutido pelos homens e
não pelas mulheres (o padre, o jurista, o médico), mas é sobretudo o
indicador da função repressiva do feto na discussão: ele permite a
racionalização. Através do feto, o aborto se vincula irremediavelmente à
morte (ao infanticídio) e, desta maneira, obtém-se o resultado desejado:
falar na criança para culpar a mãe.
Essa racionalização é tão eficaz que as feministas, em geral, não a
perceberam. Tanto assim que, não por acaso, elas responderam à
criminalização do aborto com duas alegações: a de que o feto ainda não é
vida humana nem pessoa, e a de que o aborto é um assassinato em
legítima defesa. Resultado: os conservadores se apropriaram dessa idéia
para, aceitando a legislação do aborto, afirmarem que quando o feto é um
perigo para a mãe esta tem o direito de ser liberada dele, mas não tem o
direito de expedir sua morte, razão pela qual a única a não se pronunciar
sobre o aborto é a mulher grávida. E, não contentes, ainda afirmam que os
progressos científicos e tecnológicos tornaram quase nulos os perigos
físicos da gravidez e do parto. Mas sabiamente deixam em silêncio os
danos psíquicos e sociais da maternidade compulsória.
Num esforço para superar esse quadro de discussões, um novo caminho
foi tentado.
215
Passou-se a afirmar que:
1) o aborto é clínica e cirurgicamente muito simples, menos difícil e menos
perigoso do que um parto, podendo ser feito por pessoas que recebam
rápido e adequado treinamento;
2) o aborto é um direito feminino não só de autodefesa, mas também de
opção face à maternidade (podendo ser opção circunstancial ou
definitiva);
3) tanto o aborto perigoso e mortal quanto o aborto clandestino
traumático decorrem da falta de uma verdadeira saúde pública que
informe as mulheres e as auxilie com métodos contraceptivos adequados
e que seja capaz de propor um planejamento familiar que não fira a
liberdade de cada um quanto à procriação.
No entanto, idéias tão corretas podem fazer um caminho apressado e
imediatista, pois, exceção feita à primeira idéia (ausência de perigo do
aborto), o restante da argumentação parece deixar de lado séculos de
ideologia procriadora e de interiorização da culpa.
Há tendência generalizada a tratar o aborto como se este não fosse um
fenômeno cultural, físico e psíquico dotado de simbolismos profundos e
como se, na prática, não fosse vivenciado pelas mulheres como um ato
sem liberdade e sem autonomia, algo que lhes é tão imposto quanto a
maternidade, (avesso e direito da mesma ideologia repressiva, uma forma
de culpa). E é assim que as mulheres brasileiras o vivenciam.
É vivido como ausência de liberdade (imposição social e moral) e como
violência. Imposição: há punições e sanções variadas para as mulheres,
tanto quando não abortam como quando abortam.
Violência física: não só em decorrência das péssimas condições em que é
realizado para a maioria das mulheres, mas também porque as mulheres
sentem que nele algo é extirpado do corpo, ainda que de forma indolor.
Simbolicamente, portanto, o aborto é investido de uma carga afetiva mais
dramática que a extração de um dente ou de um apêndice, ainda que
clinicamente seja tão ou mais simples.
Violência psíquica: numa cultura cristianizada, na qual não há acordo
quanto à vida ou não-vida do feto e na qual a maternidade define a
essência do feminino, o aborto surge nas vestes da culpa e da falha.
Surge o terceiro duplo nó: por um lado, a inserção do aborto numa cultura
que o reprova e que, ao legislar em seu favor, deixa explícito que apenas
o tolera como um mal necessário,
216
o conserva implicitamente criminalizado; por outro lado, não é simples sua
inserção no inconsciente feminino, de tal modo que, mesmo deliberando
livre e conscientemente para fazê-lo, grande parte das mulheres realiza
uma operação psíquica inconsciente, deslocando a culpa culturalmente
produzida para situações que, aparentemente, nada têm em comum com
o próprio aborto.
Esse deslocamento é extremamente eficaz quando as situações que
servem de substitutos para a culpa parecerem muito distantes da situação
culpada originária. Assim, por exemplo, o que o desagrado por certas
cores, certos sons, certos odores, certos gestos, o que certos lapsos de
memória, certas repulsas, certos ressentimentos, certas dificuldades para
falar, escrever, andar teriam a ver com um aborto? No plano consciente,
nada. No plano inconsciente, tudo. E essa substituição possui ainda uma
agravante, pois a falta de uma relação visível e consciente entre a
situação-origem e as situações-substitutas coloca todas elas fora de nosso
controle racional e afetivo, fazendo com que passemos a lidar com mil
pequenas manias, mil pequenas culpas, mil pequenas falhas para nos
livrarmos (sem o conseguirmos) de uma única ”culpa” e de uma única
”falha”.
Passemos em silêncio (não porque seja menos grave ou doloroso) o caso
das mulheres mais velhas (solteiras ou casadas, de várias classes sociais)
que abortam ou abortaram pelos mais diferentes e justos motivos
(excesso de filhos, perigo para a saúde, opção pela não-maternidade,
decisão profissional, risco de perda de emprego, relações amorosas que
não comportam filhos, cansaço). Embora os depoimentos de todas as
mulheres revele que, na maioria dos casos, o aborto seja vivido e
compreendido como uma necessidade e não como uma livre escolha, e,
no caso das mulheres pobres, seja realizado nas piores condições
imagináveis (freqüentemente verdadeira carnificina com danos
irreversíveis), voltemos nossa atenção apenas para as meninas entre 13 e
20 anos.
Uma das características da sociedade capitalista contemporânea é tentar
retardar tanto quanto possível a entrada de jovens no mercado da compra
e venda da força de trabalho. Tanto o prolongamento da escolaridade
(para a classe média) quanto os salários irrisórios dos menores (na classe
operária) são indícios desse retardamento.
