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NATALIE ZEMON DAVIS

NAS MARGENS
Três mulheres do século XVII
Tradução:
H I L D E G A R D FEIST

C O M P A N H I A DAS L E T R A S
0<p^ memória de Rosalie Colie (1924-72)
Q ^^ Copyright © 1995 by The president and Fellows e Michel de Certeau (1925-86)
. x|A of Harvard College
n In V Publicado por acordo com a Harvard University Press
^ I Título original:
Women on the margins
Capa:
Ettore Bottini
sobre detalhe de Lady writing a letler with her maid,
de Johannes Vermeer

índice remissivo:
José Carlos Pegorín
Preparação:
Maria Suzete Casellato

Revisão:
Ana Paula Castellani
Isabel Jorge Cury

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Davis, Naislic Zemon


Nas margens: tri:s mulheres do século XVII / Natalie
Zemon Davis ; tradução Hildegard l-eist. — São Paulo :
Companhia das Letras, 1997.

Título original: Women on the margins.


Bibliograíla
ISBN S.-i-? 164-671-6

I. Biografias — Século xvii 2. Glueckel, de Hamelin,


1646-1724 3. Marie de 1'Incarnation, mãe, 1599-1672 4. Me-
rian, Maria Sibylla, 1647-1717 5. Mulherç.s — Biografia
6. Mulheres comerciantes — Alemanha — Biografia 7. Mu-
lheres judias — Alemanha — Biografia 8. Mulheres missio-
nárias — Quebec (Província) — Biografia 9. Mulheres pro-
testantes — Suriname — Biografia l. Título.

97-2137 CUD-92U.72U9032

índice para catálogo sistemático:


1. Mulheres : Sdculo xvll : Biografia 92().72()9032

1997

Todos os direitos desta edição reservados à


l-DllOKA ,SCIIWAI«V. LIDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj.72
()45.'?2-002 — São Paulo — SP
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Fax:(011)866-0814
UNISINOS
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SUMÁRIO

Prólogo 11
Discutindo com Deus — G l i k l bas Judah L e i b 15

Mundos novos — M a r i e de I T n c a m a t i o n 65

Metamorfoses — Maria Sibylla Merian 132

Conclusão 189

Notas 203

Agradecimentos 307

Créditos iconográficos 311

í n d i c e remissivo 315
NAS MARGENS
PRÓLOGO

Local: P a í s das Ideias


Época: O u t u b r o de 1994, Heshvan de 5755
Personagens: Quatro mulheres s e x a g e n á r i a s . T r ê s delas e s t ã o de
p é j u n t o a u m velho manuscrito c a r c o m i d o ; ora conversam entre si, ora
m e d i t a m e m s i l ê n c i o . A quarta m u l h e r escuta durante a l g u m tempo, nas
sombras.

M A R I E D E L ' I N C A R N A T I O N : E U l i . F i q u c i escandahzada. I m a g i n e ,
colocar-me n u m l i v r o j u n t o c o m mulheres í m p i a s .
G L I K L BAS JUDAH L E I B : O que e s t á dizendo? Deus, louvado seja,
sempre esteve e m m e u c o r a ç ã o e e m meus l á b i o s . V o c ê n ã o entende
uma palavra de meus escritos.
M A R I E DE L ' I N C A R N A T I O N : E U teria aprendido i í d i c h e , se Nosso Se-
nhor assim quisesse. A p r e n d i huroniano, n ã o ? L i o que ela escreveu so-
bre seu apego ao d i n h e i r o . V o c ê s , j u d e u s , s ã o i n s e n s í v e i s c o m o os
huguenotes. G r a ç a s a meu A m a d o Esposo fui levada a viver entre os
selvagens, b e m longe da Europa.
G L I K L BAS J U D A H L E I B : E u l i O quc ela escreveu sobre o t i l h o que
v o c ê abandonou, ainda pequenino. C o m todas as minhas p r o v a ç õ e s ,
c o m todos os meus pesares, nunca negligenciei meus filhos. N ã o pos-
so fazer parte de u m l i v r o que i n c l u i esse tipo de m ã e . A l i á s , por que ela
me colocou j u n t o c o m gente que n ã o é j u d i a ?
M A R I A S I B Y L L A M E R I A N : A q u i cstou Completamente deslocada.
Essas mulheres n ã o eram amantes da natureza. N ã o sabiam ver as pe-
quenas criaturas de Deus, nem captar sua beleza. N ã o leram os livros
que l i , n ã o conversaram c o m as pessoas c o m q u e m conversei. M e u l u -
gar n ã o é aqui.

II
M A R I E D E L ' I N C A R N A T I O N : E s c u t c m s ó a dona Soberba! O que abriu para v o c ê s e que portas fechou, que palavras e atos lhes p e r m i t i u
p o d e r í a m o s esperar de uma m u l h e r que a t é se p ô s a d u v i d a r do a d o r á - escolher.
vel Verbo Encarnado? E pensar que estamos todas nas mesmas p á g i - M A R I E DE LMNCARNATION: Escolhcr? Escolher a r e l i g i ã o significa
nas! E u n ã o reclamaria se ela tivesse me colocado c o m aqueles que ten- tornar-se freira...
taram d i f u n d i r o reino universal de Deus. M A R I A S I B Y L L A M E R I A N : ...OU entrar para u m a c o m u n i d a d e de pe-

G L I K L BAS JUDAH L E I B : E u tampouco reclamaria se a autora tivesse nitentes...


escrito sobre m i n h a pessoa e minhas h i s t ó r i a s para seus filhos e netos M A R I E DE L ' I N C A R N A T I O N : M a s adorar a Deus é uma q u e s t ã o de ver-
judeus. dade e o b r i g a ç ã o absoluta.
M A R I A S I B Y L L A M E R I A N : N ã o me i m p o r t o de d i v i d i r o mesmo l i v r o G L I K L BAS JUDAH L E I B : Por causa de nossos pecados tenho de con-
c o m judeus e c a t ó l i c o s . N a verdade fiquei m u i t o contente ao descobrir cordar c o m essa ú l t i m a o b s e r v a ç ã o da c a t ó l i c a .
que o douto S a l o m o n Perez escreveu u m poema para a e d i ç ã o p ó s t u m a N Z D : M a d r e M a r i e , as Crónicas de suas ursulinas e s t ã o repletas de
de meu l i v r o sobre o Suriname. M a s n ã o posso fazer parte de u m l i v r o lutas de mulheres. Procurei descobrir se v o c ê s t r ê s fiveram de lutar c o n -
sobre "mulheres". E u deveria estar na companhia de estudiosos e p i n - tra a hierarquia dos sexos.
tores da natureza, de eruditos que investigam insetos e plantas. AS O U T R A S TRÊS M U L H E R E S {indignadas): H i e r a r q u i a dos sexos? O

N A T A L I E Z E M O N D A V I S {sainclo dãs sombras): Sou a autora. D e i - que v e m a ser isso?


xem-me explicar. N Z D : Senhora M e r i a n , veja o que aconteceu quando f o i para o
AS OUTRAS TRÊS MULHERES: V o c ê t e m mesmo m u i t o que explicar! Suriname estudar insetos. Se a senhora fosse h o m e m , alguma pessoa
N Z D : G l i k l bas Judah L e i b , e m suas m e m ó r i a s v o c ê falou tanto de importante teria financiado sua v i a g e m . M a s a senhora teve de pedir d i -
judeus quanto de n ã o - j u d e u s . Senhora M e r i a n , a senhora misturou es- nheiro emprestado para r e a l i z á - l a .
tudos de borboletas e de outros insetos. Juntei as duas para aprender M A R I A S I B Y L L A M E R I A N : É verdade, e paguei a t é o ú l t i m o centavo.
c o m suas . s e m e l h a n ç a s e d i f e r e n ç a s . E m m i n h a é p o c a se d i z à s vezes N Z D : G l i k l bas Judah L e i b , v o c ê descreveu seu marido, H a i m ben
que as mulheres do passado se parecem entre si, principalmente quan- Joseph, c o m o "pastor", e ele a chamava de " m i n h a c r i a n ç a " .
do v i v e m no mesmo tipo de ambiente. E u quis mostrar seus pontos e m G L I K L BAS J U D A H L E I B : " G l i k l i k h e n " , " m i n G l i k l i k h e n " . Que ou-

c o m u m e suas disparidades. Quis mostrar a maneira c o m o falaram so- tras palavras u m casal t ã o apaixonado poderia usar?
bre si mesmas e o que v o c ê s fizeram. Quis mostrar c o m o se d i s t i n g u i a m N Z D : Por que v o c ê sempre c h a m o u .seus filhos de "rabinos", mas
dos homens de seu m u n d o e c o m o se assemelhavam... nunca deu n e n h u m t í t u l o especial a suas filhas?
M A R I A S I B Y L L A M E R I A N : Sobre isso mais vale guardar segredo. G L I K L BAS JUDAH L E I B : Essa é a pergunta de uma filha i n í q u a na ce-
N Z D : Quis mostrar c o m o cada uma de v o c ê s escreveu sobre as re- r i m ó n i a da P á s c o a .
l a ç õ e s c o m pessoas estranhas a seu m u n d o . N Z D : M a s n ã o as retratei simplesmente c o m o sofredoras resig-
G L I K L BAS JUDAH LEIB: Sobrc isso mais vale guardar segredo. nadas. T a m b é m mostrei c o m o souberam tirar o m á x i m o proveito de sua
N Z D : E U as escolhi porque s ã o mulheres urbanas, filhas de mer- s i t u a ç ã o . Procurei ver as vantagens que t i v e r a m por se situarem nas
cadores e a r t e s ã o s — de plebeus — da F r a n ç a e dos Estados g e r m â - margens.
nicos. G L I K L BAS JUDAH L E I B : Margens é o lugar onde leio os c o m e n t á r i o s
G L I K L BAS JUDAH LEIB: V o c ê sabe m u i t o bem que entre n ó s , filhos e m meus livros i í d i c h e s .
de Israel, n ã o se fala em plebeus e nobres, por mais ilustres que sejam M A R I E DE L ' INCARNATION: E m meus livros c r i s t ã o s .
nossas f a m í l i a s . M A R I A S I B Y L L A M E R I A N : A s margens do r i o s ã o a morada dos sapos.

N Z D : E U reuni uma j u d i a , uma c a t ó l i c a e u m a protestante para ten- N Z D (desesperada): V o c ê s encontraram coisas nas margens. T o -
tar perceber a d i f e r e n ç a que a r e l i g i ã o fez e m suas vidas, que portas ela das foram ousadas. Cada u m a de v o c ê s tentou fazer algo que n i n g u é m

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nunca havia feito. Imaginei quai.s t e r i a m sido as fontes e os cu.stos da
aventura — para europeus e n ã o - e u r o p e u s — durante o s é c u l o x v i i .
M A R I E D E L ' I N C A R N A T I O N : O Senhor n ã o me chamou para "aven-
turas".
M A R I A S I B Y L L A M E R I A N : Historiadora D a v i s , parece-me que você
é q u e m quis aventuras. Glikl bas Judah Leib
N Z D (após uma pausa): S i m , f o i uma aventura acompanhar a tra-
j e t ó r i a de v o c ê s três e m atmosferas t ã o distintas. E eu quis escrever so-
DISCUTINDO COM DEUS
bre suas e s p e r a n ç a s de u m p a r a í s o na terra, de mundos r e c o n s t r u í d o s ,
pois t a m b é m acalentei as mesmas e s p e r a n ç a s . A d m i t a m pelo menos
que adoraram retratar seu mundo. G l i k l e M a r i e , c o m o v o c ê s gostavam
de escrever! M a r i a Sibylla, c o m o v o c ê gostava de observar e pintar!
AS OUTRAS TRÊS M U L H E R E S : B e m . . . talvcz, talvez... N a ú l t i m a d é c a d a do s é c u l o x v i i — o ano de 5451 no c a l e n d á r i o
N Z D : D ê e m - m e mais uma chance. L e i a m de novo. j u d a i c o — uma comerciante j u d i a de H a m b u r g o escreveu uma h i s t ó r i a
para sua vasta prole. U m p á s s a r o v i v i a à beira-mar c o m t r ê s filhotes.
U m dia desabou uma violenta tempestade e ondas enormes varreram a
praia. "Se n ã o chegarmos ao outro lado imediatamente, estaremos per-
didos", o p á s s a r o falou, agarrando o p r i m e i r o filhote para .se p ô r a ca-
m i n h o . N o m e i o da travessia disse-lhe: "Quanto trabalho v o c ê me d á !
A g o r a me faz arriscar a p r ó p r i a vida! S e r á que quando eu estiver velho
v o c ê i r á me proteger e me sustentar?". O f i l h o t e respondeu: " M e u
querido pai, leve-me a t é o outro lado. Quando o senhor estiver velho,
farei t u d o o que quiser". O u v i n d o isso, o p á s s a r o soltou-o no mar e
disse: " É isso que merece u m mentiroso c o m o v o c ê " .
D e p o i s v o l t o u para buscar o segundo filhote e a m e i o c a m i n h o
repetiu as mesmas palavras. O pequenino prometeu-lhe todo o b e m do
m u n d o . E o pai j o g o u - o no mar, dizendo: " V o c ê t a m b é m é u m men-
firoso". A o transportar o terceiro filhote, fez a mesma pergunta e o u v i u
a seguinte resposta: "Pai, querido pai, tudo o que o senhor diz é verdade,
que eu lhe dou trabalho e tristeza. Estou disposto a r e c o m p e n s á - l o por
isso, se p o s s í v e l ; mas n ã o posso prometer c o m certeza. O que posso
prometer é que, quando tiver meus filhos, farei por eles o que o senhor
tem feito por m i m " .
E n t ã o o pai falou: " V o c ê e s t á certo e é inteligente. Vou d e i x á - l o
viver e l e v á - l o para o outro lado".'
G l i k l n ã o concebeu a h i s t ó r i a desse pai t ã o diferente do rei Lear
c o m o u m a mensagem i m e d i a t a para a prole. E m b o r a alguns de seus
doze filhos vivos ainda fossem pequenos nessa é p o c a — as idades i a m
de dois a 28 anos — , ela n ã o pretendia lhes mostrar t ã o cedo a narrati-

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va. A h i s t ó r i a do p á s s a r o era uma das que a b r i r i a m u m a autobiografia tiva conhecida. T u d o depende de sua habilidade, da f o r m a c o m o extrai
que ao l o n g o dos anos redigiria cuidadosamente e m i í d i c h e e deixaria as h i s t ó r i a s do "tesouro coletivo de lendas o u da c o n v e r s a ç ã o do dia-a-
para os filhos a p ó s a morte. N o m o m e n t o , enquanto lutava para organi- d i a " e as apresenta.'
zar as e s p e r a n ç a s , alegrias e d e c e p ç õ e s de sua vida, dirigia-se tanto a si Neste c a p í t u l o eu gostaria de explorar as estruturas t e m á t i c a s da
mesma quanto à prole. O resultado, u m l i v r o e m que a ficção se m i s t u - t a u t o b i o g r a f i a da m u l h e r c o n h e c i d a e d i t o r i a l m e n t e desde o f i n a l do
ra ao relato de suas vicissitudes, é e x t r a o r d i n á r i o . N ã o s ó constitui u m a s é c u l o X I X c o m o G l i i c k e l v o n H a m e l n , ou G l u c k e l de H a m e l n — os
fonte preciosa para a h i s t ó r i a sociocultural dos ashkenazim e da Europa fatos da v i d a que a seu ver m e r e c i a m ser p u b l i c a d o s , celebrados ou
seiscentista, c o m o ainda apresenta u m a estrutura l i t e r á r i a i n c o m u m e lamentados, e as surpresas de seu relato. O u v i r e m o s os d i á l o g o s , a luta
forte r e s s o n â n c i a religiosa. í n f i m a que c o n s t i t u í a o e i x o de sua v i d a , a e x p o s i ç ã o dos motivos pelos
M i c h e l de Certeau nos mostra c o m o a espiritualidade de i n í c i o s da quais as coisas aconteceram de determinado m o d o . Veremos c o m o os
era moderna evoluiu no decorrer da c o m p o s i ç ã o a u t o b i o g r á f i c a . A s des- c r i s t ã o s figuram na narrativa dessa m u l h e r t ã o idendficada c o m a re-
cobertas espirituais se realizavam por m e i o do d i á l o g o . A o recapitular l i g i ã o que o a v ô e o pai de Teresa de Á v i l a abandonaram muitos anos
sua vida, quando estava c o m quarenta e poucos anos, o j e s u í t a Pierre antes. C o m o G l i k l situou a si mesma e a seu povo n u m m u n d o e m que,
Favre, c o n t e m p o r â n e o de I n á c i o de L o y o l a , tentou encontrar i n d í c i o s segundo os c r i s t ã o s , os judeus d e v i a m viver à margem ou e m guetos ou
das g r a ç a s divinas e registrou suas preces e m e d i t a ç õ e s pelas igrejas da simplesmente ser e x c l u í d o s ? E de que recursos culturais podia dispor
Europa. E m seu Memorial coloca seu " e u " dialogando c o m o " t u " de u m a m u l h e r j u d i a na Europa seiscendsta — recursos que ela pudesse
sua alma relutante, i m p l o r a n d o - l h e que receba o amor de Deus. E m seu utilizar e m seu proveito, que lhe fornecessem as notas capazes de f a z ê -
Libro de la vida a carmelita Teresa de Á v i l a criou dois d i á l o g o s : u m en- ' la encontrar a p r ó p r i a voz? ^
tre o eu e x t á t i c o que ama a Deus a t é a loucura e o eu narrador que preser-
va a r a z ã o g r a ç a s à narrativa b e m organizada; outro entre os homens
s á b i o s que a mandaram escrever o l i v r o e o j u l g a r ã o e as leitoras que M a s p r i m e i r o vamos ver alguns fatos referentes a G l i k l , c o m e -
h a v e r ã o de e n t e n d ê - l o c o m u m a m o r especial. N a a u t o b i o g r a f i a da ' ç a n d o p o r seu n o m e . E m 1896 o e d i t o r da p r i m e i r a e d i ç ã o de suas
prioresa ursulina Jeanne des Anges (1605-65) é justamente a a u s ê n c i a m e m ó r i a s chamou-a de G l i i c k e l v o n H a m e l n — u m p r i m e i r o nome de
do d i á l o g o que, segundo De Certeau, estabelece o l i m i t e da e v o l u ç ã o r e s s o n â n c i a s a l e m ã s e u m sobrenome c o m u m " v o n " a r i s t o c r á t i c o que
espiritual. A o descrever sua p o s s e s s ã o d e m o n í a c a e a cura, ela se re- evocava seu m a r i d o , H a i m , nascido na cidade de H a m e l n . M a s era Glikl
veste de v á r i a s m á s c a r a s , tentando agradar a todos os que a rodeiam: as que circulava nos sotaques i í d i c h e s a sua volta e que ela assinava numa
demais religiosas, os p r ó p r i o s d e m ó n i o s , os j e s u í t a s que a e x o r c i s - é p o c a ' e m que a assinatura de uma j u d i a a associava n ã o ao m a r i d o , e
m a r a m e a autoridade das ursulinas que lhe ordenou escrever o h v r o . N o sim ao p a i . ( A s s i m era t a m b é m na F r a n ç a seiscentista, onde a m u l h e r
relato n ã o existem " e u " e " t u " interiores, mas somente " e u " e "eu"." usava o sobrenome do pai e o n o t á r i o indicava seu estado c i v i l c o m o
Essas t r ê s figuras c a t ó l i c a s n ã o contaram h i s t ó r i a s tradicionais, "esposa de fulano de t a l " ou " v i ú v a de beltrano". N a A l e m a n h a de fins
mas apenas expuseram suas v i s õ e s e seus sonhos. A o c o m e n t á - l a s , do s é c u l o X V I I as m u l h e r e s c r i s t ã s cada vez mais a s s u m i a m o so-
M i c h e l de Certeau n ã o menciona a arte de contar h i s t ó r i a s , cujo poder brenome do m a r i d o , acrescentando o n o m e de solteira e m d e t e r m i -
analisa e m L'invention du quotidien. A s h i s t ó r i a s conquistam u m es- nadas c i r c u n s t â n c i a s : geboren Merian.)
p a ç o especial c o m seu "era u m a vez". C o n s t i t u e m u m i n s t r u m e n t o A s s i m , as filhas de G l i k l assinavam e m caracteres hebraicos: Es-
e c o n ó m i c o para ressaltar u m t ó p i c o , desferir u m ataque, "firar proveito ther bas reb H a i m , M i r i a m bas reb H a i m (Esther, filha de nosso mestre
de uma s i t u a ç ã o abordando-a inesperadamente". O contador de H a i m ; M i r i a m , filha de nosso mestre H a i m ) , eventualmente j u n t a n d o
h i s t ó r i a s pode interferir na maneira c o m o os outros recordam o passa- Segal para enfatizar as origens paternas na casa de L e v i . A o assinar e m
do e pode m u d á - l o , acrescentando u m detalhe inesperado a uma narra- caracteres ocidentais, u m a j u d i a acrescentava u m dos sobrenomes as-

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sumidos pelo pai para os registros c r i s t ã o s e os coletores de impostos olhos. O clero luterano esbravejava contra a t o l e r â n c i a do Senado e m
j u d e u s : as filhas casadas de G l i k l e s c r e v i a m G o l d s c h m i d t para os r e l a ç ã o aos judeus. " E m sua sinagoga h á m u r m ú r i o s e gritos ruidosos
n o t á r i o s c r i s t ã o s na F r a n ç a ( c o m o podemos ver no documento repro- [...] Ob.servam seu p r ó p r i o S a b á | . . . ] M a n t ê m criados c r i s t ã o s | . . . | Seus
d u z i d o neste l i v r o ) , enquanto na A l e m a n h a seus f i l h o s ora usavam rabinos temerariamente c o m b a t e m nos.so Messias."" Empenhado e m
H a m e l ora G o l d s c h m i d t . " P a r a l e l a m e n t e os escribas j u d e u s p o d i a m favorecer a e x p a n s ã o e c o n ó m i c a da cidade, o Senado fazia o p o s s í v e l
designar a c o n d i ç ã o de uma m u l h e r por m e i o do m a r i d o ; assim, no l i v r o para segurar os grandes banqueiros, embora e m 1674 os sefardins re-
de impostos da comunidade j u d a i c a G l i k l figura a p ó s a morte de H a i m cebessem ordens de fechar sua sinagoga. Seu n ú m e r o c o m e ç o u a m i n -
H a m e l c o m o A i m o n e G l i k l , "a v i ú v a G l i k l " (mas n ã o " v i ú v a G l i k l guar, e e m 1697, quando o Senado cobrou uma taxa elevada dos judeus
H a m e l " ) . Quando m o r r e u , na F r a n ç a , os registros civis a identificaram portugueses e os rebaixou, Teixeira e outros banqueiros p a r t i r a m para
c o m o " G u e l i c , v i ú v a de C e r f L e v y " ( L e v y era seu segundo m a r i d o ) , Amsterdam.
p o r é m o m e m o r i a l j u d a i c o tradicionalmente lhe atribui o nome do pai, A comunidade dos judeus a l e m ã e s — hochdeutsche Juden, con-
c o m o ocorria t a m b é m c o m os homens: " G l i k , filha do saudoso Judah forme o Senado os c h a m a v a — t o r n o u - s e e n t ã o o centro da v i d a j u d a i c a
Joseph, de H a m b u r g o " . ' e m H a m b u r g o . " N a s d é c a d a s de 1630 e 1640 algumas f a m í l i a s j u d i a s
A o l o n g o do s é c u l o x v n e no i n í c i o do x v i i i os nomes j u d a i c o s m u - (entre as quais a de G l i k l ) entraram na cidade sem a u t o r i z a ç ã o o f i c i a l ;
d a v a m m u i t o m a i s que os c r i s t ã o s , para alegria de seus referentes. ah negociavam c o m ouro e j ó i a s , emprestavam d i n h e i r o , fabricavam
Chamarei G l i k l pelo nome j u d a i c o que ela mesma provavelmente usou objetos artesanais e informalmente pagavam taxas ao governo a fim de
— G l i k l bas Judah L e i b ( G l i k l , filha de Judah L e i b ) — e que escolheu manter sua i n s t á v e l s i t u a ç ã o . Enquanto a m a i o r i a dos sefardins v i v i a m
para dar ao filho que teve a p ó s a morte de seu pai." na Cidade Velha, os ashkenazim se apinhavam no Oeste da Cidade N o -
G l i k l nasceu em H a m b u r g o no final de 1646 ou e m 1647, c o m - va, a pequena d i s t â n c i a da Porta do M o l e i r o . "
pondo a prole de seis c r i a n ç a s de Judah Joseph, t a m b é m conhecido co- Essa l o c a l i z a ç ã o convinha aos judeus a l e m ã e s , e n ã o s ó porque
m o L e i b , c o m e r c i a n t e e m e m b r o n o t á v e l da c o m u n i d a d e j u d a i c a simbolizava a possibilidade de uma fuga r á p i d a . Encurtava e m alguns
a l e m ã , e da negociante Beila, filha de Nathan M e l r i c h , da v i z i n h a A l - q u i l ó m e t r o s sua caminhada a t é A l t o n a , onde gozavam de u m a p o s i ç ã o
tona." E m meados do s é c u l o a Cidade L i v r e H a n s e á t i c a de H a m b u r g o social " p r o t e g i d a " sob os olhos tolerantes dos condes de H o l s t e i n -
era u m florescente porto c o s m o p o l i t a c o m mais de 60 m i l habitantes, Schauenburg e ( a p ó s 1640) dos soberanos dinamarqueses. F o i para A l -
u m centro c o m e r c i a l e mercado financeiro que negociava c o m a Es- tona que os judeus a l e m ã e s se d i r i g i r a m quando o Senado de Hambur-
panha, a R ú s s i a , Londres e o N o v o M u n d o . ' " Os judeus p a r d c i p a r a m go, i n s t i g a d o pelo clero luterano e pelas queixas da Biirgerschaft (a
desse desenvolvimento. E m 1 6 1 2 o Senado de H a m b u r g o assinara u m assembleia m u n i c i p a l ) , expulsou-os e m 1650.
acordo c o m a pequena c o m u n i d a d e de j u d e u s portugueses ( o u se- N o s anos seguintes e n t r a v a m clandestinamente e m H a m b u r g o
fardins, c o m o G l i k l costumava c h a m á - l o s ) , m u i t o s dos quais eram para comerciar, afrontando os ataques de soldados e marinheiros ao
p r ó s p e r o s banqueiros e mercadores internacionais; o acordo p e r m i t i a - passar pela Porta do M o l e i r o e arriscando-se a ser presos, caso n ã o pa-
Ihes residir e trabalhar na cidade c o m o estrangeiros ou "judeus prote- gassem u m a taxa de escolta. Depois que os suecos invadiram A l t o n a ,
gidos" e m troca de u m pagamento a n u a l . ' Na d é c a d a de 1660 eles so- e m 1657, o Senado permifiu que os hochdeutsche Juden voltassem a re-
m a v a m cerca de seiscentas pessoas e tentavam converter e m sinagoga sidir e m H a m b u r g o , proibindo-os, p o r é m , de escandalizar os cri.stãos
suas casas informais de o r a ç ã o . Quando visitou H a m b u r g o e m 1667, a c o m suas p r á t i c a s religiosas no interior da cidade. Para i r à sinagoga e
rainha C r i s t i n a da S u é c i a hospedou-se por mais de u m m ê s c o m sua enterrar seus mortos os judeus a l e m ã e s d e v i a m se d i r i g i r a A l t o n a , onde
c o m i t i v a na bela casa de seus banqueiros judeus, A b r a h a m e Isaac Tei- se encontrava a sede de sua comunidade — sua Jiidische Gemeinde."'
xeira, localizada nas proximidades da igreja de S ã o M i g u e l . ' " N a ú l t i m a d é c a d a do s é c u l o a p o p u l a ç ã o e a prosperidade dos
N e m todos os habitantes de H a m b u r g o v i a m tal s i t u a ç ã o c o m bons judeus a l e m ã e s j á haviam se m u l f i p h c a d o . Se ainda despertavam sus-

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peitas e provocavam r e a ç õ e s violentas entre os trabalhadores hambur- tante para casar-se e, salvo u m , ter filhos.""Para a Europa seiscentista,
gueses; se ainda levavam os t e ó l o g o s a indignar-se c o m a gritante "su- onde u m t e r ç o ou a t é a metade das c r i a n ç a s m o r r i a antes dos dez anos,
p e r s t i ç ã o " de suas l â m p a d a s do S a b á , mantidas acesas durante 24 horas f o i u m feito e x t r a o r d i n á r i o conseguir levar os fdhos a t é o outro lado do
para n ã o desobedecer ao mandamento d i v i n o , agora t i n h a m defensores mar, mesmo considerando que se tratava de uma f a m í l i a rica e que a
a l é m do Senado: gente que os v i a c o m o convertidos em potencial ou co- m ã e amamentou sua prole."'
mo elementos importantes da economia. E m 1697, quando o Senado H a i m negociava c o m ouro, prata, p é r o l a s , j ó i a s e dinheiro, orga-
lhes ofereceu a possibilidade de regularizar sua s i t u a ç ã o e m troca de nizando vendas de M o s c o u e D a n z i g para Copenhague, A m s t e r d a m e
u m a taxa m a i o r que aquela cobrada dos j u d e u s portugueses, os Londres. Frequentava regularmente as feiras de L e i p z i g e Frankfurt am
hochdeutsche Juden aceitaram. Por f i m e m 1710 f o r a m autorizados a M a i n , e e m geral empregava judeus a l e m ã e s c o m o agentes ou os toma-
manter sua p r ó p r i a Gemeinde e m H a m b u r g o . " va c o m o s ó c i o s para r e p r e s e n t á - l o e m outros lugares. G l i k l participava
A s s i m , a i n f â n c i a de G l i k l nos anos de 1650 transcorreu na é p o c a de todas as d e c i s õ e s relativas aos n e g ó c i o s ("Ele n ã o pedia conselho a
dessa constante m o v i m e n t a ç ã o dos judeus entre H a m b u r g o e A l t o n a . n i n g u é m e c o m i g o falava de t u d o " ) , redigia os contratos de sociedade
Seu pai f o i o p r i m e i r o j u d e u a l e m ã o que recebeu p e r m i s s ã o para se e ajudava a manter os livros e os compromissos locais. O casal c o m e ç o u
reinstalar e m H a m b u r g o a p ó s a i n v a s ã o sueca, p o r é m na c o n d i ç ã o de j o v e m e "sem grande riqueza", disse ela, p o r é m acabou conseguindo
parnas ( d i g n i t á r i o da G e m e i n d e ) t i n h a de i r a A l t o n a para tratar de m u i t o c r é d i t o e m H a m b u r g o e e m outras cidades. H a i m estava se tor-
n e g ó c i o s da comunidade e rezar sempre que o risco de realizar cultos nando u m dos ashkenazim mais p r ó s p e r o s de Hamburgo."^
ilegais e m H a m b u r g o era m u i t o g r a n d e . " E e n t ã o , numa noite de j a n e i r o de 1689, quando se d i r i g i a ao bair-
A meninice de G l i k l f o i breve. Antes de completar doze anos ela ro n ã o j u d e u da cidade, onde deveria realizar u m n e g ó c i o , H a i m caiu
f i c o u n o i v a do adolescente H a i m , f i l h o do c o m e r c i a n t e Jo.seph ben sobre uma pedra pontiaguda. Poucos dias depois morreu, e G l i k l ficou
Baruch D a n i e l Samuel h a - L e v i (ou Segal), conhecido t a m b é m c o m o v i ú v a c o m o i t o c r i a n ç a s para acabar de criar, dotar e casar. Nos anos
Joseph G o l d s c h m i d t e Joseph H a m e l , da c i d a d e z i n h a de H a m e l n . ' " seguintes ela adotou a e s t r a t é g i a j u d i a de casar alguns filhos c o m v i z i -
Dois anos depois se casou. O casamento e m t ã o tenra idade raramente nhos e outros c o m moradores de cidades distantes. A n t e s de H a i m
ocorria entre as mulheres cri.stãs de H a m b u r g o e outras localidades da morrer, quatro de seus filhos j á h a v i a m se casado: dois rapazes e m
Europa O c i d e n t a l , que e m geral esperavam a t é os dezoito anos para dar Hamburgo, uma m o ç a e m H a n ô v e r e a mais velha, Z i p p o r a h , e m A m s -
esse passo; entretanto, n ã o era i n c o m u m entre judeus abastados da E u - terdam. Seus arranjos levaram Esther a M e t z , outros filhos a B e r l i m ,
ropa Central e Oriental."" Entre outras vantagens, garantia uma u n i ã o ao Copenhague, Bamberg e Baiersdorf; apenas uma das meninas, Freud-
gosto dos pais e p r o m o v i a o mitzvot — o mandamento e a boa a ç ã o — chen, permaneceu e m H a m b u r g o durante a l g u m tempo."'
da p r o g é n i e . E por que esperar, se os pais ofereciam aos noivos linhas O que determinava tais arranjos? E m parte o n ú m e r o insuficiente
de c r é d i t o e capital l í q u i d o , e m vez de terras ou lojas? A d e m a i s , no iní- de ashkenazim de boa s i t u a ç ã o n u m a ú n i c a localidade, mesmo c o n -
cio de sua vida conjugal os esposos p o d i a m valer-se do kest, ou p e n s ã o , siderando que a lei j u d a i c a p e r m i t i a o casamento entre p r i m o s - i r m ã o s
costume j u d a i c o i n c l u í d o no contrato nupcial. ( c o m o ocorreu c o m u m a das filhas de H a i m e G l i k l ) . E m parte — o que
Depois de morar u m ano c o m a família de H a i m e m H a m e l n e o u - era mais importante — a ampla d i s p e r s ã o dos parentes con.stituía uma
tro c o m a família de G l i k l em H a m b u r g o , o j o v e m par se instalou c o m vantagem e m termos e c o n ó m i c o s e uma medida de s e g u r a n ç a . Nunca
dois criados numa casa alugada — tudo o que u m j u d e u podia ter — no se sabia quando a roda da fortuna ia girar: e m 1674 e 1697 os hambur-
bairro dos ashkenazim, situado na Cidade Nova, a curta d i s t â n c i a do E l - gue.ses v o l t a r a m a pedir a e x t r u s ã o dos judeus a l e m ã e s , a qual s ó n ã o
ba."' Nas t r ê s d é c a d a s seguintes puseram no m u n d o catorze fdhos — ocorreu g r a ç a s à i n t e r f e r ê n c i a do Senado e de c i d a d ã o s preocupados
dois m o r r e r a m ( u m ainda b e b é e o outro pouco antes de completar t r ê s c o m a economia local; e m 1670 os judeus receberam p e r m i s s ã o para se
anos); os doze restantes (seis meninos e seis meninas) v i v e r a m o bas- estabelecer e m B e r l i m , mas e m 1669-70 foram expulsos de Viena e s ó

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p u d e r a m v o l t a r no f i n a l da d é c a d a . O casamento de Moses, f i l h o de e m A l t o n a . Quando se v i u sem d i n h e i r o suficiente para manter a casa,
G l i k l , c o m a fdha de Samson Baiersdorf, j u d e u da corte do margrave de passou a fazer renda de ouro e prata c o m a filha, Beila. Os comerciantes
Bayreuth, f o i adiado por u m ano quando o novo conselheiro do mar- de H a m b u r g o g o s t a v a m tanto de seu t r a b a l h o que B e i l a r e u n i u u m
grave t e n t o u d e s t r u i r S a m s o n . ' ' " ' M a i s u m A m a n " , disse G l i k l , re- grupo de aprendizes e lhes ensinou sua t é c n i c a . ' " G l i k l descreve outras
ferindo-se ao c o n s e l h e i r o m a l v a d o que no L i v r o de Ester a m e a ç o u matronas ativas, c o m o Esther, " u m a senhora piedosa e honrada que [... ]
matar os judeus. sempre ia à s feiras", e a v i ú v a de B a r u c h de B e r l i m , "que ainda se man-
Q u a n t o aos n e g ó c i o s da f a m í l i a , H a i m n ã o v i u necessidade de finha b e m ocupada" e se t o m o u sogra de sua filha Hendele. A v i ú v a j u -
nomear testamenteiros ou curadores ( " M i n h a m u l h e r sabe de t u d o " , dia que assume os n e g ó c i o s do m a r i d o se encontra e m muitas outras
declarou e m seu leito de morte),"'e a v i ú v a assumiu a responsabilida- famílias."
de. Depois de u m leilão proveitoso, realizado para pagar as d í v i d a s do A s mulheres c r i s t ã s t a m b é m f a z i a m pequenos e m p r é s t i m o s e te-
marido, ela resistiu à p r e s s ã o sobre si mesma e sobre seu f i l h o M o r d e - c i a m renda de ouro e meias.'^0 que as diferencia de G l i k l na A l e m a n h a
cai. N o f i m exerceu atividades comerciais suficientes para converter é a e x t e n s ã o de suas atividades e de suas o p e r a ç õ e s de c r é d i t o . Ela n ã o
imediatamente e m p r o m i s s ó r i a s do c â m b i o de H a m b u r g o 20 m i l t á l e r e s era " j u d i a da corte": Esther S c h u l h o f f esposa de Judah B e r l i n , t a m b é m
de j u d e u s e c r i s t ã o s — u m a soma b e m i n f e r i o r à dos grandes b a n - conhecido c o m o Jost L i e b m a n n , trabalhava c o m o m a r i d o , fornecendo
queiros, mas de qualquer m o d o substancial."" A b r i u u m n e g ó c i o para j ó i a s para a corte prussiana, e c o n t i n u o u nesse ramo depois que enviu-
fabricar meias e v e n d ê - l a s e m H a m b u r g o e e m locais distantes. C o m - v o u ; e m geral, p o r é m , levantar e m p r é s d m o s para os p r í n c i p e s e abaste-
prava p é r o l a s de todos os judeus da cidade, selecionava-as e vendia-as cer seus e x é r c i t o s eram coisas de h o m e n s . " M a s as t r a n s a ç õ e s de G l i k l
segundo o tamanho à s pessoas adequadas. Importava mercadorias da a levaram para o c o m é r c i o de grande porte e envolveram somas signi-
Holanda e as expunha e m sua loja j u n t o c o m produtos locais. Visitava ficativas de d i n h e i r o , que ela trocava pessoalmente na Bolsa de H a m -
as feiras de B r a u n s c h w e i g , L e i p z i g e outras cidades. Emprestava d i - burgo. (Provavelmente ia acompanhada à Bolsa; a Gemeinde j u d i a de
nheiro e aceitava letras de c â m b i o de toda a Europa. A o c o n t r á r i o de W o r m s recomendava que as mulheres n ã o fossem ao mercado sem a
H a i m , n ã o tinha s ó c i o s n e m agentes estranhos à f a m í l i a : u m de seus f i - companhia de outro j u d e u . ) "
lhos mais velhos, Nathan ou M o r d e c a i , acompanhava-a à s feiras ( u m a N a A l e m a n h a as mulheres c r i s t ã s geralmente se restringiam ao i n -
senhora r e s p e i t á v e l n ã o p o d i a viajar sozinha),"'enquanto o u t r o f i l h o terior da cidade, desempenhando u m papel de suma i m p o r t â n c i a no
era despachado para Frankfurt a m M a i n , digamos, a fim de vender suas c o m é r c i o varejista. Se realizavam o p e r a ç õ e s de c r é d i t o e m H a m b u r g o ,
mercadorias. G l i k l nunca d e i x o u escapar u m a oportunidade de fazer parece que n ã o costumavam frequentar a Bolsa — pelo menos é o que
n e g ó c i o s . Sempre teve bons lucros c o m as muitas viagens que realizou sugerem as c o n v e n ç õ e s p i c t ó r i c a s da é p o c a . " N o final do s é c u l o x v i i al-
na c o n d i ç ã o de casamenteira: pedras preciosas que vendeu e m A m s - gumas v i ú v a s c r i s t ã s de H a m b u r g o assumiam a empresa do m a r i d o a t é
terdam a p ó s as bodas de Esther, uma feira que visitou e m N a u m b u r g poder p a s s á - l a aos filhos; entretanto, as que herdavam n e g ó c i o s t ã o ex-
depois de ajustar u m noivado e m Bayreuth, o dinheiro do dote dos f i - tensos quanto os de H a i m costumavam confiar a d i r e ç ã o a u m parente
lhos que emprestava a j u r o s a t é o m o m e n t o de u s á - l o . ou representante m a s c u l i n o e dedicar-se à s tarefas d o m é s t i c a s ou a
U m a m u l h e r de n e g ó c i o s era algo i n c o m u m ? E n t r e os j u d e u s afividades religiosas condizentes c o m sua p o s i ç ã o . Para os j u d e u s
a l e m ã e s esperava-se que as mulheres trabalhassem. Matfie bas Jacob, a l e m ã e s frequentar as feiras n ã o depunha contra a r e p u t a ç ã o da mulher,
a a v ó materna de G l i k l , e sua m ã e , Beila, c o n s t i t u í a m excelentes m o - sobretudo se ela ganhava bastante d i n h e i r o , c o m o era o caso de G l i k l .
delos (descritos e m sua Vida para servir de exemplo t a m b é m para a ge- De qualquer m o d o tais o c a s i õ e s sempre favoreciam novas propostas de
r a ç ã o seguinte). M a t t i e enviuvou c o m a peste de 1638, e os v i z i n h o s lhe casamento.
roubaram os sacos de j ó i a s e correntes de ouro que o m a r i d o deixara; Durante mais de uma d é c a d a G l i k l recusou todas essas ofertas.
g r a ç a s a pequenos e m p r é s t i m o s e penhores ela c o m e ç o u tudo de novo M a s e m 1699, quando estava c o m cinquenta e poucos anos, concordou

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e m casar-se c o m o v i ú v o H i r s c h Levy, r i c o financista e h'der da c o m u - militares se m o s t r a v a m preocupados quando u m j u d e u ousava cons-
nidade j u d a i c a de M e t z , no reino da F r a n ç a . N o ano seguinte, manten- t r u i r u m a casa, e m vez de simplesmente a l u g á - l a , e registravam o fato.
do o noivado e m segredo para n ã o ter de pagar a pesada taxa que o go- Negociantes de tecidos e roupas reclamaram ao ver seus direitos co-
v e r n o de H a m b u r g o i m p u n h a aos j u d e u s que d e i x a v a m a cidade, merciais a m e a ç a d o s pela c o n c o r r ê n c i a dos judeus. O j o v e m Joseph Ca-
vendeu todo o seu estoque e saldou todas as d í v i d a s . A Gemeinde de A l - hen desapareceu e m 1 7 0 1 , enquanto cobrava uns a ç o u g u e i r o s ; no
tona percebeu o que estava acontecendo e cobrou-lhe uma taxa de par- processo que se seguiu sua v i ú v a acusou dois a ç o u g u e i r o s de roubo e
tida, que ela tampouco pagou."'Levando consigo a ú n i c a filha solteira, assassinato, e estes acusaram a comunidade j u d a i c a de " p e r s e g u i ç ã o
M i r i a m , G l i k l d e i x o u para sempre sua cidade natal. cruel e violenta contra duas inocentes f a m í l i a s cristãs".™
Pior ainda era quando as a c u s a ç õ e s de v i o l ê n c i a r e c a í a m sobre os
judeus. E m 1669 uns camponeses c a t ó l i c o s culparam u m certo R a p h a è l
E m 1700 M e t z tinha apenas 22 m i l habitantes no interior de suas L e v y (sem parentesco c o m H i r s c h ) de assassinato ritual, e o Parlement
muralhas, e e m termos de economia e r e l i g i ã o era b e m mais acanhada de M e t z o condenou à morte na fogueira — n ã o obstante o corpo da
que H a m b u r g o . Por localizar-se n u m a zona f r o n t e i r i ç a p o s s u í a uma c r i a n ç a ter sido encontrado na floresta, parcialmente devorado pelos
g u a r n i ç ã o militar, seu p r ó p r i o Parlement (supremo tribunal) e sua casa animais, a pouca d i s t â n c i a do local onde se perdera. Seguiram-se o u -
da moeda. A p o p u l a ç ã o se mantinha ocupada abastecendo as tropas de tras p r i s õ e s e exigiu-se a e x p u l s ã o dos judeus, a t é que L u í s x i v inter-
L u í s X I V , p r o d u z i n d o artesanato e r e d i s t r i b u i n d o os cereais proce- feriu e peremptoriamente p ô s t e r m o ao t u m u l t o . N a é p o c a de G l i k l os
dentes dos campos vizinhos. Enquanto a luterana H a m b u r g o aceitava judeus de M e t z ainda j e j u a v a m no 25" dia do Tevet, data da e x e c u ç ã o
— nem sempre de boa vontade — residentes c a t ó h c o s , judeus e c a l v i - de seu m á r t i r inocente, R a p h a ê l Levy. Esther, filha de G l i k l , e seu m a r i -
nistas holandeses, a c a t ó l i c a M e t z sofria os efeitos da r e v o g a ç ã o do do, Moses Schwabe, por certo se lembravam desses tempos d i f í c e i s :
É d i t o de Nantes. Cerca de 3 m i l protestantes—banqueiros, advogados, durante o j u l g a m e n t o de L e v y o a v ô de Moses, Meyer, fora acusado de
ourives, b o f i c á r i o s , l i v r e i r o s e suas f a m í l i a s — p r e f e r i r a m d e i x a r a numa .sexta-feira santa encenar e m sua casa a c r u c i f i x ã o de Cristo. A i n -
cidade a a b r a ç a r o c a t o l i c i s m o . " da nessa é p o c a surgiu mais uma a c u s a ç ã o de assassinato r i t u a l , que to-
Os j u d e u s , no entanto, permaneceram. P o d i a m praticar sua re- davia n ã o f o i levada a julgamento.^"
l i g i ã o , e sua p r e s e n ç a na p o p u l a ç ã o de M e t z era numericamente mais E m 1699 o intendente real M a r e A n t o i n e Turgot p r o c l a m o u a u t i -
importante que e m Hamburgo. N a d é c a d a de 1560, dez anos depois de lidade dos j u d e u s : eles f o r n e c i a m à cidade e sobretudo à s tropas os
H e n r i q u e i i l i b e r t a r a cidade d o c o n t r o l e i m p e r i a l e afi instalar as cereais e os cavalos t ã o n e c e s s á r i o s ; c o n s t i t u í a m " u m a e s p é c i e de
primeiras i n s t i t u i ç õ e s reais, algumas f a m í l i a s de judeus a l e m ã e s rece- r e p ú b l i c a e n a ç ã o neutra", c o m capacidade de viajar facilmente e sem
beram a u t o r i z a ç ã o para residir em M e t z e praticar e m p r é s t i m o s finan- grandes gastos, pesquisar p r e ç o s e transportar mercadorias a l é m - f r o n -
ceiros. Os antepassados de Hirsch L e v y chegaram pouco depois. E m teiras e m virtude de suas r e l a ç õ e s c o m outros judeus."" Durante a fome
1657, quando L u í s x i v entrou na cidade e visitou a sinagoga " c o m p o m - de 1698 C e r f L e v y e A b r a h a m Schwabe (sogro de Esther, a filha de
pa e c i r c u n s t â n c i a " , todos os reis franceses desde Henrique III j á haviam G l i k l ) levaram para M e t z 6 m i l sacos de cereais; perderam d i n h e i r o ,
confirmado os p r i v i l é g i o s da crescente comunidade j u d a i c a . E m 1699, p o r é m conquistaram as boas g r a ç a s das autoridades r é g i a s e m u n i c i -
quando G l i k l negociava .seu contrato nupcial c o m H i r s c h L e v y — ou pais. A l é m disso os judeus eram banqueiros que faziam grandes e m -
C e r f ( c e r v o ) L e v y , c o m o o c h a m a v a m os t a b e l i ã e s e f u n c i o n á r i o s p r é s t i m o s a oficiais e fidalgos, e pequenos e m p r é s d m o s a a ç o u g u e i r o s
franceses de M e t z — , cerca de 1200 judeus a l e m ã e s , 5% da p o p u l a ç ã o e lavradores; ainda n e g o c i a v a m c o m o u r o , j ó i a s , m o e d a ( i n c l u s i v e
local, excetuando-se a g u a r n i ç ã o , apinhavam-se no bairro de Saint Fer- moeda ilegalmente desvalorizada) e mercadorias de segunda m ã o . ^ '
roy, à s margens do Mosela.'" Entre as mulheres j u d i a s n ã o se encontra nos contratos comerciais ne-
Evidentemente se contestavam seus p r i v i l é g i o s e sua p r e s e n ç a . Os nhuma G l i k l (e talvez algumas das v i ú v a s mais abastadas estivessem se

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retirando dos n e g ó c i o s , c o m o as v i ú v a s c r i s t ã s ) , p o r é m numerosas ma- Samuel ben Hirsch ficou e m Lorena, e o pai dele morreu amargu-
tronas j u d i a s faziam pequenos e m p r é s t i m o s a f a m í l i a s de camponeses rado e m 1712, deixando a v i ú v a c o m menos de u m t e r ç o de seu dote.
e c r i s t ã o s de Metz."" Prestes a completar setenta anos, G l i k l finalmente se m u d o u para a casa
Foi nesse c í r c u l o de banqueiros e na e s p l ê n d i d a casa de H i r s c h / - da filha Esther e do genro Moses Schwabe (ou Moses K r u m b a c h , co-
C e r f L e v y que G l i k l bas Judah L e i b entrou c o m suas "francas maneiras mo gostava de c h a m á - l o e m i í d i c h e ) . A h v i v i a quando sua filha M i r i a m
a l e m ã s " . E l a d e m o r o u a l g u m t e m p o para se acostumar c o m tantos deu à luz u m menino, H a i m (o nome ressurgiu), seu neto Elias fez u m
criados e c o m uma cozinheira que tomava d e c i s õ e s sem c o n s u l t á - l a . A b o m casamento e o enteado Samuel construiu e m L u n é v i l l e , Lorena,
l e m b r a n ç a da p r i m e i r a esposa de H i r s c h (que morrera no ano anterior uma casa que mais parecia u m " p a l á c i o " . E ali morreu aos 78 anos e m
a seu segundo casamento) ainda estava bem viva na m e m ó r i a de seus 1724, no Rosh Hashanah ( A n o - N o v o ) de 5485 segundo o c a l e n d á r i o
sete fdhos, os quais demonstravam c o m absoluta clareza que preferiam judaico.
m i l vezes a generosidade da m ã e à p a r c i m ô n i a da madrasta. Sem e m -
bargo G l i k l se preocupava c o m eles ( t r ê s j á estavam casados) e sobre-
tudo c o m a f a m í l i a de Esther e Moses, os quais depois de dez anos por G l i k l c o m e ç o u a escrever o l i v r o de sua vida " c o m o c o r a ç ã o des-
f i m tiveram u m filho que n ã o m o r r e u prematuramente. G l i k l conversa- p e d a ç a d o " a p ó s a morte do marido, H a i m , "para proteger-me dos pen-
va m u i t o c o m a sogra de Esther, a r i c a e i n f l u e n t e Jachet bas Elias samentos m e l a n c ó l i c o s [mcilekuleshe gedanken] que me o c o r r i a m [...|
(Agathe, e m f r a n c ê s ) , c o m a qual trocara cartas azedas quando as duas em muitas noites insones".'' Era estranho uma m u l h e r escrever suas
negociaram o casamento dos filhos, dez anos antes.^' m e m ó r i a s ? Para n ó s talvez seja, pois trata-se da p r i m e i r a autobiografia
E e n t ã o , u m ano e m e i o depois, H i r s c h L e v y faliu. Era honesto e de uma j u d i a que conhecemos. Todavia, ela nunca nos d á a i m p r e s s ã o
seus credores o aniquilaram. A Gemeinde j u d a i c a achou que houve al- de achar que estivesse fazendo algo i n s ó l i t o , e na verdade estudos re-
guma "desordem" e m seus n e g ó c i o s , p o r é m atribuiu a r u í n a à c o b i ç a centes t ê m demonstrado que no i n í c i o da era moderna as autobiografias
dos c r i s t ã o s que lhe emprestaram d i n h e i r o a j u r o s exorbitantes. E m — completas o u f r a g m e n t a d a s — e r a m mais comuns entre os judeus do
1702 os n o t á r i o s andaram m u i t o atarefados, r e d i g i n d o contratos e m que se acreditava. N a Itália o douto rabino L e o n M o d e n a , de Veneza, e
que credores j u d e u s e c r i s t ã o s c o n s o l i d a r a m suas queixas c o n t r a o m é d i c o A b r a h a m bem Hananiah Yagel registraram e m hebraico fatos
H i r s c h ; por fim chegaram a u m acordo e receberam cerca da metade do de sua v i d a . N a A l s á c i a o c o m e r c i a n t e e professor A s h e r H a l e v i
que lhes era devido.*' elaborou seu Livro de memórias. E m Praga u m certo Samuel ben Jishaq

E m vez de viver no l u x o e c o m i n d e p e n d ê n c i a , G l i k l bas Judah Tausk r e d i g i u u m Manuscrito — Megillat Samuel, e m i í d i c h e — no

L e i b e H i r s c h ben Isaac tiveram de aceitar a ajuda dos filhos. Possivel- qual relata os sofrimentos impostos e m 1704 a ele e aos judeus locais.

mente G l i k l v o l t o u a trabalhar, pois se tornou conhecida e m M e t z por E m A l t o n a surgiram outras autobiografias t a m b é m no s é c u l o x v i i i . "

sua " e x t r e m a h a b i l i d a d e no c o m é r c i o de pedras preciosas".^'Pelo C o m o muitos similares c r i s t ã o s as autobiografias de judeus pos-


menos a filha M i r i a m conseguiu u m casamento r a z o á v e l c o m u m co- s u í a m u m c a r á t e r familiar, lembrando fatos do passado e e s m i u ç a n d o
merciante j u d e u . " Hirsch tornou-se con.selheiro de seu filho Samuel, a os do presente para que as novas g e r a ç õ e s conhecessem suas origens e
quem recomendou vivamente que se contentasse c o m a casa que pos- soubessem c o m o se orientar no futuro. O rabino veneziano L e o n M o -
s uía e m M e t z e o posto de rabino da A l s á c i a e n ã o assumisse a Casa da dena escreveu e m hebraico a h i s t ó r i a de sua vida para os "filhos [...1 e
Moeda do duque de Lorena, fora da F r a n ç a . Samuel n ã o lhe deu o u v i - os descendentes destes e para os d i s c í p u l o s , que s ã o chamados de fi-
dos, e sua p r e v i s ã o se c o n f i r m o u : preocupado c o m o d i n h e i r o que en- lhos". E m seu manuscrito G l i k l bas Judah L e i b v á r i a s vezes se dirige
trava e saía do p a í s , e instigado por concorrentes judeus de M e t z , L u í s explicitamente à amada prole: " M i n h a s c r i a n ç a s queridas, escrevo isto
X I V determinou que Samuel L e v y e seus s ó c i o s s ó p o d e r i a m voltar ao para que a m a n h ã o u depois seus queridos filhos e netos c o n h e ç a m nos-
reino quando deixassem a Casa da M o e d a de Lorena.^'' sa f a m í l i a , saibam q u e m é nossa gente". Seu filho Moses H a m e l , rabi-

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no de Baiersdorf, elaborou u m a c ó p i a de sua h i s t ó r i a que atravessou os Eukleria, obra escrita e m l a t i m por A n n a M a r i a van Schurman, p u b l i -
séculos." cada e m A l t o n a e m 1673 e amplamente difundida. Essa autobiografia
Existem, p o r é m , algumas d i f e r e n ç a s interessantes entre as fontes nos mostra c o m o Schurman renunciou à fama mundana, à e r u d i ç ã o e m
utilizadas por c r i s t ã o s e judeus que podem nos ajudar a entender a mis- l í n g u a s e à literatura .secular a que se dedicara e m sua Utrecht natal e co-
tura de g é n e r o s presente na obra de G l i k l — quer dizer, sua mescla de m o a b r a ç o u u m a v i d a de h u m i l d a d e e c o m u n h ã o r e l i g i o s a c o m os
m e m ó r i a s e h i s t ó r i a s . Entre os c r i s t ã o s a autobiografia geralmente cons- labadistas de A l t o n a . (Eles trocavam d i n h e i r o c o m os judeus; G l i k l e
tituía u m subproduto de u m l i v r o de contabilidade e/ou de nascimen- A n n a M a r i a p o d e m ter se encontrado nas ruas da c i d a d e . ) " U m a varia-
tos, m a t r i m ó n i o s e ó b i t o s anotados n u m exemplar da B í b l i a , n u m l i v r o ç ã o desse m o d e l o énLehen da v i s i o n á r i a pietista Johanna Eleonora v o n
de horas e e m qualquer outro texto ou c a l e n d á r i o de c a r á t e r religioso. M e r l a u Petersen, publicada e m 1719, quando a autora estava c o m 75
A s s i m , na é p o c a de G l i k l os homens de H a m b u r g o registravam fatos fa- anos (talvez fosse c o n t e m p o r â n e a exata de G l i k l ) . O l i v r o relata n ã o
miliares, dias de c o m u n h ã o e t r a n s a ç õ e s comerciais e m c a l e n d á r i o s uma ú n i c a e x p e r i ê n c i a de c o n v e r s ã o , e s i m u m a s é r i e de provas, que ela
c r i s t ã o s devidamente impressos c o m amplas colunas e m branco.'^ enfrentou c o m a ajuda de Deus, desde sua i n f â n c i a c o m o órfã de m ã e
Os comerciantes judeus certamente m a n t i n h a m registros de con- e m Frankfurt a t é o casamento c o m u m pregador pietista e m 1680. A
tas e de viagens, que, feitos e m hebraico, d e v i a m r e f o r ç a r a s e n s a ç ã o de partir d a í passa a descrever as r e v e l a ç õ e s divinas que Johanna recebeu
u m e s p a ç o protegido e m que p o d i a m transmitir segredos familiares e ao longo dos anos, inclusive seu sonho, e m 1664, sobre a futura c o n -
pessoais.''Mas a autobiografia j u d a i c a se nutria basicamente do secu- v e r s ã o dos judeus e dos p a g ã o s . "
lar "testamento é t i c o " , uma c o l e t â n e a de preceitos morais e l i ç õ e s de A o elaborar sua autobiografia confessional os judeus do s é c u l o
sabedoria pessoal que os pais t r a n s m i t i a m à prole j u n t o c o m i n s t r u ç õ e s x v i i adotaram c o m o modelo n ã o uma trajetória pessoal, mas a h i s t ó r i a
sobre seu enterro e a partilha de seus bens. Esses textos c i r c u l a v a m en- do povo eleito de l a v é , a vida i n d i v i d u a l repetindo e recombinando o
tre a comunidade e e m geral gozavam de boa r e p u t a ç ã o . E m seu manus- r i t m o da T o r á , dos pecados e dos sofrimentos no e x í l i o . " Q u a n d o u m
crito G l i k l fala do testamento da sogra de sua i r m ã , "a piedosa Pessele, marrano, ou j u d e u aparentemente convertido ao cristianismo, conta a
[que] n ã o tinha i g u a l no m u n d o , à e x c e ç ã o de nossas M ã e s — Sarah, h i s t ó r i a de seu retorno a sua fé o r i g i n a l , a narrativa mais extensa ultra-
Rebecca, Rachel e Leah [...] É maravilhoso ler seu testamento, que ela passa a c o n v e r s ã o pessoal para abordar o prolongamento o u a r e d u ç ã o
descanse e m paz. N ã o posso falar sobre ele, mas q u e m quiser l ê - l o ain- do E x í l i o . " " E m outros casos o sofrimento e m geral desencadeia o ato
da pode e n c o n t r á - l o c o m seus filhos, que certamente n ã o o j o g a r a m f o - a u t o b i o g r á f i c o : o d i á r i o de Josel de R o s h e i m fala das crueldades
ra". G l i k l t a m b é m cita trechos do testamento é t i c o que o douto rabino cometidas contra sua f a m í l i a e outros j u d e u s na p r i m e i r a metade do
A b r a h a m H a l e v i H o r o w i t z elaborou para os filhos e que f o i publicado s é c u l o x v i e de seu papel de salvador e m diversas cidades a l e m ã s ; e m
em Praga e m 1615.'" Vale de visão A b r a h a m Yagel descreve a morte de seu pai e conta c o m o
Quando a autobiografia conquistou a i n d e p e n d ê n c i a , separando- f o i injustamente encarcerado por d í v i d a s e m M â n t u a . " ' T o d a v i a , sofri-
se do testamento, o impulso moralizador ainda manteve sua força: u m mento e pecado e s t ã o intimamente ligados. " H o j e r e l e m b r o meus peca-
autor apresentava a p r ó p r i a vida c o m o u m exemplo a ser seguido; o u - dos", escreve A b r a h a m H a l e v i H o r o w i t z e m seu testamento, entre
tro acrescentava ao relato poemas e l a m e n t a ç õ e s de cunho r e l i g i o s o e x o r t a ç õ e s para s e r v i r m o s a Deus c o m o u v i d o s , o l h o s e p é s ; "eu
(como fez Asher Halevi ao escrever suas m e m ó r i a s e m hebraico); o u - t r o p e ç a v a na embriaguez." O pecado do j o g o perpassa do c o m e ç o ao
tro, c o m o G l i k l , contava h i s t ó r i a s . f i m a autobiografia de L e o n M o d e n a , seguindo-se a uma morte t r á g i c a
Tanto as autobiografias de judeus quanto as de c r i s t ã o s possuem e à d e c e p ç ã o , prejudicando sua lealdade à T o r á e demonstrando a fra-
u m t o m confessional que, entretanto, assume aspectos m u i t o diferen- gilidade das expectativas humanas.""
tes nas duas t r a d i ç õ e s . Os c r i s t ã o s adotam c o m o p r i n c i p a l m o d e l o a A s m e m ó r i a s de G l i k l bas Judah L e i b seguem esse p a d r ã o g e n é r i -
c o n f i s s ã o agostiniana c o m a c o n v e r s ã o d e f i n i t i v a . Vemos isso e m co, c o m o veremos, p o r é m apresentam c a r a c t e r í s t i c a s p r ó p r i a s , rela-

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cionadas c o m sua c o n d i ç ã o de m u l h e r e seus conhecimentos. D o m i - ( C r a c ó v i a , 1577), e sobretudo os tkhines, de c a r á t e r mais í n f i m o , que re-
nando perfeitamente o hebraico, o l a t i m , o italiano c o m u m e o italiano tomaremos mais adiante. Havia t r a d u ç õ e s da B í b l i a e m prosa e e m ver-
falado pelos judeus, o rabino Leon tinha acesso a todo o saber j u d a i c o so e o p o p u l a r í s s i m o Tse 'enah u-re 'enah, c o m p i l a d o por Jacob ben
e à a t u a ç ã o religiosa: orava na sinagoga, lecionava e pregava; v i v i a de Isaac Ashkenazi na virada do s é c u l o x v i i e eventualmente ilustrado c o m
acordo c o m a l e i , a Halakhah (ou pelo menos c o m grande parte dela); e xilogravuras relativas a e p i s ó d i o s b í b l i c o s . Todos os trechos do Penta-
ocupou duas p á g i n a s de suas m e m ó r i a s c o m a lista de suas p u b l i c a ç õ e s , teuco, dos Profetas e de outros livros sagrados lidos na sinagoga ao lon-
que i n c l u e m livros, c o m e n t á r i o s , t r a d u ç õ e s e poemas.''Na Gemeinde go do ano eram anaUsados segundo c o m e n t á r i o s do Talmude e de fontes
j u d a i c a de H a m b u r g o / A l t o n a t a m b é m havia homens de c o n s i d e r á v e l medievais.^' H a v i a c o l e t â n e a s de p r o v é r b i o s e m i í d i c h e , c o m o Derkleyn
cultura: o comerciante Moses ben L e i b , c o m cujo f d h o G l i k l casou sua Brantshpigl (Hamburgo, 1698), e de f á b u l a s e h i s t ó r i a s , c o m o o Mayse
filha Freudchen, estudara c o m u m dos maiores talmudistas da é p o c a e Bukh, publicado e m 1602 (ver i l u s t r a ç ã o ) ou a t é antes. Havia narrativas
confinuou lendo o Talmude, indiferente à p r o i b i ç ã o do Senado ( c o m o da p e r s e g u i ç ã o aos judeus. A a c u s a ç ã o de assassinato ritual levantada
outros j u d e u s locais).''^ N a ú U i m a d é c a d a do s é c u l o o e.sfimado Z e v i e m M e t z , em 1669, f o i registrada em "Taytsch, para que todos [...] pos-
Hirsch Ashkenazi ministrava ensinamentos r a b í n i c o s em A l t o n a , e co- sam lê-la"; assim, G l i k l p ô d e consultar o manuscrito trinta anos depois,
munidades judaicas de toda a Europa c o m f r e q u ê n c i a o consultavam quando se transferiu para a cidade à s margens do Mosela.'"
para saber, por exemplo, se u m golem podia integrar u m minyan — ou O que essa p r o d u ç ã o e m i í d i c h e tinha e m c o m u m , a l é m da l í n g u a ,
seja, o q u ó r u m masculino i m p r e s c i n d í v e l à r e a l i z a ç ã o do culto. ( Z e v i era o p ú b l i c o - a l v o , composto de pessoas incultas e principalmente de
Hirsch dizia que n ã o . ) ' " mulheres. Jacob ben Isaac Ashkenazi considerava-se "o escritor de to-
G l i k l bas Judah L e i b respeitava tal e r u d i ç ã o e mandou dois de seus das as matronas piedosas" e no f r o n t i s p í c i o de seu Tse 'enah u-re 'enah
filhos que "estudavam m u i t o " a escolas t a l m ú d i c a s da P o l ó n i a e de exortou-as: "Prossegui, ó filhas de S i o n , e observai". O l i v r o acabou se
Frankfurt.'"'Entretanto, ela p r ó p r i a adquirira uma cultura diferente, re- t o m a n d o conhecido c o m o "a T o r á das mulheres". Moses ben H e n o c h
presentativa do saber livresco das mulheres de comerciantes ashkena- disse que estava elaborando o Brantshpigl e m i í d i c h e "para mulheres e
z i m . Frequentara a Cheder, a escola p r i m á r i a judaica: " M e u pai instruiu para homens que a elas se assemelham p o r n ã o conseguir aprender
tanto os filhos quanto as filhas nos ensinamentos celestes e terrenos".*^' muitas coisas"."Para a i m p r e s s ã o de tais obras usava-se u m tipo espe-
Nos anos .seguintes adquiriu muitos livros em i í d i c h e — ou seja, no que cial, diferente dos caracteres quadrados reservados para o texto b í b l i c o
ela chamava de Taytsh e alguns judeus c o n t e m p o r â n e o s designam co- e dos semicursivos p r ó p r i o s dos c o m e n t á r i o s e m hebraico. Conhecido
m o "a l í n g u a dos ashkenazim".'" Sempre escrita e m caracteres he- c o m o Vayber Taytsh {''Taytsh das mulheres"), esse fipo baseava-se na
braicos, essa literatura compreendia diversos géneros."" Havia tratados caligrafia hebraica cursiva que se ensinava a mulheres c o m o G l i k l para
e manuais sobre é t i c a , c o m o o Hrantshpigl (Espelho ardente), de Moses que pudessem redigir seus contratos comerciais, seus acordos m a t r i -
ben Henoch A l t s c h u l e r (1596), e o Lev Tov, de Isaac ben E l i a k u m (Pra- moniais e suas cartas. E a n á l o g o ao " t i p o da c i v i l i d a d e " f r a n c ê s , que por
ga, 1620), que f o r a m reeditados v á r i a s vezes e cuja leitura G l i k l re- sua vez se baseava na caligrafia francesa e e m meados do s é c u l o x v i era
c o m e n d o u aos filhos. U m desses tratados de moralidade era obra de u f i l i z a d o na i m p r e s s ã o de c o l e t â n e a s de h i s t ó r i a s e tratados educa-
uma m u l h e r — o Meineket Rivkah, de Rebecca bas M e i r T i k f i n e r ; p u - cionais redigidos e m v e r n á c u l o . N a F r a n ç a o fipo da c i v i h d a d e era t i d o
blicado postumamente no c o m e ç o do s é c u l o X V I I , difundiu-se inclusive c o m o "popular", destinado a u m vasto p ú b l i c o leigo, enquanto na c u l -
entre os h e b r a í s t a s c r i s t ã o s . ' " tura j u d a i c a c o n s t i t u í a o tipo f e m i n i n o por e x c e l ê n c i a , j á que seu uso se
Havia t a m b é m livros em i í d i c h e sobre as o b r i g a ç õ e s femininas no restringia aos textos e m i í d i c h e e o hebraico era considerado i d i o m a
tocante à r e l i g i ã o e ao lar, c o m o Ayn Schoyn Fraun Buchlayn (Cracóvia, masculino. M u i t o s homens t a m b é m l i a m e escreviam e m i í d i c h e , se-
1577; Basileia, 1602). Havia livros de o r a ç õ e s para mulheres, c o m o gundo a c o n v e n ç ã o utilizando a l í n g u a das mulheres.'^
Korbonets, uma p a r á f r a s e de preces hebraicas para os dias santificados G l i k l sabia ler hebraico — a Loshn-koydesh ( L í n g u a Santa)? Seu

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texto apresenta m u i t o s termos nesse i d i o m a , c o m o sempre acontece A l é m de ler e m i í d i c h e e talvez lutar para decifrar alguns poucos
c o m o i í d i c h e : na h i s t ó r i a do p á s s a r o , p o r e x e m p l o , trabalho, vida e textos e m hebraico, G l i k l provavelmente conhecia p u b l i c a ç õ e s a l e m ã s
mentiroso e s t ã o entre as palavras hebraicas. Seu estilo tem i n t r i g a d o a l - impressas e m caracteres g ó t i c o s . C o m r e l a ç ã o a isso ela nada faz para sa-
guns especialistas pela quantidade de r i t m o s hebraicos. Ela os teria o u - tisfazer nossa curiosidade, pois c o m o seus c o n t e m p o r â n e o s judeus usa a
v i d o nos s e r m õ e s , quando se entremeavam termos i í d i c h e s nas c i t a ç õ e s palavra Taytsh para designar tanto sua l í n g u a materna quanto o a l e m ã o
da B í b l i a e dos s á b i o s "para que as mulheres, as c r i a n ç a s e outras pes- falado c o m formas distintas e escrito e m alfabeto próprio."" (Por outro la-
soas que n ã o entendam hebraico possam escutar e aprender"? do c o n t e m p o r â n e o s c r i s t ã o s acentuavam a d i f e r e n ç a . "Seu Teutschen é
G l i k l deve ter aprimorado os conhecimentos dessa l í n g u a na for- m u i t o undeutsch e n e m u m pouco c o m p r e e n s í v e l " , resmungou
m a escrita quando .seus n e g ó c i o s passaram a lhe d e i x a r mais t e m p o Christoph H e l w i g ao traduzir o Mayse Bukh para o a l e m ã o . " V o c ê perce-
l i v r e . A i n d a e m H a m b u r g o pediu que lhe lessem " e m Taytsh" o Yesh b e r á os contrastes entre Juden-Teutsch e wahren Teutsch — a l e m ã o ver-
Nochalin, o testamento é t i c o de A b r a h a m H o r o w i t z , r e d i g i d o e m he- dadeiro — , entre Juden-Teutsch e nosso Teutsch", Johann Christoph Wa-
b r a i c o . Seu l e i t o r f o i , o u o " h o n r a d o m e s t r e " que ela e H a i m c o n - genseil previne o leitor do livro sobre iídiche que pubhcou e m 1699.)"'
trataram para educar os fdhos menores, ou o professor especial a q u e m H á dois i n d í c i o s de que G l i k l lia a l e m ã o . P r i m e i r o , ela d i z que
G l i k l confiou os estudos de seu aplicado f i l h o Joseph a p ó s a morte do Carlos M a g n o "era u m imperador |)oderoso, c o m o se pode l e r e m todos
m a r i d o . ' " M a i s tarde, e m M e t z , ela p ô d e i r à sinagoga d i a r i a m e n t e , os Tayíshc bukher"."' D e p o i s conta u m a h i s t ó r i a e n v o l v e n d o Carlos
instalando-se na galeria das mulheres. T a m b é m teve a oportunidade de M a g n o e a imperatriz Irene de Constantinopla que n ã o fazia parte das
conversar c o m seu enteado, o d o u t o r a b i n o Samuel, e c o m a esposa lendas judaicas, interessadas sobretudo nas r e l a ç õ e s do imperador c o m
deste, que conhecia hebraico e aramaico o bastante para copiar tratados os judeus."" Serve-se para tanto de uma narrativa escrita e m grego no
do Talmude; conversou ainda c o m os estudantes hospedados e m casa i n í c i o do s é c u l o i x e l o g o traduzida para o l a t i m ; nesta ú l t i m a l í n g u a f o i
de sua enteada Hendele e de sua consogra Jachet bas Elias. E e m M e t z publicada e m v á r i a s v e r s õ e s — de u m j e s u í t a , u m d o m i n i c a n o e outros
G l i k l agora diz que "escreveu" (oysgishryben) u m a importante h i s t ó r i a eruditos do final do s é c u l o x v i e c o m e ç o do x v i i — e acabou se incor-
"da L í n g u a Santa para Taytsh". Se c o m "escrever" quer dizer algo co- porando à s " h i s t ó r i a s universais" a l e m ã s impressas pelas tipografias de
m o traduzir, e n t ã o seus conhecimentos p r o g r e d i r a m m u i t o nos ú l t i m o s cidades c o m o N u r e m b e r g e H a m b u r g o no decorrer do s é c u l o x v i i . " A s -
vinte anos de sua v i d a . " sim, é p o s s í v e l que os Taytshe bukheràe G l i k l fossem livros a l e m ã e s e
M a s oysgishryben pode significar simplesmente "transcrever", e que ela tenha lido sobre a imperatriz Irene e m alguma h i s t ó r i a popular
Chava T u r n i a n s k y reuniu v á r i a s e v i d ê n c i a s de que G l i k l conhecia os adquirida numa livraria de H a m b u r g o , talvez, ou durante u m a visita de
textos hebraicos por m e i o da t r a n s m i s s ã o oral e das numerosas p u b l i - H a i m à feira de L e i p z i g . Seu relato, e m i í d i c h e , n ã o c o n t é m u m a s ó
c a ç õ e s e m i í d i c h e . ' " Q u a i s q u e r que fossem suas fontes, as c i t a ç õ e s palavra tirada do hebraico."'
p r o v ê m das Escrituras e do Talmude. E m b o r a G l i k l bas Judah L e i b n ã o Segundo, suas atividades e c o n ó m i c a s e suas viagens a puseram
fosse t ã o " s á b i a na T o r á e no T a l m u d e " c o m o Fioretta, a tia de L e o n em contato c o m o m u n d o que falava e escrevia a l e m ã o . E m Hamburgo,
M o d e n a , nem p o s s u í s s e o conhecimento t a l m ú d i c o da quinhentista Re- antes de enviuvar, na feira de L e i p z i g , e m v á r i a s outras cidades G l i k l
becca bas M e i r T i k t i n e r , seu o b i t u á r i o e m M e t z a classificava c o m o fazia n e g ó c i o s , conversava, trocava i n f o r m a ç õ e s c o m j u d e u s e n ã o -
melumedet ( u m a m u l h e r i n s t r u í d a ) e m q u e s t õ e s de c o n d u t a e é t i c a . judeus, c o m estes ú l t i m o s tendo no m í n i m o de discutir, elaborar e assi-
Esse era u m e l o g i o raro, pois e m centenas de o b i t u á r i o s que examinei a nar contratos em a l e m ã o . Se e m sua autobiografia relata c o l ó q u i o s c o m
comunidade geralmente lembra a d e v o ç ã o , a r e t i d ã o ou a caridade das judeus (homens e mulheres), t a m b é m c á e lá menciona conversas que
judias de M e t z e s ó e m alguns casos enaltece sua "sabedoria", sua "de- teve c o m n ã o - j u d e u s enquanto viajava c o m H a i m . A o voltar para H a m -
d i c a ç ã o ao estudo" ou sua " l e i t u r a d i á r i a do l i v r o dos Salmos i n t e i r o burgo, procedente de W i t t m u n d , na F r í s i a , o casal viajou c o m u m j o v e m
c o m os respectivos c o m e n t á r i o s " . ' ' ' e "honrado" cabo a s e r v i ç o do general Buditz, que conversou c o m eles

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durante todo o trajeto. N o caminho pararam numa estalagem a uns doze N u m sentido a m p l o sua cultura era a n á l o g a à das luteranas mais
q u i l ó m e t r o s de H a n ô v e r : i n s t r u í d a s da H a m b u r g o seiscentista, onde n ã o encontramos mulheres
de grande e r u d i ç ã o , c o m o a linguista A n n a M a r i a van Schurman ou a
À noite nos sentamos junto ao fogo, e o estalajadeiro e alguns campone-
helenista A n n e Dacier; os s a l õ e s e as literatas surgiram na cidade c o m
ses também se sentaram junto ao fogo e fumaram tabaco. A conversação
o i l u m i n i s m o do s é c u l o x v i i i . A s c o n t e m p o r â n e a s de G l i k l que perten-
passava de um lugar a outro, de uma pessoa a outra.
Então um camponês se pôs a falar do duque de Hanôver e disse: "Meu c i a m a f a m í l i a s p r ó s p e r a s e importantes l i a m basicamente textos de
senhor mandou doze mil homens para a Holanda". Meu marido — ben- c a r á t e r rei igioso e é t i c o , b e m c o m o manuais de o r d e m p r á t i c a redigidos
dita seja a memória do justo — ficou muito contente ao saber que es- cni a l e m ã o . N a t u r a l m e n t e l i a m a B í b l i a na t r a d u ç ã o de L u t e r o , sem
távamos no solo de Hanôver, pois os duques de Lúneburg mantinham recorrer a nenhum Tse 'enah u-re 'enah. Todavia, se interessavam tanto
suas terras limpas e não permitiam que nenhum soldado fizesse mal se- por h i s t ó r i a s c n o t í c i a s que e m 1695 pais e maridos c r i s t ã o s de H a m -
quer a uma galinha."'' burgo p r o i b i r a m suas filhas e esposas de ler j o r n a i s , que apenas espi-

Bastava u m pequeno passo para l e v á - l a dessas c o n v e r s a ç õ e s à c a ç a v a m a curiosidade inconseqiiente e e s t i m u l a v a m a c o n v e r s a ç ã o

leitura dos j o r n a i s produzidos pelas tipografias de H a m b u r g o desde o vazia.""

i n í c i o do s é c u l o x v i i . Para informar-se sobre o c o m é r c i o moscovita e o líiiliclaiilii iiao as p i o i b i i a i i i dc í i c q i i c n i a r os c í r c u l o s musicais


mercado i n g l ê s , G l i k l (e H a i m , quando era v i v o ) recorria a relatos de ammioivs. iieiii de ii ;i Opera — que em 1678 j á p o s s u í a u m teatro per-
c o m e r c i a n t e s e a cartas. M a s duas vezes por semana o Relations- niiincnli- e ali aia coniposilores e librelistas de toda parte. A l g u m a s j u -
CoMr/er trazia n o t í c i a s recentes de todo lugar da Europa e de a l é m - m a r : dias pai l i l l i a v a i u esse goslo pela m ú s i c a : a enteada de Judah L e i b que
guerras, navios tidos por perdidos e reencontrados no cabo da Boa Es- lalava f r a n c ê s locava cravo, e a f r e q u ê n c i a f e m i n i n a à Ó p e r a era de tal
p e r a n ç a , d i s t ú r b i o s p o l í t i c o s na Inglaterra, a m o v i m e n t a ç ã o da frota ordem t|ue levou a Gemeinde de A l t o n a / H a m b u r g o a p r o i b i - l a v á r i a s
sueca e outros assuntos."'Se n ã o menciona tal leitura e m sua autobio- vezes. E m b o r a G l i k l apreciasse m u i t o os e s p e t á c u l o s de d a n ç a e os
grafia, G l i k l diz aos filhos que "homens s á b i o s das n a ç õ e s do m u n d o " tambores que festejaram o casamento de uma de suas filhas, e m Cleve,
(uma e x p r e s s ã o c o m u m aphcada a n ã o - j u d e u s ) escreveram " m a r a v i - o centro de seu m u n d o mental n ã o estava na m ú s i c a ou no canto, e s i m
lhosamente" sobre temas morais c o m o avareza e caridade. A f ó r m u l a na narrativa oral e na palavra escrita."
que se segue — "por causa de nossos muitos pecados" (isto é, eles es- Ida n ã o nos diz quando lê. Conta-nos que seu m a r i d o H a i m nunca
creveram coisas que n ó s p o d e r í a m o s ter escrito) — torna ainda mais liei xava de estudar a T o r á nos dias prescritos, por mais ocupado que es-
p r o v á v e l que G l i k l estivesse falando de algo que lera e m alemão."" tivesse, comprando e vendendo ouro.'"^ A Halakhah exigia de u m h o m e m
Nessa é p o c a o f r a n c ê s se incorporava ao discurso p o l i d o do patri- lai o b s e r v â n c i a : suas o r a ç õ e s i n d i v i d u a i s e c o m u n i t á r i a s eram d i s -
ciado de H a m b u r g o e n ã o era desconhecido entre os judeus da cidade. t r i b u í d a s ao longo das atividades coddianas e do c a l e n d á r i o litúrgico.
O pai de G l i k l tinha uma enteada do p r i m e i r o casamento "que conhe- A s mulheres d n h a m o b r i g a ç ã o de guardar os dias santificados e as
cia f r a n c ê s c o m o se fosse á g u a " e que u m dia, segundo o folclore f a m i - p r o i b i ç õ e s alimentares do kashruth, mas n ã o precisavam estudar a T o r á
liar, l i v r o u - o de cair na armadilha de uns devedores que conspiravam nem rezar d i a r i a m e n t e e m h o r á r i o s preestabelecidos. A l e i j u d a i c a
contra ele e m f r a n c ê s . G l i k l conhecia apenas u m a p a l a v r a o u o u t r a prescrevia apenas três deveres femininos i n a l t e r á v e i s : evitar o m a r i d o
dessa l í n g u a , mas s ó veio a lamentar sua i g n o r â n c i a e m 1700, quando ilurante a m e n s t r u a ç ã o e purificar-se depois que as regras terminavam;
chegou à M e t z de L u í s x i v e descobriu que n ã o podia trocar c u m p r i - sempre que estivesse fazendo p ã o , separar, a b e n ç o a r e q u e i m a r u m
mentos c o m alguns habitantes judeus. A partir de e n t ã o deve ter apren- jiouco de massa e m m e m ó r i a dos d í z i m o s do antigo t e m p l o , e à s sextas-
dido u m pouco mais de f r a n c ê s , p o r é m de m o d o geral sua cultura esta- feiras e v é s p e r a s de festas acender as velas do S a b á p o u c o antes do
va profundamente arraigada no i í d i c h e , apresentando certos pontos a n o i t e c e r . " Q u a n t o à s outras o b r i g a ç õ e s religiosas, a m u l h e r p o d i a
p e r m e á v e i s ao hebraico e ao a l e m ã o . " ' cumpri-las onde e quando b e m quisesse, pois n ã o estavam "presas ao

