Fichamento do livro Guia para Leitura das Meditações Metafísicas, pag. 75 a 106 _____________________________________________________________________________________ 3. As idéias e a existência de Deus A terceira Meditação inicia-se com a esperança de poder utilizar as características da primeira proposição indubitável, pensou, sou, como um critério que permita distinguir as proposições verdadeiras das proposições dúbias. Aquela proposição se apresenta como “clara e distinta”, portanto todas as proposições com características análogas serão igualmente verdadeiras. Descartes define o que entende por idéia clara e distinta: “chamo de claro aquele conhecimento que é presente e manifesto a um espírito atento e de distinto, aquele que é a tal ponto preciso e diferente de todos os outros que só compreende em si aquilo que aparece manifestamente a quem o considera como se deve. O sinal que manifesta a presença à mente de um conhecimento claro e distinto é a incapacidade de duvidar da sua verdade. Algumas proposições são tão simples e evidentes que não podem ser postas em dúvida. Quando tenho uma proposição desse tipo não consigo duvidar dela. Por isso surge a esperança de poder desde agora declarar verdadeiras todas as proposições que, como o cogito, são indubitáveis. No entanto, essas proposições não apresentam o mesmo caráter privilegiado da existência do eu. Posso conceber que exista um Deus tão poderoso a ponto de ter me criado de modo que eu me engane mesmo nas proposições que me parecem indubitáveis, e continuarei a ter certeza de que existo, mas todas as proposições que pareciam indubitáveis como o cogito aparecerão incertas e passíveis de dúvida. A incapacidade de duvidar das proposições simples da matemática não pode ser considerada um motivo suficiente para julgá-las garantidas por si mesmas como o cogito. A alternativa é entre permanecer apegado à única evidência presente e indubitável, ou então tentar demonstrar que “todas as coisas que nós concebemos muito claramente e muito distintamente são verdadeiras”, demonstrando que Deus existe e que não é enganador.
3.1. A natureza das idéias
O único modo de chegar à existência de qualquer outro ente, além do eu, no interior das regras do meditar é utilizar a existência do eu pensante, as idéias e os axiomas conhecidos “por luz natural”. As idéias, ao contrário dos juízos, participam da mesma indubitabilidade da existência do eu. Descartes introduz uma divisão das idéias segundo a origem delas, que agora é assumida como uma divisão de bom senso. Deve existir um mundo externo porque as idéias adventícias são involuntárias. Mas eu mesmo poderia possuir uma faculdade que provocas aquelas idéias, como acontece no sonho. Deve existir um mundo externo, porque sou levado a crer nisso por uma inclinação natural. Mas as inclinações não são idéias claras e distintas. Em suma, o caminho da origem das idéias não é mais transitável, para tentar demonstrar a existência de um ente qualquer, fora do eu. Contudo, a possibilidade de chegar à crença verdadeira na existência de outros entes está apenas nas idéias. Trata-se, então de analisar as idéias sob um ângulo diferentes, segundo a sua natureza. André Ricardo Pontes – RA: 200500200 Professora Regina – Filosofia Geral Fichamento do livro Guia para Leitura das Meditações Metafísicas, pag. 75 a 106 _____________________________________________________________________________________ As idéias são divididas por Descartes em duas categorias: uma restrita, pela qual só se atribui o nome de idéias àqueles eventos mentais que representam alguma coisa, e uma ampliada, pela qual todo evento mental, todo ato do pensamento é uma idéia. Na primeira acepção, apenas os eventos mentais que têm um conteúdo representativo são chamados de idéias. Na segunda, são chamados de idéias também os atos de pensamento como o