217
Ao mesmo tempo, a declaração da maioridade costuma coincidir com um
período de ausência de estabilidade no emprego, de salário insuficiente
para a sobrevivência (no caso das meninas das classes populares) e de
busca de trabalho (para a maioria das meninas de classe média). Assim,
antes da maioridade, meninas e meninos são retidos nas escolas ou
submetidos a condições precárias de trabalho, de tal modo que as
condições materiais ou objetivas reforçam a norma, segundo a qual é
preciso esperar condições mínimas de segurança para estabelecer uma
relação amorosa duradoura (identificada com o casamento) e para a
procriação (também dependente do casamento).
Visto que tais exigências contrariam a sexualidade dos jovens, a ideologia
se encarrega de obter a obediência à norma pela valorização da
virgindade, da relação amorosa casta e do oferecimento de substitutivos
lícitos para os meninos (as prostitutas), uma vez que se parte do
pressuposto tenaz de que as meninas não possuem desejos sexuais.
Socialmente, o reforço da norma repressiva se traduz, ainda, pelas
sanções a que estão sujeitas as meninas que abortam e as mães solteiras.
O aborto, para as meninas entre 13 e 20 anos possui uma face objetiva:
na maioria das vezes, elas não têm como arcar com a maternidade, desde
a própria gravidez, o pré-natal, o parto, até a criação de uma criança, a
não ser que ocorra o costumeiro, isto é, o casamento compulsório, cujos
desastres se farão sentir logo depois, além da vergonha que essa
obrigação acarreta no interior da ideologia do casamento da virgem.
Possui também uma face subjetiva: elas não toleram as pressões sociais,
as sanções religiosas e morais da maternidade fora do casamento, nem
desejam a humilhação do casamento compulsório. Aliás, a própria
gravidez, na qualidade de fato inesperado, possui um sentido muito
preciso: revelar que as meninas não tomam anticoncepcionais porque não
são como prostitutas, dispostas ao sexo sem amor. Paradoxalmente,
portanto, a gravidez inesperada significa simultaneamente pecado e
pureza. Em suma: duplo nó.
A não ser em casos excepcionais, sobretudo das meninas da alta classe
média e da burguesia, cujas famílias tanto podem aceitar com
naturalidade a necessidade do aborto
218
quanto a da maternidade (se esta for desejada pelas meninas) e socorrê-
las em ambos os casos, nos demais casos, as meninas abortam porque
estão aterrorizadas com a própria gravidez, aterrorizadas com a idéia de
criar filhos sem condições para fazê-lo (seja porque foram abandonadas
pelos parceiros, seja porque estes também são muito jovens e não têm
como arcar com a paternidade) e porque estão aterrorizadas com as
punições que desabarão sobre elas.
Por não terem aguardado o casamento, são estigmatizadas como imorais,
pervertidas e anti-sociais. Se estão na escola, são expulsas para evitar o
”mau exemplo”; se estão empregadas, são despedidas porque ”mulher
grávida é um problema”. Freqüentemente se sentem abandonadas pelos
parceiros e pela família, abandono muito especial porque não significa
necessariamente que sejam deixadas sozinhas e ao deus-dará, mas sim
porque parceiros e família são os primeiros a propor imediatamente o
aborto (sem maiores indagações) e com naturalidade, quando elas ainda
não sabem se é isto o que realmente desejam. Abandono tanto maior,
quando seu imaginário se povoa com as imagens trágicas das mães
solteiras suicidas, das prostitutas, das mulheres estéreis após o aborto
mal realizado, figuras desprezadas pelo farisaísmo da moral vigente.
As meninas que receberam formação religiosa, e a praticam, são
pressionadas ainda com maior violência pelo duplo nó: sabem que a
virgindade é valor supremo tanto quanto a maternidade (Maria Virgem e
”sede fecundos”), mas ao mesmo tempo são acusadas do pecado de
engravidar fora do matrimônio (cometendo o pecado da luxúria) e do
pecado de abortar (destruindo uma vida). Têm como modelo ideal uma
mulher solteira-casada, virgem-mãe e, como valor, a vida como dom
divino que criatura alguma pode ceifar.
Quando, forçadas pelas circunstâncias, fazem o aborto clandestino, qual é
a experiência das meninas? Não nos referimos aqui às tentativas
desesperadas das soluções domésticas, mas à ida a clínicas clandestinas
de aborto. Se as condições financeiras e o apoio familiar o permitirem e
puderem ser atendidas por médicos decentes em locais decentes, pelo
menos estão fisicamente protegidas, ainda que, numa cultura como a
nossa, não seja possível avaliar a presença ou ausência de traumas
emocionais. Se, ao contrário, forem obrigadas a
219
recorrer a açougueiros, passarão por experiência duplamente dramática.
Com efeito, os açougueiros são açougueiros porque compartilham a
ideologia repressiva antiaborto e descarregam sobre as mulheres o rancor
e o ressentimento pelo ato que, cinicamente, se dispõem a realizar: não
usam anestésicos, não há assepsia, o local de ”trabalho” é organizado de
modo a marcar sua ilegalidade e nele prevalece o estilo ”linha de
montagem” ou de ”supermercado”. Usam linguagem agressiva,
culpabilizadora. Fazem propostas obscenas a mulheres ainda estendidas
nas mesas de cirurgia. Em suma: transformam o aborto num ato de
castigo e punição, maneira pela qual imaginam ”normalizar” uma conduta
”desviante”.
Enfim, existem as soluções caseiras — remédios, ervas, tóxicos, barbante,
tesoura, colher, gilete, faca. O horror. Violência física (com seqüelas, como
o câncer e a esterilidade permanente) e violência psíquica ou simbólica
(horror à sexualidade).
