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Conto Infanto-juvenil

Alguma Coisa Agora-em-si


Andréia Lisboa 35
EDITORIAL
Poemas
01
Terra de Negros
Oliveira Silveira 39
IDÉIAS Cinco Elementos
Oubí Inaé Kibuko 40
Culturas Negras, civilização brasileira
Joel Rufino dos Santos 04 Renascer
José Carlos Limeira 41
O Ônibus e o Atabaque
Marco Aurélio Luz 10 Linhagem
Carlos de Assumpção 42
Diversidade Cultural, identidade e
resistência Todas
Gilberto Gil 13 Cristiane Pereira 42
Enigma do Amor
Esmeralda Ribeiro 43
Canarinhas da Vila
Landê Onawale 44
LITERATURA E ARTE
É Desse Jeito
Dilmar Durâes 45
Conto adulto
Ponto Riscado no Espelho Quilombo do Curiaú
Cuti Creuza Miranda Silva 46
16
Conto do Dia 4 de Dezembro Ogum
Fábio Lima Ronald Augusto 47
18
Da Barriga do Abutre Iteques
Jussara Santos Edimilson de Almeida 50
21
Corpo-Texto Poema
Maria Helena Vargas França 51
23
Visitante Indesejado
Ubiratan Castro de Araújo 25
Conto Infantil
O Bê-á-bá do Baobá
ENSAIO VISUAL
Inaldete Pinheiro de Andrade 29
O Tesouro de Monifa Ancestralidade
Sônia Rosa 32 Goya Lopes 48
2
ENSAIOS

Da representação à auto-apresentação
da mulher negra na literatura brasileira
Conceição Evaristo 52
Um teatro negro para um Brasil
AXÉ DE FALA
melhor?
Cristiane Sobral 58 Leci Brandão
O corpo negro e a dança negra no Observações 85
cenário artístico soteropolitano
Mãe Beata de Iemonjá
Nadir Nóbrega Oliveira 61 Respeito aos Ancestrais 86
Evitando a “esportização” e a
Ramón Rodrigues
“folclorização”, a capoeira se afirma
Tradição e Política 87
como cultura negra
Paula Cristina da Silva Barreto 64
Cinema negro: aspectos de uma arte
para a afirmação ontológica do negro
brasileiro MOSAICO
Celso Prudente 68
Patrimônio imaterial – A 1ª CONAPIR
democratização da memória Estado e Sociedade
Raul Lody promovendo a Igualdade 89
73
Vídeos educativos
sobre inclusão e valorização racial 89
CULTURA NEGRA
pelas ondas da Rádio Palmares
RESENHAS
Prêmio Palmares de Comunicação
Terras de Palavras ineditismo para a mídia étnica
Por Fabiana de Lima Peixoto 77 Os Negros 90
A Cor da Ternura um “cast” afro-brasileiro em cena
Por Ione Jovino da Silva 78 92

PÉROLAS NEGRAS
ENTREVISTA
Abdias do Nascimento:
A África e sua Diáspora: novas
90 anos - Memória Viva
parcerias
Carlos Lopes 80 93
3
A Revista PALMARES - CULTURA AFRO-BRASILEIRA é uma ini-
ciativa da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, que
tem como objetivo principal a instituição de um veículo de divulgação da
produção cultural dos artistas, dos militantes e dos intelectuais negros
brasileiros. Desde já esconjuramos a tentação de uma publicação veicula-
dora de qualquer tipo de propaganda institucional. Acreditamos que o
papel de uma fundação pública de cultura negra é promover a produção
e a circulação de idéias referenciadas no patrimônio cultural que nos foi
legado por nossos antepassados africanos, capazes de fortalecer nossa
identidade e, ao mesmo tempo, estabelecer o diálogo com todos os com-
ponentes da diversidade cultural brasileira.

O projeto editorial da Revista PALMARES reflete o nosso compro-


misso com a diversidade de linguagens artísticas, de abordagens teóricas
e de percepções de mundo. Na seção IDÉIAS estarão reunidas, em torno
de um tema sempre abrangente, as contribuições de personalidades re-
presentativas da nossa cultura. As várias artes da palavra vão estar pre-
sentes na seção LITERATURAS E ARTES. Em ENSAIOS, teremos análises
acadêmicas sobre os vários fazeres da cultura afro-brasileira. Em RESE-
NHAS buscaremos a informação e o comentário sobre a produção literá-
ria e no ENSAIO VISUAL veremos um espelho de uma produção de ima-
gens da nossa gente. Na seção ENTREVISTA, estarão as opiniões de des-
tacadas personalidades negras sobre temas variados da história, da cultu-
ra, da política e de outras artes e ofícios referenciados à nossa cultura. A
seção AXÉ DE FALA é o desabafo, é a fala do coração. No MOSAICO, está
a notícia e nas PÉROLAS NEGRAS a nossa homenagem àqueles que se
constituem em nossas referências maiores.

Neste primeiro número, agradecemos especialmente à equipe da


Fundação Cultural Palmares e aos nossos conselheiros consultores, que
conceberam esta revista. Esperamos a sua participação, pois esta revista é
de todos nós.

UBIRATAN CASTRO DE ARAÚJO


Editor-chefe
IDÉIAS é o espaço de livre manifestação de intelectuais sobre a cultura afro-
brasileira. Não há qualquer intenção de estabelecer o contraditório de um debate,
tampouco a pretensão de esgotar um tema em um dossiê. Nesta seção, buscamos a
exposição da diversidade de métodos, abordagens e conceitos reunidos sob pretexto
de um tema bastante amplo. Nesta edição, o mote é Cultura Negra, Cultura Afro-
brasileira. Aqui, estão reunidos três intelectuais da maior expressão. Marco Aurélio
Luz é antropólogo e, ao mesmo tempo, cientista e protagonista da tradição religiosa
afro-referenciada. Joel Rufino, ex-presidente da Fundação Cultural Palmares, é um
dos mais prestigiados intelectuais negros. Gilberto Gil, Ministro da Cultura, é um
dos atores mais representativos da cultura negra internacional. Leiam e reflitam
sobre as suas idéias.

CULTURAS NEGRAS,
civilização brasileira* Joel Rufino dos Santos

Gilberto Freire escreveu então descobriram não ser


em algum lugar que o brasi- brancos.
Joel Rufino
leiro é negro nas suas expres- Negro seria, pois, um dos
dos Santos
sões sinceras. Para demarcar nomes da nossa diferença; e
Historiador, romancista, ativista o patrimônio afro-brasileiro, patrimônio afro-brasileiro o
do movimento negro, ex-
bastaria, portanto, excluir o conjunto de bens físicos e
presidente da Fundação
Palmares/MinC, autor de vários que em nós é pose ou imita- simbólicos que nos individu-
livros sobre a história do negro ção. É o que também parece aliza, digamos, diante dos ar-
no Brasil. sugerir o senso comum ao gentinos. Na mistura de po-
dar o negro como o brasilei- vos e culturas que tem sido a
ro mais brasileiro de todos, o nossa história, o negro (ou
legítimo.1 Não se é negro só afro -brasileiro) funciona
quando se ri, se ama, se xin- como enzima - substância ca-
ga, se fala com Deus - nas ex- paz de acelerar ou retardar o
pressões sinceras - mas em ritmo das reações que se pro-
qualquer situa- duziram, ou
ção desde que como o fixador
não se possa químico das re-
ser senão brasi- velações foto-
leiro. Brasilei- gráficas.
ros no exterior Não foi, por
costumam con- exemplo, o ne-
fessar que só gro quem nos
* Artigo publicado na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, IPHAN/MinC, 1997.
4
deu a língua, derivação do Toninhas, Totonhas; as Tere- das num francês mais lírico
sermo vulgaris iberico, nem o sas, Tetés; os Manuéis, Nézi- que o da França: pralines de pa-
molde inicial da nossa fala, a nhos, Mandus, Manés; os canes, bon cajé tout chaud, bI-
língua geral, mas foi ele quem Franciscos, Chico, Chiqui- anches tabIettes à Ia leur
ensinou o proto-brasileiro a nho, Chicó; os Pedros, Pepes; d’oranger. Influência das bon-
falar português - tanto o pro- os Albertos, Bebetos, Beti- nes vieilles négresses.2
to-brasileiro das minas quan- nhos. Isto sem falarmos das O negro pôde fazer isso -
to o da selva, o do litoral laiás, dos loiôs, das Sinhás, ensinar português aos brasi-
como o do sertão. (Sertão, das Malus, Calus, Bembéns, leiros - porque em quatrocen-
como se sabe, deriva de deser- Dedés, Marocas, Nocas, No- tos anos de escravidão ele foi
tão, o espaço sem fim que nocas, Gegês. deslinguado. Mesmo quando
amedrontava o português). E não só a língua infantil permaneceu africano - e bas-
Até mesmo os nhonhozinhos se abrandou desse jeito, mas ta colocar lado a lado, hoje,
aprenderam com negros; e a linguagem em geral, a fala uma zairense e uma carioca
Freire, outra vez, é que expli- séria, solene, da gente gran- sambando para descobrir - ele
cou melhor: de, toda ela sofreu no Brasil perdeu a lingua. Perdendo-a,
“A ama negra fez muitas ao contato do senhor com o inventou a que falamos. Con-
vezes com as palavras o mes- escravo, um amolecimento de tam que Churchill reclamava:
mo que com a comida - resultados às vezes deliciosos “O preço que a Inglaterra vai
machucou-as; tirou-lhes as para o ouvido. Efeitos seme- pagar pela conquista do mun-
espinhas, os ossos, as dure- lhantes aos que sofreram o do é ouvir um indiano falan-
zas, só deixando para a boca inglês e o francês noutras par- do inglês”. Com a troca de
do menino branco as sílabas tes de América, sob a mesma nomes seria uma frase para o
moles. Daí, esse português de influência do africano e do Conde de Abranches.3
menino que no Norte do Bra- clima quente. Mas principal- De forma que é difícil, no
sil, principalmente, é uma mente do africano. Nas Anti- plano lingüístico, isolar o pa-
das falas mais doces deste lhas e na Luisiana bonnes viei- trimônio afro-brasileiro. Há
mundo. Sem rr nem ss; as sí- lles négresses, adocicaram o um aspecto visível, o léxico,
labas fonais moles; palavras francês, tirando-lhe o fanho- que muitos estudaram4; mas
que só faltam desmanchar-se so antipático, os rr zangados; há também o quase invisível,
na boca da gente. A lingua- no Sul dos Estados Unidos as como a prosódia, dificílimo
gem infantil brasileira e, mes- old mammies deram ao ranger de separar. Pierre Verger, com
mo a portuguesa, tem um sa- das sílabas ásperas dos ingle- cinqüenta anos de Brasil, me
bor quase africano: cacá, pipi, ses uma brandura oleosa. Nas contava que não perdeu o so-
bumbum, tentém, neném, tatá, ruas de Nova Orleãs, nos taque francês, enquanto estu-
papá, papato, lili, mimi, au-au, seus velhos restaurantes ain- dantes nigerianos, com três
babanho, cocá, dindinho, bimbi- da se ouvem anunciar nomes meses de Bahia, já entram na
nha. Amolecimento que se de bolos, de doces, de comi- música do falar baiano - que
deu em grande par- é a sua.
te pela ação da ama Contudo, o mais
negra junto à crian- formidável caso de
ça, do escravo preto patrimônio invisíveI
junto ao filho do se- do negro brasileiro se
nhor branco. Os no- deu no esporte naci-
mes próprios foram onal. O foot-ball, tra-
dos que mais que se zido por ingleses ao
amaciaram, perden- terminar o século
do a solenidade, dis- passado, junto com o
solvendo-se, delicio- squash e o cricket, foi
samente, na boca dos durante anos o que é
escravos. As Antôni- o tênis hoje. Impor-
as ficaram Dondons, tava-se num pacote a

5
bola, os uniformes e o hand e os negros invadiram as terá contribuído para des-
book ensinando a jogar. Termi- grandes equipes. Com Faus- moralizar essa espécie de
nados os matches ia o team to, “A Maravilha Negra”, Le- bovarismo que faz com que
vencedor, já enxertado com ônidas, “O Diamante Negro” nos suponhamos ser bran-
burguesinhos daqui, festejar e o veterano mulato Frienden- cos.
nas confeitarias: “When more reich, “El Tigre”, os negros in- O bumba-meu-boi é um
we drink togheter, more fri- ventaram a “maneira” brasi- caso perfeito de luta pelo di-
ends we will be!” leira de jogar futeboI: escuro reito de representar. Conhe-
Após a Grande Guerra - ou claro de pele, verdadeiro cemos o enredo original: uma
que tanta coisa mudou no craque passa a ser o que joga negra grávida que deseja co-
Brasil - é que o foot-ball se na- “daquela maneira”. O que mer língua de boi leva o ma-
cionalizou, embora ainda em vem em seguida é conhecido, rido a matar o animal prefe-
1940 um marmanjo ao derru- cada geração será liderada rido do amo. Separada a lín-
bar outro arranhasse a gar- por um grande jogador afro- gua, faz-se a repartição festi-
ganta num “Sorry”! Em 1920, brasileiro: Fried gera Fausto va das carnes e vísceras. O
quando Lima Barreto quis que gera Leônidas que gera negro foge, é recapturado por
fundar a Liga Nacional con- Zizinho que gera Pelé... O índios amigos, é punido e,
tra o Futebol, o esporte já era Brasil se torna conhecido com ajuda de mandingueiros,
brasileiro mas permanecia como o “país do futebol” e ressuscita o boi com um clis-
branco. Era jogado por negri- tem no mundo a cara de um ter no rabo. Todo ano, até o
nhos do Maranhão ao Rio negrinho de Três Corações. fim dos séculos, encena-se a
Grande do Sul, em fields sem O Barão do Rio Branco, morte e ressurreição de Ápis.
grama e bolas esbeiçadas, mas que zelou pela nossa imagem A etnografia do boi no
os grandes times - o Botafo- de país branco, sofreria. Se Norte e Nordeste remonta ao
go, o Corinthians, o Grêmio, amasse o futebol, ao menos século XVIII. A matriz mito-
o Náutico... - só admitiam poderia comemorar: já não lógica estava na África e na
mulatos de gorra e maquia- somos sparrina da Argentina. Europa, mas a sua difusão
dos. A um certo Carlos Alber- Outro caso formidável é pelo Brasil é uma proeza do
to, por exemplo, deve o Flu- o do bumba-meu-boi, talvez negro-brasileiro: onde houve
minense seu apelido de “pó- o mais antigo e universal dos escravidão, houve boi. É
de-arroz”. nossos folguedos. como aquelas histórias de
Nessa fase, nosso Em julho de 1955, um jor- mouras encantadas: onde
futebol não pas- nal argentino publicou a char- chegaram pretas velhas -
sa de imitação ge que ilustra a abertura des- como aquela vó Totônia, do
do inglês ou do te artigo.5 O embaixador bra- menino Zé Lins do Rego -
platino. Jogáva- sileiro protestou com vee- elas ficaram conhecidas. Mas
mos contra eles mência. O editor argentino a história do boi é também
“para aprender ” retorquiu: o protesto brasilei- uma história de repressão e
e se ro era por aquele “negrito” e clandestinidade, até pelo me-
nos não pelo resto. nos este século. Não podia ser
goleavam sentía- De qualquer jeito, uma diferente: o motivo do folgue-
mos o orgulho modalidade “sutil” do racis- do é o desejo da negra e o es-
do sparring. mo brasileiro é o “monopó- pírito é a representação do ne-
Com a Revolu- lio de representação” pelo gro e do branco pelo negro.
ção de Trinta, branco. Aqui, brancos sem- Ao levar o bumba-meu-boi
porém, veio a pre conviveram com negros, a toda parte, subtraindo-o do
profissionaliza- mesmo sob a escravidão. Do contexto cultural europeu,
ção do futebol - que não gostam é de serem acrescentando-lhe as remi-
e, aliás, também representados por eles, fora niscências da África profun-
a do samba, os ou dentro do país. Nesse da, os afro-brasileiros eleva-
Kiko Nascimento

jovens burgue- sentido, o fato de termos ram-no a ente de civilização.


ses se afastaram para o mundo a cara do Pelé Fizeram-no patrimônio.