querer e o julgar, que não representam nenhuma coisa. Nas Meditações, especialmente na terceira, é central a acepção de idéia como estado representativo, e isso certamente porque a primeira prova da existência de Deus ali contida utiliza apenas esta noção de idéia. O que a idéia representa é chamado de realidade objetiva da idéia. A idéia em sentido próprio apresenta um duplo aspecto. De um lado, ela é um ato do pensar, e, sob esse aspecto, todas as idéias são iguais. Por outro lado, ela representa alguma coisa, tem um conteúdo representativo, graças ao qual toda idéia se diferencia das outras. Todas as idéias em sentido próprio representam alguma coisa. No entanto, nem a tudo o que é representado compete uma existência real ou possível fora da mente. Esta só se aplica àquele conteúdo representativo contido no ser real. O ser real compreende apenas aquilo que tem uma essência verdadeira, que pode existir fora da mente, e não fazem parte do ser real todos aqueles conteúdos representativos que não têm uma essência: nem os entes contraditórios, nem os entes fictícios, nem os entes de razão. Mesmo não representando sempre alguma coisa que pertence ao ser real, as idéias em sentido próprio apresentam sempre o seu conteúdo representativo como se a ele coubesse uma existência extramental ao menos possível. O objeto do pensamento é o ente. Não é possível pensar o nada. Quando a mente pensa aquilo que não existe, deve pensá-lo sob a forma de um ente real: os entes de razão. Existem idéias que representam alguma coisa que em si é um mero nada, e que portanto não existe fora da mente, mas como a mente, para poder pensar, atribui sempre aos próprios conteúdos uma existência ao menos possível, as qualidades sensíveis, como as privações e as negações, são representadas como se fossem alguma coisa. Contudo, podem não podem existir fora da mente e, portanto, as idéias que as representam como dotadas de uma existência possível são idéias intrinsecamente – materialmente – falsas. Introduzindo a categoria das idéias materialmente falsas, Descartes parece violar sua própria tese segundo a qual as idéias não podem ser falsas, uma vez que a falsidade só se encontra propriamente no juízo. Em relação a esse ponto, Descartes procurará juntar a tese segundo a qual existem idéias falsas em si mesmas com a tese segundo a qual a falsidade só se encontra no juízo: as idéias materialmente falsas são todas as idéias obscuras e confusas que induzem a considerar que o que é representado na idéia possa existir fora da própria idéia, e portanto a pronunciar um juízo falso. As percepções da mente que não têm um conteúdo representativo ao qual cabe uma possível existência fora da mente são feitas de modo a me levar a crer, ao contrário, que aquilo que elas representam possa existir, a partir do momento em que qualquer idéia, por sua natureza, atribui uma possível existência mental àquilo que ela representa. Por isso Descartes pode acrescentar que a falsidade material da idéia consiste em induzir a falsos juízos. André Ricardo Pontes – RA: 200500200 Professora Regina – Filosofia Geral Fichamento do livro Guia para Leitura das Meditações Metafísicas, pag. 75 a 106 _____________________________________________________________________________________ Em contrapartida, são materialmente verdadeiras todas aquelas idéias claras e distintas que representam entes que existem ou podem existir fora da mente, e cuja realidade objetiva, portanto, é constituída por entes que fazem parte do ser real. Exemplos privilegiados dessas idéias são as idéias das essências da matemática, às quais compete uma existência possível, e a idéia de Deus, à qual compete uma existência necessária. As idéias verdadeiras das essências, como tudo aquilo que é real, mas finito, dependem de Deus e, portanto, Deus é responsável pela verdade de tais idéias.