Resta-nos uma última referência: a relação entre repressão sexual e a
divisão social das classes, referência feita esparsamente no decorrer deste
livro e que foi estudada por Rose Marie Muraro, num livro intitulado
Sexualidade da Mulher Brasileira — Corpo e Classe Social no Brasil.
A autora ouviu mulheres e homens da burguesia, da classe média urbana,
do operariado urbano e do campesinato nordestino (Zona da Mata e
Agreste), tendo feito a todos as mesmas perguntas: gosta de seu corpo?
cuida dele? quem lhe ensinou a cuidar dele? como vê seu corpo (ou de sua
mulher) após o nascimento de filhos? gosta de fazer sexo? que acha dos
anticoncepcionais, do controle da natalidade, do aborto, do
homossexualismo? como é o seu dia? fica doente? que acha da
profissionalização das mulheres? E perguntas sobre economia e política
brasileiras.
Rose Marie Muraro trabalhou com três hipóteses principais, todas elas
confirmadas pelas respostas obtidas:
1) que há relação entre corpo—consciência do corpo e entre corpo— sexo
e as determinações sociais de classe;
2) que ao pesquisador não interessa o que ele próprio pensa das pessoas,
mas o que elas pensam e sabem de si mesmas, as contradições e
ambigüidades de suas falas não significando incoerência, mas sendo,
antes, expressão das dificuldades criadas pela própria
220
divisão social de classes; as falas são significativas não apesar, mas por
causa ou graças às contradições e ambigüidades;
3) que há um imaginário social difuso que se espalha por todas as classes
sociais, cuja fonte é a classe dominante, mas em diferentes momentos da
história de sua ideologia, isto é, a ideologia da classe dominante
encontrada entre os camponeses não é contemporânea à ideologia atual
da classe dominante urbana e operante para ela mesma, para a classe
média e setores do operariado; além disso, cada classe ou cada setor de
classe reelabora esse imaginário segundo suas condições concretas de
existência, passando a assumir sentidos diferentes em cada uma delas.
Exemplifiquemos.
à pergunta: gosta de seu corpo, como o vê, cuida dele? A classe
dominante responde com critérios estéticos (beleza), afirma gostar dele
como fonte de prazer para si e para outro, menciona os cuidados de
higiene e a medicamentação. Os camponeses respondem tendo o trabalho
como horizonte (o corpo ”esperto”, ”cansado”, forte, fraco), afirmam
gostar do corpo, se com saúde, ou tal como era quando mais jovem (ou tal
como gostariam que fosse), de sorte que os critérios da consciência do
corpo são dados pela capacidade de serviço e pela ausência de doença. A
classe média e o operariado mesclam as duas versões: há os elementos
estético-prazeroso-saudáveis da burguesia tanto quanto os de trabalho-
cansaço-doença do campesinato. Rose Marie Muraro fala no corpo
operário como um ”corpo mistificado”: nas suas falas, as operárias e os
operários dizem claramente como é o seu corpo (instrumento de trabalho)
e, ao mesmo tempo, como enxergam esse corpo (os padrões estético-
prazerosos da classe dominante).
Com exceção da classe média urbana liberal e intelectualizada, nas outras
três classes, com nuanças, o machismo é a regra. Camponesas e operárias
respondem que seus maridos são bons ”porque não me bate”, enquanto
as burguesas se exprimem na linguagem ”Cláudia-Nova”. A relação sexual
é marcada pelo machismo, de ponta a ponta. As camponesas e as
operárias mais velhas se queixam do sexo anal, do sexo quando estão
exaustas, do útero caído, das doenças de toda sorte, dos partos
consecutivos e da ausência de prazer no sexo, o corpo como fardo e dor.
Ao mesmo tempo, afirmam a
221
felicidade de ser mãe. Duplo nó? Nem tanto. Aqui, se trata da
transferência para os filhos do amor cada vez mais difícil pelos parceiros.
As operárias mais jovens e a classe média são favoráveis ao
anticoncepcionais, desejam igualdade sexual (ainda que a superioridade
masculina permaneça incontestada, a não ser na pequena faixa
intelectualizada da classe média), direito ao prazer. Para a classe média,
as revistas, os filmes pornográficos e os motéis aparecem como
descoberta de novos prazeres e possibilidades sexuais. Para os homens da
burguesia e do operariado, a pornografia tem esse papel, mas para
exercício extraconjugal. E os corpos femininos, por eles idealizados, nada
têm a ver com o de suas parceiras, no caso do operariado e do
campesinato.
Com exceção da classe média urbana intelectualizada, as mulheres das
demais classes condenam a masturbação, o homossexualismo e o excesso
da profissionalização feminina, ainda que os dois primeiros sejam
praticados pelos homens e em larga escala. Os critérios são variados:
morais, clínicos, sociais, religiosos. O curioso, porém, é a sublimação
ocorrida a partir da condenação. As burguesas recorrem ao espiritualismo
oriental de disciplina e elevação corporal e espiritual; as camponesas, às
doenças que lhes consomem a existência; as operárias, à imaginação
romântica. De todo modo, no centro da condenação-sublimação encontra-
se a defesa intransigente da família, ainda que não a defesa da sua
própria. E é, nela, como sugerimos antes, que os duplos nós irão
multiplicar-se: a família ideal é o critério para valorizações e condenações
da família real.