6
Aloísio Magalhães, que primida em nome da ordem terra de ninguém a que cha-
elevou a reflexão sobre o pa- e bons costumes - atingira aí mamos futuro.
trimônio a um patamar supe- o seu limite de ente cultural. Tocamos a essa altura no
rior àquele em que a deixara Lá por 1910, a capoeira cario- que deveria ser uma correta
Mário de Andrade, costuma- ca encerrava o seu tempo de politica de patrimônio para o
va usar a metáfora do bodo- empuxo para trás, na alegoria Brasil - um país novo e po-
que: um impulso para a fren- de Aloísio Magalhães: era bre. 6 Pois seria inaceitável,
te necessita de um empuxo apenas uma tradição dos ne- com efeito, chegar ao fim do
para trás. Quando é que um gros. Faltava-lhe o impulso século com a primitiva idéia
bem se torna patrimônio? para a frente, o lançamento de patrimônio a preservar: o
Não basta ser antigo, tradici- no futuro, e esse foi dado monumento histórico de pe-
onal, histórico - este é o em- pela sua incorporação ao dra e cal. Mário de Andrade
puxo do bodoque para trás. novo esporte, o futebol, que com sua enorme intuição - e
É preciso que o bem atinja adi- estava se nacionalizando e enorme porque ele tinha a
ante, se arremesse de encon- massificando: a maneira bra- noção de cultura como coisa
tro ao indevassável que cha- sileira de jogar futebol é o des- política - já nos convencera de
mamos futuro. Este é o im- dobramento natural do jogo que patrimônio histórico
pulso do bodoque para a fren- de capoeira. A capoeira, nes- abrange as artes arqueológi-
te. Dessa definição decorrem se momento, torna-se patri- cas, ameríndia, popular e his-
as duas características básicas mônio brasileiro e, como tal, tórica; as eruditas nacional e
de um bem de patrimônio: um ente de civilização - isto é, estrangeira, e as aplicadas na-
pertinência no espaço e du- um produto sofisticado resul- cionais e estrangeiras. Mas foi
ração no tempo. tante do encontro de tradições preciso esperar o último go-
Decorre também esta: o diferentes. Mais que um pro- verno do ciclo militar (1978-
patrimônio é um ente de ci- duto, aliás, um processo. 1982) para substituir-se a idéia
vilização e não de cultura, so- Um conjunto de circuns- de patrimônio a ser preserva-
bretudo na sua feição de pa- tâncias da história brasileira do pela de bem cultural (abran-
trimônio nacional. Exemplifi- permitirá aos negros urbanos gendo este o patrimônio his-
quemos com a capoeira. Sua continuar a tradição da capo- tórico na definição de Mário).
origem remota é controversa, eira no interior do novo es- Dizia, naquela ocasião, o novo
talvez descenda das artes porte. Temos aí uma defini- titular do IPHAN:
marciais japonesas, chegando ção inteligente de patrimônio: “(...) o conceito de bem
às senzalas brasileiras com es- um bem, uma maneira que cultural no Brasil continua
cala em Angola. Como a en- vem de trás, do interior de restrito aos bens móveis e
contramos no Brasil antes de um contexto cultural deter- imóveis, contendo ou não
1850, é cultura crioula - prati- minado, e que penetra nessa valor criativo próprio, im-
cada por boçais,
africanos e criou-
los, afro-brasilei-
ros. Como a en-
contramos na ci-
dade do Rio de
Janeiro do final
do século, já faz
parte do ethos ur-
bano, cada malta
com seu território
Kiko Nascimento

próprio e sua es-


cusa lealdade par-
tidária. Proclama-
da a República,
começa a ser re-

7
pregnados de valor histórico na energia política
(essencialmente voltados para necessária para di-
o passado), ou aos bens da cri- minuir as injusti-
ação individual espontânea, ças sociais que nos
obras que constituem o nos- constrangem?
so acervo artístico (música, li- Encontramo-
teratura, cinema, artes plásti- nos, pois, diante
cas, arquitetura, teatro) qua- de um processo ci-
se sempre de apreciação eli- vilizatório em que
tista (...). Permeando essas as culturas negras
duas categorias, existe vasta representam o nú-
gama de bens - procedentes cleo pesado. Ao di-
sobretudo do fazer popular - zer civilização que-
que por estarem inseridos na remos significar
dinâmica viva do cotidiano encontro prolongado de cul- tanto, uma espécie de esqui-
não são considerados como turas distintas, gerando pro- zofrenia - a divisão da mente
bens culturais nem utilizados dutos novos e sofisticados - com a subsequente rejeição
na formulação das políticas como foi o caso, por exemplo, de uma das partes e substi-
econômica e tecnológica. No do Egito faraônico, do Renas- tuição da visão realista por
entanto, é a partir deles que cimento ou da Revolução fantasias e delírios.
se afere o potencial, se reco- Americana; e, ao dizer cultu- Certa feita um irmão de
nhece a vocação e se desco- ras, nomeamos os campos- James Baldwin, o escritor nor-
brem os valores mais autênti- de-força em que se conden- te-americano, foi destratado
cos de uma nacionalidade”.7 sam as representações e os no Exército por um oficial
sentidos. Essa percepção é branco. James, preocupado
antiga no pensamento brasi- com a depressão em que o
leiro, vem pelo menos da se- rapaz caíra, escreveu-lhe uma
gunda metade do século pas- carta: o racismo se baseia no
sado, quando se tratou de medo; quando o racista bran-
projetar a nação designando co se depara com um negro
um lugar para a maioria ne- não é um indivíduo humano
gra e mestiça excluída da que ele vê, mas uma criação
Que esse salto na idéia de “cultura”. Nos anos setenta, da sua mente, um pesadelo -
patrimônio tenha ocorrido com a emergência dos movi- “above alI you must take care
sob o governo militar de João mentos negros, acentuou-se not to step inside bis nightma-
Batista Figueiredo pode sur- o que diferenciava negros de re”. Entrar naquele pesadelo
preender, mas indica, por um brancos, mas isso só funcio- era tornar-se um crioulo (ni-
lado, o descompasso entre nou como tática - digamos as- gger). Aí, por volta de 1950,
política cultural e política em sim - de luta organizada con- um sociólogo brasileiro, hoje
geral, e, por outro, a desvalia tra o racismo. Efetivamente, esquecido, Guerreiro Ramos,
daquela quando se trata de brancos e negros são, no Bra- chegava a idêntica conclusão:
pensar o destino do país sil, desiguais sociais e, fre- o “problema do negro” é
como um todo. Faz lembrar quentemente, muito desi- mero sintoma da patologia do
o velho axioma: “O Brasil só guais. Democracia racial nun- branco. Guerreiro não nega-
funciona quando a direita ca passou aqui de atroz iro- va, é claro, a vertente cultu-
controla a economia, o cen- nia. No campo das represen- ral - simbólica, diríamos hoje
tro a política e a esquerda a tações e dos gestos - das ex- - das problemáticas negra e
cultura”. Em que momento pressões sinceras - não há di- indígena. O que não aceitava
reuniremos condições, no ferenças importantes entre o era cedê-Ias ao domínio da
Brasil, para negar o axioma e brasileiro negro e o branco. A antropologia - uma classe de
converter a energia simbóli- discriminação dos não-bran- estudos que, sintomatica-
ca, de que nos orgulhamos, cos fica sendo entre nós, por- mente, sempre foi mais de-

8
senvolvida nos estados de mai-
or presença negra. Essa era, ali-
ás, a base da sua crítica aos pre-
cursores dos estudos sobre o
negro, Nina Rodrigues, Ar-
thur Ramos e Oscar Freire, que
equipara em nulidade científi-
ca, com certo exagero, a De-
bret, Kidder e outros descriti-
vos. Ou se considerava o ne-
gro como protagonista social
e político, sem distingui-lo do
auto-denominado branco, ou
nada.
Não haveria, pois, uma
negritude a reivindicar, mas
uma povidade.
Guerreiro Ramos não era
preto retinto, pertencia àque-
la faixa de mulatos escuros
em que a “raça” pode ser es-
colha do freguês. A sua foi ser
negro. Dessa opção ele ex-
traiu as seguintes conseqüên- mente dividido. Então, des- lógico, instituído simultane-
cias lógicas: cobre-se-me a legitimidade de amente pela cor, pela cultu-
“Então, em primeiro lu- elaborar uma estética social ra popular, pela consciência
gar, percebo suficiência pos- de que seja um ingrediente da negritude como valor e
tiça do sócio-antropólogo positivo a cor negra. Então, pela estética social negra.
brasileiro quando trata do afigura-se-me possível uma Qualquer indivíduo brasilei-
problema do negro no Brasil. sociologia científica das rela- ro pode ocupar esse lugar,
Então, enxergo o que há de ções étnicas. Então, compre- mesmo que lhe falte eventu-
ultrajante na atitude de quem endo que a solução do que, almente uma daquelas con-
trata o negro como um ser na sociologia brasileira se cha- dições, e desse lugar visua-
que vale enquanto “acultura- ma o ‘problema do negro’, lizar a sociedade e a civili-
do”. Então, identifico o equí- seria uma sociedade em que zação brasileiras. Visualizar
voco do etnocentrismo do todos fossem brancos. Então, desde dentro, desde a enzi-
“branco” brasileiro ao subli- capacito-me para negar vali- ma, desde o seu núcleo pe-
nhar a presença do negro dade a esta solução”.8 sado que são as culturas ne-
mesmo quando perfeitamen- Nesse raciocínio, negro gras - ou negro-brasileiras,
te identificado com ele pela deixa de ser uma “raça”, ou para distinguir das negro-
cultura. Então, descortino a mesmo uma condição feno- africanas de que proxima-
‘precariedade da brancura típica e passa a ser um topo mente descendem.
como valor. Então, converto
o ‘branco’ brasileiro, sôfrego
1 Freire tentaria provar que, além disso, o negro era ainda mais nativo do Trópico que o índio.
de identificação com o pa- 2 Freire, Gilberto. Casa Grande & Senzala, Editora Universidade de Brasília, 1963, p. 374 e 375.
3 “Os brasileiros falam como um livro aberto” se queixava Ramalho Ortigão.
drão estético europeu, num 4 Entre outros, Nei Lopes, Ayres da Mata, Yeda Pessoa, Carlos Vogt & Peter Fry, Gladstone
caso de patologia social. En- Chaves de Melo.
NOTAS

5 “Âmbito Financeiro”, 5 de julho de 1955. (Apud Folha de São Paulo)


tão, passo a considerar o pre- 6 A. Magalhães falava em quatro tipos: país velho e rico (França); velho e pobre (Egito); novo
to brasileiro, ávido de em- e rico (Estados Unidos); e o nosso. Isso para efeito de preservação.
7 MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil, Nova Fronteira, 1985,
branquecer se embaraçando p.19.
8 GUERREIRO RAMOS, Alberto. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro:
com a sua própria pele, tam- Andes, 1957, p. 157.
bém como ser psicologica-

9
O Ônibus e o Atabaque:
Para Além de “Raça“ e “Classe”
a Identificação Civilizatória.
Marco Aurélio Luz

Arquivo Pessoal
O filme “Todos a Bordo”, Essas dessemelhanças se
de Spike Lee, sobre um ôni- constituem em abordagens
Marco Aurélio Luz
bus que atravessa os EUA, le- características da vida metro-
Doutor em Comunicação e autor vando em excursão um gru- politana em um país indus-
dos livros Agadá: Dinâmica da po de homens negros para a trial imperialista como os
Civilização Africano-Brasileira,
Cultura Negra em Tempos Pós-
marcha de “um milhão de EUA. Assim, é que conflitos
Modernos, entre outros. homens”, liderada por Far- de gerações, de gênero, de
rakan, que procurou de- valores, voltados para a mo-
monstrar a pujança da união bilidade social e individual,
de significativa parcela da incluindo a competição exa-
população americana pela cerbada, a ideologia do con-
luta de conquista da plenitu- forto, o narcisismo alimenta-
de de seus direitos civis, leva- do pela cultura de massa, es-
nos também a viajar pelos ca- tão presentes na viagem do
minhos da elaboração da vida ônibus.
social contemporânea. Alguns personagens das
O que nós podemos ela- tramas, que colocam em cena
borar, no meu modo de pen- a discussão dessas temáticas,
sar, é que a mensagem que o são assim constituídos: pri-
filme nos traz é de que essa meiro um pai que traz o filho
união não pode ser realizada acorrentado a sua cintura
a partir dos paradigmas soci- para ser super vigiado, te-
ológicos ou antropológicos mendo sentença judicial que
que se projetam desde o sé- lhe ameaça retirar o pátrio
culo XIX para a atualidade, poder, caso o menino adoles-
centrados nas categorias de cente reincida em delinqüir.
“raça” e “classe “, no caso es- Para um e outro, a “marcha”
pecífico aplicados à chamada é encarada de modo comple-
“população negra” ou “povo tamente diferente e vai se dis-
negro”, ou ainda “afro-des- tanciando dos objetivos a
cendentes”. medida que o principal é
Tanto um conceito quan- superarem aquela situação.
to o outro se esvaem a medi- Numa brecha o menino foge.
da que os personagens do Recapturado, é somente com
ônibus vão revelando suas re- uma dramática declaração de
ferências identitárias consci- amor que se refaz o laço ver-
entes e que marcam seus in- dadeiramente humano entre
teresses na dinâmica social, pai e filho...
embora todos negros, apa- No segundo, uma briga,
rentemente, “Oh! Quão des- envolvendo relações homos-
semelhantes!!!” sexuais entre dois dos viajan-

