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O ENSINO DA LINGÜÍSTICA: UMA ANÁLISE DISCURSIVA POR MEIO DE

DIÁRIOS DE OBSERVAÇÃO

Maria Isabel BORGES ∗ (Universidade Federal de Santa Catarina)

RESUMO: Neste trabalho, pretende-se pensar o ensino da lingüística, no curso de Letras - português, a
partir dos registros do ensino de conhecimentos sobre a linguagem, na forma de diários de observação. As
disciplinas observadas são obrigatórias para os graduandos do curso de Letras – habilitação (licenciatura
ou bacharelado) em língua portuguesa e literaturas de língua portuguesa. As disciplinas observadas foram:
LLV5601-Fonética e fonologia do português, LLV5602-Semântica e LLV5955-Metodologia do trabalho
acadêmico. O ato de pensar o ensino da lingüística baseou-se numa análise discursiva. Foi possível
perceber a presença dos discursos pedagógico e científico e a centralização do ensino na voz do professor.

PALAVRAS-CHAVE: ensino da lingüística; conhecimento sobre a língua(gem); discurso.

ABSTRACT: In this work, it intends to think the teaching of the linguistics, in the course of the
Portuguese language and literatures of Portuguese language, starting from the registrations of the teaching
of the knowledge on the language, in the form of observation diaries. The observed disciplines are
obligatory for the students of the course of the Portuguese language and literatures of Portuguese
language. The observed disciplines were: Phonetics and phonology of the Portuguese, Semantics and
Methodology of the academic work. The act of to think the teaching of the linguistics was based in a
discursive analysis. It was possible to notice the presence of the pedagogic and scientific discourses and
the centralization of the teaching in the teacher's voice.

KEY WORDS: teaching of the linguistics; knowledge on the language; discourse.

1. Considerações Iniciais

Pensar o ensino da lingüística, no curso de Letras: habilitação em língua portuguesa e


literaturas de língua portuguesa 1 , da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), colabora para a
análise dos discursos que perpassam o processo de (re)construção dos conhecimentos científicos
sobre a língua(gem), no âmbito de uma sala de aula.
Nas disciplinas de LLV5601-Fonética e fonologia do português (primeira fase),
LLV5102-Semântica (quarta fase) e LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico (sétima fase)
— observadas no decorrer do primeiro semestre de 2007 —, o ensino da lingüística se dá de três
formas: em cada disciplina, um ponto de vista acerca da língua(gem) é (re)construído e a língua
portuguesa é teorizada e analisada, possibilitando a (re)construção de conhecimentos científicos
sobre a língua(gem), no curso de Letras 2 .
O registro, na forma de diários de observação de disciplina, é o instrumento utilizado
para a (re)construção do objeto da investigação, o qual possibilitou traçar os discursos em
circulação, no interior de uma sala de aula.

2. Diário de Observação


Doutoranda em lingüística e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
E-mail: belborges1@hotmail.com.
1 A nomenclatura do curso Letras: habilitação em língua portuguesa e literaturas de língua portuguesa foi abreviada para Letras-

português.
2 Em meio às turmas do curso de Letras, há graduandos de diferentes habilitações: línguas portuguesa, alemã,

francesa, espanhola, italiana e inglesa.


Uma das formas de validar a observação é tomar notas: notas de campo (BOGDAN;
BIKLEN, 1994) ou diários (ZABALZA, 2004). Não há um consenso terminológico em se
tratando do ato de registrar os aspectos observados e também não se pode afirmar que são
designações diferentes para a mesma estratégia de registro (ZABALZA, 2004). Para o registro das
questões vistas como relevantes, durante a observação nas disciplinas de LLV5601-Fonética e
fonologia do português (primeira fase), LLV5102-Semântica (quarta fase) e LLV5955-
Metodologia do trabalho acadêmico (sétima fase), optei pelo registro na forma de diários: o diário
de observação da disciplina x (ANEXO 3 ).
Para cada disciplina observada, há um diário, o qual resgata as concepções de
narrativa e reflexão, propostas por Zabalza (2004). O objetivo desse autor é mostrar que o diário
de aula é uma maneira do professor narrar os acontecimentos ocorridos em sala de aula. Em
seguida, retomam-se os relatos, a fim de fazer uma reflexão sobre a configurada postura teórica e
pedagógica do professor, durante as aulas ministradas. Ao mesmo tempo, segundo Zabalza
(2004), que o professor (re)pensa sua prática em sala de aula, se desenvolve profissionalmente e
explicita dilemas profissionais, deslocando o diário de aula de mero documento autobiográfico,
para instrumento de investigação e desenvolvimento profissional. Zabalza (2004) pretende
ressignificar, com isso, o diário de aula como uma fonte rica de elementos não percebidos pelos
estudos qualitativos em educação.
Motivada pelo propósito ressignificativo do diário de aula, segundo Zabalza (2004),
procuro elaborar um diário de observação da disciplina x, que permita, de um lado, o registro dos
pontos discutidos em e trazidos à aula, e de outro, que possibilite minha reflexão durante a
inserção num processo de (re)construção dos conhecimentos científicos acerca da língua(gem), à
luz de uma disciplina. O diário é constituído de uma voz narrativa, localizada discursivamente no
pretérito, e de uma voz reflexiva, circunscrita discursivamente no presente. A primeira voz é
predominante e representa os pontos relevantes discutidos no interior da sala de aula: o processo
de (re)construção dos conhecimentos científicos sobre a língua(gem), em meio a interação
professor-turma e graduando-graduando. A segunda é mantida em nota de rodapé e consiste na
reflexão acerca de minha circunscrição (ANEXO).