3.2. A existência de Deus. A primeira prova a posteriori
As provas da existência de Deus elaboradas por Descartes são três, e duas delas são a posteriori, ou seja, partem dos efeitos para buscar a causa. A primeira prova a posteriori parte da análise da idéia em sentido próprio.O conteúdo representativo das idéias pode ser estruturado de acordo com o grau de realidade que tal conteúdo representa. O grau de realidade é estabelecido com base na autonomia do ente representado: a idéia de uma substância finita representa um ente que não tem necessidade de Deus para subsistir e tem, portanto, mais realidade objetiva que as idéias que representam os acidentes. Em contrapartida, a idéia da substância infinita é a idéia de um ente que precisa apenas de si mesmo para subsistir e tem mais realidade objetiva que a idéia que representa uma substância finita. A essa análise Descartes acrescenta um princípio manifesto “por luz natural”, com base no qual “deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto no efeito”. Um ente pode ser produzido por uma causa que tem a mesma realidade que o seu efeito (causa formal) ou que tem mais realidade que o seu efeito (causa eminente), mas o que tem menos realidade não pode produzir o que tem mais realidade. Nessa circunstância aprendemos que os axiomas, entre os quais figura o princípio de causa, têm o mesmo privilégio que o cogito. Como o cogito, eles não podem ser objeto de dúvida. Eles são conhecidos por intuição e não podem ser considerados eles mesmos “ciência”, e sim condições das demonstrações e deduções, nas quais propriamente a ciência reside. Armado de um efeito sempre verdadeiro como a idéia e de um axioma igualmente verdadeiro, como o princípio de causa, o meditante pode traçar uma prova da existência de Deus verdadeiramente formada apenas de idéias claras e distintas, à qual a mente será levada a dar o seu assentimento, se tal prova for convincente, apenas pela “luz natural” e não por uma “inclinação” não justificável da razão. Em decorrência do princípio de causalidade, então, será preciso dizer que o conteúdo representativo de toda idéia provém de alguma causa, que contém em si ao menos tanta realidade formal quanto aquela idéia contém de realidade objetiva. O eu, enquanto substância pensante finita, tem suficiente realidade para poder ser a causa formal das idéias das substâncias finitas, e até mesmo tem mais realidade que as idéias claras e distintas dos modos ou acidentes daquelas substâncias. O eu tem, inclusive, suficiente realidade para produzir as idéias obscuras e confusas. Só uma idéia tem mais realidade objetiva que a realidade forma contida no eu. Trata-se da idéia da substância infinita, ou seja, Deus, uma idéia que, portanto, André Ricardo Pontes – RA: 200500200 Professora Regina – Filosofia Geral Fichamento do livro Guia para Leitura das Meditações Metafísicas, pag. 75 a 106 _____________________________________________________________________________________ não pode ser produzida pelo eu. Segue-se daí que deve existir, fora do pensamento, uma substância infinita capaz de causar em mim a idéia do infinito. Prova cartesiana: - Na causa deve haver ao menos tanta realidade quanto no efeito; - a causa da realidade objetiva das idéias deve ter ao menos tanta realidade formal quanto de realidade objetiva está contida na idéia; - o eu possui a idéia de uma substância infinita; - o eu, enquanto substância finita, não tem suficiente realidade formal para causar a realidade objetiva de uma substância infinita; - portanto, existe uma substância infinita que causou a realidade objetiva da idéia da substância infinita. A essa dedução poder-se-ia objetar que o eu pode muito bem ser causa da idéia de Deus, enquanto a idéia do infinito poderia ser obtida por negação da finitude. Se essa concepção do conhecimento que a mente humana tem do infinito fosse correta, a prova de Descartes seria insustentável, pois, precisamente, também a idéia do infinito poderia ser produzida pelo eu finito, e, portanto a existência de Deus não seria provada. Descartes tem bastante consciência disso, e está pronto para reivindicar a condição necessária para a sustentação da sua prova: o entendimento finito tem uma idéia positiva e primitiva de Deus e do infinito. Para sustentar a legitimidade de considerar positiva e primitiva a idéia do infinito, Descartes não hesita em inverter a argumentação escolástica: não é a idéia do infinito que deriva da idéia do finito, e sim a idéia do finito que deriva da idéia do infinito. Para atestar que a idéia de Deus não é materialmente falsa, Descartes reivindica a clareza e a distinção da idéia do infinito. Além disso, o conteúdo representativo da idéia de Deus tem mais realidade objetiva do que qualquer outra idéia clara e distinta e, portanto, é a idéia mais verdadeira. Essa tese leva ao extremo a pretensão cartesiana de um conhecimento positivo da essência de Deus. O conhecimento humano de Deus, segundo Tomás, é sempre um conhecimento negativo e imperfeito. Descartes elabora dois argumentos para defendê-la. Em primeiro lugar, a idéia de Deus é clara e distinta, porque tudo o que é conhecido como perfeito de modo claro e distinto é atribuído a Deus. Em segundo, que Deus é compreensível à mente humana, contrariando os que apelam para o caráter incompreensível de Deus e afirmam que a mente humana não pode ter uma idéia clara e distinta de Deus. A resposta de Descartes a essa objeção consiste em confirmar a incompreensibilidade de Deus, mas em negar que tal incompreensibilidade contraste com a clareza e a distinção da idéia. De fato, a natureza do infinito é ser incompreensível à mente finita, portanto quem afirmasse compreender o infinito admitiria, com isso mesmo, não ter idéia clara e distinta dele, uma vez que acreditaria pensar no infinito quando na verdade estaria pensando no finito, que é o único que pode ser compreendido nos limites finitos da mente humana. Só quem não compreende o infinito pode considerar que possui uma idéia verdadeira e, portanto, clara e distinta da sua natureza. É porque “entendo” verdadeiramente a natureza infinita de Deus que não posso compreendê-lo. Não se pode dizer que a idéia do infinito poderia ser obtida por acréscimo progressivo das minhas perfeições. Nesse caso, a idéia de Deus seria a idéia de um André Ricardo Pontes – RA: 200500200 Professora Regina – Filosofia Geral Fichamento do livro Guia para Leitura das Meditações Metafísicas, pag. 75 a 106 _____________________________________________________________________________________ infinito em potência, ao passo que a idéia clara e distinta de Deus o representa como atualmente infinito.