10
o “melhorzinho”, tentando tradicional afro-americana
contagiar todos enquanto a em geral, e que foi criado
“marcha”... por ideólogos europocêntri-
Por fim, o quarto, mas cos, exatamente num con-
não o último, é o persona- texto de agressão colonial e
gem de um senhor que imperialista.
pega o ônibus no cami- Em outro filme, “Faça a
nho. Comerciante de Coisa Certa”, Spike Lee
automóveis bem su- brinca e ironiza com a si-
cedido, divulga sua tuação de um comerciante
Kiko Nascimento

estratégia de vendas asiático do Harlem que, em


de acordo com o per- meio a uma revolta, vendo
fil do “consumidor ne- sua loja ameaçada, sai gri-
gro”. Seu interesse na tando para os revoltosos que
“marcha” é a divul- ele não é branco , é negro
gação de seu negó- também...
cio. Sua “pose” e No ônibus, um motoris-
seus interesses de- ta judeu não consegue esta-
clarados geram uma re- belecer o elo de aliança de
volta entre os demais con- cumplicidade com o grupo
tra ele , que é largado num viajante, simplesmente por
posto do caminho, e o ôni- chegar também a sofrer a
bus segue... discriminação. As diferen-
Todo esse entulho ideo- ças de identidade alimenta-
lógico do sistema, que ali- das pela história, pela cul-
menta interesses e a identi- tura, religião, fazem com
dade dos personagens, dá que deixe o ônibus...
ritmo e dramaticidade à tra- Se as noções ideológicas
ma e joga no lixo quaisquer de “raça”e “classe” são equi-
pretensões de unidades ba- vocadas, falseadoras e, so-
seadas nas noções de bretudo, inoperantes, para
‘raça”ou de ‘classe’. estabelecer uma rede de ali-
As idéias de “raça” e anças entre os membros de
”classe” só aparecem ou se uma comunalidade, se inca-
tes, acaba gerando um con- reconhecem de modo reati- pazes de conter a tendência
fronto de violência física e vo quando acontece a dis- de anomia, gerada pela pre-
toda sorte de comportamen- criminação, isto é, na se- sença contextual adversa da
tos estereotipados machistas qüência em que o ônibus é cultura e organização social
percorre as discussões, que se parado pela polícia rodovi- anglo-saxônica, que se opõe
processam entre os que estão ária e as cenas mostram a a continuidade de civiliza-
a bordo. Somente o emergir tensão diante dos policiais ção negro-africana e quais-
da condição humana de cada brancos. quer outras, como então
qual supera o estigma e a es- A reação, promovida conseguir estabelecer as ba-
tereotipia. por uma ação desde fora so- ses de uma possível união?
O terceiro mostra a pre- bre um grupo heterogêneo, É aí que vem dos mais
sença do mundo encantado não mantém a pretensão de antigos a indicação do cami-
da “mass midia”, que fasci- operacionalidade de uma nho que pode cessar a tensão
na um dos personagens que aliança homogênea promo- e o conflito entre aqueles que
pretende vir a ser um ator vida pelas noções de “raça “e subiram no ônibus. Estes,
famoso. Já adotando essa “classe”, que são na verda- dada a sua inserção no con-
“máscara” de grande artista de exógenos ao léxico e ao texto da sociedade america-
procura se constituir como repertório de comunalidade na, sucumbiram em meio a

11
seus valores e se dilaceraram ricanos simbolizados pela de fundamental importância
em meio a angústia do viver presença do atabaque. Sen- na dinâmica litúrgica, onde é
sob a égide de um sistema ex- te o coração... Foi como se saudado, respeitosamente,
tremamente opressivo, dis- sentisse que havia cumpri- por todos os sacerdotes e sa-
farçado de “mundo livre”, do, finalmente, sua missão, cerdotisas, autoridades e fiéis
mas que hoje todos já sabem, transmitindo sentido e for- presentes, reconhecendo o
livre para os opressores... ça para a possibilidade de seu poder e magnificência.
Um senhor de idade con- união entre os diversos se- Para além dos limites do
ta sua história de inserção e res do ônibus de um milhão “sistema”, representado pela
exclusão no sistema, uma his- de homens e muito mais... estrada, pelo ônibus, pelo ra-
tória banal , primeiro de su- Quando é internado no cismo, pela exploração e pela
jeição voluntária e depois de hospital e realiza sua via- marcha nos seus limites, esta
revolta pela injustiça de um gem, o grupo está pouco in- outra territorialização, a co-
sistema que usa, abusa e joga teressado na “marcha” para munalidade afro-americana,
fora... mas, aqui no ônibus,
ocupará o espaço de perso-
nagem principal.
Sua experiência é a tra-
jetória de quem exauriu os li-
mites de possibilidade de re-
alização de sua humanidade
no âmbito do sistema. Ele
percorreu os caminhos pos-
síveis, presenciou a história
e ali estava só, todavia trazia
consigo um pequeno ataba-
que que o acompanhava...

FOTO: Ronaldo Barroso


Aos poucos, o atabaque
emerge como elo de ligação
com os mais jovens. Um de-
les experimenta tocá-lo. O se-
nhor ensina como tirar o
som, os toques...Vêm as mú-
sicas, lembranças e legados a qual se propusera. O des- é representada pelo atabaque.
ancestrais. tino os leva para um existir Sem dúvida, é ele, as
Fonte de comunicação, maior, impulsionado pela mãos de quem o toca e to-
de comunicabilidade, da co- pulsão de sociabilidade mar- dos que estão unidos a sua
munalidade africana nas cada pela elaboração de volta, expressando as men-
Américas, tão censurada e re- mundo que na tradição afri- sagens que extrapolam a di-
primida por um sistema an- cana se expressa, sobretudo, mensão consciente do exis-
glo-saxônico, puritano e im- pela presença de uma esté- tir, que tangenciam e pro-
perialista, lá estava ele redi- tica que tem no seu âmago movem a ligação entre esse
vivo, o atabaque. a música percussiva. mundo e o além, que o tor-
O senhor é tomado pela No final, nós, que parti- nam uma imagem da fonte
emoção da situação, que cipamos da tradição afro-bra- da pulsão de comunalidade,
promove a coesão e como- sileira, sabemos que, graças a da sociabilidade da humani-
ve a todos, e que puxa pela continuidade civilizatória, dade originária que se une
humanidade de cada um, podemos dizer, a partir da co- para pensar e elaborar com-
compartilhando o fluxo de munalidade religiosa, que já partilhadamente o mistério
continuidade da tradição, sabíamos deste fator de união, dos destinos da existência,
atravessando passado, pre- pois basta recordar que o lu- envolto em expressões de
sente e futuro dos afro-ame- gar do atabaque sacralizado é conhecimento e sabedoria.

12
DIVERSIDADE
CULTURAL,
FOTO: Comunicação Social/MinC
identidade e
GILBERTO PASSOS
GIL MOREIRA
resistência.
Gilberto Passos Gil Moreira
Músico, composito, cantor,
político, intelectual, integrante
do Movimento Tropicalista,
Ministro da Cultura do Brasil.
Duas perguntas diretas apaixonados pela mesma se-
abrem qualquer cogitação leção de futebol.
sobre identidades e diversi- A segunda resposta é,
dade cultural brasileira. A naturalmente:
primeira foi feita por Rena- - O Brasil tem a cara de
to Russo, em música canta- todos os povos que o com-
da pelo conjunto Legião Ur- puseram.
bana: Relembrando o antro-
- Que país é esse? pólogo Darcy Ribeiro, que
A segunda é a clássica criou uma tipologia cultural
exortação de Cazuza: para os países americanos,
- Brasil, mostra a tua o Brasil estaria incluído no
cara! grupo dos “povos novos”,
A resposta imediata à diferentes daqueles incluí-
primeira pergunta é: dos nos grupos dos tradici-
- O Brasil é um grande onais, como os países andi-
país, composto de vários nos, com uma multi-cente-
países que falam a mesma nária cultura incaica que os
língua e são identifica, e dos incluídos
no grupo dos países de cul-
turas européias transplanta-
das, como a Argentina. Nós
outros, povo novo, sería-
mos o resultado de uma
amálgama original de
várias matrizes cultu-
rais africanas, européi-
as, indígenas e asiáticas.
Hoje, o nosso olhar
sobre o “povo novo”
brasileiro não visuali-
za um produto acaba-
do, definitivo, resultado
mestiço de um proces-
so de diversidade cultu-

13
ral. O povo bra- onal africana
sileiro é um para o Brasil, a
povo novo por- cultura afro-bra-
que vive um pro- sileira constitui-
cesso permanen- se como cultura
te de preserva- negra no Brasil,
ção e criação cul- produto original
tural, nos marcos de uma constru-
da diversidade. ção cultural no
Somos um país exílio, em cons-
novo exatamente tante intercâm-
porque somos bio com as cultu-
mutantes, um ras de outros po-
país do futuro, vos igualmente
como sempre subalternizados
tem proclamado. na formação só-
Quando o futuro cio-econômica
chegar, aí sim, brasileira. As vias
seremos um país de intercâmbio
velho e tradicio- entre negros e
nal. índios é tão evi-
Neste pro - dente que, ainda
cesso permanen- hoje, em comuni-
te de produção dades remanes-
do novo, dois as- centes de antigos
pectos são im- quilombos, não
portantes. Por saberemos onde
um lado, preser- termina o qui-
var a diversidade lombo e onde
cultural brasileira começa a aldeia.
implica na prote- A marca origi-
ção e defesa do patrimônio e se atualizam no convívio nal da nossa cultura negra
cultural brasileiro, material com influências culturais de brasileira é a sua obstina-
e imaterial, conforme defi- outras matrizes, inclusive da resistência. Principal ví-
nido nos artigos 215 e 216 da aquelas que vem do exteri- tima da antiga escravidão e
Constituição Brasileira, que or. Por outro lado, a diver- do subseqüente sistema de
especifica a prioridade de sidade cultural brasileira desigualdade racial, as po-
preservação do patrimônio necessita simultaneamente pulações negras brasileiras
cultural constituído pelos da democracia, como cultu- foram historicamente exclu-
segmentos não dominantes ra política capaz de assegu- ídas da fortuna, dos prestí-
no processo de formação do rar as condições de igualda- gios e do poder. Ao invés da
Brasil, os indígenas e os de de acesso ao fomento e à resignação à inferioridade e
afro-brasileiros. É sempre divulgação a todas as mani- a um destino de desapari-
importante reafirmar que o festações e identidades que ção biológica e cultural,
processo de preservação não a compõem. como ocorreu no Rio da
pode ser um ritual de con- A cultura afro-brasilei- Prata, os negros brasileiros
gelamento no passado de ra é o mais eloqüente exem- constituíram na cultura o
práticas culturais. A preser- plo da vitalidade cultural seu território de resistência.
vação de bens culturais é um brasileira, em uma ambiên- Aí se reavivaram as matrizes
processo constante de “up cia de diversidade. Longe culturais africanas e se de-
grade”, em que as referên- da simples transposição da senvolveram as estratégias
cias originárias se adaptam diversidade cultural e naci- de enfrentamento e negoci-

14
ação com os ricos e podero- ba afirma-se e expande-se ção subalterna e colonizada
sos, sempre não negros. No na diversidade. É samba de simples regionalismo lu-
lugar de um discurso polí- duro, samba-de-roda, sam- sitano. Há quase um século
tico e ideológico, o desen- ba-côco, samba escola, sam- atrás Noel versejava:
volvimento de um discurso ba pagode, samba reggae. - É brasileiro, já passou
identitário negro construiu Em sua diversidade de de português.
o núcleo dinâmico de um samba, continua a ser sam- Assim, a resistência cul-
processo contemporâneo de ba negro e brasileiro, que tural afro-brasileira, é tam-
valorização cultural, de pro- se dança no pé e nos qua- bém a independência da
moção social e de plenifica- dris, que sacode sandálias e cultura brasileira em seu
ção dos direitos de cidada- adereços. conjunto, entendida como
nia. A música, a dança, as Graças a esta vitalidade um permanente processo
manifestações religiosas, a da resistência cultural, a nos- de mudança, em que afir-
estética pessoal, a história e sa cultura brasileira não ficou ma-se a identidade nacional
a literatura foram os nossos aprisionada em uma condi- em sua diversidade.
manifestos de resistência.
Cada um destes lugares
de resistência é um exemplo
histórico de construção de
identidade em um ambien-
te de diversidade cultural.
A capoeira, por exemplo,
como cultura corporal que
se expressa como luta,
como dança, como religio-
sidade, como jogo e brinca-
deira, afirma-se, hoje, ao
lado da música, como a prá-
tica cultural brasileira de
maior difusão em todo o
mundo. Contam-se aos mi-
lhares os centros e grupos
de capoeira, do Japão ao
Canadá. Ela é o produto ori-
ginal de um processo de sis-
tematização de vários jogos
de perna e lutas marciais
africanas que se operou no
Brasil, por mestres negros
que circulavam entre Per-
nambuco, Bahia e Rio de Ja-
neiro. Incorporou os ele-
mentos místicos do Can-
domblé de Nação Angola,
absorveu golpes e símbolos
das artes marciais orientais,
dividiu-se até em duas ex-
pressões, ditas Angola e Re-
gional. Com todas as ache-
gas, continua Capoeira e
continua em expansão. As-
sim como a Capoeira, o Sam-

15
Conto Adulto

PONTO RISCADO

Arquivo Pessoal
Cuti
NO ESPELHO Luiz Silva nasceu em Ourinhos/
SP, em 1951. É mestre em
Literatura pela Universidade
Estadual de Campinas
(Unicamp) e autor dos livros
Poemas da Carapinha (1978),
Por um momento ficou sem pensar. um movimento a Batuque de Tocaia (poemas,
Nesse meio tempo, andou até a porta que- mais esboçado, Jú- 1982), entre outros.
rendo não crer. Imaginou, em seguida, ter lio despejaria o ve-
escutado mal. Um arrepio correu na espi- neno embolado dentro de si. Metalizou-se
nha. Sem ação, sentou e ficou matutando, ao tocar o volumoso instrumento em sua
labareda nas pupilas. O barbeiro, um bran- cintura. Estava todo, pleno, uma rocha ex-
co, dava continuidade a seu trabalho como plosiva. O barbeiro tremeu, ferindo o freguês.
se o outro já estivesse longe. Júlio foi po- Vermelhos. Os dois foram ficando vermelhos.
voado de pensamentos violentos, relâmpa- A temperatura no pequeno salão tinha subi-
gos desatados riscando o céu de dentro. Pas- do. Júlio sorriu com os dentes cerrados. O
sou, deixando uma conclusão martelando: freguês balbuciara uma reclamação, fez um
“Tudo culpa da Zenaide! Me encher o saco movimento bruscontido com a aplicação do
pra... Tudo culpa da Zenaide!” Percebeu, mertiolato, levantou, rabo-de-olho assusta-
tropeçando em alguns raciocínios, sua fuga do e cabeça baixa. Saiu deixando os dois.
passando verniz sobre a carne viva do pro- Nenhum pio no ambiente: tensão: imobili-
blema. A esposa, nada, nada tinha a ver dade: tensão: imobilidade: tensão: imobili-
com o acontecido. Firmou a concentração dade: tensão: imobilidade:
no fato e fitou o barbeiro. - O Senhor quer se sentar, por favor... -
- Cala boca! ou te retalho com essa tua suspirou o barbeiro. Tinha visto, de relan-
navalha. Senta aí! - apenas pensou. Toma- ce, a morte niquelada.
ria o instrumento daquele estúpido e. . . Júlio teve asco. Um rato à sua frente. Já
Tudo diante do freguês que também se es- conhecia aquela atitude, aquele jeito muito
forçava para não dar a mínima importân- comum de se conformar às algemas.
cia à presença de Júlio. - Levanta os olhos, palhaço! - ao que o
- Filho-da-puta... - e rapidamente agre- barbeiro obedeceu.
diria com muita força os dois. Apenas pen- Um nó de olhar. Ódio e culpa se acasa-
sou. Nenhuma palavra entreabriu seus lá- laram. A desproporção física e bélica não
bios. Pensou outras tantas coisas, e seus davam margem ao barbeiro sequer imagi-
olhos, sentia-os inchados, cada vez mais, e nar uma reação. Catatônico, ele chorava
uma quentura dos diabos cozinhando ódio. num silêncio de desenganado. O medo e
Contraiu a musculatura facial no li- sua viscosidade.
mite. Foi ficando senhor de si. Olhos em Júlio obrigou-o a sentar-se, cara para o
brasa na direção do barbeiro. Um silêncio espelho. Engatilhou a arma. Deixou-a na
cheio de farpas. Se alguma coisa fosse dita, prateleira próxima. Apossou-se da navalha.