3. O Ensino da Lingüística

Com base nos diários de observação (LLV5601-Fonética e fonologia do português,


LLV5102-Semântica e LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico), um encontro entre
professora e graduandas/os 4 configura uma aula. Professora e graduandas/os são os sujeitos em
interação cujas funções são esboçadas no próprio processo interativo. A voz do discurso
concentra-se na professora, a ponto de atuar como fonte de dizer autorizado e válido
(verdadeiro). Via linguagem, essa voz central e centralizadora tece comentários e elabora
explicações e demonstrações sobre um determinado tema: o tema ou assunto da aula, ao lado de
uma revisão dos pontos discutidos na aula precedente. Abaixo, trago alguns trechos dos diários
de observação:

Registro 1
A professora explicitou o objetivo da aula: definir fonema. Ela iniciou a aula, dizendo
que a instituição da fonologia como ciência ocorreu em Praga (1930), a partir dos trabalhos
desenvolvidos por Roman Jakobson.

3Apresento o registro de um dia de aula da disciplina de LLV5102-Semântica.


4A distinção de gênero masculino e feminino visa retratar a constituição do contexto da investigação. Nas disciplinas
de LLV5601-Fonética e fonologia do português, LLV5102-Semântica e LLV5955-Metodologia do trabalho
acadêmico, trata-se de três professoras e a maioria da turma é constituída de graduandas. Por isso, optei pela
marcação morfológica dos nomes no gênero feminino, em primeiro lugar, para representar a maioria feminina; e, em
segundo lugar, faço a marcação no masculino, para demarcar a minoria.
Foi feita, em seguida, uma retomada de alguns pontos da aula anterior. A professora
descreveu o sistema fonológico, apontando os fonemas e suas variantes. O objetivo era descrever a
variante. (Diário de observação da disciplina de LLV5601-Fonética e fonologia do português (1ª. fase), 2007, p. 1)

Registro 2
A professora, em princípio, revisou pontos importantes da aula anterior. O primeiro
ponto se refere ao conceito de sintagma nominal (SN), sob o ponto de vista sintático. SN é um
sintagma cujo núcleo é um nome. A ilustração feita pela professora foi:

SD

Det SN

O =b
Nc Sprep

menino prep Nc

de azul

(Diário de observação da disciplina de LLV5102-Semântica (4ª. fase), 2007, p. 24)

Registro 3
A professora efetua um planejamento da disciplina e procura segui-lo. Além disso, ela
utiliza, em seu discurso, a palavra planejamento para se referir ao que foi planejado ou pensado para
aquele dia. Procura informar o assunto da aula e em que etapa do planejamento da disciplina a turma
se encontra. Para isso, foi reproduzida a organização lógica de um trabalho acadêmico, como frisou
(várias vezes durante a aula) a professora. Ela salientou que não se trata de um esquema a ser seguido
para se elaborar um projeto de pesquisa, e sim, de uma lógica de pensamento. (Diário de observação
da disciplina de LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico (7ª. fase), 2007, p. 1-2)

Posso dizer que há três regularidades entre as aulas observadas das disciplinas acima.
A primeira é a explicitação do tema da aula: o objeto temático a ser (re)construído num encontro
entre turma e professora. A segunda refere-se a um ato de planejar a aula, o que é e “como” é
dito. A terceira diz respeito às retomadas de questões relevantes da aula precedente para serem
prosseguidas na aula em processo de (re)construção. Trata-se de uma anterioridade constitutiva
do presente em estado de (re)elaboração. Ao lado dessas três regularidades, houve momentos em
que a professora mostrou em qual ponto do planejamento do curso da disciplina a turma e a
mesma se encontram, como relatei no terceiro registro. Assim, a aula se constitui no entremeio
de uma circunscrição temporal e processual (o desenvolvimento da disciplina em um semestre
letivo ou fase do curso de Letras-português) e de uma vinculação temática.
Apontar o tema da aula, planejá-la, circunscrevê-la no processo disciplinar e efetuar
revisões são elementos constitutivos da aula, que indicam algo em processo de tecitura:
conhecimentos “característicos” da disciplina. São os conhecimentos escolhidos pela professora
para serem “ensinados” à turma, naquele dia. Eles, além de constituírem efeitos de uma seleção,
são construtos de um ponto de vista da professora em relação à disciplina. Apesar de ela ser,
institucionalmente, obrigada a se orientar pela ementa da disciplina, a maneira como será
desenvolvida lhe cabe, conforme os objetivos e sua postura didático-pedagógica. Com base numa
obrigatoriedade, desenvolve-se o processo da disciplina, porém as propagações (re)criativas que
se referem ao planejamento e à elaboração didática são múltiplas 5 .
Na função de professora, a maneira de comunicar ou de dizer um conhecimento, no
âmbito da disciplina ministrada, é uma (re)construção específica.

Registro 4
Primeiramente, a professora fez uma revisão dos conceitos de signo lingüístico e da
relação de diferenças entre fonemas, a partir da técnica de comutação: eixo paradigmático e eixo
sintagmático.

c +a+l+o
eixo paradigmático r +a+l+o

c+o+r+e+t+o (o primeiro o é pronunciado diferente do último o) (eixo sintagmático).

Em seguida, foram corrigidos os exercícios do livro Introdução à fonética e à fonologia da


língua portuguesa, localizados nas páginas 80, 81 e 82 (OLIVEIRA; BRENNER, 1988).
Para explicar os exercícios, ela utilizou o quadro-branco para ilustrar os fonemas, por
meio da transcrição fonética. Além disso, ela também mostrou em que ponto do aparelho fonador o
fonema realiza-se: desenhou o aparelho fonador e reproduziu o som oralmente.
A turma fez perguntas acerca dos exercícios propostos. (Diário de observação da disciplina
de LLV5601-Fonética e fonologia do português (1ª. fase), 2007, p. 4.)