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tempo". Podia convidar estudiosos pobres a partilliar sua r e f e i ç ã o tan- nificativo de sua segunda viuvez, elaborou o s é t i m o l i v r o , acrescentan-
to no S a b á ou e m caso de d o e n ç a e m f a m í l i a quanto e m outras o c a s i õ e s . do-lhe u m ú l t i m o p a r á g r a f o e m 1719.""
Podia mandar c o m i d a parajudeus pobres e m todo S a b á , c o m o faziam Sem o manuscrito o r i g i n a l s ó nos resta especular sobre sua práfi-
a p r i m e i r a esposa e a fdha de Hirsch Levy, ou intermitentemente. Po- ca de revisar c o m base e m e v i d ê n c i a s i n t r í n s e c a s presentes no texto
dia se recusar a comer p ã o feito por c r i s t ã o s , ou jejuar à s segundas e copiado por seu filho Moses e n u m a segunda c ó p i a f a m i l i a r c o m va-
quintas-feiras, ou adotar qualquer outra norma de vida.'^Podia bordar riantes i|uc se perdeu mas f o i usada p e l o e d i t o r de 1 8 9 6 . 0 q u a d r o é con-
faixas c o m motivos da T o r á para a c i r c u n c i s ã o de u m f d h o e para sua l r a d i t ó r i o . ( i l i k l acrescenta uma f ó r m u l a comemorativa ao nome de u m
p r i m e i r a visita à sinagoga alguns anos depois. ( A s i l u s t r a ç õ e s m o s t r a m filho ciue morreu depois do p r i m e i r o e s b o ç o , p o r é m n ã o altera o voto
duas dessas faixas.) Quando seus afazeres d o m é s t i c o s p e r m i t i a m , po- "i11le ela vi va" a p ó s o nome de sua m ã e , que sem embargo faleceu m u i t o
dia fazer franjas para os xales de o r a ç ã o dos homens e velas para i l u - antes da c o n c l u s ã o da autobiografia.'"" Conta a h i s t ó r i a de uma briga
minar a sinagoga." i-nirc I laini c um s(')cio na t l é c a d a de 1660, atenuando-a ao acrescentar
G l i k l c o n f e r i a especial i m p o r t â n c i a aos tkhines, orações em i|uc iiuHa anos mais taitic o mesmo s ó c i o a recebeu c o m toda a gen-
i í d i c h e publicadas e m livretes para a d e v o ç ã o i n d i v i d u a l f e m i n i n a e tileza em Hei l i m ; no entanto por duas vezes promete falar de outro s ó -
recitadas segundo o ritmo das festas judaicas e o ritmo da p r ó p r i a vida cio bi i^iiiento e n ã o cumpre a promessa. E p i s ó d i o s que se "esquecera"
da m u l h e r , de seu c o r p o e dos eventos f a m i l i a r e s — n a s c i m e n t o , i l i ' siliiar croiiolo^-icamenle no p r i m e i r o e s b o ç o permaneceram onde
gravidez, viagens, morte."'' e s í a v u m nii v e r s ã o iiansinilida aos lilhos; c o n t r a d i ç õ e s relativas a datas
A leitura de G l i k l , c o m o os tkhines, talvez n ã o estivesse "presa ao por exemplo, enli e o ano em que diz ter na,scido e a idade que diz ter
tempo". Talvez ela tenha c o m e ç a d o a ler mais assiduamente nas noites por o c a s i ã o de seu segundo casamento — ficaram sem s o l u ç ã o . ' " '
insones de sua viuvez. D e qualquer m o d o f o i e n t ã o que se p ô s a escrever N ã o obstante, ou no p r i m e i r o e s b o ç o ou ao l o n g o das r e v i s õ e s ,
seu l i v r o , c o m o a o u v i m o s dizer aos fdhos. A c o m p o s i ç ã o desse l i v r o , ( i l i k l deu grande a t e n ç ã o à o r d e m que lhe parecia mais importante —
conforme veremos mais adiante, p e r m i t i u - l h e n ã o s ó tecer uma trama isto é, à o r d e m literária e p s i c o l ó g i c a — , situando suas h i s t ó r i a s "no
densa, repleta de e p i s ó d i o s significadvos, mas t a m b é m resolver e m sua tempo e no local exatos".'"'Depois de u m p r i m e i r o l i v r o de narrativas
c a b e ç a a t e n s ã o entre a velha e a nova g e r a ç ã o . A l é m disso, a mistura de moralizantes e i n j u n ç õ e s religiosas, a autobiografia segue o c i c l o dos
h i s t ó r i a pessoal e narrativa ficcional ajudou-a a enfrentar o significado eventos vitais, c o m o ocorre t a m b é m entre as autoras c r i s t ã s . " " O L i v r o
m o r a l da d e c e p ç ã o e da tristeza e a adotar u m a voz religiosa indepen- 2 vai do n a s c i m e n t o de G l i k l ao n a s c i m e n t o e c i r c u n c i s ã o de seu
dente, que n ã o era n e m a do rabino, n e m a do Vayber Taytsh. p r i m e i r o filho; entre u m fato e o u t r o ela discorre sobre o passado de
duas f a m í l i a s — a sua e a do m a r i d o . O L i v r o 5 se i n i c i a c o m a morte de
H a i m ben Joseph e abrange os dez anos da p r i m e i r a v i u v e z de G l i k l ,
G l i k l organizou sua narrativa e m sete livros, c o m o as sete d é c a d a s bem c o m o as aventuras de seus filhos. A cada l i v r o ela conferiu u m t o m
que l i m i t a v a m t o d a e x i . s t ê n c i a h u m a n a . " Apresentou esse plano l o g o no e s p e c í f i c o e para cada u m procurou uma resposta divina. O L i v r o 4 ter-
i n í c i o e c u m p r i u - o durante os trinta anos que levou elaborando o ma- mina sombriamente, profetizando a morte de H a i m : " T o d o dia ama-
nuscrito — eloquente testemunho da seriedade c o m que encarava sua nhece c o m novas tristezas, sobre as quais escreverei e m meu q u i n t o
f u n ç ã o de escritora. Parece que e s b o ç o u os p r i m e i r o s quatro livros e a l i v r o , que infelizmente consiste e m l a m e n t a ç õ e s [...] e m amargo sofri-
abertura do q u i n t o nos meses ou no ano de luto que se seguiram à morte m e n t o | . . . ] O Senhor nos faz e x u l t a r m e s m o q u a n d o nos m a n d a
de H a i m , e m 1689. Provavelmente concebeu o restante do L i v r o 5 na a f l i ç õ e s . Que Ele tenha piedade de meus ó r f ã o s . A m é m e a m é m " . E o
d é c a d a de 1690, mas s ó lhe deu a f o r m a final a p ó s seu segundo casa- séti mo, que relata a derrocada de H i r s c h L e v y e os fatos posteriores, i n i -
mento."* Quanto ao sexto l i v r o , escreveu-o e m 1702 o u pouco depois, cia-se c o m as seguintes palavras: " E agora, c o m a ajuda de Deus,
sob o i m p a c t o i n i c i a l da f a l ê n c i a de Hirsch Levy. E e m 1715, ano sig- c o m e ç a r e i meu s é t i m o l i v r o , que s e r á e m parte de tristeza e e m parte de

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alegria. As.sim é o mundo, conforme à natureza humana [... 1 Deus per- G l i k l define a riqueza basicamente e m termos do táler, que equi-
m i t a que meus queridos filhos estejam livres de novas agruras e que e m vale a u m sinal de p r e s t í g i o : tantos t á l e r e s no dote de uma filha ou de
m i n h a velhice eu presencie apenas a s a t i s f a ç ã o e a prosperidade de m i - u m f i l h o ; tantos t á l e r e s possui u m pai, futuro consogro, o u u m antigo
nha prole"."" A s alegrias e tristezas de G l i k l g i r a m e m torno da vida — s ó c i o . " M i n h a i r m ã Hendele — que descanse e m paz — recebeu 1800
quer dizer, do tempo que cabe a cada u m viver — e e m torno de riqueza t á l e r e s de dote, uma soma enorme para a é p o c a e a t é e n t ã o i n é d i t a e m
e h o n r a . A o c i c l o f e l i z de n a s c i m e n t o s , bodas, netos, o p õ e m - s e as Hamburgo. Foi o casamento mais importante que j á houve entre ashke-
mortes e x t e m p o r â n e a s . A p r i m e i r a f o i a de M a t t i e , sua filha (a terceira nazim, e o m u n d o inteiro se a d m i r o u do imenso dote." Pela quantidade
da p r o l e ) , que Deus c h a m o u quando t i n h a t r ê s anos de idade. " N ã o de t á l e r e s se avaliava a riqueza dos judeus de H a m b u r g o / A l t o n a : H a i m
havia c r i a n ç a mais linda, nem mais inteligente. N ã o é r a m o s s ó n ó s que Fiirst, 10 m i l ; Judah L e i b , 8 m i l ; outros, 6 m i l ; alguns, 3 m i l ; outros,
a a m á v a m o s ; todos os que a v i a m o u escutavam seu falar se encantavam apenas quinhentos. Elias G o m p e r t z , de Cleve, cujo f i l h o se casou c o m
c o m ela [...] O que nos coube f o i grande sofrimento. M e u m a r i d o e eu a f i l h a mais velha de G l i k l , é " m u i t o r i c o , possui 100 m i l t á l e r e s o u
choramos indescritivelmente." O ú l t i m o f i l h o de que se despediu f o i mais". O neto de G l i k l e sua noiva receberam entre presentes e dotes
Z a n v i l , que m o r r e u e m 1702, c o m vinte e poucos anos, deixando a es- "cerca de 30 m i l t á l e r e s . Deus lhes d ê sorte e os a b e n ç o e " . " ' *
posa g r á v i d a pela p r i m e i r a vez: "Deus misericordioso, u m j o v e m t ã o Ocasionalmente o l u x o de uma casa c o n s t i t u í a sinal de riqueza (a
digno, c o m a boca cheia de terra negra! | . . . ] A dor profunda que isso f o i casa de Reb Elias G o m p e r t z parecia "a morada de u m rei, m o b i l i a d a co-
para m i m s ó Deus sabe, louvado seja. Perder u m f i l h o t ã o amado, e m mo a m a n s ã o de u m soberano"),""' p o r é m o que de fato contava era o d i -
tão tenra idade. O que ainda hei de fazer o u dizer para sofrer mais?"."" nheiro, para o qual a negociante G l i k l tinha uma excelente m e m ó r i a .
Entretanto, G l i k l passou por u m sofrimento maior, por uma perda Que outro referencial se podia usar para u m j u d e u que morava e m casa
que d o m i n a toda a sua autobiografia: a morte de H a i m ben Joseph aos alugada, n ã o p o s s u í a terras e, c o m o ocorria c o m a famOia de G l i k l , le-
quarenta e poucos anos e a p ó s t r ê s d é c a d a s de vida conjugal. J á a m e n - vava no bolso o u n u m pequeno saco a maioria dos produtos que pre-
ciona ao descrever a p r i m e i r a casa do j o v e m par: "Se Deus n ã o tivesse tendia vender? E o que funcionaria m e l h o r que uma soma e m d i n h e i r o
nos desferido golpe t ã o rude e tirado t ã o cedo a coroa de m i n h a c a b e ç a , para rapidamente p ô r e m c i r c u l a ç ã o n o t í c i a s sobre o mercado m a t r i -
n ã o creio que houvesse no m u n d o inteiro casal mais apaixonado e mais m o n i a l e as p o s s i b i l i d a d e s de c r é d i t o nas c o m u n i d a d e s de j u d e u s
feliz que n ó s " . Menciona-a ao relatar a morte de parentes o c t o g e n á r i o s : a l e m ã e s espalhadas pela Europa?
"Se Deus tivesse p e r m i t i d o que meu m a r i d o e eu v i v ê s s e m o s j u n t o s a t é Naturalmente a riqueza n ã o era u m valor absoluto, c o m o a vida.
idade t ã o a v a n ç a d a " . " " ' "Perder t a l m a r i d o , que me amava t a n t o " , U m j u d e u que preferiu m o r r e r a a b r a ç a r o c r i s t i a n i s m o "enalteceu o
lamenta-se a p ó s descrever os ú l t i m o s m o m e n t o s de H a i m . E l e lhe Santo N o m e " , mas os j u d e u s n ã o d e v i a m buscar o m a r t í r i o c o m o os
d e i x o u d i n h e i r o e bens suficientes, que, no entanto, n ã o lhe serviram de h e r ó i s da espiritualidade c a t ó l i c a . ' " ' Quanto à riqueza, G l i k l dnha suas
escudo contra a "grande s o l i d ã o " . "Quando meu m a r i d o (bendita seja d ú v i d a s : " Q u e m sabe se é b o m v i v e r e m meio a grande o p u l ê n c i a [...[ e
a m e m ó r i a do j u s t o ) era v i v o , à s vezes t í n h a m o s p r e o c u p a ç õ e s [ . . . ] dedicar nosso tempo neste m u n d o e f é m e r o a nada a l é m de prazer?",
[Mas] meu querido a m i g o me tranqiiilizava e confortava-me de tal m o - pergunta-se j á no p r i m e i r o l i v r o ' " e, c o m o veremos, reflete sobre a
do que os problemas se iam facilmente j . . . 1 A g o r a q u e m é que me con- q u e s t ã o praticamente c o m a mesma f r e q u ê n c i a c o m que fala e m t á l e r e s .
forta?" E de certo m o d o o inveja por ter m o r r i d o p r i m e i r o : " E l e teve o Sobre u m t i o que m o r r e u aos 39 anos diz, cheia de a d m i r a ç ã o : "Tives.se
p r i v i l é g i o de partir deste m u n d o pecador e m m e i o à riqueza e à honra e v i v i d o mais, teria se tornado imensamente r i c o ; e m suas m ã o s , c o m
de nada sofrer por causa dos filhos [... | Quanto a m i m , aqui fiquei de- p e r d ã o da palavra, estrume virava o u r o " . " ' N ã o obstante desaprova os
solada, sofrendo e chorando, c o m meus filhos casados e solteiros [...] m u i t o ricos que sempre querem ter mais: " N i n g u é m morre tendo rea-
Jamais o esquecerei pelo resto de m i n h a vida. Ele e s t á gravado e m meu lizado pelo menos a metade de seus desejos". Parece-lhe que na é p o c a
,, 107 de seu pai as pessoas se contentavam c o m o que p o s s u í a m . Seus filhos
coração .

38 39
n ã o p o d e m esquecer as palavras de J ó : " N u s nascemos e nus devemos i
quando nenhuma de .suas personagens é j u d i a . A s s i m , n u m a de suas
partir .
h i s t ó r i a s Creso pergunta a S ó l o n se n ã o é feliz c o m tanto oysher un
E m sua f o r m a mais ampla a honra geralmente e s t á associada à j
koved; e o filósofo responde que o rei s ó s e r á feliz se morrer rodeado de
riqueza: M o d e l Ries e sua esposa Pessele, sogros da i r m ã de G l i k l ,
aestimatio, c o m oysher e koved, c o m o ocorreu recentemente c o m u m
" m o r r e r a m e m B e r l i m e m meio a riqueza e honra" {oysher un koved);
c i d a d ã o de Atenas.'''
" m i n h a m ã e casou as filhas c o m oysher un koved". " C o m a morte de
Se o emprego do termo sugere certa s e m e l h a n ç a entre as sensibi-
H a i m meu oysher un koved desapareceu", escreveu l o g o a p ó s perder o '
lidades de j u d e u s e n ã o - j u d e u s , G l i k l nunca esquece as r e l a ç õ e s as-
m a r i d o (mais tarde recuperou a a m b o s ) . ' " A honra era t a m b é m u m a
s i m é t r i c a s entre seu povo e "as n a ç õ e s do m u n d o " . ("As n a ç õ e s do m u n -
qualidade inerente à pessoa e avaliada segundo a estima — aestimatio |
d o " é u m a das e x p r e s s õ e s que ela usa para designar os gentios,
— que lhe devotavam diferentes c í r c u l o s . Para os judeus relacionava-
n ã o - j u d e u s ou incircuncisos; nunca u t i l i z a a palavra cristãos, para n ã o
se especialmente c o m honestidade e c o r r e ç ã o nos n e g ó c i o s ; H a i m es-
introduzir Cristo e m seu texto.)''" N o relato de suas alegrias e tristezas
perava que seus s ó c i o s fossem erlikher, redlikher. C o m o os comer-
os gentios t ê m uma s i t u a ç ã o e x p l a n a t ó r i a diferente da dos judeus. O
ciantes c r i s t ã o s , G l i k l temia a f a l ê n c i a tanto pela vergonha quanto pelos
respeito dos c r i s t ã o s certamente constitui uma fonte de s a t i s f a ç ã o e de
custos que acarretava.'"
renda. E l a mesma e H a i m n ã o conseguiram fazer n e g ó c i o s g r a ç a s ao
A honra se evidenciava no respeito c o m que se tratava u m c o n v i - ,
c r é d i t o de judeus e n ã o - j u d e u s ? N o passado viveu e m A l t o n a uma co-
va ou se recebia u m h ó s p e d e . Quando viajaram para E m d e n , a f i m de
merciante que "as damas nobres de Holstein m u i t o estimavam". Elias
comemorar o A n o - N o v o j u d a i c o , G l i k l e H a i m foram recebidos por u m
B a l l i n , de H a m b u r g o — cuja f i l h a se casou c o m N a t h a n , f i l h o de
parente " c o m toda a honra do m u n d o " . Beila, a m ã e de G l i k l , casou a
G l i k l — , é " u m h o m e m honesto [erlikher man], m u i t o b e m considera-
ú l t i m a f i l h a e m H a m b u r g o : " n e n h u m m e m b r o n o t á v e l da Gemeinde
do por judeus e n ã o - j u d e u s " . ' " ' E receber a i n c u m b ê n c i a de administrar
faltou à c e r i m ó n i a ; todos compareceram, para sua honra". G l i k l f o i a
a Casa da M o e d a do duque de Lorena — c o m o ocorreu c o m Samuel,
Furth tratar do casamento de seu c a ç u l a , Moses: " N ã o posso descrever |
fdho de H i r s c h L e v y — é uma felicidade, pelo menos enquanto se po-
a koved que nos concederam. Todos os homens mais importantes da co-
dem usufruir os "favores" de Sua Graça.'""
munidade e suas esposas v i e r a m a nossa estalagem e q u e r i a m por toda
N u m a o c a s i ã o — quando Z i p p o r a h bas H a i m se casou c o m o f i l h o
f o r ç a levar-nos para suas casas"."" Para os homens a honra consistia
de Reb Elias, e m Cleve — G l i k l descreve os c r i s t ã o s que honraram sua
t a m b é m e m ser escolhido c o m o d i g n i t á r i o da G e m e i n d e e represen-
f a m í l i a . O p r í n c i p e M a u r i t s de Nassau e seus c o r t e s ã o s e o j o v e m
tante dos j u d e u s j u n t o à s autoridades c r i s t ã s . U m r a b i n o de grande
p r í n c i p e F r e d e r i c k de B r a n d e n b u r g o c o m p a r e c e r a m à c e r i m ó n i a . A
e r u d i ç ã o constantemente recebia convites de diversas comunidades. A
noiva n ã o tinha igual; o p r í n c i p e Frederick se encantou c o m M o r d e c a i ,
morte t a m b é m propiciava sinais de respeito: Mattie, a a v ó de G l i k l , f o i
de apenas c i n c o anos, que os pais t i n h a m v e s t i d o c o m apuro; os
enterrada " c o m grande honra" (mit grusin koved).'"
c o r t e s ã o s se regalaram c o m as iguarias, os bons vinhos e os d a n ç a r i n o s
O interesse de G l i k l por honra contrasta c o m a s i t u a ç ã o nebulosa
mascarados que Reb Elias providenciara. "Durante c e m anos j u d e u ne-
dos judeus e m m u i t o s textos c r i s t ã o s do s é c u l o x v i i e c o m a estreita
n h u m tivera tamanha honra" — e aqui G l i k l usa a palavra koved.'"
n o ç ã o de honra que os c r i s t ã o s lhes a t r i b u í a m . A s s i m S h y l o c k extravasa l
Mas esse caso de koved prestado por c r i s t ã o s a judeus é ú n i c o e m
sua i n d i g n a ç ã o c o m seu devedor, A n t o n i o : " E l e me d e s g r a ç o u e i m -
sua autobiografia. O j u d e u seiscentista n ã o podia contar c o m tais re-
pediu-me de ganhar meio m i l h ã o : escarneceu de m i n h a n a ç ã o , d i f i c u l -
l a ç õ e s . A p r o t e ç ã o dos conselhos e p r í n c i p e s c r i s t ã o s nunca era infalí-
tou-me os n e g ó c i o s , esfriou meus amigos, inflamou meus i n i m i g o s " . " "
vel, mesmo c o m o Senado de H a m b u r g o t ã o disposto a "fechar os o l h o s "
G l i k l aprecia i n t e r a ç õ e s mais sutis e tem tanta certeza e m r e l a ç ã o à qua-
c|iiando os judeus a l e m ã e s realizavam o culto em casa.'" G l i k l apresen-
l i d a d e da h o n r a j u d a i c a que quase sempre usa a p a l a v r a koved, de
ta s i t u a ç õ e s particularmente ruins (por exemplo, Helmstedt era " u m a
o r i g e m hebraica, e m lugar de er, derivada do a l e m ã o Ehre, mesmo
cidade u n i v e r s i t á r i a e, portanto, u m mau lugar" — ou seja, mau para os

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I

judeus), ou particularmente boas (Deus recompensou o rei da Dinamar- noite de s á b a d o , quando n ã o conseguia d o r m i r , v i u o suspeito fugindo
ca porque " f o i u m soberano misericordioso, j u s t o e devoto, e sob seu da cidade c o m a m u l h e r e u m a vasta c a i x a . ( A q u i G l i k l conta u m a
governo os judeus viveram b e m " ) . C o n t u d o , as c o n d i ç õ e s de fronteira h i s t ó r i a dentro da outra, comparando Rebecca ao rei da Espanha, que,
a que ela sempre retorna s ã o aquelas de u m m u n d o anti-semita. mantido insone pelo Senhor, v i u uns intrigantes pondo o corpo de uma
Podemos constatar isso e m três e p i s ó d i o s sangrentos que g i r a m c r i a n ç a no j a r d i m de u m j u d e u e assim i m p e d i u u m a falsa a c u s a ç ã o de
e m torno das i n t e r a ç õ e s entre judeus e c r i s t ã o s — e que G l i k l relata para assassinato ritual.)"" O marido aconselhou-a a ficar quieta e n ã o criar
mostrar c o m o os judeus devem viver sob as r e s t r i ç õ e s impostas pelo c o n f u s ã o e m Hamburgo, "onde [os j u d e u s ] n ã o se atreviam a abrir a bo-
E x í l i o . G l i k l e H a i m estavam casados havia dez anos quando seu j o v e m ca", mas Rebecca n ã o lhe deu o u v i d o s : d e n u n c i o u o caso à s a u t o r i -
agente M o r d e c a i f o i assassinado na estrada que l i g a v a H a n ô v e r a dades, fez a criada do c r i m i n o s o confessar e dizer-lhe onde o corpo es-
H i l d e s h e i m e que e m geral era b e m .segura. U m c a ç a d o r clandestino o tava enterrado e ainda garantiu aos outros judeus que n ã o havia por que
abordou e pediu-lhe dinheiro para tomar uma bebida. M o r d e c a i r i u . O temer as c o n s e q u ê n c i a s de uma a c u s a ç ã o justa. Entrementes, milhares
c a ç a d o r irritou-se — "Para que pensar tanto? S i m ou n ã o ? " — e lhe deu de a r t e s ã o s e marinheiros se r e u n i r a m , mostrando-se prontos para i n -
u m tiro na c a b e ç a . G l i k l e H a i m f i c a r a m transtornados c o m a n o t í c i a , vestir contra os judeus, se o corpo n ã o estivesse na casa do c r i s t ã o . N o
pois n ã o s ó confiavam plenamente e m M o r d e c a i , c o m o o consideravam f i m os dois c a d á v e r e s f o r a m encontrados, o h o m i c i d a confessou e f o i
u m m e m b r o da f a m í l i a . "Que Deus vingue seu sangue j u n t o c o m o dos executado entre m u r m ú r i o s de a m e a ç a s contra os judeus. "Os filhos de
outros santos mártires."'"'' Israel c o r r i a m t e r r í v e l perigo naquela é p o c a , por causa da maldade que
se a t i ç a v a contra eles [... ] p o r é m Deus e m Sua imensa m i s e r i c ó r d i a por
( E n t r e t a n t o , M o r d e c a i teve m o r t e i n s t a n t â n e a , n i n g u é m teste-
n ó s , pecadores humanos, p r o v o u que ' e m terra i n i m i g a eu n ã o os re-
munhou o c r i m e e nunca se encontrou o assassino. G l i k l i m a g i n o u que
j e i t e i ' [ L e v í d c o , 2 6 , 4 4 ] , e os judeus se f o r a m sem sofrer danos.""'
se tratasse de u m c a ç a d o r anti-semita, pois, se u m j u d e u c a í a v í t i m a de
v i o l ê n c i a , a culpa .só podia ser de u m n ã o - j u d e u . ' " ' C o m o M o r d e c a i , os cambistas assassinados apontam aos descen-
A n o s depois o c o r r e u o caso dos l a d r õ e s j u d e u s . D o i s c o m e r - dentes de G l i k l os eternos p e r i g o s que r o n d a m os j u d e u s . Rebecca
ciantes de H a m b u r g o roubaram diamantes de seu anfitrião na Noruega; mostra que n ã o se deve aceitar e m s i l ê n c i o a morte de u m inocente. A o
quando se v i r a m perseguidos, j o g a r a m as pedras no mar; finalmente, situar cronologicamente a mayse G l i k l r e f o r ç a suas i m p h c a ç õ e s . Re-
sob tortura, confessaram o c r i m e . U m dos l a d r õ e s ainda por c i m a .se becca denunciou o c r i m i n o s o de H a m b u r g o e m 1687; G l i k l escreve so-
converteu ao cristianismo para escapar da forca. O outro, que pertencia bre o d u p l o h o m i c í d i o no L i v r o 5, b e m depois da morte de H a i m , e m
a uma f a m í l i a conhecida de G l i k l , e x p i o u seu pecado mantendo-se ina- 1689, dizendo que aconteceu "por essa é p o c a " . " " A s s i m , é entre seus
b a l á v e l e m sua fé. N u m a s i t u a ç ã o dessas u m j u d e u deve " l o u v a r o nome p r ó p r i o s e s f o r ç o s de v i ú v a para proteger os " ó r f ã o s " das a m e a ç a s i n o -
do Senhor". E essa s i t u a ç ã o mostra b e m a t é onde se pode chegar por minadas de judeus e c r i s t ã o s que G l i k l relata os i n c a n s á v e i s e s f o r ç o s de
causa da c o b i ç a . O e p i s ó d i o si tua-.se no i n í c i o do L i v r o 4, cujo tema cen- Rebecca para vingar os cambistas assassinados. A m b a s s ã o m ã e s d i g -
tral é a d e d i c a ç ã o aos n e g ó c i o s da f a m í l i a ; depois de narrar o enforca- nas das matriarcas b í b l i c a s Sara, Rebeca, Raquel e L i a .
m e n t o do j u d e u c o n v i c t o , G l i k l apresenta u m a s é r i e de r e f l e x õ e s , A palavra margens resume a p o s i ç ã o que os c r i s t ã o s ocupam na
tiradas de H i l l e l e outros s á b i o s , sobre os limites que se devem i m p o r à autobiografia de G l i k l : e s t ã o nas margens do m u n d o j u d a i c o , rodean-
r i q u e z a e sobre a i m p o r t â n c i a das esmolas.'"" do-o c o m suas i n s t i t u i ç õ e s e seu controle terreno. Os judeus interagem
O terceiro e p i s ó d i o faz parte do L i v r o 5; trata-se de u m a groyse c o m os c r i s t ã o s indiscriminadamente, e suas i n t e r a ç õ e s variam de v i o -
mayse (grande h i s t ó r i a ) sobre dois cambistas judeus que desaparece- lentas a s o c i á v e i s . ' " C o m eles m a n t ê m r e l a ç õ e s d i p l o m á t i c a s , c o n -
ram e depois se descobriu que foram assassinados por u m c r i s t ã o de tluzidas por u m shtadlan c o m o H i r s c h Levy.""* C o m eles m a n t ê m ainda
uma boa f a m í l i a de H a m b u r g o . ' " ' A h e r o í n a é uma certa Rebecca, que r e l a ç õ e s contratuais—devem-lhes d i n h e i r o ou os contratam c o m o e m -
identificou o h o m i c i d a valendo-se de v á r i a s pistas e rumores e numa pregados ( G l i k l honra suas d í v i d a s c o m absoluta seriedade e conta c o m

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uma shabes-froy, uma " m u l h e r do S a b á " , que mediante pagamento se marinheiros que o u v i r a m tais p r o d í g i o s se converteram ao j u d a í s m o ,
encarrega de c u m p r i r suas tarefas nesse dia de descanso).'" dando o r i g e m a uma florescente comunidade j u d a i c a {kehilah) na ilha
G l i k l i m a g i n a r e l a ç õ e s mais í n t i m a s no L i v r o 2, no q u a l i n c l u i uma do duque.
v e r s ã o j u d a i c a de u m a h i s t ó r i a presente e m v á r i a s outras t r a d i ç õ e s G l i k l acrescentou v á r i o s elementos à h i s t ó r i a t r a d i c i o n a l do
( P l á c i d a s , ou O H o m e m que Nunca Jurou) para demonstrar por que se H o m e m que N u n c a Jurou, c o m o o i n t e r i ú d i o da princesa selvagem, as
deve c o n f i a r no Senhor. A h i s t ó r i a g i r a e m t o r n o de u m t a l m u d i s t a provas do e n i g m a e o ducado j u d a i c o . ' "* Para o e p i s ó d i o da princesa sel-
piedoso, injustamente aprisionado por d í v i d a s , e de sua m u l h e r , se- vagem talvez tivesse se inspirado nos relatos de viajantes que g i r a v a m
questrada pelo comandante de u m n a v i o enquanto lavava roupas na em torno do amor infeliz entre europeus e n ã o - e u r o p e u s . Jean M o c -
praia."" A o recuperar a liberdade o marido parte c o m os dois fdhos para quet, u m f r a n c ê s que viajou pelas A n t i l h a s no i n í c i o do s é c u l o x v n , o u -
as í n d i a s Orientais, onde espera encontrar a esposa, mas sua embar- v i u u m a h i s t ó r i a semelhante sobre u m p i l o t o i n g l ê s . Esse p i l o t o
c a ç ã o naufraga e ele vai parar numa terra de "selvagens" {vilde leyt). naufragou no Caribe e foi salvo por uma a m e r í n d i a , que c u i d o u dele d u -
Escapa de ser devorado g r a ç a s à i n t e r v e n ç ã o da princesa local, c o m a rante dois ou t r ê s anos de a n d a n ç a s pelas terras do Norte e lhe deu u m
qual passa a v i v e r numa caverna; o fruto dessa u n i ã o é u m " f d h o sel- filho. Quando por fim encontrou uns pesqueiros ingleses, o p i l o t o se re-
vagem". Desesperado c o m tudo o que perdeu, o talmudista pensa e m cusou a levar a companheira consigo, porque sentia vergonha e "porque
s u i c í d i o ; " E se c o m o decorrer d o t e m p o esses brutos i r r a c i o n a i s ela era u m a selvagem". Furiosa, a a m e r í n d i a p a r t i u o f i l h o ao m e i o ,
comessem sua carne e triturassem seus ossos e ele n ã o fosse enterrado l a n ç o u uma metade no barco e guardou a outra, "cheia de dor e des-
entre bons judeus?". c o n s o l o " . G l i k l deve ter o u v i d o o u l i d o essa h i s t ó r i a — a t r a d u ç ã o
U m a voz celestial o impede de acabar c o m a p r ó p r i a vida; depois a l e m ã do l i v r o de M o c q u e t f o i publicada e m 1688 e m L u n e b u r g , cidade
o conduz a u m tesouro e o aconselha a embarcar n u m n a v i o que se p r ó x i m a de H a m b u r g o . " '
dirige a A n d o q u i a . N o ú l d m o instante sua vilde companheira lhe pede T a m b é m é p o s s í v e l que os relatos de viajantes judeus lhe tenham
que a leve t a m b é m , "mas ele r i , dizendo: ' O que tenho a ver c ó m as fornecido os elementos para c o m p o r o i n t e r i ú d i o selvagem. Esses re-
feras? J á possuo uma esposa m e l h o r que v o c ê ' . O u v i n d o - o dizer que latos i n c l u í a m a h i s t ó r i a de E l d a d , que no s é c u l o i x naufragou entre
nunca mais h á de voltar, a princesa se enfurece: pega o pequenino .sel- a n t r o p ó f a g o s da Etiópia.'*' I n c l u í a m ainda a h i s t ó r i a do n á u f r a g o j u d e u
vagem pelos p é s , parte-o e m dois, j o g a uma metade no navio e e m sua que f o i salvo por uma diaba, c o m a qual se casou; quando ele resolveu
raiva se p õ e a devorar a outra metade. O s á b i o talmudista se afasta". voltar para sua p r i m e i r a esposa e para seus filhos, a diaba o matou c o m
Instalado e m outra ilha c o m seu tesouro e escolhido como o duque um beijo.'^' ( O talmudista de G l i k l teve mais sorte.) Quanto ao duque
dos nativos, o piedoso judeu finalmente reencontra a mulher e os filhos judeu, talvez c o n s t i t u í s s e u m reflexo do marrano Joseph Nasi, que por
quando seus barcos v ã o ter à praia e uma série de enigmas se resolve. Des- obra do s u l t ã o turco f o i duque de Naxos entre 1566 e 1579 — e Naxos
cobre-se que o comandante t a m b é m possui duas esposas: uma que fica e m estava no c a m i n h o de A n t i o q u i a , para onde se d i r i g i a o segundo navio
terra firme, cuidando da casa e dos filhos, e outra — a j u d i a seqiiestra- do talmudista. A f a m d i a de G l i k l ganhou u m viajante e m 1712, quan-
da — , " m u i t o delicada e inteligente", que conduz seus n e g ó c i o s a bordo. do seu genro M o r d e c a i Hamburger, t a m b é m conhecido c o m o Moses
Todavia, o comandante nunca se deitou c o m a mulher do talmudista, a Marcus, o Velho, seguiu para a í n d i a a fim de comerciar e m diamantes
qual lhe disse que s ó dormiria c o m u m h o m e m capaz de decifrar u m enig- em Pondicherry e Madras. Isso ocorreu uns 22 anos depois que ela es-
m a que seu m a r i d o lhe ensinara. Ela se mataria (mais u m a a m e a ç a de crevera o L i v r o 2, c o m a h i s t ó r i a do talmudista piedoso. M a s será que a
suicídio!) antes de partilhar seu leito em qualquer c i r c u n s t â n c i a , "pois n ã o viagem de M o r d e c a i lhe i n s p i r o u alguns a c r é s c i m o s ? ' ^ "
é correto u m c a m p o n ê s imbecil montar o cavalo de u m r e i " . ' " Quaisquer que sejam as fontes, os a c r é s c i m o s de G l i k l r e f o r ç a m
A o saber que sua esposa permanece intacta o talmudista poupa a r e l a ç õ e s de todo t i p o entre judeus e n ã o - j u d e u s e mostram que as re-
v i d a do comandante, limitando-.se a confi.scar-lhe a fortuna. A l g u n s l a ç õ e s do d p o í n t i m o sempre acabam m a l . N o e p i s ó d i o da terra dos

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"selvagens" ser j u d e u equivale a ser " c i v i l i z a d o " . N o L i v r o 2 G l i k l l e m - filha na sinagoga. Diante disso, o genro de G l i k l fundou sua p r ó p r i a si-
bra t a m b é m que numa noite escura, quando ela e a m ã e amamentavam nagoga. A narrativa, de resto f a v o r á v e l a M o r d e c a i , pretendia mostrar
seus respectivos b e b é s , confundiram as c r i a n ç a s de tal m o d o que por que os j u d e u s a l e m ã e s a g i a m c o m o se n ã o houvesse magistrados
pouco n ã o tiveram de recorrer ao j u l g a m e n t o do rei S a l o m ã o . M a s s ó a c r i s t ã o s para controlá-los.'""'
princesa vilde parte o f i l h o e m dois. (Nessa é p o c a os judeus estavam en- Entre as "curiosidades" que Schudt apresenta no p r i m e i r o v o l u m e
tre os novos p r o p r i e t á r i o s de canaviais e de escravos africanos e i n d í - f i g u r a o m é t o d o u t i l i z a d o pelos j u d e u s de H a m b u r g o / A l t o n a para
genas no Suriname;'^' por outro lado, os relatos de viajantes c r i s t ã o s burlar a velha norma que os proibia de portar u m l i v r o de preces ou usar
assinalavam s e m e l h a n ç a s entre costumes j u d a i c o s e costumes "sel- u m xale de rezar fora de seu â m b i t o d o m é s t i c o . N a verdade eles t a m -
vagens" do N o v o M u n d o , e os t e ó l o g o s cri.stãos d i z i a m , c o m a parcial b é m estavam p r o i b i d o s de afastar-se de sua cidade a t é determinada
a q u i e s c ê n c i a do p r ó p r i o Menasseh ben Israel, que os a m e r í n d i o s eram d i s t â n c i a e de preparar suas r e f e i ç õ e s do S a b á durante uma festa ime-
os descendentes das Tribos Perdidas de Israel.) Glikl opõe o talmu- diatamente a n t e r i o r a esse d i a . E n t r e t a n t o , p o d i a m suspender tais
dista culto e sua esposa inteligente e bem-nascida ao comandante b r o n - p r o i b i ç õ e s mediante u m a s é r i e de atos e objetos especificados no Tal-
co e a sua mulher, que apenas sabia executar os trabalhos d o m é s t i c o s . mude e conhecidos c o m o emvin. Eruv significa " m i s t u r a " e m hebrai-
Nessa h i s t ó r i a os c r i s t ã o s se situam n ã o s ó nas margens do m u n d o j u - co. E r g u i a m cercas de arame e " p o r t õ e s " entre as casas e a sinagoga;
daico, c o m o abaixo dos judeus. A r e c o n c i l i a ç ã o no final — os c r i s t ã o s levavam p ã o para a sinagoga e as casas de o r a ç ã o e o p u n h a m no mes-
convertidos ao j u d a í s m o e v i v e n d o sob o mando de u m s á b i o duque tal- mo p á f i o aonde deviam transportar á g u a no S a b á . Antes da festa que
mudista e sua ditosa famflia — é uma fantasia de i n v e r s ã o , u m desfe- precedia u m S a b á guardavam o p ã o e outros alimentos para poder co-
cho feliz para os sofrimentos do E x í l i o . zinhar e m horas proibidas.
H a v i a instrumentos s i m b ó l i c o s que p e r m i t i a m à comunidade mis-
turar o e s p a ç o p ú b l i c o p r o i b i d o (que estava sob a j u r i s d i ç ã o da maioria,
Os c r i s t ã o s figuram na autobiografia de G l i k l , que, contudo, n ã o Reshut-Ha-rabbim) e o e s p a ç o parficular (que estava sob a j u r i s d i ç ã o
dedicou u m a ú n i c a p á g i n a a .seus h á b i t o s religiosos ou a suas c r e n ç a s . do i n d i v í d u o , Reshut-Ha 'yahid), misturar as atividades dos dias co-
E m contrapartida alguns c o n t e m p o r â n e o s c r i s t ã o s t i n h a m m u i t o a d i - m u n s e as atividades de é p o c a de festa. N u m a á r e a c o m o H a m b u r -
zer sobre as p r á t i c a s dos judeus que v i v i a m nas margens de seu m u n d o g o / A l t o n a grande parte do e s p a ç o redefinido por u m p o r t ã o e cercado
ou sob sua j u r i s d i ç ã o . E m 1644 o pa.stor Johann M u l l e r , de H a m b u r g o , c o m o Reshut-Ha'yahid p e r t e n c i a aos c r i s t ã o s . Por e x e m p l o , os re-
p u b l i c o u Judaismus oder JUdentum, u m trabalho de 1500 p á g i n a s so- gistros da G e m e i n d e acusam o pagamento efetuado a u m cervejeiro
bre a fé, o comportamento religioso e a vida dos judeus, que pretendia menonita cuja propriedade abrigara u m eruv. E m termos de e s p a ç o e
mostrar a "cegueira e a teimosia" desse povo, bem c o m o a necessidade tempo a dispensa proporcionada pelos eruvin p e r m i t i a o deslocamen-
de c o n v e r t ê - l o ao c r i s t i a n i s m o . C o m tal o b j e t i v o o h e b r a í s t a Esdras to por u m m u n d o misto ainda centralizado.'
Edzardi transmitia ensinamentos r a b í n i c o s a m i s s i o n á r i o s c r i s t ã o s de O eruv sugere os processos de r a c i o c í n i o e senfimento que per-
Hamburgo nas ú l t i m a s d é c a d a s do s é c u l o . Paralelamente, e m Frank- m i t e m a G l i k l c o m sua cultura mista focalizar os judeus e m sua narra-
furt am M a i n o c l é r i g o pietista Johann Jacob Schudt reunia material tiva e a t é falar, e m seu universo d i a s p ó r i c o , de " m e u pequeno n i n h o "
para e l a b o r a r seu Jiidische MerckwUrdigkeiten (Curiosidades j u - " e m nossa q u e r i d a H a m b u r g o " . ' " O m u n d o c r i s t ã o estabelece c o n -
daicas). O ú l t i m o v o l u m e , publicado em 1718, i n c l u í a uma h i s t ó r i a so- d i ç õ e s para o mundo j u d a i c o , e à s vezes os c r i s t ã o s interferem direta-
bre o genro de G l i k l , M o r d e c a i Hamburger, e sua esposa Freudchen em mente na v i d a dos judeus, c o m o no koved n u m casamento e no assassi-
Londres: em 1706, tendo contestado a carta de d i v ó r c i o que u m rabino nato de u m m e m b r o da f a m í l i a . E m seus sete livros geralmente ocupam
ashkenazi concedeu a u m c o m e r c i a n t e f a l i d o , M o r d e c a i f o i e x c o - uma p o s i ç ã o p e r i f é r i c a . A s mortes da f a m í l i a que G l i k l mais lamenta
mungado, e sua mulher perdeu o direito de declarar o nome da ú l t i m a t ê m p o u c o a ver c o m a f r o n t e i r a c r i s t ã / j u d a i c a ; s ã o resultado de

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d o e n ç a s , epidemias ou acidentes que p o d i a m acontecer c o m qualquer l u t â n c i a de H a i m e m chegar a u m acordo n ã o c o n t r i b u i u para s o l u -
u m e m sua é p o c a e que ela interpreta no â m b i t o de u m contexto r e l i - cionar o impasse. O caso por pouco n ã o f o i parar n u m tribunal c r i s t ã o
gioso j u d a i c o . A d i s c ó r d i a que ela aborda na maior parte de seu texto (o que c o n s t i t u i r i a u m a chocante falta de solidariedade), mas f i n a l -
refere-se a j u d e u s , c o m e ç a n d o c o m as brigas entre seu p a i e outros mente u m tribunal j u d a i c o d e c i d i u contra H a i m e m favor de Judah. Pe-
l í d e r e s da Gemeinde de A l t o n a e terminando c o m murros na sinagoga lo menos o m a r i d o de G l i k l ressarciu suas perdas e m outros n e g ó c i o s
de M e t z . — "o amado Senhor v i u nossa i n o c ê n c i a " , comenta e l a — e H a i m e Ju-
Durante s é c u l o s os relatos de d e s a v e n ç a s locais c i r c u l a r a m pelas dah e n f i m v i v e r a m e m paz."' O u t r o s falsos s ó c i o s e agentes i n s p i -
comunidades judaicas da Europa sob f o r m a de manuscritos, cada par- raram-lhe maior i n d i g n a ç ã o . " O verdadeiro Herodes de toda a m i n h a
t i d o procurando conhecer a o p i n i ã o ou " r e a ç ã o " deste ou daquele rabi- f a m í h a " , d i z sobre u m deles (provavelmente baseando-se na p é s s i m a
no. C o m o surgimento da imprensa tais relatos muitas vezes f o r a m p u - r e p u t a ç ã o de Herodes i no Talmude c o m o destruidor de i n s t i t u i ç õ e s j u -
blicados e m hebraico, preparados por eruditos mas discutidos por todo daicas e exterminador de l í d e r e s j u d e u s ) . ' " " U m h o m e m cheio de e m -
mundo. Essas " n o t í c i a s judaicas" percorrem a autobiografia de G l i k l , páfia, gordo, obeso, arrogante, malvado", descreve o u t r o . " '
que assim e x p r i m e seu parecer: " N a é p o c a de meu pai travavam-se dis- Se a d e i x a r a m transtornada — " a i n d a é r a m o s j o v e n s [ . . . ] e t í -
putas raivosas na Gemeinde e, c o m o é do feitio do m u n d o , cada pessoa nhamos uma casa cheia de c r i a n ç a s " " ^ — , essas perdas de t á l e r e s nada
pertencia a uma f a c ç ã o disdnta". Depois a m a i o r i a dos d i g n i t á r i o s da f o r a m em c o m p a r a ç ã o c o m os desgostos que seu f i l h o L e i b lhe causou
sinagoga faleceram. " A s s i m Deus — louvado seja — t e r m i n o u c o m as em sua viuvez. Casado, dono de u m a grande loja e m B e d i m , o inexpe-
rixas entre os parnasim.""''' riente e bondoso L e i b deixou-se ( é o que sua m ã e d i z ) roubar por auxi-
A s brigas e m que ela p r ó p r i a se envolveu r e f é r i a m - s e a negocia- liares e parentes, perdeu dinheiro e m maus n e g ó c i o s e e m e m p r é s d m o s
ç õ e s m a t r i m o n i a i s ( a l t e r c a ç õ e s devidas ao tamanho de u m dote ou mes- a poloneses e dnalmente se v i u t ã o endividado que por pouco n ã o f o i
m o à c o n v e n i ê n c i a de u m c ô n j u g e e m p o t e n c i a l e que depois se re- parar na p r i s ã o . A m ã e e os i r m ã o s o ajudaram, mas tudo is.so custou a
solveram nas harmonias de u m casamento) e a r e l a ç õ e s c o m e r c i a i s . G l i k l vertigens, "tremores e ansiedade mortais", e l á g r i m a s amargas.
Quando Samuel Oppenheimer, u m j u d e u da corte vienense, f o i encar- N o fim ela instalou o filho e m H a m b u r g o , pondo-o para trabalhar sob
cerado e temporariamente d e i x o u de pagar as vultosas quantias que de- seu olhar vigilante, e o rapaz recuperou o c r é d i t o . M a i s tarde, quando
via a Nathan, f i l h o de G l i k l , esta c u l p o u n ã o os intrigantes do governo L e i b m o r r e u , aos 27 anos, G l i k l escreveu que, emboraesse filho tivesse
imperial, e s i m os p a r t i d á r i o s do devedor: " A i n d a que nisso se empe- lhe i n f l i g i d o m u i t o sofrimento, sua morte f o i u m pesado golpe. L e m -
nhem pela v i d a afora, n ã o c o n s e g u i r ã o nos recompensar pelos temores, b r a n d o D a v i e A b s a l ã o , ela o p e r d o o u c o m p l e t a m e n t e . A l é m disso,
problemas e p r e o c u p a ç õ e s que nos i n f l i g i r a m " . " " L e i b "era o m e l h o r mentsh do m u n d o e estudava bastante e tinha u m
Para G l i k l os judeus v i v i a m n u m m u n d o e m que p o d i a m passar re- c o r a ç ã o de j u d e u para as a f l i ç õ e s dos pobres"."'
pentinamente da riqueza à m i s é r i a e talvez, c o m a ajuda de Deus, voltar
a ser r i c o s . P r o b l e m a s c o m e r c i a i s c o m os c r i s t ã o s n ã o c o n s t i t u í a m
novidade e ela s ó os abordava e m c i r c u n s t â n c i a s especiais, c o m o as me- E v i d e n t e m e n t e os desgostos que L e i b lhe causou e n v o l v i a m
didas de L u í s x i v contra os moedeiros judeus de L o r e n a . Problemas m u i t o mais que d i n h e i r o , e isso nos remete à h i s t ó r i a do p á s s a r o no i n í -
c o m judeus forneceram-lhe algumas de suas melhores h i s t ó r i a s . A s - cio da autobiografia. Se o relato de sua v i d a consfitui u m b a l a n ç o de ale-
s i m , G l i k l conta detalhadamente que Judah B e r l i n escondeu 1500 grias e tristezas (as tristezas e m geral pesando mais), o que i m p u l s i o n a
t á l e r e s de seu m a r i d o enquanto f o r a m s ó c i o s e depois, apesar de todo o sua narrativa é a q u e s t ã o das d í v i d a s de cada g e r a ç ã o para c o m a outra.
b e m que o casal lhe fizera, recusou-se a devolver a mercadoria quando A h i s t ó r i a do p á s s a r o diz que a flecha do tempo segue seu r u m o , que os
H a i m polidamente rescindiu o contrato. H a v i a m u i t o partidarismo nas velhos a m a m e tratam osjovens, embora reclamem, c o m o G l i k l , que as
respectivas comunidades j u d a i c a s , e G l i k l teve de a d m i t i r que a re- c r i a n ç a s de hoje e m dia d ã o m u i t o trabalho e fazem e x i g ê n c i a s desca-

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bidas. G l i k l compara a alegria c o m que ela e H a i m receberam u m m o - 5 G l i k l d i z que n e n h u m de seus parentes f o i v i s i t á - l a ou lhe ofereceu
desto presente de seus pais ("uma pequena j a r r a que custou uns vinte ajuda a p ó s os primeiros trinta dias de luto. Tampouco nenhuma das pes-
t á l e r e s e, todavia, nos era t ã o cara c o m o se tivesse custado uma cente- soas que ela e H a i m a u x i h a r a m se prontificou a facilitar o c r é d i t o de
na") c o m as r e a ç õ e s dos jovens de seu tempo, "que querem tudo dos seus ó r f ã o s . ' " ' A partir d a í c o n c l u i que n ã o se pode contar c o m n i n g u é m
genitores sem perguntar se p o d e m tanto". M a s Deus determinou que a n ã o .ser Deus, e quanto a isso aconselha os filhos por m e i o de uma
os velhos cuidassem dos jovens, e tal d i s p o s i ç ã o é p r á d c a , pois "os f i - h i s t ó r i a horripilante, que remonta a fontes judaicas e cujo final sombrio
lhos l o g o se cansariam, se tivessem c o m os genitores o mesmo trabalho talvez seja fruto de sua i m a g i n a ç ã o .
que lhes d ã o " . N o outro m u n d o t a m b é m os pais p o d e m continuar ze- U m r e i queria ensinar seu i n g é n u o filho a reconhecer a verdadeira
lando por sua prole. C o m o G l i k l diz sobre o pai de H a i m : "Que santo amizade. Para tanto mandou-o matar u m bezerro, p ó - l o n u m saco e d i -
h o m e m ! O x a l á seus m é r i t o s nos beneficiem. E o x a l á p e ç a ele a Deus zer a seu administrador, seu s e c r e t á r i o e seu criado de quarto que no
que nos poupe de novos sofrimentos; e o x a l á possamos n ã o pecar nem decorrer de u m a briga de b ê b a d o s matara o camareiro real. A cada u m
fazer nada de que venhamos a nos envergonhar" devia pedir que o ajudasse a enterrar o corpo, para que o soberano n ã o
M a s e n t ã o G l i k l atenua a mensagem da h i s t ó r i a do p á s s a r o e reo- o punisse. A s s i m fez. O administrador e o s e c r e t á r i o disseram-lhe que
rienta a flecha do tempo. N o i n í c i o do L i v r o 2 descreve c o m o seu pai, n ã o ajudariam u m b ê b a d o e h o m i c i d a e que preferiam deixar seus e m -
Judah Joseph, cuidava da sogra, M a t t i e . L o g o depois que se casou ele a pregos a obedecer a ele. O criado de quarto declarou que era sua o b r i -
c o n v i d o u para morar em sua casa, onde M a t t i e viveu durante dezessete g a ç ã o servi-lo; todavia, c o m medo do r e i , p r o p ô s ficar de guarda en-
anos, sem abandonar o p r ó p r i o n e g ó c i o de pequenos e m p r é s t i m o s . quanto o amo sepultava o defunto.
" M e u pai [...1 a tratava c o m toda a honra do m u n d o , c o m o se ela fosse N o dia seguinte os três homens denunciaram o c r i m e ao soberano,
sua p r ó p r i a m ã e " , fazendo-a sentar-se à cabeceira da mesa e c o m p r a n - imaginando que este mataria o p r ó p r i o filho e recompensaria os bons
do-lhe u m presente e m cada feira. M a t t i e m o r r e u a b e n ç o a n d o o genro servidores. Interrogado, o p r í n c i p e e x p l i c o u que abatera u m bezerro
e enaltecendo-o perante toda a f a m í l i a . " " Os cuidados dos jovens pelos para u m s a c r i f í c i o , mas, c o m o o fizera de maneira inadequada, teve de
velhos t a m b é m p o d e m se estender a l é m da morte, c o m o quando H a i m enterrar o a n i m a l ritualmente i m p u r o . Depois que se desenterrou o be-
ben Joseph contratou dez rabinos para rezar e estudar o Talmude e m sua zerro e os criados se c o b r i r a m de vergonha, o p r í n c i p e confessou ao pai
casa durante u m ano a p ó s a morte de seu pai."" que entre os t r ê s servidores encontrara apenas meio a m i g o . O r e i acon-
Os dois m o d e l o s de v í n c u l o s entre as g e r a ç õ e s c o n t i n u a m se selhou-o e n t ã o a matar o administrador e o s e c r e t á r i o , para assim trans-
chocando a t é a morte de H a i m , quando por fim se c o n c i l i a m . N o L i v r o formar o criado de quarto n u m a m i g o inteiro. " D e v o matar tantos por
4 G l i k l apresenta o retrato de u m a v i ú v a que evita incomodar os filhos: causa de um?", perguntou o p r í n c i p e . "Se u m h o m e m s á b i o vive cafivo
sua m ã e , Beila, que enviuvou aos quarenta e poucos anos, c o m o ela, e a sob o d o m í n i o de m i l tolos", o monarca respondeu, "e n ã o h á outro m o -
partir d a í recusou todos os pretendentes que se apresentaram, preferindo do de l i b e r t á - l o , aconselho e l i m i n a r os m i l tolos para que se possa sal-
manter-se c o m o que o m a r i d o lhe deixara; v i v i a decentemente numa var o ú n i c o s á b i o . "
casa modesta c o m a empregada e exultava c o m a p r e s e n ç a dos filhos e A s s i m , os dois homens f o r a m executados, o c r i a d o de q u a r t o
dos netos.'"" Apesar de suas atividades comerciais m u i t o mais amplas, tornou-se para sempre a m i g o do p r í n c i p e , e este aprendeu que s ó se
G l i k l t r i l h o u esse caminho durante dez anos, recusando ofertas de casa- pode confiar numa amizade depois de testá-la.'"'
mento c o m "os ashkenazim mais d i s t i n t o s " — ofertas que t e r i a m re- G l i k l bas Judah L e i b n ã o recomenda a n i n g u é m que ponha e m
dundado e m riqueza para si mesma e para sua prole. A t é pensara e m i r p r á t i c a essa prova de força — a qual requer c o n i v ê n c i a na t r a i ç ã o e no
servir a Deus na Terra Santa depois de casar a úlfima filha.'"' assassinato, c o m e ç a c o m u m a menfira e, c o m o a h i s t ó r i a do p á s s a r o ,
N o entanto, sua d e c i s ã o de permanecer v i ú v a baseava-se e m algo termina c o m duas mortes (três, se contarmos o bezerro) — , mas u t i l i z a -
mais que piedade e decoro, e m algo mais que lealdade a H a i m . N o L i v r o a para preparar sua a u t o d e s c r i ç ã o c o m o uma v i ú v a independente que

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confia unicamente e m Deus. Na é p o c a exisfia uma i m a g e m popular da sustento de M i r i a m , sua ú n i c a filha solteira, e se p ó s a imaginar que as
v i ú v a desleal, expressa n u m conto i í d i c h e (e c o m u m a outras l í n g u a s r e l a ç õ e s comerciais de H i r s c h L e v y poderiam beneficiar o restante de
europeias) que G l i k l n ã o cita, p o r é m c o m certeza conhecia. Chorando sua prole. "Infelizmente Deus, louvado seja .seu nome, r i u de minhas
junto à sepultura do m a r i d o , uma v i ú v a se rende aos encantos de u m ideias e de meus planos e j á havia decidido meu destino, fazendo-me
guarda i n c u m b i d o de v i g i a r corpos de enforcados. Q u a n d o u m dos confiar nas pessoas [ g r i f o da autora] para assim p u n i r - m e por meus
c a d á v e r e s é roubado, ela oferece o corpo do m a r i d o para s u b s f i t u í - l o e pecados. E u n ã o devia sequer ter pensado e m me casar de novo, pois
assim i m p e d i r que o amante se veja e m apuros. O Mayse Bukh apre- n ã o poderia acalentar a e s p e r a n ç a de encontrar outro H a i m H a m e l . " E m
senta uma v e r s ã o da h i s t ó r i a que se i n i c i a c o m a seguinte frase: " C o n - vista disso " c a í nas m ã o s de | Hirsch LevyJ e tive de passar pela mesma
forme diz o p r o v é r b i o , as mulheres t ê m a c a b e ç a fraca e se d e i x a m per- vergonha da qual esperava resguardar-me"."'*"
suadir f a c i l m e n t e " . ' " A o descrever-.se c o m o u m a m u l h e r f i r m e e A r u í n a de Hirsch L e v y f o i t e r r í v e l . E m dado m o m e n t o ele .se es-
independente, G l i k l anula a i m a g e m concorrente da v i ú v a i n f i e l . condeu, e os sargentos foram a sua casa — "mais cheia de ouro e prata
A h i s t ó r i a do bezerro t a m b é m prenuncia seu autojulgamento no que a de qualquer ashkenazi r i c o " — e .selaram tudo, enquanto faziam
L i v r o 6: sua d e c i s ã o de casar-se pela segunda vez resultara de u m a c o n - u m i n v e n t á r i o . G l i k l e a empregada ficaram praficamente sem ter o que
fiança equivocada nos outros. Beirando os 54 anos, ela e x p l i c a aos fi- comer. Por fim Hirsch .se entendeu c o m os credores da m e l h o r maneira
lhos, c o m e ç o u a ter novas p r e o c u p a ç õ e s : p o s s í v e l , m u i t o grato por n ã o ter sido encarcerado. G l i k l con.seguiu sal-
Por causa de meus filhos deparei-me com todo dpo de problemas e coisas var o d i n h e i r o pertencente a seus filhos Nathan e M i r i a m , p o r é m perdeu
desagradáveis, que sempre me custaram muito dinheiro. No entanto, não grande parte do dote. N u m a c o m p a r a ç ã o que lembra as palavras do Se-
cabe escrever sobre isso; são meus filhos queridos e os perdoo a todos, nhor a M o i s é s no monte Sinai, ela nos conta que agiu " c o m o a á g u i a que
tanto os que me custaram muito, quanto os que nada me custam no de- t o m o u a cria na asa, dizendo: ' É m e l h o r que a t i r e m e m m i m e n ã o e m
clínio de minha posição financeira. Eu ainda tinha um grande negócio meus filhos'".'"
para administrar, gozava de bom crédito entre judeus e não-judeus, e tu-
Depois dos desastres c o m que se inicia o L i v r o 7 G l i k l deixa de ser
do o que ganhei com isso foi tristeza. No calor do verão, na chuva e na
" m ã e - p á s s a r o " . Hirsch morre, deixando-a "na m i s é r i a e na dor". Quan-
neve do inverno eu ia às feiras. Todo dia ia ao mercado; mesmo no inver-
do o m a r i d o de uma de suas enteadas a obriga a desocupar a casa de
no permanecia em minha barraca. E, como pouco sobrou do que um dia
dve, tornei-me casmurra e tentei apenas preservar minha honra para. H i r s c h , ela se muda para u m quartinho no alto de uma escada de 22 de-
Deus tal não permita, não me tornar um peso para meus filhos, nem. Deus graus, onde prepara suas r e f e i ç õ e s c o m a ajuda de uma ú n i c a criada.'""
tal não permita, viver da mesa de meus amigos. Para mim seria pior estar A p ó s t r ê s anos " n ã o consegue mais resistir" ao convite de sua filha Es-
com meus filhos que com estranhos, se. Deus tal não permita, através de ther e do genro Moses Schwabe, que agora é u m parnas e "o h o m e m
mim eles pecarem [recusando-se a honrá-la e mantê-la?]. Dia após dia is- mais rico" da comunidade j u d a i c a de M e t z . E m 1715 instala-se na casa
so seria pior que a morte para mim. deles. " ' " A l i vive c o m a honra que o pai dispensara a sua a v ó M a t t i e , anos
antes: recebe "o melhor de cada prato" e as iguarias que lhe reservam
G l i k l t a m b é m temia que, d i m i n u i n d o sua capacidade de suportar
quando .se demora na sinagoga a l é m do meio-dia. A g o r a j á se mostra
a lida das feiras e verificar todos os seus fardos e mercadorias, acabasse
por falir e, "Deus tal n ã o permita, ir à bancarrota e causar p r e j u í z o s a capaz de perdoar Hirsch L e v y : ele era u m h á b i l negociante, "amado e

meus credores e c o m is.so envergonhar a m i m mesma, a meus filhos e a respeitado na prosperidade", e arriscou a p r ó p r i a vida pela comunidade

meu piedoso m a r i d o , que j a z sob a relva".""' à qual serviu durante muitos anos. Quanto a sua filha Esther, G l i k l nun-

Nessas c i r c u n s t â n c i a s recebeu cartas de seu genro Moses e de sua ca v i u uma casa administrada c o m tamanha generosidade. "Que o T o -

filha Esther aconselhando-a a casar-se c o m o v i ú v o H i r s c h L e v y , " u m do-Poderoso lhe p e r m i t a c o n t i n u a r assim a t é seu c e n t e n á r i o — c o m


j u d e u ilustre, culto, m u i t o rico e chefe de uma bela f a m í l i a " . G l i k l aca- s a ú d e e paz, c o m a b a s t a n ç a e honra."'
tou o conselho, fez u m acordo vantajoso para seu p r ó p r i o dote e para o O l i v r o n ã o termina a í , mas, agora que aceita seu lugar à mesa de

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Esther e os cuidados que a fdha lhe dispensa, G l i k l oferece novos ins- la para desviar os malakhe habhalah.)"' Contudo, tanto essa hoste de
trumentos aos filhos que u m dia l e r ã o suas palavras. Descobriu que sua d e m ó n i o s quanto o novo A n t i - A d ã o de B e l i a l nada eram e m face do
vida pessoal pode repousar e m lugar seguro. poder d i v i n o . G l i k l se a t é m à c o n v i c ç ã o mais antiga de que "tudo pro-
cede do Senhor" e costuma afirmar que, "se à s vezes somos punidos, é
por causa de nossas malfeitorias". H a i m H a m e l "faltou-me por causa
A t é agora encontramos e m sua autobiografia poucas r e f e r ê n c i a s de meus pecados"; " c o m o se diz, por causa do m a u , o santo é tirado".
ao pecado, todas m i n i m i z a d a s pela inquietante procura de riqueza e " M e u s pecados s ã o u m peso m u i t o grande para carregar [...] Todo dia,
honra mundana. H i s t ó r i a s sobre p á s s a r o s e enterros de bezerro p o d e m toda hora, todo m i n u t o — cheio de pecados."'"
expor u m a v i s ã o pessoal da solidariedade humana e da maneira c o m o Quais eram os pecados de G l i k l bas Judah L e i b ? L e o n M o d e n a
osjovens se relacionam c o m os velhos, mas que c o n t r i b u i ç ã o trazem à confessou abertamente pelo menos u m pecado e s p e c í f i c o — j o g a r .
sensibilidade religiosa? E quanto ao t a l m u d i s t a piedoso? A p a r e n t e - G l i k l é menos direta, p o r é m ao longo da Vida o que transparece é uma
mente seu final feliz depende tanto da s o l u ç ã o humana dos enigmas co- i m p a c i ê n c i a c o m o a de J ó quando discute c o m os três amigos: lamenta
m o da c o n f i a n ç a na ajuda divina. amargamente o que lhe aconteceu, m a l d i z o p r ó p r i o destino. N a ver-
Todavia, G l i k l aplica a sua v i d a m u i t o mais que isso. E m p r i m e i r o dade talvez tenha c o m e ç a d o a identificar-se c o m J ó por m e i o de sua
lugar repetidamente invoca a Deus, n ã o s ó na c o n c l u s ã o de cada l i v r o m u l h e r , que ( c o m o aponta l i a n a Fardes) d á i n í c i o ao processo das
o u e m f ó r m u l a s e x c l a m a t ó r i a s , mas t a m b é m e m breves tkhines e e m l a m e n t a ç õ e s c o m as palavras: " A i n d a perseveras e m tua integridade?
r e m i n i s c ê n c i a s de o r a ç õ e s anteriores. " M e u marido — bendita seja a A m a l d i ç o a a Deus e m o r r e " . ' "
m e m ó r i a do santo — chorava n u m canto da sala e eu no outro, i m p l o - G l i k l diz que sua tristeza c o m a morte de M a t t i e f o i t ã o grande "que
rando a m i s e r i c ó r d i a d i v i n a " , i n f o r m a , quando pensavam que u m a de t e m i haver pecado contra Deus Todo-Poderoso". Sobre suas preocupa-
suas filhas estava gravemente enferma; o p o s i c i o n a m e n t o do casal ç õ e s c o m as v á r i a s g e s t a ç õ e s e as d o e n ç a s de sua prole afirma: "Tive u m
segue à risca o c o m e n t á r i o r a b í n i c o que situa Rebeca e Isaac nos can- f i l h o a cada dois anos e m u i t o me afligi, c o m o sói acontecer quando .se
tos, quando suplicavam a Deus que ela pudesse conceber."' tem uma casa cheia de c r i a n ç a s . Deus as proteja. M u i t a s vezes pensei
E m segundo lugar G l i k l muitas vezes .se refere a si mesma c o m o que n i n g u é m carregava u m fardo t ã o pesado quanto o meu n e m se ator-
pecadora e e m geral usa seus pecados segundo a t r a d i ç ã o j u d a i c a para mentava tanto quanto eu por causa dos filhos. M a s , tola que sou, n ã o me
j u s t i f i c a r os piores golpes d o Senhor. N a é p o c a essa e x p l i c a ç ã o do dava conta de m i n h a felicidade quando 'meus filhos eram c o m o v e r g ó n -
sofrimento humano era contestada pelo dualismo da Cabala l u r i â n i c a , teas de o l i v e i r a s ao redor de m i n h a m e s a ' " . (Essas " v e r g ô n t e a s de
que a t r i b u í a o m a l existente no m u n d o à a ç ã o de u m eterno poder de- oliveiras" s a í r a m do Salmo 127.) Os p r e j u í z o s nos n e g ó c i o s produzem
m o n í a c o — o " A n t i - A d ã o de B e l i a l " — e n ã o s ó aos pecados da h u - a mesma r e a ç ã o , cujo excesso a preocupa: " F i q u e i m u i t o doente por
manidade."" G l i k l teve acesso à Cabala apenas na v e r s ã o d i l u í d a de causa de m i n h a p r e o c u p a ç ã o " , escreve a p r o p ó s i t o de u m ano e m que
H o r o w i t z , Yesh Nochalin, mas certamente leu sobre possessos e m seu perdeu 11 m i l t á l e r e s , "mas perante o m u n d o e m geral a t r i b u í m i n h a
Mayse Bukh e sobre d e m ó n i o s e m seu Brantshpigl, para n ã o falar no c o n d i ç ã o à gravidez. Sem embargo u m fogo ardia dentro de m i m " . Tan-
que a m ã e e a a v ó teriam lhe contado. E m sua autobiografia adverte os tos pesares e l a m e n t a ç õ e s desgastavam n ã o s ó a s a ú d e e a vida, c o m o
f i l h o s de que o ato de dar esmolas e m v i d a p r o t e g e r á a a l m a na t a m b é m a d e v o ç ã o : " N ã o podemos servir b e m ao A l t í s s i m o c o m u m cor-
m o r t e c o n t r a a " l e g i ã o de anjos ( o u d e m ó n i o s ) da d e s t r u i ç ã o , os po arrasado pela dor. A santa Shekhinah n ã o pode habitar u m corpo mor-
malakhe habhalah — Deus tal n ã o permita — que e s t ã o no ar entre o tificado". (O Talmude define a Shekhinah como a p r e s e n ç a ou morada
c é u e a terra". ( N ã o menciona os amuletos usados para afastar os maus de Deus na c r i a ç ã o . O folclore j u d a i c o e a v i s ã o c a b a l í s t i c a a personifi-
e s p í r i t o s , p o r é m sua frase " D e u s tal n ã o p e r m i t a " , r e p e t i d a v á r i a s cam e m uma m u l h e r que procura unir-se ao Senhor na c o n d i ç ã o de n o i -
vezes, constitui ao mesmo tempo uma s ú p l i c a ao Senhor e uma f ó r m u - va. A q u i G l i k l vai a l é m e imagina a Shekhinah habitando o i n d i v í d u o . ) '

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sumos o u a l u s õ e s a muitas outras. À s vezes trata-se de variantes de
G l i k l sabe que n ã o é igual aos outros. N a j u v e n t u d e sua m ã e e sua
h i s t ó r i a s existentes e m c o l e t â n e a s publicadas e m Vayber Taytsh: Mayse
a v ó M a t t i e " à s vezes passavam o dia inteiro apenas c o m uma c ô d e a de
Bukh, Brantshpigl e outras.'"' Se Alexandre da M a c e d ó n i a passou a i n -
p ã o . P o r é m , n ã o se lamentavam e acreditavam que Deus — louvado se-
tegrar seu r e p e r t ó r i o g r a ç a s a fontes jucaicas medievais que r e m o n -
j a — n ã o as abandonaria, e hoje m i n h a m ã e possui a mesma c r e n ç a . Eu
tavam ao Talmude,'"^ sobre S ó l o n e Creso ela deve ter lido e m alguma
gostaria de ser assim; Deus n ã o concede os mesmos dons a t o d o s " . E
c o l e t â n e a derivada de H e r ó d o t o — ou e m a l e m ã o , ou traduzida para o
H a i m , embora chorasse a morte de u m t i l h o tanto quanto ela, tinha mais
i í d i c h e . ' " ' E, c o m o v i m o s , a h i s t ó r i a de Carlos M a g n o e a i m p e r a t r i z
f o r ç a s e d e s p r e n d i m e n t o para suportar perdas de r i q u e z a e honra:
Irene de C o n s t a n t i n o p l a quase certamente s a í r a m de " l i v r o s e m ale-
" N u n c a buscou uma p o s i ç ã o de l i d e r a n ç a na comunidade; ao c o n t r á r i o , - 71 18(1
recusou-a, rindo da i m p o r t â n c i a que as pessoas a t r i b u í a m a tais coisas. mao .
[Valorizava mais a prece e a d e v o ç ã o . ] [...] Quando e m m i n h a humana > N ã o era difícil encontrar esses "livros e m a l e m ã o " , pois os cris-
fraqueza eu n ã o me continha e tornava-me impaciente, ele ria de m i m t ã o s c o n t e m p o r â n e o s de G l i k l se interessavam consideravelmente por
e dizia: ' V o c ê é tola. C o n f i o e m Deus e n ã o d o u i m p o r t â n c i a à s palavras h i s t ó r i a s antigas e recentes e por estilos narrativos. Durante t o d o o
das p e s s o a s ' " . ' ™ E m vida H a i m zombava da esposa, mas sobretudo a s é c u l o x v i i circularam e m H a m b u r g o e d i ç õ e s a l e m ã s do Roman de Re-
confortava ("Apenas conforte m i n h a G l i k l i k h e n " , pediu à .sogra antes nart, para c i t a r apenas u m e x e m p l o de h i s t ó r i a t r a d i c i o n a l . E n t r e -
de m o r r e r ) ; ' " agora que j á n ã o o tinha a seu lado, a q u e m ela d i r i g i r i a mentes, Eberhard Werner Happel, escritor e editor de j o r n a l e m H a m -
suas queixas e de quem receberia o r i e n t a ç ã o ? burgo, contava sob forma de f i c ç ã o fatos recentes e curiosos ocorridos
A s s i m , sua autobiografia n ã o é s ó uma h i s t ó r i a de vida, u m c o n - em todo o planeta e, u t i l i z a n d o a mais atualizada literatura de viagem,
j u n t o de ensinamentos morais para os filhos, uma fuga da melancolia. p u b l i c o u Der insulanische Mandorell [ O ilhéu M a n d o r e l l ] (1682), que
É t a m b é m u m a l a m e n t a ç ã o d i r i g i d a a Deus, que e m certo sentido v e m conta as aventuras de u m corajoso h e r ó i desde as ilhas das í n d i a s O r i e n -
a ser seu leitor; e x p õ e mais uma vez seus agravos, ao mesmo tempo em tais a t é o Caribe.'"' Quando G l i k l chegou a M e t z , as Fables de L a Fon-
que investiga o significado do sofrimento e procura encontrar u m m o - taine j á h a v i a m passado por v á r i a s e d i ç õ e s . Charles Perrauh c o m e ç a r a
do de aceitar os d e s í g n i o s divinos. Ora se reporta à simples recompen- a p u b l i c a r os contos de M a m ã e Gansa e a condessa d ' A u l n o y estava
sa m o r a l que Elifaz garante a J ó ( J ó , 4-5): " A s s i m Deus v e l a r á pelo j u s - l a n ç a n d o seus contos de fadas.'"" E m suma, G l i k l apreciava n ã o s ó
to e o p r o t e g e r á de todo o mal".'"" Ora se reporta à r e s o l u ç ã o final de J ó h i s t ó r i a s judaicas e "arcaicas", mas t a m b é m poemas religiosos e textos
— que n ã o conseguimos c o m p r e e n d e r os misteriosos c a m i n h o s de sobre assuntos do s é c u l o x v i i .
Deus, mas apenas afirmar e temer seu poder. O u , nas palavras de G l i k l : C o m o todo b o m contador de h i s t ó r i a s , G l i k l c o n s t r ó i as narrativas
" O mau e seus filhos v i v e m na prosperidade e na riqueza, enquanto as segundo seus p r ó p r i o s gostos e necessidades. N a h i s t ó r i a do talmudista
pessoas correias e tementes a Deus passam necessidade c o m sua prole. piedoso n ã o s ó acrescentou o e p i s ó d i o da princesa selvagem e as provas
E, assim, habituamo-nos a nos perguntar: c o m o é p o s s í v e l que o Todo- do enigma, c o m o ainda e l i m i n o u a abertura c a r a c t e r í s d c a das v e r s õ e s
Poderoso seja u m j u i z justo? C r e i o que se trata de vaidade, pois nos s ã o judaicas. Nestas ú l t i m a s o relato estava ligado ao segundo mandamen-
i n c o n c e b í v e i s e i n s o n d á v e i s os feitos do A l t í s s i m o — louvado seja".'"' to, que p r o í b e tomar o santo nome do Senhor e m v ã o : o m a r i d o se en-
Nessa luta pela p a c i ê n c i a e pela c o m p r e e n s ã o — luta que nunca d i v i d o u e f o i preso porque seguiu o conselho que o pai lhe dera em seu
se vence inteiramente — a arte de contar h i s t ó r i a s f o i sua arma mais efi- leito de morte — nunca jurar.'"'" J á o estudioso h e r ó i de G l i k l se v ê e m
caz. Permitiu-lhe "discutir c o m Deus", segundo u m a t r a d i ç ã o j u d a i c a apuros quando as d í v i d a s o levam à barra do tribunal e os amigos lhe
que por meio dos rabinos remonta a J a c ó ( G é n e s i s , 28).'"" Proporcio- negam f i a n ç a — s i t u a ç ã o difícil que lembra o sentimento de abandono
nou-lhe o d i á l o g o no centro da espiritualidade e os golpes e reviravoltas experimentado por G l i k l e m seus primeiros meses de viuvez e a m á g o a
surpreendentes que constituem a f o r ç a da narrativa. que u m comerciante de H a m b u r g o lhe causou ao recusar-se a honrar as
Nos sete livros de G l i k l h á doze h i s t ó r i a s completas e v á r i o s re- letras de c â m b i o de seus filhos órfãos.'"" Quanto à h i s t ó r i a do p a i - p á s -

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saro e seus filhotes, aves falantes figuram nas f á b u l a s judaicas, e o re- s a c i á v e l e m seu desejo de riqueza e que na morte uma pequena sepul-
lato baseia-se e m tipos de h i s t ó r i a s existentes; no entanto, as persona- tura h á de ser suficiente.'"^
gens e as reviravoltas do enredo possivelmente se devem e m grande A s h i s t ó r i a s sobre a a c e i t a ç ã o do sofrimento pelo amor a Deus s ã o
parte à i m a g i n a ç ã o de G l i k l . ' " extremas e situadas para testar suas p r ó p r i a s r e a ç õ e s . U m desses testes
A o entremear as h i s t ó r i a s c o m os e p i s ó d i o s de sua v i d a ela pro- ocorre a p ó s o seguinte relato: durante uma v i a g e m a H a n ô v e r , sua filha
cura intensificar u m estado de e s p í r i t o , despertar m a i o r interesse ("Eis Z i p p o r a h apresentou sintomas de peste; a Gemeinde local confiou-a
aqui uma h i s t ó r i a a g r a d á v e l " , " H i r bey izt ayn hipsh mayse", anuncia aos cuidados de dois velhos judeus poloneses e e m seguida a mandou
antes de c o m e ç a r uma narrativa que se revela bastante t r i s t e ) ' e tecer viver c o m uns camponeses c r i s t ã o s . Esse é o e p i s ó d i o que levou G l i k l
u m c o m e n t á r i o moral e religioso sobre o que acabou de acontecer o u e H a i m a chorar nos cantos da sala, i m p l o r a n d o a m i s e r i c ó r d i a divina.
ainda e s t á para acontecer. A s h i s t ó r i a s se e n c a i x a m grosso m o d o e m Z i p p o r a h v o l t o u sadia e contente, g r a ç a s a Deus, e G l i k l passa a falar da
duas categorias: as que m o s t r a m p o r que se devem superar as preo- queda de Irene, i m p e r a t r i z do O r i e n t e . D e p o i s que C a r l o s M a g n o a
c u p a ç õ e s c o m riqueza e orgulho, e as que mostram c o m o se deve su- pediu e m casamento para assim u n i r os respectivos i m p é r i o s , Irene f o i
portar o sofrimento. N a verdade s ã o à s vezes confusas, t ã o cheias de destronada pelo perverso N i c é f o r o , a quem teve de revelar a localiza-
surpresas e reviravoltas que suscitam tantas perguntas quantas as que ç ã o de todo o seu tesouro. De posse da coroa, N i c é f o r o t r a i ç o e i r a m e n t e
respondem. E o simples fato de c o n t á - l a s n ã o basta para resolver todo a baniu de Constantinopla para a ilha de Lesbos, onde ela morreu u m
o conflito sobre o assunto que .se estende pelo relato subsequente da v i - ano mais tarde " e m m e i o a grande pesar". "Ver o que aconteceu a u m a
da de G l i k l . i m p e r a t r i z t ã o poderosa e c o m que p a c i ê n c i a ela suportou t u d o isso
Por exemplo, no i n í c i o do L i v r o 1 h á uma h i s t ó r i a sobre a visita de e q u i v a l e a aprender que todos d e v e m aceitar pacientemente os i n -
Alexandre, o Grande, a uns s á b i o s de uma terra distante que v i v i a m nus, f o r t ú n i o s enviados por Deus, louvado seja seu n o m e . " ' "
c o m absoluta s i m p l i c i d a d e e sem riqueza n e m inveja. N ã o podendo G l i k l baseou-se numa v e r s ã o de uma c r ó n i c a bizantina elaborada
a m e a ç á - l o s de d e s t r u i ç ã o e t a m p o u c o seduzi-los c o m presentes, p o r T e ó f a n e s no c o m e ç o do s é c u l o ix,'*' da qual e l i m i n o u algumas re-
Alexandre lhes dis.se orgulhosamente: " P e ç a m - m e o que quiserem e eu f e r ê n c i a s excessivamente c r i s t ã s ( c o m o a t r a i ç ã o de Nosso Senhor por
lhes darei". Eles responderam e m u n í s s o n o : "Senhor meu rei, d ê - n o s a Judas e o interesse de Irene pelos conventos de freiras) e toda m e n ç ã o
v i d a eterna". "Se pudesse a t e n d ê - l o s , eu a daria a m i m m e s m o " , re- aos antigos m a l e f í c i o s da i m p e r a t r i z ( c o m o mandar cegar seu fílho
p l i c o u o soberano. E n t ã o os s á b i o s lhe p e d i r a m que refletisse sobre Constantino v i na disputa pelo poder i m p e r i a l ) . A Irene de T e ó f a n e s
todos os seus e s f o r ç o s para destruir tantos povos e p a í s e s e sobre o breve atribui sua r u í n a aos p r ó p r i o s pecados; a de G l i k l t a m b é m , mas cita J ó :
tempo que lhe restava para usufruir suas v i t ó r i a s . D e que lhe servira " O Senhor d á , o Senhor tira, louvado seja o nome do Senhor".'"" M e s -
tudo isso? m o c o m essas a l t e r a ç õ e s a i m p e r a t r i z distante .se constitui n u m estra-
" O rei n ã o soube o que responder, p o r é m lhes disse: ' A s s i m en- nho m o d e l o para G l i k l ("Eu teria dado metade de m i n h a vida pela s a ú d e
contrei o m u n d o e assim hei de d e i x á - l o . O c o r a ç ã o de u m monarca n ã o de meus filhos", diz a m ã e j u d i a e m Hamburgo),'"" e a p a c i ê n c i a de Irene
pode passar sem o m o v i m e n t o da g u e r r a ' . " ' " n ã o silencia suas subsequentes l a m e n t a ç õ e s .
A l e x a n d r e n ã o se transforma inteiramente e m f u n ç ã o dos argu- A i n d a mais desconcertante é a h i s t ó r i a que se segue à morte da pe-
mentos dos s á b i o s . E o c o r a ç ã o de G l i k l t a m p o u c o se t r a n s f o r m a , quena M a t t i e , anos depois da r e c u p e r a ç ã o de Z i p p o r a h . G l i k l relembra
p o r é m continua partido. E m livros posteriores ela se m a r t i r i z a c o m per- sua imensa dor, c o m o v i m o s , e aplica a si mesma as palavras do Salmo
das materiais e conta h i s t ó r i a s que c o m p r o v a m a transitoriedade da 30, 13: "Finalmente me coube esquecer m i n h a amada filha, c o m o é o
r i q u e z a e do poder. M o s t r a S ó l o n d i z e n d o ao o r g u l h o s o Creso que decreto do Senhor, ' f u i esquecido c o m o u m m o r t o ' " . A h i s t ó r i a do
n i n g u é m deve se gabar da p r ó p r i a sorte antes de sua v i d a chegar ao fim; s á b i o Johanan ben Nappaha, do s é c u l o i i i , fantasiada por G l i k l c o m
mostra Alexandre da M a c e d ó n i a aprendendo que o olho humano é i n - base numa fonte que remonta ao Talmude,'"" demonstra c o m o u m de-