16
Conto Adulto

Uma frieza interior e um desejo bus-


cando satisfação.
- Dá a mão!
A Lâmina desceu lenta e abriu um
filete rubro entre as linhas do destino
do outro. Depois, com cautela, Júlio
sangrou seu próprio polegar.
- Põe a mão lá! - ordenou duro e
foi obedecido.
Duas manchas na superfície do es-
pelho.
O barbeiro: PAVOR!
Já o revólver na cinta, o tira finali-
zou:
- Eu sou da polícia viu, otário! - e
saiu, recheado por um grande alívio,
porém triste.
O outro, na cadeira atônito, fitava
a imagem de si mesmo atrás do estra-
nho desenho feito com o sangue de
ambos.
Júlio chegou à casa da sogra.
- Ué, nego! não foi cortar o cabelo?
- perguntou Zenaide, quando o mari-
do entrou com a mão esquerda no bol-
so, polegar pressionando o lenço.
- Aqui não cortam cabelo de negro
- respondeu com secura e se negou a
contar a história de seu primeiro dia
de férias na cidade de...

Cuti

17
Conto Adulto

CONTO DO DIA 4 Fábio Lima


Natural de Salvador, mestre em

DE DEZEMBRO Antropologia. Autor do livro As


Quarta-Feiras de Xangô: ritual e
cotidiano (2005), Os
Candomblés da Bahia: tradição e
novas tradições (prelo)

PRÓLOGO
Uma tragédia baiana, que só poderia acontecer
na Bahia, se acontecesse em outro local com certeza
era um conto ou uma lenda, entretanto aconteceu
e todo mundo da cidade viu e quem dormia soube
quando acordou, quem estava fora soube quando
chegou, até na Cochinchina se comentou.

Aí vai o conto Chegam de toda a cida-


de mulheres de longas saias
A Íris dos olhos de Deus se fez notar na brancas ou vermelhas e colares
cidade, após uma garoa noturna, resplande- no pescoço. São moças faceiras,
cendo em seguida de um amanhecer ensola- umas recatadas, outras mais sam-
rado e prosaico como convém a essa cidade. bistas, aliás, a maioria delas. São

Kiko Nascimento
As casas abrem as portas e as janelas floridas muitas Anas, Ritas, Lindinalvas,
com panos de cetins vermelhos nas sacadas Bernadetes, Zorildas, Cláudias, Ma-
dos sobrados das ruas de pedra. Começa a rias, Marilhas, Marinas e muitas se-
mercar pelas ruas o leiteiro e o jornaleiro, ao nhoras de cabelos brancos contrastan-
passo que acordam com o sol as mulheres do como o negrume de suas peles,
trajando vermelho rumo ao mercado, algu- adornadas em ricas pratas, todas be-
mas meretrizes, além de suas saias rodadas, las que parecem ter untado suas fa-
adornam-se, também, com flores no canto da ces com a manteiga da lua. Elas se-
orelha, enquanto que alguns homens libidi- guem em direção ao terreiro, ou ao
nosos e obscenos brindam o sol com a últi- mercado que está todo enfeitado de
ma, da recente madrugada, que acaba sendo palmas de Santa Rita, vermelhas.
a primeira do dia, jogando um pouco no chão Em meio aos incensos e flores, os
para o santo. As crianças brincam nas portas atabaques rompem o silêncio na
das casas com bolas de gude, de piscina na garoa do amanhecer.
bacia grande de alumínio com fundo de ma- Ao mesmo tempo em que a
deira, outras seguem fardadas com os livros manhã rasga o vermelho do céu, um
amarrados num cinto para o colégio. circo fantástico chega na velha cidade da

18
Conto Adulto

Bahia, com uma carroça enfeitada com uma do anúncio disposta a colocar a barba
lona colorida em forma de cone, com os de molho. Mas, logo, é surpreen-
palhaços saltitantes, pernas-de-pau, ma- dida, interceptada, por um ho-
labaristas, trapezistas, equilibristas e ati- mem, sentado na encruzilhada,
rador de facas, fazendo exibições para os que veste uma roupa de duas cores,
passantes, enquanto a criançada, alegre, de um lado vermelho e do outro
animada descalça, e alguns ainda de pi- preto. Ele lhe oferece uma larga
jama, começam a correr entre o mul- gargalhada, enquanto fuma no
ticor dos balões e as carroças de canto da boca um charuto e
animais, ao som estridente do abriu uma garrafa de mara-
megafone, anunciando a fa, enche uma cabaça cheia
chegada do circo. de cachaça e oferece
Entre todos os para a mulher barbada
personagens veio, de macacão verme-
também, a do- lho. Esta não retru-
madora de ca, toma a cabaça
animais, da mão do homem
uma mu- da roupa de duas
lher de cin- cores e toma três
tura fina, de goles largos.
seios fartos e de náde- O fogo lhe toma o corpo,
gas abundantes, com seu revelando-lhe a sua candura
biquíni preto e chicote nas mãos, e a que estivera escondida por trás
mulher barbada de macacão verme- de suas longas barbas. Ela desa-
lho, bem forte, não muito gorda, botoa as três primeiras casas do
quase dois metros de altura. macacão vermelho e solta a
Ela acabou de ser demiti- sua cabeleira, juba de leão.
da, ela é muito reativa e bra- Neste instante, ela lembra dos
ba, mas acabou tendo leões da domadora de biquí-
vergonha e não respon- ni preto, por um instante
deu aos insultos do dono do cir- deixar vacilar um olhar
co, pois ele perceberá a existên- apaixonado e angustiante.
cia de um affair entre ela e a do- – Nada disso! Diz o
madora de animais. homem da roupa de duas co-
Triste e desolada, a mulher barba- res, sentado no acostamento da
Kiko Nascimento

da de macacão vermelho sai errante encruzilhada. Ele se levanta com


pela cidade, sem eira nem beira, tinha o corpo em molejo e ginga, retira
perdido a razão e estava à beira da lou- do bolso uma imensa chave en-
cura, descompassada com o momen- ferrujada e entrega a mulher bar-
to de sua vida. Seja por medo, intole- bada de macacão vermelho dizen-
rância ou preconceito, os homens, nes- do-lhe:
te mundo tão grande de meu Deus, não – Não se amoe, nem se amofine,
conseguiram até hoje tolerar a possibili- deixe a tristeza de canto e a saudade
dade da convivência com as mais varia- para o espanto, hoje é dia, e ontem
das formas de amor na vida. é um passado. Só se guarda no pei-
E a mulher barbada de macacão to esperança para amanhã, pois
vermelho, andando, errantemente, lê bem! Você tem um trabalho.
um anúncio num outdoor que diz: – Eu? Qual? Espantada com os
“precisa-se de modelo para comercial olhos esbugalhados e vermelhos do
de aparelho de barbear”. fogo da cachaça.
Então, ela segue a caminho do endereço – Um trabalho maravilhoso. Des-

19
trancará o caminho, será a senhora que irá baianas em toda a cidade, é ventania, é fura-
abrir as portas da cidade, a destranca rua, para cão, é tornado. Elas se olham, fumegantemen-
três mulheres barbaras, três Marias, pois hoje te, numa velocidade circular, estremece o chão
irei sair de folga para entrar na folia. e a terra, enfurece o céu e o mar e, de repen-
– Que folia? te, das três explode um raio.
– Aguarde e verás, fará também parte É dia 4 DEZEMBRO, nessa hora sai uma
dela. santa da Igreja para a procissão. As três Ma-
– E quanto ao dono do circo? - retruca a rias, três mulheres barbaras, três mulheres de
mulher barbada com olhos esbugalhados e pavios curtos, Maria Quitéria, Maria Bonita
vermelhos do fogo da cachaça, já com um e Maria Bethânia.
cigarro entre os dedos, põe a mão na cintura
com um gesto severo de vingança e ânsia de
enjôo ao pensar no dono do circo.
– Deixe ele para lá, “deixe o prego que o
martelo chama”, - e dá uma longa gargalha-
da que faz arrepiar os mortos nas catacum-
bas - o que importa é que irás abrir a porta da
cidade para as três mulheres barbaras, três
Marias que desceram do céu, três mulheres
de pavios curtos, que botam fogo pelas ven-
tas, três mulheres da pá virada, isso por si só
já basta, nunca ouviu falar delas? Elas têm
muita fama pelas suas brabezas. Com uma
mulher barbara não se brinca. Elas vêm de
longe,de muito longe, de muito tempo, que
não se sabe a quanto tempo, mas se sabe que
desde que o tempo é tempo, elas surgiram
no céu e descem sempre aqui pra terra, des-
sa vez elas virão assim: Uma virá de cabelos
trançados de roupa caqui, com anéis nos de-
dos, e vem de trem. A outra virá de cavalo de
uniforme azul, com os cabelos torados com
espada em punho, e a última vem de barco
com vastos cabelos ondulados, de vestido
branco e muitos colares, pulseiras douradas
nos braços e nas orelhas argolas de ouro.
A mulher barbada é uma mulher barba-
ra, com seu macacão vermelho desabotoado
as casas iniciais, ela segue a sua rota, o seu
destino, até a praça do terreiro e com a imen-
sa chave enferrujada abre as portas da cida-
de.
Uma grande ventania se assolou pelas
ruas da cidade, fazendo tremer os panos das
sacadas das janelas das ruas de pedra. As três
mulheres já chegaram na cidade, elas chegam
Kiko Nascimento

furiosas, raivosas e, então, rapidamente, numa


fagulha de tempo descem a ladeira e param
em frente à Igreja, quando começam a girar.
Elas giram uma em frente a outra e quanto
mais elas giram, giram a roda das saias das

20
DA BARRIGA

Arquivo Pessoal
1
DO ABUTRE Jussara Santos
Natural de Belo Horizonte,
professora de língua portuguesa
e literaturas de língua
“restavam os bichos; a gente poderia ser bicho: os portuguesa. Autora do livro De
flores artificiais (2002).
bichos não apodrecem tão facilmente como os ho-
mens, os bichos não possuem árvores genealógicas,
nem livros de linhagens, eles se vestem de acordo
com os espécimes, suas roupas nunca mancham,
nunca deformam e são previamente encolhidas.”
Adão Ventura

Eu compartilhava, Mas o tempo passa e cres-


quando pequena, dos cemos todos e morremos al-
delírios de minha avó. guns. Foi assim comigo e
Uma noite, por exemplo, com minha avó. Eu cresci e
ela acordou gritando e ela morreu. Porém suas pa-
minha mãe acudiu-a de- lavras permaneceram pipo-
sesperada. Minha avó cando vez por outra na mi-
dizia que o quarto esta- nha cabeça.
va repleto de gatos. Ga- Por isso, no momento em
tos de todos os tamanhos que vi, naquela exposição,
e cores. Os felinos não a um dos trabalhos de Mestre
deixavam dormir. Didi, lembrei-me de minha
Minha avó gritava avó em um de seus delírios
para que minha mãe re- repetindo que havia uma ár-
tirasse os gatos dali e mi- vore, duas serpentes e um
nha mãe dizia que não pássaro e havia ainda uma
havia gato nenhum no outra árvore grande que re-
quarto. Como a fala dela zava. Era assim que minha
não surtia efeito sobre avó se fazia amar, através de
minha avó, minha mãe seus delírios. Eu gostava de
rendeu-se, posicionan- ouvi-la. Cada delírio era uma
do-se na porta do quarto história e eu ficava ali senta-
e fingindo retirar os ga- da ouvindo-a contar. Repar-
tos. Porém, eu também tíamos imagens, visões e se-
os via e contava um por gredos.
um atrás da porta. Às vezes, fingia não saber
1 Este texto integra o primeiro livro de contos, da autora, intitulado – De flores artificiais
– publicado em 2002. 21
Conto Adulto

dos números e minha avó pegava minha mão


e movia meus dedos dando a cada um valor
numérico. De outras, enquanto trançava
meus cabelos, ia contando junto comigo cada
trança e íamos até o infinito.
Mas havia dias em que minha avó que-
ria fugir das visões que tinha. As imagens
vinham, mas por mais que ela tentasse des-
vencilhar-se delas, não conseguia. Existiam,
segundo minha avó, imagens boas e imagens
ruins. Quando as visões eram boas, ela sorria
e ficava feliz. Quando não eram, ela cerrava
as sobrancelhas, fechava-se no quarto e fica-
va dias sem conversar. Minha avó nunca re-
velava o teor de tais imagens, guardava-as
para si.
Quanto a mim, ando assim, ulti-
mamente, tomada pelas visões de mi-
nha avó. Uma das últimas que tive
revelou-me um abutre, a barriga aberta
de um abutre e por mais que tentasse,
dele não consegui deduzir o azul. cada ausência de uma bala, eles riam. A cida-
O abutre caminhava assim com as vísce- de iluminada nunca saberia seus nomes. Eram
ras abertas e para cada víscera parecia corres- dois lá no ponto de mira. Mas na miragem,
ponder uma história. ouve-se apenas um estampido.