Rose Marie Muraro trabalha ainda com a hipótese da diferença entre o
mundo urbano e o rural. Assim, apesar das diferenças e semelhanças de
classe no imaginário sexual, a divisão campo-cidade parece assumir um
papel importante e a autora escreve: ”Em suma, em relação à
sexualidade, vê-se uma grande diferença entre o mundo rural e o urbano
(que irá acentuar-se mais ainda nas classes médias): a queda real da
supremacia masculina, o abalo do dispositivo familiar e do casamento
como ideologia e representação, mas permanece sempre a clivagem entre
homens e mulheres. Cai muito também no meio urbano a desvalorização
da mulher após a menopausa, que é muito alta no campo, mais entre as
mulheres do que os próprios homens. É interessante notar que a
222
proibição do aborto, embora diminuindo na classe operária, é a que
permanece como uma distância menor em relação ao campesinato”.
A idéia geral do livro de Muraro é a de transformações sociais globais com
relação à sexualidade, em decorrência das transformações econômicas e
sociais do país — queda do tabu da virgindade, do casamento como saída
natural para a sexualidade, maior aceitação do homossexualismo, da
masturbação, dos anticoncepcionais. O carro-chefe dessa mudança
ideológica é a classe média urbana liberal e intelectualizada, mais próxima
dos padrões dos países chamados desenvolvidos.
Dissemos, há pouco, que do livro nos vinha a impressão de que machismo
e família permaneciam intocados, exceção para a classe média. As
conclusões de Muraro são contrárias à nossa afirmação: em sua opinião,
há declínio do machismo, no mundo urbano, e dos tabus da virgindade e
do casamento. No entanto, Muraro afirma que estas tendências são mais
feminino-urbanas do que masculinas e do que camponesas, e afirma
também que a maioria das mulheres gostaria de voltar ao tempo de
solteira. De nossa parte, não interpretaríamos esse desejo como
diminuição do lugar imaginário e simbólico ocupado pelo casamento e
pela família, pois o retorno à vida de solteira significa, por um lado,
retorno à vida familiar, mas não na situação de cônjuge e sim na de filha,
e por outro lado, o desejo de uma sexualidade livre, isto é, não procriativa,
ou pelo menos, sem a ”dívida conjugal” e sem a obrigatoriedade da
maternidade de numerosa prole.
Fazemos essas considerações a partir de uma pesquisa que alguns
estudiosos estão realizando nos bairros periféricos de São Paulo. À
pergunta: qual a vantagem de ser homem? e mulher?, invariavelmente
obtém-se o seguinte resultado. Os homens consideram vantagens: não ter
menstruação, não engravidar, não ser forçado à virgindade e à fidelidade
conjugal, ter liberdade. As mulheres: ser mãe, ser sensível e ser frágil.
Mas, à pergunta: qual a desvantagem de ser homem? e mulher?, as
respostas revelam um conflito permanente não apenas entre homens e
mulheres, mas no interior de cada um deles Os homens respondem: ser o
responsável pela família, não poder chorar, errar, ter medo nem fracassar.
As mulheres:
223
Nota abaixo da foto:
Sociedade autoritária, machista e racista, o Brasil se alimenta de mitos
como o da inexistência do racismo e o da existência da sensualidade de
um povo mestiço que desconhece as barreiras de classe e raça, A
melancolia dolorosa de “A Negra” revela a mulher escrava que ofereceu
seu leite (o grande seio) e seu trabalho (seus pés e suas mãos) ao
dominante branco. Não é sensualidade o que vemos aí. Vemos dor e
abandono de um corpo usado como se fosse coisa, porque corpo fecundo
e oprimido.
Fim da nota.
224
não ter liberdade, a dupla jornada de trabalho, o sexo quando não há
vontade nem prazer, o excesso de filhos. Independentemente dessa
pequena divergência interpretativa, cremos haver no livro de Muraro,
entre outros aspectos de grande relevância, pelo menos dois: o corpo é
uma abstração — corpo é o que temos na relação com os outros no
interior de uma sociedade dividida em classes (isto é, os discursos da
liberação sexual do corpo são abstratos); os conflitos interclasses (a luta
de classes), interpessoais, intersubjetivos e intersexuais são
determinantes na repressão sexual (a camponesa pode considerar um
martírio a relação sexual, mas seu marido a exige porque possui outros
significados para ele, além do prazer; a operária e a estudante podem
considerar a virgindade um tabu a ser quebrado, porém boa parte dos
futuros parceiros ”definitivos” dela precisam por outros motivos; a
burguesa pode fazer yoga e seu marido fazer Cooper e tênis, na cama, a
conversa é outra — se houver conversa, bem entendido; o menino de
família engravida e prostitui a jovem empregada; os executivos fazem o
mesmo com as secretárias; e há o ”Anjo Azul” entre as mulheres).
De modo geral, os estudos sobre a sexualidade no Brasil, quando feitos
por movimentos sociais, apresentam duas características principais: a
crítica (do machismo, do racismo, das discriminações sexuais) e a
reivindicação de direitos. Essa reivindicação é de grande importância não
só por indicar nova atitude face a diferentes formas de dominação, mas
também porque, num país como o Brasil, lutar por direitos é colocar no
espaço público aquilo que tende a permanecer aceito como violência
natural ou imperceptível pelo confinamento ao espaço privado.
O cruzamento de versões diversas da religião cristã com a modalidade
muito peculiar de nossa família (aquela cujas origens remontam à
escravidão e à estrutura doméstica da Casa Grande e da Senzala — afinal,
o que são ”dependências de empregada” e ”elevador de serviço”, nas
modernas residências urbanas e nos edifícios de apartamentos?) e com as
peculiaridades do Estado brasileiro produz uma sociedade
225
extremamente autoritária e, sob um determinado aspecto, bastante
curiosa.