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voto aceita a perda. Johanan teve dez fdhos, dos quais nove m o r r e r a m , mas n ã o falha": E m u n i s e A b a d o n perderam a v i d a e o rei enfrentou
restando-lhe apenas u m m e n i n o de t r ê s anos ( G H k l lhe atribui mais ou grandes i n f o r t ú n i o s . "Se o soberano n ã o tivesse u m c o r a ç ã o t ã o dis-
menos a idade de sua M a t t i e ) . U m dia o m e n i n o curioso se a p r o x i m o u posto ao arrependimento e se Deus n ã o o tivesse v i g i a d o tanto, q u e m
do imenso c a l d e i r ã o que estava no fogo e caiu na á g u a fervente. O pai sabe que outras d e s g r a ç a s lhe t e r i a m ocorrido? [...] N ó s , humanos, i g -
tentou a g a r r á - l o , mas t u d o o que conseguiu resgatar f o i u m dedo da noramos quando Deus p u n i r á o u quando nos fará u m bem. Ele mata e
m ã o . Reb Johanan bateu a c a b e ç a na parede e gritou para seus d i s c í p u - Ele cura, louvado seja seu nome."^'"
los: " C h o r e m m i n h a triste sina". " E a partir de e n t ã o passou a levar o os- Jedidias e suas mulheres e filhos certamente p r o p o r c i o n a m uma
so da c r i a n ç a pendurado no p e s c o ç o . Sempre que recebia a visita de u m t r a n s i ç ã o ominosa para o infeliz casamento de G l i k l bas Judah L e i b .
s á b i o , tranqiiilamente lhe mostrava esse ossinho — c o m o se esdvesse E m duas outras o c a s i õ e s G l i k l usa o r e i D a v i c o m o m o d e l o : quando
lhe mostrando o p r ó p r i o fdho."""" G l i k l lembra M a t t i e e m seu l i v r o c o n - enaltece a serenidade c o m que ele aceitou a morte de seu p r i m e i r o filho
tra o decreto de Deus, c o m o Reb Johanan lembrava o f i l h o por m e i o do c o m B e t s a b é i a (2 Samuel, 12, 19-23) e quando compara o p e r d ã o que
osso. E m b o r a admita que c h o r o u demais e insista que se deve aceitar a concedeu a seu f i l h o L e i b c o m o p e r d ã o que D a v i c o n c e d e u a A b -
vontade de Deus, sua h i s t ó r i a novamente sugere que a d i s c u s s ã o c o m s a l ã o . ™ T o d a v i a , os t u m u l t o s que e n v o l v e r a m o " r e i J e d i d i a s " s ã o
Ele n ã o t e r m i n o u . m u i t o mais v i o l e n t o s e transgressivos, conquanto a h i s t ó r i a t e r m i n e

M e u ú l t i m o exemplo, tirado do L i v r o 6, é o mais c o m p l e x o . U m a c o m a p a c í f i c a a s c e n s ã o de Friedlieb.""' O que os filhos de G l i k l teriam

h i s t ó r i a de p o l i g a m i a , incesto e v i o l ê n c i a elaborada c o m base no rela- pensado do desejo f o r m u l a d o por ela: " O x a l á a c o n t e ç a c o m i g o o que

to b í b l i c o de D a v i e A b s a l ã o (2 Samuel, 13-18) situa-se no m e i o da des- aconteceu c o m esse r e i piedoso"? C o m o o L i v r o de J ó , sua autobiogra-

c r i ç ã o das n e g o c i a ç õ e s do noivado de G l i k l c o m H i r s c h Levy. E l a diz fia e s t á cheia de " t e n s ã o irresoluta",""" e suspeitamos que ela mesma

que nessa mayse visa a u m d u p l o o b j e t i v o , que "certamente é ver- queria c o m suas h i s t ó r i a s levar o leitor a quesdonar, f a z ê - l o ir a l é m de

dadeiro e na realidade aconteceu": m o s t r a r á que n ã o é a ú n i c a pessoa seu breve c o m e n t á r i o e maravilhar-se e discudr.

golpeada pelos i n f o r t ú n i o s e t a m b é m que Deus ajuda os sofredores. Se tinha realmente essa i n t e n ç ã o , estaria usando as h i s t ó r i a s c o m o
" O x a l á a c o n t e ç a c o m i g o o que aconteceu c o m esse rei piedoso."""' os rabinos usavam exemplos e p a r á b o l a s — o u meshalim, conforme os
Era u m a vez u m r e i chamado Jedidias ( A m i g o de Deus),^"" que judeus as c h a m a v a m — p a r a ilustrar seus ensinamentos e sua p r e g a ç ã o .
v i v i a nas A r á b i a s c o m suas muitas esposas e filhos. Seu favorito entre E m b o r a poucos rabinos se opusessem a essa mescla de sagrado c o m
esses filhos era A b a d o n ( D e s t r u i ç ã o ) , a q u e m p e r m i d a agir c o m o b e m profano e temessem mesmo que o mashal induzisse os ou vintes a ideias
entendesse, "e disso r e s u l t o u grande m a l " . O u t r o f i l h o , E m u n i s , e r r ó n e a s , na é p o c a de G l i k l a m a i o r i a defendia o e x e m p l o c o m o u m re-
apaixonou-se perdidamente por sua bela i r m ã , Danila; por m e i o de uma curso u d l i z a d o desde os t e m p o s de S a l o m ã o . " " ' ( A q u i o r e p e r t ó r i o
t r a p a ç a fez o rei m a n d á - l a a seus aposentos e a possuiu. A o saber do es- r a b í n i c o , abrangendo inclusive as lendas, opunha-se à r e c o m e n d a ç ã o
c â n d a l o , A b a d o n j u r o u v i n g a n ç a , ainda mais i n d i g n a d o porque o pai de luteranos e c a t ó l i c o s c o n t e m p o r â n e o s : p a r t i r de fatos reais o u
n ã o p u n i u E m u n i s ; a p ó s uma c a ç a d a mandou matar o i r m ã o . Furioso h i s t ó r i c o s para elaborar as p a r á b o l a s e "pinturas m o r a i s " usadas nos
c o m A b a d o n , o rei baniu-o e deserdou-o; e n t ã o o f i l h o favorito s i d o u a sermões.)""* Sentada na g a l e r i a das m u l h e r e s , G l i k l p o r certo c o m -
capital, capturou-a e v i o l e n t o u as esposas do pai. Seguiu-se u m a bata- preendia os s e r m õ e s dos r a b i n o s , p r o f e r i d o s e m i í d i c h e e hebraico.
lha na qual Jedidias admitiu seus pecados e pediu a seus homens que Deve ter se inspirado neles para fazer uso m o r a l de h i s t ó r i a s c o m o a de
poupassem a v i d a de A b a d o n . "Confiantes e m Deus e e m sua causa j u s - Jedidias, que "sabia ser verdadeira", e daquelas sobre A l e x a n d r e , o
ta", os soldados do monarca venceram a luta e mataram A b a d o n . Je- M a g n o , que " n ã o escreveu c o m o sendo verdadeira[s]" e que p o d i a m
didias retornou a seu trono, perdoou todos os i n i m i g o s e, antes de mor- ser " f á b u l a [ s ] pagã[s]".""''
rer, entregou o poder a seu filho Friedlieb (Paz A m a d a ) . Isso nos remete à p o s i ç ã o da voz religiosa e m sua autobiografia.
A o c o n c l u i r o relato, G l i k l comenta que "o casdgo d i v i n o tarda. N ã o se trata de u m a voz r a b í n i c a , e mais de u m a vez ela declara que n ã o

60 61
tem tal p r e t e n s ã o . ( N o m e i o da longa d e s c r i ç ã o de u m a disputa entre vado seja — n ã o h á de nos abandonar, nem toda Israel, mas e m breve
dois doutos rabinos por u m cargo e m M e t z comenta c o m certa ironia: nos t r a r á consolo e nos m a n d a r á nosso Messias, nosso j u s t o redentor,
" N ã o cabe a u m a m u l b e r s i m p l e s escrever entre grandes m o n t a - l o g o , e m nosso t e m p o " . G l i k l ainda descreve para os filhos a alegria
nhas".)^"' Talvez recebesse alguma i n s p i r a ç ã o áãfirzogerin de sua si- c o m que os judeus de H a m b u r g o receberam a n o t í c i a de que Sabbatai
nagoga e m A l t o n a , a mulher que durante o culto conduzia as preces e Z e v i fora p r o c l a m a d o Messias e m 1665, quando M a t d e nasceu. Os
os c â n t i c o s na galeria f e m i n i n a ; talvez a t é tenha sido firzogerin em judeus portugueses e a l e m ã e s t a m b é m d a n ç a r a m e exultaram, e puse-
M e t z durante a l g u m tempo. N o entanto, sua voz n ã o é a voz c o m u m do ram-se a fazer p e n i t ê n c i a , a rezar, a desfazer-se de seus bens a fim de
Vayber Taytsh: os tkhines dos s é c u l o s x v i i e x v n i chegaram a i m a g i n a r
preparar-se para a r e d e n ç ã o . O sogro de G l i k l m a n d o u para H a m b u r g o
as mulheres estudando a T o r á no P a r a í s o , mas na verdade buscavam
fardos de l i n h o e barris de alimentos secos, pretendendo t r a n s p o r t á - l o s
proporcionar consolo para o sofrimento e n ã o suscitar q u e s t õ e s sobre
de barco para a Terra Santa, e deixou-os e m casa da nora mesmo depois
ele."'' Tampouco o a d m i r á v e l l i v r o de moralidade escrito e m i í d i c h e por
de saber que Sabbatai Z e v i se convertera ao i s l a m i s m o . O Messias n ã o
Rebecca bas M e i r T i k t i n e r no s é c u l o x v i constituiu u m m o d e l o sufi-
viera (durante dois o u t r ê s anos o povo de Israel esperou inufilmente),
ciente para G h k l , pois faltava-lhe u m a h i s t ó r i a de v i d a pessoal.''" E m
e abriram-se os fardos e os barris.""
sua "melancoHa", e m sua i n q u i e t a ç ã o G l i k l usou as c o l e t â n e a s e m Vay-
ber Taytsh para diferentes fms, situando as h i s t ó r i a s , as mayse, logo de- Revendo esses fatos mais de duas d é c a d a s depois, G l i k l c o n c l u i

pois das diversas e espinhosas l e m b r a n ç a s de sua v i d a . A p r á d c a j u - que a v i n d a do Messias fora adiada possivelmente por causa dos peca-
daica oral — "que me faz lembrar u m a h i s t ó r i a " — eleva-se aqui a uma dos humanos, "da inveja e do ó d i o infundado que existem entre n ó s " . " '
arte elaborada, que n ã o traz u m a c o n c l u s ã o serena. C o m essa estrutura F o i , talvez, por ter sofrido essa d e c e p ç ã o quando era uma j o v e m m ã e de
Uterária i n c o m u m " " G l i k l bas Judah L e i b escreveu o l i v r o de moraU- vinte anos que ela se dedicou tanto à s q u e s t õ e s do pecado e do sofri-
dade, i n v e s t i g a ç ã o espiritual e r e f l e x ã o religiosa que, segundo os rabi- m e n t o e c o m f r e q u ê n c i a considerou sua v i d a e m termos de perda: o
nos, ela n ã o poderia escrever, p o r faltarem-lhe os conhecimentos e a Messias perdido, a M a t t i e perdida, o H a i m perdido. E, quando lemos
posição necessários. sua h i s t ó r i a do t a l m u d i s t a piedoso governando a i l h a p a r a d i s í a c a de
judeus e conversos ao j u d a í s m o , n ã o percebemos u m a e x p r e s s ã o abafa-
D i f i c i l m e n t e suas d i s c u s s õ e s c o m o Senhor pareceriam perigosas
da de sua e s p e r a n ç a j u v e n i l ?
a uma é p o c a que reagia à a u d á c i a de Baruch/Benedict de Spinoza e a
d e í s t a s c o m o Juan/Daniel de Prado, o qual durante a j u v e n t u d e de G l i k l N o final do s é t i m o l i v r o G l i k l retoma acontecimentos recentes,
passara u m ano entre os sefardins de Hamburgo.""* Suas perguntas so- que dessa vez encerram perigosos p r e s s á g i o s . Segura na casa de Esther,
bre o sofrimento sempre se m a n t i v e r a m dentro de u m contexto j u d a i c o narra u m a t r a g é d i a que ocorreu na sinagoga de M e t z durante a cele-
e b í b l i c o , e d i r i g i a m - s e a u m Deus que a escutava. M a s n ã o subes- b r a ç ã o de u m S a b á na primavera de 1715. Ouviu-se u m grande e m i s -
t i m e m o s a amplitude do que o Todo-Poderoso teve de ouvir. Sobre as terioso estrondo, e, pensando que a sinagoga estivesse para desabar, as
ú l t i m a s horas de H a i m H a m e l ela conta que lhe dissera: " ' M e u c o r a ç ã o , mulheres da galeria superior puseram-se a correr, tomadas pelo p â n i -
posso t o c á - l o ? Pois esfive i m p u r a ' . E ele respondeu: 'Deus tal n ã o per- co; na c o n f u s ã o v á r i a s delas f o r a m pisoteadas e algumas chegaram a
mita, m i n h a c r i a n ç a . N ã o falta m u i t o para v o c ê tomar seu b a n h o ' . Infe- morrer. G l i k l , que se encontrava na galeria inferior, caiu quando tenta-
lizmente, p o r é m , ele n ã o viveu a t é esse m o m e n t o " . Sua autobiografia va sair e temeu por sua filha Esther, que estava g r á v i d a e logo depois
permifiu-lhe mostrar tanto o r i g o r c o m que H a i m se ateve à l e i judaica, sofreu u m aborto. F i c o u p a r t i c u l a r m e n t e arrasada c o m a m o r t e das
quanto o p r e ç o que lhe custaram as i m p o s i ç õ e s da pureza r i t u a l . " " jovens inocentes. C o m o u m a coisa dessas p ô d e acontecer? D i r i g i n d o -
se à M ã e do Velho Testamento, G l i k l pondera o estranho r u í d o , que al-
guns o u v i r a m e outros n ã o , e a estranha v i s ã o de seis mulheres altas e
Sua a u t o b i o g r a f i a p e r m i t i u - l h e i g u a l m e n t e falar da e s p e r a n ç a veladas que alguns tiveram na galeria superior pouco antes de instalar-
m e s s i â n i c a . O p r i m e i r o l i v r o t e r m i n a c o m uma o r a ç ã o : "Deus — l o u - se o pânico."'"

62 63
C o n c l u i que tal castigo se deveu ao que acontecera na sinagoga CIDADES DE GLIKL
durante a festa de Shavuot |que celebra a r e v e l a ç ã o do D e c á l o g o no
S i n a i ] no o u t o n o anterior. A s mulheres c o m e ç a r a m a brigar entre s i ,
puxando os l e n ç o s que lhes c o b r i a m a c a b e ç a , e os homens t a m b é m se
puseram a lutar uns c o m os outros diante dos Pergaminhos da L e i , en-
quanto o rabino i n u t i l m e n t e proferia a m e a ç a s de e x c o m u n h ã o . " " G l i k l
n ã o conta que sua enteada Hendele/Anne L e v y estava entre os culpa-
dos.""" Tampouco registra os outros transtornos de seus ú l t i m o s anos: as
f a l ê n c i a s e os processos de Samuel, f d h o de H i r s c h Levy, e Reuben, i r -
m ã o de Moses Schwabe,""' e, o mais t e r r í v e l , a c o n v e r s ã o de seu neto
Moses, que v i v i a e m Londres, à Igreja da Inglaterra e m 1" de j a n e i r o de
1723, poucos anos depois que o pai dele, M o r d e c a i , v o l t o u da í n d i a
" c o m imensa fortuna". Pode ter sido difícil para sua fdha Freudchen
p o u p á - l a de tal golpe, pois numa p u b l i c a ç ã o inglesa Moses e x p l i c o u
por que acreditava que o Messias j á tinha v i n d o e descreveu os e s f o r ç o s
de seus pais horrorizados para f a z ê - l o mudar de ideia.""
A ú l d m a a n o t a ç ã o do s é t i m o l i v r o data de 1719. Refere-se à v i s ã o
que uma m u l h e r teve, provavelmente a p r ó p r i a G l i k l , quando lavava os
pratos no r i o M o s e l a . " ' É noite, mas estranhamente o c é u se abre e fica
c l a r o c o m o d i a ; centelhas (centelhas c a b a l í s t i c a s ? ) c r u z a m o f i r m a -
m e n t o e de s ú b i t o t u d o escurece. " Q u e i r a Deus que isso seja para o
bem", diz G l i k l bas Judah L e i b , e encerra sua autobiografia.

64 o híiirii) jiiilcii dc Metz eni 1696


FAIXAS COM
MOTIVOS DA TORÁ
BORDADAS PELAS
MULHERES PARA
A CIRCUNCISÃO
DOS FILHOS

Faixa bordada para Joseph ben Ari Leib, 1677

Faixa bordada para Mordecai Halherstadt, 1711


y^.i, K''--' •>-*''^ -"Tj'» .•^•>r .'••^X ,.,<5. /.»,• .j^,--,; ^jf-

- V ^ " " ' - í l / y - * - - * ' " « •"^'-'J •^"^••^viil* /'Ji J-<;'tu ^ y j í . ' /•«. y , ^ .

Criando espaço:
um porla-eru\ a
forma da cstrela-dc-davi,
contendo pão ázimo,
colocado na sinagoga
para celehrar-se o Sabá Obituário de Glikl bas .hidah Leih. 1724
{Alsácia. 1770).
Na Hamburgo seiscentista
o pão eruvin talvez lives.se
uma forma senwlhante

ESCRITA JUDAICA

^ eu^ —
,ytí^x^ C^-^^^
. J?- / ^ « ^ ^i2^t^—

Assinaturas em francês e hebraico de Esther Goldschmidt.


Moses Schwabe e Anne (Hendele), respectivamente fdha.
Assinaturas de Cerf (Hirsch) Levy em francês e hebraici genro e neta de Glikl: contrato nupcial de 1734
Parágrafos iniciais da autobiografia de Glikl bas Jndali Leib,
cópia feita por sen filho Moses Hamel
Marie de l 'Incarnation
MUNDOS NOVOS

N o v e r ã o de 1654 uma ursulina que se encontrava e m Quebec man-


dou para seu fdho e m Paris uma r e l a ç ã o de sua vida e da conduta do Se-
nhor a seu respeito. Entre muitas outras coisas lembrava-lhe o que acon-
tecera quando t o m o u o v é u na cidade de Tours, uns 23 anos antes. Todos,
exceto seu confessor, insistiram para que n ã o deixasse o filho, que tinha
e n t ã o onze anos apenas. Ó r f ã o de pai, o menino ficaria sozinho no m u n -
do, e Deus a puniria. Ela mesma estava dividida. Sentia seu "amor natu-
r a l " por ele e conhecia suas o b r i g a ç õ e s de m ã e , " p o r é m a voz interior que
me acompanhava por toda parte dizia: 'Apresse-se, chegou a hora; n ã o
é bom para v o c ê continuar no m u n d o ' . Pus meu filho nos b r a ç o s de Deus
c tia sanla V i r g e m e d e i x e i - o ; i g u a l m e n t e d e i x e i m e u v e l h o p a i , que
chorava e se lamentava".'
Uma vez instalada no c o n v e n t o das ursulinas, s u p o r t o u nova
p r o v a ç ã o . Os colegas de seu f i l h o foram à porta do convento, e z o m -
baram do menino, dizendo que ficaria "abandonado e desprezado", e o
incitaram a chamar a m ã e de volta. Fizeram uma imensa algazarra, e a
voz do f i l h o partiu-lhe o c o r a ç ã o : " D e v o l v a m m i n h a m ã e , eu quero m i -
iSfjioiirtriuTh S a b b a t i u : ^iey^ jui fê"}tct.^cJtaurA nha m ã e " . Durante a missa ele enfiou a c a b e ç a por entre a grade da mesa
de c o m u n h ã o e g r i t o u : " E i , d e v o l v a m m i n h a m ã e ! " . I m p l o r o u para v ê -
la diante do p a r l a t ó r i o , e ela recebeu p e r m i s s ã o para i r c o n s o l á - l o e lhe
m
dar pequenos presentes. " E l e saiu andando de costas, os olhos fixos nas
Retrato de Sabbatai Zevi. o suposto Messias janelas do d o r m i t ó r i o , para ver se eu estava lá. A s s i m c a m i n h o u a t é
perder de vista o convento."
H u m i l d e e devotamente ela d i s c u d u o assunto (seu verbo é traiter)
c o m Nosso Senhor, cuja sagrada vontade c u m p r i r a ao abandonar o fi-
lho, e numerosas vezes pediu-lhe c o m p a i x ã o pelo pobre menino. " U m
dia, quando eu subia os degraus da noviciaria, Jesus assegurou-me c o m

65
palavras interiores que tomaria conta de meu f i l h o e consolou-me t ã o sua r e g i ã o . A v i o l ê n c i a das Guerras de R e l i g i ã o ainda estava b e m viva

docemente que toda a minha a f l i ç ã o se converteu e m paz e certeza."" na m e m ó r i a de seus moradores. Os mais antigos l e m b r a v a m que e m

Essa m ã e era M a r i e G u y a r t , c o m o religiosa chamada M a r i e de 1562 os protestantes d o m i n a r a m a cidade durante alguns meses e r e t i -

I T n c a m a t i o n , uma das duas mulheres que fundaram o p r i m e i r o c o n - raram as imagens e as r e l í q u i a s de todas as igrejas. Se agora os

vento de ursulinas e a primeira escola para m o ç a s na A m é r i c a do Norte. huguenotes n ã o passavam de u m pequeno g r u p o que v i v i a e m e m -

Seu fllho era Claude M a r t i n , que e m 1654 estava e m seu 13" ano de b a r a ç o s a legalidade .sob o r e c é m - p r o m u l g a d o É d i t o de Nantes, os fer-

monge na c o n g r e g a ç ã o beneditina de Saint Maur. Ele lhe pedira u m re- vortisos c a t ó l i c o s de Tours sentiam mais que nunca a necessidade de

lato de sua vida interior e da g r a ç a e dos favores que o Senhor lhe con- aprofundar e expandir sua fé. A s Guerras de R e l i g i ã o t a m b é m levaram

cedera. Tendo recebido uma " o r d e m " de seu confessor para atender ao o rei a Tours: de 1585 a 1594, c o m a L i g a C a t ó l i c a controlando Paris, a

pedido do f i l h o , ela lhe enviou os cadernos de Quebec e recomendou- cidade à s margens do L o i r e f o i a capital p r o v i s ó r i a da F r a n ç a . A g o r a o

Ihe que os mantivesse e m segredo. Contudo, e m 1677, c i n c o anos de- sobei ano e seu 1'arlement estavam reinstalados e m Paris, mas u m i m -

pois que a m ã e morreu no C a n a d á , Claude revisou o texto, fez alguns portante grupo de financistas reais ainda v i v i a entre as muralhas a m -

a c r é s c i m o s de sua autoria, i n c o r p o r o u outras a n o t a ç õ e s de M a r i e e pu- |)liadas lie Tours.

b l i c o u o resultado e m Paris sob o t í t u l o de La vie de la vénérable mère M a i i c ( i i i y a i t peitencia a imia família modesta. E m b o r a na Vie
Marie de l 'Incarnation. Claude se vangloriasse ilas r e l a ç õ e s da a v ó materna c o m uma f a m í l i a

H á na h i s t ó r i a de M a r i e Guyart alguns temas que t a m b é m figuram da Toiuaine nobilitada em f u n ç ã o de s e r v i ç o s prestados à Coroa, o pai

na autobiografia de G l i k l bas Judah L e i b — a luta contra a melancolia, o lie M a i i e cia apenas u m "comerciante padeiro", que subiu u m degrau

medo de abandonar a g e r a ç ã o mais j o v e m ou ser por ela abandonada, a na escala social quando conseguiu casar u m a fdha c o m u m mestre-es-

a f i r m a ç ã o do eu perante as i m p o s i ç õ e s da vida — , p o r é m s ã o apresenta- cola, outra c o m u m atarefado carroceiro e M a r i e c o m u m fabricante de

dos de maneira muito diferente c o m instrumentos c a t ó l i c o s . Enquanto seda — m e m b i o da i n d ú s t r i a mais importante da cidade. Quando era

G l i k l apenas sonhou e m mudar-se para a Palestina, M a r i e n ã o m e d i u es- c r i a n ç a , Marie recebeu em sonho a visita e o beijo de Jesus; mais tarde,

f o r ç o s para se transferir para o C a n a d á , distanciando-se da F r a n ç a de na a d o l e s c ê n c i a , suspirava pelo convento b e n e d i t i n o de B e a u m o n t ,

R i c h e l i e u , M a z a r i n , C o l b e r t e .seus reis. Enquanto G l i k l nunca teve onde uma paivnta distante de sua m ã e era abadessa. Na verdade seria

c o n d i ç õ e s de tentar difundir sua fé entre n ã o - j u d e u s , M a r i e passou anos n u n i o i n q ) i ( ) v á v e l que o a n t i g o e nobre c o n v e n t o recebesse c o m o

pregando a verdade cristã a povos cujas terras seus compatriotas t i n h a m ll()vi(,'a a Idiía dc lun |)adciro, ainda c|ue seus pais aprovassem sua v o -

invadido. O modelo de madre M a r i e para relacionar-se c o m estranhos c a ç ã o religuisa.'

t a m b é m diferia do modelo de G h k l bas Judah Leib, que sempre se man- Aos ile/essetc anos M a r i e obedientemente se casou c o m o fabri-
teve compreensivelmente vigilante. A s duas mulheres se assemelham cante de seda Claude M a r d n . E n t ã o abandonou a leitura " v ã " de sua j u -
sob u m aspecto: ilustram a i m p o r t â n c i a da escrita e da linguagem para a ventude para dedicar-se aos l i v r o s de d e v o ç ã o e aos Salmos; e sur-
autodescoberta, a i n v e s t i g a ç ã o moral e, no caso de Marie, a descoberta preendeu a todos os .seus v i z i n h o s , se n ã o o s o l í c i t o m a r i d o , c o m sua
dos outros. E, como G l i k l , Marie de ITncamation era umafemmeforte, frc(.|úência d i á r i a à igreja. Pelo menos n ã o p e r m i d u que seus atos de fé
uma imagem c l á s s i c a e bíblica usada tanto pelas feministas h t e r á r i a s da a impedissem de c u m p r i r zelosamente suas o b r i g a ç õ e s na tecelagem e
F r a n ç a seiscentistaquanto pelas religiosas: " u m a / e m m e / o r / í " tal qual Sa- em casa. A o s dezoito anos tornou-se m ã e ; aos dezenove ficou v i ú v a
l o m ã o retratou", descreveram-na as i r m ã s ursulinas a p ó s sua morte.^ c o m seu d l h o Claude.
Antes disso u m a sombra j á pairava sobre seu casamento — uma
a m e a ç a indistinta aos bens de M a r d n e uma falsa a c u s a ç ã o contra ele

M a r i e Guyart nasceu em 1599 na cidade têxtil de Tours, que tinha l a n ç a d a por uma m u l h e r de Tours. ( M a r i e e o f d h o referem-se e m t o m

e n t ã o quase 20 m i l habitantes e era o centro j u d i c i á r i o e e c l e s i á s t i c o de de m i s t é r i o a " d e s g r a ç a s " , " a f l i ç õ e s que o m a r i d o causou, conquanto

66 67
inocentemente e sem ter tal i n t e n ç ã o " , " p r e o c u p a ç õ e s " . ) A sua morte bilhotava, despejou seus pecados nos ouvidos de u m padre. O sacerdote
seguiram-se processos j u r í d i c o s ; M a r i e perdeu a tecelagem e a maior a t ó n i t o disse-lhe que voltasse no dia seguinte e lhe contasse tudo de no-
parte ou a totalidade da h e r a n ç a deixada para ela e o fdho, a l é m de seu vo. A s s i m ela ganhou u m diretor espiritual, de cuja e x i s t ê n c i a j a m a i s
q u i n h ã o de v i ú v a . M e s m o assim recebeu v á r i a s propostas de casamen- suspeitara. A t é e n t ã o s ó se confessara segundo o p a d r ã o de pergunta e
to, que recusou a p ó s alguma h e s i t a ç ã o . " E m b o r a eu amasse m u i t o seu resposta adotado pelo v i g á r i o de sua p a r ó q u i a . '
pai e a p r i n c í p i o .sentisse sua falta", disse mais tarde a Claude, "ao ver- Para o historiador o e p i s ó d i o é b e m ilustrativo da Contra-Refor-
me livre m i n h a alma desmanchou-se e m a ç õ e s de g r a ç a s , porque e m ma. que agitava diversos meios de Tours: a o r d e m dos Feuillants, c o m
meu c o r a ç ã o agora havia apenas Deus |... | e e m m i n h a s o l i d ã o eu podia suas normas austeras, fundada e m d e c o r r ê n c i a de uma ruptura c o m os
pensar nele e criar v o c ê para servi-lo."' cislercienses; d. F r a n ç o i s de Saint B e r n a r d , o u v i n d o c o m toda a se-
Durante a l g u m tempo viveu "reclusa" n u m quartinho no ú l t i m o I icdade uma j o v e m m ã e v i ú v a e a r t e s ã que simplesmente passava pela
andar da casa paterna, sustentando-se c o m seus trabalhos de bordado e rua; o l i v r o cpic l o g o ela se p ô s a ler, a Introduction à la vie devote
vestindo-se de "maneira r i d í c u l a " para mostrar aos homens que n ã o ( I f)0*)), de I i a n ç o i s tie Sales, escrito para instruir leigas que desejavam
queria ser cortejada. C o n f i o u Claude a uma ama-de-leite — costume cultivai uma vida religiosa sem renunciar ao mundo.
que na é p o c a era mais c o m u m entre as f a m í l i a s c r i s t ã s aba.stadas, Foi sob a o r i e n t a ç ã o dc seu diretor espiritual Feuillant — p r i m e i r o
p o r é m c o m suas a f l i ç õ e s M a r i e talvez tivesse perdido o leite. Quando d. l ' i a i i ç o i s , depois d. k a y m o n d de Saint Bernard — que M a r i e encon-
o m e n i n o v o l t o u , c o m quase dois anos, mudou-se c o m ele para a casa trou as palavras para falar n ã o si) de seus pecados, mas t a m b é m de suas
de sua i r m ã Claude Guyart e o cunhado Paul Buisson, que l o g o tiveram v i s õ e s . Foi o diretor espiritual q u e m a aconselhou a deixar Cristo c o n -
u m casal de fdhos. Buisson era u m p r ó s p e r o comerciante carroceiro duzir sua alma e depois lhe contar o que sentiu. F o i ele q u e m a autori-
que transportava mercadorias para diferentes partes do reino e p e ç a s de zou a flagelar-se c o m urtiga, correntes, c i l í c i o e u m a cama de t á b u a s , e
a r t i l h a r i a para o e x é r c i t o real. N a d é c a d a seguinte M a r i e v i v e u " e m t a m b é m aprovou outras formas de humilhar-se na v i d a coddiana. F o i
m e i o ao b a r u l h o dos comerciantes", passando os dias nos e s t á b u l o s ele q u e m recusou seu pedido de pregar na porta da catedral u m relato
onde se g u a r d a v a m e descarregavam os fardos, cercada de carre- assinado de todos os pecados que cometera, para que o m u n d o inteiro
gadores, carroceiros e cinqiienta ou sessenta cavalos. Nessa é p o c a de- falasse a respeito dela c o m desprezo." Na verdade f o i ele q u e m a i n -
via n ã o s ó cuidar dos animais e cozinhar para a f a m í l i a e a numerosa centivou a fazer do ato de escrever uma parte central de sua e x p e r i ê n c i a
criadagem, c o m o ainda encarregar-se da c o n t a b i l i d a d e e da corres- religiosa, introduzindo-a n u m m u n d o de cultura escrita raramente ex-
p o n d ê n c i a de B u i s s o n , a c o n s e l h á - l o e d i r i g i r os n e g ó c i o s quando o ploratlo por uma negociante c a t ó l i c a : Claude, i r m ã de M a r i e , era alfa-
cunhado e a i r m ã se encontravam e m sua casa de campo. "Deus me con- betizada, mas quando m o r r e u , nos anos de 1640, n ã o se encontrou u m
cedeu talento para os n e g ó c i o s " , declarou, e de fato Buisson prosperou ú n i c o l i v r o entre seus pertences, que i n c l u í a m v á r i a s p i n t u r a s r e l i -
ainda mais c o m sua ajuda." giosas.'"
N a i n t i m i d a d e preencheram es.ses anos surpreendentes e x p e r i ê n - O desenvolvimento de Guyart nesse p e r í o d o , dos vinte aos trinta
cias m í s t i c a s , o d e s e n v o l v i m e n t o da o r a ç ã o m e n t a l , v á r i a s obras de anos, pode resumir-se nas palavras comunicação e mortificação: atos
caridade e severas m o r t i f i c a ç õ e s corporais. Na v é s p e r a da Festa da E n - que visavam desalojar e reduzir o eu voluntarioso. E m m e i o à a z á f a m a
c a r n a ç ã o , em 1620, enquanto exercia suas atividades nas ruas de Tours, da casa do c a r r o c e i r o ela leu e m f r a n c ê s a v i d a de Teresa de Á v i l a ,
M a r i e de repente v i u c o m seu o l h o interior, pela p r i m e i r a vez, todos os r c c é m - c a n o n i z a d a ; as Escrituras na e d i ç ã o c a t ó l i c a de L o u v a i n (demo-
pecados e i m p e r f e i ç õ e s de sua v i d a inteira e sentiu-se mergulhar no rando-se particularmente no C â n t i c o dos C â n t i c o s ) , e as obras m í s t i c a s
sangue do C r i s t o m i s e r i c o r d i o s o . V o l t a n d o a si, deparou-se c o m a a t r i b u í d a s a s ã o D i o n í s i o Areopagita, recomendadas por seu diretor es-
capela dos Feuillants, uma o r d e m religiosa penitencial que chegara a p i r i t u a l . N e m todas as leituras a c o n d u z i r a m ao c a m i n h o correto. Os
Tours havia poucos meses. E n t r o u e, ignorando uma m u l h e r que a bis- livros sobre o r a ç ã o mental (ou seja, interior ou silenciosa) prescreviam

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a m e d i t a ç ã o s i s t e m á t i c a — u m " m é t o d o " , c o m "preparativos, p r e l ú d i o s , A m ã o que escrevia era a mesma que lhe flagelava o corpo c o m as
d i v i s õ e s de pontos e m a t é r i a s " ; tais t é c n i c a s tinham por finalidade i m - urtigas. M a r i e batia e m si mesma a t é sangrar e e n t ã o c i n g i a as feridas
pedir que a alma adquirisse falsos conhecimentos e se rebelasse, mas no c o m o c i l í c i o para intensificar a dor. Durante o dia usava correntes e
caso de M a r i e s ó serviram para lhe causar violentas dores de c a b e ç a . En- c i l í c i o sob as roupas; à noite d o r m i a sobre uma t á b u a , e m contato c o m
t ã o d. R a y m o n d a p r o i b i u de c o n t i n u a r nesse e s f o r ç o h u m a n o para o c i l í c i o . N i n g u é m podia presenciar sua p e n i t ê n c i a ("poderiam pensar
chegar a Deus e disse-lhe que passivamente entregasse a alma ao d i v i n o que estava l o u c a " ) ; assim, quando sentia a i n s p i r a ç ã o , recolhia-se aos
E s p í r i t o . N ã o demonstrou o menor receio de que, c o m o mulher de von- p o r õ e s , aos celeiros e aos e s t á b u l o s , e ali se flagelava. Se isso ocorria à
tade fraca, ela sucumbisse à s artimanhas do d e m ó n i o . " noite, adormecia sobre u m fardo ou uma t á b u a (onde se encontrava seu
O conselho de d. R a y m o n d funcionou. Deus a fez falar c o m Cristo filho na é p o c a é u m m i s t é r i o que nem ela, nem Claude esclarecem).
"numa hnguagem que excedia o poder natural da criatura", e e n t ã o seu Fazia tudo isso para merecer o amor de Cristo: "eu tratava o corpo co-
A m a d o a visitou diretamente, i m p r i m i n d o - l h e na alma o Verbo divino. mo uma escrava", " c o m o u m a pessoa morta"; "porque era uma grande
" N e m os livros, nem a estudiosidade podem ensinar essa l i n g u a g e m ce- pecadora, odiava meu c o r p o " . E o Verbo Encarnado a ajudava a erguer
leste e d i v i n a " , disse."Tal c o m u n i c a ç ã o podia ocorrer subitamente du- 0 b r a ç o nas noites frias de inverno, renovava-lhe as f o r ç a s e a determi-
rante a missa na capela dos Feuillants, quando M a r i e contemplava o se- n a ç ã o p o r m e i o da H ó s t i a consagrada, que c o m o u m a g r a ç a excep-
r a f i m e s c u l p i d o no altar e recebia a r e v e l a ç ã o clara e m u d a dos c i o n a l ela p o d i a t o m a r quase d i a r i a m e n t e na capela dos F e u i l l a n t s .
significados da Trindade, c o m sua unidade e suas d i s t i n ç õ e s ; ou quando Quanto m a i o r a m o r t i f i c a ç ã o da carne, maior sua u n i ã o interior c o m o
rezava diante da H ó s t i a consagrada e Deus a fazia v ê - l o c o m o u m grande Senhor. " E u era i n s a c i á v e l . " ' '
m a r q u e n ã o admitia impureza. "Nesse mar podia navegar c o m total .se- Entre essas s a t i s f a ç õ e s havia momentos de d ú v i d a . Quando esta-
g u r a n ç a quando os n e g ó c i o s de Buisson a levavam ao fundo da loja de va c o m seus 25 anos, "o diabo colocou-me na c a b e ç a a ideia de que era
u m huguenote ou a punham nos e s t á b u l o s entre "mais de vinte empre- loucura sofrer tanto, de que havia entre os c r i s t ã o s m u i t o s que c u m -
gados ruidosos e grosseiros"."'Podia receber a visita de Deus enquanto p r i a m os mandamentos de Deus e o b t e r i a m a s a l v a ç ã o sem tamanho sa-
se ocupava de seus afazeres — no p o r ã o , nas ruas —,-'ou quando se en- c r i f í c i o " . E por que submeter-se a seu diretor espiritual? Que m a l havia
contrava naquele estado i n t e r m e d i á r i o entre a v i g d i a e o sono,'e g r a ç a s e m agir segundo a p r ó p r i a vontade? " D e que serve t u d o isso?", ex-
à força da u n i ã o entre sua alma e o " a d o r á v e l " Verbo Encarnado .sentia o p l o d i u u m dia na frente de uma criada perplexa. E se p ô s a pensar no fi-
c o r a ç ã o sair-lhe do corpo e unir-se ao dele, dois c o r a ç õ e s n u m s ó . " lho. A m a v a - o m u i t o , disse depois; mas estaria errada e m preparar o f u -
Paralelamente escrevia. A c o n f i s s ã o geral de seus pecados f o i ape- turo dele por m e i o de sua p r ó p r i a pobreza? C o m certeza os parentes lhe
nas o c o m e ç o . Quando n ã o conseguia suportar a v i o l ê n c i a dos senti- d i z i a m que estava traindo-o. S e r á que u m dia teria de prestar contas a
mentos pelo sagrado Verbo Encarnado, ela se recolhia e m seu quarto e 1 )cus por viver c o m o se n ã o percebesse as necessidades do f i l h o ? '
tomava da pena. " A h , sois u m doce amor. V ó s fechais nossos olhos, v ó s O pior era "quando me sentia uma h i p ó c r i t a e pensava que a t é en-
nos privais dos sentidos." "Palavras de fogo", comentou o fílho ao en- t ã o h a v i a enganado m e u d i r e t o r e s p i r i t u a l , c o n t a n d o - l h e h i s t ó r i a s e
c o n t r á - l a s . M a r i e t a m b é m escrevia para o diretor espiritual, passando coisas i m a g i n á r i a s c o m o se fossem verdadeiras". Teria realmente se
para o papel suas v i s õ e s e suas d i s p o s i ç õ e s interiores, tentando encon- unido ao Verbo Encarnado? Sua v i s ã o da Trindade teria sido fruto de a l -
trar a m e l h o r linguagem p o s s í v e l . " O h , que tristeza n ã o poder dizer as guma armadilha do d e m ó n i o ou da i m a g i n a ç ã o ? E m m e i o a tais d ú v i -
coisas do e s p í r i t o c o m o de fato s ã o ! Delas s ó falamos gaguejando, e das ela redobrou suas m o r t i f i c a ç õ e s , p o r é m f o i inúfil; sua v i d a interior
ainda temos de procurar s í m i l e s para nos expressar." E quando achava se ensombrecera, e tudo o que podia fazer era n ã o retrucar asperamente
pobres os s e r m õ e s do padre, que fazia uso de c o m p a r a ç õ e s corriqueiras aos que a criticavam."'
do Senhor c o m l e õ e s ou cordeiros, voltava para sua mesa e criava suas
A q u i M a r i e Guyart se defrontava c o m a d ú v i d a fundamental de to-
p r ó p r i a s c e l e b r a ç õ e s : " i n e f á v e l , tudo | . . . j meu tudo".'"
dos os m í s t i c o s c o n t e m p o r â n e o s e estava ainda mais v u l n e r á v e l porque

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sua prece i n t e r i o r era i m p r o v i s a d a e inspirada, e n ã o guiada p o r u m c i o n á r i o do Tesouro Real, ele havia, contudo, "banido o m u n d o de sua
" m é t o d o " j e s u í t i c o ou mesmo salesiano." ( N a é p o c a a p r e o c u p a ç ã o a l m a " e (conforme as palavras de seu l i v r o p ó s t u m o , reeditado v á r i a s
c o m credibilidade e " h i p o c r i s i a " afligia as pessoas nas mais diversas si- vezes) criara uma "conformidade interior" c o m Jesus Cristo.""No caso
t u a ç õ e s de crise — espiritual, social, p o l í t i c a e c i e n t í f i c a . ) ' ' T a l v e z as de M a r i e tal e q u i l í b r i o se r o m p e u sob o impacto do fervor m í s t i c o . Era-
p á g i n a s da Vida e m que santa Teresa conta c o m o enfrentou o medo da Ihe cada vez mais d i f í c i l o u v i r as conversas .sobre n e g ó c i o s que se
hipocrisia e o d e m ó n i o lhe servissem de consolo. Por obra de Deus suas travavam a sua volta; à s vezes, sabendo que o pensamento dela estava
d ú v i d a s finalmente se "esfumaram": a passividade silenciaria a i m a g i - longe, o cunhado lhe pedia sua o p i n i ã o sobre o que acabara de .ser dito.
n a ç ã o enganosa e abriria a alma para a i m p r e s s ã o d i v i n a . Prodigalizan- Ela agora tinha trinta anos e ansiava apenas pela u n i ã o total c o m Deus;
do-lhe b ê n ç ã o s , o A l t í s s i m o renovou seu "anseio da p e r f e i ç ã o " . " toda vez que passava pelo c o n v e n t o das ursulinas, sentia o c o r a ç ã o

Sob m u i t o s aspectos M a r i e G u y a r t j á v i v i a "na p e r f e i ç ã o " aos saltar-lhe dentro do peito, n u m claro sinal de que o Senhor a queria a l i .

v i n t e e tantos anos — ou seja, v i v i a c o m o u m a r e l i g i o s a no m u n d o . Tentara preparar o c a m i n h o para separar-se do fílho: "Durante dez
H a v i a a l g u m tempo que seu diretor espiritual lhe p e r m i t i r a fazer o v o - anos o tratei c o m distanciamento, n ã o p e r m i t i n d o que m e a b r a ç a s s e e
to de permanente castidade, que segundo F r a n ç o i s de Sales c o n s t i t u í a tampouco me p e r m i t i n d o a b r a ç á - l o , para que n ã o estivesse apegado a
a maior prenda das v i ú v a s . Pouco depois ela fez os votos de pobreza e m i m quando Nosso Senhor me ordenasse d e i x á - l o " . (Claude nos infor-
o b e d i ê n c i a , cumprindo-os à risca na casa de Buisson, onde gastava o ma que ela nunca bateu nele, e, assim, seu plano falhou.) N a verdade o
m í n i m o d i n h e i r o p o s s í v e l e obedecia à i r m ã e ao cunhado prontamente, distanciamento f o i difícil para ambos. Pelos olhares compadecidos,
sem proferir u m som.''Temendo por sua s a ú d e , d. R a y m o n d finalmente pelos m u r m ú r i o s a sua volta Claude percebeu que a l g u m a coisa m u i t o
lhe ordenou que moderasse os atos de p e n i t ê n c i a . Desse m o m e n t o e m d e s a g r a d á v e l estava para acontecer e m e r g u l h o u n u m a " p r o f u n d a
diante ela devia Umitar-se a d o r m i r n u m i n c ó m o d o c o l c h ã o de palha melancolia" (assim descreveu seus sentimentos anos depois), a qual o
durante seis meses e sobre t á b u a s e m outros seis; podia continuar fla- levou a f u g i r para Paris. D u r a n t e t r ê s dias M a r i e t e m e u que o f i l h o
gelando-se c o m urtigas, mas n ã o fazer uso do cilício.™ tivesse sido v í t i m a de afogamento ou de sequestro: "Nosso Senhor
mandou-me u m a cruz pesada, a mais dolorosa de toda a m i n h a v i d a " .
C o m o p o d i a c u l t i v a r a h u m i l d a d e t a m b é m e m atos carido.sos,
Seria es.se u m sinal de que Deus a queria no mundo? O u E l e estaria p o n -
cuidou dos criados doentes, por mais malcheirosas que fossem suas feri-
do à prova a r e s o l u ç ã o dela, c o m o pensava .seu diretor espiritual? Quan-
das; buscou o f é d d o odor da morte no o s s u á r i o destinado à s v í t i m a s da
do finalmente Claude v o l t o u a Tours, M a r i e c o n c l u i u que a segunda a l -
peste; amparou no Palais de Justice u m prisioneiro que considerou ino-
ternativa era a correta e que Deus lhe i m p u n h a o s a c r i f í c i o de deixar o
cente." C h e g o u mesmo a assumir u m papel pastoral j u n t o aos carro-
filho de onze anos, a quem dedicava "imenso amor"."
ceiros e c a v a l a r i ç o s de Buisson, fazendo-os admitir suas faltas e falhas
enquanto presidia sua mesa de jantar, instruindo-os sobre Deus e os Dez O ato de a b a n d o n á - l o — do qual todos os seus parentes tentaram
Mandamentos, acordando-os se iam d o r m i r sem rezar. C o m isso con- d i s s u a d i - l a — c o n s f i t u í a para ela uma forma de h e r o í s m o espiritual. I n -
verteu à Santa Madre Igreja u m huguenote que havia entre eles. M a i s gressar no c o n v e n t o n ã o d e v i a ser m u i t o f á c i l . A i r m ã e o c u n h a d o
tarde, recordando esse p e r í o d o de ensinamentos, referiu-se aos traba- finalmente concordaram e m cuidar de seu fílho; Claude Guyart estipu-
lhadores nos mesmos termos que utilizou em r e l a ç ã o aos a m e r í n d i o s de h)u uma pequena p e n s ã o para Claude M a r t i n e m sinal de reconheci-
Quebec: " E u os reduzi ao que queria"; " E u os repreendia francamente, m e n t o por t u d o o que M a r i e fízera por sua f a m í l i a e seus n e g ó c i o s .
de m o d o que essa pobre gente se sujeitava a m i m c o m o crianças".""* Quanto ao resto, a m ã e p ó s o m e n i n o nas m ã o s de Deus e da V i r g e m . "

A l g u n s leigos piedosos de sua é p o c a conseguiram manter esse Sua e x p e r i ê n c i a n ã o era rara numa é p o c a e m que os reformadores
e q u i l í b r i o entre a espiritualidade e as coisas do m u n d o . U m deles f o i c a t ó l i c o s acreditavam que as v i ú v a s castas t i n h a m tanta capacidade de
Jean de B e r n i è r e s , c i d a d ã o de Caen, na N o r m a n d i a , que anos depois en- a l c a n ç a r a mais elevada espiritualidade quanto as virgens. A h i s t ó r i a de
traria e m sua v i d a de u m j e i t o e n g r a ç a d o e todavia i m p o r t a n t e . F u n - J e a n n e - F r a n ç o i s e F r é m y o t , v i ú v a do b a r ã o de Chantal, propagava-se

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pelos c í r c u l o s salesianos e mais a l é m , e certamente chegara aos o u v i - das as ordens femininas, e dos protestos de alguns pais, que n ã o que-
dos de M a r i e Guyart. "incentivada por F r a n ç o i s de Sales, seu diretor es- r i a m as filhas soltas no m u n d o . A l g u m a s dessas reUgiosas t a m b é m de-
p i r i t u a l , F r é m y o t partiu para A n n e c y e m 1610 a f i m de fundar c o m ele sejavam u m a vida mais dedicada à prece e à c o m u n h ã o interior. Quan-
a O r d e m da V i s i t a ç ã o . L e v o u consigo a filha solteira, p o r é m d e i x o u o do se i n a u g u r o u o c o n v e n t o das ursulinas e m Paris, e m 1610-2, a
f i l h o de catorze anos c o m o pai e m D i j o n . N o dia da pardda o menino C o m p a n h i a chamava-se C o n g r e g a ç ã o , as religiosas f a z i a m votos de
suplicou-lhe que n ã o abandonasse o m u n d o ; depois se deitou na soleira castidade, o b e d i ê n c i a e pobreza (mais tarde acrescentou-se u m quarto
da porta, dizendo que, se n ã o conseguia s e g u r á - l a , ela devia passar so- voto: o de ensinar) e o enclausuramento c o n s t i t u í a a regra. A s s i m era no
bre seu corpo. F r é m y o t assim fez e, uma vez fora da casa, ajoelhou-se convento de Tours e e m muitos outros que surgiram na F r a n ç a durante
para receber a b ê n ç ã o paterna e partiu. O gesto teatral do m e n i n o ins- os anos seguintes."'
pirou-se, talvez, e m Plutarco; a m ã e e o a v ô o expressam e m termos de N ã o obstante as ursulinas ainda preservavam alguns dos ideais
A b r a ã o sacrificando Isaac." iniciais de M e r i c i . M u l h e r e s de diferentes camadas sociais eram aceitas
A j u l g a r pela maneira c o m o Claude M a r d n descreve aquele dia de na ordem: filhas de nobres provincianos e de f u n c i o n á r i o s reais faziam
j a n e i r o de 1631 e m que se despediu de sua m ã e , a cena f o i menos seus votos j u n t o c o m filhas de comerciantes e de p r ó s p e r o s a r t e s ã o s .
d r a m á d c a . M a r i e finalmente lhe contou o "grande segredo": fazia j á M a r i e G u y a r t , que n ã o p o s s u í a d i n h e i r o n e m dote, p ô d e entrar na con-
m u i t o t e m p o que v i n h a p l a n e j a n d o tornar-se f r e i r a q u a n d o o f i l h o g r e g a ç ã o de Tours na mesma é p o c a que a j o v e m M a r i e de S a v o n n i è r e s ,
tivesse idade suficiente para v i v e r sem ela. Esperava que o m e n i n o filha de u m a f a m í h a senhorial de A n j o u . M a i s tarde lembraria a firme
aprovasse sua d e c i s ã o e compreendesse que era u m a honra ser chama- c o n v i c ç ã o desta ú l t i m a de que no convento apenas a v i r t u d e importava,
da por Deus para servi-lo. " T o d a v i a , nunca mais a v e r e i " , Claude se n ã o o b e r ç o : " A r e l i g i ã o t o m a todos os seus s ú d i t o s i g u a i s " . " Particu-
lembra de ter-lhe dito. E l a lhe garantiu que a veria, s i m , pois o conven- larmente importante era o fato de as ursulinas manterem r e l a ç õ e s c o m
to das ursulinas ficava a l i perto. E m b o r a sentisse m u i t a pena do f i l h o , o m u n d o por i n t e r m é d i o de suas alunas, a m a i o r i a das quais retomava a
M a r i e manteve u m a e x p r e s s ã o alegre no rosto e u m passo f i r m e a t é vida leiga t ã o l o g o c o n c l u í a os estudos. A o mesmo tempo as i r m ã s se
cruzar o u m b r a l do convento, quando se l a n ç o u aos p é s da reverenda a j udavam mutuamente a alimentar a espiritualidade por m e i o da o r a ç ã o
m a d r e . " J á sabemos das l á g r i m a s de Claude e de seus e s f o r ç o s para e da c o r r e s p o n d ê n c i a , b e m c o m o da c o m p e t i ç ã o e das p r e s s õ e s ineren-
reavê-la. tes à v i d a conventual."*
A clausura, todavia, n ã o c o n s t i t u í a o b s t á c u l o para o d e m ó n i o . J á nos
primeiros anos do s é c u l o u m sacerdote i n f o r m o u que tivera uma v i s ã o de
A s ursulinas c o n s t i t u í a m mais u m elemento da Contra-Reforma anjos e d e m ó n i o s disputando a ordem das ursulinas e as almas postas sob
e m Tours, tendo chegado à cidade e m 1622. A C o m p a n h i a de Santa sua p r o t e ç ã o . E agora, e m 1632-4, no convento de L o u d u n , a breve dis-
Ú r s u l a f o i fundada na Itália nos anos de 1530 e e m suas primeiras d é - t â n c i a de Tours, a luta entre desejo sexual e religiosidade prosseguia en-
cadas de e x i s t ê n c i a n ã o p o s s u í a convento. A n g e l a M e r i c i criara u m a c a r n i ç a d a : numerosas ursulinas possessas negavam Deus e vomitavam a
companhia de i r m ã s para viverem no mundo, presas apenas a promes- hóstia, e descobriu-se que o feiticeiro existente por trás de tudo isso era o
sas e n ã o a votos formais; em seus p r ó p r i o s bairros i n s t r u i r i a m as m o ç a s bem-falante padre U r b a i n Grandier.*'Ao saber de tais fatos M a r i e teve
e c u i d a r i a m dos enfermos. A s ursulinas c o m e ç a r a m a atuar na F r a n ç a seu ú n i c o contato direto c o m o e s p í r i t o do mal. U m a noite, no d o r m i t ó r i o ,
durante a d é c a d a de 1590 e na passagem do s é c u l o — e m LTsle-sur- havia acabado de rezar em voz alta por suas i r m ã s atormentadas quando
Sorgue e A i x - e n - P r o v e n c e , p o r e x e m p l o — ainda m a n t i n h a m esse o d e m ó n i o se apresentou "a sua i m a g i n a ç ã o " sob horrível forma humana,
c a r á t e r aberto, embora j á c o m e ç a s s e m a viver e m comunidades. N o i n í - mostrou-lhe a l í n g u a , zombeteiro, e uivou. M a r i e se benzeu, e o d e m ó n i o
cio do s é c u l o XVII a e x p e r i ê n c i a m a l o g r o u e m r a z ã o da r e f o r m a h i e r á r - partiu, mas algumas noites depois voltou como u m e s p í r i t o maligno que
quica do ConcOio de Trento, que d e t e r m i n o u o enclausuramento de to- SC introduziu e m seus ossos, na medula e nos nervos, parahsando-a to-

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talmente. Por fim u m e s p í r i t o benigno se ergueu dentro dela e a libertou. Cristo retirava sua cruz e o u v i u - o dizer que dali e m diante, c o m o o sera-
C o m o é de seu feitio, M a r i e se apresenta enfrentando S a t a n á s n ã o s ó por fim de I s a í a s ( I s a í a s 6 , 2 - 7 ) , ela voaria para .sempre na p r e s e n ç a divina.^'
si mesma, c o m o por todo o convento.*' E n t ã o os j e s u í t a s , que h a v i a m chegado a Tours, passaram a pregar
N o entanto, se n ã o voltou a m o l e s t á - l a c o m sua p r e s e n ç a , o diabo no convento, e a madre superiora autorizou-a a falar de sua vida interior
a afligia c o m suas t e n t a ç õ e s . Por u m lado ela mergulhava feliz na suave c o m o padre Georges de L a Haye. Felizmente esse sacerdote e seu cír-
c o n c e n t r a ç ã o do convento, substituindo os atos de m o r t i f i c a ç ã o corpo- culo faziam parte de uma m i n o r i a j e s u í t i c a que aceitava o misficismo
ral pela d i s c i p l i n a mais branda das ursulinas e vivendo c o m s i m p l i c i - passivo e a t é comovente praticado por M a r i e de I T n c a m a t i o n (e opos-
dade e o b e d i ê n c i a ao lado de n o v i ç a s que t i n h a m a metade de sua idade. to aos e x e r c í c i o s formais preconizados por L o y o l a , o fundador da or-
Pediu para ser chamada M a r i e de I T n c a m a t i o n , pois geralmente pen- dem).^" O padre L a Haye lhe ordenou que voltasse a escrever, retoman-
sava e m Cristo c o m o o Verbo Encarnado — uma i m a g e m cara ao mis- do uma atividade que parecia banida pelo desespero. Ela redigiu dois
t i c i s m o b e r u l l i a n o da é p o c a , mas t a m b é m e s p e c í f i c a de sua u n i ã o c o m relatos: de todas as g r a ç a s que Deus lhe concedera desde a i n f â n c i a e —
Deus, centrada na palavra." Por outro lado a conduta do filho a levava a para n ã o parecer h i p ó c r i t a — de todos os seus pecados. ( L a H a y e
se perguntar se havia agido corretamente ao d e i x á - l o : p r i m e i r o fora seu guardou esses manuscritos, e por isso conhecemos t ã o b e m sua fase de
grito diante do convento e depois seu desempenho na escola j e s u í t i c a t e n t a ç ã o , que i n c l u i as d ú v i d a s e m r e l a ç ã o a Deus.) L a H a y e garantiu-
de Rennes, onde o m e n i n o c o m e ç o u c o m o b o m aluno, p o r é m logo se Ihe que o e s p í r i t o d i v i n o sempre fora seu guia e prometeu-lhe supervi-
recusou a estudar, passou a andar c o m m á s companhias e acabou sendo sionar a futura e d u c a ç ã o do filho. " A partir desse m o m e n t o a d i r e ç ã o de
despachado para a casa da tia."*' m i n h a v i d a interior sempre esteve nas m ã o s dos reverendos padres da
A i n d a piores eram os t o r m e n t o s que o m u n d o n ã o p o d i a ver. C o m p a n h i a de Jesus.""
V o l t a v a m a o c o r r e r - l h e pensamentos e desejos torpes banidos anos A outra novidade e m sua vida f o i o m a g i s t é r i o : M a r i e recebeu a
antes; ela se revoltava contra a madre superiora e achava a s o l i d ã o i n - i n c u m b ê n c i a de lecionar a d o u t r i n a c r i s t ã à s v i n t e ou trinta i r m ã s do
s u p o r t á v e l . Angustiava-a ainda mais o temor de estar sendo h i p ó c r i t a . noviciado. Sua i n s t r u ç ã o se aprimorara c o m o ingresso no convento:
O Senhor lhe enviou uma nova v i s ã o da Trindade, p o r é m o d e m ó n i o a Deus lhe p e r m i t i r a u m entendimento direto dos c â n t i c o s e preces e m la-
fez pensar que o que se passava e m seu í n t i m o era "apenas fingimento t i m — l í n g u a que j a m a i s estudara. ( A n g e l a M e r i c i , a fundadora da or-
e i m p o s t u r a " . Nos momentos de m a i o r fraqueza M a r i e blasfemava, dem, tivera essa e x p e r i ê n c i a de aprendizado " i n f u n d i d o " diretamente
dizendo a si mesma que era " u m a grande loucura acreditar na e x i s t ê n - por Deus, e g r a ç a s à i n t e r v e n ç ã o d i v i n a outras ursulinas c o n t e m -
cia de u m Deus e que todas as coisas ditas sobre Ele n ã o passavam de p o r â n e a s de M a r i e puderam dispensar as escolas j e s u í t i c a s e as aulas de
quimeras, .semelhantes à s do paganismo".^' t e o l o g i a m i n i s t r a d a s na S o r b o n n e . ) " E m 1635, q u a n d o c o m e ç o u a
L u t a v a contra tais pensamentos conversando c o m seu q u e r i d o lecionar para jovens que u m dia seriam instrutoras nos c o l é g i o s da or-
A m o r ( c o m o seu filho declarou mais tarde, "a p e r f e i ç ã o consiste n ã o na dem, M a r i e passou a ler a B í b l i a e a t é a estudar os catecismos de T r e n -
a u s ê n c i a de t e n t a ç õ e s , e sim na capacidade de v e n c ê - l a s " ) . O confessor to e do cardeal B e l l a r m i n ; afirmava, p o r é m , que seu m a i o r entendi-
das ursulinas e m nada a ajudava, pois, ao c o n t r á r i o de d. R a y m o n d . que m e n t o dos textos b í b l i c o s n ã o r e s u l t o u do estudo, e s i m da o r a ç ã o ,
partira de T o u r s . desaprovava seu e s t i l o passivo de o r a ç ã o i n t e r i o r , i l u m i n a d a pelo E s p í r i t o Santo.*'
dizendo que s ó lhe acarretaria "iIu.sões". Ria de suas v i s õ e s e das g r a ç a s Escreva, aconselhou-lhe .seu diretor espiritual. A s s i m ela p r o d u -
especiais que ela afirmava receber de Deus, e perguntava-lhe se espe- ziu suas primeiras c o m p o s i ç õ e s p e d a g ó g i c a s : uma e x p o s i ç ã o da fé e
rava fazer milagres a qualquer m o m e n t o . " Apesar de tudo seu Esposo outra do C â n t i c o dos C â n t i c o s . Duas vezes por semana, relaxando a dis-
lhe p e r m i t i u professar e m j a n e i r o de 1633 — ainda suspenso da escola c i p l i n a que i m p u n h a à p r ó p r i a l í n g u a , falava sobre as coisas espirituais
de Rennes, seu filho assistiu aos votos — , e a partir de e n t ã o sua vida n u m a torrente de palavras, " a t ó n i t a c o m a quantidade de passagens
melhorou. Prostrada em sua cela, a p ó s a c e r i m ó n i a , M a r i e sentiu que b í b l i c a s que me v i n h a m à mente". Seu talento inato, seu zelo a faziam

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lheres: o padre L e Jeune c o n v i d o u as mulheres virtuosas a i r e m lá ins-
superar a si mesma: " N i n g u é m diria que quem estava falando era uma
t r u i r "as selvagens", mas acrescentou que " t e r i a m de superar o medo
mulher", revelou o fdho dela. E m seu arrebatamento, ela n ã o percebia
natural a seu sexo". Tanto m e l h o r para madre M a r i e de I T n c a m a t i o n .
que as alunas i a m beijar-lhe os p é s . ' "
C o m o escreveu a d. R a y m o n d de Saint Bernard e m 1635, "visualizo as
Nessa é p o c a j á lhe ardia no peito a chama a p o s t ó l i c a , a vontade de
dificuldades, tanto no mar c o m o e m terra; i m a g i n o a v i d a entre b á r -
levar os ensinamentos de Jesus C r i s t o à s pobres almas de terras dis-
baros, o perigo de morrer de fome ou frio, as muitas o c a s i õ e s e m que se
tantes que tanto os necessitavam. C o m o ocorreu c o m descobertas an-
pode ser capturado | . . . ] e n ã o vejo i n u d a n ç a nenhuma na d i s p o s i ç ã o de
teriores, t u d o c o m e ç o u c o m u m a v i s ã o . U m a noite, " e m sonho" (en
meu e s p í r i t o " .
j songe), viu-se caminhando de m ã o s dadas c o m uma m u l h e r leiga por
O convento fechado e m Tours t a m b é m era restrito demais para o
u m a vasta paisagem silenciosa c o m p o s t a de montanhas í n g r e m e s ,
que p o d e r í a m o s chamar o i m p u l s o "universalizador" de M a r i e G u y a r t
vales e n e b l i n a . A c i m a da b r u m a se e r g u i a u m a pequena igreja de
de I T n c a m a t i o n . Essa m u l h e r que nunca deixara a Touraine e apenas
m á r m o r e , e m cujo telhado se encontrava a V i r g e m , conversando c o m
uma vez o u outra se aventurou a l é m das muralhas de sua cidade; essa
Jesus. M a r i e compreendeu que se referia a sua pessoa e à q u e l a terra.
mulher que aparentemente nunca leu nenhum relato de v i a g e m , exceto
E n t ã o a V i r g e m sorriu, radiosa, e beijou-a três vezes, enquanto a leiga
u m a v i d a de F r a n ç o i s de X a v i e r ( m i s s i o n á r i o j e s u í t a que esteve no
observava."'
J a p ã o e e m outros p a í s e s da Á s i a ) " e as /?e/<3f/on.v j e s u í t i c a s , acreditava
Seu diretor espiritual identificou a terra c o m o o C a n a d á , p a í s do
que o Cristo que derramara seu sangue por todos, o Cristo que u m dia
qual ela nunca o u v i r a falar: " E u pensava que era uma palavra usada s ó
voltaria c o m o o rei de todas as n a ç õ e s a levara e m e s p í r i t o aos quatro
para assustar as c r i a n ç a s " (algo equivalente a nosso " b i c h o - p a p ã o " ) .
cantos do m u n d o habitado:
U m dia, quando M a r i e estava rezando, o Senhor c o n f i r m o u tal i d e n t i f i -
I' c a ç ã o e lhe disse: "Deves i r para lá e construir uma casa para Jesus e V i , com uma certeza interior, demónios triunfando sobre aquelas pobres
almas, arrebatando-as ao domínio de Jesus Cristo, nosso divino Mestre e
M a r i a " . E n t ã o ela se p ô s a ler as Relations que os j e s u í t a s anualmente
soberano Senhor, que as resgatara com seu sangue precioso | . . . ] N ã o
enviavam da N o v a F r a n ç a e a desejar converter os "selvagens" daque-
pude suportar. Abracei todas essas pobres almas, estreitei-as contra o
la terra distante — " u m a empresa e x t r a o r d i n á r i a e aparentemente a l é m
peito e apresentei-as ao Pai Eterno, dizendo-ihe que j á estava na hora de
de minhas c o n d i ç õ e s " ("e de meu sexo", acrescentava à s vezes). " M e u fazer justiça em favor de meu Esposo, ao qual Ele bem sabia que prome-
corpo se encontrava e m nosso mosteiro, p o r é m meu e s p í r i t o estava l i - tera como herança todas as nações [...] " Ó Pai, por que tardais? Há muito
gado ao de Jesus e n ã o era p o s s í v e l e n c e r r á - l o [... ] E m e s p í r i t o c a m i n h e i tempo que meu Bem-Amado derramou seu sangue!"
por aquela i m e n s i d ã o , acompanhando os que trabalhavam pelo Evan- [...] E o Espírito Santo, que me possuía, fazia-me dizer ao Pai Eterno:
gelho."'' " É justo que meu divino Esposo seja o Mestre; possuo suficiente instru-
II N a verdade u m convento fechado em Tours era pequeno demais ção para ensinar isso a todas as nações. Dai-me uma voz suficientemente
para a energia religiosa e a bravura de M a r i e Guyart. Para os h e r ó i s es- poderosa para ser ouvida nas extremidades da terra, para dizer que meu
divino Esposo é digno de reinar e de ser amado por todos os corações".
pirituais da Contra-Reforma tais atributos se expressavam m e l h o r na
Em meus transportes e suspiros perante o Pai Eterno eu lhe expus, sem
busca do m a r t í r i o . O m a r t í r i o n ã o era u m processo passivo, uma s i m -
atos, por uma demonstração espiritual [...] as passagens do Apocalipse
ples a c e i t a ç ã o de sofrimento e morte m e r i t ó r i o s , c o m o na s a n t i f i c a ç ã o
que falam desse Rei divino das nações [...] e que me eram apontadas pe-
do nome do Senhor experimentada por G l i k l bas Judah L e i b . O m a r t í r i o lo Espírito que me possuía."
I era u m p r é m i o que se buscava, u m incentivo para a a ç ã o audaciosa, u m
a p r i m o r a m e n t o daquela carne j á m o r t i f i c a d a p o r u r t i g a s , u m c o m - Seu depoimento remonta à t r a d i ç ã o do taumaturgo Vincent Ferrer,
que no i n í c i o do s é c u l o x v pregou a c o n v e r s ã o dos judeus e a d i v u l -
b u s t í v e l do c o r a ç ã o — a sede da coragem — j á inflamado pela u n i ã o
g a ç ã o do E v a n g e l h o a todos os p o v o s , p o r i n t e r m é d i o de "homens
Ij c o m o Sagrado C o r a ç ã o . " O s terrores do C a n a d á faziam des.se p a í s u m
e v a n g é l i c o s " especiais, c o m o sendo os i n d í c i o s do f i m dos tempos.
lugar e s p l ê n d i d o para seguir as pegadas de Cristo, sobretudo para m u -

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Vincent de Paul, c o n t e m p o r â n e o de M a r i e , usava termos semelhantes sexo". " V a i partir sem n ó s , q u e r i d o padre?", perguntou-lhe ela n u m a
para exortar os m i s s i o n á r i o s a atuar na F r a n ç a rural e e m M a d a g á s c a r , das numerosas cartas que lhe enviou. M a i s tarde, quando a v o c a ç ã o de
conquanto reduzisse as certezas a p o c a l í p t i c a s de Ferrer a uma simples d. R a y m o n d enfraqueceu, M a r i e lhe prometeu que, t ã o logo se pusesse
conjetura sobre a eventual p e r m i s s ã o de Deus para que se transferisse a trilhar o c a m i n h o escolhido por Deus, haveria de p u x á - l o c o m tama-
sua Igreja da Europa decadente para terras distantes." E x p o n d o e m de- nha f o r ç a que acabaria por lhe rasgar o h á b i t o , se ele resistisse."' D i -
talhes u m sonho medieval de "paz universal", e m meados do s é c u l o x v i n h e i r o era o p r i n c i p a l p r o b l e m a . Q u e m f i n a n c i a r i a u m convento de
G u i l l a u m e Postei reivindicara uma monarquia terrena sob o poder de freiras e m Quebec? Isaac de R a z i l l y , oficial da m a r i n h a , m e m b r o de
" u m P r í n c i p e do p o v o " — a saber, o rei f r a n c ê s — , que trataria de fazer uma f a m í l i a nobre da Touraine, estava fundando a c o l ó n i a francesa de
d i v u l g a r o Evangelho nos quatro cantos do m u n d o . Todos os povos t i - Acadie, na d é c a d a de 1630, mas, e m vez de construir u m convento de
nham capacidade de raciocinar e, segundo os d e s í g n i o s divinos, u m dia freiras na N o v a F r a n ç a , m a n d o u duas m o ç a s franco-canadenses para os
haveriam de submeter-se a u m s ó Deus e u m s ó governo e falar u m ú n i - conventos de Tours. Quando M a r i e de I T n c a m a t i o n incitava suas i r m ã s
co i d i o m a . E m b o r a tivesse l i d o a l g u m a coisa sobre o N o v o M u n d o , a rezar pela c o n v e r s ã o dos "selvagens", uma j o v e m n o v i ç a , filha de pai
Postei se referiu basicamente aos judeus e aos m u ç u l m a n o s da T u r q u i a f r a n c ê s e m ã e micmac, j á se encontrava entre as ursulinas."'
e do I m p é r i o á r a b e . ' " Por f i m a leiga que apareceu na v i s ã o de M a r i e materializou-se
O soberano f r a n c ê s n ã o teve p a r t i c i p a ç ã o nenhuma nas v i s õ e s de sob a f o r m a de Madeleine de L a Peltrie, nck' C o c h o n de Chauvigny, f i -
M a r i e , cujos argumentos p r o v i n h a m dos Salmos, de s ã o Paulo e do lha e co-herdeira de u m f u n c i o n á r i o fiscal de A l e n ç o n e de sua nobre es-
A p o c a l i p . s e , " ' n ã o dos tratados eruditos de Postei. N o f i m sua e x t e n s ã o posa e v i ú v a do Seigneur de L a Peltrie, cuja estirpe a r i s t o c r á t i c a tinha
das e s p e r a n ç a s e s c a t o l ó g i c a s ao N o v o M u n d o se restringiu a u m e s p a ç o v á r i o s s é c u l o s de e x i s t ê n c i a . Segundo Claude M a r t i n e sua m ã e disse-
p o l í t i c o da F r a n ç a na A m é r i c a , guardado por armas de fogo. O que sua r a m posteriormente, M a d e l e i n e era sob m u i t o s aspectos a g é m e a leiga
postura i n i c i a l t e m de impressionante é a f o r ç a sentimental, a e x p r e s s ã o e u m pouco mais j o v e m da religiosa M a r i e de I T n c a m a t i o n . A o s deze-
de e m p a t i a c o m todas as "almas r a c i o n a i s " , n ã o s ó entre os j u d e u s , nove anos casou-se c o m Charles G r u e l ; meses depois deu à luz uma
m u ç u l m a n o s e outros povos n ã o c r i s t ã o s do J a p ã o , da C h i n a e da Índia, menina, que morreu pradcamente e m seguida; v i ú v a aos 25, quando
mas t a m b é m entre os "selvagens" das v a s t i d õ e s canadenses."' G m e l caiu combatendo os rebeldes protestantes e m L a Rochelle, ficou
Quatro anos se passaram entre sua p r i m e i r a leitura das Relations livre para realizar os sonhos religiosos de sua meninice. C o m o a v i ú v a
j e s u í t i c a s e sua partida para o C a n a d á . Nes.se p e r í o d o M a r i e frequente- M a r i e Guyart, dedicou-se a obras de caridade, empenhando-.se sobre-
mente conversou c o m o Senhor, que manteve seu "grande d e s í g n i o " e m tudo e m abrigar prostitutas e m sua casa a f i m de p r o t e g ê - l a s do pecado.
r e l a ç ã o a ela. Correspondeu-se c o m o padre L e Jeune e outros j e s u í t a s C o m o M a r i e , recebeu uma mensagem do Senhor enquanto rezava, e tal
da N o v a F r a n ç a , que desejavam imensamente que uma religiosa fosse mensagem lhe d i z i a que fosse para o C a n a d á . C o m o M a r i e , e m p o l g o u -
ensinar as huronianas "despidas". Fez o convento inteiro rezar pelas se ao ler as Relations do padre L e Jeune. A o cair gravemente enferma,
almas l o n g í n q u a s que se encontravam e m necessidade e encontrou o u - p r o m e t e u i r para o C a n a d á , c o n s t r u i r nesse p a í s distante u m a igreja
tra m u l h e r ansiosa para atravessar o oceano em sua companhia."' consagrada a s ã o J o s é e " c o l o c a r sua v i d a e seus bens a s e r v i ç o das
C o m o sempre surgiram o b s t á c u l o s . Seu zelo excessivo suscitou jovens selvagens". A febre imediatamente cedeu, e teve i n í c i o a conva-
d ú v i d a s no confessor j e s u í t a e na madre superiora. Tamanha " i m p e - lescença."
tuosidade" poderia ser u m i n d í c i o do chamado d i v i n o ? M a i s devasta- Sua promessa de i r para o C a n a d á envolvia muitas coisas: o dote
doras eram as d ú v i d a s de d. R a y m o n d de Saint Bernard. Seu antigo d i - v u l t o s o , as vastas p r o p r i e d a d e s que M a d e l e i n e h e r d a r i a , a nobre
retor espiritual, que se encontrava e m Paris, estava considerando uma p r o g é n i e que poderia v i r a ter. Pressionada pelo pai v i ú v o a casar-se de
m i s s ã o ao C a n a d á , p o r é m achava a l g o "pretensioso seu desejo de novo, ela u t i l i z o u u m estratagema fiel à literatura barroca da é p o c a —
a b r a ç a r c o m tanto ardor uma empresa m u i t o acima das pessoas de seu um casamento fictício — a f i m de ganhar tempo e preservar seus bens