Da primeira víscera Da terceira víscera


Lia tinha oito anos. Lia entregava roupas. No bairro era conhecido como laranja,
Lia morava na cidade baixa. Lia não inspira- bucha de canhão, aviãozinho. Esses eram os
va cirandas. Lia não gostava de Dona Rosa vários nomes de Zé que, para garantir uns
que sempre punha preço no serviço bem fei- trocados, fazia todo tipo de favor para qual-
to de sua mãe. Lia ficava com raiva da mãe quer que lhe pedisse. Zé tinha os pés ligeiros
que aceitava o preço de Dona Rosa. e cortava o centro da cidade ou as vielas do
Lia não conhecia o clube. O tio de Lia fa- bairro onde morava como ninguém. A sua li-
zia uns serviços lá. Lia queria entrar no clu- geireza era famosa , daí a sua constante soli-
be, mas o cartaz dizia: era expressamente proi- citação.
bida a entrada de pessoas de cor naquele REIcin- Na madrugada de ontem, por mais que
to de segurança. pedisse ajuda à sua ligeireza, às suas pernas
que lhe deram fama, não conseguiu. Uma en-
Da segunda víscera trega mal feita e o resultado estava ali. Laran-
Os dois brincavam de roleta ja, bucha de canhão, aviãozinho cravado de
russa bem ali no mirante. De lá sem- balas, com as vísceras sujas de areia mistu-
pre podiam mirar a cidade e acer- rando-se com as vísceras expostas do abu-
tar direto no alvo. Estavam sozinhos tre. Zé ainda pediu a minha avó:
e, à medida que ia anoitecendo e a – Conta vó, conta uma história
cidade acendia as suas luzes, fica- sem vísceras pra mim.
vam cada vez mais sozinhos. A

22
Conto Adulto

*
CORPO-TEXTO

Arquivo Pessoal
Maria Helena
Vargas da Silveira
Natural de Pelotas/RS,
Com seu corpo nu, ainda escondido atrás Os fogos de especialista em Educação,
da cortina, Azatewaa continuava com a lin- artifício estoura- membro da Academia Pelotense
guagem cênica do invisível, ensaiando a visi- vam no alto e co- de Letras. Autora dos livros É
Fogo, O Sol de Fevereiro, entre
bilidade. Afastou a cortina de sua frente, mais reografavam es- outros.
e mais.. Apareceu na janela, quando quis apa- trelas de prata.
recer. Estava livre e disposta a fazer um ge- Aquele corpo, lá em baixo, voltou a cabeça
renciamento ostensivo de seu corpo nu. para cima e as luzes, que irradiavam, tor-
naram-se cada vez mais intensas, chegan-
do à direção do corpo feminino. Os fogos
explodiam, quando o corpo-mistério, pro-
jetando os raios luminosos de todos os ân-
gulos vitais, olhou para o céu. Ao erguer a
cabeça para acompanhar o espoucar dos
fogos, no delírio da festa, descobriu a mu-
lher nua, na janela. Não, não ficou in-
diferente. O cenário era muito especi-
al para os sentidos culturais de seu
corpo macho.
Azantewaa deixava o sub-
jetivismo de seus devaneios
e não havia mais, naquele
momento, separação entre o
cultural, o orgânico, a mulher e o
homem. Passava a ser um amontoa-
do de informações para o decifra-
mento do imaginário. As luzes, sem
tempo e território definidos, invadi-
ram seu afecto, mobilizado pelas con-
vicções anteriores do seu percepto que
sincronizaram com a matéria viva do cor-
po oposto. Ele e ela, corpos-imãs.
As luzes cegaram seus olhos de fêmea.
Refletores intensos de radiação descomu-
nal acompanharam a descoberta da novi-
dade: a cintilância de um corpo negro,
macho. Sorriram.
* Extraído do livro Obá Contemporânea em que a autora se identifica por Helena do
Sul, obra inédita a ser lançada ainda em 2005 23
Conto Adulto

Os dois corpos, monitora- des de outras convergências, além do cor-


dos por uma gênesis comple- po.
xa e diferenciada, fizeram Decifraram todas as mensagens provo-
apenas sorrir. Ele, fren- cadas pelos movimentos existenciais que
te à naturalidade da desconheciam um do outro. E em se co-
nudez e ela, im- nhecendo, chegaram ao limite em que se
pactada pela na- esvaziaram na rotina, sem tempo de se rein-
turalidade dele. ventarem. Tornaram-se corpos-textos lidos,
Estava feita a mal interpretados entre eles, engrossando
descoberta que o acervo de corpos da mesma natureza,
atormentava as oprimidos nas estantes paralelas da vitri-
madrugadas de ne demográfica cotidiana.
Azantewaa: um cor-
po-ânima, fruto da
leitura poética de
seus devaneios.
Como se fizesse um
grande afeto
para a sua alma,
aquela revelação
a deixou tonta
e irracional.
Seus pensa-
mentos deixa-
ram de existir e concen-
trou toda emoção no sor-
Kiko Nascimento

riso dele, que sorria e sor-


ria.
Não sabia a verda-
deira causa daquele sorri-
so diante da leitura de seu
corpo e se perguntava, em
momentos de lucidez, se não
seria um corpo-palhaço que despertava tan-
to riso, na interlocução da mensagem cor-
pórea.
Ao desnudar-se para aquele corpo-de-
sejo, entrou em transe entre o terreno e o
celeste, debatendo-se entre sonhos e reali-
dades. E já não eram devaneios. A concre-
tude daquele corpo junto ao seu, os toques,
os cheiros, eram presenças, outras forças.
E tudo aconteceu rapidamente, no tem-
po que dava para não perder tempo na vida
que convergia somente para os beijos na
boca, as coxas roçando, o sexo em brasa,
queimando, queimando até as possibilida-

24
Conto Adulto

VISITANTE
Ubiratan Castro
INDESEJADO de Araújo
Natural de Salvador/BA. Doutor
em História, atual presidente da
Fundação Cultural Palmares/
MinC, membro da Academia de
As rezas eram uma folia. A novena de A assembléia do Letras da Bahia. Autor dos livros
São Roque da Tia Do Carmo rivalizava-se DIVA (Departamen- A Guerra da Bahia (2001),
Salvador era assim: Memórias da
com a trezena de Santo Antônio da Tia Ni- to de Investigação cidade (1999), entre outros.
ninha. Cada noite de reza tinha um padri- da Vida Alheia) fica-
nho que financiava o mingau. Tia Do Car- va triste, quando o assunto era a visita de Ber-
mo era viciosamente permissiva. Antes mes- nardo à casa de um parente ou conhecido.
mo da reza, ela liberava generosos canecos de – Bernardo está na casa de fulano há três
mungunzá para a garotada. Tia Nininha era, dias.
em oposição, opressivamente, mandona. No Todas tremiam.
Santantônio dela, quem não berrasse com fé: Bernardo era o substitutivo da palavra
- Glo-ri-ô-ô-so San-an-tan-tô-nio, não tinha que não se podia pronunciar: fome. Este era
direito a mingau. o grande terror de todas as famílias. Ela era
Depois da reza, tias, parentas e vizinhas, epidêmica, como na crise de 1929. Ela era sa-
se reuniam para o salutar exercício de rese- zonal, no tempo do paradeiro, meses em que
nha da vida alheia. Elas cortavam, costura- não se exportava cacau em Salvador. Ela era
vam e bordavam desventuras, fraquezas e terrível em momentos de doença e morte nas
malfeitos de amigos e de inimigos. Só os pre- famílias.
sentes escapavam, enquanto aí estivessem. Bernardo também andava mancomuna-
Para não serem entendidas, ou mesmo por do com os maus procedimentos. Maridos ca-
pudor e superstição, usavam palavras e ex- chaceiros, que se desempregavam para cair
pressões estranhas ao nosso vocabulário. Ao na gandaia, deixavam a família aos cuidados
invés de “botar chifre no marido”, elas fala- de Bernardo. Homens mulheristas, espécies
vam “serrar as canelas”. Por isso, todas as ve- de mulherengos militantes, gastavam o di-
zes que eu entrava na casa do vizinho, ficava nheiro com as raparigas e não levavam pra
olhando para as canelas dele, intrigado com casa senão seus próprios “berloques”. Nestes
a falta de cicatrizes. Dos frescos, dizia-se que casos, algumas não se continham e saía o pa-
eram “falsos ao corpo”. Os órgãos sexuais ti- lavrão:
nham nomes diferentes. O feminino era co- – Pica pura dá gastura!
nhecido como “a perseguida” e o aparelho
masculino completo era denominado de “ber-
loques de São Brás”.
Quando uma sobrinha grávida entrava na Alguns casos mereciam atenção especial.
roda, todas riam muito e exclamavam: As freqüentes visitas de Bernardo à casa do
– Menina, comeu feijão azedo! Tio Bené eram o motivo de debates apaixona-

25
Conto Adulto

dos. Esta era a principal bandeira de luta do za era a clientela. Trabalhava para um pú-
temido PCC, o Partido Contra Cunhadas. A blico pobre e de renda instável. Recebia
culpada de tudo era Vilma, coitada. Era uma muitos calotes e os fregueses demoravam a
mulher muito educada, muito atenciosa com pagar. Esta incerteza o tornava um cliente
todos, mas chegada a dindinha, ou seja, pre- indesejado para os agiotas. A única salvação
guiçosa. Ela, a cunhada, tinha transformado eram as irmãs.
o valoroso ex-sargento do Corpo de Bombei- De vez em quando aparecia uma prima,
ros. Ela o obrigou a dar baixa da Bomba, por- meio excitada e muito envergonhada, chama-
que chorava o tempo inteiro, com medo que va minha mãe no canto, e murmurava:
o seu amado se acidentasse em algum incên- – Tia, Bernardo está lá, há dois dias.
dio. Tudo fingimento, diziam as militantes do Essa notícia colocava a família em che-
PCC. O que as cunhadas não podiam escon- que. Como descobrir sobra em um orçamento
der era o grande carinho que um demonstra- tão regrado e todo comprometido? A solução
va pelo outro. Eles formavam um belo casal. mais freqüente era a gavetinha da máquina Sin-
Ambos de boa altura, de pele bem escura e ger. Parecia mesmo que a única utilidade das
lustrosa, cabelo preto, bem liso como o dos costurinhas que minha mãe fazia era socorrer
caboclos, eram da qualidade que o povo cha- os irmãos.
ma de Cabo Verde. Mas nem isso escapava Aquelas visitas doíam muito. Havia um
da língua das cunhadas. sentimento de revolta e solidariedade com os
– De que adianta tanto amor sem respon- queridos primos, que não podia se manifes-
sabilidade? tar por meio de nenhum gesto ou atitude pú-
– Fizeram 10 filhos que não podem criar. blica. Afinal, os vizinhos não deviam perce-
– E, mais a mais, Bené não se compre- ber nada. Aquilo era um segredo de família.
ende que é preto - dizia a feroz tia Nini- Ficava, também, um sentimento de culpa. Por-
nha. Pensa que está em Roliúde pra viver que eu era tão gordo e os meus primos rece-
de romance... biam tantas visitas de Bernardo?
Depois de trabalhar com a sogra, em
uma barraca de comida, no Mercado Mo-
delo, Tio Bené voltou a viver do seu ofício Outro caso doloroso era o da Tia Zefi-
de carpinteiro, trabalhando em domicílio. nha. Nossa tia-avó tinha mais de 80 anos, a
Levantava cumieiras, consertava móveis, mais velha da família. Ela era magrinha, de
repregava assoalhos e escadas. Sua fraque- cabelos lisos e grisalhos, penteados em uma
Kiko Nascimento

26
Conto Adulto

rodilha presa por lon- moda, em sua maioria


gos grampos, atrás da francesas, com fotos
cabeça. Exímia costu- de manequins e “de-
reira, tinha o dom de buxos” de vestidos.
transformar roupa Para os meninos, a
velha em roupa nova. paixão eram livros de
Costurava pra fora, contos de fadas e a fa-
mas também costura- bulosa coleção dos
va em domicílio. Por fascículos de uma re-
força de sua profissão, vista chamada Eu Sei
passava longas tem- Tudo, tradução brasi-
poradas nas casas das leira da Que Sais-je?
brancas da Barra. Jus- Ela também guardava
tiça seja feita, ela sem- uma coleção comple-
pre foi fascinada pela ta do Tesouro da Ju-
Casa Grande. Nascida ventude.
ainda no tempo da es- Era uma velha sábia.
cravidão, absorveu Mesmo assim, Bernar-
todos os preconceitos do a perseguia. Desde
contra os negros. Ela a morte de seu marido,
discriminava, ostensivamente, as irmãs, so- o marceneiro João Guarani, criou uma rela-
brinhas e sobrinhos netos de pele mais es- ção de clientela com uma família da Barra.
cura. Passava dias e mais dias remontando, encur-
Racismo à parte, era uma velhinha fas- tando e ajustando velhas roupas a novas mo-
cinante. Viúva, sem filhos, desenvolveu a das e a novos corpos. O pagamento variava
arte de contar histórias da carochinha e his- sempre em função da sorte do dono da casa,
tórias do tempo antigo, o tempo da escra- no jogo. Segundo o DIVA, a casa dele vivia
vidão. A pequena loja de subsolo em que sempre aberta à jogatina. Até a honra da filha
morava, na Rua do Desterro, era um ver- foi jogada na mesa do carteado. Apesar de
dadeiro baú de preciosidades. Para as me- tudo, nunca lhe faltou o sustento, nem a pose
ninas, a grande tentação eram as caixinhas de rico. Para Tia Josefina, faltava.
de costura, muito arrumadinhas, delicada- Muito orgulhosa, ela jamais pedia nada,
mente enfeitadas, cheias de miudezas. Tam- apenas recolhia-se à sua casinha. Os paren-
bém faziam sucesso as antigas revistas de tes procuravam visitá-la com freqüência
para detectar os sinais da visita de Bernar-
do. De vez em quando, ela era seqüestrada
por algum sobrinho, para a alegria das cri-
anças. Quando menos se esperava, ela fu-
gia, sempre alegando o chamado de sua vas-
ta freguesia.
Um outro caso provocava uma verdadeira
guerra fria na assembléia feminina, as simpa-
tizantes dos russos comunistas contra as fas-
cinadas habituês do cinema americano.
João da Cruz era um grande militante sin-
dicalista, membro filiado e dirigente do Parti-
do Comunista. Era um negro alto, cabelo cor-
tado à escovinha. Orador de verve tão em-
polgante quanto o Padre Sadoc, se admitir-
mos a verdade sociológica que Stalin repre-
sentava para um o que Jesus Cristo represen-
tava para o outro.