Registro 5
Para encerrar a aula, a professora apontou algumas possibilidades de relações que os
quantificadores podem estabelecer entre os conjuntos de indivíduos de uma dada sentença. De um
modo geral, eles podem estabelecer ou uma relação de contido (⊂) ou uma relação de contém (⊃):

A maioria dos alunos cola Ö A ∩ B > 50%


Nenhum aluno cola Ö A ∩ B = ∅
Algum menino cola Ö A ∩ B > 1
Dois meninos colam Ö A ∩ B ≥ 2

A professora também destacou que as representações matemáticas abaixo são


equivalências:

A⊂B↔B⊃A
B⊂A↔A⊃B
(Diário de observação da disciplina de LLV5102-Semântica (4ª. fase), 2007, p. 37-38)

Registro 6
Para encerrar a aula, a professora recorreu ao destaque do trecho, localizado na página
220, do capítulo intitulado Projeto e relatório de pesquisa, de Marconi e Lakatos (2007): “O processo de
delimitação do tema só é dado por concluído quando se faz a sua limitação geográfica e espacial, com
vistas na realização da pesquisa”. Por meio deste, ela diferenciou a abordagem metodológica

5 Rojo (2001), levando em conta o trabalho Récit d’élaboration d’une séquence: le débat publique, de Dolz, Schneuwly e de
Pietro (1998), argumenta que as ações didáticas do professor requer um planejamento e necessita de uma
modelização didática, que tem como ponto de partida um modelo didático (uma construção que relaciona atuações
de professores e alunos com as vivências de ensino). A modelização didática “constitui-se no mecanismo que
transforma uma descrição de gênero (ou de outro objeto de ensino) num programa de ensino de gênero (no dizer dos
autores, numa seqüência didática)” (ROJO, 2001, p. 319). Ao referir-me aos argumentos de Rojo (2001), pretendo,
leitor, dizer que a elaboração didática de que falo se refere a um processo de objetivação de determinados
conhecimentos, para que estratégias e ações sejam pensadas e o ensino se desenrole. A atuação do professor
pressupõe não só um planejamento do que ensinar, de que maneira e para quê, mas também o desencadeamento de
ações (efeitos do que foi planejamento). Trata-se de um processo que inclui objetivação e tematização de
conhecimentos e (re)construção deles em meio à interação social, que pode ser no interior de uma sala de aula ou
não.
longitudinal (acompanhamento por um tempo significativo dos sujeitos de pesquisa) e a transversal
(recorte determinado no tempo e no espaço).
Ficou encaminhado um exercício sobre o projeto de pesquisa:

Exercício de produção de um projeto de pesquisa

1 Tema
2 Focalização
3 Problema
4 Hipótese(s)
5 Objetivo(s)
6 Justificativa
7 Referencial teórico
8 Metodologia
9 Recursos
10 Cronograma
11 Referências”
(Diário de observação da disciplina de LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico (7ª. fase), 2007, p. 29-30)

Para “ensinar” um conhecimento sobre a língua(gem), no interior de uma disciplina,


diversas estratégias de ensino são utilizadas, com diferentes propósitos. No quarto registro, o
revisar, o demonstrar, o exercitar e o interrogar são atos praticados com o auxílio de dois
recursos: a própria voz da professora e a lousa. No quinto registro, destaco, o demonstrar e o
relacionar, com o auxílio apenas da voz da professora. E no sexto registro trecho, ressalto o ler, o
comparar e o fazer atividade, com a ajuda de um texto impresso, lousa e voz da professora. Por
trás do processo de ensino de uma disciplina, estão diversos procedimentos e a atuação de papéis
(professor e graduando), para a realização de ações que desencadeiem uma aprendizagem na/o
graduanda/o. Determinadas ações e atuações de ensino, materializáveis no gênero acadêmico
“aula”, esboçam um possível processo de (re)construção dos conhecimentos científicos sobre a
língua(gem), considerando que as três disciplinas observadas atrelam-se à lingüística e as
transmissoras desses conhecimentos são professoras de lingüística.
Desse modo, o que está em jogo é o ensino da lingüística, a partir de três ângulos
diferentes, no interior de uma sala de aula. Os conhecimentos a respeito da língua(gem),
(re)construídos e denominados ao longo da história da lingüística como científicos, são ensinados
a sujeitos que se posicionam como aprendizes: as/os graduandas/os. Apesar de o ensino da
lingüística configurar uma identidade entre as disciplinas observadas — LLV5601-Fonética e
fonologia do português, LLV5102-Semântica e LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico —,
com base: a) na aula como uma produção discursiva organizadora e b) no esboço de papéis de
professor e graduando, necessariamente o ato de ensinar lingüística ressignifica-se em cada
processo disciplinar.
Os elementos básicos, usados pelo semanticista, para fazer semântica, são
explicitadas pela professora, como relatei no diário de observação, a seguir:

Registro 7
A professora iniciou a aula a partir da seguinte ilustração:

O menino tá triste

o menino tá triste

o menino
nino tá triste
Conforme o modelo semântico formal e a partir da ilustração acima, a professora
apontou a classificação dos componentes da sentença: operador (o), argumento (menino, triste) e
predicado (tá). Ela definiu que argumento se refere ao indivíduo no mundo. Na teoria dos conjuntos é:
{x:x é menino} {x:x é triste}

E predicado se refere ao conjunto de elementos ou de indivíduos:

{x, x, x, x, x}

A professora disse que, na metalinguagem utilizada pelo/a semanticista, há quatro


elementos básicos: argumento, predicado, conectivo e operador. Além disso, a relação entre a
linguagem e a referência no mundo se dá por meio do sentido. Abaixo segue a ilustração apresentada à
turma:

sentido
linguagem referência

O significado é a junção do sentido e da referência no mundo.


A professora salientou que as quatro ferramentas básicas do/a semanticista (argumento,
predicado, conectivo, operador) advêm da semântica tradicional, a qual possui uma íntima relação com
a filosofia clássica, em especial, com a ontologia. Esta, por sua vez, lida basicamente com a concepção
de indivíduo e a de propriedade.
O tá é deixado de lado pela semântica tradicional, porque somente a semântica de
eventos lida com a temporalidade. (Diário de observação da disciplina de LLV5102-Semântica (4ª fase), 2007,
p. 1-2)

De acordo com a professora, argumento, predicado, conectivo e operador são as


ferramentas necessárias para um lingüista ser denominado de semanticista, uma vez que a
manipulação dessas ferramentas resultam em conhecimentos semânticos sobre a língua(gem). As
relações estratégicas entre as ferramentas semânticas são designadas de relações lógicas, por
exemplo, acarretamento e sinonímia.