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a t é encontrar o convento. ( M a r i e de I T n c a m a t i o n n ã o se i n c o m o d o u que a m ã e passaria pela cidade, a c a m i n h o de Paris, procurou-a numa
n e m u m p o u c o c o m esse t i p o de a r t i f í c i o . ) O suposto m a r i d o era hospedaria. M a r i e lhe disse que j á o havia confiado a Deus e que, se ele
n i n g u é m menos que Jean de B e r n i è r e s , de Caen, c r i s t ã o no í n t i m o e ex- obedecesse ao Senhor e o temesse e confiasse e m sua P r o v i d ê n c i a , na-
t e r i o r m e n t e a l t o f u n c i o n á r i o do Tesouro, c o m o seu p a i . B e r n i è r e s da lhe faltaria. " V o u para o C a n a d á , é verdade, e é por d e t e r m i n a ç ã o d i -
pediu-lhe a m ã o e a p ó s a morte s ú b i t a do "sogro", e m 1637, manteve o vina que o d e i x o pela segunda vez. N ã o poderia haver honra maior para
falso c o m p r o m i s s o a t i m de frustrar os e s f o r ç o s da f a m í l i a no sentido m i m que ser escolhida para a e x e c u ç ã o de t ã o grande d e s í g n i o , e, ,se
de i m p e d i r que sua " n o i v a " administrasse a p r ó p r i a h e r a n ç a . " ' v o c ê me ama, e x u l t a r á c o m tal honra e dela p a r t i c i p a r á . " C o m o l e m b r o u
H m j a n e i r o de 1639 L a Peltrie e B e r n i è r e s reuniram-se no gabi- mais tarde, Claude voltou para seu quarto, q u e i m o u a carta que revoga-
nete de F r a n ç o i s Fouquet, conselheiro de L u í s x i n , c o m v á r i o s j e s u í t a s va sua p e n s ã o e d e c i d i u sacrificar a m ã e a Deus."*
e membros da C o m p a n h i a da N o v a F r a n ç a , autorizada pelo rei. A C o m - Durante suas ú l t i m a s semanas e m Paris — e sua p r i m e i r a visita à
panhia concordou e m doar as terras, e m m e . de L a Peltrie c o m p r o m e - capital — M a r i e se avistou c o m a duchesse d ' A i g u i l l o n e a comtesse de
teu-se a fornecer o d i n h e i r o n e c e s s á r i o para a c o n s t r u ç ã o de u m con- Brienne (a p r i m e i r a era sobrinha de Richelieu e ambas patrocinavam a
vento e u m a i g r e j a das ursulinas e m Quebec, b e m c o m o para o a t u a ç ã o f e m i n i n a no â m b i t o da r e l i g i ã o ) ; j u n t a m e n t e c o m as compa-
aprovisionamento de u m navio que cruzaria o oceano na primavera."" nheiras de v i a g e m , f o i recebida no clíâteaii de Saint-Germain-en-Laye
E m fevereiro o "casal" .seguiu para Tours, onde Madeleine .se avistou pela rainha, A n a da Á u s t r i a . " ' A l i presenciou a mistura c o r t e s ã de po-
c o m M a r i e e juntas planejaram seu empreendimento a p o s t ó l i c o . litesse e dévotion, da q u a l se l e m b r a r i a c o m algumas reservas no
Meses antes mme. de L a Peltrie tomara conhecimento dos sonhos Canadá.
de M a r i e e m r e l a ç ã o ao C a n a d á e recebera desta ú l t i m a uma carta e m - E m 4 de maio de 1639, M a r i e Guyart de I T n c a r n a d o n embarcou
polgada. " M e u c o r a ç ã o e s t á c o m o seu e ambos se f u n d e m c o m o e m Dieppe c o m Madeleine de L a Peltrie, M a r i e de Saint Joseph, C é c i l e
c o r a ç ã o de Jesus e m meio aos e s p a ç o s infinitos nos quais a b r a ç a m o s to- de Sainte C r o i x (ursulina do convento local) e Charlotte Barre. A bor-
das as pequenas selvagens." Quando as duas mulheres se v i r a m face a do do Saint-Joseph e n c o n t r o u ainda t r ê s religiosas h o s p i t a l á r i a s de
face, sua u n i ã o se c o n f i r m o u . A aventura e s p i r i t u a l u n i u a f i l h a do Dieppe, que v i a j a v a m acompanhadas de uma criada para fundar u m
padeiro e a aristocrata, separadas pelo b e r ç o e pela riqueza, e, segundo hospital em Quebec, e dois padres j e s u í t a s . "Quando pus o p é no barco
as palavras de M a r i e , as fez sentir que t i n h a m " u m a ú n i c a vontade". Es- que nos conduziria ao ancoradouro, tive a s e n s a ç ã o de entrar no P a r a í -
c o l h i d a para acompanhar M a r i e estava a nobre u r s u l i n a M a r i e de so, pois esse f o i o p r i m e i r o passo que me levaria a arriscar m i n h a vida
S a v o n n i è r e s (que imediatamente trocou seu nome religioso de M a r i e por amor À q u e l e que ma havia dado." M a r i e s ó parou de escrever sobre
de Saint Bernard para M a r i e de Saint Joseph, a f i m de agradecer ao es- sua partida quando o navio d e i x o u para t r á s o canal da M a n c h a ; e n t ã o
poso da V i r g e m , que intercedera e m .seu favor); escolhida para servir l a n ç o u suas cartas aos pescadores, para que na F r a n ç a as enviassem pe-
Madeleine estava Charlotte Barre, j o v e m plebeia que esperava profes- lo c o r r e i o . "
sar u m dia."'
A s ursulinas comemoraram c o m u m Te Deum tais acontecimen-
tos, que, contudo, suscitaram menor alegria e m outros habitantes de A o desembarcar no C a n a d á , M a r i e beijou o c h ã o . A paisagem se
Tours. A o saber que sua i r m ã estava prestes a p a r t i r para o C a n a d á , parecia c o m a que vira e m sonho, mas n ã o era t ã o nevoenta. A c o l ó n i a
Claude Guyart fez de tudo para i m p e d i r o embarque; chegou a levar u m no vale d o S ã o L o u r e n ç o , à qual as ursulinas chegaram e m agosto de
n o t á r i o ao convento e a revogar na p r e s e n ç a de M a r i e a p e n s ã o conce- 1639, compunha-se de algumas centenas de franceses — religiosos,
dida a Claude M a r t i n ; a l é m disso, repreendeu-a por abandonar o f d h o comerciantes de peles, administradores, soldados, a r t e s ã o s , a g r i c u l -
mais uma vez e i n f o r m o u o m e n i n o sobre seus planos. O " m e n i n o " t i - tores, criados — , que nas t r ê s d é c a d a s seguintes n ã o passariam de uns
nha agora quase vinte anos e estudava filosofia e m O r l é a n s ; ao saber poucos m i l h a r e s . " A p o m p o s a carta r é g i a da C o m p a n h i a da N o v a

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F r a n ç a concedia aos cem associados c a t ó l i c o s o governo e o d o m í n i o a chegada de Lavai, uma série de i n s t i t u i ç õ e s estabeleceu a u n i ã o entre o
feudal sobre o t e r r i t ó r i o que se estendia da F l ó r i d a à Terra N o v a . Exce- " P a r a í s o " de Guyart e as estruturas europeias de poder e c o n f l i t o . "
tuando-se alguns povoados de A c a d i e , constantemente atacados pelos T u d o somado, M a r i e agora via o bispo c o m bons olhos. Os j e s u í -
ingleses, os franceses se concentravam ao longo do rio S ã o L o u r e n ç o . tas, escreveu ao filho, eram confessores maravilhosos, p o r é m o C a n a d á
Quebec e T r o i s - R i v i è r e s j á ostentavam fortes e outros e d i f í c i o s quando andava p r o d u z i n d o casos de c o n s c i ê n c i a que requeriam o poder epis-
M a r i e chegou, e e m 1642 iniciaram-se as c o n s t r u ç õ e s na ilha de M o n - c o p a l . U m b i s p o piedoso p o d i a proteger os que se e n c o n t r a v a m na
treal, c o m recursos enviados de a l é m - m a r pela Sociedade de Cavalhei- N o v a F r a n ç a e m m i s s ã o a p o s t ó l i c a contra os que ah estavam simples-
ros e Damas para a C o n v e r s ã o dos Selvagens da N o v a F r a n ç a . Nos t r i n - mente para negociar peles de castor o u obter terras. A s vezes m o n -
ta anos seguintes pequenas p o v o a ç õ e s francesas s u r g i r i a m ao redor seigneur Lavai se excedia, mas as ursulinas geralmente encontravam
dessas cidades, estendendo-se r i o abaixo desde Quebec a t é o porto e u m m o d o de d o b r á - l o : e m 1660, quando ele lhe ordenou que abrisse
feitoria de Tadoussac. N a d é c a d a de 1660 Colbert lotava navios de m u - todas as cartas das i r m ã s e n d e r e ç a d a s à F r a n ç a , a madre superiora se
lheres solteiras da C h a r i t é de Paris e de outras i n s t i t u i ç õ e s de caridade, l i m i t o u a romper os sigilos, sem ler o c o n t e ú d o . "
e M a r i e de I T n c a m a t i o n observou que ao cabo de poucas semanas elas U m a r e d i s t r i b u i ç ã o de poder semelhante ocorreu nas i n s t i t u i ç õ e s
encontravam maridos entre os hahitants franceses." p o l í t i c a s . Para c o m e ç a r , os C e m Associados da C o m p a n h i a da N o v a
A f o r m a de autoridade religiosa e p o l í t i c a moditicou-se c o m es- F r a n ç a escolheram o governador do C a n a d á e concederam senhorias e
sas m u d a n ç a s ocorridas na p o p u l a ç ã o . N o c o m e ç o da c o l ó n i a , durante p r i v i l é g i o s comerciais ao l o n g o do S ã o L o u r e n ç o . D e p o i s , e m 1645,
os anos de 1640, Quebec era o reino espiritual dos religiosos, mais es- enquanto na F r a n ç a os conflitos p o l í t i c o s e v o l u í a m em d i r e ç ã o à F r o n -
pecificamente dos j e s u í t a s . Apenas alguns padres seculares v i v i a m ao da, a C o m p a n h i a t r a n s m i t i u o c o n t r o l e do c o m é r c i o de peles para a
longo do S ã o L o u r e n ç o , dois ou três rezando missa para as ursulinas e C o m m u n a u t é des Habitants — ou seja, os chefes de f a m í l i a franceses
as h o s p i t a l á r i a s de Quebec. Os j e s u í t a s m o n o p o l i z a v a m a p r e g a ç ã o , or- residentes no C a n a d á . A g o r a os colonos p o d i a m proteger seu m o n o -
ganizavam as c e r i m ó n i a s p ú b l i c a s , entregavam o v é u a novas religiosas p ó l i o comercial dos mercadores independentes que negociavam c o m
e a l u a v a m c o m o " v i g á r i o s " de u m a " p a r ó q u i a " f i c t í c i a de c o l o n o s os a m e r í n d i o s e m Tadoussac e c o n t r a b a l a n ç a r c o m muitas peles de cas-
franceses e i n d í g e n a s convertidos, cujas fronteiras eram improvisadas tor os anos e m que enfrentaram a escassez do produto. E m 1647 o go-
para as p r o c i s s õ e s das R o g a ç õ e s , na primavera. A autoridade e c l e s i á s - vernador criou u m conselho e m Quebec que i n c l u í a o superior j e s u í t a e
tica capacitada a s u p e r v i s i o n á - l o s estava longe — e m R o m a ou no arce- homens eleitos nas cidades. A g o r a p o d i a m brigar entre si para decidir
bispado de Rouen — , e isso agradava m u i t o a M a r i e G u y a r t de V Incar- se convinha vender aguardente e v i n h o aos nativos.'"
nation. "Fala-se e m designar u m bispo para o C a n a d á " , escreveu ao Essas i n s t i t u i ç õ e s descentralizadas desapareceram no i n í c i o da
f i l h o e m 1646. "Sinto que Deus ainda n ã o quer u m bispo no C a n a d á . d é c a d a de 1660, quando o j o v e m L u í s x i v e o m i n i s t r o C o l b e r t reorga-
Esta terra n ã o e s t á pronta para tal, e, tendo implantado o cristianismo, nizaram a F r a n ç a e seu sonhado i m p é r i o . A C o m p a n h i a da N o v a F r a n ç a
nossos reverendos padres precisam c u l t i v á - l o u m pouco mais sem que e a C o m m u n a u t é des H a b i t a n t s d e i x a r a m de e x i s t i r , e o c o n t r o l e
n i n g u é m lhes contrarie os planos."" e c o n ó m i c o do C a n a d á passou para a Companhia das í n d i a s Ocidentais,
N o Natal de 1650 a " p a r ó q u i a " p o s s u í a uma nova igreja. Nossa que e m sua m a i o r parte pertencia à C o r o a e a esta respondia direta-
Senhora de Quebec, c o n s t r u í d a c o m os lucros do c o m é r c i o de peles. N o mente. U m governador e intendente designado pelo sobrerano levou a
Natal de 1659 o bispo F r a n ç o i s de Lavai de M o n t i g n y celebrou a mis- p o l í t i c a real ao S ã o L o u r e n ç o , e os colonos franceses que a t é e n t ã o
sa do galo, cantada pelos j e s u í t a s ; no v e r ã o desse mesmo ano confir- eram eleitos p a r a c o m p o r o conselho passaram a ser escolhidos pelo go-
mou-se sua n o m e a ç ã o diante de uma centena de algonquinos e huronia- vernador e pelo bispo. " A g o r a o rei é o dono desta terra", M a r i e de I T n -
nos. Quebec ainda n ã o era uma diocese francesa independente — o que c a m a t i o n escreveu ao f i l h o n u m a carta que lhe e n v i o u no outono de
só aconteceria e m 1674, dois anos a p ó s a morte de M a r i e — , mas, c o m

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Os i n d í g e n a s teriam chegado a uma c o n c l u s ã o diferente. A s flores- A l é m disso cabia-lhes transformar o m i l h o em farinha, assar e defumar

tas e m que os franceses penetraram abrigavam povos que falavam algon- a carne e cozinhar grande parte dos alimentos numa ú n i c a panela.

quino (os micmacs no extremo leste, os abenakis ao sul do S ã o L o u r e n ç o Os p r i m e i r o s franceses que descreveram essa d i v i s ã o de trabalho

e os montagnais e algonquinos ao norte) e idiomas iroqueses — ou seja, acharam-na m u i t o desigual, pois na agricultura europeia geralmente as

os iroqueses, centralizados na r e g i ã o dos Finger Lakes, e os huronianos, mulheres manejavam a enxada na horta, os homens manejavam o ara-

petuns e neutrais acima dos lagos Huron e Erie.™Esses povos viajavam do nos campos e se encarregavam de transportar os produtos, traba-

muito por toda a r e g i ã o , e, se os huronianos e iroqueses se referiam ao go- lhando no m í n i m o tanto quanto elas. "As mulheres trabalham i n c o m -

vernador f r a n c ê s c o m o O n o n t i o — "Grande Montanha", por causa do paravelmente mais que os homens", Jacques Cartier disse a respeito do

governador H u a u l t de M o n t m a g n y — , n ã o h á i n d í c i o s de que vissem nele povo de l í n g u a iroquesa que encontrara ao longo do S ã o L o u r e n ç o em

ou em seu chefe distante o dono daquelas terras." 1536. Escrevendo sobre os abenakis e m 1616, o j e s u í t a B i a r d f o i ainda
mais i n c i s i v o : " [ O s h o m e n s ] n ã o t ê m outros servos, escravos o u
Os algonquinos, os montagnais e outros i n d í g e n a s que falavam
a r t e s ã o s a l é m das mulheres; essas pobres criaturas suportam todos os
idiomas algonquinos v i v i a m basicamente da c a ç a e da coleta e c o m fre-
sofrimentos e fadigas". G a b r i e l Sagard, da ordem dos Recoletos, fez
q u ê n c i a deslocavam seus acampamentos. Os huronianos, os iroqueses
u m c o m e n t á r i o semelhante a respeito dos huronianos, entre os quais
e outros povos que falavam idiomas iroqueses praticavam uma agri-
viveu e m 1623 ("As mulheres se i n c u m b e m de todas as tarefas servis e
cultura rudimentar, a l é m de dedicar-se a coleta, pesca e c a ç a . Os ho-
em geral t r a b a l h a m mais que os h o m e n s " ) , p o r é m c o n c l u i u alegre-
mens preparavam os campos para o plantio, mas eram as mulheres que
mente que "a tanto n ã o s ã o f o r ç a d a s nem constrangidas"."'
cultivavam m i l h o , feijão, a b ó b o r a e, e m alguns lugares, tabaco. ( M a i s
adiante veremos uma i l u s t r a ç ã o elaborada por j e s u í t a s que mostra uma Para M a r i e de I T n c a m a t i o n o trabalho á r d u o das mulheres era
agricultora.) E r a m t a m b é m as mulheres que c o l h i a m frutos e outros a l i - apenas u m dado, u m fator determinante do momento e m que as jovens
mentos e p r o v i d e n c i a v a m lenha. A s aldeias a g r í c o l a s c o s t u m a v a m e as meninas p o d i a m receber i n s t r u ç ã o no convento. E m 1646 ela es-
deslocar-se a i n t e r v a l o s de poucos anos, à s vezes p o r q u e t e m i a m creveu ao fdho: " N o v e r ã o as c r i a n ç a s n ã o p o d e m se afastar das m ã e s ,
ataques i n i m i g o s , mas geralmente porque as mulheres h a v i a m declara- nem estas p o d e m deixar os filhos, que as ajudam nos m i l h a r a i s e na
do os campos inférteis e a lenha extinta n u m raio de alguns q u i l ó m e - p r e p a r a ç ã o das peles de castor".""O que mais M a r i e G u y a r t poderia es-
tros. Os homens c a ç a v a m e pescavam, p o r é m as mulheres ativas acom- perar? N ã o fizera de tudo, desde tratar de cavalos a t é cuidar da c o n -
p a n h a v a m os m a r i d o s ou pais sempre que lhes p e r m i t i a m suas tabilidade na casa do carroceiro? N o convento de Tours n ã o se man-
atividades a g r í c o l a s ou d o m é s t i c a s . E eram elas que carregavam grande fivera ocupada elaborando r e t á b u l o s e ornamentos? E agora n ã o estava
parte do produto da c a ç a ou da pesca. novamente pintando a l t a r e s , " ' a l é m de cozinhar, despejar a lavadora e
catar lenha nas florestas de Quebec? A n o s depois considerou a d i v i s ã o
A d i v i s ã o de tarefas e n v o l v i a t a m b é m os trabalhos manuais. Os
de trabalho c o m o parte da "liberdade" da " v i d a selvagem", que fazia os
homens f a b r i c a v a m armas e utensdios de pedra, madeira, osso e à s
í n d i o s p r e f e r i - l a aos costumes franceses. Os homens f u m a v a m en-
vezes cobre; esculpiam os cachimbos comuns e os cachimbos da paz;
quanto as mulheres cuidavam de seus afazeres d o m é s f i c o s ; as m u l h e -
c o n s t r u í a m cabanas e canoas; e faziam raquetas para andar na neve. A s
res e as meninas remavam as canoas c o m o os homens. Estavam habi-
mulheres fiavam, teciam e costuravam; encordoavam as raquetas de an-
tuados e achavam isso "natural"."^
dar na neve; fabricavam cestos, redes, esteiras de j u n c o e u t e n s í l i o s de
c e r â m i c a ; empregando os materiais mais diversos, c o m o cerdas de por- C o n t u d o , havia uma coisa que huronianos, algonquinos e iroque-
co-espinho, conchas, contas, p ê l o de alce e casca de b é t u l a , p r o d u z i a m ses n ã o achavam natural. Ingleses, franceses e holandeses levaram para
objetos decorativos."" Por o c a s i ã o das c a ç a d a s as mulheres d e v i a m n ã o o C a n a d á novas d o e n ç a s — gripe, sarampo e principalmente varíola — ,
s ó transportar para o acampamento os animais mortos, c o m o ainda es- as quais ceifavam vidas entre as v u l n e r á v e i s p o p u l a ç õ e s a m e r í n d i a s da
c o r c h á - l o s , preparar o couro ou a pele e fazer roupas, sacos e mocassins. mesma f o r m a que a peste b u b ó n i c a e a pneumonia d i z i m a v a m popu-

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l a ç õ e s europeias em surtos e p i d ê m i c o s que v i n h a m ocorrendo desde E m seus parcos c o m e n t á r i o s sobre o c o m é r c i o de peles M a r i e de
meados do s é c u l o x i v ( e m Tours o mais recente acontecera e m 1631, e I T n c a m a t i o n limitou-se a desaprovar os marinheiros e mercadores que
a p ó s a morte de uma n o v i ç a as ursulinas se instalaram temporariamente davam aguardente aos i n d í g e n a s e assim os levavam à loucura. A seu
numa casa de campo que Claude Guyart lhes emprestara)."'Em meados ver uma boa c o l ó n i a francesa devia basear-se na agricultura, na pesca e
da d é c a d a de 1630 uma epidemia de v a r í o l a se abateu sobre feitorias e na e x t r a ç ã o do sal, e n ã o na c o b i ç a dos mercadores que visavam enri-
aldeias nas quais os j e s u í t a s pregavam a c o n v e r s ã o dos nativos; e m quecer c o m as peles."" Sobre os iroqueses M a r i e tinha m u i t o a dizer e
1639 alastrou-se pelo vale do S ã o L o u r e n ç o e chegou ao convento das nos p r i m e i r o s anos praticamente s ó encontrou motivos para c r i t i c á - l o s .
ursulinas meses a p ó s sua i n a u g u r a ç ã o , atingindo quatro jovens algon- A l i a d o s dos hereges holandeses, a d v e r s á r i o s dos huronianos, algon-
quinas. E m 1646-7 e e m 1654 a e n f e r m i d a d e ressurgiu, d i z i m a n d o quinos e montagnais, i n i m i g o s dos j e s u í t a s e dos colonos franceses, os
huronianos e iroqueses. Os a m e r í n d i o s reagiram de v á r i a s formas a es- iroqueses agiam sob a i n s p i r a ç ã o do d e m ó n i o . E m 1644 ela escreveu ao
ses desastres: denunciando os "roupas pretas" c o m o f e i t i c e i r o s que f i l h o : " N o m o m e n t o constituem o maior e m p e c i l h o à g l ó r i a de Deus
lhes t r a n s m i t i a m d o e n ç a s por m e i o do batismo, das imagens sagradas, nesta terra, excetuando meus malefícios".""
dos c r u c i f i x o s e do a ç ú c a r refinado ( u m " e r r o " p o r parte dos "sel- N a verdade os fatos que seus informantes huronianos, a l g o n q u i -
vagens", disse M a r i e , que, c o m o na F r a n ç a , a t r i b u í a as epidemias n ã o nos e j e s u í t a s lhe relatavam faziam parte de u m longo processo de ela-
a portadores ocultos, e sim à d e c i s ã o divina);""intensificando os pro- b o r a ç ã o de i n s t i t u i ç õ e s e p r á t i c a s p o l í t i c a s a m e r í n d i a s ao qual os eu-
cedimentos x a m â n i c o s , b e m c o m o as d a n ç a s e festas de c a r á t e r curati- ropeus r e c é m - c h e g a d o s e suas armas de fogo s ó acrescentavam novos
vo; buscando f ó r m u l a s m á g i c a s e consolo no cristianismo. Quaisquer desafios. A l é m dos conselhos locais realizados na casa c o m u n a l da
que fossem os m é t o d o s utilizados, a mortalidade atingiu n í v e i s altíssi- aldeia, a l é m das assembleias p e r i ó d i c a s de chefes dos grupos de pa-
mos. A s p o p u l a ç õ e s i n d í g e n a s reduziram-se e m meados do s é c u l o à rentesco aliados que c o m p u n h a m uma " t r i b o " , duas f e d e r a ç õ e s emer-
metade e algumas nunca mais voltaram a ser t ã o numerosas c o m o antes g i r a m ao l o n g o dos 150 anos anteriores, e m cada u m dos casos criando
da d é c a d a de 1630."' " u m p o v o " c o m grupos afastados ou mesmo a n t a g ó n i c o s . U m a delas
O d e c r é s c i m o p o p u l a c i o n a l n ã o i m p e d i u que as c o m u n i d a d e s era a L i g a Huroniana, ou L i g a dos Ouendats (povo da "terra à parte"),
a m e r í n d i a s mantivessem e expandissem suas atividades de escambo, formada pelos attignaouantans (ursos), pelos attigneenongnahacs, que
guerra e d i p l o m a c i a . Tribos amigas permutavam entre si esteiras, ces- se tratavam de " i r m ã o " e " i r m ã " quando se reuniam nos conselhos, e
tos ornamentados, contas de concha e de cobre, peles, m i l h o e tabaco, por duas outras tribos. A segunda f e d e r a ç ã o era a L i g a Iroquesa das
a á r e a de troca estendendo-.se por mais de 640 q u i l ó m e t r o s a t r a v é s dos C i n c o N a ç õ e s , c o m t r ê s " i r m ã s " mais velhas e duas " i r m ã s " mais
rios e das zonas de c a ç a . A p r e s e n ç a dos franceses acrescentou ao es- jovens. E m b o r a sempre se referisse à L i g a dos Ouendats c o m o "huro-
cambo tecidos europeus, p e ç a s de v e s t u á r i o , contas de v i d r o e sobretu- niano.s", M a r i e de I T n c a m a t i o n reconhecia os iroqueses c o m o u m a
do machados de ferro, panelas de cobre e l a t ã o e outros u t e n s í l i o s de c o n f e d e r a ç ã o , cujos membros e m geral classificava separadamente: os
metal; ao mesmo tempo o m o v i m e n t o de peles de castor que s a í a m das m o h a w k s , os oneidas, os onondagas, os cayugas e os senecas. Essas
florestas para as e m b a r c a ç õ e s que partiam para a Europa centuplicou, f e d e r a ç õ e s fortaleceram a c o n c ó r d i a no m u n d o a m e r í n d i o e levaram a
estando a cargo das mulheres. Os montagnais e os algonquinos serviam u m florescimento da o r a t ó r i a masculina nas n e g o c i a ç õ e s de tratados e
de i n t e r m e d i á r i o s nes.se tipo de troca, mas a t é 1650 os huronianos eram na conquista de aliados. N o p á t i o do convento M a r i e n ã o podia o u v i r
os principais mediadores entre os a m e r í n d i o s que habitavam o interior esses discursos, que ha, p o r é m , nos manuscritos dos j e s u í t a s , copiando
e os franceses. N ã o deixavam, todavia, de enfrentar o p o s i ç ã o . E m b o r a para o f d h o as eloquentes palavras proferidas pelo m o h a w k Kiotseae-
fornecessem peles aos holandeses, as n a ç õ e s iroquesas atacavam os ton na c o n f e r ê n c i a de paz dos iroqueses e m 1645."'
huronianos e tentavam interceptar suas canoas carregadas de peles que Durante boa parte do tempo, contudo, havia guerra ou medo da
no v e r ã o desciam os rios Ottawa e S ã o L o u r e n ç o . " " guerra, c o m as c o n s e q u ê n c i a s t í p i c a s dos a m e r í n d i o s : aprisionamento

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pirados por huronianos c r i s t ã o s que se encontravam e m seu m e i o ) para
de homens, que os captores adotavam para substituir guerreiros m o r -
viver entre eles e i n s t r u í - l o s . Embaixadores iroqueses chegaram a v i s i -
tos, ou r e d u z i a m à c o n d i ç ã o de escravos, ou ainda t o r t u r a v a m a t é a
tar o convento das ursulinas (segundo M a r i e de I T n c a m a t i o n escreveu
morte e depois devoravam; e aprisionamento de mulheres, que à s vezes
ao t i l h o e m 1654) e pasmaram ao o u v i r jovens a m e r í n d i a s cantarem t ã o
assumiam f u n ç õ e s servis, p o r é m e m geral eram tomadas c o m o es-
bem à maneira francesa, "pois os selvagens a m a m o canto e responde-
posas. A briga entre os iroqueses e os huronianos — c o m seus aliados
ram cantando a sua moda, que n ã o segue o compasso francês".""
algonquinos, montagnais e franceses — devia-se e m parte à s peles, ao
A harmonia n ã o se estabeleceu de imediato: os problemas c o m os
desejo dos m o h a w k s e de outros iroqueses de fornecer peles aos france-
iroqueses ressurgiram e os onondagas se revoltaram contra os "roupas
ses e holandeses; mas principalmente se devia a q u e s t õ e s de honra e
pretas" que v i v i a m em seu meio. "Nosso convento se transformou e m
poder. E m 1652, quando os iroqueses mataram o governador f r a n c ê s de
fortaleza", M a r i e escreveu a Claude M a r t i n em 1660, e durante meses
T r o i s - R i v i è r e s , M a r i e comentou: ' A g o r a v ã o imaginar que s ã o os se-
manteve-se atenta por noites inteiras, esperando o m o m e n t o de passar
nhores de toda a N o v a F r a n ç a " . Entretanto, os iroqueses d i z i a m que
a m u n i ç ã o para os soldados que guardavam o e d i f í c i o . A g o r a o bispo
eram obrigados a guerrear para vingar o assassinato de seus ancestrais
acreditava que, " o u se e x t e r m i n a m |os iroqueses], ou todos os c r i s t ã o s
e parentes e s u b s t i t u í - l o s c o m nova parentela."
e o cristianismo p e r e c e r ã o no C a n a d á " . M a r i e continuava rezando para
Durante a l g u m tempo conquistaram v i t ó r i a s . E m 1650, armados
que Deus conduzis.se os iroqueses ao caminho do céu.""
c o m os arcabuzes que os holandeses de b o m grado lhes cediam e m tro-
A n o s depois a nova a d m i n i s t r a ç ã o nomeada por L u í s x i v e C o l -
ca de peles, d e s t r u í r a m e incendiaram as aldeias da L i g a dos Ouendats.
bert m u d o u a s i t u a ç ã o m i l i t a r vigente no C a n a d á , tornando-a f a v o r á v e l
Os huronianos, nos quais se concentravam os e s f o r ç o s m i s s i o n á r i o s
à F r a n ç a . E m 1666, no i n í c i o do outono, m i l soldados e colonos france-
dos j e s u í t a s , t i v e r a m de abandonar sua "terra à parte" nas cercanias do
ses e c e m huronianos e algonquinos, conduzidos por u m comandante
lago H u r o n . Seu i m p é r i o comercial se desmantelou, sua L i g a se desfez, experiente que rirara Caiena dos holandeses, q u e i m a r a m todas as
e os refugiados estabeleceram-se e m povoados dispersos e m Quebec aldeias dos m o h a w k s . " N i n g u é m teria acreditado [quej suas cabanas
ou f o r a m viver entre os iroqueses na c o n d i ç ã o de parentes adotados — [...] e r a m t ã o b e m c o n s t r u í d a s e e s p l e n d i d a m e n t e ornamentadas",
prisioneiros ou migrantes v o l u n t á r i o s . " E m 1652, quando os m o h a w k s M a r i e de I T n c a m a t i o n escreveu. Que belos trabalhos de marcenaria!
e os senecas se aliaram para lutar contra os franceses, o padre Rague- Quantos c a l d e i r õ e s ! Enquanto os m o h a w k s estavam nas montanhas,
neau chegou à c o n c l u s ã o de que o diabo estava à solta nos dois lados do observando, as tropas francesas atearam fogo aos campos culdvados
A t l â n t i c o : a Velha F r a n ç a era d e s p e d a ç a d a pelos p r ó p r i o s filhos (na pelas mulheres e se apoderaram de seus vastos estoques de m i l h o e fei-
Fronda) e a N o v a F r a n ç a corria o risco da destruição.""' Entrementes, e m j ã o , "suficientes para alimentar o C a n a d á inteiro n u m p e r í o d o de dois
dezembro de 1650, u m i n c ê n d i o acidental destruiu o convento das ur- anos". Celebrou-se u m Te Deum, rezou-se missa e ergueu-se u m a cruz
sulinas e algumas religiosas que se encontravam na F r a n ç a acharam c o m as armas da F r a n ç a . Entrementes, M a r i e soube que alguns solda-
que suas i r m ã s de Quebec deviam voltar à p á t r i a . dos que se d i r i g i a m aos t e r r i t ó r i o s iroqueses avistaram no c é u u m a
Todavia, em meados da d é c a d a de 1650 a s i t u a ç ã o c o m e ç o u a m u - grande abertura, c o m chamas ardentes e vozes lamentosas — "eram,
dar. O convento foi r e c o n s t r u í d o c o m prodigiosa rapidez, a V i r g e m es- talvez, os d e m ó n i o s enfurecidos c o m o despovoamento de u m p a í s que
tando presente em u n i ã o interior c o m M a r i e durante todo o tempo e m haviam d o m i n a d o durante tanto tempo"."''
que ela e as i r m ã s apressavam seu trabalho. "CoMrÉ'Mr.s- de bois france- N o v e r ã o seguinte os m o h a w k s e os oneidas chegaram a Quebec
ses percorriam as florestas, dirigindo-se a locais distantes para trocar c o m v á r i o s presentes, fizeram as pazes e pediram aos "roupas pretas"
presentes e produtos da F r a n ç a pelas peles de castor que os chapeleiros que voltassem a i n s t r u í - l o s . " U m m i l a g r e " , M a r i e escreveu e m 1668 a
europeus tanto apreciavam.'"''Os m i s s i o n á r i o s j e s u í t a s c o n t i n u a v a m uma ursulina que estava na F r a n ç a . " U m m i l a g r e " que as n a ç õ e s iro-
procurando almas para converter e — surpresa das surpresas — e m quesas, outrora " t ã o ferozes e c r u é i s , hoje [... J c o n v i v a m conosco c o m o
1653-4 receberam convites dos onondagas e dos senecas ( e m parte ins- se f ô s s e m o s u m s ó povo."'""

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Desde que M a r i e de 1' Incarnation iniciara sua v i a g e m ao P a r a í s o H a v i a ainda as " m i s s õ e s t e m p o r á r i a s " , c o m o os j e s u í t a s as cha-
h a v i a m se passado 32 anos, e durante esse tempo m u i t a coisa mudara m a v a m . Partindo de T r o i s - R i v i è r e s e m 1651, o padre B u t e u x r u m o u
no C a n a d á . P r i m e i r o houve a d o m i n a ç ã o da L i g a H u r o n i a n a e de seus para o Norte e a p ó s v á r i a s semanas de caminhadas pela neve e viagens
aliados, o reino i m a g i n á r i o dos j e s u í t a s e as i n s t i t u i ç õ e s descentrahza- de canoa chegou aos locais onde os montagnais attikamegues se reu-
das dos colonos. Depois houve a d o m i n a ç ã o da L i g a dos Iroqueses — n i a m no v e r ã o ; ah se encantou ao ver que os c r i s t ã o s r e c o r r i a m a vare-
uma é p o c a que para os franceses f o i repleta de desordens, medos e es- tas, p e d a ç o s de c o r t i ç a e pele de caribu para lembrar-se dos pecados que
p e r a n ç a s . Finalmente houve a d é c a d a de 1660, c o m fortes i n s t i t u i ç õ e s deveriam confessar-lhe quando ele chegasse. ( N o ano seguinte os i r o -
r é g i a s , c o m u m bispo i m p o n d o sua autoridade onde no passado os j e - queses o m a t a r a m no m e s m o t r a j e t o . ) " " E m 1665-7 o padre A l l o u e z
s u í t a s detinham o poder, c o m novos colonos franceses tomando seus c o m e ç o u a visitar os ottawas e outras n a ç õ e s que habitavam as margens
lugares e m campos e p a r ó q u i a s e c o m os iroqueses cientes de que o do lago Superior, a f i m de combater suas "divindades i m a g i n á r i a s " do
O n o n t i o da F r a n ç a e o O n o n t i o de Quebec p o d i a m unir-se c o m suces- sol, da lua e do lago, b e m c o m o seus jongleurs, que (segundo afirmou)
so para c o m b a t ê - l o s . S e r á que durante todo esse tempo M a r i e de I T n - sacrificavam c ã e s para apaziguar tempestades e banir as novas d o e n ç a s
c a m a t i o n manteve v i v a sua e s p e r a n ç a de estreitar as "selvagens" con- que devastavam suas aldeias.""'
tra o peito? Que coisas aprendeu c o m aqueles a q u e m fora ensinar que E m contrapartida, o pequeno grupo de ursulinas, submefido à nor-
Cristo era o r e i de todos os povos? m a da clausura, ergueu seu convento no p r o m o n t ó r i o de Quebec, a ca-
valeiro do S ã o L o u r e n ç o , e dali n ã o se arredou. Seus muros n ã o eram
de pedra, c o m o na Europa, mas de cedro, c o m o u m a pequena p a f i ç a d a ;
Sempre dispostos a aventurar-se, os j e s u í t a s pregavam e m v á r i o s seu vasto p á t i o , c o m cabanas de b é t u l a e grandes á r v o r e s , convidava
lugares."" Quebec era seu centro, c o m u m a r e s i d ê n c i a , capela, escola e mais para r e u n i õ e s e atividades de estranhos que e m T o u r s . ' " E m 1650,
p o s t e r i o r m e n t e u m s e m i n á r i o . A l é m disso, h a v i a m i s s õ e s " p e r m a - quando ocorreu o i n c ê n d i o , o n ú m e r o das i r m ã s subira de quatro para
nentes" entre p o p u l a ç õ e s relativamente e s t á v e i s : e m Sillery, a poucos catorze, sem contar m m e . de L a Peltrie; e m 1669 chegou a 22. "'"Como
q u i l ó m e t r o s de Quebec, onde os j e s u í t a s c o n v e n c e r a m algumas p r i m e i r a madre superiora, M a r i e de I T n c a m a t i o n estabeleceu u m re-
famOias c r i s t ã s entre os montagnais e algonquinos a lavrar o solo e onde gulamento c o m a ajuda do p r o v i n c i a l j e s u í t a e o b e n e p l á c i t o das ursuh-
(segundo M a r i e ) "Deus é servido comme ilfaut";'"'em Sainte-Marie, nas de Paris e Tours — que requereu habilidades d i p l o m á t i c a s dignas
onde c o n s t r u í r a m u m a r e s i d ê n c i a e m terras huronianas; e m c i n c o o u - das " i r m ã s " mais velhas e mais jovens da L i g a Iroquesa. ""'Exceto nas
tras aldeias h u r o n i a n a s , cujos nomes passaram, p o r e x e m p l o , de três semanas que se seguiram ao i n c ê n d i o de 1650 e e m algumas noites
T e a n a u s t á í e para Saint-Joseph, de Taenhatentaron para Saint-Ignace;"" de 1660, quando se v i r a m sob a a m e a ç a de u m violento ataque por parte
e e m Sainte-Marie de Gannentaa, às margens do lago Onondaga. F o i dos iroqueses, as ursulinas nunca ultrapassaram sua cerca de madeira.
nesta ú l t i m a localidade que em 1656 o padre Chaumonot falou aos i r o - ( N o e p i s ó d i o de 1660 M a r i e e três i r m ã s permaneceram no convento a
queses e m sua p r ó p r i a l í n g u a : f i m de preparar c o m i d a para os soldados que o guardavam.)""

E pela fé que deixamos nosso país; é pela fé que abandonamos nossos Os nativos i a m a t é elas, ou por iniciativa p r ó p r i a , ou enviados pe-
parentes e amigos. É peia fé que atravessamos o oceano; é pela fé que tro- los pais, ou levados pelos j e s u í t a s . Os p r i m e i r o s a chegar e m grande
camos os grandes navios dos franceses por suas pequenas canoas. É pela n ú m e r o f o r a m os a l g o n q u i n o s , m o n t a g n a i s e h u r o n i a n o s — estes
fé que deixamos belas casas para nos abrigarem suas cabanas. E pela fé procurando o convento e m levas maiores depois que os iroqueses des-
que nos privamos dc nossa alimentação natural e dos pratos deliciosos t r u í r a m sua n a ç ã o . Os abenakis do Leste e os nipissings e attikamegues
com os quais podíamos regalar-nos na França para comer suas papas e do N o r t e à s vezes apareciam no p á t i o ou no p a r l a t ó r i o . N o final da d é -
outros componentes de seu passadio que os animais de nosso país mal to- cada de 1660 a t é as iroquesas j á confiavam suas filhas às saintes filies,
cariam.""
c o m o os a m e r í n d i o s chamavam as i r m ã s . ' ' ' T ã o l o g o se estabeleceram

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no C a n a d á as ursulinas trataram de estudar os i d i o m a s americanos, ( U m a das i l u s t r a ç õ e s consiste n u m a carta escrita e m h u r o n i a n o por
aprendendo-os c o m o padre L e Jeune e c o m suas alunas e visitantes e u m a n a t i v a . ) A s aulas e r a m m i n i s t r a d a s e m a l g o n q u i n o , i r o q u ê s e
ensinando-os umas à s outras. M a r i e de S a v o n n i è r e s de Saint Joseph es- f r a n c ê s , pois as "seminaristas" (assim M a r i e de I T n c a m a t i o n gostava
pecializou-se e m h u r o n i a n o ; M a r i e de I T n c a m a t i o n especializou-se de c h a m á - l a s ) d e v i a m t r a n s m i t i r as mensagens a seu p o v o e falar do
p r i m e i r o e m a l g o n q u i n o e montagnais, depois aprendeu o h u r o n i a n o - Deus c r i s t ã o aos parentes que i a m v i s i t á - l a s no convento."" A s alunas
i r o q u ê s por volta de 1650 e em tins dos anos de 1660 estava falando e que e m 1654 encantaram os embaixadores iroqueses estavam cantan-
lecionando i r o q u ê s . " " do uma m e l o d i a francesa, mas t a m b é m entoavam hinos e m huroniano
Para as meninas — isto é, para ãs filies sauvages e as filhas dos e algonquino.""Os ensinamentos das ursulinas i n c l u í a m ainda borda-
colonos franceses — as ursulinas c o n s t r u í r a m uma escola (que existe do e pintura no estilo europeu. A s alunas mais velhas j á h a v i a m apren-
a t é hoje). Nos p r i m e i r o s tempos cerca de v i n t e a cinquenta meninas dido t é c n i c a s a r t í s d c a s c o m as m ã e s e provavelmente seus gostos e es-
m o r a r a m no convento, a m a i o r i a delas sendo a m e r í n d i a s entre c i n c o e tilos a m e r í n d i o s t i v e r a m alguma i n f l u ê n c i a sobre as obras de d e c o r a ç ã o
dezessete anos. A o encerrar-se a d é c a d a de 1660 as i r m ã s recebiam que realizaram ao lado de M a r i e para a capela e a igreja paroquial.'""
anualmente em torno de 25 internas. A g o r a a maior porcentagem era de A l é m das m u l t i d õ e s femininas que habitavam ou v i s i t a v a m perio-
francesas, p o r é m "nosso s e m i n á r i o e s t á repleto de francesas e sel- dicamente o convento, havia muitos a m e r í n d i o s que procuravam as ur-
vagens [...J temos selvagens de quatro n a ç õ e s " . " " M a r i e d i z i a que as sulinas para receber i n s t r u ç ã o , c o m e r u m angu de f u b á e m qualquer
a m e r í n d i a s "nos eram dadas" ( " M a r i e Madeleine Abatenau nos f o i da- m o m e n t o d o d i a o u simplesmente para satisfazer a p r ó p r i a c u r i o s i -
da aos seis anos, coberta de v a r í o l a " ) , " ^ m a s os pais p o d i a m r e t o m á - l a s dade.'"' " V e j o c a p i t ã e s generosos e bravos ajoelharem-se a meus p é s ,
a qualquer m o m e n t o , para que os ajudassem na c a ç a ou na colheita ( e m suplicando-me que os faça rezar antes de comer", M a r i e de ITncarna-
se tratando de agricultores) ou para c a s á - l a s . A l é m desse n ú c l e o havia tíon escreveu e m 1640. " U n e m as m ã o s c o m o c r i a n ç a s e d i z e m tudo o
u m vasto grupo de meninas e mulheres a m e r í n d i a s que i a m e v i n h a m , que quero."'"""Os huronianos que v ê m a t é aqui passam praticamente
assistiam à s aulas quando q u e r i a m e depois das o r a ç õ e s f a z i a m u m a todo o t e m p o e m nosso p a r l a t ó r i o " , registrou seis anos depois, refe-
r e f e i ç ã o à base de ervilhas, angu de f u b á e ameixas."' rindo-se a chefes que se encontravam e m Quebec para comerciar peles
A p r i m e i r a p r o v i d ê n c i a das u r s u l i n a s c o n s i s t i a e m banhar as e negociar c o m os iroqueses. " M a d r e M a r i e de Saint Joseph t e m a m i s -
a m e r í n d i a s e fornecer-lhes roupas de baixo e uma t ú n i c a : s ã o de i n s t r u í - l o s [...] U m huroniano [...| f o i confiado à madre de Saint
Quando chegam estão nuas como um verme e temos de banhá-las da ca- Joseph [... 1 e obedecia t ã o cegamente a ela que n ã o fazia nada a n ã o ser
beça aos pés, para tirar a gordura com que seus pais lhes untam o corpo; que ela lhe ordenasse."'"" À s vezes, quando o n ú m e r o de pessoas era
e por mais que nos empenhemos, por mais que lhes troquemos as m u i t o grande, as duas M a r i e s lecionavam para homens e mulheres nas
roupas, demoramos muito tempo para livrá-las dos bichos [pulgas, pio- cabanas de b é t u l a ou no p á t i o . ' "
lhos, parasitas] que as infestam por causa do sebo abundante. Uma irmã
E n t r e aulas, visitas e r e f e i ç õ e s de caridade t r a n s c o r r i a a v i d a
dedica a isso uma parte do dia. Trata-se de uma tarefa que todas desejam
h t ú r g i c a do convento. A s freiras cantavam durante o culto, e os j e s u í t a s
ardentemente cumprir: quem consegue realizá-la considera-se recom-
pregavam e m sua igreja durante a Quaresma e nas festas importantes,
pensada com tão boa sorte; quem não consegue sente-se indigna e hu-
milhada."" p o r é m a maior alegria de M a r i e de I T n c a m a t i o n era ver os a m e r í n d i o s
c r i s t ã o s participarem das c e r i m ó n i a s . O batismo dos conversos tinha
A s aulas das ursulinas se concentravam nos elementos da fé c r i s t ã lugar na capela das ursulinas ( M a r i e f o i madrinha de u m adolescente
— doutrina, o r a ç õ e s , c â n t i c o s e p r á t i c a s religiosas — e no ensino do a l g o n q u i n o que a b r a ç a r a o c r i s t i a n i s m o por i n t e r m é d i o do padre L e
f r a n c ê s . Pelo menos algumas internas aprenderam a ler e escrever e m Jeune),'"' e as p r o c i s s õ e s religiosas que se realizavam nas festas mais
f r a n c ê s , e posteriormente, quando as i r m ã s j á d o m i n a v a m as l í n g u a s importantes sempre passavam pelo convento. A l g o n q u i n o s e huronia-
a m e r í n d i a s , aprenderam a escrever t a m b é m e m seu p r ó p r i o i d i o m a . ' " nos de Sillery, b e m c o m o outros a m e r í n d i o s , participavam em grande

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n ú m e r o , homens e mulheres separadamente, precedidos e seguidos por
cruzes e estandartes e por a r t e s ã o s , oficiais e j e s u í t a s franceses. N o
Corpus C h r i s t i de 1648 as ursulinas vestiram de anjo seu j o v e m criado
f r a n c ê s , B e n j a m i n , c o n f i a r a m - l h e o o s t e n s ó r i o e o m a n d a r a m sair
acompanhado por dois meninos a m e r í n d i o s que portavam círios.'"''No
v e r ã o de 1646, quando a pequena a l g o n q u i n a C h a r i t y Negaskoumat
m o r r e u no convento e m d e c o r r ê n c i a de u m a i n f e c ç ã o p u l m o n a r , seu
corpo f o i c o n d u z i d o ao c e m i t é r i o f r a n c ê s por quatro alunas — duas
francesas e duas a m e r í n d i a s — , que seguravam as extremidades da
m o r t a l h a . M a r i e de I T n c a m a t i o n chorou-a n u m a carta que e n v i o u a
Claude M a r t i n : embora tivesse apenas c i n c o anos e m e i o , C h a r i t y can-
tava os Salmos no coro das ursulinas e sabia de cor as l i ç õ e s do catecis-
mo.'"' M a r i e fez do ensino o n ú c l e o de sua obra a p o s t ó l i c a ; descreveu-o
c o m o u m a fonte de alegria mesmo e m é p o c a s de sofrimento espiritual,
quando se j u l g a v a indigna. " T u d o o que se refere ao estudo de l í n g u a s
e à i n s t r u ç ã o dos selvagens [...| tem sido t ã o d e l e i t á v e l para m i m que
quase caio e m pecado por a m á - l o tanto."'"*Na verdade suas primeiras
aulas de a l g o n q u i n o foram d i f í c e i s . Tal estudo era t ã o á r d u o , a l í n g u a
era t ã o diferente do f r a n c ê s que ela se sentia c o m o se tivesse "pedras
rolando dentro da c a b e ç a " . Conversou sobre o assunto c o m o Casto Es-
poso, o 'Verbo Encarnado, e logo estava compreendendo e falando a l -
g o n q u i n o c o m toda a facilidade. " M e u estudo era uma prece que fazia
essa l í n g u a me parecer doce, e n ã o bárbara."'""
Sobre seu estilo de lecionar n ã o h á nenhum depoimento. "Gosta-
ria de fazer m e u c o r a ç ã o sair pela l í n g u a para dizer a meus queridos
n e ó f i t o s c o m o é amar a Deus", escreveu a uma religiosa que v i v i a e m
Tours.""Das duas c o m p o s i ç õ e s p e d a g ó g i c a s que e l a b o r o u ainda na
F r a n ç a — a l í r i c a Retraites, carregada de i m a g e n s , e a seca École
sainte"'— a p r i m e i r a certamente a ajudou mais a descrever para seus
ouvintes a m e r í n d i o s u m mundo e m que u m Deus trino, u m d e m ó n i o e
muitos anjos da guarda s u b s t i t u í a m o vasto r e p e r t ó r i o nativo de m a n i -
t ó s e e s p í r i t o s o k i . À s vezes ela se l i m i t a v a a apresentar suas ideias pes-
Mdiic CiiMiil ,!<• rimanuiliim nu época cm que partiu para Quehec;
soais sobre Deus e depois os convidava a expor o que pensavam."" po.ssivclinenic o retrato foi elaborado ao vivo
Por fim, e m 1661 -8, M a r i e passou a escrever nas l í n g u a s a m e r í n -
dias. E m a l g o n q u i n o e l a b o r o u catecismos, l i v r o s de o r a ç õ e s , d i -
c i o n á r i o s e u m "grande v o l u m e de h i s t ó r i a sacra e coisas sagradas"; e m
i r o q u ê s elaborou u m catecismo huroniano, a l é m de u m d i c i o n á r i o e u m
catecismo iroqueses. Nessa é p o c a os j e s u í t a s t a m b é m andaram pre-

96
L E C H E M I N
D E P E RF E C T I o N
C o j T i p o l c p a r s a i n c l c T c r c í c dc I r s v t ,
VonLtri.-r dei Carmes & Csmichn-j
D c c h c u f f e z - ç o u í c i R c i i g i e i í í c s « 1Í
inlhiriCc p n t i c .
^oHHcíIcmnít írjídatt ã'EÍp^ínelen Tr.T-.i ',,
parlfR. f . F , Ê' I > . 5, B,

O (IIII vento das ursulinas em Quebec antes do incêndio dc 1650;


pintura feita no século XIX com base em arquivos

A P A R 1 ^
CI;ez S E B • .• R E * > t'-^S
A S T I A N H
S, lacqucs > au Cojur-lxdi»
^MrOC/ XXXVL

Leitura favorita de Marie Guyart: santa Teresa em francês Ameríndias tralnilliando a terra e recolhendo ovos de pássaros
CINTOS DE CONTAS DE
CONCHA, TECIDOS PELAS
MULHERES PARA A CALIGRAFIA
DIPLOMACIA MASCULINA DE
URSULINAS
ll|lf Ull 1 r-r
li '
E AMERÍNDIAS
tiiiuilí

i'

Atestado
dos limites
do convento
redigido
por Marie
de i Incarnation

SsifíKiS
/puniy^fi^ l)T17títtf émrfdi-i-}- '• •'i"3T!'fg/ ^

/ííy-í^Jl^í*/// -7/ '/.V • T T ' / - ' ' . '

À direita: Imrtmiano,
da eoinuiiidade cristã
de Weiídake (Lorette).
século XVIII

hK. ijff./ fr.' /tu ,^>e.'f'^r>^'


Ao lado: huroniano. " 1 .^y'4'«44jJ-'''-'íg^"''^-^
comemorando as
Quatro Nações Huronianas:
consta que e.sse cinto foi
dado a Samuel Champlain C'<;/7í/ í/c agradecimentos escrita sobre cortiça de bétula e enviada
em 1611 por "seminaristas" ameríndias a um doador francês. 1676
o FILHO EDITA OS TEXTOS DA MÃE

^-58 LA VIED E LA MERE MARIE

C H A P I T R E I I I .
— V é yHrfh>^ /X"''' /. Ci)mp4r4ifen d» Cdntdi »vtc le gránd\piii ^iii /»y tvcil til
num- ^f>Tf-^ rvme a. /J^tu-t^u y.-Lt^^ryi^, (J-^}*^^ tmntré en vifíon. U. Pauvreié de vic rkheffe de regitUrttédsns .
Jin ntuvel itairUJfement. III. Fátieme àdmirMe i fuffurter lei ,
fãlettz. dei ^llij SMUvdges. IV. I>e fã^erfevirãnte dansVam^urpeut .
Ill Sduvggej. y. Et du vx» ijH'eÍte nfãit de fe cunfcmmtr i leur
ftniee Ví. lrícommod'te\des Reli^ieufei d*ns leur cBnmettcement. \
111. Le Mmuflere efí bki. V 111. Lti Rtlipeufei tyãtit ití fri. i
fel de dtxerÇei Con^regiitivni lunijfeni en une , & eanvitnnent •
des reglemeni t^nelles doiventgtrder. \

ye^lf-o•-> r-^oj Ca U-' n.oMcel 'tJl-a.l^fiV/í^><•<•••


r,'. 9c.:'!/.- y.iíL y.y/ U<rlh-í.-r.:.e->ajyír' eu*-^ "'^
A Prcs que je fus arrivéccn ce pais ,8c que j'cus fait rcflcxion |
íur toucccqucj'y voyois, jcrcconnus que c'ctoic ccluyque '
Nôtrc Seigneur m'avoíC montrc il y avoit ííx atis : ces grantics
inontagnes,ccs vartes forcílí ,ces pais immenfcs, la fituation &
l i forme des licux qui fe prcfentoicnt á ma veue,ccoientlcs me.
mcsque j'avois véus, Sc qui ctoicnt encore auífi prcfensdans nion
efprit (iu'à l'licurc mcmc, excepto que je n'y voiois pas tantde ^
brunes. Cela rcnouvclla bcaucoup la fttveur dc ma vocation,|
& me donna une pente à n>'abandonner toute moy.méme pour'*
touc íõufFnr, & pour tout faire ce que Nôtre Seigneur voudroit
j.Uri-a '2.<J >'^í'r.i ••'•Í)--'A:-LY lli^yj Ja, •'p'-rify\ >'•-'-• dc moy dans ce nonvel ctablidenicnt encierement diffcrent de nos
Monallcres de Francc ,pour la maníerc de vie pauvre & frugalc o à
' \\k falloit rcJuirc ,mais non pour les pratiques ícles obfervanccs
de la Kelígion, qui, graces à Notre Seigneur , y ctoient gardccs
dans leur plusgr.inde pureic. Nous commenijàmcs par la clôture
que nous fíincs Kure de gros pieux de ccdres au licudcmuraiilcs,
avft l.i licence neanmouisde donnercntrcc aux filies & aux fem-
mes Sauvages, tant Scminanftes qu'externes, 5c aux tilles Fran<;oi-
fcs qui voudroiem veuit à rmíltuciion. Nôtrc iogcmcnt ctoit íi
petit qu'en une cliambre d'environ feizc pieds en carie ctoient
ef- C^u,'- -^clí^J -f-rctniri^c-^^ fvu.f-ej cUiK. -ftUv/ Jjf-K.a — nõtre Chocur, nôtte parloir, nôtre dortoir , nôtre refectoir j 8e
dans une autte,la clafle pour les Françoifes & les Sauvages; &
pour la Chappcilc , la Sacrillie extericure , & ia cuifiiw
nous fimes faire une gallcrie en forme d'appcnti. L a fallctc des
111. filies S.auvages qui n'étoient pas encore faites i la proprctc des
Francjoifcs nous faifoit quelquc fois trouver un (ijulicr dans nôtre
pot, Sc tous les joursdes cheveux , des chatbons íc dc femblables
ordures,

A chegada ao Canadá conforme Claude Martin publicou na Vie

A chegada ao Canadá, segando a cópn, numuscrin, de Mane de rincarnaUon


irnation
parando catecismos, livros de o r a ç õ e s e d i c i o n á r i o s , mas parece que a
Histoire sacrée de M a r i e de I T n c a m a t i o n f o i a p r i m e i r a do g é n e r o . E,
c o m o nas tlorestas alguns assuntos e modos de falar eram especifica-
mente femininos, os livros de l i n g u í s t i c a e pedagogia escritos por m u -
lheres c o n s t i t u í a m u m "tesouro", segundo M a r i e . ' "
Entrementes, ela continuava escrevendo e m sua l í n g u a materna
n u m r i t m o surpreendente e m vista de todas as suas tarefas (foi eleita su-
periora três vezes para "mandatos" de seis anos e nos p e r í o d o s inter-
m e d i á r i o s exerceu outras f u n ç õ e s ) . T ã o l o g o os navios chegaram da
F r a n ç a , no v e r ã o , c o m e ç o u a escrever suas cartas para o f d h o e os pa-
rentes, para as i r m ã s ursulinas e outras religiosas francesas, para a m i -
gos e eventuais doadores que pudessem ajudar a m i s s ã o no C a n a d á .
A l é m de c o n v i d á - l o s à r e f l e x ã o espiritual e fornecer-lhes conselhos, i n -
formava-os sobre o que via, sobre o que os muitos a m e r í n d i o s e france-
ses que i a m " v i s i t á - l a e c o n s u l t á - l a " lhe contavam no p a r l a t ó r i o , sobre
o que lia nos primeiros exemplares das Relations anuais dos j e s u í t a s . ' "
Chegou mesmo a escrever para as Relations, quando os padres V i m o n t ,
Lalemant e outros superiores da C o m p a n h i a de Jesus lhe pediram que
relatas.sem fatos referentes à s ursulinas e aos nativos de seu c í r c u l o ;
ademais, o j e s u í t a F r a n ç o i s du Creux, instalado e m Paris, pediu-lhe ma-
terial para elaborar uma v o l u m o s a Historia canaclensis."'E natural-
mente havia a autobiografia espiritual solicitada por d. Claude M a r d n ,
í|ue dnalmente a recebeu e m 1654. Quando os navios levantaram â n -
cora e zarparani para a F r a n ç a , no i n í c i o do outono, M a r i e sentiu a m ã o
doendo de tanto escrever.'"

A g o r a vamos examinar es.se conjunto de escritos pelo que pode


nos revelar sobre o relacionamento de M a r i e de I T n c a m a t i o n consigo
mesma, c o m seu d l h o e o m u n d o de Claude M a r d n na F r a n ç a , e c o m os
diversos povos e idiomas do N o v o M u n d o . Infelizmente todos os seus
manuscritos e m l í n g u a s a m e r í n d i a s se perderam (trabalhos c o n g é n e r e s
elaborados por j e s u í t a s podem nos dar uma ideia de sua estrutura), mas
uma parte substancial do que ela r e d i g i u e m f r a n c ê s chegou a t é n ó s . ' "
M a r i e a f i r m a que escrevia e m f r a n c ê s espontaneamente, sem
planejar nem revisar, c o m o G l i k l bas Judah L e i b fez e m seus sete livros.
Que deixasse a pena correr apressada e m sua c o r r e s p o n d ê n c i a de v e r ã o
n ã o nos surpreende.""Mas ela nos diz que procedeu da mesma forma

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nas centenas de p á g i n a s da autobiografia que elaborou sem pressa para a travessia do A l lánl ico. Antes da viagem o que mais a afligia era o medo
Claude M a r t i n : " N ã o pense que estes cadernos que ora lhe envio foram de ser hipiVrila: esiou mentindo sobre minhas g r a ç a s e meus desejos?
premeditados para observar a l g u m a o r d e m , c o m o ocorre e m obras bem No N o v o M u n i l o o d i á l o g o de d ú v i d a e a f l i ç ã o r e f e r i a - s e à q u e s t ã o
digeridas", avisou ao f i l h o . "Quando t o m e i da pena para iniciar [estes do poder e ao merecimento da autoridade. Nos ú l t i m o s anos que vivera
escritos], n ã o sabia uma palavra do que ia dizer, p o r é m o e s p í r i t o da em Tours M a r i e galgara t r a n q i i i l a m e n t e a p o s i ç ã o de assistante da
G r a ç a , que me conduz, fez-me p r o d u z i r o que lhe aprazia [... ] e sempre madre.'" Meses ilepois de chegar a Quebec caiu n u m " a b i s m o " espiri-
c o m muitas i n t e r r u p ç õ e s e e m meio à s grandes s o l i c i t a ç õ e s de nossos tual e ali permaneceu durante sete ou o i t o anos, escondida de todos, ex-
afazeres d o m é s t i c o s " . " ' N a verdade havia apresentado a seu confessor celi) de seu ilii e l o r e s p i r i t u a l . Tal " c r u c i f i x ã o " absolutamente n ã o se de-
e a Claude u m e s b o ç o da autobiografia no ano anterior, dizendo que veu ao contato c o m as a m e r í n d i a s , que sempre lhe p r o p o r c i o n a r a m
" c o m f r e q u ê n c i a me v i n h a à m e n t e " . N o entanto, ao registrar as grande alegria. Tampouco os chefes i n d í g e n a s que rezavam a seus p é s ,
palavras no papel, talvez agisse sob o efeito de u m f l u x o criador. O numa postura ensinada pelos j e s u í t a s , suscitavam-lhe d ú v i d a s de cons-
manuscrito que chegou à s m ã o s de Claude M a r t i n praticamente n ã o c i ê n c i a . O que a atormentava era seu relacionamento c o m Madeleine
apresentava rasuras."" de I .a Peltrie e suas i r m ã s ursulinas, das quais era agora a madre supe-
O que variava eram suas expectativas e m r e l a ç ã o a seu p ú b l i c o e à riora. M a r i e considerava-.se indigna d o c a r g o e merecedoraunicamente
d i f u s ã o de seus escritos. A o escrever para as ^ e / a í / o n i - j e s u í t i c a s , ao de desprezo. Sentia-se sozinha, tentada a hostilizar as outras freiras, e
r e d i g i r o b i t u á r i o s para as ursulinas mortas no c o n v e n t o de Quebec, acreditava que estas t a i n b é m se v i a m tentadas a h o s t i l i z á - l a . N o auge
sabia que seus textos seriam impressos na F r a n ç a , mencionando ou n ã o do desespero imaginou-se à beira do inferno, prestes a mergulhar nas
seu n o m e . " ' A o enviar cartas contendo n o t í c i a s , conselhos espirituais e chamas "para desagradar a Deus".'*"
palavras de consolo, esperava que circulassem pelos conventos das ur- N e m tudo no convento corria à s m i l maravilhas: m m e . de L a Pel-
sulinas na F r a n ç a e pelos grupos dos leigos piedosos c o m os quais se trie ausentou-se por dois anos, levando boa parte de seus m ó v e i s , para
correspondia. A o elaborar seus manuscritos e m l í n g u a s algonquinas e tentar viver mais perto dos grupos a m e r í n d i o s de M o n t r e a l e Tadous-
iroquesas, pensava nas necessidades p e d a g ó g i c a s das i r m ã s ursulinas, sac; M a r i e de Saint Joseph achava exasperantes as reformas consfitu-
embora talvez esperasse que pudessem servir diretamente a seus c o n - cionais de M a r i e ; e dc repente uma caria "misteriosa", escrita n u m a
versos alfabetizados. A o escrever sua c o n f i s s ã o mais í n t i m a , a autobio- caligiafia cstianha, chegou de ' T i o i s - k i v i è r e s recomendando à madre
grafia de 1654, tinha e m vista unicamente a e d i f i c a ç ã o do f i l h o — e, se superiora que fiisse mais meiga e caridosa para c o m as pessoas a sua
ele morresse sem d e s t r u í - l a , esperava que chegasse ao conhecimento v o l t a . " ' ( ( ) que nos i n d i c a que à s vezes M a r i e devia ser d u r a e au-
de sua sobrinha, M a r i e Buisson, que agora era ursulina em T o u r s . ' " toritária.) Deus e seus diretores espirituais impediram-na de se l a n ç a r
A autodescoberta contida em seus textos a u t o b i o g r á f i c o s ocorreu às chamas, e a r e s o l u ç ã o final foi concedida pela V i r g e m M a r i a , a q u é m
por m e i o de m ú l t i p l o s d i á l o g o s . C o m o G l i k l bas Judah L e i b , M a r i e de ela relatou seu s o f r i m e n t o na festa da A s s u n ç ã o de 1647. I m e d i a t a -
I T n c a m a t i o n enfrentou debates í n t i m o s sobre .seu papel de m ã e ; entre- mente Marie senliu a a v e r s ã o à s i r m ã s tran.sformar-seem amor sincero.
tanto, a p r ó p r i a G l i k l se colocava tais debates, ao passo que os de M a r i e E redefiniu seu poder sobie elas c o m o s e r v i ç o , mais especificamente
eram desencadeados pelas cartas do t i l h o . A m b a s v i a m Deus c o m o o u - c o m o um s e r v i ç o c m que s ó importava o Verbo Encarnado, e n ã o sua
vinte e leitor, p o r é m o Senhor de G l i k l n ã o lhe respondia diretamente, vontade pessoal.""
e s i m mediante c i t a ç õ e s b í b l i c a s , enquanto o Verbo Encarnado e Es- A paz voltou a lemai em seu c o r a ç ã o , mas n ã o por obra das v i s õ e s
poso de M a r i e c o m f r e q u ê n c i a lhe tecia c o m e n t á r i o s pessoais. e r e v e l a ç õ e s divinas que a inspiraram na Europa. Deus lhe dissera que
A a n g ú s t i a de G l i k l bas Judah L e i b por n ã o conseguir aceitar o no C a n a d á devia levar "uma vida c o m u m " , obedecendo rigorosamente
sofrimento c o m serenidade persistiu ao longo de sua Vida; já a e s s ê n - às normas, c o m o todo iiuuulo. sem usufruir g r a ç a s e x t r a o r d i n á r i a s que
cia do desconforto e das d ú v i d a s de M a r i e de 1' Incarnation m u d o u c o m interrompessem os tiabidlios de c o n v e r s ã o . Seu confessor j e s u í t a en-

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dossou as palavras de Deus. A g o r a a sagrada u n i ã o c o m o Verbo E n - mo de v o c ê , meu querido f i l h o , que alegria eu sentiria!", escreveu em
carnado realizava-se "sem arrebatamentos nem ê x t a s e s " , por meio da 1650, depois de contar que Joseph O n a h a r é , seu afilhado algonquino,
o r a ç ã o cotidiana, da m o r t i f i c a ç ã o , da o b e d i ê n c i a , do sacramento e so- fora queimado v i v o c o m o c r i s t ã o ) . " " M a r i e sempre p r o c u r o u o r i e n t á - l o
bretudo da d i v i n a c o m u n i c a ç ã o "no centro da alma". A s s i m , e m sua na p r á t i c a da vida espiritual, p o r é m f o i mudando de t o m ao l o n g o dos
atual espiritualidade os escritos dela t i n h a m ainda mais valor que no anos, pois Claude n ã o s ó se tornou padre, p r i o r de v á r i o s mosteiros e as-
V e l h o M u n d o : n ã o s ó se a m p l i a r a m , abrangendo os s ú d i t o s das f l o - sistente do superior-geral da ordem, c o m o passou a escrever e a enviar-
restas canadenses, c o m o se transformaram no v e í c u l o p r i v i l e g i a d o para Ihe seus p r ó p r i o s textos rehgiosos."' Quando ele lhe cobrou n o t í c i a s de
as palavras que Deus a fazia dizer.'" sua a p a r ê n c i a e m 1649, M a r i e ergueu o v é u e mostrou o rosto ao men-
Nada mostra m e l h o r seu grau de p r e o c u p a ç ã o c o m os textos que sageiro que levaria sua carta para a F r a n ç a . ' " Quando ele lhe pediu que
seus atos e e m o ç õ e s durante o i n c ê n d i o que destruiu o convento naque- levelas.se .seus "segredos" — ou seja, os sucessivos e s t á g i o s de sua v i -
la fria noite de dezembro de 1650. M a r i e correu para salvar o que era ila interior — , M a r i e por fim d e c i d i u i n c l u i r em sua h i s t ó r i a os senti-
mais importante para a irmandade. C o m as chamas rodeando-a, sentiu mentos em r e l a ç ã o ao filho e ao casamento.
uma grande liberdade de e s p í r i t o e uma grande calma ao perceber a i n u - Quanto a Claude, escrevia à m ã e para falar sobre si mesmo, per-
tilidade de todas as coisas. A p a n h o u os p a p é i s do convento e j o g o u - o s gimtar c o m o ela estava e p e d i r - l h e c o n s e l h o s . ' " P a r e c e que n ã o era
pela j a n e l a , p o n d o - o s e m s e g u r a n ç a . D e p o i s v i u o m a n u s c r i t o da m i n t o cioso dos p r ó p r i o s "segredo.s", pois contou-lhe sua l o n g a luta
p r i m e i r a v e r s ã o de sua autobiografia e s p i r i t u a l . H e s i t o u por u m ins- contra o desejo heterossexual, que se i n i c i o u e m 1652 c o m u m a ejacu-
tante, tocou-o e, levada por seu i n f a l í v e l senso de s a c r i f í c i o , tranquila- l a ç ã o i n v o l u n t á r i a na p r e s e n ç a de uma j o v e m que fora buscar orienta-
mente o d e i x o u queimar-se. '""* çilo religiosa e s ó t e r m i n o u dez anos depois, quando, n u m a i m i t a ç ã o de
srto Henlo, rolou sobre urtigas e conservou os p ê l o s urentes e m sua pele.
"Não se pode levar uma vida espiritual por m u i t o tempo sem passar por
A a u t o b i o g r a f i a e s p i r i t u a l reescrita e a c o r r e s p o n d ê n c i a entre essas p r o v a ç õ e s " , Marie calmamente comentou.
M a r i e Guyart e Claude M a r t i n c o n s t i t u í r a m u m ato de p e r d ã o : ambos a A p o s il m o i l i - "dessa inae e x c e l e n t e " ele se i n c o r p o r o u a sua
p e r d o a r a m p o r ter abandonado o f i l h o e, p o r m e i o de u m m a r de vidii, nu i i m b i n d o se de complenu-nlai a aiiloiíiogralia dela e p u b l i c á -
palavras, chegaram a u m acordo. Seu relacionamento passou por uma 1(1 N o p i e l m IO de Mia V/c, de U ) / / , publicou a carta por meio da qual
t r a n s f o r m a ç ã o c r u c i a l e m 1641, quando M a r i e soube que Claude re- M t i i i c l l i f arrancara a promessa dc ipic n i n g u é m a l é m dele e de M a r i e
solvera seguir a v o c a ç ã o religiosa e aos 21 anos fora recebido c o m o Hulssoii leria a autobiografia; c o m isso|iretendcu mostrara humildade
n o v i ç o pelos benedidnos de Saint Maur. N o ano anterior ela o repreen- da iiiiti' em n ã o c|iierer exibi ras g r a ç a s recebidas e seu gesto l o u v á v e l de
dera por deixar que os navios partissem para o C a n a d á .sem lhe enviar qiiebiai a promessa. Claude conseguiu encontrar uma c ó p i a da confis-
u m a carta e por n ã o ter sido aceito pelos j e s u í t a s . A g o r a o v i a c u m p r i r silo geral i|iic M a r i e l i / e r a ao diretor espiritual e m 1633 ("Procurei-a
os votos que fízera por o c a s i ã o de seu nascimento: " V o c ê ganhou m u i t o poi mais de vi iilc anos"), entrevistou v á r i a s ursulinas e outras religiosas
me perdendo, e meu abandono lhe f o i útil; da mesma f o r m a t a m b é m i|iii- a conheceram e, baseando-se e m trinta anos de c o r r e s p o n d ê n c i a e
ganhei, depois de deixar em v o c ê tudo o que eu dnha de caro e de ú n i - na p r ó p r i a m e m ó r i a , elaborou u m adendo para cada c a p í t u l o , devida-
co no mundo. Tendo-o perdido voluntariamente, reencontrei-o no seio mente iilenti ficado e à s vezes mais longo que o texto ao qual se referia,
desse Deus bondoso mediante a santa v o c a ç ã o que ambos seguimos". '"*" " l i s t e l i v r o n ã o tem u m autor, mas dois autores, e ambos f o r a m ne-
Claude se divertia j o g a n d o c o m o d u p l o senddo da palavra mère c e s s á r i o s para c o n c l u í - l o " , i n f o r m o u aos l e i t o r e s . ' "
[ " m ã e " e " m a d r e " [ , e M a r i e se d i v e r d a subscrevendo-se c o m o sua No v o l u m e publicado as duas vozes ora se r e f o r ç a m mutuamente
"mãe" e sua " i r m ã " . Cada qual desejava ao outro o crescimento na san- ora se o p õ e m . Por exemplo: M a r i e nunca fala explicitamente sobre de-
tidade, a vida e m Cristo e a coroa do m a r t í r i o ("Se m e dissessem o mes- sejo sexual; c m geral refere-se à s "cruzes" do casamento e a sua con-

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v i c ç ã o de que Deus a fizera casar-se apenas para trazer o f d h o ao m u n - nas a c o m u n i c a ç ã o suficiente para a o r i e n t a ç ã o de sua alma, falar c o m o
do e passar pela p r o v a ç ã o de perder os bens do marido. Contudo, quan- t e ó l o g a " . Deus lhe dera "a chave" dos m i s t é r i o s c r i s t ã o s , p o r é m M a r t i n
do ainda era n o v i ç a , a f i r m o u que t i v e r a de l u t a r c o n t r a " h o r r í v e i s se apressou e m dizer que publicara a École sainte n ã o para os doutos, e
i m u n d í c i e s " {saletez. honihles) e desejos mundanos que a t é e n t ã o des- sim para as pessoas simples."''
conhecia ou j u l g a r a ter superado havia anos.'"'O que nos leva a supor N a ú l t i m a d é c a d a de sua v i d a M a r i e se d e d i c o u a u m p r o j e t o
que o desejo .sexual seria uma das causas de sua m o r t i f i c a ç ã o c o m cor- t e o l ó g i c o m u i t o mais a m b i c i o s o : o "grande v o l u m e " a l g o n q u i n o de
rentes e c i l í c i o . h i s t ó r i a sacra e coisas sagradas. "Sou i n s t r u í d a o bastante para pregar
Claude, p o r é m , acreditava que a m ã e sempre se manteve i n a b a l á - [o cristianismo[ a todas as n a ç õ e s " , afirmara na Relation de 1654; e na
vel e m seu amor à castidade: ela quis entrar para o convento m u i t o j o v e m "doce l í n g u a " dos a m e r í n d i o s finalmente se atreveu a elaborar a obra
"e nutria extrema a v e r s ã o à s leis do estado [ m a t r i m o n i a l ] . A s s i m , e m - de t e o l o g i a que se considerava incapaz de escrever na l í n g u a dos
bora cumprisse fielmente suas o b r i g a ç õ e s conjugais, conforme a von- franceses.
tade de Deus, nunca exigiu que [o m a r i d o ] as cumprisse". O ato sexual Claude nunca leu a Histoire sacrée, mas percebeu uma r e i v i n d i -
n ã o a marcara, nem no c o r a ç ã o , n e m na alma, e a t é sua l e m b r a n ç a se des- c a ç ã o na justificativa a p o s t ó l i c a de sua m ã e — "Sou i n s t r u í d a o bas-
fizera. Para o caso de a l g u m leitor se perguntar c o m o o fílho poderia tante". E no adendo ao c a p í t u l o da Vie e m que M a r i e de I T n c a m a t i o n
saber de tudo isso, Claude acrescentou: "Assim ela contou u m dia a uma fala t ã o veementemente a Deus Pai tratou de estabelecer limites para
rehgiosa de Quebec, c o m q u e m conversava infimamente, e aconteceu essa r e i v i n d i c a ç ã o :
que de s ú b i t o veio à baila o assunto de sua vida m a t r i m o n i a l " . ' "
Sei que nunca se permitiu às mulheres exercer publicamente na igreja a
C o m r e l a ç ã o à capacidade f e m i n i n a a m ã e enxergava mais longe
função do pregador; além de são Paulo o proibir em várias passagens de
que o fílho. A m b o s expressaram algumas d ú v i d a s sobre as q u a l i f i - suas epístolas, o pudor natural não lhes permite expor o rosto à vista de
c a ç õ e s das mulheres para p u b l i c a r e a t é escrever obras de t e o l o g i a . toda espécie de pessoas: e não lhes é menos proibido exercer a função de
U m a coisa era elaborar textos de d e v o ç ã o e guias espirituais, c o m o as missionária e ir levar o Evangelho aos países infiéis, tanto por causa da
Cartas espirituais, de Jeanne de Chantal, O caminho da perfeição, de Iraqiic/a ile seu ,sexo e dos acidentes que poderiam lhes ocorrer, quanto
Teresa de Á v i l a , e os p r ó p r i o s m a n u s c r i t o s e cartas de M a r i e ; outra pori|ne a opinião comum que se tem de sua simplicidade contribuiria
coisa era dedicar-se a e x p o s i ç õ e s t e o l ó g i c a s . M a r i e chegou a c o m - iniiis para ilesacredilar a iloulrina e a religião pregadas por elas que para
preender os textos b í b l i c o s e a doutrina por uma d á d i v a de Deus, que re- coiitcrir-lhcs peso e autoridade; além dc não poderem receber a marca
cebeu por m e i o de v i s õ e s e preces; fez l i v r e uso de tal entendimento distintiva do sacerdócio, indispensável a tal ministério.""

para lecionar, p o r é m na Relation de 1654 declarou que nunca escrevera Sanla Tecla nunca pregou aos africanos no deserto, prossegue
u m l i v r o a partir disso, pois " m i n h a indignidade e a baixeza [bassesse] Claude M a r t i n , evocando u m a figura do c í r c u l o de s ã o Paulo. C o m o
de meu sexo me i m p e d i r a m " . D . Claude acrescentou que "a r e f l e x ã o bom estudioso mauriense do s é c u l o x v i i , empenhado e m separar o ver-
sobre seu sexo [...] n ã o lhe p e r m i t i u explicar a Santa Escritura".''"' dadeiro do falso na h i s t ó r i a c r i s t ã , assinala que todos os s e r m õ e s de
Tais impedimentos se revelaram superficiais. N a verdade M a r i e Tecla f o r a m comprovadamente forjados. D a mesma forma, n u m exa-
de I T n c a m a t i o n c o m p i l a r a u m t e x t o para f a c i l i t a r a i n s t r u ç ã o das me de santa Ú r s u l a e suas 11 m i l virgens, realizado e m 1676, atenua o
n o v i ç a s e m Tours, uma e x p l a n a ç ã o concisa do Credo, dos M a n d a m e n - c a r á t e r guerreiro das amazonas celebradas na historiografia ursulina:
tos e sacramentos, sem as complexas e l u c u b r a ç õ e s dos Padres da Igre- c o m o Ú r s u l a poderia ter organizado u m e x é r c i t o c o m "tantas jovens
j a , mas c o m as c i t a ç õ e s b í b l i c a s adequadas. Claude p u b l i c o u - o v á r i o s delicadas, pertencentes à s mais distintas famOias"?"'' N ã o obstante
anos depois da Vie, a d m i t i n d o que os leitores poderiam surpreender-.se c o n c l u i na Vida de sua m ã e : " [ N o C a n a d á ] M a r i e de I T n c a m a t i o n [...]
do fato de " u m a simples religiosa, que n ã o estudara letras humanas, que exerceu as f u n ç õ e s e v a n g é l i c a s que seu sexo e sua c o n d i ç ã o l h e p e r m i -
praticamente nunca lera u m l i v r o , que tivera c o m homens s á b i o s ape- t i a m . D e m o d o que, se n ã o p o d e m o s dar-lhe o n o m e de A p ó . s t o l o ,

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p o d e m o s ao menos c h a m á - l a de m u l h e r a p o s t ó l i c a \femme Apos- tica do fílho, f o r m u l a d a em 1644, c i n c o anos depois de sua chegada.
tolique]. E, se exteriormente ela n ã o r e a l i z o u tudo o que tantos mis- Seu ú n i c o relato s i . s t e m á t i c o das c r e n ç a s dos povos i n d í g e n a s e m
s i o n á r i o s excelentes t ê m realizado, podemos sem embargo i m a g i n a r deuses e vida a p ó s a morte t a m b é m se deve à curiosidade de Claude
que [...] hoje recebeu no c é u a recompensa [por seus f e i t o s ] " . ' " M a r t i n , que lhe enviou u m q u e s t i o n á r i o sobre o assunto em 1670, três
d é c a d a s a p ó s seu desembarque no C a n a d á . " *
0 que lhe interessava profundamente era n ã o a diferença entre
C o m o " m u l h e r a p o s t ó l i c a " M a r i e de I T n c a m a t i o n a m p l i o u sua a m e r í n d i o s e franceses, mas a semelhança, que a seu ver r e s i d i a na
p e r c e p ç ã o ao escrever sobre as pessoas que fora i n s t r u i r e salvar. Entre- coisa mais importante: na capacidade de a b r a ç a r o cristianismo. M a r i e
tanto, houve u m c a m i n h o pelo qual n ã o enveredou. E m nenhuma das apreciava o tipo de c r i s t ã em que se converteram as a m e r í n d i a s , a rapi-
centenas de p á g i n a s que escreveu sobre os i n d í g e n a s norte-americanos dez com que aprendiam, a maneira c o m o i m i t a v a m as freiras ("elles se
apresentou u m a sistemática de suas c r e n ç a s , c e r i m ó n i a s e costumes, forment sur nous"), seu fervor, sua docilidade — t r a ç o s a d m i r á v e i s que
c o m o encontramos nas Relations o u nas narrativas de c o n v e r s ã o , apos- os c r i s t ã o s europeus t a m b é m d e v i a m apresentar. Sobre as p r i m e i r a s
tasia, guerra e d i p l o m a c i a deixadas pelos j e s u í t a s : o relato de Pierre "seminaristas" huronianas, algonquinas e montagnaises escreveu e m
B i a r d sobre " c a r á t e r , v e s t u á r i o , h a b i t a ç õ e s e a l i m e n t a ç ã o " dos abena- 1640: " S ã o tão atentas ao que lhes ensinamos que [...] se eu quisesse
kis, de 1616; o c a p í t u l o de Paul L e Jeune "Sobre a c r e n ç a , as supers- íazê las repetir o catecismo de m a n h ã à noite elas aceitariam de b o m
t i ç õ e s e os erros dos montagnais", de 1634; o texto de Paul Ragueneau giado. listou maravilhada, nunca v i na F r a n ç a m o ç a s t ã o empenhadas
i n t i t u l a d o " O p i n i ã o dos huronianos sobre d o e n ç a s " , de 1647-8; o re- em instruir-se e rezar".'"E meses depois: "As m o ç a s cantam conosco
trato " D o c a r á t e r e dos costumes dos iroqueses", elaborado por Jean de no coro, e n ó s lhes ensinamos t u d o o que q u e r e m o s , pois s ã o t ã o
Q u e n e m 1656-7, s ó para citar alguns exemplos."" A d e s c r i ç ã o sis- m a l e á v e i s \cllcs soni si souples] que nunca encontrei nas francesas as
t e m á t i c a f o r n e c i a conselhos aos f u t u r o s m i s s i o n á r i o s e e s t i m u l a v a d i s p o s i ç õ e s que vejo nelas". Seu entusiasmo se manteve a t é o fim da v i -
d o a ç õ e s de leitores e m cuja "alma despertara a piedade pela m i s é r i a e da, i|iiiuulo o convento abrigava algumas iroquesas: "Elas s ã o o deleite
pela cegueira dessas pobres tribos". T a m b é m proporcionava aos j e s u í - dc n i i s s o s c o l a ç õ e s " . ' " "
tas a oportunidade de usar o N o v o M u n d o para criticar o Velho, con- I)iiiiilmeiite a ileleilavam os conversos. Sobre um jovem c a ç a d o r
trapondo, por exemplo, "a a d m i r á v e l p a c i ê n c i a " dos a m e r í n d i o s à ani- t|iit< nciibaia típ receber o batismo Marie nos conta: " I n t e r r o g u e i - o
mosidade reinante nos lares franceses, o u a d i v i s ã o c o m u n i t á r i a de bens lotinamcíile sobieos misléi ios de nossa santa r e l i g i ã o e fiquei encanta-
e alimentos praticada pelos nativos da A m é r i c a à pobreza extrema v i - da 1 1 ao ver que ele p o s s u í a mais conhecimento \connoissance\e
gente nos asilos da F r a n ç a cristã. mdliaivs de cristãos i|iic passam por s á b i o s . Por isso o chamamos de
Aiiguslin".'"'
M a r i e de I T n c a m a t i o n n ã o demonstra grande interesse e t n o g r á f i -
1 istai ia exagci aiuio?, Claude M a r t i n c o m e ç o u a perguntar-se. Re-
co. Eventualmente fornece detalhes fascinantes — sobre os corpos en-
gordurados das meninas; os alimentos que os algonquinos devoravam cebeu uma resposta em 1644:

nos banquetes oferecidos pelo convento; o tratamento dispensado aos (.)iK'i saber sc nossos selvagens são tão perfeitos quanto lhe digo? Em
velhos que permaneciam nas aldeias durante a temporada de c a ç a ; o matéria de costumes não possuem a polidez dos franceses para cumpri-
tambor " m á g i c o " que o chefe dos montagnais attikamegues abandonou mentar e agir. Não pensamos em ensinar-lhes tais coi.sas, e sim os man-
quando se converteu; o costume de "ressuscitar" u m m o r t o dando seu ilamenlos de Deus e da Igreja, todos os elementos de nos.sa fé, todas as
n o m e a o u t r o h o m e m , que assumia o lugar do falecido na f a m í l i a ; a orações j... | Um selvagem se confessa tanto quanto um religioso ou reli-
giosa c com tal ingenuidade que faz questão de relatar as mais pequeni-
c r e n ç a das mulheres ottawas de que os p a r é l i o s vistos no c é u da ilha
nas coisas e, quando peca, penitencia-se publicamente com grande hu-
M a n i t o u l i n eram as esposas do S o l . " " N o entanto, apenas uma vez des-
mildade.'™
creve o v e s t u á r i o dos a m e r í n d i o s , respondendo a uma pergunta e s p e c í -