O Estado, no Brasil, é quase onipresente: ocupa não apenas as decisões
públicas, mas, através da política social, também controla o espaço
privado. No entanto, esse Estado não é exatamente um poder público. Não
porque, como em toda sociedade dividida em classes, uma delas se
apossa do poder e dele faz uso privado para domínio sobre o social. Mas
porque, em nosso país, grupos que ocupam o poder lidam com ele como o
antigo despotês grego lidava com seu óikos propriedade privada sobre a
qual tem poder de vida e morte. Assim, o gigantismo e a onipresença do
Estado em nossa sociedade faz com que, no Brasil, não exista de modo
definido e claro a coisa pública (do latim: res publica, república). Não só os
detentores do poder do Estado e os funcionários da burocracia agem como
o despotês, mas também, no espaço privado, o despotês é investido de
autoridade, como se fosse um tyrannós, dirigente público.
Esse autoritarismo generalizado, no qual os chefes de Estado se
assemelham a paires familiae e os pais de família se assemelham a chefes
de Estado, atravessa todas as instituições.
Assim, por exemplo, nos partidos políticos, a relação entre representantes
e representados, em lugar de ser a da representação (alguém é
mandatário de vontades, interesses e direitos de outros que para isso o
escolheram), é de tutela e de clientelismo. Tutela: o ”representante”
decide pelo e para o ”representado” o que melhor lhe convém.
Clientelismo: o ”representado” espera e recebe do ”representante”
favores e serviços pessoais.
Não é curioso, por exemplo, o modo como os funcionários públicos
atendem o público, isto é, como se lhe estivessem prestando favor e
fazendo concessão, como se o serviço prestado não fosse público, mas
dependente da boa vontade e do interesse pessoal de quem o presta? Não
é curiosa a existência de uma figura existente apenas no Brasil — o
despachante? Isto é, aquele que conhece as manhas e barganhas, as
trocas de favores e propinas por meio das quais cada indivíduo, não como
cidadão, mas na qualidade de átomo social, se articula com a intrincada
rede da autoridade burocrática? Não é curiosa a maneira como as pessoas
motorizadas se comportam no
226
trânsito: não respeitam semáforos, faixas de pedestres, locais de
estacionamento, fazendo da rua não um local coletivo, mas um mero
prolongamento de seus quintais e jardins?
Esse autoritarismo generalizado tem a peculiaridade de fazer com que
toda relação entre diferentes seja convertida numa assimetria e essa
assimetria, numa relação de hierarquia (”sabe com quem está falando?”).
A repressão sexual, além dos traços que possui em sua forma geral nas
sociedades contemporâneas, aqui fica acrescida desse novo traço, cujas
conseqüências, entre outras, é o duplo nó permanente.
A mescla confusa entre público e privado é a marca fundamental do
machismo. Ao mesmo tempo antigo ideal das sociedades guerreiras ou
agonísticas, aristocráticas, fundadas no sangue, na valentia e honra, o
machismo encontra campo fértil numa sociedade capitalista como a
brasileira na qual, justamente, as relações de mercado, as formas
contratuais e impessoais, o valor do trabalho, se realizam no interior de
antigas tradições guerreiras de além-mar e das capitanias hereditárias —
nos cordéis nordestinos, a presença dos Doze Pares de França (versão
brasileira, posterior à portuguesa, da Chanson de Roland, medieval) é uma
constante e o ideal épico-macho aparece com clareza em Grande Sertão:
Veredas, de Guimarães Rosa: pacto do homem e do diabo, pacto de honra
e sangue entre Riobaldo e Diadorim, amor homossexual desesperado
entre machos presos no que a escritora Walnice Galvão designou como as
formas do falso.
Nos chamados crimes passionais, ou como os designou a antropóloga
Mariza Corrêa, Os Crimes da Paixão, os maridos que assassinam esposa e
amante, ainda que criminosos, perante a lei, não são por ela tratados
como tais porque na esfera doméstica a vontade do marido (como,
outrora, a do rei) tem força de lei. Assim como é considerado normal que
jagunços e capangas matem homens, mulheres e crianças se isto
desejarem e ordenarem os senhores de terras, assim também o marido,
”ferido em sua honra”, tem o direito de matar a adúltera e seu amante. A
absolvição é quase certa e é indubitável quando o flagrante foi obtido no
interior da casa, no leito conjugal. Como grandes exceções, tribunais
também podem absolver esposas assassinas de maridos adúlteros, mas a
regra não é esta, visto que a ”liberdade sexual” dos homens também tem
força de lei. Chama-se: direito costumeiro, tão
227
poderoso quanto o direito positivo, isto é, codificado em leis escritas.
Um livro divertido e sintomático, O Analista de Bagé, de Fernando
Veríssimo, ataca com humor o machismo na sua forma gaúcha ou
gauchesca. Cruzando a ”difamação” dos machos de Pelotas (tidos como
homossexuais no imaginário sulino) com a matcheza indiscutível dos
cavaleiros de Bagé, Veríssimo realiza uma síntese perfeita: o psicanalista
(normalizador, ”lavador de cérebro”, na gíria norte-americana) é macho
(portanto, falocrata, edipiano e valente) e, nessa qualidade, seu ”trabalho
analítico”, o médico em bombachas e tomando chimarrão, se efetua como
reposição do machismo, nem que seja usando a boleadeira. Em seu
consultório, ao lado da foto de Freud, estão o relho, a boleadeira e o facão
(”te castro já, seu castrado”). O fato de podermos rir da matcheza é,
talvez, uma das formas mais sutis de crítica: nada é mais desmoralizante
do que a gargalhada, afinal.
É difícil ”explicar” o machismo (boa parte deste livro foi dedicada a
compreender a emergência de idéias e instituições que o constituíram,
juntamente com seu avesso necessário, o ”feminino”, no sentido do
”eterno feminino” e do ”com mulher minha, não”).