3.3. A existência de Deus. A segunda prova a posteriori
A segunda prova a posteriori é uma reformulação da primeira: em vez de buscar a causa de uma idéia, buscará a causa de um ente, o eu pensante. Segundo Tomás: - No mundo, todo ente deve ter uma causa; - na busca das causas não se pode prosseguir ao infinito; - portanto, existe uma causa primeira incausada, que é Deus. Descartes tentará demonstrar que Deus existe a partir do único ente finito cuja existência conhece: o eu. Não se busca mais a causa do infinito, como na primeira prova, e sim a causa do finito, mas na medida em que ele possui em si a idéia do infinito. A premissa diz, propriamente, o seguinte: o eu, na posse da idéia de Deus, deve ter uma causa. Em primeiro lugar, Descartes considera a hipótese de ser ele mesmo causa da própria existência, hipótese logo rejeitada porque aquele que se tivesse dado o ser deveria ter dado a si mesmo também todas as perfeições de que tem idéia, mas o eu não possui todas as perfeições de que tem idéia, e portanto o eu não pode ter dado a si mesmo o ser. Descartes rejeita a hipótese da autocausalidade do eu, apenas porque o eu não tem todas as perfeições de que tem idéia. Isso significa que Descartes não julga em si contraditória a hipótese de que um ente seja a causa de si mesmo. A existência no tempo presente não determina a existência no tempo sucessivo. A partir dessa premissa, Descartes empreende uma interpretação extremista da teoria escolástica segundo a qual é necessária uma intervenção constante da causa primeira para conservar as criaturas no ser. Para explicar a existência de um ente no tempo presente é necessária uma causa que tenha o poder de criar, uma causa que exerça o mesmo poder “que seria necessário para produzi-la e criá-la realmente de novo, se ela ainda não existisse”. Ora, eu não possuo essa força, porque, se a tivesse, ela, devendo dar-me o ser, estaria sempre em ação e eu, portanto, teria consciência de exercê-la. Assim, o eu deve ter uma causa diferente de si mesmo. O princípio da causalidade obriga a buscar uma causa que tenha ao menos tanta realidade quanto a que está contida no efeito, uma substância pensante em posse da idéia de Deus. Esta causa, se existe por si, deve ter dado a si mesma também todas as perfeições de que tem idéia. Se existe por outros, deve-se buscar sua causa em um ente que ou deu o ser a si mesmo ou o recebeu de outros. Desse modo, corre-se o risco de desencadear um regresso ao infinito no qual se encontrem sempre e tão-somente entes causados por outros. Mas nesse caso está excluído o regresso ao infinito, uma vez que se está buscando a causa que conserva o eu no tempo presente, e no presente não há tempo para um regresso ao infinito das causas. Para excluir a autocausalidade do eu se dizia: como não tem todas as perfeições de que tem idéia, o eu não pode ter dado o ser a si mesmo; agora, ao contrário, se conclui: como a causa primeira é a causa do próprio ser, terá dado a si mesma também todas as perfeições de que se tem idéia, e, portanto será Deus. André Ricardo Pontes – RA: 200500200 Professora Regina – Filosofia Geral Fichamento do livro Guia para Leitura das Meditações Metafísicas, pag. 75 a 106 _____________________________________________________________________________________ Descartes, como todos os teólogos que o precederam, considera que Deus, ao contrário dos entes finitos que são por outro, ou seja, causados por outros entes, é um ente por si. Toda a escolástica, excluindo como contraditória a noção de autocausalidade, interpretou: Deus é por si no sentido de que não tem causa, de que não depende de outro. Descartes, ao contrário, interpreta que Deus é por si no sentido de que é causa de si mesmo (causa sui). A essência de Deus é causa da própria existência, no sentido de que ela é a razão pela qual Deus existe. Descartes substitui a alternativa escolástica causado por outro/incausado pela alternativa