104 105
A madre superiora das ursulinas de Tours M a r i e apresentou uma E, c o m efeito, depois que L o u i s e recebeu o bafismo, o Senhor f o i
c o m p a r a ç ã o semelhante: "Temos aqui dévots e devotes selvagens, tal tirando-lhe seus filhos, u m a p ó s o u t r o . "
q u a l v o c ê s os t ê m polidos \polis] na F r a n ç a , c o m a d i f e r e n ç a de que n ã o Outras convertidas que figuram nos textos de M a r i e se parecem
s ã o t ã o sutis e refinados c o m o alguns de seus [devotos], mas possuem c o m ela no tocante aos conhecimentos que a r e l i g i ã o lhes p r o p o r c i o n o u
uma candura de c r i a n ç a , demonstrando que se trata de almas regene- e a seu subsequente a t i v i s m o . A j o v e m huroniana K h i o n r e a , balizada
radas e banhadas no Sangue de Jesus C r i s t o . Q u a n d o escuto o b o m c o m o nome de T h é r è s e , aprende no convento a falar f r a n c ê s e algon-
Charles M o n t a g n e z , Pigarouich, Noel Negabamat e T r i g a l i n , [penso] t|inno, a ler e escrever; e c o m catorze anos c o m e ç a a pregar aos v i s i -
que n ã o deixaria este lugar para ou v i r o m e l h o r pregador da E u r o p a " . ' " tantes huronianos. Chegado o m o m e n t o de voltar para sua aldeia, casar-
U m a p r o c i s s ã o de franceses e cerca de seiscentos a m e r í n d i o s , realiza- se e instruir seu povo no cristianismo, é aprisionada pelos iroqueses e
da no d i a da A s s u n ç ã o , e m o c i o n o u - a a t é as l á g r i m a s : "Jamais v i na obrigada a esposar u m dos captores dela. Dez anos depois, e m 1653,
F r a n ç a p r o c i s s ã o t ã o ordeira e cheia de d e v o ç ã o " . ""O " f e r v o r " dos c o n - reaparece e n c a b e ç a n d o a casa c o m u n a l iroquesa e c o n d u z i n d o as
versos l e m b r o u - l h e os c r i s t ã o s da Igreja p r i m i t i v a . ' " o r a ç õ e s c r i s t ã s de v á r i a s f a m í l i a s . " " A montagnaise A n g é l i q u e , de
Geralmente M a r i e cita — ou diz citar — as palavras dos conver- sessenta anos, percorre as neves de fevereiro por entre pedras e florestas
fidos, c o m os quais "experimentava u m singular prazer" de conversar. para alimentar a fé e as preces dos attikamegues do Norte, "exercendo
E m suas numerosas d e s c r i ç õ e s i n d i v i d u a i s de mulheres e homens afir- a f u n ç ã o dc A p ó s t o l o ] . . . ] Deus sabe c o m que a f e i ç ã o a a b r a ç a r e i quan-
m a que o crisfianismo p r o p o r c i o n o u aos a m e r í n d i o s o mesmo b e m que do a vir .
lhe proporcionara: libertou-os dos cuidados excessivos c o m as coisas G e n e v i è v e , uma viiíva nipissing de meia-idade, carrega o m a r i d o
do m u n d o e h a b i f i t o u - o s a aceitar o que o f u t u r o lhes reservasse. morto por centenas de q u i l ó m e t r o s , atravessando matas e rio, para dar-lhe
Efienne P i g a r o u i c h , que no passado fora u m x a m ã importante entre os um enterro cri s t ão. Ida procura as ursulinas e m 1664, ansiosa para ins-
algonquinos, declarou a M a r i e : " N ã o v i v o para os animais [que c a ç o ]
triiir-sc nos m i s t é r i o s sagrados, pois e m meio a seu povo n ã o h á "roupas
c o m o antigamente, n e m para as roupas [de pele de castor]; v i v o e exis-
pietas". C o m e ç a a rezarcom palavras ardorosas; e x p e r i m e n t a u m c i n t o d e
to para Deus. Quando saio para c a ç a r , d i g o a Ele: 'Grande C a p i t ã o Je-
leiloe outros instrumentos de p e n i t ê n c i a ; c h o r a e m ê x t a s e n o c u l t o d a sex-
sus, guia-me. A i n d a que detenhas os animais e n ã o os deixes aparecer
ta iciia saiila, enqiiiinto I )eiis lhe infiiiule o amor à humanidade; aprende
diante de m i m , hei de crer e m t i . Se quiseres que eu m o r r a de fome,
abtiHcai ileiíliodoM mesma sinais de g r a ç a e de c o r r u p ç ã o ; depois vai em-
estarei contente. D i s p õ e de m i m , tu que d i s p õ e s de t u d o ' " . ' " U m a c o n -
lioiii, paia impcdii que sen ii mao lroi|iic peles por aguardente e para pre-
vertida que recebeu no batismo o nome de Louise f o i ao convento bus-
miai as i n i i l l i r i c s dc sua n a ç ã o com maiavillioso fervor. G e n e v i è v e parece
car mais i n f o r m a ç õ e s sobre o Sacramento e falou:
uma versilo amci nuiia da |)H)piia viíiva Marie Guyart.'™
Deus me concede muitas graças. Antes [de me tornar cristã] a morte de Masla de lalar sobre os conversos que frequentavam o convento
meus filhos afligia-medetal modo que nada podia me consolar; mas ago- das insulinas. F quanto aos muitos povos das florestas que eram hosfis
ra meu espírito está tão convencido da sabedoria e da bondade de Deus aos c r i s t ã o s ? De vez em quando M a r i e apresenta u m i n d i v í d u o desses
que, se Ele os levar todos, não ficarei triste. Penso comigo mesma: "Se povos, baseando-se no relato de a l g u m observador. A s s i m , conta-nos
uma vida mais longa fosse necessária à salvação de meu filho. Aquele (|ue uma huroniana, " u m a das mulheres mais idosas e n o t á v e i s dessa
que tudo fez não a negaria | . . . ] Como Deus tudo sabe, talvez visse que
n a ç ã o " , criticou os j e s u í t a s numa assembleia da aldeia:
meu fílho deixaria de acreditar nele e cometeria pecados que o precipi-
tariam no inferno". Digo a Deus: "Dispõe de mim e de meus filhos tam- Sà( I os "n )upas pretas" que nos fazem morrer com seus feitiços. Escutem-
bém. Prova-me de todas as maneiras possíveis, e não deixarei de crer em iiic. cu lhes provarei com argumentos que r e c o n h e c e r ã o como ver-
d [...] Quero o que tu queres". E depois digo a meu fílho que vejo morrer: iladciíos. Eles se instalam em determinada aldeia, onde todo mundo es-
"Vá, minha criança, vá encontrar no céu Aquele que tudo fez. E, quando tá bem; tão logo se estabelecem ali, todos morrem, com a exceção de três
estiver lá, reze para que Ele me leve também". ou (|ualr() pessoas. Eles se mudam para outro local, e amesmacoisa acon-

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tece. Vão visitar as cabanas de outras aldeias, e só aquelas nas quais não perseguida por sua n a ç ã o , mas conseguiu vencer, apesar do inferno e
entraram permanecem livres de morte e doença. Não vêem que, quando dos agentes infernais"."*'
eles movem os lábios no que chamam de prece, são sortilégios que bro- E m que m e d i d a essas a m e r í n d i a s c r i s t ã s tiveram de se transformar
tam de suas bocas? Assim é também quando lêem seus livros. Nas ca-
para corresponder aos p a d r õ e s de M a r i e de I T n c a m a t i o n ? Q u a l era seu
banas possuem grandes pedaços de madeira [fuzis, Marie explica à des-
nível de e x i g ê n c i a no tocante a " c i v i l i z a ç ã o " ? E m b o r a ela dissesse a
tinatária] com os quais fazem barulho e enviam sua magia a toda parte.
Se não forem mortos prontamente, acabarão por arruinar o país, de mo- seus correspondentes franceses que as ursulinas n ã o ensinavam po-
do que ninguém sobrará, nem jovem, nem velho. litesse à s í n d i a s aduUas, as j o v e n s "seminaristas" passavam por u m
processo de desengorduramento, recebiam roupas francesas e apren-
"Quando ela t e r m i n o u de falar, todos concordaram que isso era diam a l í n g u a , as maneiras, as habilidades manuais e musicais das eu-
verdade", c o n c l u i M a r i e . E r e a l m e n t e "parecia verdade [ . . . ] , p o i s , ropeias. Era isso que os j e s u í t a s recomendavam, sobretudo na d é c a d a
aonde os padres [ j e s u í t a s ] i a m . Deus p e r m i t i a que a m o r t e os a c o m - dc 1650, tendo e m vista as huronianas que agora v i v i a m longe de suas
panhasse, a f i m de tornar mais pura a fé dos conversos".'™
aldeias incendiadas e que assim p o d e r i a m arrumar maridos franceses,
Esse é o m o m e n t o de sua c o r r e s p o n d ê n c i a e m que M a r i e de I T n -
lira isso que os administradores da N o v a F r a n ç a encorajavam, sobretu-
camation mais efetivamente se coloca na pele de u m a m e r í n d i o anti-
do na d é c a d a de 1660, quando "Sua Majestade", L u í s x i v , demonstrou
c r i s t ã o , que a seu ver era "inspirado pelos d e m ó n i o s " . Tendo e m vista
o desejo de "afrancesar todos os selvagens, transformando-os paulati-
seu interesse pela voz humana, c o m certeza n ã o foi por acaso que re-
namente n u m peuple poli". Era isso que a t é mesmo algumas m ã e s i r o -
solveu mostrar u m a m u l h e r falando eloquentemente — u m a m u l h e r
i|ucsas pediam, ansiosas para descobrir quanto tempo as ursuhnas le-
subestimada pela Relation do padre L a l e m a n t naquele ano."*"Enquan-
variam para educar suas filhas à la Françoise.'*^
to os iroqueses eram i n i m i g o s dos c r i s t ã o s e dos franceses, M a r i e e m
K e f l c t i n d o sobre 29 anos de ensinamentos, e m 1668 M a r i e de
geral os apresentava c o m o " b á r b a r o s " que r i d i c u l a r i z a v a m , atormen-
I T n c a m a t i o n anotou que ela e suas i r m ã s h a v i a m "afrancesado diver-
tavam e matavam cativos cristãos."*'
sas selvagens" — cerca de sete ou o i t o — , que depois realizaram bons
Contudo, a t é mesmo os " b á r b a r o s " demonstraram a capacidade
c a s a m e n í o s c o m franceses."*'' P o r é m , a seu ver tal desfecho n ã o era n e m
de a b r a ç a r o c r i s t i a n i s m o , e, quando os iroqueses c o m e ç a r a m a c o n -
i i d a l í v e l nem o mais d e s e j á v e l . " D e cem [ m o ç a s ] que passaram por
verter-se, M a r i e passou a d e s c r e v ê - l o s e m termos de e n t u s i á s t i c a
nossas milos c i v d i / a m o s i|uanilo m u i t o uma." A maioria das mulheres
s e m e l h a n ç a . A m u d a n ç a se i n i c i o u c o m as visitas dos embaixadores
p i n c i m i v a m o convento para conversar o u instruir-se e partiam quando
iroqueses e de u m a capitainesse onondaga ao convento, durante as ne-
deseiavam. A maioria das meninas permaneciam entre as freiras por
g o c i a ç õ e s de paz realizadas e m 1655. A capitainesse, m u l h e r de u m
pei lodos limitatlos: ou porque os pais iam b u s c á - l a s para a j u d á - l o s nos
cacique, impressionou M a r i e porque, c o m o outras mulheres n o t á v e i s
ala/eres d o m é s t i c o s ou na c a ç a , o u porque os limites do claustro as de-
entre os iroqueses, tinha poder de influenciar d e c i s õ e s nos conselhos
p r i m i a m . "Nelas encontramos d o c i l i d a d e e e s p í r i t o [esprit], porém,
locais e de nomear embaixadores. M a i s importante: a capitainesse se
encantou de tal m o d o c o m a j o v e m huroniana M a r i e A o u e n t o h o n s , a i|iianilo menos esperamos, t r a n s p õ e m nossas cercas e v ã o correr c o m

qual p r o n u n c i o u u m discurso c r i s t ã o e cantou hinos e m h u r o n i a n o , seus pais pelas matas, onde e n c o n t r a m mais prazer que e m todos os

f r a n c ê s e l a t i m , que p r o m e t e u m a n d a r sua f i l h a para o convento."*' airativos de nossas casas francesas [...] A l i á s , os selvagens d e d i c a m a
Q u a n d o por f i m se r e a l i z o u o b a t i s m o de v á r i a s meninas iroquesas, sua prole u m amor e x t r a o r d i n á r i o e, quando sabem que as filhas e s t ã o
M a r i e de I T n c a m a t i o n enalteceu o " g o s t o pelos m i s t é r i o s da F é " , tristes, passam por c i m a de toda c o n s i d e r a ç ã o para r e a v ê - l a s , e temos
p o r é m reservou sua m a i o r alegria para as atividades de uma pregadora: de devolvê-las.""*"
" U m a boa iroquesa, convertida h á pouco tempo, tem sido t ã o zelosa de Quase todas as "seminaristas" ursulinas retornaram à "liberdade"
nossos m i s t é r i o s , os quais d o m i n a c o m p e r f e i ç ã o , que vai a todo canto de sua vida na floresta, "embora c o m o ó t i m a s c r i s t ã s " (quoi que très-
de sua aldeia instruir os velhos e osjovens e a t r a í - l o s para a fé. F o i m u i t o honnes Chrétiennes)."" De. m o d o geral M a r i e preferia esse desfecho ao

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casamento c o m franceses.'™ J á e m 1642 descrevera c o m a p r o v a ç ã o a da guarda as abandonaria se andassem quase nuas: "As mulheres desta
desenvoltura de três jovens algonquinas — A n n e - M a r i e U t h i r d c h i c h , A m é r i c a , conquanto selvagens, s ã o m u i t o pudicas e honestas", afirmou
Agnes Chabvekveche e Louise A r e t e v i r — que ajudavam as respecti- mais de uma vez ao descrever seus trajes.'" J á as t e n t a ç õ e s que levavam
vas m ã e s a preparar as peles p o r o c a s i ã o das c a ç a d a s . Segundo lhe o h o m e m à infidelidade lhe pareciam b e m mais graves. Pois o eloquente
escreveram, uma delas estava organizando preces p ú b l i c a s , outra esco- Etienne Pigarouich n ã o sucumbira a uma p a i x ã o enlouquecedora por
l h i a os h i n o s que seriam entoados e a terceira r e c o m e n d a v a i n s i s - uma mulheronontchataronon, deixando aesposaeacomunidade algon-
tentemente à comunidade o exame de c o n s c i ê n c i a . " " ' E r a e m mulheres quina e retomando suas p r á t i c a s x a m â n i c a s ? ' "
c o m o essas, b e m c o m o nas T h é r è s e s huronianas, nas A n g é l i q u e s m o n - O r e q u i s i t o b á s i c o , c o n t u d o , era que ambos os n o i v o s fossem
tagnaises e nas G e n e v i è v e s algonquinas e e m seus equivalentes mas- c r i s t ã o s . Se u m deles n ã o se convertera, mais c o n v i n h a anular as
culinos, que M a r i e de I T n c a m a t i o n depositava sua m a i o r e s p e r a n ç a de promessas de casamento. Pois o d i v ó r c i o era perfeitamente c a b í v e l
uma selva cristã.'"' quando u m c r i s t ã o se v i a u n i d o a u m c ô n j u g e que teimava e m recusar a
Essa selva c r i s t ã seria u m pouco diferente da que se encontrava c o n v e r s ã o . A s s i m , M a r i e relata o d r a m a do m o n t a g n a i s Charles
sob o controle de m a n i t ó s e okis. N o tocante à economia e à d i v i s ã o do Meiachkouat, " u m a p ó s t o l o selvagem" que pregava pelas aldeias: "Esse
trabalho e da autoridade a vida dos a m e r í n d i o s poderia se manter i n a l - generoso c r i s t ã o t e m uma esposa p a g ã das mais perversas e i n s u -
terada. Apenas por u m m o m e n t o M a r i e fez eco aos primeiros j e s u í t a s , p o r t á v e i s , que vive atormentando-o. Suporta c o m p a c i ê n c i a sua m a l -
segundo os quais os povos de l í n g u a a l g o n q u i n a d e v e r i a m tornar-se dade e seus acessos de fúria e ainda n ã o pensa em d e i x á - l a porque dese-
s e d e n t á r i o s depois de cristianizados.'" E m meados da d é c a d a de 1640 ja c o n v e r t ê - l a e salvar a alma de sua filha, que c o m ela se perderia, pois
j á parece acreditar que os povos e m constante m o v i m e n t o p o d i a m man- segundo o costume do p a í s quando u m casal se separa a mulher fica c o m
ter acesa a chama do crisdanismo sob a o r i e n t a ç ã o de alguns conversos os filhos".'"Outras vezes é a esposa cristã que tenta converter o m a r i d o
ou dos j e s u í t a s que se deslocavam c o m eles. E n ã o demonstra interesse e. nao o conseguindo, resolve d e i x á - l o . Os riscos eram grandes, segun-
em saber se a fé c r i s t ã deveria acarretar uma r e d e f i n i ç ã o da identidade d( I Marie de IT ncai nat ion, mas de qualquer modo por m e i o da família os
tribal o u u m remanejamento dos l a ç o s fraternos da f e d e r a ç ã o i n d í g e n a . amci í n d i o s |)odiam ser — c o m ou sem poUtesse — " ó t i m o s c r i s t ã o s " .
De u m c r i s t ã o exigia apenas duas coisas. Primeiro, a ruptura c o m M a n e de r i i u a i n a l i o n fora ao C a n a d á c o m o objetivo de l e v a r á s
todas as p r á t i c a s religiosas alheias ao cristianismo, c o m o atos o u con- crialiinis lacioiiais a le no Uci de todas as n a ç õ e s . M o r r e u a b e n ç o a n d o
selhos x a m â n i c o s , i n t e r p r e t a ç ã o dos sonhos, p r e s c r i ç õ e s , festas e HM "NelvUgCltN .semiiiarislas" agrupadas c m torno de sua cama — prefe-
d a n ç a s destinadas a aplacar okis e m a n i t ó s . Se independentemente dos till-llN its pensionistas francesas e m u r m u r a n d o na agonia final: " T u -
europeus os a m e r í n d i o s t i n h a m o "belo c o n h e c i m e n t o " de uma V i r g e m do é para os selvagens".'" Durante a viagem imaginara u m a f a n t á s f i c a
que dera à luz u m salvador do m u n d o (Messou, c o m o os montagnais o s e m e l h a n ç a entre sua vida interior, c o m sua capacidade espiritual, e a
c h a m a v a m ) , e n t ã o era preciso descartar todas as suas " f á b u l a s r i d í - dos conversos a m e r í n d i o s , praticamente e l i m i n a n d o a fronteira entre
culas" que contavam c o m o Messou salvara o m u n d o por i n t e r m é d i o de "selvagem" e "europeu". O p a d r ã o de s e m e l h a n ç a encontra-se e m suas
u m rato almiscarado."" Segundo, u m c o m p r o m i s s o c o m o casamento cartas e n d e r e ç a d a s à l-iança, tanto nas que se destinavam a estimular
c r i s t ã o , o que implicava romper c o m os p a d r õ e s a m e r í n d i o s que enco- d o a ç õ e s em dinheiro, preces ou simples curiosidade, quanto nas que
rajavam a c ó p u l a p r é - n u p c i a l para se encontrar o c ô n j u g e adequado, e m deviam circular amplamente o u ser lidas por u m ú n i c o par de olhos,
algumas comunidades p e r m i t i a m o coito e x t r a m a t r i m o n i a l para ambos l ú i i b o r a aceite a p r e s e n ç a de franceses c r i s t ã o s no N o v o M u n d o , essa
os c ô n j u g e s e autorizavam o d i v ó r c i o , u m novo casamento e à s vezes a c o n c e p ç ã o pelo menos abala a c r e n ç a de que entre c r i s t ã o s o d o m í n i o
p o l i g a m i a . Parece que M a r i e n ã o se preocupava m u i t o c o m o controle ileveria sempre caber aos franceses.
sexual de suas convertidas. Juntamente c o m M a r i e de Saint Joseph n ã o S() c m 166,3, quando teve de a d m i t i r que ao longo de 24 anos ne-
encontrou dificuldade em convencer as "seminaristas" de que seu anjo nhuma a m e r í n d i a procurara permanecer no convento c o m o ursulina

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professa, M a r i e se deu conta de que havia u m importante l i m i t e para pois freqiientemente se c o m u n i c a v a c o m L e Jeune e L a l e m a n t para
seu universahsmo: "Submetemos as selvagens à p r o v a " , escreveu a tratar de assuntos administrafivos; a l é m disso ambos f o r a m seus dire-
u m a i r m ã que se encontrava na F r a n ç a . "Elas n ã o p o d e m v i v e r en- tores e s p i r i t u a i s . E n t r e t a n t o , ela n ã o estabelece g e n e r a l i z a ç õ e s t ã o
clausuradas. Sua natureza é m u i t o m e l a n c ó l i c a , e as r e s t r i ç õ e s i m - sombrias, preferindo enfafizar a " m e i g u i c e " e a " d o c i l i d a d e " naturais
postas a sua costumeira liberdade de ir aonde querem intensificam essa das a m e r í n d i a s . " O nascimento selvagem torna os homens n a t u r a l -
melancolia." " N a t u r a l m e n t e M a r i e t a m b é m mergulhara na melancolia mente inconstantes", afirmou e m sua c a r a c t e r i z a ç ã o mais negativa da
ao ver-se enclausurada e m Tours e s ó se reanimara no C a n a d á , no es- natureza i n d í g e n a ; acreditava, contudo, que o " m i l a g r e " do bafismo po-
p a ç o mais extenso do convento de Quebec. E morreu v á r i o s anos antes dia remediar tal s i t u a ç ã o , conforme evidenciava a s o b r e v i v ê n c i a da fé
de a c o n v e r t i d a m o h a w k K a t h a r i n e T e k a k w i t h a i m p l a n t a r e m Sault c r i s t ã entre os huronianos p r i s i o n e i r o s dos iroqueses.'"' (Deve ter se
Saint L o u i s uma f o r m a distinta de v i d a a s c é t i c a c o m u n i t á r i a para m u - d e l i c i a d o c o m esse argumento, pois na E u r o p a a " i n c o n s t â n c i a " era
lheres sem c l a u s u r a . ™ Se por u m lado n ã o encontrou n e n h u m grande vista c o m o u m t r a ç o f e m i n i n o por e x c e l ê n c i a . ) C o m o nunca batera e m
m í s t i c o entre os a m e r í n d i o s c r i s t ã o s , por outro seu p r ó p r i o m i s f i c i s m o seu f i l h o , Claude, j a m a i s r e c o m e n d o u o espancamento das c r i a n ç a s
se transformara no N o v o M u n d o , e m virtude dos afazeres do dia-a-dia. a m e r í n d i a s ; c o m o seguira seu p r ó p r i o c a m i n h o r e l i g i o s o na casa do
Aparentemente M a r i e acreditava que e m meio a todos os seus trabalhos m a r i d o e na do cunhado, nunca disse à s mulheres a m e r í n d i a s que fi-
as a m e r í n d i a s t a m b é m p o d i a m comunicar-se c o m Deus no í n t i m o de nham o supremo dever de obedecer aos respecfivos esposos. Quanto à
suas almas. "liberdade" da " v i d a selvagem", definiu-a (conforme v i m o s ) n ã o e m
termos de estruturas de autoridade, e s i m e m termos da livre l o c o m o ç ã o
pelas florestas; viu-a c o m o u m o b s t á c u l o n ã o à s leis da conduta c r i s t ã ,
N a floresta americana nem todos partilhavam essa v i s ã o univer- e sim à v o c a ç ã o m o n á s t i c a .
salizadora. E m r e l a ç ã o à espiritualidade dos a m e r í n d i o s os padres fi- A o c o n t r á r i o de seus exuberantes relatos de c o n v e r s õ e s a m e r í n -
n h a m expectativas mais modestas e percebiam c o m m a i o r clareza as dias, os textos dos j e s u í t a s demonstram u m m i s t o de entusiasmo e des-
d i f e r e n ç a s e seus efeitos. A p r i n c í p i o os j e s u í t a s quase chegaram a de- c o n f i a n ç a . Os huronianos descritos por B r é b e u f e Lalemant na d é c a d a
sanimar ante os o b s t á c u l o s colocados pela vida "selvagem" no c a m i - de 1630 r e c o r r i a m à s o r a ç õ e s e ao batismo c r i s t ã o s ó porque esperavam
nho da r e c o n s f i t u i ç ã o cristã. " E u n ã o ousaria afirmar que presenciei e m c o m isso conquistar b e n e f í c i o s materiais imediatos, c o m o a cura de
qualquer selvagem u m gesto de verdadeira virtude m o r a l " . Paul L e Jeu- uma d o e n ç a , u m a boa chuva, fartas colheitas, a v i t ó r i a no sagrado j o g o
ne escreveu depois de passar seu p r i m e i r o inverno entre os montagnais. da " t i g e l a " . ' " ' E m 1664 o padre A l l o u e z o u v i u u m onondaga procuran-
"Eles visam apenas a seu prazer e contentamento. Acrescentemos a is- do convencer u m i r o q u ê s a batizar-se apenas para prolongar a p r ó p r i a
so o medo de ser crificados e a g l ó r i a de mostrar-se bons c a ç a d o r e s e te- vida.'"'
remos todos os motivos que os levam a agir."''"'"Do ponto de vista da O m o n t a g n a i s Charles M e i a c h k o u a t f o i mais h á b i l . D e acordo
p r u d ê n c i a humana", J é r o m e Lalemant anotou a p ó s sua p r i m e i r a t e m - c o m o relato de Paul L e Jeune, argumentou c o m u m enfermo: " N ã o
porada j u n t o aos huronianos, " d u v i d o que haja no m u n d o lugar mais penses que a á g u a do batismo é derramada para curar teu corpo; é para
difícil de .submeter-se à s leis de Jesus C r i s t o [...] mesmo porque n ã o purificar tua alma e te dar u m a vida que n ã o pode morrer".''" Sua c o n -
creio haver na face da terra povos mais livres que estes e menos capazes v e r s ã o se iniciara c o m uma v i s ã o , que L e Jeune acreditara ter sido en-
de ver suas vontades sujeitas a qualquer autoridade. D e m o d o que aqui viada pelo p r ó p r i o Cristo: u m h o m e m vestido c o m o os "roupas pretas"
os pais n ã o t ê m nenhum poder sobre os filhos, n e m os c a p i t ã e s sobre os apareceu-lhe na floresta e disse-lhe que abandonasse os velhos h á b i t o s ,
subordinados, nem as leis do p a í s sobre uns e outros, a n ã o ser quando agisse c o m o os j e s u í t a s e depois i n s t r u í s s e seu povo. L e Jeune dedicou
lhes apraz obedecer.""" muitas p á g i n a s à s conquistas espirituais de M e i a c h k o u a t : seu aban-
M a r i e deve ter o u v i d o ou lido esses c o m e n t á r i o s nas Relations, dono das " s u p e r s t i ç õ e s " relativas aos ossos dos castores que matara nu-

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m a c a ç a d a ; sua d i s p o s i ç ã o de, a p ó s u m m o m e n t o de raiva, p e r d o a r
I tais l i v r o s n ã o se e n c o n t r a v a m na estante d o convento.""" A d e m a i s ,
q u e m faiara m a l dele e rezar por essa pessoa; sua r e f l e x ã o sobre deter- M a r i e praticamente n ã o conhecia o m u n d o . De Tours a Quebec fez ape-
m i n a d o aspecto da doutrina que acabara de aprender."'"Todavia, mes- nas u m pequeno desvio e no C a n a d á n ã o visitou aldeias i n d í g e n a s , co-
m o nesse caso exemplar h á u m m o m e n t o e m que o padre se distancia m o os j e s u í t a s .
do converso: " E l e tinha tanta vontade de i m i t a r nosso m o d o de proce- Todavia, o contraste entre ela e os padres n ã o se deve ao fato de
der que perguntou se o r e c e b e r í a m o s e m nosso m e i o ; pois gostaria de estes p o s s u í r e m maiores "conhecimentos". O que estabelece a diferen-
abandonar a esposa, que n ã o se apressava e m badzar-se. ' A voz que o u - ç a e o c a r á t e r da a l i a n ç a entre "conhecedor" e " c o n h e c i d o " é o â m b i t o
v i ' , disse, ' e x o r t o u - m e a i m i t á - l o s . N ã o quero ser casado. D a r e i m i n h a da aprendizagem, da troca e da o b s e r v a ç ã o . Nos povoados i n d í g e n a s os
f i l h a para as ursulinas e ficarei c o m v o c ê s . ' Tal proposta nos fez rir".''"' j e s u í t a s se i n s t a l a v a m e m suas p r ó p r i a s cabanas t ã o l o g o p o d i a m .
À s vezes J é r o m e L a l e m a n t t a m b é m achava que os c o n v e r t i d o s Deslocavam-se de u m lado para o outro entre o e s p a ç o masculino e m
i a m longe demais. Foi o que pensou quando o padre de Q u e n relatou a l - que v i v i a m e oravam e o e s p a ç o a m e r í n d i o de homens e mulheres go-
guns fatos o c o r r i d o s entre os m o n t a g n a i s e m 1646. Por u m lado } vernado p o r m a n i t ó e/ou C r i s t o . N u m ato semelhante à a d o ç ã o que
agradou-lhe m u i t o tomar conhecimento da d e v o ç ã o de uma velha, que praticavam seus a n d t r i õ e s lhes conferiam nomes algonquinos ou i r o -
"quanto a isso demonstrou estar acima dos demais". Ela m e m o r i z o u queses — L e Jeune era E c h o m entre os huronianos, e L a l e m a n t era
longas o r a ç õ e s depois de ouvi-las uma ou duas vezes, tratou de trans- A c h i e n d a s s é — , que c o m f r e q u ê n c i a a t r i b u í a m aos sucessores, assim
m i d - l a s aos outros e, m e l h o r ainda, recolheu-se para rezar sozinha: c o m o " r e v i v i a m " o u refaziam u m nome de chefe dando-o a seu suces-
"Seu c o r a ç ã o fala uma l í n g u a que n i n g u é m lhe ensinou". Por outro la- sor.""'Mas, quando v o l t a v a m para Quebec e para a F r a n ç a (tanto L e
do, Lalemant ficou chocado c o m o "zelo indiscreto" e a " a r r o g â n c i a " Jeune quanto Lalemant retornaram à p á t r i a por a l g u m tempo),'"'os j e -
dos m o n t a g n a i s durante os l o n g o s meses de i n v e r n o que passaram s u í t a s simplesmente desatavam esses " l a ç o s de parentesco". Seu m o -
c a ç a n d o nas florestas. N a a u s ê n c i a de seu "roupa preta" u m dos ho- v i m e n t o entre os dois mundos alimentava a d i s t â n c i a mental; p e r m i t i a
mens assumiu o papel de sacerdote e celebrou missa, u m a velha fez as que se envolvessem c o m a vida e as disputas da aldeia, sem d e i x á - l o s
vezes de confessor para as mulheres, e i n s t i t u í r a m - s e outras p r á t i c a s esquecer sua c o n d i ç ã o de estrangeiros. A s t e n s õ e s acarretadas por seu
i m p r ó p r i a s c o m o se fossem m i s t é r i o s sagrados. O padre de Quen se en- desempenho eram expressas e eventualmente resolvidas por m e i o de
contrava e m Tadoussac e ao saber disso, naprimavera, reprovou-os; en- suas Relations.
t ã o o "sacerdote" montagnais confessou que "o d e m ó n i o o tentara". A o N o m u n d o de M a r i e de f l n c a r n a t i o n havia m u i t o menos d u p l i c i -
pardr, o j e s u í t a deu-lhes u m a v a r i n h a preta, u m recurso m n e m ó n i c o dade. Para ela n ã o existia a l i a n ç a por a d o ç ã o n e m troca de nome f r a n c ê s
para "lembrar-lhes o horror que devem ter por suas i n o v a ç õ e s e suas por a m e r í n d i o . Os i n d í g e n a s c h a m a v a m as ursulinas de sainte filie,
andgas s u p e r s t i ç õ e s " . " ' " " m i n h a m ã e " (Ningue, e m algonquino, que t a m b é m podia ser uma for-
•Vamos refletir u m pouco sobre as fontes da extravagante univer- ma de tratamento desdnada à s nadvas), ou ainda por seu nome m o n á s -
s a l i z a ç ã o de M a r i e — ou seja, sobre a maneira c o m o sua vida no N o v o d c o m o d i f i c a d o : assim, para eles M a r i e de Saint Joseph era M a r i e
M u n d o parecia c o n f i r m a r t ã o intensamente sua c o n v i c ç ã o da seme- Joseph e madre M a r i e talvez fosse M a r i e Incarnation."" T u d o ocorria
l h a n ç a interior c o m os "selvagens" c r i s t ã o s . Sem d ú v i d a alimentava tal na mesma clausura. Esse era o t e r r i t ó r i o das ursulinas — o s a l ã o de
certeza o t i p o de contato que ela manteve c o m outras culturas. M a r i e M a r i e de f l n c a r n a t i o n — e, no entanto, c o m suas cabanas de b é t u l a , os
n ã o estava familiarizada com a literatura erudita, de A r i s t ó t e l e s a A c o s - ; grandes c a l d e i r õ e s cheios de c o m i d a i n d í g e n a e a m u l t i p l i c i d a d e de
ta, sobre a natureza do " b á r b a r o " , n e m c o m a t e o r i a h i s t ó r i c a dos idiomas, c o n s t i t u í a u m e s p a ç o h í b r i d o , e n ã o uma t r a n s p l a n t a ç ã o da or-
franceses sobre as r e l a ç õ e s entre clima, c a r a c t e r í s d c a s g e o g r á f i c a s , hu- dem europeia. M a r i e chegou a ter u m conhecimento í n t i m o dos m o n -
mores corporais e costumes. Tais r e f e r ê n c i a s nunca d g u r a m e m seus tagnais, algonquinos, huronianos e iroqueses observando o que acon-
textos, e, pelo que sabemos sobre a biblioteca das ursulinas e m Quebec, tecia nos d o r m i t ó r i o s , nas salas de aula, na capela e no p á t i o do

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convento, e sobretudo conversando c o m meninas e mulberes. G e r a l - centistas e dos Annales das h o s p i t a l á r i a s de Quebec t a m b é m s ã o h e r o í -
mente f a l a v a m n u m a l í n g u a a m e r í n d i a , e as conversas pachorrentas nas espirituais, embora as i r m ã s u t i l i z e m frases c o m o " n ã o apresenta
b e m p o d e m ter levado madre M a r i e a acreditar que o estado interior t e n d ê n c i a selvagem" e " n ã o demonstra nenhum h u m o r selvagem" c o m
daquelas mulheres se assemelhava ao seu. m u i t o mais c o e r ê n c i a que M a r i e . " "
Outros aspectos de sua vida talvez tenham c o n t r i b u í d o para neu- Contudo, o simples fato de ser mulher n ã o significava que a liga-
tralizar as d i f e r e n ç a s . Seu aprendizado se realizara c o m o o de suas c o n - ç ã o c o m os a m e r í n d i o s ocupasse o centro da vida espiritual, mesmo na
vertidas, numa classe modesta ou por obra de Deus; e a facilidade c o m g e r a ç ã o das femmesfortes. O estilo religioso que a j o v e m Catherine de
que as "selvagens" c o m p r e e n d i a m os m i s t é r i o s sagrados — igualando- Saint A u g u s t i n levou de Cherbourg para Quebec a fez tomar outras d i -
se nesse aspecto aos franceses doutorados e m teologia — era menos r e ç õ e s , c o m o nos i n f o r m a seu d i á r i o . H o s p i t a l á r i a e m Quebec de 1648
surpreendente para ela que para os j e s u í t a s . Por f i m , M a r i e de ITncar- a 1668, consumiu-se nas lutas contra os d e m ó n i o s aprisionados e m seu
nadon t a m b é m era m í s d c a e considerava a simplicidade e o fervor qua- corpo, que no m e i o de u m s e r m ã o p o d i a m sair de u m dente d o l o r i d o
lidades valiosas, essenciais à o b t e n ç ã o da g r a ç a . Para q u e m procurava para contradizer as palavras do padre. Teve v i s õ e s (geralmente c o n -
e m ê x t a s e palavras para descrever a u n i ã o c o m Deus, o gosto dos duzidas desde o P a r a í s o pelo " m a r t i r i z a d o " padre B r é b e u f ) que, p o r é m ,
a m e r í n d i o s pela m e t á f o r a n ã o s ó d e v i a c o n t r i b u i r para a r e t ó r i c a da se referiam ao desfino dos bem-aventurados e dos malditos na F r a n ç a ,

d i p l o m a c i a (sendo nesse caso enaltecido pelos j e s u í t a s ) , c o m o ainda no J a p ã o , e m toda parte. Durante sua a t u a ç ã o e m Quebec i m p l o r o u ao

podia constituir u m c a m i n h o para o conhecimento do d i v i n o . N ã o sur- Senhor que "nenhuma pessoa m o r t a no hospital ficasse fora da g r a ç a
d i v i n a " — u m a o r a ç ã o que i n c l u í a a m e r í n d i o s — , mas as energias r e l i -
preende, pois, que M a r i e i m p r i m i s s e e m seus textos .sobre os conversos
giosas que descreveu e m seu d i á r i o f o r a m canalizadas na d i r e ç ã o de
boa parte do entusiasmo e da a d m i r a ç ã o c o m que elaborou os retratos
colonos franceses: de uma possessa, a q u e m ajudou; de u m h o m e m que
o b i t u á r i o s de M a r i e de Saint Joseph, m m e . de L a Peltrie e outras dguras
às escondidas praticava feitiçaria e realizava s a b á s das bruxas; de gente
do convento."'" N a paisagem interior da espiritualidade v i a a todos co-
que reclamava do novo bispo de Quebec."'"
m o u m a s ó pessoa.
N o f i n a l do s é c u l o s u r g i r a m m u l h e r e s que e s p i r i t u a l m e n t e se
Entre as ursulinas e as h o s p i t a l á r i a s de sua g e r a ç ã o havia outras
distanciaram m u i t o mais dos a m e r í n d i o s . E m sua h i s t ó r i a do hospital
femmesfortes que partilhavam tal postura? O padre V i m o n t achava que
de M o n t r e a l , onde atuou c o m o freira durante 33 anos, a t é 1695, M a r i e
sim, ressaltando seu carinho pelos a m e r í n d i o s , conquanto os huronia-
M o r i n s ó os menciona ao registrar a a m e a ç a dos iroqueses e a simpatia
nos e algonquinos "se vestissem de farrapos" e ignorassem " a t é mesmo
dos pacientes "selvagens" por Judith M o r e a u de B r é s o l e s , a p r i m e i r a
os p r i n c í p i o s elementares da c i v i l i d a d e " : " O a m o r constante que as
superiora do convento local. (Chamavam-na o Sol que B r i l h a , pois da-
h o s p i t a l á r i a s d e d i c a m aos e n f e r m o s e aos pobres e as u r s u l i n a s
va vida aos enfermos.) Seu interesse e s t á voltado mais para as virtudes
[dedicam) à s seminaristas e à s mulheres .selvagens — e m q u e m v ê e m
c r i s t ã s das i r m ã s religiosas, todas elas de o r i g e m europeia, que para "a
somente Jesus C r i s t o e nada do que agrada aos sentidos — é uma i n c l i - s a l v a ç ã o de talvez 1 m i l h ã o de selvagens" — o b j e t i v o que d é c a d a s
n a ç ã o na qual espero p e r s e v e r a n ç a apenas do p r ó p r i o Jesus Cristo. Seu antes fizera a fundadora do hospital deixar a F r a n ç a . " ' ^ E m 1740, u m
sexo n ã o possui tal c o n s t â n c i a , mas, c o m o s ã o Paulo, tudo pode c o m o s é c u l o depois que M a r i e de I T n c a m a t i o n c o m e ç o u a receber alegre-
apoio e a f o r ç a de Deus"."" A s poucas cartas de M a r i e de Saint Joseph mente suas p r i m e i r a s " s e m i n a r i s t a s " , u m a h o s p i t a l á r i a de Quebec
e m m e . de L a Peltrie que chegaram a t é n ó s expressam grande carinho t a c h o u os a m e r í n d i o s de vilains Messieurs. " H á entre eles alguns
pelas j o v e n s a m e r í n d i a s convertidas: "Elas e x p e r i m e n t a m i n d i z í v e l c r i s t ã o s fervorosos, a t é mesmo santos", escreveu, " p o r é m a maioria es-
prazer e m ser i n s t r u í d a s nes.se a d o r á v e l m i s t é r i o [da c o m u n h ã o ] , cuta os m i s t é r i o s que lhes s ã o pregados c o m o se fossem apenas his-
mostrando-se e x t r a o r d i n a r i a m e n t e atentas. Parecem conceber essa t ó r i a s que n ã o lhes causam nenhuma i m p r e s s ã o . " " ' "
a m á v e l verdade superando a p r ó p r i a idade, pois n ã o t ê m mais de doze
anos"."'^ A s convertidas, jovens e velhas, que emergem dos relatos seis-

116 117
Que h i s t ó r i a s os a m e r í n d i o s t e r i a m contado sobre os europeus? nas falavam n ã o de similaridades, e s i m de presentes. A s francesas lhes
Vejamos algumas das c r i s t ã s que M a r i e de F l n c a r n a t i o n mais admira- mandaram presentes, e elas se sentiam na o b r i g a ç ã o de retribuir."" N o
va, c o m o as huronianas T h é r è s e K h i o n r e a e M a r i e Aouentohons, a al- c a l o r de seus sentimentos M a r i e de f l n c a r n a t i o n talvez n ã o tenha
g o n q u i n a A n n e M a r i e U t h i r d c h i c h e suas companheiras de c a ç a e a percebido o ponto de vista das a m e r í n d i a s .
nipissing G e n e v i è v e ; agora imaginemos c o m o teriam visto as e x i g ê n - A s huronianas, algonquinas e iroquesas decerto t e r i a m descrito
cias de M a r i e e m r e l a ç ã o a elas e a seu cristianismo. Certamente n ã o sua c o n v e r s ã o ao cristianismo de m o d o u m tanto diferente. Onde madre
foram a seu encontro acreditando que a c o n v e r s ã o religiosa poderia ex- M a r i e v i a u m a r u p t u r a quase absoluta c o m a r e l i g i ã o i n d í g e n a , as
p a n d i r a s e m e l h a n ç a e a u n i ã o h u m a n a . E m m a t é r i a de c r e n ç a os a m e r í n d i a s b e m p o d i a m ver elos. D a mesma f o r m a o c o n s o l o e a
a m e r í n d i o s n ã o revelavam grandes p r e t e n s õ e s ao c o n h e c i m e n t o . serenidade que para madre M a r i e eram frutos do batismo p o d i a m ser
Quando os j e s u í t a s os questionavam sobre suas altas divindades — per- para as a m e r í n d i a s resultado de grandes e s f o r ç o s .
guntando, por exemplo, c o m o Yoscaha, o p r i m e i r o criador, poderia ter A r e l a ç ã o entre o sonho dos i n d í g e n a s e a v i s ã o dos c r i s t ã o s cons-
uma antepassada Aataentsic — , respondiam que era difícil provar tais titui u m b o m exemplo. Para os huronianos e iroqueses a i m p o r t â n c i a
coisas. A l g u n s afirmavam ter adquirido essa i n f o r m a ç ã o ao v i s i t a r e m dos sonhos relacionava-se c o m sua c r e n ç a na " d i v i s i b i l i d a d e " da alma.
sonho o o u t r o m u n d o , p o r é m outros simplesmente observavam que A s s i m , havia, entre outras, a alma desejosa, que se expressava basica-
"sobre uma coisa t ã o distante nada de certo se pode saber"."'"Da mes- mente no sonho: "isto é o que meu c o r a ç ã o me d i z ; isto é o que m e u
ma f o r m a mostravam-se polidamente tolerantes c o m h i s t ó r i a s e cos- apetite quer" {ondayee ikaton onennoncouat). A s vezes a alma dese-
tumes religiosos diferentes dos seus, desde que n ã o suspeitassem de josa seguia a o r i e n t a ç ã o de u m o k i ou e s p í r i t o familiar, que lhe infor-
feitiçaria. C o m o alguns huronianos disseram ao padre B r é b e u f , "cada mava o que ela precisava ou queria — e m outras palavras, revelava-lhe
p a í s tem suas p r ó p r i a s maneiras de proceder"."" seu ondinoc, seu desejo secreto. Os i n d í g e n a s americanos t i n h a m , por-
Diferentes n a ç õ e s e comunidades se u n i r a m c o m o " u m p o v o " e m tanto, fortes motivos para levar a s é r i o os sonhos. Contavam-nos e i n -
r a z ã o n ã o de uma c r e n ç a religiosa o u uma capacidade espiritual co- terpretavam-nos entre si e depois agiam e m conformidade c o m eles."'
m u m , e s i m de processos de i n c o r p o r a ç ã o : a a d o ç ã o de prisioneiros co- A o escrever seus d i c i o n á r i o s M a r i e de f l n c a r n a t i o n certamente se
mo fdhos e i r m ã o s , o casamento c o m cativas, a mistura dos ossos dos v i u à s voltas c o m essa alma d i v i s í v e l , p o r é m nas cartas s ó menciona a
mortos de v á r i a s n a ç õ e s durante o reenterro p e r i ó d i c o conhecido c o m o c r e n ç a dos a m e r í n d i o s na imortalidade da alma, "que m u i t o contribui
Festa dos M o r t o s — c e r i m ó n i a que para os j e s u í t a s e q u i v a l i a a "seu para sua c o n v e r s ã o " . A c h a v a a c o n v i c ç ã o deles de que d e v i a m "obede-
maior testemunho de amizade e aliança".""' O parentesco d i p l o m á t i c o cer aos sonhos" totalmente supersticiosa, i n c o m p a t í v e l c o m o cristia-
estabelecido entre n a ç õ e s das ligas huroniana e iroquesa ( " i r m ã o s " , " i r - nismo e i n c o m p a r á v e l à v i s ã o de M a r i a e Jesus que Deus lhe enviara e m
m ã s " ) c o n s t i t u í a a analogia mais p r ó x i m a do parentesco espiritual es- sonho para indicar-lhe que devia partir para o C a n a d á . " "
tabelecido entre i n d i v í d u o s no batismo c r i s t ã o . Seus conversos pensavam de outra forma. Sabiam de visões como a
C o m essa estrutura mental K h i o n r e a . U t h i r d c h i c h e as outras c o n - que teve uma huroniana de Angoutenc: certa noite ela caminhava cotn a
vertidas n ã o t e r i a m i m a g i n a d o u m a s e m e l h a n ç a i n t e r i o r entre as fdha quando a divindade lunar ( u m avatar de Aataentsic) lhe apareceu sob
francesas e elas. A s j o v e n s "seminarista.s" i m i t a v a m os ge.stos r e l i - a forma de uma bela mulher, t a m b é m acompanhada por uma filha, e lhe
giosos das ursulinas, e algumas huronianas usavam u m a m e t á f o r a da disse que dali em diante devia vestir-se de vermelho e ganhar presentes. A
selva para dizer o quanto esperavam aprender c o m o exemplo das ur- mulher voltou para sua casa comunal, caiu doente e em sonho recebeu or-
sulinas e das h o s p i t a l á r i a s : "Elas conhecem o caminho do c é u | . . . | N ó s dens de preparar uma festa que haveria de curá-la. E c o m efeito se curou,
ainda n ã o temos bons olhos". Todavia, querer instruir-se n ã o i m p l i c a - vestida de flamejante vermelho, nas c e r i m ó n i a s que se seguiram.""'
va necessariamente acreditar na s e m e l h a n ç a . A o explicar seu " a m o r " Tais e x p e r i ê n c i a s preparavam o c a m i n h o para vi.sões de outros
por algumas desconhecidas que se encontravam na F r a n ç a , as huronia- deuses. A s s i m , uma huroniana — " ó t i m a cristã, de vida m u i t o inocen-

IIH 119
te" — recebeu u m a mensagem d i v i n a à s v é s p e r a s do terremoto que alce. A s h o s p i t a l á r i a s e os padres toleravam essa mistura de costumes
sacudiu o C a n a d á e m fevereiro de 1663. N a noite de 3 de fevereiro, en- por c o n s i d e r á - l a "indiferente" (ou seja, sem i m p o r t â n c i a de u m m o d o
quanto todos d o r m i a m a sua volta, ela o u v i u u m a voz dizer claramente: o u de o u t r o ) , mas acharam i n a c e i t á v e l o enterro de U r s u l e . A m ã e
" D e n t r o de dois dias d e v e m acontecer coisas e x t r a o r d i n á r i a s e m a - "sepultou-a c o m toda a solenidade p o s s í v e l a u m selvagem e p ó s e m sua
ravilhosas". Pela m a n h ã estava apanhando lenha c o m a i r m ã e o u v i u a t u m b a tudo o que p o s s u í a de mais precioso e m termos de peles de cas-
mesma voz anunciar o terremoto que ocorreria no dia seguinte entre tor, contas de concha e outros bens de valor para eles". Os j e s u í t a s c o n -
cinco e seis da tarde. T r é m u l a , levou a n o t í c i a a sua casa c o m u n a l . Os denavam esses m i m o s f u n e r á r i o s , que, j u n t o c o m os presentes que a co-
relatos de M a r i e e das h o s p i t a l á r i a s nos i n f o r m a m que, e m vez de acre- m u n i d a d e ofertava "para enxugar as l á g r i m a s " do parente enlutado,
ditar e m suas palavras, todos acharam que ela estava obedecendo a seus s u b s t i t u í a m o sistema de propriedade europeu referente a h e r a n ç a e
"sonhos" ou tentando passar por "profedsa". N o dia seguinte, entre c i n - legado. C o m o Louise podia enterrar esses bens c o m sua filha, sendo t ã o
co e seis da tarde, a terra tremeu. N o hospital, Catherine de Saint A u - "pobre"?, perguntaram as h o s p i t a l á r i a s . A algonquina prosseguiu e m
gustin imediatamente c o m e ç o u a ter v i s õ e s , n u m a das quais s ã o M i g u e l sua c e r i m ó n i a , lembrando as i r m ã s de que dois anos antes h a v i a m en-
lhe i n f o r m o u que o p o v o do C a n a d á estava sendo p u n i d o p o r sua terrado c o m toda a honra uma religiosa envolta n u m belo manto. O que
impiedade, impureza, falta de caridade."" ela estava fazendo n ã o era p r o i b i d o p o r D e u s , t i n h a certeza disso.
Os usos dos sonhos d e v i a m variar entre os diferentes conversos. O "Quero honrar os mortos."
auto-exame que a i n t e r p r e t a ç ã o dos sonhos requeria c o m certeza con- E p i s ó d i o s c o m o esse indicam que as convertidas de M a r i e de I T n -
t r i b u í a para sua e x t r a o r d i n á r i a capacidade de c o n f i s s ã o , assinalada tan- camation p o s s u í a m ou demandavam uma sensibilidade religiosa m u i t o
to por M a r i e de F l n c a r n a t i o n quanto pelos j e s u í t a s . A l g u n s conversos mais h í b r i d a do que ela imaginava ou p e r m i t i a . " ' N u m ponto, p o r é m ,
talvez sentissem a l í v i o ao trocar a ansiedade da c o n c r e t i z a ç ã o de u m talvez todas concordassem: era i m p o r t a n t e as mulheres falarem de
sonho preciso pelo medo mais difuso do pecado. Outros talvez s i m - coisas sagradas. Quanto a isso h á u m paralelo interessante entre a E u -
plesmente transferissem para o cristianismo certas p r á t i c a s e ê x t a s e s ropa e a A m é r i c a . A s s i m c o m o na F r a n ç a a e l o q i i ê n c i a p o l í d c a estava ba-
das v i s õ e s o n í r i c a s , da mesma f o r m a que à noite alguns a l d e ã o s eu- sicamente sob o d o m í n i o dos homens i n s t r u í d o s , assim t a m b é m nas
ropeus mandavam suas almas combater bruxas ou visitar os mortos. matas americanas — ao redor da f o g u e i r a durante o conselho dos
Essa mescla religiosa, enfraquecida na Europa pela I n q u i s i ç ã o e pelas v a r õ e s , nas assembleias tribais, nas n e g o c i a ç õ e s de paz entre as ligas
d e n ú n c i a s de bruxaria, sustentava-se mais facilmente nas florestas e huroniana e iroquesa — a e l o q u ê n c i a p o l í d c a era basicamente u m p r i -
nos invernos do Leste da A m é r i c a do Norte."" v i l é g i o masculino. A s a m e r í n d i a s t o m a v a m d e c i s õ e s no tocante a co-
H á i n d í c i o s de tal m i s t u r a nos textos franceses. A a l g o n q u i n a lheitas, d i s t r i b u i ç ã o de alimentos, desdno dos prisioneiros. Sobretudo
Louise, cuja d i s p o s i ç ã o para aceitar a morte dos filhos j á conhecemos, entre os iroqueses as mulheres desempenhavam importante papel na
fez suas p r ó p r i a s escolhas ao cuidar das filhas e e n t e r r á - l a s . Por u m la- n o m e a ç ã o dos novos chefes e embaixadores. A s mulheres teciam os c i n -
do, segundo consta, despachou duas algonquinas n ã o c r i s t ã s que insis- tos de contas de concha levados nas embaixadas. (Dois desses cintos fi-
tentemente lhe recomendaram tirar do hospital de Quebec sua menina g u r a m nas i l u s t r a ç õ e s . ) Todavia, os argumentos eloquentes, as m e t á -
de nove anos e c a r r e g á - l a a t é a floresta, onde o t a m b o r e o sopro do foras imaginativas e os gestos d r a m á t i c o s que conquistavam o "Haaa,
x a m ã a curariam. ( O u s e r á que Louise concordou c o m essa alternativa? haaa" aprovador e gutural da plateia partiam dos homens. Quando quis
A s freiras disseram que, "tendo |a doente] recebido a l g u m a l í v i o no persuadir os huronianos a p a r t i c i p a r de u m tratado de paz, o chefe
hospital", sua m ã e a levou para a mata, onde ela morreu.) Por outro la- m o h a w k Kiotseaeton apresentou u m colar de contas de concha "para
do, quando sua tilha mais velha, Ursule, adoeceu, Louise c u i d o u dela i n s t á - l o s a que falassem e n ã o fossem acanhados c o m o mulheres".'"'A
numa cabana j u n t o à porta do hospital, decorando-a c o m o u m o r a t ó r i o , velha que M a r i e descreveu denunciando os j e s u í t a s numa assembleia de
c o m objetos c r i s t ã o s , eàla sauvage, c o m mantos bordados de castor e huronianos era ainda mais impressionante por ser i n c o m u m .

120 121
A s s i m c o m o na F r a n ç a o poder clerical estava nas m ã o s dos ho- D o o u t r o lado d o A d â n t i c o o l e i t o r mais dedicado de M a r i e de
mens, entre os povos de l í n g u a iroquesa e algonquina o poder de curar I T n c a r n a d o n elogiava seu csdlo c o m algumas reservas. Sob muitos as-
estava nas m ã o s dos x a m ã s . A s mulheres participavam das d a n ç a s e r i - pectos Claude M a r t i n admirava a " m ã e excelente", cuja v i d a reunia
tuais que visavam aplacar os e s p í r i t o s o k i ou afastar do doente os maus aventuras singulares, virtudes h e r ó i c a s , santidade exemplar e o mais
e s p í r i t o s ; decerto preparavam os r e m é d i o s à base de ervas que faziam profundo entendimento dos caminhos m í s d c o s . J á o v i m o s maravilha-
parte de seu saber; talvez algumas desempenhassem u m papel religioso do c o m seu talento o r a t ó r i o . N o s p r e f á c i o s que escreveu para os livros
nas cabanas para menstruadas das comunidades iroquesas, huronianas dela enalteceu a " u n ç ã o interior" {onction intérieure), a clareza e a sin-
e montagnaises. Possivelmente eram c o n v i c ç õ e s acerca da sujidade do ceridade dos textos. Sua maneira de expressar-se era honnête, livre dos
menstruo, que e m geral i m p e d i a m as mulheres de manusear os objetos s u b t e r f ú g i o s e da vaidade p r ó p r i o s do estilo p o l í t i c o . "Deus é sempre o
sagrados e a matraca usada pelo x a m ã para realizar curas espirituais, p r i n c í p i o e a n o r m a de sua civilidade.""'"*
assim c o m o na Europa c o n v i c ç õ e s .semelhantes m a n t i n h a m as devotas E, todavia, embora seus textos p o s s u í s s e m honnêteté e civilidade,
menstruadas longe da mesa de C o m u n h ã o . ' " ' D e qualquer forma o va-
virtudes supremas entre os franceses seiscendstas, Claude achava que
t i c í n i o era a ú n i c a f u n ç ã o x a m â n i c a que as mulheres p o d i a m exercer no
precisavam passar pela m ã o d r m e de u m editor antes de ser publicados
s é c u l o x v i i , c o m o ocorreu c o m a velha da aldeia T e a n a o s t a i a è , em ter-
e m Paris. "Quanto a seu estilo", escreveu no p r e f á c i o da Vie, " a d m i t o
r i t ó r i o huroniano, que predisse fatos de batalhas distantes c o m os i r o -
que n ã o é dos mais polidos [des plus polis] e tampouco possui a d e l i -
queses, vendo-os nas chamas.""
cadeza das obras atuais, que s ó p e l o encanto dos discursos e das
A s s i m c o m o na E u r o p a mulheres semelhantes a M a r i e expres- palavras i n s t i g a m o leitor c o m doce v i o l ê n c i a . " " " A o citar a B í b l i a , diz
savam sua p o s i ç ã o rehgiosa por meio das ordens da Contra-Reforma ele e m outro prefacio, M a r i e usava uma t r a d u ç ã o obsoleta, e para as
(ou das seitas protestantes que veremos no c a p í t u l o seguinte), pode ser
c i t a ç õ e s do catecismo preferia o exemplar r o m a n o de 1588, apesar de
que nas matas americanas as mulheres falassem de cultura religiosa en-
sua rudesse. E m suas e d i ç õ e s M a r t i n usou t r a d u ç õ e s modernas o u
quanto os homens a p e r f e i ç o a v a m sua o r a t ó r i a p o l í t i c a . C o n c e b i v e l -
t r a d u z i u de seu p r ó p r i o p u n h o , de m o d o a c r i a r " u m e s d l o mais i n -
mente o papel das a m e r í n d i a s na a n á l i s e dos sonhos e no v a t i c í n i o n ã o
t e l i g í v e l e mais n o v o para que a obra, se n ã o revela os atrativos e a
era algo i n t e m p o r a l , mas uma r e a ç ã o à s m u d a n ç a s p o l í t i c a s que se i n i -
polidez d e s e j á v e i s , tampouco p a r e ç a inteiramente chocante".""'
ciaram no s é c u l o X V e se intensificaram c o m a chegada dos europeus.
A s s i m , bem de acordo c o m o e s p í r i t o literário da é p o c a , m u d o u al-
E n t ã o as convertidas que p o v o a m as cartas de M a r i e , os registros do
gumas palavras na Relation da m ã e , acrescentou frases de sua autoria e
hospital e as Relations dos j e s u í t a s — mulheres que rezam, pregam e
lecionam — c o n s t i t u i r i a m uma d i n â m i c a variante cristã n u m processo e l i m i n o u outras, preparando o t e x t o para p u b l i c á - l o c o m o parte da
que estava e m andamento na r e l i g i ã o dos okis e do m a n i t ó . Víe.""( Veja o exemplo de uma p á g i n a nas i l u s t r a ç õ e s . ) Podemos acom-
panhar sua m ã o de e d i t o r c o m p a r a n d o a v e r s ã o impressa c o m u m a
Khionrea, Aouentohons, U t h i r d c h i c h e G e n e v i è v e n ã o d e i x a r a m
c ó p i a manuscrita de 1654 que M a r i e lhe enviara.^^^Três p r e o c u p a ç õ e s
nenhum retrato de M a r i e de f l n c a r n a t i o n . Talvez a vissem e m parte co-
guiavam-lhe a pena. P r i m e i r o , certificar-se de que, e m termos de d o u -
m o ela queria se ver, c o m o M a r i a , a m ã e de Jesus, c o m o manto esten-
trina e o b e d i ê n c i a à Igreja, M a r i e de I T n c a m a t i o n sempre se encontra-
dendo-se dos b r a ç o s para proteger as pessoas que se encontravam sob
sua guarda. Talvez a vissem e m parte c o m o Aataentsic, a antepassada va e m terreno seguro. A m ã e parecia-lhe i m u n e à t e n t a ç ã o jansenista,
de Yoscaha: ora bondosa, ora irritada e disposta a pregar u m a p e ç a nos pois, apesar dos l a ç o s de amizade c o m as i r m ã s de P o r t - R o y a l , seguira
humanos."'" E n t r e t a n t o , sendo amantes da l i n g u a g e m , h á b e i s e fer- à risca o conselho que ele lhe dera: n ã o se envolver nos debates sobre a
vorosas em seu discurso, todas teriam enaltecido as "palavras de f o g o " C o m u n h ã o frequente e outros t ó p i c o s dojansenismo."""Contudo,como
de M a r i e de I T n c a m a t i o n : "Haaa, haaa". ilustre benedidno de s ã o M a u r o , autor de v á r i o s manuais de d e v o ç ã o
m u i t o difundidos e organizador da e d i ç ã o mauriense de santo A g o s t i -
nho, d. Claude M a r t i n tratou de tornar i r r e p r o c h á v e i s as f o r m u l a ç õ e s da

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m ã e . ' ^ " Q u a n d o M a r i e lembra que na i n f â n c i a o u v i r a dizer que a " á g u a s i t u a ç õ e s e m que o limite da civilidade estava em j o g o . A s s i m , a hantise
benta apagava os pecados veniais", ele acrescenta: "Desde que usada (ao p é da letra, "ato de frequentar", palavra " r i d í c u l a e v u l g a r " para os
c o m d e v o ç ã o " . O Verbo Encarnado, "grande Deus, igual ao Pai", tor- puristas l i t e r á r i o s c o n t e m p o r â n e o s ) , que M a r i e utiliza ao relembrar a
na-se e m suas m ã o s "consubstancial c o m o Pai e igual a E l e " ; " c o n - é p o c a de j u v e n t u d e e m que evitava as m o ç a s de sua idade, torna-se con-
forme à fé da Igreja" torna-se " c o n f o r m e à Igreja e ao sentimento dos versation. O traças, ou " a m o l a ç ã o e corre-corre" das tarefas cotidianas,
Doutores".'" mencionado quando ela fala de sua estadia na casa do carroceiro, trans-

Sua segunda p r e o c u p a ç ã o consistia e m apresentar M a r i e de F l n - forma-se no "embarras des soins domesfiques" ( a b o r r e c i m e n t o dos

carnation como uma mística fidedigna. Q u a n t o a isso, precisou de- cuidados domé.sficos). U m dos á r b i t r o s da l í n g u a francesa n ã o dissera

f e n d ê - l a de i m p o r t a n t e s c r í t i c o s d o m i s t i c i s m o , c o m o o j a n s e n i s t a recentemente que a palavra tracasser "cheirava a vilarejo"?""A m e t á f o -

Pierre N i c o l e e Bossuet, bispo de L u í s x i v . A l g u n s a f i r m a v a m que o ra corriqueira que M a r i e emprega para sugerir que e m sua c o r r u p ç ã o a

m i s t i c i s m o e m geral c o n s t i t u í a u m d ú b i o empreendimento do e s p í r i t o ; parte inferior o u s e n s í v e l da alma tenta sorrateiramente i m i t a r a parte su-

outros d i z i a m que o c a m i n h o e s p e c í f i c o de M a r i e — a passividade da p e r i o r para u s u f r u i r as mesmas b ê n ç ã o s — "faire les singes", o u

o r a ç ã o mental — levava "a i l u s õ e s e quimeras que s ó existem na ima- "macaquear" — reduz-se a "natureza corrupta, que e m todo m o m e n t o e

g i n a ç ã o de algumas beatas e de alguns e s p í r i t o s fracos". N ã o é verdade, de v á r i a s maneiras gostaria de introduzir os sentidos e as faculdades sen-

rebateu Claude, pois v á r i o s grandes homens t a m b é m se expressaram síveis no c o m é r c i o | c o m o d i v i n o e s p í r i t o ] ou pelo menos na i m i t a ç ã o do

na l i n g u a g e m do m i s t i c i s m o . " " e s p í r i t o [a parte superior da alma]"."*

M a r t i n p r o c u r o u enfatizar a confiabilidade e a p r e c i s ã o das c o m u - A o escrever sobre o p r ó p r i o corpo, M a r i e à s vezes f o i longe de-


n i c a ç õ e s divinas de sua m ã e . Onde esta repetidamente "experimenta" mais para o gosto do filho o u dos leitores que ele pretendia conquistar.
coisas (expérimenter), ou onde sua alma "tende" a algo (tendre) — ter- Basta dizer que aos vinte anos ela .se considerava uma grande pecado-
mos f a v o r i t o s d o v o c a b u l á r i o m í s t i c o — , ele e m geral prefere ex- ra; Claude corta "eu tinha u m ó d i o mortal de meu corpo". Basta dizer
p r e s s õ e s menos impetuosas: " v i c o m clareza", "five uma e x p e r i ê n c i a " , que e m Tours sua alma a levou ao hospital para sentir o cheiro dos cor-
"tive uma t e n d ê n c i a " , " m i n h a alma sentiu-se transportada"."'Durante pos infectados pela peste; ele corta "fez-me tratar feridas f é t i d a s e
a o r a ç ã o mental M a r i e ouve Deus r e p r e e n d ê - l a " c o m palavras interio- aproximar-me o suficiente para c h e i r á - l a s " . U m e p i s ó d i o durante sua
res", e Claude corrige: "empregando palavras interiores, p o r é m m u i t o é p o c a de d ú v i d a s e m Quebec é e l i m i n a d o inteiramente: temendo que
disfintas"."'' as i m p e r f e i ç õ e s de sua natureza e seu e s p í r i t o estivessem arraigadas e m
O c o r a ç ã o "extasiado" que figura na Relation de M a r i e torna-se seu sangue, ela p r o p o s i t a l m e n t e sangrou tanto que, se Deus n ã o a
apenas " t o m a d o " no texto impresso — esse é u m dos v á r i o s casos e m tivesse socorrido, sua s a ú d e teria se arruinado."''
que Claude reduz a temperatura da expressividade materna e de suas Quanto à s a m e r í n d i a s , Claude em alguns lugares a m p l i o u o es-
e x p e r i ê n c i a s c o m a linguagem sobre o eu. " C e s t m o n m o i " ( é meu eu), p a ç o existente entre elas e sua m ã e , trocando o "acostumadas" (accou-
M a r i e diz de u m a b r a ç o entre sua alma e a Pessoa do Verbo. Claude es- tumées) de M a r i e p o r " d o m e s t i c a d a s " (apprivoisées): " q u a n d o [as
creve: " I I est c o m m e un autre m o i - m ê m e " ( é c o m o outro eu)."'Descre- m o ç a s ) estavam u m pouco acostumadas, p a s s á v a m o s v á r i o s dias de-
vendo o p a r a í s o no qual a alma se c o m u n i c a diretamente c o m Deus, sengordurando-as" tornou-se "quando as m o ç a s estavam u m pouco do-
M a r i e fala de u m "amor arrebatador, de que nascem j ú b i l o s plenos de mesticadas". " A sujeira das selvagens, que ainda n ã o se habituaram ao
torrentes de l á g r i m a s " . Claude o resume e m "alegrias e l á g r i m a s " . " ' ' asseio dos franceses, à s vezes nos levou a encontrar u m sapato e m nos-
Sua terceira p r e o c u p a ç ã o c o m o editor é a mais interessante do pon- sa panela e d i a r i a m e n t e cabelos e c a r v õ e s , o que n ã o nos enoja de
to de vista dos anos que M a r i e passou no C a n a d á : o desejo de eliminar maneira nenhuma", M a r i e escreveu; e Claude acrescentou depois de
da linguagem da m ã e os elementos que ofendiam apolitesse francesa no " c a r v õ e s " (para n ã o deixar margem a d ú v i d a s ) : "e outras i m u n d í c i e s " . ' " '
final do s é c u l o x v i i . Seu alvo eram palavras m u i t o populares o u locais e A seu ver a d i f e r e n ç a entre a m ã e e ele se deve basicamente a uma

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q u e s t ã o de é p o c a : M a r i e era antiquada. Trata-se de u m l u g a r - c o m u m t á g i o final de sua d o e n ç a denotava especial h e r o í s m o : "a navalha g r i -
que impropriamente a r c a í z a a l í n g u a francesa do C a n a d á . É verdade que tou-lhe na carne, p o r é m nem u m suspiro lhe escapou dos l á b i o s " . ' " N a s
M a r i e de I T n c a m a t i o n conhecia pouca coisa da literatura produzida em matas norte-americanas os prisioneiros — homens e mulheres de todo
c o n f o r m i d a d e c o m os c r i t é r i o s da corte, da A c a d e m i a e dos s a l õ e s t i p o — suportavam a tortura sem soltar u m suspiro, entoando u m c â n -
franceses de meados do .século x v i i . Os l i v r o s que atravessavam o fico especial.
oceano e chegavam ao convento eram de cunho religioso, c o m o a vida e Os textos de M a r i e de I T n c a m a t i o n sobre temas referentes a cor-
as cartas de Jeanne de Chantal."' Tampouco ela e suas i r m ã s ursulinas se po e coragem constituem uma mescla de sua sensibilidade de ursulina
encontravam na plateia quando Le Cid e Hémclius de C o r n e i l l e f o r a m e de uma sensibilidade resultante de seu i n t e r c â m b i o c o m os a m e r í n -
representadas para o governador de Quebec e m 1651 - 2 . " ' dios. Essa mescla se evidencia na prosa robusta e concreta c o m que des-
Isso, p o r é m , n ã o significa que sua e x p r e s s ã o e sua sen.sibilidade creveu a p a c i ê n c i a e as p r o v a ç õ e s das ursulinas de Quebec e m suas b i o -
fossem e s t á t i c a s , que estivessem fossilizadas e m 1639, quando M a r i e grafias o b i t u á r i a s : a i r m ã A n n e l a v a n d o r o u p a nos frios i n v e r n o s
partiu para o P a r a í s o . Antes, m u d a r a m c o m sua e x p e r i ê n c i a no N o v o canadenses, cuidando dos porcos durante d e c é n i o s c o m absoluta tran-
M u n d o ( c o m o ocorreu t a m b é m no caso dos j e s u í t a s ) : sua i n t i m i d a d e quilidade, embora tal tarefa estivesse a l é m de suas f o r ç a s ; madre M a r i e
c o m as a m e r í n d i a s ; sua "rude" v i d a m o n á s t i c a , c o m os cheiros, a f u - de Saint Joseph levantando-.se à s quatro horas da madrugada, apesar da
m a ç a e o u r i n o l c o m u m t ã o d e s a g r a d á v e l para os costumes franceses; asma e dos p u l m õ e s fracos, suportando serenamente sua d o e n ç a e m
sua f l u ê n c i a e m algonquino, huroniano e i r o q u ê s , l í n g u a s que a encan- meio a r u í d o s de passos, gritos de c r i a n ç a s e cheiro de enguia cozida.'""
tavam e que segundo Claude eram " i n ú t e i s e desprezadas", sem o me- Evidencia-se na d e s c r i ç ã o aterradora do i n c ê n d i o o c o r r i d o e m dezem-
nor interesse para os franceses."'Enquanto as autoridades l i t e r á r i a s da bro de 1650: as "seminaristas" correndo por entre vigas e m chamas
F r a n ç a estavam definindo politesse para o Dictionnaire de l 'Académie para a noite gelada; o fogo barrando as s a í d a s ; as ursulinas e a m e r í n d i a s
française c o m o " d e t e r m i n a d a m a n e i r a de viver, agir e falar, civile, c r i s t ã s saltando pelas janelas, vestidas apenas de c a m i s o l a ; os p é s
honneste et polie", M a r i e p r o v a v e l m e n t e estava d e f i n i n d o aien- d e s c a l ç o s congelando-se na neve.'"
daouasti para seu d i c i o n á r i o de huroniano — esse era o adjetivo a p l i - Valendo-.se de relatos que o u v i u e m algonquino M a r i e nos conta
cado à s pessoas que c u m p r i m e n t a v a m , ofereciam alimentos e se posi- c o m o a c r i s t ã M a r i e K a m a k a t e o u i n o u e t c h f u g i u dos m o h a w k s que a
cionavam na o r d e m adequada à d e f e r ê n c i a p o l i d a , de acordo c o m os capturaram durante uma c a ç a d a , depois de matar-lhe o m a r i d o e o filho;
p a d r õ e s . M a s e n t ã o os a c a d é m i c o s conceituavam sauvage de m o d o a e c o m o fugiu dos onondagas que a reclamavam c o m o sua prisioneira.
e x c l u i r as pessoas que M a r i e e os j e s u í t a s v i a m diariamente: "sem re- Durante quase t r ê s meses K a m a k a t e o u i n o u e t c h vagou sozinha pela
l i g i ã o " , dizia o D i c i o n á r i o da A c a d e m i a , "sem leis, sem h a b i t a ç ã o fixa, mata, guiando-se pelo sol, catando r a í z e s , restos de espigas e ovos de
mais semelhantes a a n i m a i s que a h o m e n s , c o m o e m Les peuples p á s s a r o s , fabricando u t e n s í l i o s para pescar e c a ç a r , sempre temendo a
sauvages de rAmérique".'^* a p r o x i m a ç ã o dos iroqueses. U m a vez, desesperada, "por u m erro sel-
M a r i e de F l n c a r n a t i o n d e s e n g o r d u r o u o c o r p o de suas " s e l - vagem", tentou enforcar-se, mas Deus a protegeu, e a corda rompeu-se.
vagens", p o r é m u m pouco da gordura entranhou-lhe nos poros. N a c o n - Por fim ela encontrou uma canoa iroquesa, r e m o u a t é o S ã o L o u r e n ç o
fissão geral que entregou a seu diretor espiritual e m 1633, antes de se e de ilha e m ilha chegou a Montreal.""Esse é u m texto do N o v o M u n -
tornar ursulina, escreveu sobre a m o r t i f i c a ç ã o de sua carne, a recusa de do. O assunto n ã o fazia parte do r e p e r t ó r i o de M a r i e anterior a sua via-
alimentos, o cheiro de feridas infectadas e o resto. A g o r a estava n u m g e m para o C a n a d á , e o v i g o r n a r r a t i v o , r e p r o d u z i n d o e m parte a
m u n d o e m que "sujeira" e "odores" t i n h a m u m significado diferente e maneira c o m o os a m e r í n d i o s lhe contavam h i s t ó r i a s a u t o b i o g r á f i c a s ,
onde todos suportavam sem reclamar a falta de comida, os á r d u o s tra- t a m b é m constitui uma importante novidade.
balhos, as noites dormidas em s u p e r f í c i e s duras. N a F r a n ç a as u r s u l i - Reproduzindo em parte — mas s ó e m parte. M a r i e de ITncarna-
nas elaboravam biografias em que a serenidade de uma religiosa no es- tíon n ã o se t o r n o u u m a contadora de h i s t ó r i a s a m e r í n d i a . Antes, vemos

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nela u m a paisagem mental europeia modificada pela a d o ç ã o de novos de h i s t ó r i a encontrado nas A m é r i c a s do Norte e do Sul gira e m torno de
motivos e sensibilidades, p o r é m mantendo no mesmo lugar marcos e uma m u l h e r casada e u m amante de natureza a n i m a l . Entre os povos de
caminbos importantes. Vamos examinar essa paisagem pela ú l t i m a vez l í n g u a iroquesa o animal é o urso. Ora a esposa é raptada e seduzida pe-
por m e i o de uma s é r i e de narrativas sobre u m tema caro aos dois m u n - lo urso; ora ela o acompanha espontaneamente. Quando o m a r i d o des-
dos de M a r i e : rapto. cobre, atrai o urso i m i t a n d o o chamado da esposa, mata-o, cozinha seus
A p r i m e i r a delas apresenta u m enredo que poderia ter s a í d o da pe- ó r g ã o s sexuais e obriga a m u l h e r a c o m ê - l o s . E m algumas v e r s õ e s ela
na de Madeleine de S c u d é r y , m m e . de Lafayette ou outros autores c o n - se transforma e m ursa e passa a assombrar o marido.'"' ( O que nos aju-
t e m p o r â n e o s que escreveram sobre costumes franceses e casamento. da a compreender o seguinte costume dos montagnais, descrito pelo
Q u e m a conta é Claude M a r t i n em seus adendos à Vie da m ã e : a h i s t ó r i a padre Le Jeune: quando matavam u m urso e o levavam para determina-
do rapto de sua p r i m a M a r i e Buisson. da moradia, eles afastavam d a l i todas as mulheres n ú b e i s e as jovens
" N u n c a existiu uma pessoa mais apegada à s coisas do m u n d o " , casadas sem filhos e s ó as deixavam voltar a p ó s o festim.)'"'
c o m e ç a ele. A o s quinze anos M a r i e B u i s s o n era bonita, educada — Essa h i s t ó r i a j o g a c o m a fronteira entre animais e humanos, e re-
g r a ç a s aos e s f o r ç o s da m ã e , Claude G u y a r t — e rica — g r a ç a s à heran- flete sobre as fontes da sexualidade e do desejo. D á r é d e a larga aos sen-
ç a que o pai lhe deixara. Suas qualidades chamaram a a t e n ç ã o de u m
dmentos de c i ú m e que estariam sufocados sob os f á c e i s arranjos de d i -
nobre oficial do rei, que, e m vez de c o r t e j á - l a , raptou-a quando ela ia à
v ó r c i o e segundo casamento entre os a m e r í n d i o s . T e r m i n a de f o r m a
missa, levou-a para seu castelo e tentou c o n v e n c ê - l a a e s p o s á - l o . Salva
violenta, c o m o marido matando o urso e a mulher-ursa perseguindo-o.
pela m ã e , M a r i e Buisson testemunhou contra seu raptor no tribunal de
O urso tinha r e l a ç ã o c o m o m u n d o dos e s p í r i t o s , mas t a m b é m lembra-
Paris. O o f i c i a l f o i condenado e depois perdoado. Sua amizade c o m
va aos ouvintes o mundo corporal dos forasteiros: captores a m e r í n d i o s
Gaston d ' O r l é a n s , i r m ã o do rei, encorajou-o a realizar uma nova tenta-
ou franceses que p o d i a m roubar ou procurar uma esposa. A h i s t ó r i a fala
tiva no ano seguinte, a p ó s a morte de Claude Guyart. Declarando-a sua
do engodo e do perigo que o estrangeiro representa.
esposa, conduziu-a à p r e s e n ç a do arcebispo de Tours. E l a falou c o m
N a Europa de M a r i e G u y a r t t a m b é m c i r c u l a v a m narradvas sobre
tamanho ardor que, apesar da pouca idade, convenceu o prelado de que
ursos e mulheres. N u m a obra francesa bastante d i f u n d i d a no s é c u l o x v i
nunca entregara seu c o r a ç ã o à q u e l e h o m e m . Para a f a s t á - l o definitiva-
F r a n ç o i s de Belleforest recontou uma h i s t ó r i a que havia l i d o sobre u m
mente escreveu à rainha, dizendo que queria entrar para o convento das
urso sueco que raptou uma bela j o v e m , dispensou-lhe todos os cuida-
ursulinas, de onde sua tia partira para o C a n a d á havia alguns anos e
dos e teve u m f i l h o c o m e l a . ' " ' M a i s c o n h e c i d a era a narrativa e m
onde ela se refugiara. Era u m a r d i l , afirma Claude M a r t i n ; suas i n c l i -
f r a n c ê s / p r o v e n ç a l sobre Jean de F Ours. li Iho da esposa de u m lenhador
n a ç õ e s ainda estavam no m u n d o . T o d a v i a , tendo dado esse passo, a
que fora raptada por u m urso e o dera à luz na floresta. Depois havia a
honra a i m p e d i a de voltar a t r á s . E n t ã o Deus interferiu e m o d i f i c o u sua
c a ç a d a da C a n d e l á r i a e m partes dos Pireneus, onde u m urso lascivo cor-
alma, de maneira que a vida religiosa que a d a sempre desejara para ela
tornou-se " u m P a r a í s o de prazer"."" ria a t r á s de u m grupo de rapazes vestidos de m u l h e r e acabava .sendo

Esses raptos n ã o e r a m absolutamente inéditos nos círculos de nobres capturado pelos c a ç a d o r e s . ' " ^ T a l v e z M a r i e G u y a r t tivesse o u v i d o tais

e ricos da F r a n ç a seiscentista e suscitavam muitos c o m e n t á r i o s e ficção. relatos entre as "vaidades" de sua juventude. Sabemos que coureurs du
À s vezes o rapto era apresentado como u m estratagema, u m artifício que bois franceses contaram as f a ç a n h a s de Jean de f Ours para os í n d i o s
uma j o v e m aceitava para livrar-se da d o m i n a ç ã o patriarcal e escolher seu das matas de Quebec.'"' T a l v e z a l g u m v i s i t a n t e das ursulinas lhes
marido. Mais frequentemente, como ocorre no relato de Claude M a r t i n , dvesse apresentado uma v e r s ã o mais decorosa da h i s t ó r i a do Urso e a
via-se nesse crime o drama de uma mulher defendendo seus sentimentos Mulher.
e .seu direito de escolha contra a v i o l ê n c i a de u m homem."" De qualquer m o d o as h i s t ó r i a s de rapto que M a r i e de 1' I n c a m a d o n
A s p r e o c u p a ç õ e s c o m fronteiras expressas nas narrativas de rap- quis enviar a seus correspondentes na F r a n ç a referiam-se à fronteira en-
t o / s e d u ç ã o das matas norte-americanas eram m u i t o diferentes. U m t i p o tre c r i s t ã o e n ã o - c r i s t ã o . E m 1642, poucos anos depois de ter desem-

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barcado no C a n a d á , ela fala de u m a j o v e m huroniana, fdha de c r i s t ã o s , Nessas duas h i s t ó r i a s M a r i e de ITncarnafion se e q u i l i b r a entre a
que ainda n ã o recebera o b a t i s m o e aceitara unir-se p o r a m o r a u m {•rança c as florestas americanas. N a p r i m e i r a delas sua h u r o n i a n a
h o m e m casado. Seus pais ficaram horrorizados, p o r é m concordaram A n g è l e lembra a M a r i e Buisson da Touraine pela f o r m a c o m o se o p õ e
c o m o casamento desde que o h o m e m deixasse a outra esposa e se con- ao marido " p a g ã o " . N ã o que M a r i e j á soubesse do rapto da sobrinha,
vertesse ao cristianismo. Ele obedeceu à p r i m e i r a c o n d i ç ã o e simples- que ocorrera naquela mesma primavera de 1642 p o r é m a n o t í c i a ainda
mente i g n o r o u a segunda. A s s i m , os pais tiraram-lhe a m o ç a e a c o n - não chegara ao C a n a d á . " ' " A n g è l e lhe contara grande parte de sua
d u z i r a m ao convento das ursulinas. A p ó s alguns dias de tristeza a j o v e m liistiMia. mas o universalismo da ursulina simplifica os senfimentos da
huroniana disse que queria receber i n s t r u ç ã o c r i s t ã e que n ã o veria o huroniana. O m a r i d o enfurecido, a m e a ç a n d o matar todo m u n d o se n ã o
marido enquanto ele n ã o fizesse a mesma coisa. "lhe i l c v o l v e r e m sua mulher", podia integrar-se ao n i c h o dos maridos
ciumentos ou apaixonados do outro lado do A d â n f i c o . ( M a r i e usaria a
Algum tempo depois essa pobre mulher vai a determinado local e encon-
mesma lra.se o i t o anos depois, ao contar que seu filho gritara diante do
tra seu esposo. Põe-se a fugir, e ele corre em seu encalço. Abriga-se em
convento, em Tours; " D e v o l v a m m i n h a m ã e " . ) " ' '
casa de um francês, e ele entra em seguida. Esconde-se, com medo de
A segunda narrativa tem mais o t o m da floresta, embora M a r i e se
falar-lhe, e ele atlrma que não sairá dali sem antes lhe dirigir a palavra. Por
ilisliincias.se do assunto c o m a frase "Jamais acreditei que u m b á r b a r o
fim ele a faz ouvi-lo, usando todo tipo de lisonja a fim de persuadi-la a
pudesse sentir t ã o grande afeio por uma estrangeira". Trata-se de uma
voltar para seus braços, mas é inúti 1. Ele se encoleriza, grita, ameaça matar
todo mundo, se não lhe devolverem sua mulher. Enquanto ele assim es- historia mais de algonquinos e iroqueses que de c r i s t ã o s e n ã o - c r i s t ã o s .
braveja, a moça se afasta sem o deixar perceber e corre para a cabana dos A cx-cativa algonquina ri de .seu apaixonado i r o q u ê s sem nenhuma ex-
pais, livrando-se das mãos desse importuno. "Quero acreditar em tudo o p l i c a ç ã o europeia. A energia do enamorado que grita e bate o p é e a se-
que é bom; quero ser batízada; amo a obediência." g u r a n ç a da jovem t|ue ri e s t ã o a m e i o c a m i n h o da h i s t ó r i a do Urso e a
Mulher.
M a r i e t e r m i n a contando que os convertidos huronianos acharam
N o relato huroniano sobre a c r i a ç ã o Aataentsic cai n u m buraco ao
que a esposa "desobedecera" — o u seja, quis ver o m a r i d o apesar da
pé de uma á r v o r e e chega ao novo mundo, e essa i m a g e m do canal vagi-
p r o i b i ç ã o — e a p u n i r a m severamente (e t a m b é m injustamente, a seu
nal loi usada paia iiiiiilo herói a m e r í n d i o e m u i t o trapaceiro que anda-
ver) c o m o a ç o i t e p ú b h c o . N o dia seguinte a j o v e m p r o c u r o u o conven- vtift ciil» (le aveiiliiiiis. Seguindo sua v i s ã o o n í r i c a . M a r i e de ITncarna-
to das ursulinas, onde recebeu i n s t r u ç ã o c r i s t ã e f o i bafizada c o m o lloM l a l l o i i num buraco e l o i ter a o u t r o m u n d o . Avistou c o m clareza
nome de Angèle.'*'' al)tiiMias de suas paisagens e incor|)orou-as aos textos que escreveu na
U m a h i s t ó r i a b e m posterior, que M a r i e e n v i o u à F r a n ç a e m 1667, A m í l i c a M u i t a s outras paisagens permaneceram envoltas em brumas.
apresenta u m tema semelhante, p o r é m n u m t o m ligeiramente distinto e Seus 1'oiiveisos c o n h e c i a m lais lugares. Procuramos e n c o n t r á - l o s a
c o m u m desfecho diferente. U m a algonquina educada pelas ursulinas pailli do picsentc, Marie, no entanto, deixou-os sem s o l u ç ã o — logo
cai p r i s i o n e i r a dos iroqueses. Q u a n d o estes s ã o derrotados pelos ela, que acreditava na p r o c l a m a ç ã o do Verbo Encarnado entre todos os
franceses, ela volta para o convento. Seu captor i r o q u ê s a mantivera co- povos, i|ue se considerava suficientemente i n s t r u í d a para ensinar o
mo esposa e "nutria por ela tamanha p a i x ã o que estava confinuamente Cl islianisiiio em i|iialciuer l í n g u a a todas as n a ç õ e s da terra.
em nosso p a r l a t ó r i o , temendo que os algonquinos a raptassem. Por fim
fomos obrigadas a devolver-lhe a mulher, i m p o n d o - l h e a c o n d i ç ã o de
tornar-se c r i s t ã o |... | Jamais acreditei que u m b á r b a r o pudesse s e n f i r t ã o
grande afeto \amitié\r uma estrangeira. N ó s o v i m o s lamentar-se,
perder a fala, erguer os olhos, bater o p é , andar de u m lado para outro
c o m o u m insensato. Entrementes, a j o v e m apenas r i a dele, o que de for-
ma alguma o ofendeu". S a í r a m dali casados."''