No caso do Brasil, arriscaríamos as seguintes hipóteses para compreendê-
lo e ao seu avesso complementar: em primeiro lugar, a repetição, no
interior da casa, do que se passa na sociedade e na política como um
todo, isto é, a privatização e pessoalização das formas de autoridade; em
segundo lugar, também a reiteração do mecanismo sócio-político de
transformação da assimetria (no caso homem-mulher, pais-filhos, irmão-
irmã) em hierarquia, a diferença sendo simbolizada pelo mando e pela
obediência; em terceiro lugar, a compensação pela falta de poder real no
plano sócio-político, o machismo funcionando como racionalização, assim
como a feminilidade (”atrás de todo grande homem, há sempre uma
mulher”, indicando que há um poder ou autoridade femininos que se
exercem sob a condição de serem dissimulados e ocultados pela
obediência e pelo recato. Afinal, se a vontade do rei tem força de lei, as
mulheres são chamadas de ”rainhas do lar” — filhas, noras e empregadas
que o digam, não é mesmo?); em quarto lugar, porque, uma vez
interiorizado, surge na forma da expectativa e da atitude desejada por
228
homens e mulheres. Um pequeno exemplo dessa interiorização: a
condenação e ridicularização de mulheres cujos parceiros sejam mais
novos (”não tem vergonha, não?”) e o elogio dos homens cujas parceiras
sejam mais novas (”aí, machão!”). Também é exemplo da manutenção da
expectativa a divisão dos homossexuais em ativos e passivos,
reproduzindo não só a divisão heterossexual, mas, se nos lembrarmos dos
ideais guerreiros ou agonísticos da velha Roma, também estigmatizando
os ”passivos”. A rua virginal e falocrática, de que falava Herbert Daniel.
Como se não bastasse, essa rede autoritária de relações vem desembocar
no racismo: a cor que não pega, o ”preto de alma branca”, a frase,
gravada nas paredes de muitas escolas de polícia: ”crioulo parado é
suspeito, correndo é culpado”. Machismo e racismo se entrecruzam numa
forma muito peculiar: o elogio da sensualidade e do ritmo dos negros,
particularmente das mulatas. Numa sociedade que separou espírito e
corpo, fez do primeiro algo superior ao segundo, valoriza a razão contra a
paixão, a inteligência contra a sensibilidade, o elogio da sensualidade
rítmica dos negros e das mulatas é a forma acabada e perfeita do duplo
nó: elogia-se aquilo mesmo que a sociedade inferioriza e condena.
Se a repressão sexual é apenas mais uma, dentre inúmeras outras que
constituem a sociedade contemporânea, e a brasileira em particular; se,
entre nós, é aspecto privilegiado da confusão entre o público e o privado,
de sorte que sua crítica só pode realizar-se através da reivindicação de
direitos que façam pública a violência privada, talvez chegássemos à
melancólica conclusão de que sem uma transformação global da
sociedade (uma revolução), nada poderia ser feito no tocante à repressão
sexual. Melancolia reforçada quando avaliamos os resultados da
psicanálise e da sexologia.
No entanto, se pensarmos que, no caso específico do Brasil, a questão da
sexualidade, inseparável da estrutura familiar existente, ao ser tocada
também toca na instituição familiar, que, diferentemente de outros países,
não é apenas um instrumento (outrora necessário, hoje dispensável) do
mercado e da política, mas e o modelo da própria forma assumida pelo
poder e pelo Estado (não é sugestivo que o mais célebre dos presidentes
do Brasil tenha sido chamado de ”Pai dos Pobres” e que os donos do poder
sejam chamados de
229
”Pais da Pátria”?), então, a crítica da repressão sexual poderia ter um
alcance insuspeitado. Aparentemente pontual e localizada, a crítica da
repressão sexual atinge as estruturas da sociedade brasileira no seu todo.
”Como, de repente, não vi mais Diadorim!... Diadorim tinha morrido — mil-
vezes-mente — para sempre de mim... E subiram as escadas com ele, em
cima da mesa foi posto. Diadorim, Diadorim... Os cabelos com marcas de
duráveis...
Ela era.
Tal assim que se desencantava, num encanto terrível. Diadorim! Diadorim
era mulher... Cabelos que cortou com a tesoura de prata...
Eu nem sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo
— Meu amor!...
Aqui a estória acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui se acaba a estória.”
Guimarães Rosa — Grande Sertão: Veredas.
Era uma vez, num reino distante... E então, foram...
Não,
não foram felizes para sempre.
A liberação sexual é utopia.
A palavra utopia é de ambígua origem.
Alguns pensam que vem do grego: eutopos, lugar feliz.
Outros julgam que vem do grego: utopos, lugar nenhum.
E, por isso mesmo, seria uma aporia. Do grego: dificuldade insolúvel
ausência de caminho por falta de referenciais para traçá-lo. O mar é
áporos, sem caminho. Âpeiron se diz do ilimitado, do irreferenciável.
Chama-se: infinito.
Utopia: lugar feliz, lugar nenhum, lugar da felicidade impossível.
Nenhures, diria a escritora Leyla Perrone Moisés.
Talvez a utopia não seja impossível, consolação que nos conforma para a
aceitação resignada do presente. A utopia é a afirmação de que uma outra
sociedade, uma outra vida humana, a liberdade e a felicidade são
possíveis. A utopia nasce do sentimento e da idéia do possível.
230
Mas, diferença importante, o possível não é o provável.
Talvez porque a liberação sexual tenha tomado o único rumo que a
sociedade administrada lhe permitia tomar — o do cálculo, da
remanipulação e do provável — tomou uma direção que excluía a idéia do
possível. Cálculo, manipulação e provável são idéias governadas teórica e
praticamente pela categoria do controle-controlável. Mas o possível é o
que jamais foi feito e, no entanto, poderia ser feito — é possibilidade e não
probabilidade. É o que não possui a menor garantia prévia de que
acontecerá — é aporia à procura de caminho, sem saber de antemão se
há caminho e, se houver, se será possível encontrá-lo e, se encontrado, se
poderá ser percorrido e, se percorrido, onde nos levará. Essa falta
absoluta de garantia é a utopia. Sua marca é o possível e não o
impossível.