Registro 8
A professora fez algumas considerações acerca do olhar da semântica formal sobre a
língua(gem), dentre elas:
1. o/a semanticista constrói o modelo para saber como o/a falante intuitivamente compõe e
decompõe a sentença;
2. a noção de acarretamento é uma relação lógica;
3. a relação de acarretamento é uma das questões centrais da semântica, juntamente com a relação de
sinonímia; e
4. uma das possibilidades de trabalhar-se matemática e português é explorar as relações semânticas de
acarretamento e de sinonímia por meio da teoria dos conjuntos.
Na relação de acarretamento, a sentença A é subconjunto da sentença B:

•B

•A

(Diário de observação da disciplina de LLV5102-Semântica (4ª fase), 2007, p. 2-3)

Comparando as ferramentas e estratégias da disciplina de LLV5102-Semântica com


as da disciplina LLV5601-Fonética e fonologia do português, pode-se dizer, que para que haja um
processo disciplinar de (re)construção dos conhecimentos científicos a respeito da língua(gem),
concepções, idéias, relações, noções, etc. tudo isso é necessário para a constituição e
diferenciação de uma disciplina vinculada à lingüística. De certa forma, os constituintes e os
diferenciadores são concebidos como instrumentos de um fazer científico, no âmbito da
lingüística. As duas disciplinas em comparação constituem três subáreas da lingüística: fonética,
fonologia e semântica. Podem ser identificadas como tais em função de se tratarem de três
pontos de vista teórico-metodológicos de teorização e análise lingüísticas. Compartilham do
mesmo objeto de estudo da lingüística, a língua(gem), todavia o concebem de modos diferentes.
Desse modo, a diversidade de disciplinas ou subáreas da lingüística precisam,
simultaneamente, diferenciar e identificar entre si. A diferenciação e a identificação se fazem pelo
tratamento dos instrumentos de trabalho como objetos nomeáveis e relacionáveis entre si. Por
intermédio da linguagem, os elementos da sentença “O menino tá triste” (Registro 7) são
nomeados como operador, argumento e predicado. Junto com a nomeação, uma predicação é
anexada: a visão lógica de linguagem, que relaciona a filosofia lógica da matemática com o olhar
semântico, de modo a especificá-lo como formal. O raciocínio, que perpassa a semântica,
ensinada na disciplina de LLV5102-Semântica, é o pensar lógico-matemático. Por isso, ao longo
do desenvolvimento dessa disciplina, há um diálogo entre conceitos e teorias da matemática com
a semântica: a teoria dos conjuntos, as funções, etc.
Os objetos de trabalho do semanticista são o foco das demonstrações (Registros 7 e
8), são seus rótulos, preenchidos de significado; os nomes são atravessados de valorações. No
momento em que esses objetos (as ferramentas) são nomeados, por meio da linguagem e nela, as
predicações entranham-se às nomeações. Portanto, trata-se de uma imbricação
nomeação/predicação inseparável, por intermédio da e na linguagem.
Não só as ferramentas de uma disciplina são nomeadas/predicadas, as relações entre
elas também os são. Por exemplo, na disciplina de LLV5102-Semântica (Registro 8), a relação
entre duas sentenças pode ser designado de acarretamento, se uma sentença acarretar uma outra.
Desse modo, duas coisas são nomeadas/predicadas como sentenças e a relação entre essas duas
coisas, se for de uma forma, e não de outra, será designada/predicada de: acarretamento. O
processo designativo é uma (re)construção lingüística, a qual se pauta numa maneira de ver as
coisas e as relações entre elas, num determinado lugar. Apóia-se numa representação de mundo:
uma representação de linguagem 6 . No caso da disciplina em discussão, a língua portuguesa e as
outras línguas são representadas, com o apoio da lógica matemática. Para interpretar as línguas,
em imersão numa disciplina de semântica, faz-se necessário (re)construir as línguas de uma
maneira em particular, que não é da mesma forma que em fonética e fonologia. Um semanticista,
um foneticista e um fonologista compartilha do mesmo objeto de estudo — a língua(gem) — e o
partilham em ferramentas e estratégias, porque cada um olha par ao mesmo ponto
diferentemente: cada um (re)constrói uma representação particularizada em função da maneira de
olhar. Compartilhar e partilhar são atos comuns entre lingüistas e que mantêm entre si uma
equiparada imbricação, não sendo possível distinguir em extremos opostos ou em posições
hierárquicas.
No nono registro, a inserção histórica de um conhecimento em processo de
(re)construção numa aula também pode revelar, leitor, uma valoração.

Registro 9
A professora destacou alguns pontos da trajetória sócio-histórica da fonética (Grécia,
Roma, Inglaterra e os inventos telecomunicativos, como: o telefone e o telégrafo) até surgir a
fonologia no século XX. Com a emersão do estruturalismo, fez-se a diferença entre fonética e
fonologia; esta emergiu, em Praga (1926-1938), apoiada nos princípios de Saussure. As Atividades de
aplicação, localizadas entre as páginas 26 e 29, no livro em questão, foram propostas para serem feitas
pela turma e corrigidas na aula seguinte.

6Noção nietzschiniana de linguagem: caminho para a (re)construção das verdades e das representações de mundo
(NIETZSCHE, 1873/1996).
A professora destacou a importância da fonética acústica quando foram inventados o
telefone e o telégrafo. Ela falou da área aplicada da fonética, por exemplo, a transcrição da fala na área
de investigação criminal. A medicina faz uso da fonética na área da fonoaudiologia.
Além disso, a professora disse que há uma certa rivalidade entre fonética e fonologia.
Na engenharia, privilegia-se a fonética em vez da fonologia. (Diário de observação da disciplina de
LLV5601-Fonética e fonologia do português (1ª fase), 2007, p. 5).