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labadistas de W i e u w e r d . Quando o m a r i d o f o i b u s c á - l a , os l í d e r e s da
comunidade lhe dis.seram que uma pessoa crente c o m o M a r i a S i b y l l a
n ã o tinha nenhuma o b r i g a ç ã o conjugal para c o m u m i n c r é d u l o c o m o
ele. I m p e d i d o de entrar na comunidade, Graff permaneceu j u n t o a seus
muros durante a l g u m tempo, trabalhando n u m a c o n s t r u ç ã o das v i z i -
Maria Sibylla Merian n h a n ç a s , e finalmente p a r t i u . D i t t e l b a c h soube que era sua i n t e n ç ã o
r o m p e r o v í n c u l o m a t r i m o n i a l , e de fato, q u a n d o Verval en Val der
METAMORFOSES Ixibadisten ( D e c l í n i o e queda dos labadistas) f o i publicado, G r a f f esta-
va apresentando seu p e d i d o de d i v ó r c i o ao c o n s e l h o m u n i c i p a l de
Nuremberg a fim de poder casar-se c o m outra mulher.'
Esses relatos sugerem as reviravoltas ocorridas na v i d a da artista-
naturalista M a r i a S i b y l l a M e r i a n . E mais m u d a n ç a s ainda estavam por
E m j u n h o de 1699, mais o u menos na mesma é p o c a e m que G h k l
vir. E l a v o l t o u da A m é r i c a carregada de e s p é c i m e s , p u b l i c o u sua
decidia tentar uma vida nova e m M e t z , M a r i a S i b y l l a M e r i a n e sua fi-
grande obra Metamorphosis insecto rum surinamensium (Metamor-
lha Dorothea embarcavam e m A m s t e r d a m n u m navio que se d i r i g i a à
fose dos insetos surinameses), a m p l i o u seu trabalho sobre Insetos eu-
A m é r i c a . Seu destino era o Suriname, onde pretendiam estudar e p i n -
ropeus e a t é sua morte, e m 1717, o c u p o u lugar de destaque entre os
tar insetos, borboletas e plantas dessa terra tropical.
b o t â n i c o s , cienfistas e colecionadores de A m s t e r d a m .
A o s 52 anos M a r i a S i b y l l a M e r i a n t i n h a certo r e n o m e . J á e m
U m a vida repleta de aventuras; e, c o m o no caso de G l i k l bas Ju-
1675, quando era uma j o v e m m ã e e v i v i a c o m o m a r i d o e m N u r e m b e r g ,
dah L e i b e M a r i e G u y a r t de I T n c a r n a f i o n , u m a v i d a m o l d a d a e ex-
o douto p i n t o r Joachim Sandrart a i n c l u í r a e m sua. Academia Todesca,
pandida pela r e h g i ã o , embora a p e r e g r i n a ç ã o protestante seguisse por
sua h i s t ó r i a da arte a l e m ã . Ela n ã o s ó dominava as t é c n i c a s da aquarela
u m c a m i n h o distinto. C o m o ocorreu c o m os textos de G l i k l e M a r i e , a
e do ó l e o , da pintura e m tecidos e da gravura e m cobre, reproduzindo
arte de M e r i a n — seu trabalho de o b s e r v a ç ã o e r e p r e s e n t a ç ã o — aju-
flores, plantas e insetos c o m perfeito realismo, c o m o ainda observava
dou-a a formar sua c o n s c i ê n c i a de si mesma, dos estrangeiros e e x ó t i -
atentamente os h á b i t o s de lagartas, moscas, aranhas e outras criaturas
cos. N o entanto, é mais difícil p r e n d ê - l a para o b s e r v á - l a , pois ela n ã o
do g é n e r o . M u l h e r virtuosa e boa dona de casa (apesar de todos os i n -
d e i x o u n e m u m a autobiografia, n e m c o n f i s s õ e s epistolares, n e m auto-
setos), p o d i a comparar-.se à deusa M i n e r v a , no d i z e r de Sandrart.'
Poucos anos depois, quando p u b l i c o u os dois volumes de sua Der Rau- retratos. S ó nos resta utilizar o " e u " observador de seus textos sobre en-

pen wunderbare Verwandelung und sonderbare Blumen-nahrung (A t o m o l o g i a e completar o quadro c o m os elementos fornecidos por pes-

m a r a v i l h o s a metamorfose das lagartas e sua singular a l i m e n t a ç ã o à soas que a rodearam e lugares que ela percorreu. Desse trabalho emerge
base de flores), Christopher A r n o l d , u m l u m i n a r de N u r e m b e r g , cele- uma m u l h e r curiosa, obstinada, discreta, v e r s á t i l , que enfrentou u m a
brou em versos todos os homens que se equiparavam a essa m u l h e r ge- m u d a n ç a religiosa e f a m i l i a r g r a ç a s a sua ardorosa busca das r e l a ç õ e s
nial. Sua obra era verwunderns — "espantosa".' e da beleza existentes na natureza.^
E n t ã o , e m 1692, uma categoria diferente de leitores descobriu e m
M a r i a S i b y l l a M e r i a n outra e s p é c i e de singularidade. Petrus D i t t e l -
bach, u m labadista dissidente que abandonara a c o m u n i d a d e desses M a r i a S i b y l l a M e r i a n nasceu na cidade livre e i m p e r i a l de Frank-
protestantes radicais na p r o v í n c i a holandesa da F r í s i a , p u b l i c o u u m re- furt am M a i n e m 1647, filha do arfista e editor Mathias M e r i a n , o Ve-
lato sobre a conduta de seus antigos c o r r e l i g i o n á r i o s . Entre estes figu- lho, e de sua segunda esposa, Johanna S i b y l l a H e i m . M a t h i a s estava en-
rava " u m a mulher de Frankfurt a m M a i n " que deixara o m a r i d o , o p i n - t ã o c o m cinquenta e poucos anos e era conhecido e m toda a Europa
tor Johann Andreas Graff, na A l e m a n h a para encontrar a paz entre os g r a ç a s a suas gravuras de vistas urbanas e paisagens, seus livros c i e n t í -

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ficos e suas e d i ç õ e s de Grands Voyages (narrativas de viagens ao N o v o aprendia b o r d a d o c o m a m ã e , M a r i a S i b y l l a assistia à s aulas que o
M u n d o ) , i n i c i a d a s anos antes p o r seu p r i m e i r o sogro, T h é o d o r e de padrasto ministrava a alunos v a r õ e s , iniciando-se, assim, nas artes do
Bry.' M o r r e u quando M a r i a S i b y l l a contava apenas t r ê s anos, e Johan- desenho, da aquarela, da p i n t u r a de natureza-morta e da gravura e m
na l o g o se casou de novo c o m o v i ú v o Jacob M a r r e i , p i n t o r especiali- cobre.
zado e m natureza-morta, g r a v a d o r e marchand." E n t r e m e n t e s , os O u t r a d i f e r e n ç a — essa, s i m , importante — era que os artistas ho-
m e i o s - i r m ã o s de M a r i a S i b y l l a , Mathias, o Jovem, e Caspar M e r i a n , mens se a p e r f e i ç o a v a m viajando e frequentando outros a t e l i ê s . M a -
estabeleciam-se c o m o gravadores, editores e p i n t o r e s , p r o d u z i n d o thias M e r i a n , o Jovem, esteve e m A m s t e r d a m , Londres, Paris, N u r e m -
obras t o p o g r á f i c a s em conformidade c o m a t r a d i ç ã o paterna, registran- berg e na I t á l i a , e Caspar t a m b é m c i r c u l o u bastante pela E u r o p a . "
do acontecimentos c o m o a c o r o a ç ã o do imperador L e o p o l d i e m Frank- Johann Andreas G r a f f s a í r a de N u r e m b e r g para estudar c o m M a r r e i , e
furt e muitas outras coisas/ antes de se tornar noivo de M a r i a S i b y l l a , viajara de A u g s b u r g o para
M a t h i a s M e r i a n , o Velho, e Jacob M a r r e i a d q u i r i r a m cidadania e m Veneza e R o m a , onde trabalhou por alguns anos. Quando o j o v e m e ta-
Frankfurt, de m o d o que, c o m o filha do p r i m e i r o , M a r i a S i b y l l a p ô d e lentoso A b r a h a m M i g n o n , c i d a d ã o de F r a n k f u r t , f o i estudar p i n t u r a
mais tarde p r o c l a m a r seu p r ó p r i o Burgerrecht. E m b o r a n ã o fossem floral c o m M a r r e i , este o e n v i o u a U t r e c h t , mais especificamente ao
membros da elite dominante, composta de velhos p a t r í c i o s , doutores ateliê de Jan Davidsz de H e e m , que havia sido seu professor."
e m leis e grandes banqueiros, ambos p o s s u í a m riqueza e p r e s t í g i o , e M a r i a S i b y l l a permaneceu sob a tutela da f a m d i a , c o m o ocorria
c o m o artistas se situavam b e m acima de todos os a r t e s ã o s na hierarquia c o m as m o ç a s . Pelo menos Frankfurt lhe proporcionava u m material v i -
social de F r a n k f u r t / T i n h a m , p o r é m , u m elo c o m alguns dos judeus que sual bastante r i c o nas vastas c o l e ç õ e s de gravuras, nos l i v r o s e nos
se a p i n h a v a m no gueto l o c a l (entre os quais Isaac, i r m ã o de H a i m quadros pertencentes a Jacob M a r r e i e aos M e r i a n . " F r a n k f u r t t a m b é m
H a m e l ) e c o m os estrangeiros residentes na cidade — u m elo de l e m - lhe oferecia algo mais modesto: lagartas. E m 1653 seus m e i o s - i r m ã o s
b r a n ç a e e x p e r i ê n c i a , se n ã o de l e i e status. E r a m imigrantes, c o m o a elaboraram as i l u s t r a ç õ e s da Historia natiiralis de insectis, de Jan Jons-
m ã e de M a r i a Sibylla: Mathias nascera na Basileia; Johanna pertencia lon, mas e m geral copiaram trabalhos de outros naturalistas, e m vez de
a u m a f a m í l i a de v a l õ e s que se transferira da H o l a n d a para Hanau, e utilizar modelos vivos.'""Entretanto, lagartas de verdade d e v i a m rondar
M a r r e i era neto de u m f r a n c ê s que se m u d a r a para F r a n k f u r t , mas o ateliê de Jacob M a r r e i , pois, b e m c o m o borboletas e outros insetos,
nascera e m Frankenthal e morara durante anos e m Utrecht, a t é se esta- figuram e m seus quadros florais, tendo sido retratadas possivelmente
belecer na cidade à s margens d o r i o M a i n . C o m essas r e l a ç õ e s cos- ao v i v o o u valendo-se de e s p é c i m e s m o r t o s . " P o r certo n ã o era difícil
mopolitas as f a m í l i a s M e r r i a n e M a r r e i se assemelhavam mais à f a m d i a consegui-las: o i r m ã o de M a r r e i trabalhava c o m s e d a — n ã o lidava pes-
de G l i k l que aos G u y a r t e aos M a r t i n de M a r i e de I T n c a r n a f i o n , ar- soalmente c o m os casulos (essa era tarefa das mulheres), p o r é m tinha
raigados na Touraine. acesso aos bichos-da-seda."'De qualquer m o d o M a r i a S i b y l l a d i r i a
Praticamente todas as mulheres que se dedicaram à arte no i n í c i o mais tarde que iniciara suas o b s e r v a ç õ e s aos treze anos: "Desde m i n h a
da era moderna pertenciam, c o m o M a r i a S i b y l l a M e r i a n , a u m a f a m d i a j u v e n t u d e tenho me dedicado a estudar insetos. Comecei c o m os b ô m -
de artistas. Esse ambiente em geral via c o m bons olhos seu talento e i g - bices de m i n h a cidade natal, F r a n k f u r t am M a i n ; depois observei as
norava as c o n v i c ç õ e s da é p o c a relativas aos efeitos do temperamento bt)rboletas e mariposas, m u i t o mais belas, que se desenvolvem a partir
f e m i n i n o sobre o g é n i o . '"Contudo, e x i s t i a m d i f e r e n ç a s entre as m u l h e - de outras e s p é c i e s de lagarta. Isso me levou a colecionar todas as la-
res artistas e seus i r m ã o s . Elas n ã o p o d i a m , por exemplo, dedicar-se à gartas que consegui encontrar para acompanhar suas metamorfoses
pintura h i s t ó r i c a de grandes p r o p o r ç õ e s , nem à r e p r e s e n t a ç ã o de nus, I . . . I e r e p r e s e n t á - l a s ao v i v o , c o m suas cores reais, por m e i o de m i n h a
p o r é m isso n ã o teve a m e n o r i m p o r t â n c i a para a t r a j e t ó r i a de M a r i a arte p i c t ó r i c a " . "
Sibylla, pois projetos de tal g é n e r o nunca apareciam no a t e l i ê de M e - Parece que n i n g u é m se o p ô s a tal p a i x ã o , embora sua f amília a con-
rian ou de M a r r e i . A o mesmo tempo que, juntamente c o m a m e i a - i r m ã . siderasse estranha. O u t r o celebrado naturalista da é p o c a , Jan S w a m -

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merdam, de A m s t e r d a m , t a m b é m c o m e ç a r a a estudar insetos e m tenra O casal estava longe de ser s o l i t á r i o . Frequentava a casa de
idade, i n s p i r a d o p e l o gabinete de curiosidades do pai.'" Achava-se Joachim Sandrart (ex-aluno do pai de M a r i a S i b y l l a ) e de outros artis-
provavelmente que as meninas deviam partilhar o sentimento a t r i b u í d o las locais que t e n t a v a m fundar u m a A c a d e m i a . V i s i t a v a o d o u t o
n u m poema a n ó n i m o à fdha de Thomas Mouffet, cujo popular Insecto- C h r i s t o p h e r A r n o l d , que escrevia sobre m o n u m e n t o s antigos e re-
rum sive minimorum animalium theatmm [Teatro de insetos ou animais l i g i õ e s e x ó t i c a s , correspondia-se c o m Menasseh ben I s r a e l ^ e p r o -
m í n i m o s ] acabou integrando a biblioteca de M a r i a Sibylla: vavelmente f o i o p r i m e i r o a despertar o interesse de M a r i a S i b y l l a pela
l i t e r a t u r a n a t u r a l i s t a e m l a t i m . F r a u G r ã f f í n (agora ela se chamava
Pequena miss Muffet, assim) figurava entre as amigas de Dorothea M a r i a A u e r i n , pintora de
Sentada num tufo,
N u r e m b e r g que se t o r n o u m a d r i n h a de sua segunda f i l h a , D o r o t h e a
Com sua coalhada.
M a r i a . " Paralelamente continuava observando os in.setos, recolhendo
Surgiu uma aranha,
as lagartas que encontrava e m seu j a r d i m , no quintal dos amigos, no
Sentou-se a seu lado
fosso da v i z i n h a A l t d o r f e e m outros lugares e levando-as para .seu gabi-
Ea amedrontou."
nete. A l i as alimentava c o m folhas, registrava seu comportamento e por
O h o m e m que esposaria M a r i a Sibylla M e r i a n e m 1665 n ã o se ame- meio de desenhos e pinturas ilustrava suas metamorfoses.
d r o n t o u . Johann Andreas G r a f f era u m dos alunos favoritos de Jacob L e v a v a , e m suma, u m a v i d a aparentemente p e r f e i t a para u m a
M a r r e i , c o m quem trabalhou numa gravura que apresenta marceneiros ariista e m sua é p o c a . N a d a sugeria r e v o l t a ou t r a n s f o r m a ç õ e s sur-
participando de uma pantomima numa p r a ç a de Frankfurt, e provavel- preendentes. Seu p r i m e i r o l i v r o , assinado por " M a r i a S i b y l l a Grãffin,
mente sua j o v e m noiva de b o m grado o aceitou como marido. Dez anos filha de Mathias M e r i a n , o V e l h o " , nada tinha de espantoso. Publicado
mais velho (ela estava c o m dezoito), pelo menos n ã o era u m estranho. e m três partes por seu m a r i d o , entre 1675 e 1680, c o n s t i t u í a u m Blu-
Sabia o quanto uma mulher conseguia dedicar-se ao trabalho: n u m de- inenbuch — isto é, u m a c o l e t â n e a de gravuras e m cobre, sem texto,
senho a tinta, datado de 1658, retratou Sara, filha de M a r r e i , atentamente apresentando flores i n d i v i d u a l m e n t e , e m guiriandas e e m buques."'As
d e b r u ç a d a sobre seu bordado, no ateliê do pai. O retrato constituiu u m flores e as eventuais lagartas, borboletas, aranhas e outras criaturas re-
b o m sinal de seu futuro relacionamento c o m M a r i a Sibylla.'" produzidas sobre as plantas p r i m a v a m pela beleza e pela e x a t i d ã o ( n u -
O casal m o r o u e m Frankfurt durante cinco anos — nesse e s p a ç o ma s o l u ç ã o para a guerra entre "arte" e "natureza", Kunst und Natur, da
de tempo nasceu sua fdha Johanna Helena — e depois se m u d o u para qual M a r i a S i b y l l a falava no p o e m a i n i c i a l ) , p o r é m o b e d e c i a m aos
N u r e m b e r g , a cidade natal de G r a f f " A l i o pai de Johann Andreas se no- p a d r õ e s da pintura floral seguidos por Jacob M a r r e i e seus mestres. A s -
tabilizara c o m o poeta laureado e reitor do g i n á s i o da Egidienplatz; n ã o sim c o m o seu pai, Mathias M e r i a n , publicara u m Florilegium renova-
era u m aristocrata, mas era u m h o m e m ilustre. A l i , residindo numa casa tum, t a m b é m ela l a n ç a v a sua c o l e t â n e a de flores, "pintadas ao natural".
c o n f o r t á v e l da M i l c h m a r k t Strasse, Johann A n d r e a s p r o d u z i u u m a A s s i m c o m o Jacob M a r r e i concebera u m l i v r o de e s b o ç o s a n a t ó m i c o s
série de gravuras c o m cenas de rua, vistas da arquitetura local e outros para uso de estudantes, pintores, ourives e escultores, t a m b é m M a r i a
aspectos urbanos — temas que o absorveram na I t á l i a e que nada fi- S i b y l l a fornecia e m seu Blumenhuch motivos e modelos para artistas e
nham e m c o m u m c o m os de seu professor M a r r e i ou de sua esposa."E bordadeiras." Seu p r e f á c i o de 1680 continha historietas, algumas re-
ali M a r i a S i b y l l a se dedicou à pintura e m pergaminho e l i n h o , ao bor- sultantes de ampla leitura, sobre aqueles que amavam e enalteciam a
dado e à gravura, a l é m de lecionar para u m grupo de m o ç a s , entre as beleza das flores: o papa que se encontrava e n t ã o no trono de s ã o Pedro
quais estavam a filha de u m editor-gravador e a aristocrata Clara R e g i - oferecera m i l coroas à igreja de San C a r l o , e m M i l ã o , e m troca de u m a
na I m h o f f A s cartas que escreveu a esta ú l t i m a mostram-na afetuosa, ú n i c a flor; e pouco tempo antes, na Holanda, 2 m i l guilderes trocaram
atenta aos progressos t é c n i c o s da aluna, preocupada c o m o p r e ç o das de m ã o s por u m ú n i c o b u l b o da t u l i p a SeinperAugustus.'"
tintas e d o v e r n i z e convenientemente respeitosa para c o m a f a m d i a
Imhoff"

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Enquanto M a r i a S i b y l l a M e r i a n escrevia essas palavras, u m tipo quatro patinhas verdes, da mesma cor das lagartas, e no fim novamente
m u i t o diferente de l i v r o era publicado: seu Raupen de 1679, on A ma- uma pata de cada lado. Saem de cada pérola longos pêlos negros e outros
ravilhosa metamorfose das lagartas e sua singular alimentação à base menores, tão duros que quase podem nos espetar. E curioso que, quando
de flores [...] pintadas ao natural e gravadas em cobre, ao qual se não acham alimento, as lagartas dessa variedade se devoram umas às ou-
tras, tão grande é sua fome; contudo, assim que obtêm [comida], param
seguiu u m segundo v o l u m e e m l ó S S . ' " Cada u m a das c e m gravuras
[de se devorar mutuamente]. Quando uma lagarta atinge suas dimensões
(cinquenta por v o l u m e , d i s p o n í v e i s e m preto e branco o u e m cores,
totais, como se pode ver [em minha ilustração] na folha verde e no caule,
c o n f o r m e o desejo e as posses do c o m p r a d o r ) ' " representava u m o u
então ela produz um casulo oval, duro e lustroso, brilhante como prata,
mais insetos reproduzidos ao v i v o e m seus v á r i o s e s t á g i o s : lagarta ou
no qual primeiramente se despoja de toda a sua pele e se transforma num
larva; pupa c o m o u sem casulo, e mariposa, borboleta o u mosca, voan- caroço de tâmara cor de fígado [Dattelkern é o termo usado para "pupa"],
do ou e m repouso ( à s vezes em ambas as posturas). M u i t a s i l u s t r a ç õ e s que se mantém sobre ela junto com a pele solta. Permanece assim imóvel
i n c l u í a m t a m b é m o e s t á g i o ovular. M a r i a S i b y l l a organizou cada i m a - até meados de agosto, quando finalmente a mariposa de tão louvável
g e m e m torno de uma planta, representada geralmente c o m flores e à s beleza surge e alça vôo. É branca e tem manchas salpicadas de cinzento,
vezes c o m frutos; e escolheu cada planta para mostrar as folhas das dois olhos amarelos e duas antenas marrons [Hõrner]. Possui quatro
quais a lagarta se alimentava e os locais das folhas o u do caule ( o u do asas, cada uma apresentando círculos pretos, brancos e também amare-
solo) e m que a f ê m e a depositava os ovos. Identificou cada planta e m los, cada um dos quais disposto dentro e sobre o outro. As extremidades
a l e m ã o e l a t i m , em uma o u duas p á g i n a s colocou, e m a l e m ã o , suas ob- das asas são marrons, mas perto dessas extremidades (ou seja, das pon-
tas das duas asas externas) há duas belas manchas cor-de-rosa. De dia a
s e r v a ç õ e s sobre o aspecto e o c o m p o r t a m e n t o do inseto e m cada e s t á -
mariposa permanece parada, mas à noite é muito irrequieta.'"
gio, geralmente precisando as datas, e descreveu suas r e a ç õ e s às v á r i a s
a p a r ê n c i a s do e s p é c i m e focalizado. N ã o d e n o m i n o u e s p é c i e s i n d i v i - Outras d e s c r i ç õ e s s ã o mais precisas no tocante à descoberta do i n -
duais de mariposas e borboletas — na verdade seus c o n t e m p o r â n e o s seto ( " u m a n o b i l í s s i m a e engenhosa j o v e m de N u r e m b e r g l e v o u - m e
h a v i a m batizado apenas u m pequeno n ú m e r o delas" — , p o r é m suas certa vez a percorrer seu belo j a r d i m [...] Nosso p r o p ó s i t o consisfia e m
d e s c r i ç õ e s i n c l u í a m ciclos de v i d a i n d i v i d u a i s . encontrar vermes i n s ó l i t o s e, n ã o os achando, voltamo-nos para as er-
Eis o que ela diz sobre u m inseto apresentado em diversos e s t á - vas comuns e nos deparamos c o m essa lagarta na urtiga branca"), o u
gios, de ovo a mariposa, numa cerejeira (a i l u s t r a ç ã o figura neste l i v r o ) : ao r i t m o da metamorfose (a lagarta negra fabricou seu casulo no final

Há muitos anos, quando vi pela primeira vez essa mariposa tão grande, de m a i o e permaneceu no e s t á g i o de Dattelkern, pendurada n u m a folha
tão lindamente marcada pela natureza, não me cansei de admirar sua bela de r a n ú n c u l o , "durante catorze dias"),'^ ou às d i f e r e n ç a s entre a m a r i -
gradação de cor e seus tons cambiantes e usei-a com frequência em m i - posa-macho e a f ê m e a . " Apenas e m alguns casos M e r i a n descreveu tais
nha pintura. Mais tarde, quando por graça de Deus descobri a metamor- d i f e r e n ç a s : e m muitas e s p é c i e s de l e p i d ó p t e r o s machos e f ê m e a s n ã o
fose das lagartas, muito tempo se passou até surgir essa bela mariposa. apresentam c a r a c t e r í s t i c a s contrastantes evidentes, c o m o asas; quanto
Quando a v i , senti tão grande alegria e tamanho prazer com a realização aos genitais — que ela pode ter examinado c o m uma lente de aumen-
de meus desejos que mal posso descrevê-los. Depois, durante anos segui- to — , as d i f e r e n ç a s eram pequenas demais para reproduzi-las e m suas
dos, recolhi suas lagartas e as mantive até julho com folhas de cerejeira,
pinturas. Todavia, qualquer que fosse a a b r a n g ê n c i a , todos os seus tex-
macieira, pereira e ameixcira. Apresentam um belo tom de verde, como
tos c o m p l e m e n t a v a m as i l u s t r a ç õ e s no sentido de reunir os insetos e as
a relva nova da primavera, c uma encantadora li.stra negra estendendo-se
plantas das quais se alimentavam no e s t á g i o larval, dar u m a v i s ã o c o m -
pelo comprimento do dorso; em cada segmento possuem também uma
listra negra, na qual quatro pontinhos brancos reluzem como pérolas. En- pleta da a p a r ê n c i a exterior deles ao longo do c i c l o v i t a l e expressar sua
tre eles há uma mancha oval, amarelo-ouro, e sob eles uma pérola bran- a d m i r a ç ã o pelas belas cores e marcas.
ca. Abaixo dos três primeiros segmentos possuem três unhas vermelhas Seu interesse pela beleza r e l a c i o n a v a - a c o m a t r a d i ç ã o da na-
de cada lado; seguem-se a estes dois segmentos vazios, após os quais há tureza-morta e m que se formara, e a p r ó p r i a M a r i a S i b y l l a reconheceu

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e m seu p r e f á c i o de 1679 que sua j u s t a p o s i ç ã o de plantas e insetos de- d i f e r e n ç a havia entre seus volumes de 1679 e 1683 e os livros mais es-
via alguma coisa à p r e o c u p a ç ã o dos artistas c o m adornos."' Baseava-se tritamente c i e n t í f i c o s sobre insetos publicados e m seu tempo? A d é c a -
t a m b é m e m trabalhos anteriores para elaborar r e p r e s e n t a ç õ e s "natura- da de 1660 f o i importante para a h i s t ó r i a da entomologia: a o b s e r v a ç ã o
listas" ou " m i m é t i c a s " de flora e fauna. Imagens detalhadas e realistas constante e a m a g n i f i c a ç ã o aprimorada c o n t r i b u í r a m para o m e l h o r co-
de insetos e plantas encontravam-se nas margens de livros de o r a ç õ e s nhecimento da anatomia e muda dos insetos, e e l i m i n a r a m a c r e n ç a dos
impressos na Holanda j á no final do s é c u l o x v , bem antes de surgirem naturalistas na a b i o g ê n e s e (ou seja, a g e r a ç ã o e s p o n t â n e a de determi-
nas naturezas-mortas pintadas por artistas holandeses e m aquarela e nados insetos a partir de m a t e r i a l e m estado de d e g e n e r a ç ã o ) . T e n -
ó l e o . " Para dar u m exemplo mais p r ó x i m o da busca da p r e c i s ã o , Georg taram-se novos sistemas c l a s s i f i c a t ó r i o s , m u i t o diferentes daqueles
Flegel, o p r i m e i r o mestre de Jacob M a r r e i e m Frankfurt, elaborou pe- utilizados por e n c i c l o p é d i a s renascenfistas c o m o a que os i r m ã o s M e -
quenos e meticulosos estudos de insetos ( u m deles mostrava a e v o l u ç ã o rian ilustraram e publicaram e m 1653. A l i Jan Jonston seguira Thomas
de u m b ó m b i c e desde o ovo a t é a mariposa), e moscas, l i b é l u l a s , be- Mouffet (e A r i s t ó t e l e s ) ao fazer da posse de asas u m c r i t é r i o funda-
souros e borboletas figuram entre os alimentos, frutas, aves e v i n h o s de mental de c l a s s i f i c a ç ã o ; j u n t o u lagartas á p t e r a s e vermes e m c a p í t u l o s
seus ó l e o s maiores.'" separados daqueles em que abordou borboletas e mariposas e n ã o deu
M a r i a S i b y l l a M e r i a n dnha outra coisa e m mente, p o r é m , quando maior i m p o r t â n c i a a sua metamorfose.^'
realizou seus estudos de insetos ao v i v o . A s mariposas e lagartas de .seu A Historia generalis insectorum ( H i s t ó r i a geral dos insetos),
Raupen n ã o estavam ali s ó para r e f o r ç a r o que existia de v i v o (lehen- datada de 1669 e publicada o r i g i n a l m e n t e e m h o l a n d ê s pelo m é d i c o
digf nas imagens florais, c o m o ocorre nos buques e guiriandas pinta- Jan S w a m m e r d a m , c o n s t i t u i u m dos melhores frutos da nova ento-
dos por M a r r e i e seu d i s c í p u l o A b r a h a m M i g n o n . Estavam ali por sua m o l o g i a . ^ A q u i é particularmente apropriada, pois no poema em que
p r ó p r i a i m p o r t â n c i a . Quando n e c e s s á r i o , M e r i a n sacrificava a veros- enaltece M a r i a S i b y l l a ( p u b l i c a d o no Raupen de 1679) C h r i s t o p h e r
s i m i l h a n ç a (a maneira c o m o as coisas poderiam parecer aos olhos do A r n o l d a menciona: "o que S w a m m e r d a m promete f ...1 agora chega ao
observador) a u m retrato decorafivo das listras, f e r r õ e s e patas reais da conhecimento de t o d o s " . " S w a i n m e r d a m f o i u m n o t á v e l observador
lagarta (e que u m amante da natureza devia conhecer). dos h á b i t o s dos insetos e t a m b é m reproduziu larvas nos diversos e s t á -
A c i m a de tudo seus insetos e plantas contavam uma história de v i - gios de suas t r a n s f o r m a ç õ e s , p o r é m destacou-se p a r t i c u l a r m e n t e na
da. O tempo transcorria e m suas imagens n ã o para sugerir a transito- d i s s e c a ç ã o de insetos ao m i c r o s c ó p i o , desenvolvendo processos m e t i -
riedade geral das coisas ou o ciclo anual das flores mais preciosas,^" e sim culosos para conservar e mostrar as m í n i m a s partes. Na. Historia gene-
para evocar u m processo de m u d a n ç a e s p e c í f i c o e interligado. Seus inse- ralis relatou suas descobertas (sobre o desenvolvimento interno da p u -
tos n ã o estavam a l i para t r a n s m i t i r mensagens m e t a f ó r i c a s , c o m o e m pa da borboleta, sobre os ó r g ã o s reprodutores de v á r i o s insetos e m u i t o
muitas naturezas-mortas criadas por Jan Davidsz de Heem, mestre de seu mais) e e x p ô s detalhadamente suas d i s c u s s õ e s e c o n c o r d â n c i a s c o m
padrasto e m Utrecht (a borboleta s i m b o l i z a n d o a alma ressurrecta, a outros naturalistas. O r g a n i z o u os insetos e m quatro "ordens de m u -
mosca s i m b o l i z a n d o o pecador, e assim por diante). Joris Hoefnagel, t a ç ã o natural", ou tipos de metamorfose (por exemplo, conforme pas-
arfi.sta-naturalista de fins do s é c u l o x v i , concebeu sua Ignis, uma ex- savam por uma metamorfo.se incompleta, c o m o o gafanhoto, ou c o m -
t r a o r d i n á r i a c o l e t â n e a de aquarelas focalizando in.setos, c o m o u m livro pleta, c o m o a borboleta). A metamorfose figurava em seu l i v r o menos
de emblemas, cada imagem precedida por uma c i t a ç ã o b í b l i c a ou a d á g i o para relatar o c i c l o vital de u m a e s p é c i e que para possibilitar u m p r i n c í -
e seguida por u m poema." A obra de Merian estava i m b u í d a de e s p í r i t o pio de c l a s s i f i c a ç ã o . A o final de suas 170 p á g i n a s de texto i n c l u i u treze
religioso, c o m o veremos; no entanto, excetuando-se uma r e f e r ê n c i a à i l u s t r a ç õ e s a n a t ó m i c a s , mostrando c o m clareza e e l e g â n c i a o desen-
bondade da abelha, seus textos n ã o continham c o m e n t á r i o s alegóricos.^' v o l v i m e n t o i n t e r n o e externo d o p i o l h o ou os e s t á g i o s da pupa, p o r
Se M a r i a S i b y l l a recolocou no centro da pintura floral o c i c l o v i - e x e m p l o , mas n ã o as plantas que serviam de a l i m e n t o à s larvas.^'' A s
tal de mariposas e borboletas e as plantas hospedeiras de lagartas, que i l u s t r a ç õ e s eram e m preto e branco e n ã o havia o p ç ã o de cor.

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Parece que M e r i a n usou apenas u m a lente de aumento, n ã o u m m i - cobertas contestavam ou c o r r o b o r a v a m n o ç õ e s existentes. F o i C h r i s -
c r o s c ó p i o , e nesse e s t á g i o de suas i n v e s t i g a ç õ e s n ã o r e a l i z o u disse- topher A r n o l d q u e m c i t o u o n o m e desses cientistas nos poemas que
c a ç õ e s (pelo menos é o que diz). C o m o v i m o s , seu foco de interesse es- abrem os dois volumes: S w a m m e r d a m ; Mouffet, na Inglaterra, agora
tava nas c a r a c t e r í s t i c a s exteriores dos insetos ao longo do processo de emulado por M e r i a n na A l e m a n h a ; Francesco R e d i , cuja descoberta de
metamorfose e nas plantas que serviam de alimento à s larvas nas d i - 1668 (sobre a r e p r o d u ç ã o dos insetos por meio de ovos) c o m certeza
versas é p o c a s d o ano. Sua v i s ã o era o que p o d e r í a m o s chamar de n ã o lhe era estranha; M a r c e l l o M a l p i g h i , que estudou o b ó m b i c e
ecológica: ela a t é reproduziu os o r i f í c i o s que as lagartas d e i x a v a m nas ( 1 6 6 9 ) . " Provavelmente M e r i a n conhecia b e m tais trabalhos, p o r é m
folhas. (Certamente n ã o se referiu ao papel desempenhado pelos inse- sua e s t r a t é g i a se resumia a mostrar os ovos sendo expehdos e a insistir
tos na p o l i n i z a ç ã o ; seus c o n t e m p o r â n e o s estavam apenas c o m e ç a n d o a em sua palavra figurativa, Dattelkern ( c a r o ç o de t â m a r a ) , para designar
examinar ao m i c r o s c ó p i o o " p ó " depositado sobre as flores e a discutir "pupa", e m vez de usar o termo a l e m ã o Puppe."
se as plantas tínham ó r g ã o s sexuais.)"" Artista-naturalista que era, n ã o consentiria que o texto p r e d o m i -
A s p r e o c u p a ç õ e s de ordem p r á t i c a referentes à drenagem de p â n - nasse sobre as imagens, n e m pretendia "desfigurar" suas gravuras c o m
tanos e ao desmatamento bem podem ter encorajado uma abordagem letras de A a G ou figuras de i a i v , c o m o f i z e r a m S w a m m e r d a m e
"ecológica".^" Tal abordagem t a m b é m pode ter surgido quando os na- M a l p i g h i para ajudar os leitores a i d e n t i f i c á - l a s . " Q u e r i a que suas ilus-
turalistas temporariamente deixaram de lado sua tarefa c l a s s i f i c a t ó r i a t r a ç õ e s falassem por si mesmas, sem a ajuda de n e n h u m artifício; o ob-
e se puseram a r e í l e d r sobre a i n t e r v e n ç ã o d i v i n a no que chamavam "a servador precisava apenas de u m eventual e m p u r r ã o z i n h o ("a lagarta
economia da natureza". A s s i m , e m 1691-2 o i n g l ê s John Ray, arguto retratada sobre a folha") — r e p r e s e n t a ç õ e s fundamentais, de p r e f e r ê n -
observador de plantas, aves, peixes e insetos, p u b l i c o u seu Wisdom of cia c o l o r i d a s , da beleza, dos processos e r e l a ç õ e s existentes na na-
God I Sabedoria de Deus], enfatizando tanto o comportamento " i n s t í n - tureza. T a l v e z fosse essa c a r a c t e r í s t i c a de seu t r a b a l h o que levou
d v o " de a n i m a i s e insetos quanto a u t i l i d a d e m ú t u a das diferentes Christopher A r n o l d a dizer: " O que S w a m m e r d a m promete [...] agora
partes da natureza. C o n t u d o , c o m o a f i r m a o b i ó g r a f o de Ray, a ta- chega ao conhecimento de todos".
x i o n o m i a sempre f o i "sua p r e o c u p a ç ã o b á s i c a " . M e r i a n , ao c o n t r á r i o , M a i s p r ó x i m o de M e r i a n e s t á Johannes Goedaert, de M i d d e l b u r g ,
concentrou-se nas i n t e r a ç õ e s processadas na natureza e nos processos aquarelista e naturahsta da " t r a d i ç ã o artesanal" (aplicando a ele a ex-
o r g â n i c o s transformadvos. Os especialistas n ã o s ã o u n â n i m e s e m dizer p r e s s ã o empregada por L o n d a Schiebinger para abranger as mulheres
que uma v i s ã o " o r g â n i c a " da natureza consdtui o ú n i c o c a m i n h o para que chegaram à c i ê n c i a sem a correspondente f o r m a ç ã o a c a d é m i c a ) . "
uma c o n c e p ç ã o e c o l ó g i c a . C a r o l y n M e r c h a n t diz que é; D o n a l d W o r s - Sua Metamorphosis naturalis, de 1662-9, publicada e m h o l a n d ê s e la-
ter afirma que os conceitos o r g â n i c o s e m e c â n i c o s g e r a m t r a d i ç õ e s t i m , t a m b é m se baseia e m insetos que ele reproduzira e observara e, co-
e c o l ó g i c a s alternadvas, uma buscando a harmonia do h o m e m c o m a na- mo o l i v r o de M e r i a n , organiza-se e m torno de imagens individuais e
tureza, a outra buscando o d o m í n i o do h o m e m sobre a natureza. E m - seus respectivos textos. C o n t u d o , apesar de serem e m geral m e t i -
bora M e r i a n n ã o possa contribuir para resolver ou reformular esse de- culosamente elaboradas, as imagens de Goedaert se d i s t i n g u e m das de
bate, suas atitudes e m r e l a ç ã o à natureza parecem coerentes, nesse M e r i a n , pois f o c a l i z a m as larvas e os insetos adultos, c o m f r e q u ê n c i a
e s t á g i o de sua vida, c o m uma t r a d i ç ã o o r g â n i c a do t i p o reladvamente — mas nem sempre — m o s t r a m a pupa, nunca apresentam os ovos (na
pacífico.^' verdade o autor ainda acreditava em g e r a ç ã o e s p o n t â n e a ) e tampouco
Quanto a sua r e l a ç ã o c o m outros naturalistas, parece que recorreu as plantas de que os insetos se a l i m e n t a v a m . " Suas i l u s t r a ç õ e s desti-
aos estudos b o t â n i c o s de Caspar B a h u i n para apresentar os nomes l a d - navam-se mais a identificar as e s p é c i e s que a representar processos e
nos das plantas (no s é c u l o x v n tais estudos c o n s t i t u í a m a fonte b á s i c a a s s o c i a ç õ e s naturais. Q u a n d o M e r i a n estava preparando o segundo
da nomenclatura),'" p o r é m n ã o menciona B a h u i n nem outros cientistas volume de seu Raupen para e n v i á - l o ao prelo, u m naturalista de C a m -
e m seu texto, c o m o t a m p o u c o e x p l i c i t a os pontos e m que suas des- bi idge l a n ç o u o l i v r o de Goedaert e m i n g l ê s e, insatisfeito c o m a "or-

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dem t u m u l t u o s a " da obra o r i g i n a l , " m e t o d i z o u as h i s t ó r i a s segundo as mentos dos reinos vegetal e a n i m a l . A i n d a que lhe faltasse a l ó g i c a da
diversas naturezas dos insetos aos quais se referem"."Tsolados, fora de c l a s s i f i c a ç ã o , sua s e q u ê n c i a n ã o era "tumultuosa". Fruto da sensibili-
contexto e m seu o r i g i n a l h o l a n d ê s , os insetos de Goedaert se prestavam dade de dois artistas — M e r i a n e seu marido-editor, G r a f í — , os livros
a tal remanejamento. conduziam o olhar do leitor a t r a v é s de u m caminho visualmente sur-
E o Raupen de M a r i a Sibylla? T a m b é m apresentava u m a o r d e m preendente e a g r a d á v e l . O " m é t o d o " do Raupen — imagens e textos
"tumultuosa"? Se seus volumes tives.sem sido "metodizados" por a l - minuciosos e m extremo, unidos por u m elo e s t é t i c o — tinha uma i m -
g u m esquema c l a s s i f i c a t ó r i o , t e r i a m conferido mais f o r ç a a sua men- p o r t â n c i a c i e n t í f i c a independente das novas e s p é c i e s contidas e m suas
sagem? O u s e r á que t i n h a m uma l ó g i c a p r ó p r i a ? p á g i n a s . Tornou o processo pouco estudado da metamorfose fácil de
Ela mesma e x p l i c o u sua o r d e m apenas duas vezes. A s s i m , abriu o ser visualizado e lembrado e insisfiu nas r e l a ç õ e s da natureza — uma
p r i m e i r o v o l u m e c o m bichos-da-seda e folhas de amoreira porque fora c o n t r i b u i ç ã o a longo prazo. A l é m disso, c o m seu particularismo e suas
c o m eles que dera i n í c i o a suas o b s e r v a ç õ e s . A l é m disso, eram ú t e i s . E misturas surpreendentes r o m p e u c o m sistemas c l a s s i f i c a t ó r i o s mais
c o m e ç o u o segundo v o l u m e c o m abelhas por causa da p e r m a n ê n c i a antigos e, assim, preparou o terreno para aqueles que, c o m o Swammer-
constante desses insetos no m u n d o l i m i t a d o da c o l m e i a onde Deus os dam, p r o p u n h a m a s u b s t i t u i ç ã o de tais sistemas.
pusera. A subsequente d i s p o s i ç ã o das i l u s t r a ç õ e s aparentemente n ã o
obedecia a n e n h u m c r i t é r i o de c l a s s i f i c a ç ã o b o t â n i c a ou e n t o m o l ó g i c a
vigente e m sua é p o c a . A s plantas c o m u n s n ã o p r e c e d i a m os trevos,
A p u b l i c a ç ã o do Raupen constituiu u m feito " n o t á v e l " para uma
seguidos de arbustos e á r v o r e s , c o m o o c o r r i a na o r g a n i z a ç ã o t r a d i -
mulher, conforme Christopher A r n o l d disse aos leitores e m seu poema
cional de u m herborista; as plantas lenhosas n ã o estavam separadas das
i n t r o d u t ó r i o de 1679 — " é e x t r a o r d i n á r i o que as mulheres t a m b é m se
h e r b á c e a s , c o m o n u m a proposta mais recente; frutos e flores seme-
aventurem a escrever/ c o m d i l i g ê n c i a / o que tanto trabalho t e m dado a
lhantes n ã o se a g r u p a v a m . " O Raupen de 1679 se i n i c i a v a c o m u m a
m u l t i d õ e s de estudiosos".'" A p r ó p r i a M e r i a n referiu-se apenas u m a
amoreira, no meio mostrava u m a cerejeira e terminava c o m u m carva-
vez a sua c o n d i ç ã o feminina: ao descrever os insetos aninhados numa
lho. E m b o r a estabelecesse a d i f e r e n ç a entre borboleta e mariposa (res-
anserina, i m a g i n a seus leitores perguntando se os milhares de lagartas
pectivamente Sommer-vogel e Motte, e à s vezes no d i m i n u t i v o Som-
e x c e p c i o n a l m e n t e grandes daquele ano de 1679 n ã o p r o v o c a r i a m
mer-vôgelein e Motte-vôgelein) e informasse se e r a m noturnas ou
grandes danos. " A que, seguindo m i n h a simplicidade f e m i n i n a [meiner
diurnas, m i s t u r o u seus ciclos vitais. A " o r g a n i z a ç ã o " mais importante
Weiblichen Einfalt], respondo: o dano j á é evidente nas á r v o r e s vazias
no í n d i c e , ao final de cada v o l u m e , referia-se à s Dattelkerne — às pu-
de frutos e nas plantas defeituosas.""'
pas — , que M e r i a n classificou conforme a cor (marrons, marrom-es-
N o entanto, s e r á que podemos ir mais fundo que o topos " a l é m -
curas, douradas, pretas, e assim por diante); todavia, na s e q u ê n c i a se-
parou c r i s á l i d a s de colorido semelhante. Tampouco reuniu n u m grupo d o - p r ó p r i o - s e x o " , de A r n o l d , e o topos " m o d é s t i a " , de M a r i a Sibylla?

p r ó p r i o os diversos insetos n ã o pertencentes à " o r d e m dos l e p i d ó p t e - Podemos perguntar se sua e x p e r i ê n c i a ou os h á b i t o s culturais de m u -

ros" ( c o m o Linnaeus os chamaria mais tarde): muitas vezes a meta- lher seiscentista c o n t r i b u í r a m para l e v á - l a a adotar essa v i s ã o e c o l ó g i -
morfose de abelhas e vespas, m o s c a s - d ' á g u a , moscas e t r i p é s divide a ca da natureza e a cruzar fronteiras e m suas narrativas?
mesma i l u s t r a ç ã o c o m mariposas e borboletas, porque M e r i a n obser- M a r i a S i b y l l a M e r i a n constitui u m exemplo ú n i c o no s é c u l o x v i i .
vou suas lagartas ou larvas alimentando-se das mesmas plantas. Outras c o n t e m p o r â n e a s que se dedicaram à pintura de naturezas-mor-
O objetivo dela simplesmente f o i prejudicado pela fronteira das tas, c o m o Margaretha de Heer, da F r í s i a , i n c l u í r a m insetos e m seus
c l a s s i f i c a ç õ e s . Seu tema consistia n u m conjunto de fatos — " E n c o n - quadros, p o r é m n ã o chegaram ao ponto de c r i á - l o s e e s t u d á - l o s (as fi-
t r a r ã o neste v o l u m e mais de cem t r a n s f o r m a ç õ e s [Verwandlungen]", lhas de M e r i a n fariam isso b e m depois).''"Outras c o n t e m p o r â n e a s cole-
disse e m 1683 — , e r e p r e s e n t á - l o s de maneira adequada significava c i o n a r a m borboletas, mariposas e lagartas, p o r é m n ã o escreveram
cruzar a fronteira entre as ordens e i n c l u i r na mesma i l u s t r a ç ã o ele- sobre elas, n e m as representaram. A s quatro filhas de John Ray leva-

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ram-lhe alguns e s p é c i m e s , mas s ó ele registrou as o b s e r v a ç õ e s , dando i l u s t r a ç õ e s sobre o ciclo vital desse inseto a q u á t i c o acrescentou poe-
a cada lagarta o nome da filha que a encontrara."' A d e m a i s , Ray estivera mas c o m p a r a n d o seu l o n g o e s t á g i o larval na l a m a e sua breve idade
atento ao habitat dos in.setos e m suas primeiras o b s e r v a ç õ e s , embora adulta aos sofrimentos da v i d a humana."'
fizesse da c l a s s i f i c a ç ã o seu p r i n c i p a l o b j e d v o , e c o n t i n u o u a i n c l u i r M a r i a S i b y l l a ainda n ã o passara pela e x p e r i ê n c i a da c o n v e r s ã o
metamorfoses em suas d e s c r i ç õ e s de insetos individuais sempre que as quando c o m e ç o u a pubhcar o Raupen, p o r é m a ê n f a s e que deu à cria-
percebia." tividade d i v i n a e o "entusiasmo" c o m que falou dos insetos e de sua
N ã o obstante M e r i a n foi uma pioneira: atravessou as fronteiras da beleza certamente lhe prepararam os ouvidos para as c a d ê n c i a s p r o f é t i -
i n s t r u ç ã o e do sexo para adquirir conhecimentos sobre insetos e criou cas e líricas que logo lhe encheriam o m u n d o . C o m o Jean de Labadie
as filhas ao mesmo tempo que observava, pintava e escrevia. Seu inte- dissera anos antes: " T u d o o que o u v i m o s o u vemos anuncia Deus ou o
resse por r e p r o d u ç ã o , habitat e metamorfose condiz perfeitamente c o m figura. O canto de u m p á s s a r o , o b a l i d o de u m cordeiro, a voz de u m
a p r á t i c a d o m é s t i c a de u m a m ã e de f a m d i a do s é c u l o x v n . Temos aqui h o m e m . A v i s ã o do c é u e suas estrelas, do ar e suas aves, do mar e seus
n ã o uma c a b e ç a f e m i n i n a à s voltas c o m a a n á l i s e o u eternamente presa peixes, da terra e suas plantas e animais [...| T u d o fala de Deus, tudo o
ao o r g â n i c o (imagens contestadas pelos estudos recentes)," e s i m uma representa, p o r é m poucos ouvidos e olhos tentam e s c u t á - l o o u v ê - l o " . "
mulher que se dedicou à atividade c i e n t í f i c a numa m a r g e m criafiva — M a r i a S i b y l l a era uma das pessoas que tentavam ver.
para ela u m ecossistema cheio de z u m b i d o s — situada entre o labo-
r a t ó r i o d o m é s t i c o e a douta academia.
M a i s explicitamente importante que seu sexo era a l e g i f i m a ç ã o , O v o l u m e Lagarta, de 1683, f o i p u b l i c a d o por Johann Andreas
ou melhor, a s a n t i f i c a ç ã o de seu trabalho de entomologista por m e i o da n ã o e m N u r e m b e r g , mas e m F r a n k f u r t . Os G r a f f r e t o r n a r a m a essa
r e l i g i ã o : "Essas maravilhosas metamorfoses ocorreram tantas vezes cidade a fim de resolver q u e s t õ e s de f a m d i a e propriedade. O velho Ja-
que s ó nos cabe louvar a i n e s c r u t á v e l o n i p o t ê n c i a de Deus e sua p r o d i - cob M a r r e i morrera havia dois anos, deixando os bens — a casa, d i -
giosa a t e n ç ã o para c o m criaturinhas t ã o insignificantes e t ã o indignas nheiro, u m a vasta biblioteca e u m a c o l e ç ã o de arte — para a v i ú v a , Jo-
formas voadoras", escreveu ela e m seu prefacio de 1679. " A s s i m , sou hanna S i b y l l a , e os m a r i d o s de sua enteada, M a r i a S i b y l l a , e de sua
levada a apresentar ao m u n d o , n u m l i v r i n h o , milagres divinos c o m o es- tilha. Sara. C o n t u d o , o legado dele i n c l u í a t a m b é m v á r i a s d í v i d a s . U m
ses. Todavia n ã o me e n a l t e ç a m por isso; e n a l t e ç a m apenas a Deus, g l o - tanto asperamente M a t h i a s M e r i a n , o J o v e m , a t r i b u i u a s i t u a ç ã o à
rificando-o c o m o o criador a t é do menor e mais insignificante dos ver- madrasta e a seu marido: Johanna S i b y l l a e Jacob "esbanjaram o b o m
mes." O v o l u m e c o n c l u í a c o m uma " C a n ç ã o da lagarta" (Raupen-lied), dinheiro [deixado por M a t h i a s M e r i a n , o Velho] e, assim, a p ó s a morte
e m versos heptassdabos, composta por A r n o l d para a m e l o d i a de "Je- de M a r r e i ela se vira obrigada a viver da caridade da fdha".''** Seguiu-se
sus, que m i n h a alma deseja". Quantas flores e insetos atestam a obra d i - u m processo j u r í d i c o , e m que M a r i a S i b y l l a e a m ã e se u n i r a m contra o
vina, diz A r n o l d ; " D e i x a - m e , pois, pequeno verme, obedecer a teu co- marido de Sara — u m a briga de famflia t í p i c a do s é c u l o xvii.""Enquan-
mando"." to essa briga se desenrolava, M a r i a S i b y l l a p u b l i c o u o segundo v o l u m e
M e r i a n n ã o estava sozinha quando expressou esses sentimentos. do Lagarta, observou novos insetos, lecionou p i n t u r a a u m grupo de
Johannes Goedaert i n i c i a r a sua Metamorphosis naturalis c o m uma m o ç a s de F r a n k f u r t e correspondeu-se c o m sua a m i g a , a p i n t o r a
d i s c u s s ã o religiosa e a c i t a ç ã o de passagens b í b l i c a s f a v o r á v e i s aos i n - Dorothea M a r i a A u e r i n , que morava e m Nuremberg. N o v e r ã o de 1685
setos.'''Em 1669 S w a m m e r d a m apenas m e n c i o n o u Deus ao dedicar as mulheres ganharam o processo, e Graff, que passara algumas t e m -
Historia insectorum generalis aos burgomestres de A m s t e r d a m ; c o n - poradas e m N u r e m b e r g desenhando cenas urbanas, v o l t o u definitiva-
tudo, e m 1675, quando se encontrava sob a o r i e n t a ç ã o espiritual da pro- mente para a casa da M i l c h m a r k t Strasse. E m vez de a c o m p a n h á - l o ,
fetisa v i s i o n á r i a A n t o i n e t t e B o u r i g n o n , p u b l i c o u seu estudo sobre a M a r i a S i b y l l a abruptamente seguiu c o m a m ã e e as duas filhas para
e f e m é r i d a c o m o t í t u l o Uma figura da vida miserável do homem. À s W i e u w e r d , na F r í s i a , onde pretendia ingressar na c o m u n i d a d e laba-

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dista. H a v i a já alguns anos que seu m e i o - i r m ã o Caspar v i v i a a l i , e ago- A v i d a de Caspar M e r i a n i n d i c a uma m u d a n ç a de sensibilidade no
ra ela decidira ir a seu encontro."' ano anterior a sua partida para W i e u w e r d , quando ele abandonou suas
A c o n v e r s ã o o c o r r e u e m F r a n k f u r t durante a querela f a m i l i a r . habituais c e r i m ó n i a s de c o r o a ç ã o e cenas t o p o g r á f i c a s e se p ô s a ela-
Nessa cidade M a r i a S i b y l l a fora batizada e se casara, c o m o todos os borar i l u s t r a ç õ e s s a t í r i c a s para Elogio da loucura, de Erasmo, Nau dos
membros de sua família, na Igreja e v a n g é l i c a luterana. Nessa cidade o insensatos, de Sebastian B r a n t . " Q u a n t o a M a r i a S i b y l l a M e r i a n , os
m o v i m e n t o pietista se organizara e m torno de P h i l i p p Jakob Spener, ú n i c o s i n d í c i o s consistem na r e a ç ã o dela à p r e s e n ç a de Deus na meta-
que desde 1666 a l i exercia a f u n ç ã o de pastor e cuja obra Pia desideria morfose da natureza e numa ú l t i m a carta a Clara Imhoff, e m N u r e m -

[Pios desejos], de 1675, reivindicava a r e n o v a ç ã o do sentimento r e l i - berg, recomendando o marido a essa a r i s t o c r á t i c a f a m í l i a ("provavel-

gioso luterano e a m i l i t â n c i a por toda a A l e m a n h a . Suas ideias pouco mente ele p r e c i s a r á de bons conselhos")."'E h á t a m b é m sua partida.

afetaram N u r e m b e r g , mas e m p o l g a r a m F r a n k f u r t . Sob a i n s p i r a ç ã o O que se seguiu f o i uma enorme t r a n s f o r m a ç ã o . E m b o r a n ã o fos-

dele alguns conversos se r e u n i r a m e m pequenos grupos para estudar a se obrigada a separar-se das filhas, M a r i a S i b y l l a passou por m u d a n ç a s
t ã o cruciais quanto as que M a r i e G u y a r t experimentou ao entrar para o
B í b l i a , praticar a caridade e exercer a sohdariedade m í s t i c a ; outros de-
convento das ursulinas e m Tours. N ã o se tratava apenas de aceitar os en-
ram ouvidos à mensagem mais radical de r e n ú n c i a ao m u n d o que pro-
sinamentos de Jean de Labadie — o reino do grande r e i Jesus Cristo es-
v i n h a da nova comunidade labadista, situada primeiramente em Her-
tava p r ó x i m o e L a b a d i e era u m de seus arautos. Tratava-se de aban-
f o r d e A l t o n a e, depois de 1675, e m W i e u w e r d . "
donar i m e d i a t a m e n t e a v i o l ê n c i a , o o r g u l h o e a c o n c u p i s c ê n c i a do
O que M a r i a S i b y l l a leu e o u v i u ? Assistiu aos s e r m õ e s de Spener,
m u n d o e viver a vida dos regenerados, c o m absoluto arrependimento.
ou p a r t i c i p o u das r e u n i õ e s religiosas e m casa de a l g u é m ? Teria co-
N ã o bastava frequentar uma comunidade pietista de Frankfurt e parti-
nhecido Johanna Eleonora von M e r l a u ? Eleonora nascera alguns anos
lhar o entusiasmo religioso duas vezes por semana, continuando c o m
antes dela e m F r a n k f u r t e, n u m a c e r i m ó n i a p r e s i d i d a p o r Spener,
os afazeres do dia-a-dia: era preciso deixar para trás aquela e x i s t ê n c i a
casara-se e m 1680 c o m u m importante pietista; desde a i n f â n c i a sentia
cotidiana cheia de pecados e dirigir-se à "Igreja Reformada, afastada
a obra de Deus e m seu í n t i m o e recebia r e v e l a ç õ e s de Jesus Cristo so-
do m u n d o e agora reunida e m W i e u w e r d , na F r í s i a " . "
bre as salas do c é u — r e v e l a ç õ e s que depois registrou no p a p e l . " S e r á
L a b a d i e m o r r e r a e m 1674, e sob a o r i e n t a ç ã o de seu sucessor,
que Caspar M e r i a n enviou para sua m e i a - i r m ã algumas obras de Jean
Pierre Y v o n , a comunidade deveria crescer e transformar-se numa N o -
de L a b a d i e no o r i g i n a l f r a n c ê s o u traduzidas para o h o l a n d ê s ou o
va J e r u s a l é m . Todas as l í n g u a s eram b e m acolhidas: ao chegar, M a r i a
a l e m ã o ? Suas d e n ú n c i a s da c o r r u p ç ã o vigente na sociedade e seu idOi- S i b y l l a o u v i u falar f r a n c ê s , h o l a n d ê s , a l e m ã o e a t é u m pouco de i n g l ê s ;
co retrato do " t i p o de P a r a í s o que se poderia ter na terra", desde que se os s e r m õ e s e r a m p r o n u n c i a d o s e m f r a n c ê s e h o l a n d ê s . Todas as
vivesse c o m a " s i m p l i c i d a d e e a sinceridade" dos antigos fiéis? Seu p o s i ç õ e s sociais eram bem acolhidas: entre os trezentos e cinquenta e
tratado sobre "o e u " e a reforma desse eu? Sua c a r t a - d e d i c a t ó r i a a A n - poucos homens e mulheres que a l i v i v i a m e m meados da d é c a d a de
na M a r i a van Schurman, louvando-lhe o conhecimento de l í n g u a s e o u - 1680 encontravam-se tanoeiros, carpinteiros, cozinheiras, fiandeiras,
tras c i ê n c i a s humanas e divinas, bem c o m o o talento para a pintura e a c o m e r c i a n t e s , m é d i c o s e pastores; a p r o p r i e d a d e de W a l t h a , onde
gravura, e instando-a a escrever sobre as coisas do e s p í r i t o ("Apressa- moravam os labadistas de W i e u w e r d , fora doada por três convertidas
te, apressa-te, m i n h a i r m ã , aconceberos belos frutos e s p i r i t u a i s " ) ? " O u pertencentes a u m a f a m d i a p a t r í c i a , as i r m ã s Aerssen van Sommels-
M a r i a S i b y l l a teria lido a autobiografia espiritual de A n n a M a r i a van dijk. N u m a atitude p r ó x i m a à da hierarquia mundana, as i r m ã s S o m -
Schurman, Eukleria, seu Melioris Partis Electio ( E u k l e r i a , ou a Esco- melsdijk sempre se hospedavam no solar c o m o pastor Y v o n e sua es-
lha da m e l h o r parte), escrita no retiro labadista para dizer ao mundo que posa, e n ã o nas h a b i t a ç õ e s mais simples c o m os outros devotos.
os g a l a r d õ e s da tilosotia nada eram e m c o m p a r a ç ã o c o m a verdadeira Todavia, a l i n g u a g e m da p o l i d a d e f e r ê n c i a social, c o m o a que M a r i a
amizade c r i s t ã ? " S i b y l l a empregou nas cartas a Clara I m h o f f estava ausente da c o m u -

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nidade. E m Waltha a ú n i c a hierarquia importante era a espiritual, c o m p o t ê n c i a , mas n ã o e m caso de excesso sexual dentro do m a t r i m ó n i o ou
a " p r i m e i r a classe" dos eleitos, todos I r m ã o s e I r m ã s , acima da "segun- d i v e r g ê n c i a s espirituais). Tendo de escolher entre o d i v ó r c i o e a con-
da classe" de aspirantes, ainda presos ao egoísmo.™ v i v ê n c i a c o m uma esposa i n c r é d u l a , u m v i g á r i o i n g l ê s decidira deixar
O arrependimento verdadeiro resultava no que Y v o n chamava de W i e u w e r d e v o l t a r para a m u l h e r impenitente. M e r i a n ficou na c o m u -
pobreza de e s p í r i t o , o u seja, o absoluto d e s p r e n d i m e n t o das coisas nidade, e mais tarde D i t t e l b a c h a citou c o m o exemplo da s u b v e r s ã o do
mundanas. Desprendimento do o r g u l h o , para c o m e ç a r — dos elogios casamento por parte dos labadistas."'
d i r i g i d o s por homens doutos à c r i a t i v i d a d e e à c o m p e t ê n c i a . Des- A "santa t e m p e r a n ç a " teria gerado a l g u m mal-estar entre os
prendimento da e l e g â n c i a , dos trajes requintados e das j ó i a s iguais aos Graff? A n o s depois, quando ambos j á estavam mortos e enterrados, cir-
que M a r i a S i b y l l a usava ao visitar as casas a r i s t o c r á d c a s de N u r e m - c u l a r a m h i s t ó r i a s que a t r i b u í a m a s e p a r a ç ã o ora aos " v í c i o s ver-
berg; c u m p r i a despojar-se de tais vestes e adornos c o m o se fossem uma gonhosos" de Johann Andreas ora ao " c a p r i c h o " de M a r i a S i b y l l a no
pele morta e s u b s t i t u í - l o s pelo h á b i t o austero de Waltha. D e s p r e n d i - sentido de p a r t i r . " ' A p ó s o r o m p i m e n t o os dois c o m certeza seguiram
mento da propriedade, de casas na M i l c h m a r k t Strasse e e m Frankfurt, caminhos diversos. Graff disse à C â m a r a M u n i c i p a l de N u r e m b e r g que
de processos j u r í d i c o s sobre h e r a n ç a , de belas c o l e ç õ e s de quadros. Os "sua esposa o deixara para viver c o m os labadistas", conseguiu o d i -
pertences dos aspirantes eram doados imediatamente à comunidade, v ó r c i o , casou-se de novo aos 57 anos e teve mais u m t i l h o . Entrementes,
para uso de todos; e a a d m i s s ã o na " p r i m e i r a classe" i m p l i c a v a a r e n ú n - M a r i a S i b y l l a declarou à C â m a r a M u n i c i p a l de Frankfurt que o marido
cia a q u a l q u e r p r o p r i e d a d e d e i x a d a no m u n d o p e c a m i n o s o . M a r i a "separara-se dela e vive e m falsidade a seu lado [in Unrichtigkeit mit
S i b y l l a M e r i a n evidentemente f o i recebida c o m o u m dos eleitos, pois ihr /e/?/]".""Embora as filhas conservassem o sobrenome Graff, M a r i a
em 1690 escreveu à s autoridades de Frankfurt declarando que n ã o pos- S i b y l l a r e t o m o u o nome M e r i a n e a partir dos 39 anos viveu sem m a r i -
s u í a bens nessa cidade e que tudo o que lhe a t r i b u í a m pertencia a Johann do. Por que haveria de temer a s o l i d ã o ? M e s m o depois que seu i r m ã o
Andreas Graff.'" morreu em Waltha, e m 1686, ela, as filhas e a m ã e t i n h a m papai Y v o n ,
O casamento chegara ao fim. Ela n ã o nos d e i x o u nenhum i n d í c i o c o m o todos o chamavam, e faziam parte da santa f a m d i a labadista, que,
de eventuais problemas que o casal tivesse fido antes de sua c o n v e r s ã o : segundo u m a das i r m ã s S o m m e l s d i j k , " v i v i a unida pelo amor n u m a s ó
Graff publicara o Raupen, e no v o l u m e de 1679 M e r i a n reconheceu "a alma e n u m s ó espírito"."^
consumada ajuda de meu q u e r i d o esposo".""O que e s t á c l a r o é que Os membros da santa f a m d i a t a m b é m ,se apoiavam mutuamente
Johann Andreas n ã o partilhava seu entusiasmo religioso n e m na arte, na r e c o n s t r u ç ã o do eu — objetivo que, c o m o Labadie e Y von lhes ensi-
n e m na vida e, c o m o v i m o s , fracassou ao tentar firá-la de W i e u w e r d . naram, o regenerado p o d i a a l c a n ç a r ainda nesta vida. A p e n i t ê n c i a , a
Ajoelhado diante da mulher, suplicou-lhe que o deixasse viver c o m ela disciplina, a o r a ç ã o c o m u n i t á r i a e o e x e r c í c i o p r o f é t i c o p o d i a m destruir
e os filhos. O fato de lhe negarem p e r m i s s ã o para " d o r m i r c o m ela n u m o "eu c r i m i n a l " (soi criminei), o eu e g o í s t a , e t r a n s f o r m á - l o no "eu
lugar sagrado" ou para permanecer na comunidade e m meio à "segun- puro", un Soi non soi, " u m eu supernatural no h o m e m natural"."""
da classe" decerto se deveu à a v a l i a ç ã o de M a r i a Sibylla. E l a era "dura M e r i a n n ã o registrou sua e x p e r i ê n c i a desse processo. Possivel-
c o m o ferro", disse o i r m ã o Dittelbach, que depois lhe l e m b r o u i C o r í n - mente lhe agradavam as formas de espiritualidade cultivadas pelas I r -
tios, 7: "Que a mulher n ã o sc separe do m a r i d o [...] porque o m a r i d o sem m ã s . O pa.stor e os " I r m ã o s oradores" ou l í d e r e s eram todos homens,
fé é sanfificado pela m u l h e r fiel". M a r i a S i b y l l a respondeu que o pas- p o r é m nas r e u n i õ e s religiosas havia "oradoras" na l i n h a da t r a d i ç ã o
tor Y v o n tinha uma i n t e r p r e t a ç ã o diferente desse texto. S ó verdadeiros p r o f é t i c a , e u m a m u l h e r fazia a t r a d u ç ã o s i m u l t â n e a dos s e r m õ e s de
crentes e a "santa t e m p e r a n ç a " e m r e l a ç ã o a sexo p o d i a m sustentar o Y v o n para o h o l a n d ê s . " ' ' A n n a M a r i a van Schurman morrera e m santi-
casamento c r i s t ã o . Na a u s ê n c i a de tais c o n d i ç õ e s o fiel estava livre dos dade anos antes da chegada de M e r i a n , mas tanto ela c o m o sua Eukle-
l a ç o s conjugais ( p o s i ç ã o diversa da que a Igreja luterana defendia, per- ria ainda eram vistas c o m o modelos de lucidez t e o l ó g i c a , v i d a serena e
m i t i n d o o d i v ó r c i o e m caso de a d u l t é r i o , abandono deliberado ou i m - alegre a c e i t a ç ã o da m o r t e . " ' E m 1683 papai Y v o n p u b l i c o u u m a des-

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c r i ç ã o das boas mortes que por sua placidez e a t é por sua alegria p o d i a m Deus, mas t a m b é m , c o m o dissera o p r ó p r i o Labadie, exemplos do "eu
servir de exemplo; tais passamentos e m geral eram de mulheres c o m o inocente": seres que n ã o se alteraram desde o m o m e n t o de sua c r i a ç ã o ,
L u i s a Huygens, pertencente à douta f a m d i a holandesa da qual faziam que permaneceram unidos a Deus, c u m p r i n d o a vontade d i v i n a . Se
parte Constantijn e Christiaan; Magdeleine Henry, de M e t z ; e Elisabeth apresentavam alguma m á c u l a , esta se devia ao uso que deles faziam os
Sluyter, da Vestfália, entre outras."" humanos pecadores.'"^
Nessa economia espiritual de amor e castigo alguns se sentiam re- Portanto, a l é m de realizar todas as tarefas que a comunidade lhe
novados e contentes — " C o m o é b o m estar entre os filhos de Deus" — , a t r i b u í a , M a r i a S i b y l l a procurava lagartas e mariposas nos brejos e
enquanto outros c o m e ç a v a m a ressentir-se da m o r t i f i c a ç ã o . N ã o era t ã o charnecas da F r í s i a ( u m terreno m u i t o diferente de Frankfurt e N u r e m -
fácil para a f a m í l i a cuja arca suntuosa e x i b i a versos entalhados e rece- berg) e estendia seu interesse aos sapos, que dissecou para verificar co-
bia uma d e m ã o de finta preta para que seus donos n ã o lhe dessem de- m o nasciam e eram gerados.'"" Pouco depois de chegar a Waltha inven-
masiado valor; n ã o era t ã o fácil para os a r t e s ã o s que se v i a m transferi- tou u m m é t o d o s i s t e m á t i c o para preservar e a p r i m o r a r as p r ó p r i a s
dos de uma f u n ç ã o a outra para que n ã o se orgulhassem demais de seu descobertas. T i n h a u m l i v r o de b o m papel e m branco, que encomen-
trabalho."" dara talvez à tipografia labadista, e, usando molduras de papel azul-
Quaisquer que sejam as c o n s e q u ê n c i a s do desenvolvimento es- cinzento, c o l o u a l i sua c o l e ç ã o de pequenas aquarelas c o m estudos de
piritual de M e r i a n , o campo do trabalho é o que podemos rastrear me- insetos e respectivas metamorfoses. N ã o se tratava de trabalhos finais,
lhor durante seu e s t á g i o entre os labadistas, ajudando-nos a compreen- c o m belas c o m p o s i ç õ e s de plantas e flores, mas de estudos situados a
der c o m o ela definiu e redefiniu seu eu religioso. Para alguns conversos meio c a m i n h o entre a instantaneidade do e s b o ç o e a p e r m a n ê n c i a de
regenerar-se significava renunciar à e r u d i ç ã o ou à arte do passado. Van suas aprimoradas aquarelas e gravuras. Diante de cada estudo de inse-
Schurman d e i x o u de lado seus estudos l i n g u í s t i c o s para concentrar-se to copiou suas o b s e r v a ç õ e s anteriores, acrescentando os dados novos
no aprendizado do cristianismo. Jan S w a m m e r d a m , que se encontrava que e v e n t u a l m e n t e tivesse descoberto. Q u a n t o à s o b s e r v a ç õ e s re-
na comunidade religiosa de Schleswig, s ó p u b l i c o u o l i v r o dele sobre a centes, realizadas na F r í s i a , f o i colando-as e registrando-as à medida
e f e m é r i d a depois de receber a p e r m i s s ã o de sua profetisa A n t o i n e t t e que as fazia.'"'
B o u r i g n o n ; planejando abandonar a pesquisa e n t o m o l ó g i c a , rasgou Parece que esse l i v r o constituiu n ã o s ó u m estudo da natureza co-
suas a n o t a ç õ e s sobre o bicho-da-seda e e n v i o u seus desenhos a m o u m e x e r c í c i o espiritual. Inicia-se c o m u m p r e f á c i o . " C o m Deus!",
M a l p i g h i . ' " L a b a d i e e Y v o n podem nunca ter aconselhado tal procedi- M e r i a n exclama, antes de expor o que descobrira sobre o b ó m b i c e e
m e n t o , mas avisaram do p e r i g o de c o r r o m p e r os olhos c o m " l i v r o s suas metamorfoses. N o final diz que c o m e ç o u "estas i n v e s t i g a ç õ e s em
curiosos e quadros"."' 1660, e m F r a n k f u r t , Deus seja l o u v a d o " , r e l a c i o n a seus v o l u m e s
Esse, p o r é m , é apenas u m lado da h i s t ó r i a . E m W i e u w e r d , Van ilustrados de 1679 e 1683, e assina " M a r i a Sibyla M e r i a n i n " . " ' É uma
Schurman c o n t i n u o u pintando e desenhando, tendo inclusive elabora- h i s t ó r i a de vida, u m Lehenslauf do tipo que u m convertido devia apre-
do pequenos retratos de Labadie e u m auto-retrato ( Y v o n d i z i a que se .sentar a uma seita para justificar sua admissão.'"" Possivelmente essa f o i
podia a d m i t i r tal g é n e r o , desde que as obras fossem despretensiosas e a maneira que M e r i a n encontrou para transformar seus estudos e m pro-
capazes de elevar a t é Deus o c o r a ç ã o do observador).'"Quando M a r i a priedade coletiva, em algo que pertenceria à f a m d i a labadista quando
Sibylla M e r i a n chegou a Waltha. o i r m ã o H e n d r i k van Deventer, m é d i - ela morresse.'"Mas f o i t a m b é m u m a f o r m a de a p r e s e n t a ç ã o pessoal,
co de p r o f i s s ã o , estava usando seu l a b o r a t ó r i o para classificar sais q u í - conquanto m u i t o diversa das c o n f i s s õ e s espirituais de A n n a M a r i a van
micos, inventar p í l u l a s contra febre e encontrar u m a n t í d o t o para ve- S c h u r m a n e M a r i e de F l n c a r n a t i o n . Se e.stas ú l f i m a s desfrutaram a
nenos vegetais. Seus proventos i a m para o fundo comum.""No caso de doce liberdade de expor o eu interior, M e r i a n preferiu a liberdade do se-
estudos da natureza M a r i a S i b y l l a p o d i a facilmente defender-lhes a gredo e da d i s c r i ç ã o . A s s i m c o m o n ã o deteve insetos e m pleno v ó o para
i m p o r t â n c i a religiosa. A s plantas e os insetos eram n ã o s ó criaturas de r e t r a t á - l o s por dentro, t a m b é m n ã o parou para revelar seu p r ó p r i o íntí-