Nos anos 60, mundo a fora, jovens desejaram o impossível. Nos muros das
cidades, uma inscrição aparecia: ”Sejamos realistas, peçamos o
impossível”. Pela primeira vez, luta política e reivindicação de liberdade
sexual caminhavam juntas. Na Europa, lutava-se contra o poder em todas
as formas; na América Latina, contra as tiranias; nos Estados Unidos,
contra o prosseguimento da guerra do Vietnã. Em cada lugar, lutas
diferentes e, no entanto, em todas elas estava presente a idéia da
liberdade sexual — ”faça amor, não faça a guerra” significava, em cada
lugar, algo diferente, pois diferentes eram as guerras e nem sempre seria
possível não fazê-las. A tentativa do impossível fazia-se pela ironia —
”virgindade dá câncer” — e pela esperança — ”a imaginação no poder”.
Em toda parte, a inscrição: ”é proibido proibir”. Luta contra todas as
formas da repressão.
Muitos morreram. Muitos sobreviveram. A maioria admitiu que ”o sonho
acabou”. Alguns, porém, continuam pedindo ”passagem para o próximo
sonho”.
Talvez porque tivessem lutado pelo impossível e desejado morrer por ele,
não tenham chegado onde queriam: as forças da realidade, da ordem, do
provável e do necessário (de tudo quanto, neste livro, vimos estar a
serviço da repressão) barraram o caminho, cortaram a passagem. A aporia
virada nada.
Quem sabe, se os que hoje desejam o possível e não querem que seja
uma causa pela qual se deva morrer, mas
231
pela qual vale a pena viver, possam reencontrar o caminho, reabrir a
passagem. Se não puderem percorrê-lo ou chegar ao seu fim, pelo menos
terão indicado por onde atravessar a aporia: desejando viver, terão
desatado o nó que, em nossa cultura, atava para sempre sexo e morte.
233
Bibliografia

No decorrer deste livro foram mencionados muitos autores (filósofos,


antropólogos, psicanalistas, psiquiatras, historiadores, críticos de arte,
poetas, romancistas, pintores, etc). Entre autores e obras cujos títulos
foram explicitamente citados, contamos por volta de 250 nomes e títulos.
Em outros momentos, usamos uma expressão genérica (”os estudiosos”,
”muitos historiadores”, ”vários críticos”) e sob ela há muitas obras e
muitos autores. Assim, por exemplo, quando fizemos referência aos
helenistas, estudiosos do ÉdipoRei, pensávamos em Jean-Pierre Vernant,
Vidal Nacquet, Moses Finley, Werner Jaeger, Winnington-Ingram, Jelb,
Stanford, Kamerbeek, etc. Concluímos que a apresentação total da
bibliografia seria desproporcional para a finalidade deste livro que,
malgrado sua extensão, é um livro dos Primeiros Passos. Por esse motivo,
oferecemos aqui apenas alguns títulos que possam interessar ao leitor que
deseje prosseguir no estudo do assunto.
I — Coletâneas
Revista Communications, n? 35, 1982, ed. Seuil, Paris (número dedicado a
Séxualités Occidentales).
Vocabulário da Psicanálise, de J. Laplanche e J. B. Pontalis, 1970, Moraes
Editores, Lisboa.
Vivência — história, sexualidade e imagens femininas, 1980, Ed.
Brasiliense, São Paulo.
Feminism and Philosophy, 1977, Littlefield, Adams, and Co., Nova Jersey.
234
Danação da Norma — Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no
Brasil, 1978, ed. Graal, Rio de Janeiro.
II — Obras individuais
Bataille, Georges— L'érotisme, 1965, ed. 10/18, Paris.
Bettelheim, Bruno — A Psicanálise dos Contos de Fadas. 2ª edição, 1979,
editora Paz e Terra, Rio de Janeiro.
Castels, Robert — Le Psychanalisme, 1981, ed. Flammarion, Paris.
Guattari, Felix — Revolução Molecular — pulsações políticas do desejo,
1981, ed. Brasiliense, São Paulo.
Freud, Sigmund — La Interpretation de los Sueños (nas Obras Completas
em tradução castelhana revista por Freud, embora o leitor que não leia
alemão possa também consultar a Standard Edition, inglesa), in Obras
Completas, 1967, Editorial Biblioteca Nueva, Madri, 1.1.
— Una Teoria Sexual, mesma referência editorial, 1.1.
— Metapsicologia, mesma referência editorial, 1.1.
— Totemy Tabu, mesma referência editorial, t. II.
— Introducción al Psicoanalisis, mesma referência editorial, t. II.
Foucault, Michel — Microfísica do Poder, 1979, ed. Graal, Rio de Janeiro.
— História da Sexualidade I, 1977, ed. Graal, Rio de Janeiro.
Klein, Melanie — Textos Escolhidos (introdução e notas por Amazonas
Alves Lima e Fábio Hermann), 1982, editora Âtica, São Paulo.
Marcuse, Herbert —Eros e Civilização, 1967, Zahar Editores, Rio de
Janeiro.
Mead, Margaret — Sexo e Temperamento, 1979, editora Perspectiva, São
Paulo.
Mezan, Renato — Freud: a Trama dos Conceitos, 1982, editora
Perspectiva, São Paulo.
Millan, Betty — O que é Amor, col. Primeiros Passos, 1983, ed. Brasiliense,
São Paulo.
Muraro, RoseMare — Sexualidade da Mulher Brasileira — Corpo e Classe
Social no Brasil, 1983, editora Vozes, Petrópolis.
Reich, Wilhelm — A Revolução Sexual. 8ª edição, 1983, Zahar Editores, Rio
de Janeiro.
