Você está na página 1de 1

A VONTADE DO FALECIDO Stanislaw Ponte Preta

Seu Irineu Boaventura não era tão bem-aventurado(1) assim, pois sua saúde não era lá para que se diga. Pelo contrário, seu Irineu
ultimamente já tava até curvando a espinha, tendo merecido, por parte de vizinhos mais irreverentes (2), o significativo apelido de “Pé-na-
Cova”. Se digo significativo é porque seu Irineu Boaventura realmente já dava a impressão de que, muito brevemente, iria comer capim pela
raiz, isto é, iam plantar ele e botar um jardinzinho por cima.
Se havia expectativa em torno do passamento(3)do seu Irineu? Havia sim. O velho tinha os seus guardados. Não eram bens imóveis,
pois seu Irineu conhecia de sobra Altamirando, seu sobrinho, e sabia que, se comprasse terreno, o nefando (4) parente se instalaria nele sem
a menor cerimônia. De mais a mais, o velho era antigão: não comprava o que não precisava e nem dava dinheiro por papel pintado. Dessa
forma, não possuía bens imóveis nem ações […]. A erva dele era viva. Tudo guardado em pacotinhos, num cofrão verde que ele tinha no
escritório. Nessa erva é que a parentada botava olho grande […] principalmente depois que o velho começou a ficar com aquela cor de uma
bonita tonalidade cadavérica. O sobrinho, embora mais mau-caráter do que o resto da família, foi o que teve a atitude mais leal, porque,
numa tarde em que seu Irineu tossia muito, perguntou assim de supetão(5):
Titio, se o senhor puser o bloco na rua, pra quem é que fica o seu dinheiro, hem?
O velho, engasgado de ódio, chegou a perder a tonalidade cadavérica e ficar levemente ruborizado, respondendo com voz rouca:
- Na hora em que eu morrer, você vai ver, seu cretino.
Alguns dias depois, deu-se o evento(6). Seu Irineu pisou no prego e esvaziou. Apanhou um resfriado, do resfriado passou à pneumonia,
da pneumonia passou ao estado de coma(7) e do estado de coma não passou mais. Levou pau e foi reprovado.[…]
- Bota titio na mesa da sala de visitas – aconselhou Altamirando; e começou o velório. Tudo que era parente com razoáveis esperanças
de herança foi velar o morto. Mesmo parentes desesperançados compareceram ao ato fúnebre(8), porque estas coisas vocês sabem bem
como são: velho rico, solteirão, rende sempre um dinheirão. Horas antes do enterro, abriram o cofrão verde onde havia sessenta milhões em
cruzeiros, vinte em pacotinhos de “Tiradentes” (9)e quarenta em pacotinhos de “Santos Dumont”(10):
O velho tinha menos dinheiro do que eu pensava – disse alto o sobrinho.
E logo adiante acrescentava baixinho:
- Vai ver, gastava com mulher. Se gastava ou não, nunca se soube. Tomou-se – isto sim – conhecimento de uma carta que estava
cuidadosamente colocada dentro do cofre, sobre o dinheiro. E na carta o velho dizia: “Quero ser enterrado junto com a quantia existente
nesse cofre, que é tudo o que eu possuo e que foi ganho com o suor do meu rosto, sem a ajuda de parente vagabundo nenhum.” E, por
baixo, a assinatura com firma reconhecida para não haver dúvida: Irineu de Carvalho Pinto Boaventura.
Pra quê! Nunca se chorou tanto num velório sem se ligar pro morto. A parentada chorava às pampas, mas não apareceu ninguém com
peito para desrespeitar a vontade do falecido. Estava todo o mundo vigiando, e lá foram aquelas notas novinhas arrumadas ao lado do
corpo, dentro do caixão. Foi quase na hora do corpo sair. Desde o momento em que se tomou conhecimento do que a carta dizia, que
Altamirando imaginava um jeito de passar o morto pra trás. Era muita sopa deixar aquele dinheiro ali pro velho gastar com minhoca. Pensou,
pensou e, na hora que iam fechar o caixão, ele deu um grito de “pera aí”. Tirou os sessenta milhões de dentro do caixão, fez um cheque da
mesma importância, jogou lá dentro e disse “fecha”.
Se ele precisar, mais tarde desconta o cheque no Banco. (Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. SP, Moderna, 1986)
Vocabulário Nefando: detestável, que merece Coma: situação de um doente cujo cérebro praticamente não
Bem aventurado: muito feliz desprezo funciona mais
Irreverente: desrespeitoso De supetão: sem se esperar, de Fúnebre: que se refere a morte
Passamento: falecimento, repente Tiradentes e Santos Dumond: nomes populares de notas de
morte Evento: fato, acontecimento dinheiro na época.
ESTUDO DO TEXTO: 5. Segundo o narrador, por que Altamirando foi o parente que teve
1. Por que o texto chama-se A vontade do falecido? a atitude mais leal com seu Irineu?
2. Segundo o texto, por que seu Irineu não era feliz? 6. Em relação às atitudes dos parentes no velório de seu Irineu,
3. Que fato levou os vizinhos de seu Irineu a lhe darem o apelido indique se cada uma das afirmações a seguir é verdadeira ou falsa.
de Pé-na-Cova? Justifique sua opção.
4. Releia: 1. Os parentes choraram muito, pois ficaram tristes com a morte de
“[…] A erva dele era viva. Tudo guardado em pacotinhos, num seu Irineu.
cofrão verde que ele tinha no escritório. 2. Os parentes eram muito unidos e confiavam uns nos outros.
Nessa erva é que a parentada botava olho grande[…].” 7. Afinal, Altamirando conseguiu ou não “passar o morto pra trás”?
1. Explique o significado da expressão destacada. Justifique sua resposta:
2. O que sentiam os parentes de seu Irineu em relação ao
dinheiro dele?

A LINGUAGEM DO TEXTO:
1. Informal é a linguagem descontraída, em que aparecem palavras e expressões populares. Ela é muito usada na conversa do dia-
a-dia entre amigos e familiares. Veja um exemplo tirado do texto:
“[…] sua saúde não era lá para que se diga”.
Usando uma linguagem mais formal, esse trecho ficaria assim:
[…] sua saúde não era muito boa.

Indique a expressão formal que substitui adequadamente a informal destacada nos seguintes trechos:
a) “[…] seu Irineu conhecia de sobra Altamirando […]” ( ) pouco ( ) muito bem ( ) de vista

b) “Titio, se o senhor puser o bloco na rua, pra quem é que fica o seu dinheiro, hem?”
( ) bater as botas ( ) ficar irritado ( ) falecer

3. “[…] não apareceu ninguém com peito para desrespeitar a vontade do falecido.” ( ) com medo ( ) com coragem ( ) desonesto

4. “A parentada chorava às pampas […]” ( ) feito louca ( ) fingidamente ( ) muito

5. “[…] Altamirando imaginava um jeito de passar o morto pra trás.” ( ) enganar o morto ( ) desrespeitar o morto ( ) temer o morto

2. A expressão pé-na-cova é usada na linguagem popular para dizer que uma pessoa está doente, próxima da morte.
Nas frases que seguem, aparecem outras expressões com a palavra pé. Procure explicar o significado delas.
1. Ele trabalhou muito, fez um pé-de-meiae teve uma velhice tranquila.
2. Nosso time estreou com o pé direito no campeonato: venceu os três jogos que disputou.
3. Um bom pedreiro faria esse trabalho com um pé nas costas.
4. Para não acordar o bebê, a mulher entrou no quarto pé ante pé.

Você também pode gostar