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m o . A o descrever o exterior das criaturas de Deus, n ã o as i m p e d i u de desenvolver seu trabalho, permanecendo e m W i e u w e r d ? A dpografia
continuar se m o v i m e n t a n d o e se transformando. labadista destinava-se exclusivamente a obras de i n s t r u ç ã o religiosa e
C o m efeito, c i n c o ou seis anos depois ela m u d o u de o p i n i ã o a res- m o r a l . Usar fundos da comunidade para suas dispendiosas chapas de
peito dos labadistas e partiu para o m u n d o perverso de A m s t e r d a m . Sua cobre estava fora de c o g i t a ç ã o ; a l é m disso, Pierre Y v o n , que e m 1684
m ã e morrera e m 1690, deixando-a l i v r e para repensar seus projetos. publicara u m tratado contra os ornamentos mundanos e a pintura cara,
Talvez, c o m o Petrus Dittelbacb, M e r i a n se irritara c o m a hierarquia es- podia achar excessiva a beleza de suas flores e plantas. ""E o que dizer
p i r i t u a l de Waltha e .seus excessos de disciplina e controle. E b e m pode- do i n t e r c â m b i o c o m outros naturalistas? A p ó s a p u b l i c a ç ã o de seuRau-
ria estar preocupada c o m as filhas. Dorothea M a r i a completara doze pen, enquanto ela ainda se encontrava e m Frankfurt, colecionadores
anos e m 1690. Y v o n preconizara uma santa e d u c a ç ã o para as c r i a n ç a s passaram a enviar-lhe e s p é c i m e s . " " E m W a l t h a a c o r r e s p o n d ê n c i a c o m
de W i e u w e r d , o que significava na p r á t i c a r e p r e e n s õ e s por parte das o m u n d o exterior devia limitar-se a q u e s t õ e s de doutrina e à v i d a r e l i -
Tias e Tios e o medo constante de levar u m a surra. Johanna Helena f i - giosa do eleito.""
zera 22 anos e m 1690 e talvez j á tivesse i n i c i a d o seu relacionamento E m a l g u m m o m e n t o do v e r ã o de 1691 M a r i a S i b y l l a M e r i a n de-
c o m o i r m ã o Jacob H e n d r i k Herolt, c o m q u e m acabaria se casando e c i d i u d e i x a r a N o v a J e r u s a l é m c o m as duas filhas e suas p i n t u r a s ,
que t a m b é m c r i t i c a v a abertamente a m o r t i f i c a ç ã o excessiva. M a r i a gravuras e e s p é c i m e s . ""'Provavelmente Y v o n seguiu a p r á d c a i n s t i t u í -
S i b y l l a ensinara p i n t u r a à s filhas. M a s que t i p o de e d u c a ç ã o elas po- da no p r i n c í p i o para os eleitos que escolhiam voltar para o m u n d o : deve
d i a m receber e m Waltha, se Y v o n p r o i b i r a tantos " l i v r o s maus", i n s p i - ter d e v o l v i d o pelo menos parte do d i n h e i r o que ela entregara à c o m u -
rados pelo " e s p í r i t o do m u n d o " ? U m a coisa era t ê - l o s l i d o e deixado
nidade quando ah chegara. ( N o ano seguinte, na esteira de sua partida
para t r á s , c o m o fizeram Van Schurman e, e m certo sentido, a p r ó p r i a
e das r e v e l a ç õ e s sobre a comunidade pubhcadas por Dittelbach, H e n -
M a r i a S i b y l l a ; outra coisa era n ã o l ê - l o s nunca."'"
d r i k van Deventer reclamou o controle sobre as somas c o n s i d e r á v e i s
Para uma artista-naturalista que resistira a todos os sistemas clas- resultantes de suas atividades, e t o d o o sistema de bens comunais se
s i f i c a t ó r i o s a n í t i d a fronteira estabelecida entre os eleitos e o m u n d o desmantelou.)""Depois disso M e r i a n n ã o fez nenhuma d e c l a r a ç ã o so-
talvez tivesse c o m e ç a d o a perder o encanto. A l g u n s I r m ã o s e I r m ã s se bre os labadistas — nenhuma a v a l i a ç ã o , n e n h u m agradecimento, ne-
preocupavam m u i t o c o m essa d i f e r e n ç a : parecia-lhes que o p r ó p r i o ar nhuma d e n ú n c i a . C o m o sempre, guardou sua vida interior para si mes-
que r e s p i r a v a m se tornava denso e f é t i d o q u a n d o se afastavam de ma. C o n t u d o , é claro que os c i n c o anos de " r e t i r o " e m W i e u w e r d se
Waltha."" Somente visitantes especiais p o d i a m entrar na comunidade. revelaram u m a fase de c r i s á l i d a , u m a é p o c a de crescimento e apren-
Q u a n d o John L o c k e passou por a l i , e m 1685, todas as suas conver- dizado para u m a m u l h e r que n ã o se deixaria aprisionar. N ã o f o i a ma-
s a ç õ e s tiveram lugar n u m a pequena casa, situada do lado de fora do t u r a ç ã o conclusiva do "eu supernatural no h o m e m natural".
p o r t ã o . L o c k e f o i embora bastante azedo:

Conquanto acredite que | . . . | em geral são pessoas de vida honesta e


exemplar, o tom de voz, as maneiras e os trajes daquelas com quem con- N a ú l t i m a d é c a d a do s é c u l o x v n A m s t e r d a m era u m a florescente
versei fizeram-me suspeitar algo de Tartufo. Ademais, todo o seu discur- capital m e r c a n t i l , b a n c á r i a e i n d u s t r i a l ; c o m 200 m i l habitantes, era
so traz consigo a suposição de que possuem maior pureza que a gente co- m u i t o mais populosa que qualquer cidade da j u v e n t u d e de M a r i a S i b y l -
mum e dc que ninguém além deles se encontra no caminho do céu; não la M e r i a n , u m lugar onde u m a m u l h e r sozinha c o m sua capacidade,
estão isentos de certo tarisaísmo, [poisj tudo remetem imediatamente ao suas r e l a ç õ e s e suas filhas talentosas podia vencer na vida. ""Sua p r i -
Senhor, mesmo naquelas ocasiões em que se procuram m é t o d o s ra-
m o g é n i t a , Johanna Helena, l o g o se casou c o m Jacob H e n d r i k H e r o l t ,
cionais de procedimento, como se agissem sempre por revelação."''
que, d e i x a n d o para t r á s a e c o n o m i a c o m u n i t á r i a de seus tempos de
À parte sua i m p o r t â n c i a s i m b ó l i c a o u afetiva, tal fronteira teve labadista, m e r g u l h o u fundo no c o m é r c i o dos holandeses c o m as í n d i a s
c o n s e q i i ê n c i a s de ordem p r á t i c a na vida de M e r i a n . C o m o ela poderia Ocidentais e o Suriname."'"Maria S i b y l l a r e t o m o u as aulas e a pintura

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que a sustentaram e m N u r e m b e r g e Frankfurt; suas aquarelas c o m f l o - plantas e insetos que encomendara na c o l ó n i a da C o m p a n h i a r e c é m - e s -
res, insetos e aves encontraram compradores importantes, c o m o a c u l - tabelecida no cabo da B o a E s p e r a n ç a . Sobre sua c o l e ç ã o M e r i a n co-
ta e b e m casada A g n e s B l o c k . Johanna H e l e n a t a m b é m c o m e ç o u a mentou: " E x a m i n e i c o m a d m i r a ç ã o as diferentes e s p é c i e s de criaturas
vender suas pinturas florais — Agnes B l o c k a d q u i r i u uma e s p l ê n d i d a trazidas das í n d i a s Orientais e O c i d e n t a i s " . ' "
dedaleira — e f o i contratada por u m dos aquarelistas que trabalhavam N o entanto, c o m o disse mais tarde no p r e f á c i o de sua Metamor-
no J a r d i m B o t â n i c o de A m s t e r d a m . " " E m 1697 o e s c â n d a l o que en- phosis, faltava a todas essas c o l e ç õ e s algo m u i t o importante: as origens
volvera M a r i a S i b y l l a e m N u r e m b e r g arrefecera o bastante para que a e subsequentes t r a n s f o r m a ç õ e s dos insetos. Os belos exemplares es-
f a m í l i a I m h o f f a contatasse a p ó s anos de s i l ê n c i o , e ela respondeu tavam e s t á t i c o s e isolados do contexto, e n ã o passavam por n e n h u m
calorosamente. E m 1698 podia orgulhar-se de uma casa b e m m o b i l i a - processo. Sua c o l e ç ã o de "plantas e insetos das í n d i a s Orientais e O c i -
da na Kerkstraat e contar c o m a amizade e a ajuda do p i n t o r M i c h i e l van dentais", reunida c o m a ajuda da filha e do genro, o comerciante H e r o l t ,
Musscher, que morava a alguns canais de d i s t â n c i a . " ' aparentemente t a m b é m d e i x a v a m u i t o a desejar. A d e m a i s , essas
Parece que sua ú n i c a dificuldade consistiu e m expor ao m u n d o de- c o l e ç õ e s pouca i n f l u ê n c i a finham sobre os livros de e n t o m o l o g i a con-
c a í d o a c o n d i ç ã o dela de m u l h e r d i v o r c i a d a e m c i r c u n s t â n c i a s i n c o - t e m p o r â n e o s : e m seu Rupsen, de 1688, Stephen Blankaart apresentou
m u n s ; no testamento e outros d o c u m e n t o s de 1699 d e n o m i n o u - s e precisamente u m a borboleta do N o v o M u n d o , u m exemplar o r i u n d o do
" M a r i a S i b y l l a M e r i a n , a v i ú v a de Johann Andreas G r a a f ' , emboraes.se Suriname e retratado sem t r a n s f o r m a i ç õ e s . " A s s i m , d e c i d i fazer uma
cavalheiro estivesse v i v o e casado e m N u r e m b e r g . " ' longa e dispendiosa v i a g e m ao Suriname", declarou M e r i a n . " *
Paralelamente os volumes do Raupen ganhavam as bibliotecas Foi u m a v i a g e m e x t r a o r d i n á r i a para os p a d r õ e s da é p o c a . A s se-
c i e n t í f i c a s da Inglaterra e sua obra e n t o m o l ó g i c a progredia, enquanto nhoras r e s p e i t á v e i s viajavam para as c o l ó n i a s holandesas na c o n d i ç ã o
ela criava lagartas e estendia suas o b s e r v a ç õ e s à s formigas e a outras es- de esposas e dependentes de l a t i f u n d i á r i o s e administradores, ou e n t ã o
p é c i e s , sendo b e m recebida pelos naturalistas e c o l e c i o n a d o r e s de em grupos contratados pela C o m p a n h i a das í n d i a s Orientais. A s m u -
A m s t e r d a m . " ' S e as d i s s e c a ç õ e s e aulas de a n a t o m i a do professor lheres que conseguiam embarcar sozinhas, c o m a e s p e r a n ç a de se casar
Frederick Ruysch e outros doutores e m medicina estavam a l é m de seu c o m u m p r ó s p e r o fazendeiro no cabo da B o a E s p e r a n ç a ou de montar
alcance, o r e c é m - f u n d a d o Jardim B o t â n i c o achava-se aberto a m u l h e - u m café para marujos na B a t á v i a , eram vistas c o m o criaturas desclas-
res e homens ( u m a i m a g e m i d e a l i z a d a das palestras a l i realizadas sificadas, " u m a s ú c i a de prostitutas e ladras que d e i x a v a m a p r i s ã o e
mostra duas mulheres no meio da m u l t i d ã o , talvez M e r i a n e B l o c k ) . embarcavam clandestinamente ou vestidas de h o m e m " , segundo u m
C o m Agnes, M a r i a S i b y l l a p ô d e admirar o e x ó t i c o abacaxi que ela c o n - o b s e r v a d o r . " " E m b o r a estivessem sob a p r o t e ç ã o d o c o m a n d a n t e ,
seguira c u l t i v a r e d i s c u t i r sua longa c o r r e s p o n d ê n c i a c o m u m d o u t o M a r i a S i b y l l a M e r i a n , de 52 anos, e sua filha Dorothea, de 2 1 , consti-
b o t â n i c o de B o l o n h a . " ^ C o m Caspar C o m m e l i n , d i r e t o r do J a r d i m , t u í a m u m a a n o m a l i a , v i a j a n d o à conta de n e g ó c i o s estranhos e sem
p ô d e conhecer plantas das A m é r i c a s , da Á f r i c a e do P a c í f i c o , cujas se- companhia mascuhna.
mentes ou e s p é c i m e s f o r a m trazidos por comerciantes holandeses e C o m o projeto de uma artista-cientista a v i a g e m t a m b é m era i n c o -
f u n c i o n á r i o s da Companhia das í n d i a s O r i e n t a i s . ' " m u m . A flora e a fauna das A m é r i c a s f o r a m descritas j á no s é c u l o x v i
M e r i a n v i s i t o u o museu de "raridades" a n a t ó m i c a s e de outros por figuras c o m o Gonzalo Fernandez de O v i e d o , h o m e m de interesses
tipos adquiridas por Frederick Ruysch, cuja filha Rachel era sua aluna e n c i c l o p é d i c o s que durante duas d é c a d a s serviu ao soberano espanhol
mais talentosa; v i u as prateleiras de insetos "estrangeiros" e outras c o m o supervisor de minas e m H i s p a n i o l a e depois c o m o governador de
"maravilhas da natureza" no gabinete de curiosidades de L e v i n u s V i n - Cartagenae Santo D o m i n g o . " " O mesmo procedimento prosseguiu no
cent. " " E conheceu o c o l e c i o n a d o r mais d i n â m i c o de todos: o bur- s é c u l o x v i i . N a é p o c a de M a r i a S i b y l l a , por exemplo, o n o t á v e l Georg
gomestre Nicolas Witsen, presidente da C o m p a n h i a das í n d i a s O r i e n - Everard R u m p f ( R u m p h i u s ) c o l e c i o n o u e desenhou plantas, conchas e
tais. N a d é c a d a de 1690 ele estava saboreando os desenhos coloridos de c r u s t á c e o s ao l o n g o dos cinquenta anos e m que atuou c o m o comer-

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c i a n t e - a d m i n i s t r a d o r da C o m p a n h i a das í n d i a s O r i e n t a i s na i l h a de mitou-se a conceder u m e m p r é s t i m o . N o p r e f á c i o de sua Metamorpho-
A m b o i n a , nas M o l u c a s . " ' sis ela assinalou a beleza da c o l e ç ã o de W i t s e n , comentou os custos de
N a d é c a d a de 1630, contudo, poucos naturalistas se aventuravam sua v i a g e m e da p u b l i c a ç ã o do l i v r o , e n ã o agradeceu a n i n g u é m . ' " '
em plagas distantes s ó para observar: os m é d i c o s W i l l e m Piso e Georg A o menos estava l i v r e para t o m a r as p r ó p r i a s d e c i s õ e s . E m
M a r c g r a f acompanharam o p r í n c i p e Johan M a u r i t s de Nassau-Siegen fevereiro de 1699 pediu a u m agente que vendesse uma grande q u a n t i -
em sua e x p e d i ç ã o ao Brasil e e m 1648 e 1658 p u b l i c a r a m e m A m s t e r - dade de suas pinturas de frutas, plantas e insetos, b e m c o m o numerosos
dam as descobertas que realizaram. Mas Piso e M a r c g r a f n ã o d v e r a m exemplares adquiridos na A l e m a n h a , na F r í s i a e na H o l a n d a e enviados
de o r g a n i z a r e f i n a n c i a r sua v i a g e m ; i n t e g r a v a m o s é q u i t o de u m das í n d i a s . Esperava c o b r i r os gastos t a m b é m c o i n a venda de es-
p r í n c i p e , de u m h o m e m encarregado de governar uma r e g i ã o que na p é c i m e s raros que levaria do Suriname ao voltar para a Europa. E m
é p o c a fazia parte do I m p é r i o h o l a n d ê s . E e m 1648 a Historia naturalis a b r i l de 1699, p o u c o antes de " p a r d r para a c o l ó n i a de Z u r i n a m e " ,
brasiliae ( H i s t ó r i a natural do Brasil) f o i publicada "sob os a u s p í c i o s e elaborou seu testamento, nomeando co-herdeiras as filhas Johanna He-
c o m o favor do ilustre Johan M a u r i t s " . ' " D a mesma f o r m a o francis- lena G r a f f e Dorothea M a r i a Graff; insfituiu c o m o seus representantes
cano Charles Plumier, observador apaixonado de plantas nos A l p e s e o genro, H e r o l t , e o a m i g o M i c h i e l Musscher, encarregando-os de
na P r o v e n ç a , agarrou c o m as duas m ã o s a oportunidade de i r ao Caribe prosseguir c o m a venda dos bens. E m j u n h o e m b a r c o u c o m D o r o -
"pesquisar todas as coisas raras e curiosas que a natureza ali p r o d u z i u " . thea.'"
Plumier compunha uma equipe enviada por u m antigo intendente real A s m u d a n ç a s ocorridas na vida dela a h a v i a m preparado para es-
das c o l ó n i a s francesas de M a r t i n i c a e S a i n t - D o m i n g u e . A o l a n ç a r sua sa aventura. Os homens de sua f a m d i a n ã o percorreram a Europa por
Description des plantes de VAmérique, e m 1693, agradeceu aos se- causa da arte? Seu p a i , M a t h i a s M e r i a n , n ã o p u b l i c a r a as ú l t i m a s
c r e t á r i o s de Estado que se encarregaram de financiar sua v i a g e m e a grandes e d i ç õ e s de Grands Voyages, a c é l e b r e s é r i e de gravuras sobre
p u b l i c a ç ã o de seu l i v r o c o m d i n h e i r o d o Tesouro R e a l . ' " Q u a n d o o o N o v o M u n d o ? E m N u r e m b e r g ela certamente conversou sobre terras
j o v e m i n g l ê s Hans Sloane pardu e m 1687 para passar dois anos obser- distantes c o m o a m i g o Christopher A r n o l d , que publicara d e s c r i ç õ e s
vando plantas, animais e pessoas na J a m a i c a — " u m dos maiores e mais das " r e l i g i õ e s p a g ã s " do Caribe, da Guiana e do B r a s i l , editara e i l u s -
c o n s i d e r á v e i s d o m í n i o s de Sua M a j e s t a d e na A m é r i c a " — , f o i na trara narrativas de viagens ao P a c í f i c o e homenageara a literatura de
c o n d i ç ã o de m é d i c o do novo governador da ilha, o duque de A l b e m a r - viagem c o m poemas semelhantes aos que dedicou a suas lagartas.'"*
le, e mediante u m s a l á r i o substancial, a l é m de u m p o l p u d o adianta- A p r ó p r i a M a r i a S i b y l l a n ã o realizara sua jornada espiritual e físi-
mento para a d q u i r i r seu material de t r a b a l h o . ' " ca da A l e m a n h a à F r í s i a ? A l i , entre os labadistas, o u v i r a falar m u i t o do
M a r i a S i b y l l a M e r i a n n ã o contava c o m nenhuma dessas regalias. Suriname — embora e m relatos bastante variados, c o n v é m dizer. Nos
Certamente a e x i s t ê n c i a de uma c o l ó n i a holandesa no Suriname cons- anos que antecederam sua chegada a W i e u w e r d os I r m ã o s e I r m ã s en-
tituía u m requisito b á s i c o para sua pesquisa, assim c o m o a e x i s t ê n c i a v i a r a m dois grupos de devotos para a A m é r i c a . " " S e u objefivo b á s i c o
de u m a c o l ó n i a francesa em Quebec c o n s t i t u í r a u m requisito b á s i c o consistia e m converter os povos americanos; antes de morrer, e m 1680,
para a m i s s ã o a p o s t ó l i c a de M a r i e de I T n c a r n a d o n . Todavia, M e r i a n Louise Huygens rezou "ao Senhor Jesus pela c o n v e r s ã o dos pobres í n -
n ã o dnha l i g a ç ã o formal c o m membros do governo n e m de i n s d t u i ç õ e s dios", p o r é m seus rogos n ã o receberam a devida a t e n ç ã o . " " Q u a n d o a
religiosas que lhe abrissem c a m i n h o . Por mais que Caspar C o m m e l i n p o p u l a ç ã o de W a l t h a se tornou m u i t o numerosa, a santa comunidade
e outros naturalistas de A m s t e r d a m quisessem observar in loco as p l a n - decidiu que alguns de seus m e m b r o s d e v i a m realizar "a obra do Se-
tas e insetos do Suriname, provavelmente se perguntaram se u m a m u - n h o r " alhures. U m grupo a d q u i r i u terras e m M a r y l a n d , apesar de os
lher cinqiientona e sua t i l h a solteira conseguiriam realizar tal proeza na labadistas a b o m i n a r e m o c u l t i v o do " v i l t a b a c o " , " ' e o u t r o r e f ú g i o
selva. O burgomestre Nicolas W i t s e n financiou as pesquisas de C o r - surgiu e m 1683, quando Cornehs van S o m m e l s d i j k a d q u i r i u e m co-
nehs de B r u y n no Egito, na P é r s i a e na í n d i a , ' " m a s a M a r i a S i b y l l a l i - propriedade u m t e r ç o do Suriname e se t o r n o u seu governador. N o s

158 159
dois anos seguintes mais de c|uarenta labadistas chegaram à c o l ó n i a , e
o governador lhes concedeu terras e m nome de suas i r m ã s Sommels-
dijk. Tais terras sc localizavam r i o acima, n u m ponto onde nenhum eu-
ropeu ainda se estabelecera. Os labadistas as c h a m a r a m de c o l ó n i a
P r o v i d ê n c i a , lugar ideal para a r e u n i ã o de verdadeiros c r i s t ã o s .
L o g o descobriram t|ue a vida na selva equivalia a u m s a c r i f í c i o
maior do que pt)diam suportar c. quando M a r i a S i b y l l a M e r i a n se ins-
talou e m W i e u w e r d , passaram a escrever à comunidade reclamando de
cobras, m o s q u i t o s , f o n n i g a s , d o e n ç a , m o r t e e d i s s e n s ã o entre os
eleitos. Os selvagens (assim chamavam os a m e r í n d i o s , comparando-os
ao tapir) eram hosds e falavam uma l í n g u a t ã o "bestial" quanto sua con-
duta. Os escravos, que os labadistas h a v i a m c o m p r a d o e m grande
n ú m e r o , recusavam-se a trabalhar quando os santos de W i e u w e r d eram
bons para eles; assim, seus senhores t i v e r a m de recorrer ao espanca-
mento, c o m o outros fazendeiros degenerados. O calor era t ã o intenso
que os p r ó p r i o s labadistas m a l conseguiam trabalhar. Renunciando a
uma santa morte, a i r m ã S w e m , cozinheira da c o l ó n i a P r o v i d ê n c i a , de-
n u n c i o u as mentiras dos l í d e r e s e manteve sua palavra a t é o m o m e n t o
em que se v i u perto de seu Criador.
E m fins de 1686 os colonos c o m e ç a r a m a voltar para W i e u w e r d
c o m suas h i s t ó r i a s amargas, sendo d u r a m e n t e reprochados p o r sua
fraqueza. Poucos anos depois n ã o h a v i a m a i s d ú v i d a de que o e m -
preendimento falhara. E m 1688 o governador Van S o m m e l s d i j k e seu
comandante m i l i t a r f o r a m assassinados pelos p r ó p r i o s soldados holan-
deses, que se revoltaram contra o trabalho duro que d e v i a m realizar nas
f o r t i f i c a ç ó e s e nos canais de P a r a m a r i b o — " c o m o se fossem escravos"
— e t a m b é m contra a a l i m e n t a ç ã o inadequada ( S o m m e l s d i j k n ã o era
labadista, mas esperava de seus homens absoluta d i s c i p l i n a ) . ' N o f i m
suas i r m ã s L ú c i a e M a r i a retornaram a Waltha. Poucos I r m ã o s e I r m ã s
permaneceram no Suriname a t é a d é c a d a de 1690, p o r é m a c o l ó n i a
P r o v i d ê n c i a se tornou essencialmente uma propriedade de aluguel dos
labadistas de W i e u w e r d . ' " ( É importante destacar isso, pois estudos an-
teriores afirmararn que a comunidade labadista do Suriname c o n d n u o u
ativa e constituiu u m dos fatores determinantes da v i a g e m realizada por
M e r i a n e m 1699.) E m 1694 a r e l a ç ã o fiscal do Suriname apontou que
o " C o l l e g i e der Labadisten" abrigava 55 "escravos vermelhos e pretos"
e n e n h u m residente " b r a n c o " (o que s i g n i f i c a que os p o s s í v e i s
moradores brancos tinhain acabado de chegar); e m 1697 havia a l i sete

160
t r „ „ m AUr,
Tal. O

A eiUoinologia mais antiga: Do ovo à mariposa numa


lagartas na Hisloiia naturalis Í/C cerejeira europeia:
Jan Jonston. pniilicada pelos Merian. Der Raupen (1679),
meios-irmãos de Merian em 1653 ilustração 23

1i KHJV U K D O

Lagarta, pupa e borboleta Melaminfoses numa urtiga:


na nova entomologia de Jan Merian, Der Raupen (1679),
Swammerdam (1669) ilustração 26
iiiirfr"

I
INSETOS E PLANTAS DO SURINAME

Mapa do Swinaiuc publicado em 17 IS, porém feito por A, Maars com ba. Metamorfoses de lagarta e mariposa numa árvore do Suriname; Merian,
em informações anteriores Metamorphosis, ilustração 11
Mariposa, cobra
e pão de mandioca
num pé de mandioca:
Merian, Metamorphosis,
ilustração 5
Esteiras de vespas dos waiyana, do Suriname,
Dirk Valkenhurg, africanos dançando winti no Suriname (c. J707)
utilizadas nos ritos iniciatórios de adolescentes
brancos e 61 escravos. E m 1699-1702 o nome labadista desapareceu da
relação.'"
O r e s í d u o dessa e x p e r i ê n c i a deve ter sido c o m p l e x o para M a r i a
S i b y l l a . Por u m lado, u m sonho de p r o v a ç ã o h e r ó i c a n u m c l i m a
perigoso e o atrativo de u m m u n d o de insetos desconhecido e e x ó t i c o .
( O governador Van S o m m e l s d j i k enviara para os labadistas de W i e u -
w e r d u m a longa serpente empalhada pelos í n d i o s do Suriname; é pos-
sível que tenha remetido t a m b é m algumas borboletas.) Por outro lado,
uma c o n s c i ê n c i a de que a aventura religiosa na selva fracassara. M e -
rian partiu para o N o v o M u n d o levada n ã o tanto pelo fervor religioso
quanto pela necessidade de r e d e f i n i r mais concretamente suas aspi-
r a ç õ e s . N a carta que enviou a N u r e m b e r g e m 1697, b e m c o m o no tes-
tamento que elaborou e m 1699, n ã o h á i n d í c i o s de que seu entusiasmo
labadista tenha persistido; e no prefacio da Metamorphosis os anos pas-
sados na F r í s i a figuram c o m o u m a simples v i a g e m de pesquisa. C o n -
tudo o fato de renunciar mais u m a vez a seus bens e atravessar o oceano
c o m a fdha criada e m W i e u w e r d nos lembra menos a curiosidade inte-
lectual dos naturalistas de A m s t e r d a m que a m o b i l i d a d e experimental
de Jean de Labadie e A n n a M a r i a van S c h u r m a n . ' * M e r i a n nunca pro-
d u z i r i a a Metamorphosis se permanecesse entre os eleitos, mas t a m -
b é m nunca i r i a ao Suriname se n ã o tivesse u m dia ousado ser labadista.

N o final do v e r ã o de 1699 M a r i a S i b y l l a e Dorothea desembar-


caram numa terra habitada por a m e r í n d i o s , dos quais os europeus co-
nheciam sobretudo os arauaques e os que falavam l í n g u a s c a r a í b a s ; cer-
ca de 8 m i l africanos, a m a i o r i a p r o v e n i e n t e da costa o c i d e n t a l da
Á f r i c a , entre G u i n é e A n g o l a ; uns seiscentos holandeses protestantes,
e m geral o r i g i n á r i o s das p r o v í n c i a s de H o l a n d a e Z e l â n d i a ; cerca de
trezentos judeus portugueses e alguns judeus a l e m ã e s ; n ú m e r o s cres-
centes de refugiados huguenotes que procuravam uma v i d a nova a p ó s
a r e v o g a ç ã o do É d i t o de Nantes; u m punhado de f a m í U a s inglesas que
se a r r i s c a r a m a permanecer a l i depois que a c o l ó n i a passou para o
d o m í n i o h o l a n d ê s , e m 1667; e a t é u m j o v e m de Frankfurt a m M a i n . ' "
A p r o p r i e t á r i a e administradora da c o l ó n i a era a Sociedade do S u r i -
name, c o m cotas divididas igualmente entre a C o m p a n h i a das í n d i a s
O c i d e n t a i s , a cidade de A m s t e r d a m e os herdeiros de C o r n e l i s van
S o m m e l s d i j k . N o forte Z e l â n d i a e na v i z i n h a Paramaribo, a poucos

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q u i l ó m e t r o s da embocadura do r i o Suriname, o governador escrevia a ç ú c a r c o m apenas 41 escravos.'^'NOS canaviais holandeses, europeus
longas cartas aos b o n o r á v e i s diretores que se encontravam e m A m s t e r - e africanos conversavam entre si n u m dialeto c r i o u l o r e c é m - f o r m a d o
dam, informando-os sobre as dificuldades de manter a o r d e m enquan- com base no i n g l ê s e d e n o m i n a d o Neger-Engels pelos c o n t e m p o r â -
to os a m e r í n d i o s a m e a ç a v a m violar os tratados de paz e revoltar-se e os neos; nas p l a n t a ç õ e s pertencentes a judeus o c r i o u l o baseava-se no por-
franceses de Caiena se m o s t r a v a m dispostos a i n v a d i r o t e r r i t ó r i o lugiies.
h o l a n d ê s . T a m b é m lhes enviava c ó p i a s das p r o c l a m a ç õ e s de seu con- Em 1676 u m p a n f l e t o e m h o l a n d ê s sobre a l u c r a t i v i d a d e de
selho que p r o i b i a m , por exemplo, qualquer c o m é r c i o ou j o g o entre pes- r e g i õ e s quentes c o m o a Guiana citara a B í b l i a para justificar a escravi-
soas brancas e "escravos vermelhos e pretos", b e m c o m o batuque ou z a ç ã o de p a g ã o s , p o r é m recomendara aos p r o p r i e t á r i o s que tratassem
d a n ç a de escravos aos domingos sem a u t o r i z a ç ã o expressa."* T r ê s pas- os 1'scravos m i s e r i c o r d i o s a m e n t e . ' ^ * À s vezes se ignorava tal recomen-
tores tentavam orientar os protestantes europeus no c u m p r i m e n t o de d a ç ã o no S u r i n a m e , onde se d e s e n v o l v i a m m é t o d o s engenhosos de
seus deveres c r i s t ã o s nas pequenas igrejas de Paramaribo e alhures, en- pnmi "cativos vermelhos e pretos". Nas cartas que enviaram durante os
quanto os judeus portugueses e a l e m ã e s , apesar dos rituais disdntos, anos de 1680 os labadistas descreveram o " a ç o i t e espanhol": qualquer
partilhavam u m a sinagoga de t i j o l o erguida entre suas p l a n t a ç õ e s na sa- esciavo ipic tentasse fugir era amarrado n u m aro o u n u m p e d a ç o de
vana Joden, n u m a curva do r i o Suriname.'™ madeira, e m p o s i ç ã o fetal, e a ç o i t a d o . Se fosse capturado a p ó s algumas

O a ç ú c a r era e n t ã o o ú n i c o p r o d u t o de e x p o r t a ç ã o da c o l ó n i a e sua semanas, removiam-lhe o t e n d ã o de A q u i l e s — segundo i n f o r m a J. D .

o b s e s s ã o . " R i e m de m i m porque p r o c u r o outra coisa que n ã o a ç ú c a r " , I Icí lein. (|uc visitou o Suriname na mesma é p o c a que M a r i a S i b y l l a .

disse M a r i a S i b y l l a M e r i a n . E , de fato, os canavieiros se gabavam de I Ima nova escapada podia c u s l a r - l h e a a m p u t a ç ã o da perna d i r e i t a ( " E u

que " n e n h u m solo do m u n d o é t ã o rico e adequado ao c u l t i v o da cana- mesmo p i c s c i u i c i tal l a n n ç ã o " . d i z Herlein). Nocasodeofensasmenos

d e - a ç ú c a r c o m o o S u r i n a m e " . ' * À s margens do Suriname, do Cottica, jji aves o esci avo era pcndni ado pelas m ã o s numa á r v o r e , c o m u m peso

do C o m m e w i j n e e seus afluentes estendiam-se quase duzentas p r o - nos p é s , e a ç o i t a d o pi n n c i i o por seu p r o | i r i e t á r i o e depois por outros es-

priedades c o m canaviais, casas da moenda (onde se e x t r a í a o suco da ertivoN,"

cana) e casas da fornalha. D e m a r ç o a outubro barris cheios de a ç ú c a r Al^fiiiis. e i i l i f l i m i o , l o i í s e g i i i a m fugir e mesmo no i n í c i o , sob o
mascavado p a r t i a m de Paramaribo r u m o à s refinarias de A m s t e r d a m . " iin'li"it's, rmidaiam vilas independentes à s margens do
N a volta os navios traziam peixe defumado e outros alimentos, pois os H alliieiiles Mai la Sibylla M c i ian talvez lenha o u v i -
canavieiros q u e r i a m dedicar-se t ã o - s o m e n t e a seu doce p r o d u t o . N a • l i i lilliM dt< dlliis impoilaiiles liigas em grupo (|iie ocoí i v i a m na d é c a d a
é p o c a de cobrar i m p o s t o s os m e m b r o s e agregados de cada f a m í l i a m l . i i o i a sua c l i e u m l i i : uma e m I b õ O , na p i o p i icdatic ilc I m a n u ê l
eram avaliados e m a ç ú c a r : 22 q u i l o s para cada pessoa c o m mais de >l !• liado, p e i t o da savana .lodeii, i - a o i i l i a c m 169.^, na c o l ó n i a
doze anos, fosse branca, preta o u v e r m e l h a ; onze q u i l o s para cada l'rtivld(^Mcla, a moiiliinie do rio. "Negros labatlissas | . . . | da c o l ó n i a de
criança."" I a 1'invldeiU'e" assim o governo ilo Sui inanie se referiu oitenta anos

O t r a b a l h o pesado ficava p o r c o n t a dos escravos, a m a i o r i a depom lios tiesceiuleiíles do segundo grupo. N o s é c u l o x x tais descen-

africanos trazidos pela C o m p a n h i a das í n d i a s Ocidentais, leiloados e m deiiles, os abaisas, contaram a h i s t ó r i a de outra f o r m a : " N o cativeiro

Paramaribo e marcados por seus p r o p r i e t á r i o s ; entre eles havia t a m b é m mal havia o que m m c i . l o i no lugar chamado c o l ó n i a P r o v i d ê n c i a .

u m pequeno n ú m e r o de a m e r í n d i o s . A propriedade de Samuel Nassy, a A ç o l ( a \m a f c i i l c ate i|ikMmaro traseiro. Depois davam u m bocado de

breve d i s t â n c i a da c o l ó n i a P r o v i d ê n c i a , r i o a b a i x o , tinha cerca de III IO/ p i i i o m i n i i u a b a ç a . ( l o i o t|ue o u v i m o s dizer.) E os deuses falaram

trezentos escravos em 1699-1700, de l o n g e o m a i o r c o n t i n g e n t e da lnurn nilo era j c i t o dc u m ser h u m a n o viver. Eles a j u d a r i a m [os

é p o c a numa ú n i c a fazenda da c o l ó n i a ; a propriedade de A b r a h a m van i l l l l c i i i i o s j (.)iii' cada um fosse jiara onde pudesse. E assim fugiram".'^^

Vredenburg, que M a r i a S i b y l l a visitaria, tinha 89; Esther Gabay, cujo (^iiaiilo aos "escravos vermelhos", alguns escapavam c o m os ne-

nome figurava c o m f r e q u ê n c i a na lista de exportadores, produzia seu gl US e me se casavam c o m eles. A m a i o r i a de seus compatriotas v i v i a nas

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aldeias c a r a í b a s e arauaques situadas ao longo dos rios Saramacca e M a - nha de continuar v i a g e m , observava a metamorfose de c r i s á l i d a s e ca-
r o n i , bem c o m o e m á r e a s ainda inexploradas pelos europeus no litoral e sulos durante o trajeto. N o c a m i n h o de v o l t a o grupo provavelmente
à s margens do Suriname e de outros rios. Os homens c a ç a v a m , pesca- pai o u numa das fazendas de Samuel Nassy, que dera u m a a r á c e a a Cas-
vam, c o n s t r u í a m canoas e c o m b a t i a m os i n i m i g o s ; as mulheres plan- par ( o m m c l i n . Talvez insistisse c o m ele para criar u m j a r d i m b o t â n i c o
tavam mandioca, inhame e outras r a í z e s (e devem ter ensinado tais c u l - no Suriname; a C o m p a n h i a das í n d i a s Orientais rinha um no cabo da
tivos aos europeus, que os adotaram) e faziam vasos, cestas e redes. A s Hoa E s p e r a n ç a , c o m plantas medicinais, .segundo lhe i n f o r m a r a N i c o -
r e l a ç õ e s c o m os colonos à s vezes eram hostis (os a m e r í n d i o s lembravam las Wilscn. Por que a Sociedade do Suriname t a m b é m n ã o podia ter u m
que S o m m e l s d i j k queimara c i n c o de suas aldeias, enquanto os holan- j a r d i m l x ) l â n i c o e m Paramaribo, ao lado do d i s p e n s á r i o ? ' " E m j u n h o de
deses falavam de ataques repentinos e flechas envenenadas), p o r é m em 17()(). na propriedade de A b r a h a m van Vredenburg, comandante m i l i -
geral os dois grupos comerciavam e m paz, os i n d í g e n a s trocando aves, lai da c o l ó n i a , ela estudou especialmente as lagartas alimentando-se
plantas, r a í z e s , canoas, redes e cativos pelos tecidos, armas de fogo, fa- com tolhas de mandioca. Talvez tenha aproveitado a o c a s i ã o para d i -
cas, tesouras e pentes dos europeus. " ' O s c a r a í b a s , arauaques e africanos /.cr-llie o quanto desaprovava a m o n o c u l t u r a a ç u c a r e i r a da c o l ó n i a . ' "
conheciam m u i t o b e m o m u n d o que M e r i a n queria descobrir. Viajaiulo ou em Paramaribo, conversava sobre insetos e uso das
M a r i a S i b y l l a instalou-se c o m Dorothea numa casa de Paramari- plaiilas c o m seus tiabalhatlores e outros a m e r í n d i o s e africanos. O s c o -
bo, onde, e m o u t u b r o de 1699, no auge da e s t a ç ã o seca, p i n t o u e re- iiienlái ios a respeito dela se d i f u n d i a m , e, j á que nas comunidades na-
g i s t r o u suas p r i m e i r a s metamorfoses.""Tinha algumas r e l a ç õ e s que dvas da A f r i c a e ilas A m é r i c a s as mulheres e m geral atuavam c o m o
p o d i a m a j u d á - l a , i n c l u i n d o algumas f a m í l i a s da elite: os herdeiros do ciiiaiidciias, valendo-se de ervas e magias, para os "vermelhos e pre-
falecido governador S o m m e l s d i j k ( c o m os quais v i v i a sua concubina los" ela possivelmente era menos louca do que os colonos achavam.
Caraíba, f i l h a de u m cacique " t o m a d a e m casamento" n u m gesto de "I Ima negra escrava" (ccii swaite SIavinne) levou-lhe uma larva, pro-
paz),"''e os herdeiros do comandante m i l i t a r Laurens V e r b o o m , t a m - m e l e i í d o lhe uma bela m e t a m o r f o s e ; " í n d i o s " d e r a m - l h e u m a i n -
b é m falecido, cuja filha mais tarde viajaria c o m M e r i a n para A m s t e r - lliildadedi' l i i l g i i i o s , cuja luz intensa e m ú s i c a de "realejo" {Lierinan)
d a m . M a r i a S i b y l l a c o m p r o u ou g a n h o u alguns escravos ( " m y n e eiuitnlaiaiii Mana Sibylla e Dorothea. Mais que na F r í s i a seu o l h a r i a
Slaven", escreveu), entre os quais u m í n d i o e uma í n d i a . ''"Citou-os c o m iiiiilloali'iii(loH l e p i d t i p í c i o s e abrangia aranhas, p á s s a r o s , lagartos, co-
f r e q u ê n c i a , indicando que n ã o falavam nenhuma l í n g u a incompreen- lihi'< t' >iapMN, beiíH oiiio o iiileiioi das conchas lecolhiilas no fundo do

sível e "bestial". Comunicavam-se possivelmente no d i a l e t o c r i o u l o AllnillíHt"|MM lllllfNeiHVO" (<(/>,Ví-Mí»),'"


Neger-Engels, que m ã e e fdha aprenderam c o m o f i z e r a m anos antes Ali'iii da iidiiidilvel i iiiiosidade havia a tarefa da r e p r e s e n t a ç ã o .
c o m o h o l a n d ê s , na F r í s i a . Melian piimciiiimeiile e s b o ç a v a as figuras ao v i v o e depois, c o m a
I ( | I M I I I lia Milia, piíilava sobre pergaminho as lagartas e cri.sálidas c o m o s
M e r i a n m e r g u l h o u na tarefa de descobrir, criar e registrar, vendo
HoilwellvtiH aliiiieiilos. O z u m b i d o dos in.setos era incessante;
mais u t i l i d a d e nos africanos e a m e r í n d i o s que nos a g r i c u l t o r e s eu-
ropeus. Seu trabalho de o b s e r v a ç ã o tinha lugar e m seu p r ó p r i o j a r d i m (^IIIIIMIIICII piMliivii, I vespas I voavam diante de meus olhos e zumbiam ao
e t a m b é m na floresta repleta de p á s s a r o s , "enviando meus escravos na lediii de iMiiiliii cabeça. Perto de minha caixa de pintura construíram um
frente, machado e m punho, para a b r i r e m c a m i n h o " . A o encontrar uma iilalimie hai I O , icdoiulo como se o tivesse fabricado a roda de um oleiro;
planta desconhecida, t ã o delicada que as folhas cortadas m u r c h a r a m ei|tuia SC sdhiv uma pci|uena base que elas cobriram de barro a tim de
proli"nei (I mici ioi |... | Para entrar e sair fizeram um pequeno orifício.
c o m o calor, fez "meu í n d i o " a r r a n c á - l a pela raiz e r e p l a n t á - l a e m seu
Diaiiiiinentc cu as via entrar ali com pequenas lagartas, que sem dúvida
j a r d i m , para poder e s t u d á - l a . " ' C o m D o r o t h e a e seus africanos e
Nfi vinm dc alimento a elas e aos filhotes, como ocorre entre as formigas.
a m e r í n d i o s visitou propriedades ao l o n g o do Suriname e m busca de no-
l ' o i líiii. (|iiaiido sua companhia se tornou incómoda demais, eu as ex-
vas lagartas, c o m e ç a n d o na e s t a ç ã o chuvosa de abril de 1700, quando pulsei, qiicbrando-lhes o ninho, o que me permitiu ver tudo o que haviam
viajou sessenta q u i l ó m e t r o s rio acima a t é a c o l ó n i a P r o v i d ê n c i a . Se tí- Icho.'"

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A o mesmo tempo rotulava ( i n f e l i z m e m e n e m sempre c o m p r e c i s ã o ) Inglaterra u m exemplar especialmente ornado c o m i l u m i n u r a s , portan-
borboletas, mariposas, besouros e tudo o mais que pudesse conservar do a d e d i c a t ó r i a "de u m a m u l h e r para u m a personagem do m e s m o
em conhaque ou prensar; depois os agrupava c o m as respectivas larvas sexo
e guardava-os para p i n t á - l o s e m A m s t e r d a m . E o d i n h e i r o ainda n ã o era suficiente para c o b r i r os gastos e pagar
E e n t ã o , ao cabo de quase dois anos, n ã o conseguiu mais suportar os e m p r é s t i m o s feitos para a v i a g e m . M e r i a n suspendeu as pinturas que
o calor — "Quase paguei por isso c o m m i n h a p r ó p r i a v i d a " , escreveu a fornecia aos gravadores (pois dessa vez conseguira gravar s ó algumas
u m colega n a t u r a l i s t a ' " — e encerrou sua estadia no Suriname. E m 18 chapas de cobre) e passou a pintar para outro autor, cobrando caro por
de j u n h o de 1701 p a r t i u c o m D o r o t h e a para a E u r o p a , l e v a n d o na seu (rabalho. Georg Everard R u m p f que ficara cego, tinha lhe enviado
bagagem pinturas em pergaminho, borboletas conservadas e m conha- sua líllima grande obra sobre os c r u s t á c e o s , conchas e minerais de A m -
que, garrafas c o m ovos de c r o c o d i l o , cobra e lagarto, bulbos, c r i s á l i d a s boina. a ser publicada na Holanda; m o r r e u e m 1702, antes que seus as-
que ainda n ã o se a b r i r a m e muitas caixas cheias de insetos prensados NÍsIenles pudessem elaborar todas as i l u s t r a ç õ e s . Junto c o m S i m o n
para vender. Antes de embarcar c o m b i n o u c o m u m habitante local o en- Schynvoet, importante colecionador de A m s t e r d a m , M e r i a n localizou
v i o futuro de exemplares para comerciar. A p a n h o u a j o v e m Laurentia nos gabinetes dc curiosidades exeinplos dos e s p é c i m e s focalizados e
M a r i a V e r b o o m c o m a m i s s ã o de e n t r e g á - l a a u m parente na Holanda. exeiailou sessenta pinturas para serem gravadas em cobre. Para tanto
E t a m b é m levou a bordo mais u m a pessoa: sua índianin, sua " í n d i a " . .idiiioii o estilo expositivo de R u m p f fileiras de conchas, caranguejos
Essa m u l h e r a n ó n i m a do Suriname faria parte da c r i a ç ã o de seu novo on custais, c o m letras c n ú m e r o s remetendo ao texto. D'Amboinische
l i v r o sobre a A m é r i c a . Hiiniciilytuucr veio ã luz em 1705. no mesmo ano de seu l i v r o , e mostra
iilé t)ue ponto seu modo de representar a natureza era uma escolha, n ã o
uma i | u e s t á o de habilidade ou de hábito.'"'
Quatro anos depois a Metamorphosis insectorum surinamensium A Mrliuiiorphosis inseclorum surinamensium f o i publicada e m
veio à luz e m A m s t e r d a m . F o r a m quatro anos agitados. Pouco depois h o l a n d ê s e latim ( M c i ian escreveu em h o l a n d ê s c provavelmente rece-
de se reinstalar no antigo e n d e r e ç o , M e r i a n v i u a fdha Dorothea M a r i a beu II|IMIII paiii elaboiai a vcisao c m latim), uma e d i ç ã o i n - f ó l i o c o m
casar-se c o m P h i l i p H e n d r i k s , u m c i r u r g i ã o de H e i d e l b e r g ativo e m tfssenta (uav uias, d i s p o n í v e i s em piiMo <• branco ou coloridas à m ã o
Am.sterdam; e e m dezembro de 1701 deve ter sabido que seu e x - m a r i - pela iiiHoia Mais uma ve/, i o m o na e p o i a de seu pai c dc seus meios-
do, Johann Andreas G r a f f morrera e m N u r e m b e r g . '^^ C o m certeza n ã o lllllAnn, o iiiMiie Meiiaii d o m i n a v a o i K u i t i s p í c i o : ela era ao mesmo
se reconciliara c o m ele, e nas cartas que e m outubro de 1702 enviou ao li'in|Miedlloiaemiloia.osgiavadoieseolipógraloteiidolrabalhadoem
naturalista Johann Georg Volkamer, de N u r e m b e r g , nem sequer o m e n - SMiii asa na K e i k s l i a i i l . Fi.'oiiieicializoii o l i v r o . i|iie foi vendido i n c l u -
ciona. Fala, s i m , de pintar " c o m p e r f e i ç ã o e m p e r g a m i n h o " o que t r o u - sive na lo|a do m a u liaiid ( i e i a i i l Valck."
xera da A m é r i c a ; dos planos para o novo l i v r o , perguntando se encon- "A mais bcl.iol)! a já pintada na A m é r i c a " , os naturalistas disseram
traria subscritores que ajudassem a c o b r i r os custos de suas gravuras e m II piop('tsilo dl- sciis pciganiinhos.'"'e essa beleza se manteve no l i v r o
cobre, maiores ainda que o recente Hortus medicus do Jardim B o t â n i - l i i i p i f s s o ( A l g u m a s gravuras e s t ã o nas i l u s t r a ç õ e s do presente traba-
co de A m s t e r d a m ; das cobras, iguanas, beija-flores e tartarugas que lliii I A q i i i sen modo c a r a c t e r í s t i c o de mostrar os processos e r e l a ç õ e s
poderia vender-lhe e do l í q u i d o ideal para c o n s e r v á - l a s ; do eventual i n - da iialiiie/,a — a o r i g e m e t r a n s f o r m a ç ã o dos insetos e o a l i m e n t o das
teresse de V o l k a m e r por criaturas das í n d i a s Orientais, pois seu novo larvas aplicou-,se a criaturas e plantas que os europeus desconhe-
genro acabara de partir para lá c o m o objetivo de adquiri-las. Nas car- ciam on achavam bizarras: mandioca, batata, goiaba, fruta-de-conde,
tas que e n d e r e ç o u a James Petiver, na Inglaterra, aborda os mesmos m a m ã o e outras que n ã o t i n h a m nome n e m para os a m e r í n d i o s do Suri-
temas: a venda de seus e s p é c i m e s , subscritores para o l i v r o . N ã o seria name, A q u i os insetos do N o v o M u n d o , que nos grandes estudos do
conveniente, quando o l i v r o estivesse p r o n t o , enviar à rainha A n a da l l i a s i l realizados por M a r c g r a f receberam algumas poucas p á g i n a s .

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f o r a m para o centro do palco, observados por u m olbar arguto e descri- silaram outros continentes na é p o c a de Linnaeus e depois c o m o " u m a
tos por q u e m mantinha estreito contato c o m as comunidades c i e n t í f i - nova m o d a l i d a d e | . . . | de c o n s c i ê n c i a p l a n e t á r i a entre os europeus":
cas da Europa. Charles Plumier desempenhara esse papel recentemente "Uma |)or uma as formas de v i d a d o planeta s e r i a m retiradas d o
em r e l a ç ã o à s plantas das A n t i l h a s francesas; Hans Sloane e m breve c m a i a n h a i l o tle seu ambiente e reorganizadas segundo os p a d r õ e s de
t a m b é m o desempenharia em r e l a ç ã o à fauna e sobretudo à flora da Ja- mudadc i' ordem globais vigentes na Europa. O o l h o (do europeu ma-
maica; M a r i a S i b y l l a M e r i a n ( c o m sua e x p e r i ê n c i a e d i t o r i a l e suas cho e l e t r a d o ) que observava o sistema p o d i a f a m i l i a r i z a r ( ' n a t u -
amizades e m A m s t e r d a m ) desempenhava-o para os insetos do S u r i - r a l i / a i ' ) iu)vos s í t i o s / v i s t a s i m e d i a t a m e n t e , i n c o r p o r a n d o - o s à l i n -
name, embora n ã o fosse Royai Botanist ou m e m b r o da R o y a i S o c i e t y . " guagem do sistema". Pratt afirma que essa v i s ã o do m u n d o é ao mesmo
Para organizar seus ciclos vitais u t i l i z o u o mesmo sistema do Rau- tempo "inocente e i m p e r i a l " , ajudando a e x p a n s ã o e c o n ó m i c a da E u -
pen: cada i m a g e m c o m vida p r ó p r i a , acompanhada do respectivo tex- ropa sem praticar nenhuma v i o l ê n c i a m a i o r que d e n o m i n a r e classi-
to. C o m o antes, t o m o u a liberdade de agrupar na m e s m a i l u s t r a ç ã o íieiu.'"'A A/<'/(/í//(»//»/i(».v/.vde M e r i a n c e r t a m c n i e faz paite dos p r i m e i r o s
e s p é c i e s diferentes de mariposas e borboletas cujas larvas se a l i - enIrttlloM liesne projeto eiiropiii dc olhar c descrever. C o n t u d o .seu o l h o
mentavam da mesma planta, b e m c o m o abelhas, vespas e moscas. Re- i< sua mno ei olopit os dcisani i i i m i o e s p a ç o para (|iie os insetos e as
f o r ç a n d o a ruptura c o m a t a x i o n o m i a , i n c l u i u seis imagens de lagarto, |il.iiii.i- do Sm Iliame l l o i e s ç u m em tcimos e r e l a ç õ e s locais.
cobra, r ã e sapo; situou esses animais, o u no habitat e m que os obser- iliiiUVIíi de Meiíaii leve seus c r í t i c o s . Prelendendo traduzir o
vara, o u c o m os insetos e as plantas que lhes serviam de alimento, ex- l i M O ' . o l i i e o S i i i l i i a m e . JamesPelivei i c i i t o i f n i e l o t i i z á - l o " . A s e u verera
plicitamente "para decorar a gravura", enquanto no texto fornecia i n - piei isoieiimiieiai lodoo liaballio. oiganizando-i)em três c a p í t u l o s : " D e
f o r m a ç õ e s sobre a r e p r o d u ç ã o ou a a l i m e n t a ç ã o deles. "'Para organizar lagailos, lãs e serpentes", "I )c borboletas" e "De mariposas".'"*Por mais
a s e q u ê n c i a de plantas n ã o se g u i o u pelo tipo de p é t a l a , folhas o u fruto que quisesse publicar sua Metamorphosis e m i n g l ê s , M a r i a S i b y l l a nun-
( c o m o P l u m i e r e Sloane fizeram). Tampouco agrupou plantas e insetos ca aprovaria essa d i s t o r ç ã o grotesca: c o m o no Raupen, sua falta de
de acordo c o m suas s e m e l h a n ç a s o u d i f e r e n ç a s e m r e l a ç ã o à s e s p é c i e s "meiodo" dirigia toda a a t e n ç ã o para o processo de t r a n s f o r m a ç ã o . E m
europeias, mas espalhou uvas, cerejas e ameixas americanas entre I /(15 ela ilevol veii alguns e s p é c i m e s que Petiver lhe enviara, dizendo que
r a í z e s de mandioca, quiabo e tabrouba ( á r v o r e tropical de frutos verdes, eslava interessada "apenas na f o r m a ç ã o , p r o p a g a ç ã o e metamorfose das
atualmente denominada "taproepa" no Suriname). Cl laliii as. cm c o m o uma surge a partir da outra, e na natureza de sua die-
A e s t r a t é g i a narrativa g l o b a l era de natureza e s t é t i c a , c o m o no ta, conforme o estimado cavalheiro pode verificar e m meu l i v r o " . Pode-
Raupen, e habilmente conduzia o leitor europeu de u m lado a o u t r o , do ila, por lavor, n ã o lhe enviar mais nenhum inseto morto?'"'

familiar ao estranho. A p r i m e i r a i l u s t r a ç ã o , c o m o j á conhecido abacaxi líiilre a Metamorphosis e o Raupen h á , p o r é m , importantes dife-


e a barata surpreendentemente enorme, evocava a distintiva d o ç u r a e o r e n ç a s . Para c o m e ç a r , M e r i a n r e a l i z o u u m e s f o r ç o e x p l í c i t o de rela-
c a r á t e r d e l e t é r i o da A m é r i c a . O texto da ú l t i m a gravura lembrava ao cionar suas descobertas c o m as de outros naturalistas. E m vez de ter-
leitor o quanto ainda havia por aprender: " E m j a n e i r o de 1701 penetrei mos i d i o s s i n c r á s i c o s c o m o o a l e m ã o Dattelkern, utilizado no Raupen,
na floresta do Suriname para ver o que poderia descobrir. E n t ã o encon- pieleiiu palavras c o m o p o p p e t j e n s e aureliae (ou nymphae), empre-
trei numa á r v o r e essa graciosa f l o r vermelha; os habitantes locais des- gadas por seus c o n t e m p o r â n e o s . D e n o m i n o u cada planta segundo os
conhecem tanto o nome quanto as qualidades dessa á r v o r e . A q u i me v o c a b u l á r i o s a m e r í n d i o e/ou h o l a n d ê s do Suriname. Depois Caspar
deparei c o m uma bela e imensa lagarta vermelha, que apresenta três C o m m e l i n forneceu nomes ladnos — sempre que p o s s í v e l — e i n d i c o u
globos azuis e m cada segmento e u m tufo negro erguendo-.se de cada se a esjiécie se encontrava no J a r d i m B o t â n i c o de A m s t e r d a m e se fora
g l o b o " . A c r i s á l i d a de tal lagarta era m u i t o estranha, p o r é m a borbole- i n c l u í d a c n i obras anteriores sobre plantas n ã o europeias. Seus breves
ta que dela saiu se parecia c o m a Grande A d a s vista na Holanda.'"" i ( i m c n t á i i o s , em tipo pequeno, acrescentaram ao l i v r o uma voz mas-

M a r y L o u i s e Pratt d e l i n i u a obra de naturalistas europeus que v i - I idina c douta, sem p r e j u d i c a r a autoridade e n t o m o l ó g i c a de M a r i a

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S i b y l l a . N o p r e f á c i o M e r i a n m e n c i o n o u quatro entomologistas ( M o u f - buracadas pelas larvas; no conjunto, p o r é m , criara a i m p r e s s ã o visual
fet, Goedaert, S w a m m e r d a m e B l a n k a a r t ) , d i z e n d o c o m certa h i p o - de tuna natureza "inocente" (para usar o termo de Labadie) — uma na-
crisia que, c o m o eles, estava apresentando apenas o b s e r v a ç õ e s e dei- tureza condizente c o m a p r e s e n ç a constante de Deus. E m contrapartida
xando que os leitores chegassem a c o n c l u s õ e s p r ó p r i a s . Todavia, sua retratou a natureza do Suriname c o m o u m a a m e a ç a n ã o s ó para as pes-
"simplicidade f e m i n i n a " pertencia ao passado: ela a f i r m o u c o m todas soas — que sofriam c o m a i n c u r s ã o das baratas pelas roupas e pelos a l i -
as letras que L e e u w e n h o e k errara ao dizer que as c i n q u e n t a p r o t u - mentos e t i n h a m de tomar cuidado para n ã o tocar e m certas lagartas pe-
b e r â n c i a s vermelhas nos lados de determinada lagarta eram olhos, pois ludas ( c o i n o M e r i a n tocou), cujo contato provocava i n c h a ç o e dor —
isso n ã o c o r r e s p o n d i a a suas o b s e r v a ç õ e s — as p r o t u b e r â n c i a s n ã o mas t a m b é m para o reino a n i m a l c o m o u m todo, ao q u a l i n f l i g i a danos
p o d e r i a m ser olhos. (Estava certa.)"" ainda m a i o r e s . " ' A impressionante i l u s t r a ç ã o 18 (apresentada neste
Seria p o s s í v e l o u v i r o Senhor e m meio à s novas vozes eruditas e l i v r o ) , c o m aranhas e formigas, n ã o d n h a equivalente no Raupen, nem
ao novo t o m da Metamorphosisl N o p r e f á c i o ao leitor M e r i a n o m e n - nos adendos que ela fez ao l i v r o sobre lagartas europeias. N u m a
c i o n o u n u m a frase feita: "Se Deus me der s a ú d e e vida, pretendo acres- goiabeira e s q u e l é t i c a f i g u r a m aranhas marrons e negras: "Elas n ã o
centar as o b s e r v a ç õ e s que fiz na F r í s i a e H o l a n d a à q u e l a s que realizei l e i c n i teias longas, c o m o alguns viajantes nos fizeram acreditar. S ã o
na A l e m a n h a e p u b U c á - l a s e m l a t i m e h o l a n d ê s " . M a s essa é a ú n i c a i (li)crtas dc p ê l o s e ]iossucm dentes afiados, c o m o s quais a p l i c a m den-
m e n ç ã o ao Senhor: o m u n d o natural do Suriname tinha v i d a p r ó p r i a . tai!,is p i o l i u i d a s c jiodcrosas, ao mesmo tempo que injetam u m fluido
Certamente M a r i a S i b y l l a ainda acreditava e m Deus, o criador. C o m o no I c n u i c n t o . Seu alimento c presa habitual s ã o as formigas, que d i f i -
escrevera a V o l k a m m e r e m 1702, seu l i v r o mostraria "os maravilhosos cilmente lhes escapam | . . . | Essas aranhas ( c o m o todas as outras) t ê m
animais e obras criados por Deus na A m é r i c a " . D a mesma forma, ao re- oilo olhos; com dois enxergam acima, c o m dois abaixo, c o m dois à d i -
visar e ampliar Lagartas europeias para uma e d i ç ã o holandesa, alguns lellii e com dois à esquerda. Quando n ã o encontram formigas, tiram pe-
anos depois daMetamorphosis, falou no p r e f á c i o do "governo do C r i a - quenos pássaros do ninho c sugam-lhes todo o s a n g u e " . ' " N a gravura
dor, que c o l o c o u e m animais t ã o pequeninos uma v i d a e u m a beleza t ã o as aiaiilias iiegias esiao d c v o i a i u l o f o r m i g a s e u m b e i j a - f l o r (a isso
maravilhosas que n e n h u m p i n t o r c o m p i n c e l e tinta conseguiria rea- vollMieiiios mais aillaiite),
lizar". Aqueles que ela encontrara na A m é r i c a i n f l a m a r a m ainda mais Na iliisliaçno IH as l o i m i g a s t a m b é m estão atarefiidas, comendo
seu desejo de o b s e r v a ç ã o . A f o r a isso, p o r é m , desde a p r i m e i r a e d i ç ã o IMII ItesiMiinet Miilia alaiaiido as aiaiihas. (> texto nao o m i t e sua tradi-
do Raupen a p r e s e n ç a d i v i n a se tornara m u i t o menos evidente e m seu 1 liMiiil "liilMMiimlilmle" e e o o p e i a ç A o elas constroem pontes de inse-
trabalho, que decerto j á n ã o i n c l u í a hinos à l a g a r t a . " ' M a r i a S i b y l l a Ink í nillMenAiieos "ino bem leitos que os d i r í a m o s obra de .seres hu-
M e r i a n fora a l é m da simples frieza e m r e l a ç ã o ao separatismo labadista manos" Nrto obstante as formigas s ã o violentas: " U m a vez por ano
e chegara a u m a v i s ã o desapaixonada da p r e s e n ç a e do poder de Deus saem l e p e n t i n a m e n t i ' dc seus abrigos e m q u a n t i d a d e i n c a l c u l á v e l .
no m u n d o . Conseguira isso tranquila e gradativamente, talvez sem par- Klieliem as casas, divslocaiulo sc dc u m c ó m o d o a o u t r o , sugando o
t i c i p a ç ã o direta nos intensos debates sobre d e í s m o , a t e í s m o e v i t a l i s m o saii)Mii' dc Ioda c i i a t i i i a i|iic encontram pela frente, grande ou pequena.
que se travavam a sua volta em A m s t e r d a m . Deus j á n ã o era uma f o r ç a Num piscai dc olhos devoram uma aranha de b o m porte, que diante de
sustentando constantemente as m u d a n ç a s da natureza; era u m criador seu imenso numero nao tem c o m o escapar. C o r r e m de u m aposento a
transcendente. E m vez de entusiasmar-se c o m a p r e s e n ç a de Deus, ela ntilro. e alé as pessoas se v ê e m obrigadas a fugir. Depois de comer a
admirava sua o b r a . " ' i'asa Ioda. parlem para outra casa, a t é que finalmente r e t o r n a m a seu
Parece que sua estadia na A m é r i c a do S u l c o n f i r m o u tal m u d a n ç a . s i i b t c i i a n c o " . M e r i a n descreve a r e p r o d u ç ã o e a m e t a m o r f o s e das
A h a natureza o r g â n i c a se mostrava mais bonita e mais perigosa que na liii lindas, porem aí|ui seu p r i n c i p a l objetivo consiste e m relatar a des-
Europa. N o Raupen M e r i a n falara da d e s t r u i ç ã o causada por u m a hor- liiiiçao cansada i)or esses insetos.'"
da de-lagartas e m 1679 e nas i l u s t r a ç õ e s apresentara algumas folhas es- A o alaslai I )cus da natureza M a r i a S i b y l l a c r i o u u m vazio emo-

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cional e intelectual que tratou de preencher de dois modos. P r i m e i r o , antes de o inseto adulto emergir.""Pelo menos u m naturalista i n g l ê s se
c o m seus projetos sobre a utilidade de plantas e insetos: muitas frutas, abalou c o m os escravos de M e r i a n , pois ao traduzir para o i n g l ê s o tex-
c o m o ameixa, uva e baunilha, que p o d e r i a m .ser cultivadas se os h o l a n - to latino preferiu chamar a "serva N i g r i t a " (swarte SIavinne), que con-
deses n ã o estives.sem t ã o preocupados c o m o a ç ú c a r ; lagartas verdes e seguiu a larva laranja da i l u s t r a ç ã o 27, de " m y N e g r o serving m a i d "
amarelas, cujo casulo p o s s u í a u m fio t ã o resistente que "forneceria boa [ m i n h a c r i a d a negra] e o m i t i u i n t e i r a m e n t e os " m a n c i p i a " {myne
seda e renderia m u i t o lucro a q u e m se desse ao trabalho de reunir essas slaven) que lhe abriram c a m i n h o na floresta."*'
lagartas"."" C o n t u d o , a p r ó p r i a M a r i a S i b y l l a despertou o l e i t o r para as
Segundo, e mais importante, c o m suas o b s e r v a ç õ e s sobre os ame- c o n d i ç õ e s da e s c r a v i d ã o e m seu texto sobre a Fios pavonis, a " f l o r do
r í n d i o s e africanos do Suriname. J á v i m o s que a Metamorphosis men- pavão":
ciona "meus escravos" e "meus í n d i o s " . M e r i a n apresentou-se ao leitor
Suas sementes são usadas pelas mulheres que estão em trabalho de par-
c o m o u m a p r o p r i e t á r i a de escravos, conquanto criticasse a m o n o c u l -
to para dar à luz rapidamente. As índias, que em sua servidão não são bem
tura canavieira que dependia da escravatura e aceitasse a legitimidade
tratadas pelos holandeses, utilizam-na para abortar, evitando que os f i -
dos holandeses no S u r i n a m e . N o entanto seu r e l a c i o n a m e n t o c o m lhos se tornem escravos como elas. As escravas negras da Guiné e de An-
africanos e a m e r í n d i o s apresenta algumas c a r a c t e r í s t i c a s i n c o m u n s , golaprecisam ser tratadas benignamente [heelheuslyk. henigne], po\s do
que ( c o m o suas r e p r e s e n t a ç õ e s de insetos e plantas) a b r i r a m fissuras no contrário não terão nenhum filho em sua servidão. De fato não têm. Na
campo da a r g u m e n t a ç ã o f a v o r á v e l à d o m i n a ç ã o europeia. verdade até se matam por causa do severo tratamento ao qual de hábito
N o s é c u l o X V I I e i n í c i o do x v i i i os cientistas e naturalistas eu- são submetidas. Pois acreditam que nascerão de novo com seus amigos,
livres e em seu país. Assim me instruíram com suas próprias bocas.
ropeus raramente mencionavam e m suas p u b l i c a ç õ e s os v á r i o s "cria-
dos" que os ajudavam nas pesquisas, segundo Steven Shapin nos infor- A c r e n ç a dos africanos no renascimento a p ó s a morte, a c o n v i c ç ã o
ma n u m a r t i g o p i o n e i r o , " T h e i n v i s i b l e t e c h n i c i a n " . " ' l s s o o c o r r i a de que haveriam de renascer livres e m sua p á t r i a , n ã o c o n s t i t u í a n o v i -
t a m b é m nos trabalhos sobre a flora e fauna da A m é r i c a , da Á f r i c a e do dade nos textos europeus sobre a e s c r a v i d ã o na A m é r i c a . E m Impartial
P a c í f i c o . Charles P l u m i e r descreveu suas i n v e s f i g a ç õ e s b o t â n i c a s na description of Suriname, de 1667, George Warren referiu-se a ela, co-
M a r t i n i c a c o m o se fossem pas.seios s o l i t á r i o s . ( O padre Labat, o mis- mentando que tal "ideia leva muitos a tolamente desejar a morte, es-
s i o n á r i o d o m i n i c a n o local, r i d i c u l a r i z o u - o , dizendo que ele descobrira perando assim libertar-se dessa e s c r a v i d ã o sem i g u a l " . Charles de
o segredo de uma velha fintura p ú r p u r a , quando todos os pescadores Rochelbrt e Richard L i g o n disseram a mesma coisa respectivamente
negros da M a r t i n i c a sabiam de que m o l u s c o provinha.) Hans Sloane, em r e l a ç ã o aos escravos das ilhas francesas e de Barbados, m e n c i o -
cuja Voyage to Jamaica seria l a n ç a d a dois anos depois da Metamor- nando t a m b é m suas fugas e revoltas c o m o mais u m e s f o r ç o para se
phosis, registrou e m sua i n t r o d u ç ã o muitas conversas que teve c o m livrarem dos senhores c r u é i s . Hans Sloane acrescentaria o detalhe de
"negros" e " í n d i o s " a respeito de d o e n ç a s e alimentos e r e m é d i o s ve- c|ue os negros c o r t a m a p r ó p r i a garganta, " i m a g i n a n d o que assim pas-
getais, p o r é m assinalou apenas a ajuda c i e n t í f i c a que recebeu de u m s a r ã o da s e r v i d ã o à liberdade"."*'
c l é r i g o i n g l ê s contratado para "desenhar f i g u r a s " de peixes, aves e O que distingue o relato de M e r i a n é seu t o m de c o n v e r s a ç ã o —
msetos. "assim me i n s t r u í r a m c o m suas p r ó p r i a s bocas" — , de c o n v e r s a ç ã o
Já M e r i a n reconheceu que africanos e a m e r í n d i o s a ajudaram a en- c o m mulheres que falavam e m abortar os filhos para n ã o os dar à luz co-
contrar e manusear insetos. A t é deram "testemunho" sobre eles: "todas mo escravos. M u i t o antes os frades e s p a n h ó i s h a v i a m mencionado e m
[essas criaturas I observei e esbocei ao v i v o , exceto umas poucas que suas cartas mulheres i n d í g e n a s que, exaustas e desesperadas, u f i -
acrescentei baseada no testemunho dos í n d i o s " . A s s i m , desenhou o lizaram "venenos vegetais" para destruir o fruto que t r a z i a m no ven-
gafanhoto verde da i l u s t r a ç ã o 27 inteiramente c o m base no que lhe dis- tre."*'E e m 1707 o m é d i c o Hans Sloane d i r i a a respeito do sene sel-
seram africanos e a m e r í n d i o s , pois a c r i s á l i d a que recolhera m o r r e u vagem que v i r a e m brejos e nas p r o x i m i d a d e s de cursos de á g u a na

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se a plantas e insetos individuais, e c o n s f i t u í a m u m a e x t e n s ã o de seu
Jamaica: "Provoca menstruo abundante, causa aborto e t c , e faz tudo o
modo de ver as r e l a ç õ e s existentes na natureza. U m a vez M a r i a S i b y l -
que a sabina e os emenagogos poderosos t a m b é m f a z e m " . ' "
la estabeleceu uma analogia entre a m e r í n d i o s e insetos ("essas lagartas
N a Metamorphosis as p r ó p r i a s a m e r í n d i a s identificam o aborfivo
ficam penduradas c o m o os i n d í g e n a s e m suas redes, das quais nunca
para M a r i a S i b y l l a M e r i a n : a " f i o r do p a v ã o " , cujas sementes t a m b é m
saem t o t a l m e n t e " ) , mas em outras passagens t a m b é m se referiu a si
p o d e m apressar o parto. H á aqui u m c o m p a r f i l h a m e n t o p ú b l i c o dos
mesma e m termos semelhantes, c o m o quando pensou que finha muitas
"segredos f e m i n i n o s " , expostos c o m certa simpafia por u m a europeia
coisas para contar à velha amiga Dorothea A u e r i n ( " E u daria u m duca-
em cujo m u n d o o aborto era ilegal e pecaminoso. Escuto mulheres
do para me transformar numa mosca e voar a t é ela"). '""Apenas uma vez
africanas; relato o aborto sem condenação. ( M e r i a n t a m b é m pode ter
leceu u m c o m e n t á r i o desdenhoso — sobre a i n é r c i a do " p o v o " , o termo
e s p a ç a d o seus partos, ocorridos em 1668 e 1678, ufilizando u m m é t o - vago podendo referir-se tanto aos a m e r í n d i o s quanto aos p r e g u i ç o s o s
do contraceptivo c o m o o coito i n t e r r o m p i d o , mas n ã o o aborto.) Quan- c o l o n o s h o l a n d e s e s . ' " ' E m geral c r i t i c o u c o m f i r m e z a os europeus
to a sua d e c l a r a ç ã o de que as escravas africanas n ã o t i n b a m f i l h o s , obcecados pelo a ç ú c a r . N ã o se preocupou e m descobrir se o crisfianis-
trata-se de uma h i p é r b o l e , que, todavia, corrobora a h i p ó t e s e dos his- mo m e l h o r a r i a os a m e r í n d i o s e africanos (e, considerando a maneira
toriadores que atribuem a baixa fertilidade das escravas, pelo menos c o m o encarava a r e l i g i ã o nesse m o m e n t o , é fácil entender p o r q u ê ) .
parcialmente, a uma q u e s t ã o de escolha por parte das mulheres. Nunca empregou a palavra selvagem, que, contudo, ainda era usada e m
Se esse f o i o ú n i c o trecho da Metamorphosis e m que M a r i a S i b y l - sua é p o c a .
la expressou a l g u m sentimento pelos escravos o u se r e f e r i u a suas Os textos do padre Labat sobre sua m i s s ã o na M a r t i n i c a e e m ou-
agruras, essa n ã o f o i absolutamente a ú n i c a " i n s t r u ç ã o " que recebeu de tras ilhas das A n t i l h a s , de J. D . H e r l e i n sobre o Suriname'"' e do as-
africanos e a m e r í n d i o s . Seus textos e s t ã o repletos de preciosas infor- h ô n o m o Peter K o l b e n sobre sua estadia no cabo da Boa E s p e r a n ç a par-
m a ç õ e s e t n o g r á f i c a s , muitas das quais fornecidas por mulheres: sobre tiram de premissas c o n t e m p o r â n e a s sobre culturas e povos superiores
as plantas, frutos, insetos e animais que serviam de alimento e as pessoas e inferiores. Labat reservou o termo .sauvages para os carai^bas — dos
que deles se alimentavam ("Os pretos [de Swarten] c o m e m esses sapos, quais p o u q u í s s i m o s t i n h a m se convertido ao cristianismo — e chamou
considerando-os u m b o m prato"; [Os í n d i o s , de Indianen] assam essas s i m p l e s m e n t e de nègres seus escravos, p a r o q u i a n o s e penitentes
minhocas no c a r v ã o e as saboreiam c o m o requintada iguaria");"*''.sobre africanos. Descreveu seus costumes c o m a t e n ç ã o e à s vezes c o m
as plantas utilizadas para tratar ferimentos ou diarreia, vermes e bernes; a p r o v a ç ã o , tendo admirado sobretudo o respeito dos pretos pelos ve-
sobre as plantas que forneciam frutos para a f a b r i c a ç ã o de vassouras, se- lhos e a obediente laboriosidade das mulheres c a r a í b a s , cujo r i t m o de
mentes para a c o n f e c ç ã o de lindos braceletes usados pelas mulheres trabalho era m u i t o mais extenuante que o de seus maridos. Contudo, os
solteiras, fibras para fiar e tecer redes e tinturas para decorar o corpo dos africanos se caracterizavam por sua " l i b e r t i n a g e m " natural ( " n ã o h á
homens. M e r i a n eventualmente entrava no m u n d o dos africanos e n a ç ã o no m u n d o mais inclinada ao v í c i o da carne") e por sua "incons-
a m e r í n d i o s , expondo sua o p i n i ã o de europeia sobre o gosto de determi- t â n c i a " religiosa: "Seu temperamento exaltado, seu h u m o r inconstante
nadas plantas e frutas — nunca de insetos, sapos ou ovos de cobra."*' e libertino, a facilidade e o senso de impunidade c o m que cometem to-
ilos os tipos de crimes dificilmente lhes p e r m i t i r ã o a b r a ç a r u m a r e l i g i ã o
Desde o m o m e n t o em que c o m e ç a r a m a descrever o N o v o M u n d o
baseada e m j u s f i ç a , m o r f i f i c a ç ã o , h u m i l d a d e , c o n f i n ê n c i a , fuga dos
os europeus i n c l u í r a m em seus textos i n f o r m a ç õ e s sobre o uso m e d i -
jira/eres, amor aos i n i m i g o s , desprezo pela riqueza e t c " . Os africanos
cinal e a l i m e n t í c i o das plantas. A Metamorphosis apresentou v á r i o s da-
convertiam-se c o m facilidade, mas n ã o profundamente, e misturavam
dos i n é d i t o s , p o r é m o preparo do p ã o de mandioca j á fora descrito por
Cl istianismo c o m i d o l a t r i a e feifiçaria. Quanto aos a m e r í n d i o s , eram i r -
Piso e m sua obra sobre o Brasil. "*"O que disfingue o trabalho de M e r i a n
r e m e d i á v e i s : t i n h a m uma " i n d i f e r e n ç a natural à r e l i g i ã o " . ' " '
é o t o m e t n o g r á f i c o . A s s i m c o m o ela n ã o classificou as e s p é c i e s de f l o -
ra e fauna, t a m b é m n ã o se preocupou e m classificar os costumes de Kolben achou que os "hotentotes" ( c o m o o a s t r ó n o m o e seus c o n -
t e m p o r â n e o s c h a m a v a m os k h o i k h o i ) n ã o eram "absolutamente t ã o
a m e r í n d i o s é africanos. Suas o b s e r v a ç õ e s eram e s p e c í f i c a s , referiam-

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broncos e n é s c i o s " quanto os europeus d i z i a m e — a o c o n t r á r i o dos que sentaria os africanos entre os quais viveu. Em 1706, Jonas "Witsen —
os consideravam "incapazes para a r e b g i ã o " — o b s e r v o u que p o s s u í a m u m dos c i d a d ã o s n o t á v e i s de A m s t e r d a m , cuja c o l e ç ã o M e r i a n c o -
"alguma n o ç ã o de Deus". C o n f o r m e Pratt nos l e m b r o u , K o l b e n usou nhecera e que certamente adquiriu (ou ganhou) u m exemplar da Meta-
categorias europeias c o m o " g o v e r n o " para descrever os "hotentotes", morphosis — contratou "Valkenburg para exercer as f u n ç õ e s de conta-
e m vez de constatar apenas desordem. Entretanto, ainda os situou n u - dor e artista nas três propriedades que sua esposa acabara de herdar no
ma escala de c i v i l i z a ç ã o e o m á x i m o que conseguiu i m a g i n a r para eles Suriname. A l i "Valkenburg elaborou uma série de desenhos focalizando
f o i a c o n d i ç ã o de "excelentes criados, talvez os mais fiéis do m u n d o " . ' " c o n s t r u ç õ e s e á r v o r e s ; elaborou ainda u m ó l e o e m que apresenta os
A c l a s s i f i c a ç ã o cultural era, em parte, produto da literatura de v i a - africanos de u m a dessas propriedades, talvez P a l m e n i r i b o , onde anos
gem, na qual ( c o m o nas r e l a ç õ e s j e s u í d c a s sobre os a m e r í n d i o s de Que- depois ocorreria uma fuga de escravos.'"' A tela obedece a algumas con-
bec, na é p o c a de M a r i e de I T n c a r n a d o n ) os leitores esperavam encon- v e n ç õ e s da p i n t u r a de g é n e r o holandesa, mas t a m b é m revela o o l h o
trar c a p í t u l o s c o m o " A d i s p o s i ç ã o , natureza e atributos dos escravos e t n o g r á d c o do ardsta.
negros" e "Costumes diversos dos s e l v a g e n s " . ' " O naturalista p o d i a C o m o podemos ver na i l u s t r a ç ã o apresentada neste l i v r o , cerca de
sentir-se menos i n c l i n a d o a inserir julgamentos e x p l í c i t o s , dependendo trinta a f r i c a n o s — h o m e n s , mulheres e algumas c r i a n ç a s — se apinham
do d p o de abordagem c i e n t í f i c a conferida ao material. E m sua Voyage n u m a clareira, diante das cabanas reservadas aos escravos. E f i m de
to Jamaica Hans Sloane empregou mais de u m g é n e r o , variando seu tarde, e os ú l t i m o s raios do sol b r i l h a m na pele negra e m a r r o m . Essas
uso da c l a s s i d c a ç ã o cultural de acordo c o m eles. N a longa i n t r o d u ç ã o , pessoas n ã o e s t ã o trabalhando n e m servindo os europeus ( c o m o e m
cheia de c o m e n t á r i o s sobre os habitantes e sobre seus diversos pa- obras anteriores de Frans Post que retratam os engenhos de a ç ú c a r no
cientes, assinalou, por exemplo, que os í n d i o s e negros da Jamaica " n ã o Brasil),'"" mas se r e u n i r a m a l i e m f u n ç ã o de u m a d a n ç a — possivel-
t ê m nenhuma f o r m a de r e l i g i ã o , pelo que pude observar. E b e m verdade mente o winti, e m que alguns d a n ç a r i n o s s ã o p o s s u í d o s p o r seus
que realizam v á r i a s c e r i m ó n i a s [...] mas estas e m geral nada t ê m e m co- deuses.'"'" O toque dos tambores, a f u m a ç a do c a c h i m b o , a bebida i n -
m u m c o m atos de a d o r a ç ã o de u m deus e costumam comportar m u i t a duzem os pardcipantes ao transe e x t á t i c o . Duas mulheres e alguns ho-
obscenidade e l a s c í v i a " . O corpo do texto se c o m p u n h a de verbetes so- mens d a n ç a m , enquanto os outros observam ou conversam entre si. U m
bre plantas e seus usos locais, organizados segundo o n ú m e r o de p é t a - h o m e m beija u m a mulher, c o m o ocorre na cena de d a n ç a habitual en-
las. Se u m l o n g o c a p í t u l o sobre tabaco i n c l u í a o c o m e n t á r i o de que " e m tre os holandeses. "Valkenburg teria presenciado esse beijo? O padre L a -
todos os lugares aos quais chegou [o tabaco] encantou os habitantes, bat disse que e m certas d a n ç a s africanas ("contrárias à m o d é s d a " ) ho-
desde os mais polidos europeus a t é os b á r b a r o s hotentotes", a palavra mens e mulheres se beijavam, p o r é m mais tarde John Gabriel Stedman
selvagem aparece poucas vezes nos dois volumes. A m a i o r i a dos ver- declarou que os africanos nunca se beijavam publicamente ("tamanha
betes limita-se a descrever os usos das plantas ou animais, sem nenhu- é sua delicadeza"). D e qualquer m o d o aqui a atitude do h o m e m é gen-
ma a v a l i a ç ã o (assim, por exemplo, Sloane nos diz que o verme do al- d l , e a m u l h e r t e m u m b e b é à s costas — esse é o d p o de famflia especi-
godoeiro é m u i t o procurado por "negros e í n d i o s , que o c o z i n h a m e m ficado nos registros de escravos do Suriname que o p r ó p r i o "Valkenburg
sua sopa").'"' devia elaborar.""'Um h o m e m e s t á vomitando, c o m o ocorre na cena ha-
M u i t o mais que a abordagem de Sloane, o esdlo c i e n t í f i c o e o i n - bitual de d a n ç a entre os holandeses. "Valkenburg o v i u ? A p o ç ã o espe-
t e r c â m b i o coloquial de M e r i a n fomentaram u m a literatura e t n o g r á f i c a cial do winti p o d i a i n d u z i r o v ó m i t o . A única c o n c e s s ã o real à "obs-
indiferente à fronteira entre c i v i l i z a d o e selvagem. T e r i a m encorajado cenidade e l a s c í v i a " dos negros consiste na f i g u r a de u m h o m e m
t a m b é m u m e s t i l o e t n o g r á f i c o de p i n t u r a ? M a r i a S i b y l l a n ã o nos assediando uma m u l h e r mais velha, de seios c a í d o s . C o n t u d o h á uma
d e i x o u n e n h u m retrato de pessoas, europeias o u n ã o . ' " ' ' T o d a v i a , u m d i s t â n c i a c o n s i d e r á v e l entre os africanos sérios e relativamente deco-
quadro de D i r k Valkenburg, aluno de seu grande a m i g o M i c h i e l van rosos de "Valkenburg e os camponeses turbulentos e os a l d e ã o s festivos
Musscher, talvez nos ajude a ter uma ideia do e s p í r i t o c o m que repre- retratados na arte holandesa.""'