A narrativa contada pela professora coloca a fonética como antecedente à fonologia e


aponta sua relevância social no que diz respeito às invenções telecomunicativas e às aplicações na
medicina, na investigação criminal e na engenharia. De um modo geral, a fonética possui um
vínculo com a prática, em outras áreas diferentes da lingüística; enquanto a fonologia, com a
prática de pesquisa na lingüística. Essa vinculação fica mais claro quando a professora
diferenciou, por meio de uma ilustração feita na lousa, fonética e fonologia em um outro
momento:

Registro 10
langue parole (ato de fala)
Æ Æ
fonologia fonética
Æ Æ
gramática dos sons articulações acústicas
Æ Æ
(sistema) abstrato concreto

A partir dessa ilustração, a professora ressaltou que a turma, ao ir a campo para coletar
as falas dos pescadores, focalizou a parte concreta da língua, como esta se manifestou: suas
realizações. Após a coleta e a transcrição dos dados, a turma, por meio da análise deles, será feita a
elaboração da gramática dos pescadores: o sistema, a parte abstrata do que foi recolhido (concreto).
(Diário de observação da disciplina de LLV5601-Fonética e fonologia do português (1ª fase), 2007, p. 13).

A distinção possuía o propósito de mostrar os aspectos concretos e abstratos das


falas dos pescadores, gravadas em fitas cassetes, no dia da pesquisa de campo, num bairro de
Florianópolis. Da prática da língua portuguesa emerge uma gramática de uso dos falantes daquela
região. A prática de uma língua constitui o concreto no qual o lingüista depreenderá uma
abstração lingüística: o sistema da língua das falas dos pescadores. De um lado, está a concretude
da língua, representada pela fala (oralidade ou língua em uso), e de outro, está a abstração da
língua, representada pelo sistema (estrutura ou unidade da língua). Desse modo, é conveniente
contar uma parte da história da lingüística, colocando a fonética como antecessora à fonologia, já
que a ciência lingüística, de acordo com o Curso de Lingüística Geral, de Ferdinand de Saussure,
parte da fala. Relacionando com os registros acima, a fonologia, uma disciplina da lingüística, é
efeito de um processo de abstração da fonética (a representante da fala). O fazer fonológico
(re)constrói-se pelo fazer fonético. Por isso, a fonética e a fonologia não podem ser tomadas pelo
modo desarticulado. Trata-se de uma articulação hierárquica em que a fonética antecede a
fonologia, para que esta prevaleça como ponto de vista científico, na lingüística.
Entretanto, as implicações político-ideológicas imbricadas às diversas ferramentas e
estratégias de trabalho das disciplinas vinculadas à lingüística não são alvo de discussão em sala de
aula. O importante é mostrar tais ferramentas e estratégias de trabalho, a fim de formar novos
trabalhadores da lingüística: os operários da obra lingüística. Pelo que pude observar, esses
operários devem ser sujeitos passivos, conformados com seu regime de trabalho: a criticidade não
lhes cabe. No caso da disciplina de LLV5601-Fonética e fonologia do português, o regime de
trabalho dos futuros licenciados e bacharéis em língua portuguesa e literaturas de língua
portuguesa segue as normativas e padronizações do método fonológico: o método consolidado,
na lingüística moderna, como científico.
É consenso, nas três disciplinas observadas — LLV5601-Fonética e fonologia do
português, LLV5102-Semântica e LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico —, mostrar à
turma hierarquias ou organizações dos conhecimentos científicos acerca da língua(gem):

Registro 11
... a professora apresentou os modos de articulação. No quadro-branco, foi apresentada a classificação
dos modos de articulação, segundo Câmara Jr.:

Consoantes Grau da abertura da boca


1. oclusivas (plosivas) 0
2. fricativas 1
3. nasais 2

vibrantes
4. líquidas batida (tap) 3
lateral

5. semivogais 4
6. vogais 5

A professora ressaltou que a produção sonora de uma consoante consiste num


impedimento na cavidade bucal e a de uma vogal, numa abertura na cavidade bucal.
Depois, foi apresentada uma outra classificação, que inclui a vibração ou não das cordas
vocais: o som surdo e o sonoro.

Consoantes Vibração ou não das cordas vocais


1. oclusivas (plosivas) Surdas
sonoras
2. fricativas Surdas
sonoras
3. nasais Sonoras

vibrantes
4. líquidas batida (tap)
Sonoras
lateral

5. semivogais Sonoras
6. vogais Sonoras

Apresentadas as duas classificações dos modos de articulação das consoantes do


português, a professora solicitou que a turma preenchesse os quadros, localizados nas páginas 104 e
105, no livro Introdução à fonética e à fonologia da língua portuguesa (OLIVEIRA; BRENNER, 1988). Em
primeiro lugar, foi preenchido o Quadro fonológico das consoantes do português; e, em segundo lugar, foi
preenchido o Quadro fonético das consoantes do português. A professora também distribuiu reproduções dos
quadros em questão, já preenchidos, à turma. (Diário de observação da disciplina de LLV5601-Fonética e
fonologia do português (1ª fase), 2007, p. 18-19).

Registro 12
Há dois tempos efetivamente, em português, disse a professora: passado e futuro. O
presente, por exemplo, é um aspecto.

MF 7
aspecto
Eu prometo parar de falar.