27
Conto Adulto

Estava sempre à frente das greves do sin- – Que é isso camarada! Você entendeu
dicato e dos comícios e pichações de paredes mal. E nunca mais apareceu.
organizadas pelo Partido. Nos anos da Alian- Também os vizinhos e conhecidos se afas-
ça Nacional Libertadora, era o intrépido lan- taram, com medo de ficarem visados.
çador de galinhas pintadas de verde nos co- Os investigadores de polícia, conhecidos
mícios dos integralistas. Por sua militância, era como secretas, vigiavam permanentemente
um homem marcado pelo DOPS e conheci- a casa, de tal forma que mãe e filha se senti-
do de todos os secretas do bairro. am em prisão domiciliar.
A segurança para tanto arrôjo era a cer- Um visitante conseguia furar o bloqueio
teza que o Partido cuidava do sustento e do policial: Bernardo. Nos três primeiros dias,
bem estar de sua mulher e de sua filha, nas acabaram-se o feijão, a farinha e a carne do
eventualidades de prisão ou de clandestini- sertão. Sobrou um pouco de café e um saco
dade. Pois bem, essa não era a experiência de de milho-alho, bom de fazer pipoca. E du-
sua mulher Alzira e de sua filha Olga. rante sete dias elas tomaram chafé com pi-
Lá um dia, João da Cruz sumiu de casa. poca. Olguinha choramingava muito.
Isto aconteceu logo depois do bate-boca en- – Atotô, meu pai Omolu, não me aban-
tre Juraci e Prestes no Congresso Nacional. done!
O presidente Dutra aproveitou a oportuni- Em um sábado de manhã, bateram na
dade para cassar o registro do Partido Comu- porta. Era Pezão, filho de Abigail, a irmã mais
nista. Iniciava-se um novo ciclo de persegui- velha de Alzira. Tinha vindo da feira de São
ções, que incidiam imediatamente sobre João, Miguel comprar os aviamentos para uma
que era muito visado. Logo no primeiro dia, obrigação de orixá. Ele foi logo comentando:
apareceu um companheiro de partido, de co- – Cadê Tio João? Não estou gostando
dinome Berto. Disse que fora designado para nada da cara de vocês. Vocês estão de Ber-
dar assistência à família de João. Falou, falou, nardo?
falou. Para não perder a viagem, foi logo dan- As duas não disseram nem que sim, nem
do umas entradas meio ousadas para o lado que não. Sorrindo sem jeito, não escondiam
de Alzira, que o repeliu na tampa. a vergonha.
– Onde já se viu? Procurar ousadia com Pezão foi embora muito constrangido. Lá
a mulher de um revolucionário! pelas 4 horas da tarde, ele apareceu de novo.
Não sou eu que vou dar o – Minha mãe está precisando de ajuda,
pretexto a nenhum burguês pra festa de Omolu. Ela sabe que Tio João não
reacionário chamar meu ma- gosta de Candomblé, mas ele nem está aí, não
rido de corno! é? Olhe, minha tia, lá na roça não tem luxo
não. É comida braba. Tem o sobe-e-desce! É
água, carne de sertão, quiabo e abóbora, su-
biu, desceu, comeu!
Olguinha riu muito. Alzira juntou os pa-
nos, pegaram o bonde do Retiro e dei-
xaram Bernardo sozinho em
casa.

Na minha infância, nunca tive


medo de diabo nem de inferno. Medo
mesmo era de Bernardo. Por isto, saía das
rezas muito confiante e vitorioso. Afinal,
quando o francês São Roque se juntava com
o nagô Omolu, botavam o tal Bernardo pra
correr.

28
Conto Infantil

Trecho do Livro

“O BÊ-Á-BÁ

Arquivo Pessoal
DO BAOBÁ” Inaldete Pinheiro
de Andrade
Natural de Recife, ativista do
Bem no meio da Tabanca há um Baobá. criaturas mais ve- Movimento Negro, especialista
Entre suas raízes o Homem-Grande vem sen- lhas da Tabanca. O em literatura infantil e escritora.
Autora dos livros Cinco Cantigas
tar-se. O Baobá e o Homem-Grande são as Baobá nasceu ali para se Contar e Pai Adão era
quando Olorum Nagô, entre outros.
criou o mundo. O
Homem-Grande vem da geração de outros
homens sábios que sempre viveram ali, co-
nheceram todas as histórias e as foram con-
tando um ao outro até chegar a este Ho-
mem-Grande.
Quando o Homem-Grande vem
sentar-se entre as raízes do Baobá,
as crianças o rodeiam e ele conta
as histórias que ouviu dos mais
velhos ou as histórias que ele as-
sistiu. Hoje ele vai contar uma his-
tória que seu avô lhe contou.
“... Era tempo de plantar: os ho-
mens, as mulheres e as crianças en-
chiam os bolsos de sementes e iam para
a roça ao redor da Tabanca. Todos plan-
tavam, todos colhiam, o alimento era re-
partido entre si. Um dia o Homem-Gran-
de, o bisa da bisa do bisavô, estava sentado
junto às raízes do Baobá, olhando a alegria
dos que iam para a plantação, quando, de
súbito, viu uns homens de cor de pele dife-
rente, muito bem armados, invadirem o ter-
Kiko Nascimento

reiro da Tabanca, avançarem sobre as pesso-


as que iam para a plantação, acorrentando-
as e levando-as para fora dali. O Homem-
Grande ouvia os gritos dos seus parentes,
cada vez mais longe, mais longe. Os que fica-
ram, choraram as lágrimas que nunca havi-

29
Conto Infantil

“Muitos sóis,
muitas luas se pas-
saram. A criança viu
a primeira semente
brotar da terra e a
planta foi crescen-
do, crescendo, ficou
maior do que a cri-
ança, maior do que
o Homem-Grande:
a criança viu nascer
um lindo Baobá.
Outras sementes
brotaram e outros
Baobás cresceram e
o povo que foi ven-
dido, fugia e ia para
as matas e se junta-
va à criança, inici-
ando ali uma vida
como era na sua ter-
am chorado. O Homem-Grande, o bisa da ra – sem dono e sem senhor, o resultado do
bisa do bisavô acompanhou com o olhar o trabalho dividido por todos. Eles chama-
caminho das mulheres, dos homens e das cri- ram este lugar de Quilombo.
anças, deixando rastros de correntes pelo “O Baobá lembrava o Homem-Grande,
chão da Tabanca. o mais velho da Tabanca, o que conhecia
“As mulheres, os homens e as crianças fo- todas as histórias, fazia todas as curas de
ram amontoados junto a outros homens, ou- doenças, dominava os mistérios e profeci-
tras mulheres e outras crianças, num navio, as. O Homem-Grande é o feiticeiro da Ta-
não sabiam quando a noite ou quando o dia banca.
nasciam... “O Baobá era a maior planta do terrei-
“Entre as pessoas, uma criança prote- ro. Dava sombra, dava abrigo, dava alimen-
gia o bolso da túnica, nele guardava uma to. Da sua altivez contemplava o povo des-
semente que o Homem-Grande, o bisa da ta terra, que vivia criando formas para ser
bisa do bisavô, lhe ofereceu pouco antes da livre na terra que também foi invadida pe-
invasão da Tabanca pelos homens de cor di- los homens de cor diferentes.
ferente. O Homem-Grande dizia à criança “O Baobá irradiava axés de luta e o seu
que aquelas sementes, onde fossem planta- povo criou a capoeira. De pernada em per-
das, o seu povo viveria sempre. nada ia treinando o jogo para se livrar do
“O final da viagem do navio foi o início capataz na hora da fuga para o Quilombo.
de outra vida. Uma criança assistiu os pa- “O Baobá assistiu a organização do ma-
rentes serem misturados a outras pessoas, racatu que lembrava os reinados da sua ter-
leiloados e nunca mais os viu. A criança ra. O cortejo passava, os galhos e as folhas
conseguiu fugir daquele mercado – as mãos do Baobá balançavam de contentamento no
segurando as sementes no bolso da túnica batuque do baque-virado.
– correu, correu e embrenhou-se na mata “As folhas do Baobá ficavam tristes
mais próxima. quando viam as surras que o seu povo le-
“... e nas noites de silêncio total a criança vava no pelourinho e o viço do seu verde
saía da mata, fazia um buraco na terra e plan- logo voltava quando as rebeldias e as fugas
tava uma semente, lembrando as palavras do aconteciam.
Homem-Grande: “onde esta semente for plan- “O Baobá sorria quando o seu povo
tada o nosso povo viverá sempre”. abria a roda e dançava o coco, palmas e

30
Conto Infantil

umbigadas, saias rodadas rodando, o tam- Pequeno Príncipe, que dizia para ter cui-
bor tocando, gritos de festa e liberdade, por dado de não deixar os Baobás crescerem,
um instante, aguardando o dia de liberda- devendo ser arrancados logo que se distin-
de total. gam das roseiras, pois são perigosos.
“O Baobá sempre altivo assistia a resis- “O principezinho é príncipe, mas não
tência do seu povo, que continuava esca- é sábio, disse o Homem-Grande. O Baobá é
pulindo para não ser escravo. Um dia, os feito nós, foi espalhado em toda terra enri-
homens de cor diferente invadiram o Qui- quecendo a paisagem e dando equilíbrio à
lombo, destruindo o lugar de liberdade. natureza”, concluiu o sábio, alisando as ra-
“Muitas luas, muitos sóis se passaram. ízes do velho Baobá e com a outra mão dava
“Um dia, porém, os homens de cor di- cafuné na caçula, que adormecia no seu
ferente invadiram o Baobá, feriram suas colo”.
raízes, o tronco do Baobá sofreu, tombou, O Homem-Grande fechava os olhos
todo o seu povo chorou. As folhas murcha- sabendo que esta história seria contada
ram, o serrote rangendo de dor cortou os por estas crianças quando tiverem seus
seus galhos, só o tronco ficou. Mesmo as- netos e suas netas, repetindo um ciclo
sim, o tronco do Baobá era o maior do ter- que tem milhões de sóis e luas.
reiro.
“As crianças de to-
das as idades fizeram
roda em volta do tron-
co, pegaram papéis e
tintas, desenharam o
Baobá, tocaram tam-
bores, cantaram e
dançaram maracatu,
exaltaram Nanã – a
mulher mais velha –
fizeram oferenda para
todos os Orixás, lou-
varam os que ficaram
na travessia, condena-
ram o pelourinho e
exigiram a liberdade.
“Da seiva do Bao-
bá, invadido e violen-
tado, outros Baobás
brotaram e pareciam
dizer: “Pode me der-
rubar e continuo a re-
nascer ”.
“Outros Baobás
cresceram afirmando
a profecia do Ho -
mem-Grande: “onde
for plantado um Ba-
obá o seu povo vive-
rá sempre”.
“Homem-Grande,
o neto, lembra agora
às crianças uma histó-
ria mal-contada pelo

31
Conto Infantil

OS TESOUROS
DE MONIFA

Arquivo Pessoal
Sônia Rosa
Natural do Rio de Janeiro,
Minha avó Abgail sempre me falou da armário da minha professora da Rede Pública
Municipal, contadora de
bisavó dela que veio da África num navio mãe. Lá dentro
histórias, orientadora
negreiro quando era bem mocinha. Todos estão os diários educacional e escritora. Autora
os parentes e amigos que vieram com ela da minha tataravó dos livros O Menino Nito
ficaram pelo caminho...Ficou sozinha no africana escritos (1995), Aparício (1997),
Amores de Artistas (1998), obra
mundo, numa terra distante e na condição com letra muito altamente recomendável pela
de escrava.. Teve uma existência muito so- antiga e com mui- Fundação Nacional do Livro
frida. Mas nunca perdeu as esperanças de to esforço. Quan- Infantil e Juvenil, entre outros.
dias melhores para ela e para sua gente. A ta alegria, depois
bisa da minha avó Abgail se chamava Mo- de tantos anos, conhecer os seus sonhos,
nifa, que lá na terra dela significa “eu te- suas simpatias, suas rezas, algumas partes
nho sorte”. Ela acumulou um tesouro ao das músicas preferidas, as esperanças, os
longo da sua vida! Um tesouro muito espe- sustos, e ainda, as notícias da época em que
cial que veio passando de geração para ge- viveu ... Ela era muito esperta! Soube jun-
ração. Este tesouro mora agora na minha tar e recolher pedaços de seu tempo para
casa e fica dentro de uma grande caixa de que a gente de hoje pudesse espiar um pou-
madeira envelhecida na parte de cima do quinho do ontem... O encontro do
passado com o presente tem
embalado este tesouro
valioso da minha fa-
mília. Eu mesma, co-
nheço as rezas e al-
guns versinhos. Escu-
to as histórias de sua ter-
ra desde menininha e ado-
ro ouvi-las até hoje! Elas
me acalmam e me trans-
portam para o além mar e
para o além tempo...
Acordei aquele dia com o
coração em festa! Era o
meu aniversário! Minha
mãe e Vó Abgail me cha-

32
Conto Infantil

maram num canto e me comunicaram


com voz solene que, sendo a filha mais
velha, havia sido escolhida para ficar
com “o tesouro”. Ele agora me per-
tencia e deveria ser levado para
minha casa quando virasse gen-
te grande. Deveria cuidar dele

Kiko Nascimento
com muito carinho e passá-lo
adiante. Foi a melhor no-
tícia que recebi na minha
vida! Que grande pre-
sente! A notícia veio
acompanhada de
uma novidade: iria co-
nhecer todo o tesou-
ro! Quando vi a enorme
caixa na cama de minha mãe,
fiquei impressionada! Nunca
havia visto uma coisa, assim, tão an-
tiga. Com cuidado toquei na caixa e come-
cei a fazer carinho nela... Ao mesmo tem-
po, comecei a pensar que há muito, muito
Para meus filhos e os filhos dos meus filhos!!!
tempo, as mãos da minha tataravó africa-
na pegaram naquela caixa e os seus dedos
As raízes de vocês estão na minha Áfri-
cansados de trabalhar sem hora, escreve- ca. Por isso, devem amar este lugar com
ram aqueles tesouros... De repente, foi me toda força do amor que mora no fundo do
dando um aperto no coração... Joguei meus coração de vocês. É lá que encontrarão a
braços por cima da caixa e a enlacei como mim e toda nossa gente.
num abraço. Era como se naquele momen- Desejo que sejam livres de corpo e
to eu abraçasse a minha tataravozinha e alma, e que, em suas vidas, sejam tratados
toda a sua gente.... Comecei a chorar... Ou por todos com dignidade e respeito.
melhor, a soluçar! Minha mãe e Vó Abgail Não se esqueçam da nossa história.
choraram junto comigo.. Não se esqueçam do nosso sofrimento. Mas,
Entre lágrimas, minha mãe me entre- principalmente, não se esqueçam da nossa
gou um envelope amarelado com uma car- luta. O corpo pode estar preso, amarrado,
maltratado, mas as idéias e os pensamentos
ta dentro e disse: _ Leia isto! É o primeiro
nunca se escravizam. É isso que faz a dife-
escrito a ser lido antes de tudo!
rença! Nesses tempos duros em que a triste-
As duas saíram do quarto, dizendo que za, às vezes, não nos permite nem levantar
iam beber água! E, então, fiquei sozinha! da cama, a imaginação é o atalho para aqui-
Foi muita emoção! Eu me sentia nova de- etar nossos corações... Nessas horas fecho
mais para aquilo tudo! Mas ao mesmo tem- meus olhos bem fechados e visito minhas sau-
po grande o suficiente para receber aquela dades... Encontro minhas pessoas queridas
responsabilidade toda! que ficaram pelo caminho e chego aos luga-
Abri o envelope. Respirei profunda- res da minha infância... Sinto o cheiro do
mente e comecei a ler:

33
Conto Infantil

vento e a temperatura do chão acariciando


meus pés.. Estar sempre em contato com
minhas raízes me fortalece e, é também, uma
maneira de não me perder da minha história,
isto é, não me perder de mim mesma... To-
mara que todos vocês saibam ler e escrever.
Mesmo eu, com todo o sacrifício, aprendi.
Foram os meus senhores que me ensinaram
a usar esta língua estranha. Quando cheguei
aqui já sabia ler e escrever a língua da minha teado. Enquanto elas trabalhavam na minha
terra mas precisei usar a deles.... Escrever é cabeleira eu fiquei pensando, com cara de
uma maneira de se anunciar ao mundo e de boba, o tamanho daquele tesouro e a honra
se sentir mais gente. É também, uma forma de ser guardiã dele. E aí me deu uma vonta-
de não enlouquecer, de suportar...Por isto, de louca de crescer logo, virar gente grande
esses escritos para mim valem mais do que e carregar o “meu tesouro” para minha casa
ouro. Eles valem toda uma vida. Valem a mi- nova.... Enquanto elas caprichavam no meu
nha vida! Cuidem deles. Não deixem morrer cabelo iam também cantarolando umas can-
junto com o tempo... Conte e recontem as tigas muito antigas que pareciam ter saído
histórias que guardei aqui. Muitas delas ouvi da caixa da tataravó Monifa... E aquele me-
pequenininha lá na minha terra. São minhas, xer gostoso na minha cabeça foi ficando pa-
são suas, são nossas. Todos nós somos res- recido com um cafuné... E aí eu fechei os
ponsáveis pelas nossas histórias e pela conti- olhos bem fechados e fiz uma descoberta:
nuação das nossas tradições. descobri que aquele tesouro não era só da
Desejo que minhas esperanças reno- minha família, era de todo o nosso povo,
vem a de vocês e que os meus sonhos multi- porque minha tataravó africana é um pou-
pliquem junto aos seus...Desejo também que quinho avó de todos os brasileiros. Abri os
o amanhecer de cada dia seja uma possibili- olhos como se despertasse de um sonho e
dade de um dia melhor para todas as pessoas decidi que não queria crescer rápido não! É
que vivem neste mundo! bom ser criança, principalmente, quando
Torço pela Paz e Respeito entre os ho- entre um e outro cafuné, a gente se sente
mens de todas as cores. amada por toda uma geração!!!
Que os deuses os abençoem sempre!!!! Ah! Isso é muito bom! Ah! Isso é bom
Monifa demais!!!