Ussel, Jos Van — Repressão Sexual, 1980, ed. Campus, Rio de Janeiro.
235
Biografia

Marilena de Souza Chauí é filha de Laura de Souza (professora) e de


Nicolau Chauí (jornalista), sobrinha de Izabel de Souza Mattos (artista). É
mãe de José Guilherme e de Luciana. Nasceu em São Paulo em setembro
de 1941. Viveu em Pindorama, onde fez o grupo escolar, e em Catanduva,
onde fez o ginásio no colégio das irmãs de N. S. do Calvário. Aos 15 anos,
retornou a São Paulo onde cursou o "clássico" no Colégio Presidente
Roosevelt da rua São Joaquim. Fez a graduação e a pós-graduação em
filosofia na Faculdade de Filosofia da rua Maria Antônia. Em 1967,
defendeu uma tese de mestrado sobre Merleau-Ponty, sob a orientação do
professor Bento Prado Júnior. Como bolsista, passou dois anos na França
pesquisando sob a orientação do professor Victor Goldschmidt. Em 1969,
renunciando à prorrogação de sua bolsa de estudos na França, regressou
ao Departamento de Filosofia da USP, onde, em 1970, defendeu uma tese
de doutoramento sobre Espinosa, filósofo que seria também tratado por
ela numa tese de livre-docência, defendida em 1977. Fez amigos, perdeu
alguns, conservou outros e deve muito a todos eles. Por força da dupla
jornada de trabalho (dona-de-casa e professora) não deu aos filhos toda a
atenção que mereciam, nem cuidou da casa como devia e quase sempre
suas aulas, artigos e conferências ficaram a dever às suas próprias
esperanças. Bem ou mal, publicou os livros: O que é Ideologia e Da
Realidade sem Mistérios ao Mistério do Mundo — Espinosa, Voltaire,
Merleau-Ponty; e Seminários, pela Editora Brasiliense, Cultura e
Democracia — O discurso competente e outras falas, pela Editora Moderna.
236
ESCRITOS DO PRAZER
SÉRIE ERÓTICA
PARA SER CALUNIADO - Poemas eróticos Paul Verlaine. Trad.: Heloísa Jahn
"Forte" demais para ser publicada numa época ainda mergulhada no
Romantismo, a poesia erótica de Verlaine é um dos segredos mais bem
guardados da literatura do século XIX.
ESCRITOS PORNOGRÁFICOS
Borls Vian Trad.: Heloísa Jahn
Músico, compositor, teatrólogo, roteirista, amigo de Sartre, Vian chegou a
ser proibido na França, sob a acusação de atentado ao pudor. No entanto,
para ele, a perversidade não estava na pornografia, mas na cabeça da
cada leitor...
237
PAUL VEYNE:
DE GREGOS A ROMANOS
ELEGIA ERÓTICA ROMANA
O amor, a poesia e o Ocidente
Mais que uma leitura desmistificadora desse gênero literário, Paul Veyne
realiza um ensaio sobre a significação do amor e da poesia no Ocidente. E
revela que, na Antigüidade, o amor não tinha o mesmo significado de hoje:
temia-se a paixão como se temem as doenças...
ACREDITAVAM OS GREGOS EM SEUS MITOS? Ensaio sobre a imaginação
constituinte
Como é possível acreditar pela metade ou acreditar em coisas
contraditórias? Partindo da relação dos gregos com seus mitos, Paul Veyne
propõe que, em vez de crença, devemos falar em verdade. E a verdade
não é mais real que o mito: os homens a inventam, como inventam a
história...
O INVENTÁRIO DAS DIFERENÇAS História e sociologia
Qual o verdadeiro papel da história? Tomando emprestado conceitos
pertinentes às ciências humanas, a verdadeira história é sociológica, não
se limitando simplesmente a narrar.
FREUD,
PENSADOR DA CULTURA
Renato Mezan
Um acontecimento marcante no panorama cultural brasileiro e, no âmbito
da Psicanálise, um verdadeiro terremoto.(...) A originalidade e
inventividade de um estudioso que parte de seus próprios sonhos para
chegar a uma análise cintilante da teoria freudiana.
Mário Sérgio Conti — Veja
Um livro amigo, agradável e elegante, que se deverá tornar com certeza
uma espécie de companheiro de leitura da obra de Freud, para
psicanalistas e não psicanalistas. Não decerto um manual; mas quase um
romance de mistério, sobre o mistério da criação da Psicanálise.
Fábio Herrmann. — Folhetim
Percorrendo os caminhos da constituição da Psicanálise, Mezan, com
sólido embasamento teórico, faz uma leitura da obra de Freud que leva
em conta a importância do inconsciente do homem Freud.
Ethel Alvarenga —jornal do Brasil
CAMINHOS DO DESEJO E DO PODER
►SEXUALIDADES OCIDENTAIS
Contribuição para a história
para a sociologia da sexualidade.
Philippe Aries e André Tejin (orgs.)
Quais as origens do casamento? O amor é diferente no casamento e fora
dele? Que espaço ocupa o auto-erotismo nas doutrinas e costumes? Qual
a hportância atual da omossexualidade? Estes são alguns dos polêmicos
artigos dessa coletânea, assinados por importantes intelectuais franceses,
como Michel Foucault, Paul Veyne, Hubert Font e outros.
RECORDAR FOUCAULT
Renato Janine Ribeiro (org.)
Uma homenagem à obra e aos temas de Michel Foucault, pedra angular
da filosofia contemporânea. Originais abordagens das obras de Nietzsche,
Machado de Assis e Baudelaire, e instigantes visões sobre sexualidade,
política e loucura. Falas inquietantes de grandes talentos do nosso
pensamento.

Data de conclusão da leitura: 4 de outubro de 2008.

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