7 MF = momento de fala
presente simples = presente semântico

MF ME
Há dois tipos de aspecto: o perfectivo e o imperfectivo.
E (evento)
perfectivo: MR 8 ⊃ ME 9

imperfectivo: MR ⊂ ME

O aspecto imperfectivo, afirmou a professora, remete às idéias de progressão, de


repetição ou de hábitos. Uma “coisa” é o imperfectivo semântico e outra “coisa” é o imperfectivo
morfológico cuja modalidade é marcada pela desinência –ava ou -ia.
É comum, em algumas línguas, como o português, o uso do imperfectivo para se referir
à modalidade ficcional: era uma vez... (Diário de observação da disciplina de LLV5102-Semântica (4ª fase),
2007, p. 47)

Registro 13
A professora passou a explicar o eixo de coerência de um trabalho acadêmico:
1. no resumo, pode haver ou não a organização dos capítulos;
2. na introdução, deve haver a organização dos capítulos;
3. itens obrigatórios e facultativos abaixo, em se tratando de TCC ou de outro trabalho de menor
complexidade:

itens obrigatórios (O) e facultativos (F) resumo Introdução


tema O O
foco O O
problema O O
hipótese F F
justificativa F O
objetivo O* O
teoria O O
método O O
conclusões O** O
* Se estiver claro, não é necessário colocar o problema.
** As conclusões devem aparecer mesmo que sejam resumidas em um único período. (Diário de
observação da disciplina de LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico (7ª fase), 2007, p. 12).

As diversas ilustrações (Registros 11, 12 e 13) (a ilustração consiste numa estratégia


de ensino) são as formas reincidentes nas disciplinas observadas, para classificar ou hierarquizar
os conhecimentos científicos sobre a língua(gem). Desse modo, num processo de (re)construção
de tais conhecimentos dois atos são constitutivos: o classificar e o hierarquizar. Detendo-me no
décimo terceiro registro, as ferramentas necessárias para a elaboração de um trabalho acadêmico,
no caso, o trabalho de conclusão de curso (o TCC), são, primeiramente, elencadas;
secundariamente, são classificadas em obrigatórias e facultativas; terciariamente, em meio à
classificação, há uma valoração das ferramentas em necessárias, porque sua menção indica
cientificidade, e em opcionais, pois sua menção não marca cientificidade. As ferramentas
necessárias ocupam o primeiro lugar no quesito cientificidade de um trabalho acadêmico: a
presença delas é um indicador de cientificidade.

8 MR = momento de referência
9 ME = momento do evento
Além disso, o processo designativo também é um ato classificatório e hierárquico.
Na disciplina de LLV5601-Fonética e fonologia do português (Registro 10), posso citar a
nomeação da disciplina lingüística que se volta às “articulações acústicas”, a fonética, e a
designação da disciplina lingüística a qual se concentra na “gramática dos sons”. O ato de nomear
traz consigo um predicar, de maneira que toda vez que um sujeito que conhece a noção e a
funcionalidade dessas ferramentas, será capaz de reconhecê-los. Uma das funções do professor
de uma disciplina atrelada à lingüística é ensinar o processo designativo das ferramentas e
estratégias da disciplina em discussão. Durante as aulas, as nomeações, já predicadas são objeto
de ensino do professor de lingüística, de acordo com a disciplina em processo de (re)construção.
Dentro de uma sala de aula, institui-se entre turma e professor o ensino de uma disciplina
lingüística. A partir dessa instituição, os conhecimentos científicos lingüísticos serão
(re)construídos, em função de uma política disciplinar de representação sobre a língua(gem): a
perspectiva norteadora de como ver a língua(gem).
O dizer da professora, que destaquei no registro acima: “— A teoria que vou
apresentar a vocês hoje é a teoria dos quantificadores generalizados”, permite-me interpretar que
o sujeito professor está a serviço da linguagem, porque constitui um ponto na linguagem que
agencia os conhecimentos científicos acerca da língua(gem), nos moldes de uma visão de
pensamento. O professor fala em nome de uma visão, que se materializa, nas aulas, de diversas
maneiras: por meio de apontamento das ferramentas e estratégias de trabalho (fonema,
comutação, eixo paradigmático e sintagmático... na disciplina de LLV5601-Fonética e fonologia
do português; pressuposição, acarretamento, sinonímia, sintagma nominal e verbal, sentença,
referência, valor de verdade... na disciplina de LLV5102-Semântica; tema, objeto, método,
problema, objetivos... na disciplina de LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico), por
intermédio de demonstrações de teorias e análises. Sempre tratadas de modo separadas:
primeiramente, demonstra-se e explica-se a teoria, secundariamente, análise-se a língua(gem), à
luz da teoria antecedente.

4. Pensando e Repensando o Ensino da Lingüística

No processo de ensino da lingüística, com base nos diários de observação das


disciplinas de LLV5601-Fonética e fonologia do português, LLV5102-Semântica e LLV5955-
Metodologia do trabalho acadêmico, o discurso estrutura-se em aulas, para resultar numa
disciplina. De acordo com Foucault (2002, p. 36), a disciplina funciona como controladora da
produção discursiva.

A disciplina é um princípio de controle do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma
identidade que tem a forma de uma reatualização permanente de regras.
Tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários, no
desenvolvimento de uma disciplina, como que recurso infinitos para a criação dos discursos. Pode ser,
mas não deixam de ser princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu papel positivo
e multiplicador, se não se levar em consideração sua função restritiva e coercitiva.

Em cada disciplina observada, um dizer sobre a língua(gem), sob o ponto de vista da


lingüística, é delimitado. Não é qualquer dizer ou comentário que pode ser produzido na forma
de discurso. Para Foucault (2002), o comentário abarca o acaso e o acontecimento, de modo que
o primeiro possibilita a produção de um não-dito e o segundo, o retorno de um já-dito. Desse
modo, o dizer das professoras constitui um dito: uma articulação entre um não-dito e um já-dito.
Trata-se de um dizer fundante da aula. A voz das professoras centraliza a produção discursiva, no
interior de uma sala de aula.

Eis a hipótese que gostaria de apresentar...: suponho que em toda sociedade a produção do discurso é
ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o
mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se
pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qual quer
coisa. (FOUCAULT, 2002, p. 8-9).