Quando acabei de ler a carta meu cora-


ção estava disparado!!!
Comecei a mexer com medo e cuidado
nos guardados da caixa. Li e reli alguns diári-
os... Tinha até versinhos pequeninos... Mi-
nha tataravó, ainda por cima, era uma poe-
ta... Como gostaria de tê-la conhecido. Eu ia
dar muitos beijos na sua bochecha e me ani-
nhar em seu colo que tenho certeza deveria
ser bem quentinho....
Não sei quanto tempo demorei ali sozi-
nha, quer dizer, sozinha não, eu e “aquelas
lembranças”... De repente, vi minha mãe e
minha Vó Abgail na minha frente, pentes
nas mãos, preparadas para trançar meu ca-
belo! Por causa do meu aniversário elas iam
enfeitar minhas tranças com elásticos colori-
dos. Larguei a caixa e sentei para fazer o pen-

34
Conto Infantil

ALGUMA COISA

Arquivo Pessoal
AGORA-EM-SI* Andréia Lisboa
de Souza
Natural de São Paulo, mestre em
Educação pela Universidade de
– CANSADA?... REVOLTADA...?! – estra- Mas que meni- São Paulo. Integra a equipe do
nhou a mãe, sem saber o que se passava. na esperta, orgu- Secad/MEC, responsável pela
implantação da Lei 10.639/03.
– É, isso mesmo!!! – retrucou a filha, en- lhosamente, pen-
Autora de contos e poemas.
faticamente. sou a mãe. Essa
– Mas... por quê? parte da história, todos nós sabemos: foram
– Ora... Ora, todos me interrogam: por trazidos, roubados, forçados, enfim. Essa se-
que, por que e por quê? Porque estou farta ria a denominação correta. Nas aulas de geo-
das aulas de história em que o professor ex- grafia, ainda há poucos detalhes sobre a Áfri-
plica sobre os escravos, as escravas, o sofri- ca. Alguns alunos não sabem se ela é um país
mento, a dor e a morte de muitos africanos ou um continente. O professor de ciências,
que vieram para cá... ops!! em uma de suas aulas, entrou na sala trans-
– VI-E-RAM??? Então, chegaram aqui por portando cartazes enormes, com fotos de cri-
livre e espontânea.... anças, mulheres e homens para dar aula. “To-
– Obrigação, interrompeu Kauane, cor- davia não me identifico em nenhum desses
rigindo-se. corpos expostos. O meu corpo possui uma
A intervenção de Kauane fez com que a história diferente e ele nunca dá explicações
mãe admirasse, orgulhosamente, a esperteza sobre esse corpo...”. Como a garota poderia
da filha. estudar outros corpos sem antes conhecer o
seu próprio corpo? Se
um dia viesse a ser pro-
fessora, com certeza,
não agiria assim.
Dificilmente, na esco-
la, as aulas versam so-
bre o corpo da mulher
negra, a profissão dela,
as idéias dela, as suas
criações, a sua HISTÓ-
RIA, etc. Ou ela não
tem história?
Prosseguindo seu diá-
logo com a mãe, disse:
– Você não sabe da úl-
tima, a professora de
educação artística pediu
para que pintássemos
um quadro com as mu-

* Texto publicado na Revista ORO OBÌNRIN. Rio de Janeiro, CRIOLA, 1998. 35


Conto Infanto-Juvenil

lheres mais destacadas da família e o profes- lização de seus trabalhos: selecionar quem iria
sor de português – de tão enxerido que é, e pintar e quem iria descrever. Danarah afirmou
sempre com a desculpa do tal trabalho entre que a fase dos porquês seria uma das melho-
as áreas – pediu para que fizéssemos a descri- res e que, nesse momento, seria importante
ção de uma dessas mulheres, pode? procurar pessoas que conheciam a verdadei-
Danarah disse-lhe que não só poderia, ra historia dos descendentes de africanos, ou
como seria uma oportunidade para ela apre- seja, “a história dos negros no Brasil”. E esta
sentar as ne-mulheres-gras da família. história, é a história que não foi contada, ou
– Eu não conheço a história da minha melhor, ela foi escrita de acordo com os inte-
bisavó e nem a da minha avó, só a sua porque resses do dito “civilizado”, o homem branco.
vivo com você. A bisavó de Kauane era africana e, ao ser
A filha tentou explicar o que pensava so- trazida para cá, foi levada para uma fazenda
bre a trajetória da mãe: na Bahia. Pertencia à cultura dos Nagôs e fa-
– Diria que... ahn! Não consigo pensar lava em lorubá.
de imediato. Provavelmente que, você, du- “Ela era bela como você- suspirava a mãe-
rante a sua trajetória de vir-a-ser uma mulher tinha olhos grandes da cor de uma jabutica-
negra nesse país, viveu momentos de luta; ou- ba, pelo de ouro preto, gostava de usar rou-
tros de indignação e venceu muitos confli- pas nas cores: preto, verde, vermelho e ama-
tos, ao afirmar suas origens étnicoraciais. relo”. Essas são as cores da Unidade Africa-
Kauane estava com toda a razão, sua mãe na, atualmente.
obteve avanços, durante os anos que haviam A sua bisavó adorava contar histórias so-
se passado, pois decidiu fazer faculdade, se bre seu povo para acalmar a dor e o cansaço
tornar educadora e ocupar o espaço público dos outros africanos que, assim como ela, fo-
e privado, demonstrando total capacidade in- ram forçados a trabalhar o dia inteiro fizesse
telectual, seguida de disputas e conquistas. sol , fizesse chuva, sem poder cantar suas mú-
– Mas, como posso fazer isso? –insistiu, sicas e dançar suas danças. Porém, ela não se
provavelmente buscando ajuda- gostaria de calava diante da pressão exercida pelos explo-
pintar você, a vovó e a bisavó, além de des- civilizadores que queriam castigá- la, por per-
crevê- la. Que bom!- interveio a mãe- profes- ceberem o seu poder de influência e porque
sora naquele momento. ela não se deixava dominar.
Na realidade, ela tinha acabado de apon- – Ela não tinha medo? Eles eram impiedo-
tar o primeiro e importante passo para a rea- sos com o nosso povo, questionou Kauane.
A mãe, sentindo o peso dos anos vindou-
ros, disse à filha que estava envelhecendo e
não percebeu o quanto ela havia crescido, já
era uma moça! Só a mãe ainda não havia re-
parado e, naquele instante, via que a menina
se parecia muito com a bisavó. Então, resol-
veu contar- lhe uma história- segredo com a
condição de que Kauane se preparasse.
Solicitou que ela fosse até seu quarto, pe-
gasse um vestido dentro do baú antigo de sua
avó, tirasse os sapatos, colocasse o vestido, o
turbante, o colar e o bracelete de bronze que
estavam no mesmo baú e retornasse para en-
contrá- la embaixo de uma árvore milenar,
enorme, frutífera e acolhedora, cuja raiz nes-
Kiko Nascimento

ta terra era tão forte quanto a do seu povo.


Kauane voltou radiante, andava bem deva-
gar, por temer que algo acontecesse às vestes.
Sentia- se como uma verdadeira prince-
sa e estava belíssima! A roupa tinha cores vi-
vas: verde, amarelo- dourado e vermelho; um

36
Conto Infanto-Juvenil

estilo diferente, as mangas eram curtas e lar- va, para ouvir sua mãe contar a história de
gas, caídas ao ombro em forma de tiras, se dona Cotirene. “É uma história especial, não
ajustava ao busto e descia como se desenhas- pode ser dita de qualquer forma ou em qual-
se seu corpo, para depois, na altura da cintu- quer lugar”- segredou a mãe. A partir daque-
ra, enlarguecer novamente até cobrir os seus le momento, Kauane tornou-se uma mensa-
pés. “É um sonho? Só pode ser! Gostaria que geira de seus ascendentes e um dia contaria
o papai me visse assim, tão bela, tão gente, essa história para seus descendentes. A histó-
tão negra, tão afro, tão EU”. ria seria a única maneira de mantê-los vivos
– Você está mais bela do que qualquer (na memória), a fonte que a uniria aos seus
Bela, Maria, Marília, Clara ou Beatriz e o seu ancestrais.
pai está vendo você, quando eu a vejo, você Ouviu Danarah contar que sua bisavó se
se vê, as pessoas e os seus professores lhe tornou um ORIXÁ!
vêem você, pois você se parece com ele tam- – Um Orixá?! – bradou a menina. O que
bém: percebe as coisas que estão além, ques- é isso? Conta logo, vamos, conta!
tiona sem medo, se comunica pelos tambores – Muita calma nessas horas, minha filha,
e se preocupa em nunca deixar continuou a mãe com paciência:
apagar a chama do nosso povo.
– E a bisa...- lembrou Kaua- Os orixás eram mulheres e homens com
ne. poderes e sabedoria. Eram respeitados por
Esse momento da história causa da força que possuíam. Eram venera-
seria mágico, único e inefável. dos devido às suas virtudes. Nós adoramos
Certamente saberia o significado sua memória e os altos feitos que realizaram.
da palavra i-ne-fá-vel, quando aca- Por isso se tornaram orixás.
basse todo o ritual.
Acotirene! Esse era o nome – E agora? Oxalá! Eles não existem mais,
da bisavó tão presente- dis- mamãe?
tante. Murmurava consigo – Pensei o mesmo que você na época.
aquele nome, repetidas ve- – Qual a resposta?
zes, após a revelação da Sim. Existem, porque em cada vila, em
mãe. Todos os medos e hu- cada parte onde se encontrar um afro- des-
milhações, pelos quais pas- cendente, um culto pode ser estabelecido para
sou, Acotirene transfor- que possa lembrar de um ancestral de prestí-
mou em força. Finalmente gio e fazer- lhe homenagens. Elas herdaram
o convite: muitos. A bisavó de kauane se tornou uma
– Aproxime- se mais, minha divindade, uma espécie de Orixá, ligada a
filha; toque a terra e sinta a OIÁ-IANSÃ, senhora dos ventos e das tem-
sua energia, ela tem muita pestades. Iansã foi rainha do reino de Oyó,
força a nos passar, sua bisa- onde se localiza hoje a Nigéria, juntamente
vó a valorizava muito; sin- com Xangô, outra divindade ligada às forças
ta água ao molhar suas da natureza, rei dos trovões.
mãos nela; aproxime- se
do fogo que está aceso, Xangô, orixá do trovão,
para sentir melhor o calor Kawo Kabiyei Ie!
dele; inspire o ar e sinta- o Iansã, orixá da tempestade,
percorrer dentro de si. êpa Heyi Oiá!
Sinta quanta energia boa
gira ao redor do seu cor- As divindades que estariam mais direta-
po. mente ligadas às forças da natureza, envolvi-
Há muito tempo, Da- das na manipulação mágica do mundo, mais
narah vivenciou um dia tão presentes na construção da identidade da pes-
Kiko Nascimento

significativo quanto o de Kau- soa, eram os orixás. Eles iriam ocupar o cen-
ane; colocou a mesma vesti- tro das atenções na religião negra brasileira.
menta que agora a filha usa- – Sabe, mamãe, as pessoas, os professo-

37
Conto Infanto-Juvenil

res, os alunos precisam negrejar de verdade.- histórias, pois o momento em que as contaria
Negrejar? O que significa isso, minha filha ne- seria de extrema importância, muito mais, se-
grejada, se assim posso chamá- la? Você tem ria um ritual onde ela trocaria energia vital
idéia, não? sem precisar fazer anotações em papel, por-
Respondeu à negrejada mãe que ela po- que tudo ficaria gravado em sua memória. A
deria chamá- la desta forma. linguagem oral era (e é) muito especial, era (e
Ainda não sabia ao certo o que era isso, é) a linguagem do cor, cordis, da manutenção
pois à medida em que se descobria, conhecia da cultura... do povo... e da vida.
sua história e ao saber sobre seus ascenden- Naquele instante, o céu trovejava e mes-
tes, foi negrejando cada vez mais e mais e...- mo assim a lua apareceu, as folhas da árvore
Nossa Santa Bárbara! Salve IANSÃ! Essa me- balançaram com tanta força que jogaram a
nina anda por demais filosófica, até teorias água longe, apagaram o fogo e fizeram estre-
está formulando!- exclamou a mãe. mecer a terra. Kauane fechou os olhos, abriu
– Quem é Santa Bárbara? –estranhou Kau- os braços e sem o menor medo procurou co-
ane. municar- se com Cotirene, pois sabia que ela
A mãe explicou que acontecera, no Bra- estava presente e sentiu toda a força que a
sil, um sincretismo. Os negros, apesar de se- rainha dos ventos lhe pôde passar, permane-
rem trazidos e espalhados em lugares dife- ceu assim um longo tempo.
rentes, não deixaram de cultuar seus ances- Descobriu o verdadeiro significado da
trais, pois, esse hábito sempre foi praticado palavra inefável. Ao mesmo tempo em que
na África. No entanto, aqui eles tiveram de via escorrer aquela “lágrima clara sobre a sua
modificá- los, devido a só ser permitido, ofi- pele escura”, a noite chegara contagiante e a
cialmente, o culto ao catolicismo branco e de- chuva caía, abundantemente, ali fora. Cho-
vido ao fato e não terem a mesma estrutura rando, mandou toda e qualquer mentira em-
familiar que possuíam na África. Dessa for- bora. Alguma coisa acontecia no quando- ago-
ma, o culto católico aos santos, com certo ca- ra- em si. Seu compromisso era com a verda-
ráter popular, foi associado, por eles, ao culto deira VERDADE!
dos orixás; sendo assim mantiveram ligações
com seus ancestrais.
Pediu que a mãe contasse mais histórias
sobre os orixás. A mãe retrucou, carinhosa-
mente, à filha que as outras histórias ficariam
para as próximas histórias.
“Descubro que por ser negra, não sou um
ser inferior e passivo como muitos pregam
pelo mundo afora, mas, diferente e lutador.
Uso um colar para conquistar e um brace-
lete para me proteger, sou forte e in-
teligente, nada posso temer”.
Kauane estava negrejan-
do, a começar pela música
em que falaria com os tam-
bores, assim como os
mesmos que se comuni-
cavam entre si, depois
pela dança na qual, por
meio da ginga, se ex-
pressaria com o corpo
e com o coração e,
por último, pela cul-
tura e pelos conheci-
mentos ao (re) contar
histórias e ao fazer

38
Poemas

Terra de Negros

Terra de engenhos terra xangô


negro moendo tambor de mina
cana escorrendo e candomblé
suor amargando linha de umbanda
batuque e samba
terra de minas macumba e negro
negro cavando
ouro sorrindo reza-dançando

(ouro dos outros) terra congada


maracatu
terra café reisado e negro
cacau e milho representando
negro plantando
negro colhendo terra comida
esperanças renascendo pratos baianos
quindim quitutes
terra de estância
charqueada grande negro fazendo

negro se salgando terra capoeira


rabo-de-arraia
terra quilombo negro golpeando
choça e mocambo
negro lutando terra favela
e resistindo morro e miséria
se libertando e o negro nela
(breque) até quando?