causado por outro/causado por si mesmo, em decorrência da universalidade do princípio de causa. Descartes justifica: deve existir um ente causa de si mesmo, porque no presente é impossível o regresso ao infinito. Mas a física cartesiana prevê a possibilidade da divisão do finito ao infinito e, portanto, mesmo se o tempo presente no qual se deve buscar a causa é finito, não é claro por que ele deva excluir o regresso ao infinito. Em contrapartida, se se concede que no tempo presente finito não é possível o regresso ao infinito, esse parece constituir um bom argumento em favor do caráter incausado da causa primeira. A inferência de uma causa de si a partir da impossibilidade do regresso ao infinito será acompanhada pela tese segundo a qual a causa que tem força suficiente para sustentar um ente no ser deve ter força suficiente para dar o ser a si mesma; assim, do simples fato de que deve existir uma causa do eu se infere que a causa que dá o ser ao eu é causa sui, e que, portanto, terá dado a si mesma todas as perfeições de que tem idéia. Esquema da segunda prova a posteriori: 1. Da existência presente não se segue a existência futura; 2. É necessária uma causa que recrie um ente existente a cada instante em que dura o ente; 3. A causa de um ente deve possuir formal ou eminentemente toda a realidade possuída por aquele ente; 4. Existe um ente – o eu, substância pensante finita – em posse da idéia de Deus; 5. A causa do eu em posse da idéia de Deus deve ser uma substância pensante em posse da idéia de Deus; 6. Quem tem força suficiente para dar o ser a uma outra substância tem força suficiente para dar o ser a si mesmo; 7. Existe uma causa do eu que é por si; 8. Quem tem força suficiente para dar o ser a si mesmo tem força suficiente para dar a si mesmo todas as perfeições de que tem idéia; 9. Quem conhece o bem e tem força suficiente para obtê-lo, necessariamente vai querer obtê-lo; 10. A causa primeira tem força suficiente para dar a si mesma todas as perfeições; 11. A causa primeira tem a idéia de todas as perfeições; 12. A causa primeira necessariamente dará a si mesma todas as perfeições de que tem idéia; 13. Portanto, a causa primeira é um ente perfeitíssimo, ou seja, é Deus. André Ricardo Pontes – RA: 200500200 Professora Regina – Filosofia Geral Fichamento do livro Guia para Leitura das Meditações Metafísicas, pag. 75 a 106 _____________________________________________________________________________________ A prova revela-se redundante em relação à primeira, e extraordinariamente complicada em relação ao seu modelo, a prova causal de Santo Tomás. Tal complexidade é explicada pela vontade de reproduzir o esquema tomista com algumas correções e violações: Tomás Descartes No mundo, todo ente deve ter O eu, na posse da idéia de uma causa. Deus, deve ter uma causa. (Tomás havia negado que se pudesse ter idéia de Deus.) Na busca de uma causa não se No tempo presente não se pode prosseguir ao infinito. pode prosseguir ao infinito. (O regresso ao infinito, para Descartes, ao contrário de Tomás, é possível.) Portanto, existe uma causa Portanto, existe uma causa primeira incausada. primeira causa de si mesma. (Para Tomás, a autocausalidade é impossível.) A primeira correção é a inserção da idéia de Deus. Sem o conhecimento da Deus, nunca é possível provar que a causa primeira é Deus. Se se buscasse simplesmente a causa do eu, não se conseguiria provar que a causa primeira é o ente perfeitíssimo. “Mesmo se chego a uma primeira causa que me conserva, não posso dizer que essa causa seja Deus, se não tenho verdadeiramente a idéia de Deus”. A prova causal tomista era empenhada em remontar ao regresso das causas no tempo passado. Tomás pensou assim por ter considerado que o regresso ao infinito nas causas era impossível, porque ele é incompreensível, mas o fato de o regresso ao infinito ser incompreensível para a mente humana não implica de modo algum que ele seja