Foucault (2002) concebe o discurso como um efeito das delimitações externas e


internas: um interdito que coloca “em jogo o poder e o desejo” (FOUCAULT, 2002, p. 21).
Conforme as disciplinas observadas, cada professora está inserida numa disciplina atrelada à
lingüística, num fragmento de um todo científico: uma visão científica de língua(gem). Apesar de
a lingüística constituir uma ciência, cujo objeto é a língua(gem), a totalidade é aparente, porque,
em seu entremeio, o aparente discurso científico da lingüística sobre a língua(gem) é constituído
de fragmentos discursivos (partes de interditos). A lingüística, com isso, não deixa de ser uma
“sociedade de discurso” (FOUCAULT, 2002, p. 39).
Em um espaço demarcado e atravessado por discursos descontínuos, a lingüística
abarca múltiplos conhecimentos científicos sobre a língua(gem), os quais, numa instituição de
ensino superior, são postos como objetos de ensino a graduandos do curso de Letras. Em cada
disciplina, o objeto de ensino é apresentado de uma forma. O dizer, elaborado pela professora,
representa uma visão disciplinar: um interdito. A voz de cada professora não só centraliza os
conhecimentos acerca da língua(gem), em (re)construção durante a aula, como também é o ponto
de origem das verdades científicas.
Como argumenta Derrida (1997), a fala como fonte de verdade constitui uma
representação logocêntrica, pois subjuga a escrita. A presença do sujeito, no momento em que a
fala é produzida, faz dele uma testemunha da elaboração do discurso verdadeiro. A idéia de que a
fala é a fonte da verdade ou da razão consiste numa visão logocêntrica. No que se refere à
(re)construção dos conhecimentos científicos a respeito da língua(gem), nas três disciplinas
observadas, a fala das professoras remete a um olhar logocêntrico de conceber o objeto de
ensino.
Junto à centralidade da voz das professoras, tendo em vista a constituição do objeto
de ensino das disciplinas em questão, esboçam-se, em cada uma, processos disciplinares de
ensino. Em primeiro lugar, há a definição de funções: quem ensina (as professoras) e quem
aprende (graduandas e graduandos). A aula é precedida de um planejamento, que é norteado
pelos objetivos e pelas estratégias pedagógicas, tendo em vista um público-alvo (as/os aprendizes
de lingüística) e uma perspectiva de língua(gem). A imbricação de todos esses aspectos resulta
num objeto de ensino comentado e recomentado, ou melhor, construído e reconstruído, num
intervalo de tempo.
Cada disciplina observada desenvolve-se num espaço (a sala de aula) e durante um
semestre letivo; em cada encontro, uma aula se configura, a partir de um tema: uma faceta do
objeto de ensino da disciplina. Resgatando, no primeiro registro, o tema da aula, foi sobre
fonema. Num encontro específico, comentários foram tecidos a respeito de um objeto de ensino,
a língua portuguesa. Olhou-se para o objeto por um viés; a língua portuguesa, enquanto objeto,
retornou sob uma outra forma. Um outro comentário se fez, a partir da volta de um dito; o
discurso, para Foucault (2002, p. 26), constitui um retorno. “O novo não está no que é dito, mas
no acontecimento de sua volta”.
Entretanto, não é só o discurso do ensino que atravessa os processos disciplinares de
(re)construção dos conhecimentos científicos sobre a língua(gem), mas também há formas de
representar a língua(gem), as quais distinguem entre si as disciplinas de LLV5601-Fonética e
fonologia do português, LLV5102-Semântica e LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico.
Às vezes, elas compartilham e outras partilham a língua(gem). Na disciplina de LLV5102-
Semântica, o objeto de ensino é a língua portuguesa, à luz de uma representação lógico-
matemática de linguagem. As ferramentas e estratégias, para a (re)construção semântica de
conhecimentos acerca da língua(gem), seguem uma específica política de nomeação/predicação 10 .
Na disciplina de LLV5601-Fonética e fonologia do português, a língua portuguesa é teorizada e
analisada nos limites do vocábulo, por isso, as ferramentas fonema e fone são referências para a
constituição dos conhecimentos fonético-fonológicos acerca da língua(gem). Na disciplina de
LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico, a língua portuguesa é concebida como meio de
produção escrita de conhecimentos científicos a respeito da língua(gem). Portanto, as formas de
estruturação de uma reflexão científica, via escrita, constituem um dos pontos norteadores da
disciplina em questão. Quando se traz à aula, por exemplo, a concepção de acarretamento, uma
determinada relação entre sentenças é nomeada, trazendo consigo a predicação de que se trata de
um olhar semântico sobre a língua(gem). Uma ordenação do discurso molda o processo
disciplinar de (re)construção dos conhecimentos científicos acerca da língua(gem) e desencadeia
interditos.
Por trás de cada processo disciplinar de (re)construção dos conhecimentos sobre a
língua(gem), tomando como base os diários de observação das disciplinas de LLV5601-Fonética
e fonologia do português, LLV5102-Semântica e LLV5955-Metodologia do trabalho acadêmico,
o ensino da lingüística suporta um entrecruzamento de discursos, advindos de diferentes
posicionamentos e campos de conhecimento, dentre eles, o discurso pedagógico. Aliado a ele,
formas de teorizar e analisar a língua(gem), possíveis no âmbito da lingüística enquanto ciência e
disciplina acadêmica, estão em circulação e em processo de edificação. Os conhecimentos
científicos acerca da língua(gem) estão a serviço de pontos de vista disciplinares e (re)constituem-
se discursivamente enquanto já-comentado e ainda-a-ser-comentado.
O discurso é um efeito lingüístico e uma articulação entre poder e desejo
(FOUCAULT, 2002). No ensino da lingüística, interditos, de base pedagógica e científica,
estruturam o processo de (re)construção dos conhecimentos sobre a língua(gem), no interior de
uma sala de aula e no decorrer de uma semestre letivo, tendo em vista a formação de licenciadas
(e licenciados) e bacharelas (e bacharéis) em língua portuguesa e literaturas de língua portuguesa.
Infelizmente, o modo de ensinar a lingüística reforça uma atuação pedagógica
logocêntrica e monológica, na perspectiva da/o futura/o professora/professor de língua
portuguesa e literaturas de língua portuguesa. De um lado, o ensino da lingüística, com base nos
diários de observação das disciplinas citadas, propaga uma forma de ensinar conhecimentos sobre
a língua(gem), a partir da centralização das aulas na voz do professor, e subjuga as relações
dialógicas entre aluno-professor e aluno-aluno. De outro, o ensino da lingüística constitui uma
primazia dos conhecimentos científicos, de acordo com olhares de disciplinas vinculadas à
lingüística, deixando, em segundo plano, as relações interdisciplinares e o diálogo com os
conhecimentos acerca da língua(gem) do graduando em Letras. É preciso desconstruir a
participação do graduando por meio de elaboração de perguntas e de esclarecimento de dúvidas.