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Na frente da clareira vemos duas pessoas distanciadas das outras.
g r á v i d a (que, p o r m e i o da m o r t e , " v o l t a r á para a p á t r i a " ) , mas, ex-
A p r i m e i r a delas é u m j o v e m alto e i m p o n e n t e ( u m p r í n c i p e p r i -
t r e m a m e n t e fraco e t o r t u r a d o pela dor, n ã o consegue se afastar do
s i o n e i r o ? ) , c o m c h a p é u europeu e c a c h i m b o na c i n t a — o t i p o de
c a d á v e r . O governador manda e x e c u t á - l o e envia os p e d a ç o s de seu cor-
h o m e m capaz de liderar seus companheiros e m fuga. A outra é uma m u -
po à s diversas fazendas, para alertar os escravos.
lher igualmente j o v e m , que e s t á sentada n u m tambor, c o m u m b e b é à s
A s atitudes de B e h n — e as que ela atribui ao protagonista — s ã o
costas, voltada para o espectador. U m a c r i a n ç a maior se apoia no t a m -
c o n t r a d i t ó r i a s . O r o o n o k o se p r o n u n c i a contra a e s c r a v i d ã o , mas na
bor, apontando para ela e para o b e b é . Os u t e n s í l i o s do winti encontram-
Á f r i c a vendera seus cativos a traficantes europeus. Quando seus c o m -
se aos p é s da j o v e m — u m c a c h i m b o , uma tigela, u m a c a b a ç a — , que
panheiros rebeldes o abandonam, diz amargurado que s ã o covardes,
talvez esteja esperando a chegada do deus. Pensativa e s ó b r i a , é o t i p o
"escravos pela p r ó p r i a natureza |... | feitos para servir de ferramenta aos
de m u l h e r que poderia ter conversado c o m M a r i a S i b y l l a M e r i a n sobre
c r i s t ã o s " . Behn se apresenta c o m o confidente e defensora de O r o o n o k o
as agruras do cativeiro. OÍ, '
e reprova sua t e r r í v e l p u n i ç ã o , mas t a m b é m procura dissuadi-lo do m o -
tim, v i g i a - o e, a p ó s a fuga, teme que ele volte para degolar as mulheres.
E m b o r a u t i l i z e "escravos i n d í g e n a s " c o m o remadores, retrata os
C o m o a Relation e as cartas de M a r i e de I T n c a r n a d o n , a Meta-
a m e r í n d i o s livres c o m o nobres selvagens, mais felizes e m sua i n o c ê n -
morphosis f o i escrita por u m a m u l h e r e perturbou o confronto c o l o n i a l .
cia natural que se tivessem sido i n s t r u í d o s na r e l i g i ã o ou na lei. C o n t u -
Mas t a m b é m m o s t r o u e m que m e d i d a as perspectivas femininas po-
do, a grandeza de O r o o n o k o deve-se n ã o s ó a sua c o n d i ç ã o de p r í n c i p e
d i a m divergir: M e r i a n apresentou u m quadro e s p e c í f i c o de costumes e
africano c o m o ainda à e d u c a ç ã o " m o r a l , l i n g u í s t i c a e c i e n t í f i c a " que
i n f o r m a n t e s diferentes daqueles c o m que estava h a b i t u a d a ; madre
ele recebera de seu preceptor f r a n c ê s . Apesar de "negras c o m o é b a n o
M a r i e i m a g i n o u u m sonho u n i v e r s a l i z a d o r de s e m e l h a n ç a c o m as
ou azeviche", suas f e i ç õ e s sugerem mais u m europeu que u m africano.
a m e r í n d i a s , que se reformaram ao tornar-se c r i s t ã s .
A t r a g é d i a de sua morte possui tal magnitude que, c o m o Laura B r o w n
U m a terceira v i s ã o f e m i n i n a se i n t e r p õ e entre essas: Oroonoko or mostrou n u m ensaio brilhante, levou Behn a sugerir uma c o m p a r a ç ã o
theHistoryoftheroyalslave, d e A p h r a B e h n , publicado e m 1688, mais entre esse " r e i m u t i l a d o " e Carlos i , o soberano i n g l ê s martirizado.""
de duas d é c a d a s depois que a autora passou u m ou dois anos nas fazen-
Se leu Oroonoko (no o r i g i n a l i n g l ê s ou na t r a d u ç ã o a l e m ã p u b l i -
das de Parham H i l l e Saint John's H i l l , no que era e n t ã o a c o l ó n i a i n -
cada e m H a m b u r g o em 1709),"" M a r i a S i b y l l a M e r i a n talvez tenha se
glesa do Suriname."" ( A c o l ó n i a P r o v i d ê n c i a , dos labadistas, se esta-
divertido ou se irritado c o m a realidade " m i s t a " da h i s t ó r i a natural pre-
beleceria perto dali.) B e h n conta essa h i s t ó r i a do p r í n c i p e O r o o n o k o ,
sente no l i v r o : A p h r a B e h n conta que numa aldeia i n d í g e n a comeu b ú -
da Costa do O u r o , e sua bela esposa I m o i n d a , cruelmente escravizados
falo ( i m p r o v á v e l ) c o m grande quantidade de pimenta ( p l a u s í v e l ) ; "*e
e transportados para o Suriname, c o m o u m a s é r i e de acontecimentos
descreve o c l i m a d o S u r i n a m e c o m o u m a " p r i m a v e r a eterna", sem
dos quais f o i n ã o s ó "testemunha o c u l a r " c o m o p a r f i c i p a n t e . C o m
mencionar o calor exasperante e os in.setos a m e a ç a d o r e s . N ã o obstante
grande e l o q i i ê n c i a O r o o n o k o e x p õ e aos escravos da fazenda Parham as
a e n t o m o l o g i s t a teuto-holandesa deve ter sentido a l g u m a afinidade
indignidades e os fardos de sua vida: o trabalho á r d u o e a chibata; o fato
com a escritora inglesa. A m b a s foram p r o p r i e t á r i a s de escravos ou u t i -
de terem sido vendidos, e n ã o conquistados numa guerra digna; o fa-
lizaram o trabalho escravo durante a l g u m tempo. A m b a s lucraram c o m
to de pertencerem a "desconhecidos" e "degenerados" que os h u m i -
o c o m é r c i o i m p e r i a l de alguns p r o d u t o s e x ó t i c o s ( M e r i a n c o m es-
lham. Homens, mulheres e c r i a n ç a s o acompanham numa fuga pela sel-
p é c i m e s animais e vegetais; Behn c o m penas e borboletas que ofereceu
va (para v i v e r c o m o q u i l o m b o l a s ) , " " p o r é m os m i l i c i a n o s os recap-
ao teatro da corte e à s c o l e ç õ e s reais da Inglaterra)."" A m b a s se aba-
turam. O r o o n o k o é a ç o i t a d o sem d ó nem piedade pelo governador e por
laram m u i t o c o m o que v i r a m e o u v i r a m nas fazendas do Suriname, sem
seus companheiros africanos, que depois p õ e m pimenta em suas f e r i -
questionar diretamente o direito de ingleses e holandeses se estabele-
das. N u m a tentativa suicida de revanche, O r o o n o k o mata sua esposa
cerem a l i .

179
C o n t u d o , d i f e r i r a m quanto à maneira c o m o abordaram seus as- x a m ã ("sacerdote", segundo M e r i a n ) , tinha v á r i a s plantas especiais,
suntos. B e b n transformou a h i s t ó r i a de O r o o n o k o n u m romance é p i c o c o m o o tabaco, por exemplo, associado a e s p í r i t o s poderosos que por
capaz de interessar aos europeus,"*embora apresentasse u m pouco da meio do sumo e da f u m a ç a ele invocava e m seu ritual de p u r i f i c a ç ã o e
crueldade inerente à e s c r a v i d ã o e conferisse ao h e r ó i u m a v o z inde- nos processos de cura. Decerto n ã o parfilhava seus segredos c o m u m a
pendente para d e n u n c i á - l a . M e r i a n registrou certas p r á t i c a s das m u - Caraíba e de qualquer m o d o c u m p r i a muitas de suas f u n ç õ e s sugando
lheres ( a m e r í n d i a s e escravas vermelhas e negras) e m fragmentos c o n - coisas r u i n s do c o r p o de u m a pessoa doente, entrando e m transe e
cretos e forneceu u m relato s o l i d á r i o do aborto c o m o u m a f o r m a de sacudindo a c a b a ç a . " ' N o entanto, todos os c a r a í b a s tinham à d i s -
r e s i s t ê n c i a — u m fato d e s a g r a d á v e l que n ã o teria interessado m i n i m a - p o s i ç ã o certas plantas que, usadas c o m encantamentos, protegiam-nos
mente aos europeus. contra os e s p í r i t o s perigosos da natureza e lhes p r o p o r c i o n a v a m boa
H á duas outras mulheres que n ã o o u v i m o s : a caradja ou arauaque sorte na c a ç a , no p l a n t i o da mandioca e na v i d a famifiar."^
que M a r i a S i b y l l a M e r i a n levou consigo para A m s t e r d a m (e que de- A a m e r í n d i a t a m b é m teria passado por c e r i m ó n i a s nas quais se
certo manteve c o m o criada, n ã o c o m o escrava)"" e a africana que lhe u t d i z a v a m in.setos e que n ã o se pareciam c o m nada que M a r i a S i b y l l a
dera u m a larva prometendo-lhe u m a bela metamorfose. Que r e a ç õ e s conhecesse. Entre muitos povos de l í n g u a c a r a í b a e entre os arauaques
Oroonoko lhes provocaria? A a m e r í n d i a provavelmente acharia bizarra formigas e vespas faziam parte de u m r i t o de passagem para adoles-
boa parte da visita de B e h n aos í n d i o s , desde seu s i l ê n c i o sobre a m a n - centes de ambos os sexos. M e r g u l h a v a - s e a m ã o do j o v e m n u m
dioca produzida pelas mulheres e servida na r e f e i ç ã o a t é seu gesto de f o r m i g u e i r o ou prendiam-se formigas e/ou vespas e m seu peito. ( N o
descartar o x a m ã c o m o impostor. A africana talvez achasse correto os s é c u l o X I X s ó os meninos eram submetidos ao teste da vespa, o que t a m -
escravos f u g i r e m por i n s t i g a ç ã o de u m grande líder. É assim que as b é m pode ter o c o r r i d o e m é p o c a s anteriores.) Os waiyanas faziam uma
p r ó p r i a s h i s t ó r i a s dos q u i l o m b o l a s da P r i m e i r a É p o c a descrevem as f u - esteira de fibra, dando-lhe a f o r m a aproximada de u m figre, carangue-
gas, realizadas sempre c o m a ajuda de u m obia, ou e s p í r i t o protetor — j o , animal ou e s p í r i t o mífico e decorando-a c o m penas; nela p u n h a m
que O r o o n o k o n ã o menciona, e talvez por isso tenha sido recaptura- vespas entorpecidas c o m o s u m o de u m a planta. ( A s i l u s t r a ç õ e s
do."" P r o v a v e l m e n t e a africana t a m b é m a t r i b u i r i a mais i n i c i a t i v a a m o s t r a m algumas dessas esteiras.) A t a v a m - n a e n t ã o ao c o r p o do
I m o i n d a e mais firmeza às outras escravas. N a verdade lembraria que a j o v e m , e durante a c e r i m ó n i a as vespas se r e a n i m a v a m . " ' A s s i m trans-
fuga recente da c o l ó n i a P r o v i d ê n c i a e m 1693 deveu-se a m ã e K a à l a , m i f i a m à g e r a ç ã o seguinte a r e s i s t ê n c i a para a c a ç a e a f o r ç a da f e r f i l i -
cujo obia falou c o m os e s p í r i t o s da á g u a . " ' dade. Os insetos t a m b é m f a z i a m parte de u m a c e r i m ó n i a m a s c u l i n a
Mas o que as a m e r í n d i a s e africanas achariam da Metamorphosis, realizada a p ó s o nascimento de u m p r i m e i r o fílho. D e p o i s de passar
para a qual c o n t r i b u í r a m ? P r i m e i r a m e n t e p o d e r i a m querer ver seus o i t o dias deitado na rede, comendo apenas p ã o de mandioca e tomando
nomes e/ou povos mencionados na obra, c o m o M a r i e de I T n c a m a t i o n á g u a , o pai era submetido a u m teste de formigas e e m seguida se re-
fez c o m os i n d í g e n a s de Quebec descritos e m suas cartas. M e r i a n i n c l u i u galava n u m alegre festim."*"
os nomes de naturalistas e dos dois fazendeiros e m cujas terras observou Para a africana t a m b é m o m u n d o natural finha ufilidades especiais
determinados insetos; quanto a suas ajudantes n ã o europeias, designou- que lhe pareceria estranho separar de u m r e p o s i t ó r i o de i n f o r m a ç õ e s .
as simplesmente c o m o "escravas negras", e m vez de c h a m á - l a s de Jaco- Ela pensaria nas divindades e e s p í r i t o s associados à grande paineira do
ba, W a m b a , S i b i l l a , Tara, W o r a o u G r i e t j e ( c o n f o r m e u m a lista de Suriname e nas oferendas colocadas sob seus ramos. Sua m ã e talvez
africanos r e c é m - c h e g a d o s a Paramaribo e m 1699),"'e c o m o " í n d i a s " , fosse u m a das g u a r d i ã s e encantadoras da c o b r a papa (jibóia), um
e m vez de c a r a í b a s , arauaques, waraos, tairas, accawaus ou waiyanas. v e í c u l o sagrado para os deuses, e a africana saberia que n ã o se podia
N u m sentido mais amplo, a a m e r í n d i a talvez achasse estranho a l - molestar uma papa sem provocar a v i n g a n ç a divina. Seu pai deve ter
g u é m transmitir conhecimentos sobre plantas e insetos sem acrescen- revelado a seu i r m ã o o nome do a l i m e n t o p r o i b i d o (tal r e v e l a ç ã o cons-
tar o que os europeus chamavam de usos m á g i c o s e rituais. O p e i i , ou fituía o sinal da paternidade); o sapo, que no texto de M e r i a n os pretos

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simplesmente saboreavam, podia ser trefu ( p r o i b i d o ) para os homens m u n d o , que falavam de ratos almiscarados e tartarugas, decerto acharia
de sua f a m d i a . ' " que A n a n s i n ã o c o n t r i b u í a e m nada para a d i s c u s s ã o m o r a l . M a r i a
Para a africana o poder dos a r t r ó p o d e s era especialmente grande no S i b y l l a M e r i a n , t ã o interessada e m c o m p a r a ç õ e s culturais ("As batatas
â m b i t o das h i s t ó r i a s . " | O s negros] s ã o eloquentes pela p r ó p r i a na- [...] p o d e m ser cozidas c o m o cenouras; seu gosto lembra m u i t o casta-
tureza", o padre Labat escreveria ao discorrer sobre os anos que vivera nhas, p o r é m é mais doce"),'"observaria que o uso m á g i c o das plantas
na M a r t i n i c a . " " A personagem central das h i s t ó r i a s que os africanos por parte dos a m e r í n d i o s e africanos assemelhava-se ao uso das ervas
levaram consigo e desenvolveram era A n a n s i , a aranha, trapaceira por na medicina rural da A l e m a n h a ; que os a r t r ó p o d e s desempenhavam u m
e x c e l ê n c i a , que d á nome a todas as narrativas. W i l l e m Bosman, agente papel nas f á b u l a s de Esopo, embora infinitamente menos importante
c o m e r c i a l h o l a n d ê s que entre 1690 e 1702 esteve na costa da G u i n é , que o papel de A n a n s i ; que A n a n s i Cavalga o T i g r e tinha algumas
falou de u m a "aranha m e d o n h a e e n o r m e " que e n c o n t r o u e m seus analogias c o m a velha lenda europeia de Edis cavaigando.'"E percebe-
aposentos: "os negros [a] chamam de Ananse e acreditam que ela criou ria n í t i d a s d i f e r e n ç a s , c o m o as existentes entre os ritos de passagem dos
os primeiros h o m e n s " . " ' N o Suriname recitavam-se A n a n s i - t o r i durante adolescentes nas terras do Caribe e na Europa.
os ritos f ú n e b r e s , intercalando-os ao longo de u m ano entre oferendas N ã o sabemos a t é que ponto chegaram de fato as i n f o r m a ç õ e s de
para os mortos, festins e l a m e n t a ç õ e s ; podia-se r e c i t á - l o s t a m b é m e m M a r i a S i b y l l a M e r i a n .sobre as p r á t i c a s rituais dos carailias e africanos.
outras o c a s i õ e s , p o r é m nunca de dia. Para proteger-se e obter o que de- Possivelmente sua " í n d i a " lhe e x p l i c o u alguns usos m á g i c o s de deter-
seja Anansi usa de esperteza e à s vezes de maldade; escolhe alvos e víti- minadas plantas e sua "africana" lhe e x p ô s o c a r á t e r sagrado de certas
mas ora menores que ela (baratas) ora maiores (tigres e reis).""' cobras, assim c o m o ambas lhe falaram de abortivos; contudo, M e r i a n
U m a h i s t ó r i a que a africana da larva deve ter o u v i d o e m alguma d e c i d i u n ã o registrar essas coisas na Metamorphosis. N ã o podemos
v e r s ã o conta c o m o a aranha Anansi conseguiu cavalgar o T i g r e . E l a dis- t e s t á - l a nos casos mais familiares aos europeus, pois ela n ã o encontrou,
sera ao Rei que era capaz de tal proeza, e o R e i , desconfiado, i n f o r m o u ou pelo menos n ã o descreveu, lagartas numa paineira, e a bela cobra es-
o T i g r e , que por sua vez procurou A n a n s i e a i n q u i r i u , enfurecido. O Rei condendo-se sob a sebe de j a s m i n s e m sua i l u s t r a ç ã o 46 n ã o era uma
m e n t i u , explicou-lhe a aranha, acrescentando que gostaria m u i t o de es- j i b ó i a . Talvez temesse c o m p r o m e t e r sua c r e d i b i l i d a d e de naturalista
clarecer a s i t u a ç ã o , mas n ã o p o d i a i r a t é o p a l á c i o , p o i s estava t ã o c o m relatos de natureza m á g i c a . Eis a í uma fronteira que talvez lhe con-
doente que m a l conseguia se levantar. E n t ã o o T i g r e se p r o n t i f i c o u a viesse estabelecer.
l e v á - l a — montada e m seu dorso. N o caminho A n a n s i usou de outras Todavia, de f o r m a i n d i r e t a o e s p í r i t o de A n a n s i se faz m o m e n -
artimanhas para p ô r - l h e u m a r é d e a e, quando chegaram ao p a l á c i o do taneamente presente na Metamorphosis (assim c o m o as sensibilidades
rei, estava a t é chicoteando o Tigre.""' e as h i s t ó r i a s das a m e r í n d i a s e s t ã o presentes nas cartas de M a r i e de I T n -
Contudo, n e m sempre se s a í a vitoriosa, c o m o a africana deve ter c a m a t i o n ) . Vamos voltar à s grandes aranhas e ao b e i j a - f l o r da i l u s -
verificado e m outra h i s t ó r i a . Para manter sua c o n d i ç ã o de aranha/gente t r a ç ã o 18, u m a i m a g e m surpreendente que l o g o i n s p i r o u c ó p i a s eu-
mais esperta da terra, Anansi adquiriu toda a a s t ú c i a dos outros e a p ó s ropeias e mais tarde levou L i n n a e u s a d e n o m i n a r a e s p é c i e Aranea
numa c a b a ç a , a qual tentou inutilmente levar a t é o alto de uma paineira. aviculariaf''(O leitor pode v ê - l a nas i l u s t r a ç õ e s deste l i v r o . ) "Quando
Quando seu filho lhe explicou a maneira correta de carregar a c a b a ç a , n ã o encontram formigas, tiram pequenos p á s s a r o s dos ninhos e sugain-
A n a n s i compreendeu que n ã o havia reunido toda a esperteza do m u n - Ihes t o d o o sangue", M a r i a S i b y l l a e x p l i c o u . E depois identificou os
do e j a m a i s conseguiria reuni-la. E n t ã o se enfureceu e d e s p e d a ç o u a p á s s a r o s c o m o beija-flores, "o a l i m e n t o dos sacerdotes surinameses,
cabaça.'" que (assim me dis.seram) e s t ã o p r o i b i d o s de comer outra coisa".
G h k l da H i s t ó r i a do P á s s a r o adoraria essa e x p l i c a ç ã o de C o m o a É certo que os peii n ã o p o d i a m comer determinados alimentos, so-
Esperteza se Espalhou e talvez elaborasse sua p r ó p r i a v e r s ã o . M a r i e de bretudo carne,'"'mas n ã o que M e r i a n tenha visto u m a enorme t a r â n t u -
I T n c a m a t i o n , i m p a c i e n t e c o m as h i s t ó r i a s i n d í g e n a s da c r i a ç ã o do la peluda sugando o sangue de u m beija-fior. Se de fato v i u isso, o que

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aqueles quatro ovos e s t ã o fazendo no n i n h o do beija-flor, e m lugar dos pondendo a u m t í t u l o h o n o r í f i c o . A s a n o t a ç õ e s de seu j o v e m visitante
dois ovos c a r a c t e r í s t i c o s ? " ' O grande naturalista do s é c u l o x i x . H e n r y de F r a n k f u r t r e v e l a m que ela ainda se lembrava do casamento c o m
Walter Bates, observou uma Mygale avicularia ( c o m o essa aranha era amargura e ainda escondia a verdade sobre o d i v ó r c i o e a e x p e r i ê n c i a
chamada na é p o c a ) matando u m t e n t i l h ã o na margem de u m t r i b u t á r i o labadista. " M á e m i s e r á v e l " (iibel und kiimmerlich): assim Uffenbach
do A m a z o n a s , p o r é m acrescentou que o fato c o n s t i t u i u " u m a n o v i - resumiu sua vida c o m Graff. "Depois que seu m a r i d o m o r r e u ela se m u -
dade" para os brasileiros locais. Hoje e m dia os especialistas e m b i o l o - dou para a H o l a n d a " — o que n ã o corresponde à verdade."' Aparente-
gia tropical assinalam que u m ataque desse t i p o pode ocorrer, mas é mente M a r i a S i b y l l a incufiu nas filhas o senfimento de que acima de t u -
r a r o — q u e u m p á s s a r o n ã o seria a presa p r i n c i p a l ou uma presa c o m u m do eram M e r i a n . Quando o c i r u r g i ã o P h i l i p H e n d r i k s faleceu, por volta
de uma a v i c u l a r i a . " " N o caso de M e r i a n , portanto, parece que a l g u é m de 1715, a v i ú v a D o r o t h e a M a r i a usou durante a l g u m t e m p o o so-
lhe relatou o fato, a l g u é m versado nas h i s t ó r i a s de A n a n s i . Qualquer brenome M e r i a n , e m lugar do G r a f f paterno."'
que seja o grau de fidelidade de texto e i m a g e m à h i s t ó r i a natural, aqui A s r e l a ç õ e s de M a r i a S i b y l l a c o m Dorothea M a r i a e Johanna H e -
A n a n s i consegue seu a l i m e n t o — e u m a l i m e n t o da m e l h o r e s p é c i e , lena t ê m seus m i s t é r i o s , a t é porque n ã o temos autobiografias n e m car-
digno de u m x a m ã . tas e n d e r e ç a d a s à s filhas pela m ã e , c o m o no caso de G l i k l e M a r i e
Guyart. E x i s t e m , no entanto, cartas e m que M e r i a n fala sobre as filhas
e textos e m que estas falam sobre a m ã e . À s vezes ela d á a i m p r e s s ã o de
" E l a t e m 62 anos, e sem e m b a r g o c o n t i n u a sendo u m a m u l h e r que se v ê comandando uma extensa economia familiar: e m 1702 en-
cheia de energia [...j trabalhadeira e m u i t o c o r t ê s . " A s s i m Zacharias carregou P h i h p Hendriks de fornecer-lhe criaturas das í n d i a s Orientais
Conrad von Uffenbach, u m j o v e m erudito c o n t e r r â n e o de M e r i a n , re- para vender e e m 1712 i m p ô s a mesma i n c u m b ê n c i a a Johanna Helena,
gistrou em suas a n o t a ç õ e s de 1 7 1 1 , depois de visitar a artista-natura- que se encontrava e n t ã o no Suriname; e m 1703 designou u m a das fi-
lista e comprar seus livros e aquarelas. A g o r a ela era uma das figuras i n - lhas, provavelmente Dorothea M a r i a , para a j u d á - l a na t r a d u ç ã o ingle-
ternacionais de A m s t e r d a m , u m a pessoa que todos d e v i a m conhecer, sa da Metamorphosis, e naturalmente sabemos que Dorothea j á havia
u m caminho para se assisfir à s aulas de anatomia de Frederick Ruysch, colaborado c o m sua pintura no S u r i n a m e . " ' N o entanto, se agradeceu a
ver a c o l e ç ã o de N i c o l a s W i t s e n e c o n t e m p l a r os grandes mapas da seus informantes africanos e a m e r í n d i o s , bem c o m o a seus auxiliares
prefeitura. Quando Pedro, o Grande, v i s i t o u a cidade, seu m é d i c o parou escravos, na Metamorphosis M e r i a n n ã o disse uma s ó palavra sobre as
na Kerkstraat e a d q u i r i u algumas pinturas de M e r i a n para o czar.^^Em- filhas. S e r á que as v i a c o m o parte de si mesma? O u achava que n u m es-
bora durante a vida da autora as s u b s c r i ç õ e s de a l e m ã e s e ingleses n ã o tudo da natureza o trabalho conjunto de marido e m u l h e r era a c e i t á v e l
tenham sido suficientes para custear a t r a d u ç ã o do l i v r o do Suriname (reconheceu-o no Raupen), p o r é m a c o l a b o r a ç ã o entre m ã e e filha cor-
para suas respectivas l í n g u a s , a Metamorphosis se d i f u n d i u a m p l a - ria o risco de parecer pouco ou nada s é r i a ?
mente entre os naturalistas. U f i l i z a n d o suas velhas matrizes de cobre, Qualquer que seja a resposta, suas filhas ficaram inteiramente à
por volta de 1714 ela p u b l i c o u uma t r a d u ç ã o holandesa dos dois v o - vontade no terceiro v o l u m e do Rupsen, composto de o b s e r v a ç õ e s i n é -
lumes de suas Lagartas europeias (Der Rupsen), aos quais acrescentou ditas de M a r i a S i b y l l a , mas publicado a p ó s sua morte, e m 1717. Esse
algumas o b s e r v a ç õ e s n u m texto mais sucinto e impessoal. " A nobre e f o i realmente u m n e g ó c i o e m f a m d i a : "Dorothea M a r i a Henricie [sic,
engenhosa j o v e m " do j a r d i m de N u r e m b e r g e muitas outras e x p r e s s õ e s e m vez de H e n d r i k s ] , a filha c a ç u l a " , constava no f r o n t i s p í c i o c o m o
líricas desapareceram. " editora, assim designada pela m ã e , e o texto prometia u m a p ê n d i c e so-
A g o r a M a r i a S i b y l l a era J u f f r o u w M e r i a n — s e n h o r i n h a M e - bre insetos surinameses, "observados p o r sua f i l h a Johanna Helena
rian — , u m t í t u l o i n f o r m a l que regularizava sua c o n d i ç ã o a n ó m a l a . H e r o l t , que no m o m e n t o reside no Suriname". Deus levara sua m ã e ,
Geralmente u t i l i z a d o para uma j o v e m solteira, em alguns casos esse disse Dorothea no p r e f á c i o , e concedera o repouso a u m a m u l h e r que
tratamento t a m b é m se aplicava a u m a m u l h e r madura e sozinha, corres- trabalhara tanto. N ã o fossem seus dois anos de s a ú d e p r e c á r i a , o l i v r o

1H4 185
teria s a í d o antes; Dorothea estava completando a obra de M a r i a S i b y l - geralmente i n c l u í a m nas p á g i n a s iniciais u m s í m b o l o do i m p é r i o c o l o -
la para g á u d i o de todos os apaixonados por insetos."* A l g u m a s e d i ç õ e s nial h o l a n d ê s : povos n ã o europeus retratados n u m a postura de tributo,
do Rupsen trazem u m retrato da autora que mais uma vez acentua o ele- oferecendo presentes de suas terras — objetos que s e r ã o estudados pe-
mento familiar. Ela aponta para uma planta e m cujas folhas se v ê e m los europeus. N o f r onf is pício Horti mediei amstelodamenis rariorum
u m a c r i s á l i d a e u m a lagarta, e o e m b l e m a dos M e r i a n f i g u r a c o m [...] plantarum ( H i s t ó r i a das plantas raras dos hortos m é d i c o s de A m s -
destaque sobre sua c a b e ç a . " ' terdam ( 1 6 9 7 ) , de Jan C o m m e h n , u m africano e u m a s i á f i c o se ajoe-

As filhas herdaram seu e s p í r i t o de aventura. Johanna Helena par- l h a m para oferecer suas plantas a uma A m s t e r d a m personificada c o m o
rainha, enquanto u m í n d i o americano aguarda sua vez. A s fontes para
tiu para o Suriname e m 1711. Enquanto seu marido, Jacob Herolt, d i r i -
u m c a t á l o g o i m p e r i a l s ã o as d á d i v a s e s p o n t â n e a s das p o p u l a ç õ e s i n d í -
gia o orfanato de Paramaribo e administrava os bens deixados pelos pais
genas.""Na A m í - o m a , de R u m p h i u s (para a qual M e r i a n elaborou as
dos ó r f ã o s , Johanna coletava e s p é c i m e s de r é p t e i s , peixes e insetos, que
i l u s t r a ç õ e s p o r é m n ã o concebeu o f r o n t i s p í c i o ) , u m h o m e m de pele es-
esperava vender por u m b o m p r e ç o na Europa, e estudava e retratava i n -
cura se i n c l i n a para ofertar u m a grande cesta de conchas a u m grupo de
setos e plantas."''Parece que algumas de suas i l u s t r a ç õ e s , que deveriam
naturahstas, enquanto u m m e n i n o nu se ajoelha entre c r u s t á c e o s , m o -
constar do Rupsen e n ã o constam, foram publicadas sem i d e n t i f i c a ç ã o
luscos e tartarugas."'
nas obras p ó s t u m a s de sua m ã e (mais u m pouco de economia familiar).
Na Metamorphosis de 1719 n ã o h á nenhum africano ou c a r a í b a
Johanna Helena e Jacob H e n d r i k H e r o l t talvez tenham passado o resto
prostrado diante da autora, entregando-lhe insetos ou plantas. N u m a
de suas vidas no Suriname."'Entrementes, no outono de 1717, Dorothea
t r a d i c i o n a l fantasia renascentista pequenos querubins m o s t r a m - l h e
M a r i a partiu para S ã o Petersburgo, tornando-se a segunda esposa do
seus e s p é c i m e s e suas pinturas. Talvez O o s t e r w i j k achasse a i m a g e m
pintor s u í ç o Georg Gsell (que se hospedara c o m as duas filhas na casa
i m p e r i a l inadequada para o l i v r o de u m a mulher. Talvez a escolha re-
da Kerkstraat). A seu lado Dorothea deu aulas de arte na A c a d e m i a de
fletisse a p r ó p r i a i n q u i e t a ç ã o de M e r i a n (transmitida, digamos, por seu
C i ê n c i a s e pintou flores e p á s s a r o s para o gabinete de curiosidades do
a m i g o Schynvoet, que atuou c o m o c o n s u l t o r da Metamorphosis de
czar. Antes de deixar a Holanda vendera ao editor Johannes Oosterwijk,
1 7 1 9 ) " ' e m colocar seu l i v r o no centro de uma empresa i m p e r i a l . M a i s
de A m s t e r d a m , todos os quadros, gravuras e textos referentes aos livros
uma vez ela levanta v ó o . M a i s uma vez n ã o conseguimos p r e n d ê - l a .
de sua m ã e sobre insetos do Suriname e da Europa.""
Nos dois anos seguintes O o s t e r w i j k mudaria a i m a g e m da m u l h e r
naturahsta c o m suas e d i ç õ e s latinas das Lagartas europeias e da Meta-
morphosis surinamesa. A m b o s os livros apresentavam poemas e p r e f á -
cios elogiosos escritos por homens doutos. Os versos do m é d i c o j u d e u
Salomon Perez foram m u i t o a l é m dos que Christopher A r n o l d dedicara
à m u l h e r - m a r a v i l h a no Raupen de 1679. A m b o s os livros celebravam
mulheres que estudavam insetos. N o f r o n t i s p í c i o das Lagartas, conce-
bido por S i m o n Schynvoet, uma deusa discursa para u m a M a r i a S i b y l -
la idealizada e para suas filhas, que se encontram rodeadas de insetos.
N o fronfispício da Metamorphosis u m a M e r i a n j o v e m e t a m b é m idea-
lizada contempla os e s p é c i m e s no p r i m e i r o plano, enquanto n u m S u r i -
name i m a g i n á r i o outra M e r i a n persegue insetos c o m sua rede de c a ç a r
borboletas.""
Contudo, Oosterwijk fez algumas escolhas. Os livros sobre a na-
tureza pubUcados na H o l a n d a e m fins do s é c u l o x v i i e c o m e ç o do x v m

186 187
CONCLUSÃO

V i d a s distintas mas que transcorreram n u m c a m p o c o m u m . Os


azares da peste, os sofrimentos da enfermidade e a morte prematura de
parentes — tudo isso afetou o destino de G l i k l bas Judah L e i b , M a r i e
Guyart de r i n c a m a t i o n e M a r i a S i b y l l a M e r i a n . A s t r ê s conheceram a
e f e r v e s c ê n c i a das vozes urbanas e da palavra impressa. A s três v i v e n -
ciaram as estruturas h i e r á r q u i c a s que acrescentavam mais peso ao far-
do das mulheres. A s t r ê s receberam u m repentino chamado espiritual
que p r o m e t i a u m futuro melhor. A t r a j e t ó r i a de sua e x i s t ê n c i a apresen-
ta alguns aspectos comuns, c o m o a felicidade de possuir m u i t a energia
e longevidade. A s d i f e r e n ç a s se devem ao acaso, ao temperamento e so-
bretudo aos p a d r õ e s estabelecidos pelas culturas religiosas e expecta-
tivas vocacionais do s é c u l o x v n .
A s e m e l h a n ç a mais importante e s t á em seu m é t o d o de trabalho,
u m a v e r s ã o f e m i n i n a de u m estilo artesanal-comercial. A s t r ê s pos-
s u í a m i n d u b i t á v e l p e r í c i a : sabiam distinguir uma boa j ó i a , u m b o m bor-
dado, u m b o m inseto, entre outras coisas. A s t r ê s eram competentes
contadoras, capazes de registrar e m p r é s t i m o s e dotes de filhos o u ven-
das de l i v r o s , de quadros e de e s p é c i m e s , conforme a o c a s i ã o ; capazes
de trocar a contabilidade de cavalos, c a r r o ç a s e carroceiros pela de or-
namentos e c l e s i á s t i c o s , p r o v i s õ e s de alimentos, dotes de n o v i ç a s e per-
mutas de terra, quando m u d a r a m de v o c a ç ã o e de e n d e r e ç o . Estavam
sempre prontas para entrar rapidamente e m a ç ã o , para utilizar suas ha-
bilidades a f i m de suprir as necessidades do m o m e n t o , fosse enfrentan-
do a crise de perda de c r é d i t o e os p r e j u í z o s de u m i n c ê n d i o , fosse aten-
dendo ao desejo de embarcar n u m a nova aventura.
Para os citadinos a f l e x i b i l i d a d e profissional geralmente estava
associada à pobreza: o h o m e m que tinha de abandonar sua o c u p a ç ã o

189
para sobreviver era u m gagne-denier, disposto a fazer qualquer t i p o de
Essa c o n s c i ê n c i a artesanal talvez estivesse presente na a t e n ç ã o
t r a b a l b o . Para as c i t a d i n a s , ricas o u i n d i g e n t e s , a f l e x i b i l i d a d e era
que as t r ê s mulheres dedicaram ao ato de escrever e descrever. M e r i a n
essencial e estimulada por sua c r i a ç ã o . ' A o c o n t r á r i o de seus i r m ã o s ,
evidentemente v i a seus livros c o m o a c o n t i n u a ç ã o de seus trabalhos
que comumente passavam anos aprendendo u m o f í c i o , as meninas re-
manuais e o b s e r v a ç õ e s , ao passo que M a r i e de I T n c a m a t i o n p ó s seus
c e b i a m i n f o r m a ç õ e s g e n é r i c a s sobre u m a ou mais advidades e eram
ensinamentos no papel ao elaborar as obras p e d a g ó g i c a s . C o n t u d o ,
treinadas para cuidar do lar: assimilavam as t é c n i c a s artesanais que ob-
M a r i e e G l i k l bas Judah L e i b escreveram sem ter estudado f o r m a l -
servavam na casa dos pais ou dos p a t r õ e s . N ã o se esperava que u m dia
mente r e t ó r i c a , g r a m á t i c a ou r e d a ç ã o . T i n h a m seus modelos — conta-
utilizassem sua f o r ç a de trabalho na casa onde entrariam c o m o esposa,
dores de h i s t ó r i a s , s e r m õ e s , livros populares e (no caso de M a r i e ) a l i n -
criada ou segunda mulher? G l i k l bas Judah L e i b e M a r i e Guyart certa-
guagem das ursulinas — , mas a c o m p o s i ç ã o de seus manuscritos e x i g i u
mente v i v e r a m dessa maneira, e a r e l i g i ã o c o n t r i b u i u para incentivar
c r i t é r i o s de narrativa e d i á l o g o . Talvez, c o m o M a r i e afirmou, o " e s p í r i -
sua flexibihdade. Os judeus tinham de ser r á p i d o s na i m p r o v i s a ç ã o , j á
to da G r a ç a " a tenha feito escrever c o m o ele quis; p o r é m , se assim f o i ,
que v i v i a m e m m e i o à s incertezas da E u r o p a c r i s t ã . E u m a c a t ó d c a
agiu empregando sua habilidade.
h e r ó i c a tinha de se dispor a servir onde e quando Deus a chamasse.
M a r i a S i b y l l a M e r i a n era u m p o u c o d i f e r e n t e , p o i s , e m b o r a A r e l i g i ã o teve enorme i n f l u ê n c i a sobre essas t r ê s mulheres. A

aprendesse sozinha a criar e observar insetos, durante anos e anos re- c o n d i ç ã o de j u d i a conferiu a G l i k l bas Judah L e i b uma p o s i ç ã o i n c ó -
cebeu f o r m a ç ã o a r t í s t i c a da f a m d i a . Sua f l e x i b i l i d a d e se estendeu à moda e v u l n e r á v e l na Europa c r i s t ã . Sua auto-imagem c o m o filha de Is-
agricultura, durante sua estada entre os eleitos labadistas, mas ela c o n - rael deu-lhe uma identidade profunda, mediante a qual se filtraram o u -
v i v e u p r i n c i p a l m e n t e c o m as t é c n i c a s que p e r t e n c i a m ao a t e l i ê do tras identidades — de m u l h e r , c o m e r c i a n t e , residente n u m p a í s de
artista v e r s á t i l no s é c u l o x v n . Tornou-se pintora, gravadora, editora, l í n g u a a l e m ã . G l i k l se aproveitou do que u m a r e l i g i ã o r a b í n i c a descen-
marchande, professora — c o m o o p a i , M e r i a n , e o padrasto. M a r r e i — tralizada p e r m i t i a a seu sexo: o r a ç ã o , a s a n t i f i c a ç ã o da casa e do corpo
e bordadeira — c o m o a m ã e . c o m o esposa, caridade, leitura e, e m seu ca.so, c o n d i ç õ e s para escrever.
A i n d u b i t á v e l p e r í c i a caracterizava o trabalho do a r t e s ã o e e m ge- Das novidades religiosas que e m p o l g a r a m as comunidades judaicas da
ral era r e f o r ç a d a , no caso dos homens, pela a p r o v a ç ã o das guildas. A l - Europa no s é c u l o x v i i — a v i n d a de Sabbatai Z e v i , a Cabala e o pensa-
gumas o c u p a ç õ e s femininas tinham suas p r ó p r i a s guildas, e à s vezes as mento radical—apenas a p r i m e i r a teve u m papel importante e m sua v i -
mulheres eram membros s u b s i d i á r i o s de guildas mistas. G l i k l , M a r i e e da. Essa t a m b é m pode ter sido uma v a r i á v e l relacionada c o m o sexo. A
M a r i a S i b y l l a estavam entre as muitas mulheres que, por u m m o t i v o ou n o t í c i a do esperado messias difundiu-se amplamente, p o r é m as ideias
outro, n ã o pertenciam a tais o r g a n i z a ç õ e s . E m H a m b u r g o havia guildas e os debates c a b a l í s t i c o s sobre as heresias de Spinoza e de conversos
de comerciantes para c r i s t ã o s , mas n ã o parajudeus ( m u i t o menos para e m geral n ã o chegavam aos textos destinados ao p i í b l i c o f e m i n i n o (pe-
j u d i a s ) ; u m a m u l h e r que ajudava o cunhado a administrar uma trans- lo menos é o que parece; talvez as mulheres tivessem mais c o n h e c i -
portadora e m Tours n ã o pertencia a nenhuma guilda, conquanto esse mento desses assuntos do que sabemos).
cunhado pertences.se. M e r i a n teve a oportunidade de ingressar n u m a F o r a m os t i p ó g r a f o s e os tradutores i í d i c h e s que p e r m i t i r a m a
g u i l d a de pintores que na verdade fazia parte de u m c í r c u l o de N u r e m - G l i k l ter maior acesso aos elementos centrais do pensamento j u d a i c o .
berg interessado e m fundar uma academia de arte. A s s i m , G l i k l , M a r i e E v i m o s c o m o este a l i m e n t o u n ã o s ó seus argumentos morais c o m o ain-
e M a r i a S i b y l l a a d q u i r i r a m sua p e r í c i a na juventude, praticando n u m da sua subjetividade. A r e f l e x ã o sobre o L i v r o de J ó ajudou-a a reco-
ambiente e m que eram t a m b é m administradoras do lar — u m ambiente nhecer a p r ó p r i a i n q u i e t a ç ã o ao l o n g o dos anos.
e m que as caixas de lagartas .se espalhavam entre os utensdios de c o z i - M a r i e G u y a r t de I T n c a r n a f i o n aproveitou-se de dois dos c a m i -
nha e os pareceres sobre pequenas p é r o l a s eram formulados enquanto
nhos que a igreja h i e r á r q u i c a da Contra-Reforma deixara abertos para
se amamentava u m b e b ê . A c o n f i r m a ç ã o (por parte das freiras ou dos
as mulheres: a conquista da santidade vivendo no m u n d o c o m o esposa
colegas naturalistas) ocorreu mais tarde.
e m ã e v i ú v a ; e o d e s e n v o l v i m e n t o de u m a v o c a ç ã o magisterial c o n -

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que pudessem comprometer a m ã e ou constranger os filhos, e o m i t i r i n -
v i v e n d o c o m c e l i b a t á r i a s n u m a o r d e m nova. M a r i e p e r c o r r e u esses
teiramente alguns assuntos." N o caso de M a r i a S i b y l l a M e r i a n os "es-
caminhos ao m á x i m o , apri morando-se na disciplina a s c é t i c a e na v i s ã o
c â n d a l o s " que marcaram a vida n ã o eram s e c u n d á r i o s . E x p ó - l o s pode-
m í s t i c a e depois, n u m apostolado h e r ó i c o , levando seus ensinamentos
ria constituir u m a a m e a ç a para sua identidade de naturalista, pintora e
a u m lugar distante.
mulher. A d e m a i s , deve ter pensado, as filhas n ã o precisavam que lhes
Desde o i n í c i o tais p r á t i c a s se refletiram sobre sua e l o q u ê n c i a e
deixasse u m registro de seus reveses. A o c o n t r á r i o de Claude M a r t i n ,
sua p e r c e p ç ã o de si mesma. A p u n i ç ã o c o r p o r a l , as conversas c o m
que tentou arrancar de M a r i e de 1' Incarnation os segredos de u m p a i que
Cristo e as v i s õ e s t e o l ó g i c a s logo se traduziram e m conversas c o m seu
n ã o conhecera, as filhas de M e r i a n assistiram a tudo ao lado dela. Sua
confessor e e m textos sobre u m " e u " que passava da atividade intensa
d i s c r i ç ã o , c o m o assinalei, f o i uma c o n d i ç ã o de sua liberdade.
à passividade. A o longo do processo a r e l i g i ã o forneceu-lhe palavras
A s r e l a ç õ e s e e x p e r i ê n c i a s familiares determinaram a f o r m a b á s i -
para interpretar o abandono de seu f d h o e suas fases de desespero. N o
ca dessas vidas do s é c u l o x v i i , p o r é m na p r á t i c a r e v e l a r a m grandes
final ela compusera a h i s t ó r i a de u m " e u " ativo e passivo ao mesmo
v a r i a ç õ e s . Os í n d i c e s de r e p r o d u ç ã o das três mulheres m o s t r a m c o m o
tempo e aprendera a falar e escrever sobre os m i s t é r i o s de Deus e m qua-
a cultura e a escolha pessoal p o d i a m afetar as c o n d i ç õ e s da fertilidade
tro l í n g u a s . A p r o x i m i d a d e de u m P a r a í s o terrestre, que G l i k l l o g o
nos i n í c i o s da era moderna: G l i k l c o m suas catorze g e s t a ç õ e s e doze fi-
tivera de abandonar, n ã o desaparecera t o t a l m e n t e quando M a r i e de
lhos; a j o v e m v i ú v a M a r i e , que nunca mais se casou, c o m u m f i l h o ;
1' Incarnation m o r r e u na mata canadense.
M a r i a S i b y l l a c o m duas filhas (e, pelo que sabemos, apenas duas ges-
Formas de uma espiritualidade protestante radical — aberta a am-
t a ç õ e s ) e m mais de vinte anos de vida conjugal. A espantosa fecundi-
bos os s e x o s — i r r o m p e r a m na v i d a de M a r i a S i b y l l a M e r i a n c o m f o r ç a
dade de G l i k l e H a i m deve-se e m parte à práfica j u d a i c a do casamento
especial quando ela estava na casa dos trinta e dos quarenta. P r i m e i r o
precoce. A d e c i s ã o dos Graff de utilizar alguma f o r m a de controle da
f o i sua extasiada c o n s c i ê n c i a da p r e s e n ç a divina na natureza — cons-
natalidade ocorreu numa é p o c a e m que casais protestantes de Genebra
c i ê n c i a que i m p r e g n o u seu trabalho sobre criaturas rastejantes e infe-
e da Inglaterra tentavam fazer a mesma coisa.
riores. Depois f o i a c o n v e r s ã o à seita labadista e o r o m p i m e n t o c o m o
m a r i d o , propriedade familiar e o r g u l h o mundano. A n o s a p ó s deixar a N o s três casamentos as p r e s c r i ç õ e s h i e r á r q u i c a s de o b e d i ê n c i a por

comunidade e adotar o distanciamento mais frio do d e í s m o , uma ener- parte da m u l h e r se desgastaram c o m a e x p e r i ê n c i a da empresa c o m u m :

g i a e u m a c o n v i c ç ã o semelhantes à s dos labadistas a n i m a r a m seu a j o a l h e r i a e os e m p r é s t i m o s e m H a m b u r g o , a tecelagem de seda e m

bizarro projeto de viajar para as selvas do Suriname a f i m de desen- Tours, as gravuras e p u b l i c a ç õ e s e m Nuremberg e Frankfurt. Pelo que

volver suas pesquisas. M a r i e Guyart nos diz, seu marido t a m b é m a deixava livre para dedicar
v á r i a s horas à d e v o ç ã o r e l i g i o s a ; e Johann Andreas G r a f f respeitava
C o m certeza esses m o v i m e n t o s religiosos c o n d u z i r a m M a r i a
claramente as descobertas de insetos realizadas pela esposa. Entretanto
S i b y l l a à a u t o - r e f l e x ã o e ao d i á l o g o interior. Entre os labadistas cada
tais arranjos n ã o resultam necessariamente n u m m a t r i m ó n i o feliz. S ó
m e m b r o n ã o devia falar de sua c o n d i ç ã o de penitente e regenerado? M a s
G l i k l , que v i u o marido pela p r i m e i r a vez no dia do noivado, descreveu
no papel ela aparentemente deixou apenas o registro de seu trabalho, c o m
anos de afetuosa i n t i m i d a d e perpassada por u m a corrente de p a i x ã o .
u m p r e f á c i o sobre a pesquisa passada, n ã o uma autobiografia c o m o Eu-
M a r i e " a m o u " o m a r i d o durante seu breve ano de v i d a conjugal, p o r é m
kleria, de A n n a M a r i a van Schurman. Depois da fase labadista M e r i a n
sofreu c o m a n u v e m negra da " d e s g r a ç a " que envolveu outra mulher.
apresentou fragmentos para consumo p ú b l i c o : sua estirpe, seus estudos
Quanto a M a r i a Sibylla, o casamento c o m u m h o m e m que conhecera
da natureza, sua viagem. Quanto ao casamento e à e x p e r i ê n c i a religiosa,
havia alguns anos resultou e m desastre, esbarrando talvez n u m a p r o -
deixou vagas referências, r e p r e s e n t a ç õ e s e r r ó n e a s e a t é mentiras.
funda incompafibilidade sexual e c o m certeza e m sua c o n v e r s ã o .
N o s casos de G l i k l bas Judah L e i b e M a r i e de f l n c a r n a t i o n a ela-
b o r a ç ã o de uma autobiografia n ã o a m e a ç a v a uma empresa c o m e r c i a l O pai i n s e n s í v e l e distante que freqiientava as h i s t ó r i a s da f a m í l i a

ou u m a v o c a ç ã o magisterial. Bastava a l u d i r a certos fatos dehcados, nos p r i m ó r d i o s da era moderna n ã o figura nessas casas. J á a voz mater-

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na varia e m t o m e intensidade. Contando mais c o m u m casamento pre-
Sdiylia n ã o fizeram da p r o m o ç ã o f e m i n i n a seu p r i n c i p a l objetivo. C o n -
coce que c o m uma h e r a n ç a tardia para levar sua prole a viver segundo
luilo, suas h i s t ó r i a s revelam outras possibilidades de v i d a no s é c u l o
os preceitosjudaicos, G l i k l deu v a z ã o a seu amor, ansiedade, raivae dor
XVM, j á que elas batalharam sua nova maneira de viver nas margens.
para que os fdhos soubessem c o m o se sentia e o que queria deles. N ã o
" M a r g e n s " e m que sentido? Para c o m e ç a r , essas mulheres es-
era uma casa tranquila. N ã o conseguindo t i n g i r i n d i f e r e n ç a pelo fdho,
tavam longe dos centros de poder p o l í f i c o , real, c í v i c o e senatorial —
M a r i e G u y a r t d i s c u t i u incessantemente a s i t u a ç ã o de Claude e suas
( i l i k l c o m o j u d i a , M a r i e e M a r i a S i b y l l a c o m o plebeias. Decerto o Es-
o b r i g a ç õ e s e m r e l a ç ã o a ele c o m seus confessores e p o r f i m c o m o
tado e seus governantes as afetaram sob importantes aspectos. G l i k l bas
p r ó p r i o Claude, escudada na c o r r e s p o n d ê n c i a . Nas cenas de i n f â n c i a
Judah L e i b e outros judeus precisavam de uma m o n a r q u i a ou u m go-
que ambos recordaram o m e n i n o chorava e reclamava, enquanto a m ã e
verno protetor para sobreviver. A c o r d o s de c r é d i t o c o m judeus da corte,
c a l m a m e n t e a f i r m a v a a vontade d i v i n a . O t o m m a t e r n a l de M a r i a
c o m o os Oppenheimer e m Viena, p o d i a m acarretar r u í n a ou lucro para
S i b y l l a é mais difícil de se ouvir, embora o afeto c o m que Dorothea se
( i l i k l ; e e m v i r t u d e do segundo casamento c o m o c o m e r c i a n t e real
referiu a ela a p ó s sua morte talvez estivesse presente na voz da m ã e . E
I lirsch Levy, em M e t z , sua estabilidade e c o n ó m i c a dependeu durante
certo, contudo, que M e r i a n conquistou a lealdade das filhas, propor-
a l g u m t e m p o do soberano f r a n c ê s . M a r i e de f l n c a r n a t i o n e M a r i a
cionando-lhes ao mesmo t e m p o os meios n e c e s s á r i o s para levarem
S i b y l l a M e r i a n n ã o poderiam seguir sua v o c a ç ã o e m Quebec e no Suri-
u m a v i d a independente.
name sem a p r e s e n ç a p o l í t i c a da Europa nessas terras. M e r i a n cogitou
M e r i a n t a m b é m c r i o u c o n d i ç õ e s para que as fdhas pudessem de- no p a t r o c í n i o da rainha A n a da I n g l a t e r r a para sua Metamorphosis,
senvolver seu talento e desempenhar seu papel de ardstas e naturalis- procurou leitores entre os burgomestres de A m s t e r d a m e certamente
tas. A l é m disso e de seu exemplo, n ã o fez g e n e r a l i z a ç õ e s sobre a ca- deve ter apreciado o interesse do czar Pedro por ela pouco antes de ela
pacidade f e m i n i n a . M a r i e de f l n c a r n a t i o n f o i mais longe, n ã o s ó morrer. Quanto a uma efetiva i n f l u ê n c i a polífica, s ó M a r i e de f l n c a r -
inspirando à sobrinha M a r i e Buisson a d e c i s ã o de entrar para o c o n - nation teve a oportunidade de aconselhar governadores — e i n f o r m a l -
vento, c o m o ainda retratando ursulinas francesas e a m e r í n d i a s conver- mente, durante os anos que v i v e u no C a n a d á . G l i k l l i m i t o u - s e a pedir
tidas c o m o pregadoras e mestras a p o s t ó l i c a s . G l i k l bas Judah L e i b era um favor a u m j u d e u da corte.
caridosa e melumedet ( " i n s t r u í d a " ) , c o m o nos i n f o r m a seu o b i t u á r i o , e
As mulheres t a m b é m estavam consideravelmente longe dos cen-
ultrapassou o l i m i t e da maioria das j u d i a s e m sua e x p e r i ê n c i a literária
tros formais de aprendizagem e de i n s t i t u i ç õ e s voltadas para a defi-
de "discutir c o m Deus". N o entanto, ao elogiar a filha, referiu-se ape-
n i ç ã o cultural. G l i k l falou c o m estudiosos do Talmude basicamente à
nas à generosidade e à d e v o ç ã o de Esther. G l i k l serviria de e s t í m u l o à
mesa de jantar e na galeria das mulheres o u v i u seus s e r m õ e s . M a r i e de
i n o v a ç ã o feminista s ó uns duzentos anos depois.
I T n c a m a t i o n falou c o m doutores e m teologia durante a c o n f i s s ã o , no
Para algumas figuras do .século x v n a melhoria da c o n d i ç ã o f e m i -
p á t i o do convento ou e m sua c o r r e s p o n d ê n c i a ( c o m o c o m o filho) e na
nina estava no centro de qualquer reforma. N a esteira de muitas afir-
capela das ursuhnas ouviu-os pregar. M e r i a n devia seus conhecimen-
m a ç õ e s de salonnières sobre os m é r i t o s das mulheres, e m 1673, u m ano
tos aos livros existentes na biblioteca da f a m í l i a e a u m douto cliente de
a p ó s a m o r t e de M a r i e de f l n c a r n a t i o n e m Quebec, o cartesiano
Nuremberg. E m seus lílfimos anos aproximou-se mais dos centros de
F r a n ç o i s PouUain de L a Barre p u b l i c o u e m Paris De l 'égalité des deux
i n t e r c â m b i o erudito — o j a r d i m b o t â n i c o , os gabinetes de curiosidades
sexes. E m 1694 Serious proposul to the ladiesfor the advancement of
, nuis n ã o p ô d e freqiientar a universidade. N o s t r ê s casos, v i s õ e s e
their true and greatest interest [ S é r i a proposta à s mulheres para o pro-
arte fatos culturais — a autobiografia c o m h i s t ó r i a s , a e x p r e s s ã o mísfi-
gresso de seu verdadeiro e maior interesse], de M a r y A s t e l l , f o i l a n ç a -
ca e os textos do N o v o M u n d o , os ciclos vitais dos insetos e m suas plan-
do e m Londres, pleiteando a c r i a ç ã o de u m s e m i n á r i o para dar à s m u -
tas — foram criados a parfir de u m a p o s i ç ã o m a r g i n a l . Contudo, essa
lheres uma " f o r m a ç ã o erudita".'
p o s i ç ã o n ã o tinha a esterilidade ou o baixo nível de qualidade a t r i b u í -
Apesar de sua d e d i c a ç ã o a amigas e parentas, G l i k l , M a r i e e M a r i a dos à palavra margem na a c e p ç ã o da economia moderna que pensa em

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termos de lucros. A o c o n t r á r i o , era u m a r e g i ã o l i m í t r o f e entre d e p ó s i - savam o dia inteiro "tagarelando" c o m suas escravas africanas? O u se
tos culturais que p e r m i t i a m novos cultivos e h í b r i d o s surpreendentes. pertencesse a u m a c o n g r e g a ç ã o setecenfista no S u r i n a m e , onde u m
Cada qual a sua maneira, essas mulheres apreciaram o u adotaram n ú m e r o n o t á v e l de judeus eram e n t ã o courlingen — quer dizer, "pes-
uma p o s i ç ã o m a r g i n a l , reconstituindo-a c o m o u m centro localmente soas de cor l i v r e s " ? ) . '
definido. Para G l i k l o mais importante eram as c o n e x õ e s e a Gemeinde M a r i e de ITncarnafion e M a r i a S i b y l l a M e r i a n constataram que as
judaicas. Para M a r i e eram o convento das ursulinas e o páfio de a m e r í n - margens e n v o l v i a m verdadeiras r e l a ç õ e s de poder c o m povos n ã o eu-
dias e francesas na mata canadense, bem longe da politesse da F r a n ç a . lopcus — M a r i e c o m o mestra matriarcal de a m e r í n d i o s , M a r i a S i b y l l a
Para M a r i a S i b y l l a eram uma c o l ó n i a labadista na fronteira da H o l a n - como p r o p r i e t á r i a de escravos africanos, c a r a í b a s e arauaques. Partin-
da e depois os rios e florestas tropicais do Suriname — lugares onde n ã o do de sua e x p e r i ê n c i a c o m o mulheres, inclusive de conversas c o m o u -
se instalou para sempre mas que m u d a r a m sua vida. E m cada u m dos t ras mulheres, e de sua postura vocacional — o entusiasmo m i s s i o n á r i o
casos a pessoa se libertou u m pouco das r e s t r i ç õ e s das hierarquias eu- dc II ma, o esfilo c i e n t í f i c o da outra — , ambas elaboraram formas de ver
ropeias, deixando-as de lado. povos n ã o europeus que atenuavam as p r e t e n s õ e s de superioridade ex-
Naturalmente n ã o havia margens .só para as mulheres. M u i t o s eu- pressas por europeus c o n t e m p o r â n e o s : a e x t r a v a g â n c i a do universalis-
ropeus estavam distantes dos centros de poder em r a z ã o de b e r ç o , pos- mo de M a r i e de I T n c a r n a f i o n , a i n d i f e r e n ç a à c l a s s i f i c a ç ã o selva-
ses, o c u p a ç ã o e credo, e alguns escolhiam ou aceitavam u m a p o s i ç ã o g e m / c i v i l i z a d o na o b s e r v a ç ã o e t n o g r á f i c a de M a r i a S i b y l l a M e r i a n .
marginal. Era o caso dos judeus (exceto os da corte), dos m i s s i o n á r i o s A l g u m a s perspecfivas h i s t ó r i c a s p o d e m nos levar a procurar u m
j e s u í t a s , dos labadistas e dos naturalistas e n t u s i á s t i c o s que e n c o n - li nico conjunto de normas referentes a conhecimento ou r e p r e s e n t a ç ã o
tramos nas p á g i n a s deste l i v r o . M a s as "mulheres nas margens" — ca- i|uc fundamente as t r ê s posturas. O u , na falta desse, a situar as t r ê s pos-
so e m que a r e p r e s s ã o era mais forte — podem revelar c o m particular iiiras n u m a escala de "mais v e l h a " e "mais nova" o u mais o u menos
clareza o que estava e m j o g o para ambos os sexos. viável na é p o c a . Devemos resisfir a tal i n t e r p r e t a ç ã o e m p r o l da c o m -
N ã o se pode fugir totalmente dos centros e das hierarquias. M i - pleta simultaneidade dos t r ê s p a d r õ e s . P a d r õ e s variantes nos alertam
chel Foucault teve u m a clara p e r c e p ç ã o do centro do poder no s é c u l o para m o b i l i d a d e , mistura e c o n t r o v é r s i a e m culturas europeias. T a m -
X V I I quando disse que se deveria c o n c e i t u á - l o n ã o s ó "na e x i s t ê n c i a b é m d e i x a m e s p a ç o para a i n s e r ç ã o de olhos n ã o europeus que de-
p r i m á r i a de u m p o n t o central, n u m a ú n i c a fonte de soberania", mas v o l v e m o olhar dos europeus, c o m o v i m o s ao reconstruir a resposta de
t a m b é m c o m o onipresente e m " r e l a ç õ e s de f o r ç a " no â m b i t o da so- Khit)nrea e U t h i r d c h i c h a M a r i e de I T n c a r n a r i o n e das c a r a í b a s ,
ciedade."* G l i k l bas Judah L e i b , M a r i e G u y a r t de F l n c a r n a t i o n e M a r i a arauaques e africanas a M e r i a n .
S i b y l l a M e n a n t a m b é m levavam consigo r e l a ç õ e s de poder. N o caso de A narrafiva deste l i v r o — de G l i k l bas Judah L e i b a M a r i e de I T n -
G h k l v i m o s sua r e l a ç ã o c o m n ã o - j u d e u s ; nos casos das t r ê s mulheres carnation e a M a r i a S i b y l l a M e r i a n — segue u m a o r d e m diferente da
v i m o s suas c o n e x õ e s , i m a g i n á r i a s ou reais, c o m povos n ã o europeus. cronologia h i s t ó r i c a : a m u l h e r de Tours nasceu pelo menos uma gera-
G l i k l dedicou sua energia à c r i a ç ã o de u m campo l i m i t a d o , u m eruv ç ã o antes de suas c o n t e m p o r â n e a s de H a m b u r g o e Frankfurt. A c h e i i m -
l i t e r á r i o , que sustentaria a ela, à f a m d i a e a seus pares judeus n u m m u n - portante retratar as e s t r a t é g i a s de u m a j u d i a nos c o n f i n s descon-
do d o m i n a d o pelos c r i s t ã o s e repleto de perigos. Foi isso que conside- loi liíveis da E u r o p a antes de considerar os paradoxos de c r i s t ã s que
rou fundamental na h i s t ó r i a do talmudista piedoso, e m que chegou a i n - c r u / a r a m o A d â n f i c o para estabelecer r e l a ç õ e s incertas c o m a m e r í n -
ventar u m m u n d o invertido, c o m os judeus no topo. E m sua nartativa dios e africanos. M a s essa o r d e m a n a l í t i c a n ã o corresponde a u m Pro-
n ã o p r o c u r o u repensar a suposta superioridade dos europeus e m re- gresso da M u l h e r , c o m o se u m estilo de v i d a suplantasse o o u t r o da
l a ç ã o aos "selvagens". Sua empatia c o m o sofrimento n ã o se estendeu mesma f o r m a que os c r i s t ã o s achavam que a igreja suplantava a sina-
a lugares distantes do eruv. (Teria remanejado essa h i s t ó r i a se fosse goga e a nova a l i a n ç a suplantava a antiga. Cada uma dessas mulheres
u m a das fazendeiras j u d i a s do S u r i n a m e , que, segundo consta, pas- consiiiiii u m exemplo, c o m as p r ó p r i a s virtudes, iniciativas e falhas, e

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I liench, grande c a p i t ã o da tribo huroniana que e m 1697 se estabeleceu
os motivos europeus do s é c u l o x v i i perpassam suas vidas: melancolia,
em Nolre Dame de la Jeune Lorette, perto de Quebec. M e u pai recebeu-
forte c o n s c i ê n c i a d o eu, c u r i o s i d a d e , e s p e r a n ç a e s c a t o l ó g i c a , a re-
o de sua m ã e , L a O u i n o n k i e , m u l h e r de Paul Ondaouenhout, que mor-
f l e x ã o sobre a p r e s e n ç a e as i n t e n ç õ e s divinas no universo. N ã o tenho
reu por volta de 1871 aos 84 anos"."
favorita.
As aquarelas e p u b l i c a ç õ e s de M a r i a S i b y l l a M e r i a n j á eram b e m
conhecidas na E u r o p a por o c a s i ã o de sua m o r t e e mais famosas se
tornaram depois que as Lagartas europeias eaMetamorphosis do Suri-
N u m a é p o c a elas f o r a m de carne e osso; depois deixaram apenas
name f o r a m publicadas e m h o l a n d ê s , f r a n c ê s e l a d m , c o m duas e d i ç õ e s
l e m b r a n ç a s , retratos, seus textos e sua arte. Enquanto M a r i e de 1' Incar-
l a n ç a d a s na d é c a d a de 1770." Linnaeus referiu-se a seus livros, deu a
nation era amortalhada para baixar à sepultura, as pessoas se apode-
tuna mariposa o nome t r i v i a l (ou e s p e c í f i c o ) de M e r i a n e l l a e aprovou
ravam de seus livros de o r a ç õ e s , r o s á r i o s , medalhas e roupas, vendo-os
suas pinturas de insetos na c o l e ç ã o da rainha L o u i s a U l r i k a . T a m b é m
c o m o r e l í q u i a s preciosas. D o outro lado do A t l â n d c o , no convento das
i n c l u i u as e d i ç õ e s de gravuras de M e r i a n entre aquelas que por seu
ursulinas e m Tours, sua sobrinha M a r i e Buisson avistou-a pela ú l t i m a
custo a m e a ç a v a m as c i ê n c i a s naturais: " N ã o s ã o poucos os filhos da
vez n u m a v i s ã o . " A s ursuhnas copiaram a autobiografia espiritual que,
b o t â n i c a que, criados e m c i r c u n s t â n c i a s modestas, se v ê e m obrigados
c o n f o r m e seu desejo, deveria ser q u e i m a d a ; c o m o v i m o s , o f i l h o ,
a passar sem livros t ã o caros"." - ' Í M . . Í M . ' M - Í Í Í- .
Claude M a r t i n , editou-a, acrescentou-lhe novos textos e p u b l i c o u - a ,
P r e ç o n ã o representava p r o b l e m a para Pedro, o Grande, e seus
juntamente c o m suas cartas e outros escritos. A s s i m , suas obras se d i -
sucessores, que e m 1736 enviaram Dorothea M a r i a Gsell a A m s t e r d a m
f u n d i r a m pelos conventos das ursulinas e de outras religiosas, c o m o as
c o m a m i s s ã o de adquirir mais aquarelas de M e r i a n para a c o l e ç ã o da
i r m ã s do R o s á r i o e as carmelitas, cujas assinaturas a d o r n a m o f r o n -
A c a d e m i a de C i ê n c i a s de S ã o Petersburgo." Expostas na Kunstkam-
t i s p í c i o de e d i ç õ e s existentes nas bibliotecas m o n á s t i c a s e nas salas de
iner, ao lado de obras de Rembrandt, as pinturas de M e r i a n certamente
l i v r o s r a r o s . ' Q u a n d o chegou a M o n t r e a l , e m 1734, o j o v e m Pierre
c o n s t i t u í r a m uma fonte de i n f o r m a ç ã o para os militares russos interes-
Sartelon, sulpiciano f r a n c ê s , levava na bagagem u m manuscrito da au-
sados e m l e p i d ó p t e r o s . Para o escritor V l a d i m i r N a b o k o v , que durante
tobiografia, que, a p ó s u m i n c ê n d i o o c o r r i d o e m 1806, passou à s m ã o s
toda a v i d a f o i u m a p a i x o n a d o c o l e c i o n a d o r de borboletas, c o n s t i -
das ursulinas de T r o i s - R i v i è r e s . * M a i s de u m s é c u l o depois d . A l b e r t
t u í r a i n uma fonte de i n s p i r a ç ã o . E m 1907, quando contava o i t o anos,
Jamet p u b l i c o u o manuscrito de T r o i s - R i v i è r e s , a t r a í d o n ã o pela atua-
N a b o k o v vasculhava o s ó t ã o da casa de c a m p o de sua f a m í l i a , nos
ç ã o magisterial de M a r i e , e s i m por seu m i s t i c i s m o . Quanto aos huro-
arredores de S ã o Petersburgo, e encontrou alguns livros pertencentes à
nianos, algonquinos e iroqueses, cuja alma ela devia salvar, Jamet disse
a v ó materna, que dnha algo de naturalista. Desceu "carregando uma
alhures: " O í n d i o do Norte nunca passaria de uma c r i a n ç a grande [...]
montanha de volumes fantasdcamente atradvos", encimada pelo l i v r o
Hoje os fatos e s t ã o aí. Os selvagens eram r e f r a t á r i o s à c i v i l i z a ç ã o [...]
de M a r i a S i b y l l a M e r i a n sobre os insetos do S u r i n a m e . "
N ã o eram c r i s t ã o s por natureza".'
N o S u r i n a m e de Johanna Helena H e r o l t o trabalho de sua m ã e
Os manuscritos de M a r i e e m a l g o n q u i n o , huroniano e i r o q u ê s , o
t a m b é m e s t á pre.sente. N a b i b l i o t e c a do Surinaams M u s e u m h á atual-
testemunho mais importante de sua r e l a ç ã o c o m o povo da selva, f o r a m
mente duas e d i ç õ e s da Metamorphosis. Essa i n s t i t u i ç ã o teve o r i g e m
entregues no s é c u l o x i x a m i s s i o n á r i o s que se d i r i g i a m ao N o r t e do
nos gabinetes de curiosidades do s é c u l o x v i i i e a p ó s a i n d e p e n d ê n c i a do
C a n a d á , segundo d. G u y O u r y (que escreveu sobre M a r i e de ITncarna-
S u r i n a m e , p r o c l a m a d a e m 1975, manteve-se no n o t á v e l Fort Zee-
d o n c o m grande conhecimento e sem o racismo de Jamet).'" Espero que
laiulia, do .século x v i i . C o n t u d o , a s o b r e v i v ê n c i a dos objetos e livros do
tenham i d o parar em m ã o s de a m e r í n d i o s . Talvez estejam e m a l g u m l u -
museu n ã o era u m a q u e s t ã o simples e m 1982, quando o regime m i l i t a r
gar, c o m uma hi stória de f a m d i a c o m o a que Paul T s a o u e n k i k i registrou
que assumira o poder dois anos antes t o m o u posse do Fort Zeelandia e
n u m manuscrito do d i c i o n á r i o h u r o n i a n o - f r a n c ê s elaborado pelo padre
(iidcnou que o esvaziassem imediatamente. Os curadores tiveram de
Chaumonot: "Este documento me f o i legado por meu p a i . Paul Tahou-

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encaixotar tudo apressadamente e proteger seus objetos contra roubo.
T r ê s anos depois A l f r e d Feilchenfeld, especialista e m h i s t ó r i a j u -
Depois disso o museu passou a funcionar e m i n s t a l a ç õ e s acanhadas e
daica, apresentou outra t r a d u ç ã o de G l i k l . Considerando sua autobio-
p r o v i s ó r i a s , e pelo menos uma vez a v i o l ê n c i a se desencadeou diante
grafia importante somente pelo que revelava sobre as famflias j u d i a s e
de suas portas. N o entanto, os volumes de M e r i a n , juntamente c o m as
a maneira c o m o v i v i a m na A l e m a n h a , e l i m i n o u todas as h i s t ó r i a s po-
esteiras de vespas dos waiyanas, os tambores falantes dos saramacas e
pulares e os c o m e n t á r i o s morais que "repefidamente i n t e r r o m p i a m " a
os bonecos de sombra dos javaneses, hoje fazem parte de uma c o l e ç ã o
n a r r a t i v a b i o g r á f i c a . " N u m a p ê n d i c e r e u n i u c o m o e x e m p l o s duas
que os intelectuais surinameses consideram u m a " h e r a n ç a n a c i o n a l "
h i s t ó r i a s fora de contexto. ( T h e o d o r R e i k , psicanalista do c í r c u l o de
para uma sociedade p ó s - c o l o n i a l multiétnica.""
Freud, citou a H i s t ó r i a do P á s s a r o a partir de sua e d i ç ã o . ) " Feilchenfeld
O l i v r o de G l i k l bas Judah L e i b t a m b é m v i v e u suas aventuras.
t a m b é m o m i t i u as f ó r m u l a s de G l i k l ("bendita seja a l e m b r a n ç a de seus
T r a n s m i t i d o de g e r a ç ã o e m g e r a ç ã o sob f o r m a de manuscrito, e m 1896
m é r i t o s " ) e alterou os intervalos entre alguns livros. Essa m u t i l a ç ã o do
f o i p u b l i c a d o e m i í d i c h e pelo erudito D a v i d K a u f m a n n . D e p o i s , e m
texto original n ã o deve ter incomodado judeus a l e m ã e s da classe m é d i a
1910, a feminista, assistente social e reformadora j u d i a Bertha Pap e m processo de a s s i m i l a ç ã o , n e m estudiosos da " c i ê n c i a do j u d a í s m o " .
penheim, de Frankfurt, conseguiu abrir u m e s p a ç o e m sua agenda para Talvez eles se encantassem de conhecer uma f a m d i a a l e m ã do passado
publicar uma t r a d u ç ã o a l e m ã . ' ' Sua v i d a mudara m u i t o desde que M a r - e se e m b a r a ç a s s e m c o m o questionamento i í d i c h e de uma m u l h e r do
eei Brener tratara seus d i s t ú r b i o s nervosos e juntamente c o m S i g m u n d século x v n . "
F r e u d p u b l i c a r a o caso dela e m Estudos sobre a histeria (1895), Bertha Pappenheim tinha u m a ideia diferente do que c o n s t i t u í a
chamando-ade A n n a O. Poucos anos depois Pappenheim traduziu para uma idenfidade moderna para a j u d i a a l e m ã . Deve ter lamentado a po-
o a l e m ã o Vindication ofthe rights of women [Defesa dos direitos das pularidade dessa outra G l i k l , que, publicada pela E d i t o r a Judaica de
m u l h e r e s ] , de M a r y Wollstonecraft."* E n t ã o chegou a vez de G l i k l . B e r l i m , passou p o r quatro e d i ç õ e s a t é 1 9 2 3 . " D e p o i s , na é p o c a do
" G l u c k e l v o n H a m e l n " , c o m o a tradutora a chamou (de acordo c o m a nazismo, todas as e d i ç õ e s da autobiografia de G l i k l — truncadas, inte-
e d i ç ã o i í d i c h e de 1896), era sua parenta colateral: pelo lado materno grais, e m i í d i c h e , e m a l e m ã o — f o r a m guardadas e m "arcas de veneno"
Pappenheim descendia de Yenta, i r m ã de H a i m H a m e l . " M a i s i m p o r - c o m outros livros i n d e s e j á v e i s . F i q u e i contente ao descobrir que e m
tante era que G l i k l exemplificava a i n d e p e n d ê n c i a e n é r g i c a e o c o m - m a r ç o de 1990 se encontravam nas bibliotecas de B e r l i m oriental e o c i -
promisso f a m i l i a r que nas primeiras d é c a d a s do s é c u l o x x Pappenheim dental. V i nisso u m sinal do b e m que, c o m o o terceiro filhote da H i s t ó r i a
queria estimular nas j u d i a s da A l e m a n h a . E, c o m o G l i k l , sua tradutora do P á s s a r o , fizeram para o outro lado.
acreditava na u t i l i d a d e de contar h i s t ó r i a s , p u b l i c a n d o e m 1890 u m
l i v r o de h i s t ó r i a s familiares para c r i a n ç a s e e m 1929 uma v e r s ã o a l e m ã
do i í d i c h e Mayse Bukh. Seu s o f r i m e n t o p s i c o l ó g i c o e seus e s f o r ç o s
para curar-se talvez a tivessem aberto para a v i o l ê n c i a , a p a i x ã o e o dis-
cernimento das h i s t ó r i a s judaicas. Bertha Pappenheim se identificou de
tal forma c o m G l i k l que posou para u m retrato usando o que imagina-
va ser u m traje t í p i c o de sua parenta colateral.'"
Sua t r a d u ç ã o , publicada pelo i r m ã o e por u m p r i m o e m Viena, cons-
titui uma v e r s ã o completa do original i í d i c h e . À s vezes Pappenheim ger-
maniza G l i k l ; por exemplo: "Recusei ofertas matrimoniais dos homens
mais distintos entre todos os ashkenazim" termina c o m "de toda a A l e -
manha" (in ganz Deutschland)."' Contudo, manteve-se atenta ao original
e conservou muitas c a r a c t e r í s t i c a s i í d i c h e s da hnguagem de G l i k l .

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