impossível em si. Se se buscasse a causa primeira regredindo na série das causas no tempo passado, jamais se encontraria uma primeira causa. Se se busca a causa no tempo presente, o regresso ao infinito não existe, pois não há tempo suficiente para permiti-lo. Esta inovação possui uma crítica radical à prova tomista: se fosse preciso buscar a causa da existência do eu remontando às causas passadas, não se encontraria nem sequer uma causa primeira. Descartes esclarecerá que só a introdução da noção de autocausalidade permite demonstrar que a causa primeira dos efeitos finitos é Deus: quem tem tanta força para dar a si mesmo o ser tem também força suficiente para dar a si mesmo todas as perfeições de que tem idéia, e, portanto, se tem a idéia de todas as perfeições, é Deus. É necessário modificar Tomás inserindo a busca da causa conservante no tempo presente para encontrar uma causa primeira, e é indispensável introduzir a idéia de Deus e a noção de causa sui para demonstrar que esta causa é o ente infinitamente perfeito, ou seja, Deus. A insistência cartesiana na necessidade de inserir nas provas a posteriori a idéia de Deus e a noção de causa sui deve-se à vontade de enfrentar e resolver o problema relativo à passagem de uma realidade finita qualquer, também o eu, à realidade infinita e infinitamente perfeita, que é a de Deus. Deus, graças à sua potência infinita, sem dúvida tem a capacidade de criar na mente uma falsa evidência, porém jamais utilizará tal poder, porque, se o André Ricardo Pontes – RA: 200500200 Professora Regina – Filosofia Geral Fichamento do livro Guia para Leitura das Meditações Metafísicas, pag. 75 a 106 _____________________________________________________________________________________ fizesse, a mente humana seria levada ao engano pelo próprio Deus, e isso é impossível, porque Deus é não só infinitamente poderoso, mas também verdadeiro, uma conseqüência da infinita potência de Deus, uma vez que o engano revela antes fraqueza.
3.4. A idéia de Deus
Para Descartes, a idéia de Deus é inata. Como exemplo de idéias inatas citava-se apenas as faculdades do pensamento. Agora sabemos que na mente são também inatas algumas idéias representativas de algo a que corresponde uma existência possível ou real fora da mente. A idéia de Deus não pode ser adventícia porque exigiu uma escolha voluntária de atenção; a idéia de Deus não pode ser factícia, já que o conteúdo dessa idéia se impõe à mente sem que seja possível manipulá-lo ou modificá-lo. Por conseguinte, como a idéia de mim mesmo, a idéia de Deus nasceu e foi produzida comigo no momento em que fui criado. A idéia de Deus é inata porque é a própria natureza do eu que traz a marca do criador. O eu É a idéia de Deus. Portanto, minha natureza ela mesma é a idéia de Deus, enquanto traz a imagem dele. Descartes insiste: a finitude só é inteligível por comparação com a infinitude, portanto, se me conheço como finito, é porque me comparo às perfeições que não possuo, mas das quais tenho uma idéia. É porque tenho conhecimento do infinitamente perfeito que posso ter conhecimento da minha natureza finita. Trata- se de entender o finito graças ao conhecimento do infinito inscrito na mente finita. A análise da idéia de Deus confirma a precedência do conhecimento claro e distinto do infinito sobre o finito. Por outro lado, encontra a idéia da absoluta perfeição por análise da natureza finita. A insistência cartesiana no conhecimento de Deus através de uma idéia criada implica a rejeição da tese tomista segundo a qual Deus não pode ser conhecido verdadeiramente através de uma idéia criada. Esta violação dá corpo ao projeto cartesiano de garantir a ciência sem contato com o divino, mas graças ao conhecimento claro e distinto da natureza divina reencontrada no interior da finitude. A garantia das idéias claras e distintas foi encontrada em uma outra idéia clara e distinta, inscrita na natureza finita do eu.