Referências

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Tradução e apresentação à edição brasileira de
Danilo Marcondes de Souza Filho do título em inglês How to do things with words. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1962/1990.
BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação. Uma introdução à teoria e aos
métodos. Tradução de Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista do
título em inglês Qualitative researching for education. Porto, Portugal: Porto Editora, 1994.
BORGES, M. I. O jogo ético-político nos quadrinhos editados em “O Pasquim”. 2004. 179 p. Dissertação
(Mestrado em Lingüística) - Programa de Pós-graduação em Lingüística – Curso de Mestrado em
Lingüística, Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, 2004.

10 O ato de nomear traz consigo uma predicação, não sendo possível distinguir fato e valor. Essa idéia foi

desenvolvida em minha dissertação de mestrado intitulada O jogo ético-político nos quadrinhos editados em “O Pasquim”
(2004) e teve como base as idéias de Austin (1962/1990) e de Rajagopalan (2003).
DERRIDA, J. A farmácia de Platão. Tradução de Rogério Costa. 2. ed. São Paulo: Iluminuras,
1997.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 8. ed. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Loyola, 2002.
LOPES DA SILVA, F. L.; RAJAGOPALAN, K. (Orgs.). A lingüística que nos faz falhar:
investigação crítica. São Paulo: Parábola, 2004.
NIETZSCHE, F. W. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: ______. Obras
incompletas. Seleção de textos de Gérard Lebrun. Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres
Filho. Posfácio de Antônio Cândido. São Paulo: Nova Cultural, 1873/1996. p.51-60. (Os
pensadores).
RAJAGOPALAN, K. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e questão ética. São Paulo:
Parábola, 2003.
ROJO, R. H. R. Modelização didática e planejamento: duas práticas esquecidas do professor. In:
KLEIMAN, A. B. A formação do professor: perspectivas da lingüística aplicada. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2001. p. 313-335.
ZABALZA, M. A. Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional.
Tradução de Ernani Rosa do título em espnhol Los diarios de clase: um instrumento de
investigación y desarollo profesional. Porto Alegre: Artmed, 2004.

Anexo: Diário de Observação da Disciplina de LLV5102-Semântica (4ª Fase)

T erça-feira, 17 de abril de 2007 (15h30 às 17h10; 2 horas-aula).

Neste dia, foi feita a correção dos exercícios do Módulo I. Tais exercícios estavam
disponíveis no endereço eletrônico: http://www.cce.ufsc.br/~pires.
A professora disse que os exercícios dez, onze e doze constituem modelos de
questões da prova a ser realizada no dia 24 de abril.
A resolução do terceiro exercício foi:

x ama y
Ama x, y
A p, j

Todas as possibilidades acima, que se referem à sentença “Paulo ama José”, são
formas de representar o predicado bi-argumental.
A professora destacou que o predicado sempre é representado por meio de uma letra
maiúscula e o argumento, por meio de uma letra minúscula 11 .
Em seguida, ela professora diferenciou representações mais e menos abstratas. Esta é
uma representação mais abstrata:

_ama_
Amar x, y
_ensinar_
Ensinar x, y

Formas de preencher as representações acima seriam:

11 A meu ver, as diversas representações provam a predileção pela linguagem matemática; e, além disso, é uma

metalinguagem que tenta objetivar o olhar sobre a língua(gem).


João ama Maria.
Carlos ensina Pedro.

Seriam formas menos abstratas nos seguintes casos:

Maria é professora de_


_é professora de Pedro.

Neles, um dos lugares está preenchido.


A professora chamou a atenção ao verbo ser: ele pode indicar identidade ou uma
propriedade. Exemplos:

(1) Florianópolis é Florianópolis (identidade).


(2) A camiseta é amarela (indica propriedade).
(3) João chorou.

Foi feita esta distinção para afirmar que quando o verbo ser indicar propriedade,
como em (2), o predicado é mono-argumental. O mesmo ocorre em (3) 12 , que é também um
predicado mono-argumental.
A aula de hoje se pautou na correção de exercícios. Na próxima, será dada a
continuidade da correção.

12 Notei que o objetivo do exercício em questão era verificar se o/a graduando/a abstrai a estrutura sintática das
sentenças.
As respostas dos exercícios são resoluções de relações semânticas ou de relações lógicas. A noção de representação é
diferente: a linguagem é a mais sintética ou objetiva possível. É diferente das respostas de atividades mais discursivas,
como na disciplina de Metodologia do trabalho acadêmico, cuja base é a linguagem verbal-discursiva.
Eu acho difícil perceber o mundo sob o viés da semântica formal, porque minha formação é de outra ordem. Nesta
disciplina, consideram-se princípios teórico-metodológicos diferentes. É difícil deslocar, ou melhor, abandonar essa
posição para assumir outra, sem ser influenciada por aquela que negou, como solicita a professora, durante as aulas: o
abandono da intuição de falante. A meu ver, trata-se do abandono da identidade lingüística como falante da língua
portuguesa. Pode-se ter a ilusão de apagamento, no entanto, não é possível a morte, o aniquilamento. Sempre há uma
falha, uma brecha, uma fresta em que aquilo que foi apagado, emerge (Deleuze), retorna (Foucault). Em se tratando
de subjetividade, uma identidade se configura (estudos culturais da pós-modernidade).
Chamou-me a atenção o fato da professora usar a terminologia línguas naturais. Pergunto-me: que política de
nomeação/predicação está por trás dessa designação?

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