Oliveira Silveira
Poema publicado no livro Roteiro dos Tantãs.
Porto Alegre, livro editado pelo próprio autor, 1981.

39
Poemas

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Cinco Elementos
aos Manos & Minas do Movimento Hip Hop

A palavra cantada
juventude municiada
tomou de assalto
palcos praças ruas
rimando verbos conseqüentes

A palavra tocada
orquestra em didjei vinil
criatividade nos dedos
rotação vudum-vudum-vudum

A palavra dançada
B.Boy
B.Girl
passo lunar
compasso moinho
corpo robótico
em múltiplas formas flutua

A palavra grafitada
muros paredes
tela nua
mural dos excluídos
vestindo traços coloridos
em jato spray

A palavra revolucionária
becos vilas cohabs morros favelas
periféricas páginas cotidianas
dialeto de preto
raio X do gueto
em ritmo Che-Marx-Martin-Malcon-Mandela-Zumbinianos

Oubí Inaê Kibuko


oubitelapreta@yahoo.com.br,
em Cadernos Negros 27 – poemas afro-brasileiros,
Edição Quilombhoje – Literatura, São Paulo, 2004.

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40
Poemas

Renascer

Quando viemos ao mundo Nossas cabeças quando são raspadas


Nós que devemos civilizar o ocidente Nos trazem novos nomes legítimos
Violento e demente Enraizados nos mais profundos desejos
Sabemos no fundo Nos mais sinceros desígnios
Que não causamos abusos ao homem Marca inconteste de zelos
Nem hecatombes É o chamado da energia eterna, bela sina
É o amanhecer sem algemas ou apelos
Nunca fizemos bombas nucleares Novo ser, nova digina
Nem exterminamos outras gentes
Nunca fomos vulgares Redivivos aos sons dos nossos ritos
Somos por certo diferentes Instrumentos do bem e da continuidade
Apenas da fé traduzimos o grito
Passamos séculos construindo Frutos da verdade
Plantando Eternos, além dos mitos
Desprovidos, donos de anseios divergentes Donos do branco, manto puro da liberdade
Porém jamais vencidos Herdeiros de Aruanda, do Orun
Só nos cabe o Infinito,
Dentro de cada um de nós Sons de lê, rumpi, e run
Os escolhidos Eternidade
Há, houve ou haverá um renascer
Sempre
José Carlos Limeira
Ao perdermos os pêlos
Nunca celebramos
Violência, ódio ou morte
Somos de outra sorte
Celebramos nova vida, novas estradas
Onde ao lado passam as águas limpas
Dentre matas, espelhos, machados e espadas

Nunca daríamos nossos cabelos aos incêndios do mal


Das cruzes queimadas, antes retorcidas
capuzes sinistros de um branco maculado
sujando de demência o amanhã
jamais fomos ou seremos cavaleiros dos horrores
skin heads, neo-nazis ou ku klux klã

41
Poemas

Linhagem
Eu sou descendente de Zumbi Eu sou descendente de Zumbi
Zumbi é meu pai é meu guia Zumbi é meu pai é meu guia
Me envia mensagens do Orum Eu trago quilombos e vozes bravias
Meus dentes brilham na noite escura dentro de mim
Afiados como o agadá de Ogum Eu trago os duros punhos cerrados
Cerrados como rochas
Eu sou descendente de Zumbi Floridos como jardins
Sou bravo valente sou nobre
Os gritos aflitos do negro
Os gritos aflitos do pobre
Os gritos aflitos de todos
Os povos sofridos do mundo
No meu peito desabrocham
Em força em revolta
Me empurram pra luta me comovem Carlos de Assumpção
Poema publicado no livro O Quilombo. São Paulo,
editado pelo próprio autor, 2000, pg.47.

Todas
Negras Mães
velhas filhas
benzedeiras. herdeiras
Sábias sábias guerreiras
negras fêmeas sabiás
médicas negras transformadoras
parteiras. negras encantadeiras
Juízas
Luizas
astutas
artistas
passadeiras
bailarinas
negras Sabrinas
e tantas outras
negras meninas.

Cristiane Pereira
Poema publicado nos Caderno de Poesias “Versos Negros”, Brasília,
ENEGRESCER- COLETIVO NEGRO DF E ENTORNO, 2005.

42
Poemas

Enigma do Amor
Há uma ilha
há marfim
há tristes arquipélagos em mim.

Sou aquela atriz que ensaia


todos os dias
o mesmo caso de amor
vivido por um triz.

Dentro de mim
solidão vestida de Arlequim.

Sou aquela cheia de hematomas,


mas que faz do corpo relva
com aroma de canela
pro seu nego dormir.

Dentro de mim
ilusões traçadas à nanquim.

Sou aquela mulher


tentando despertar belas adormecidas
mas, no íntimo, sou eu a princesa
em profunda letargia.

Dentro de mim
força guerreira vestida de cetim.

Sou aquela que à noite


esconde como camaleão
gotas de pérolas d’olho
na cálida paixão.

Dentro de mim
enfim mora
o enigma do amor.

Sou aquela que nenhum verbo traduz


diante da solidão e da dor
aquela que tem atitudes insanas
Esta sou eu, a eterna
Maria Joana.
Esmeralda Ribeiro
Poema publicado nos Cadernos Negros, volume 19.
São Paulo, QUILOMBHOJE, 1996

43
Poemas

Canarinhas da Vila
Para Edson Lopes Cardoso,
e para uma turma de jovens formandos

O que pode a minha poesia contra isso:


Três jovens assassinadas lado a lado?

O que pode a letra morta da lei, da constituição


Contra este costume brasileiro
de matar negros como moscas?

Nossos cupidos sendo brancamente mortos


Borboletas da paixão
com o imenso ar, e a intensa vida pela frente...
Presas na fotografia de um jornal.
O fim.

Mas eu não quero terminar aqui!


A juventude da minha palavra
Descoberta
Quer-se franca e copiosa como lágrimas
E certa
Espada concreta do guerreiro-mor

Quando abro esta manhã de sol


E a polícia me lava o rosto
Com o sangue negro juvenil
Penso no genocídio da negra gente
(suicídio inconsciente do brasil)
um mar malungo me enche os olhos
e o meu coração lança ondas soluçantes
contra a minha de rocha masculina
ela se desfaz e salga meu caminho
e os homens-meninos da rua que crie
levemente me evitam
e eu choro criança sem parar
querendo todo o mundo aqui
em torno de mim
da minha dor
Não!
Ergo meu poema como um não!
Outra vez
Nesta vida de áfrica seqüestrada
Quando outros poderiam ser os versos
Pra falar de adolescentes semelhantes
Àquela minha mesma namorada
Preta... pretinha... carapinha...
Que me acompanha desde que nasci Landê Onowale
Poema publicado nos Cadernos Negros, volume 21.
Poemas Afro-Brasileiros. São Paulo, QUILOMBHOJE, 1998, pg.86

44
Poemas

É desse jeito...

Eu vou pela melhor via


qu'eu via
rap da violência
sem leniência
alienação
alien
vou com os aliados
os bandidos sobreviventes
os dissidentes
desse sistemão
sem fisionomia
que bebe dessa filosofia
''explorar o próximo até
a última gota de sangue que via''
pode até soar esquizofrenia,
Como,só a gente que via
como só a gente sofria
meu Deus!
dispa-me
da desgraça
da descrença
da hipocrisia.
Eu nunca assaltei banco
mas, plano de ninguém
jamais eu burlaria
eu sei
eu sei
da aridez da minha área
como ,não fazer correria?

Dilmar, Dilduentorno

45
Poemas

Quilombo do Curiaú
Ai, Ahaí, meu ararú
quero ver as quilombolas
dançando no Curiaú

Curiaú é um quilombo
um pedacinho do Amapá
venha ver nossa cultura
e a beleza desse lugar

As negras do Curiaú
são bonitas e faceiras
quando dançam o batuque
no salão fazem zoeira

No gingado dessa negra


vem você, venha dançar
ponha a mão na sua cabeça
pro juízo não faltar

Açaí fruta nativa


Tem aqui para beber
Nas cabeças dessas negras
Tem trancinhas e tererê

Nos campos do Curiaú


Passa boi, passa boiada
Passam negros quilombolas
Bem atrás da vaquejada

Ao chegar no Curiaú
Se quiser dançar escute
Os sons dos instrumentos
E dançar nosso batuque

Tudo isso tem aqui


Só falta você chegar
Esperamos sua visita
Fica perto de Macapá

Me chamo Creuza Miranda


Filha de Zefa e João
Prima do nosso escritor
Creuza Miranda Silva
Que se chama Sebastião
Creuza Miranda Silva mora no Quilombo do Curiaú, no Amapá, e enviou
este poema especialmente para a primeira edição da Revista PALMARES
– CULTURA AFRO-BRASILEIRA

46
Poemas

Ogum
o assentamento do quatro
ogum justiceiro encarnado
as armas de mercúrio
nariz de abas brabas
os tacões alados de hermes
a espada e a palavra armas
de jorge
wordswordswords
swords
parolagem brasa assoprada sem coração
verba
algum para ogum

despojos de guerra
banquete após uma expedição de conquista
ogum sentado firmeforte no quatro
se sua cadeira vermelha
aquele estrago

ogum bebum
gira dedibrônzeo o compasso na ponta
de um quatro
entrada de sola que talha
sempre dentro do esquadro
aparta-nos ogum de retrato e
de sol quadrado

ogum brugurundum nos quatro


costados de qualquer besta quadrada
à espádua do iracundo não chegam
os retardatários dardos da inveja.

Ronald Augusto

47
A ANCESTRALIDADE A arte africana sempre esteve presen- os nossos antepassados contando um pou-
te no cotidiano, ativando os objetos mais co das nossas raízes: os orixás, a boneca
simples quanto os destinados aos rituais akuaba, ancestral, o amor fraternal, o amor
ou cerimoniais religiosas. É imensa e pro- romance, mandalas, pano da costa,
funda a influência e contribuição à forma- uroboros, floresta, carimbos, desenhos, es-
ção da cultura brasileira. Nesse painel fo- culturas, baixo relevos, a grávida/fertilida-
ram usados elementos da ancestralidade, de, detalhes de objetos.
BONEKA AKUABA
O ideal de beleza e
fertilidade. As
mulheres Ashanti
costumam carregá-las GRÁVIDA/FERTILIDADE
consigo, pois O processo vivificador
simbolizam fertilidade revivificando na outra vida.
AMOR ROMANCE
feminina e uma boa
Dois corpos se unem
gestação.
formando um só. Peça
descansador de cabeça PANO DA
COSTA
CARIMBOS Tecido
os carimbos eram usados para estampar Confeccionado
tecidos de maneira artesanal, mostrando por processo
na maioria formas geométricas. UROBOROS artesanal,
Serpente que morde padronagem e
AMOR CÓSMICO a própria calda e formato
O motivo “corrida de simboliza um ciclo retangular,
joelho”. Bordado encontrado de evolução acessório do traje
na bolsa de couro de xangô, encerrada nela ORIXÁS da baiana.
África Ocidental. mesma. Idéia de Eles possuem a energia do
movimento, de princípio e da transformação:
continuidade, de Xangô, Oxalá, Oxossi, Oxum, Exu.
autofecundação Eles protegem as plantas, os rios, o
mar, a terra, o ar, as fontes, as
Natural de Salvador, Goya Lopes é li- FLORESTA pedras, as árvores, os animais e as
cenciada em Artes Plásticas pela Uni-
a relação com a natureza é muito forte na pessoas
versidade Federal da Bahia (UFBA), es-
pecialista em Design, Museologia, Ex- ancestralidade africana. Há um convívio
pressão e Comunicação Visual, pela harmonioso com o meio-ambiente,
Universitá Internazionale Dell´Arte di buscando preservar e cultuar as florestas.
Firenze, Itália. Ao longo de sua carrei-
ra, Goya Lopes foi promotora de cursos
e workshops. Participante de congres-
sos, seminários e simpósios sobre Design ESCULTURAS
e Artes Visuais, a artista brasileira divul- Revela a
gou seus trabalhos com ênfase para
um recorte que valoriza a Arte Afro- capacidade
Brasileira. Promotora de exposições no artística do negro,
Brasil e Exterior, as obras de Goya Lopes mostra os
podem ser vistas em Nova Iorque, Sal- sentimentos,
vador e Brasília. O painel retratado nes- ANCESTRAL
te Ensaio Visual pode ser visto no sa- crenças religiosas
MANDALAS AMOR FRATERNAL A figura de um
guão de entrada da Fundação Cultural através de baixos
Mostra toda a energia e o vigor de uma O espírito de solidariedade antepassado,
Palmares/MinC, em Brasília. As fotos relevos e
são do fotógrafo J.J.Caju. família numa floresta em perfeita e de cooperação. as estetuetas
estatuetas que
harmonia com os animais, esse contato eram esculpidas
definem bem o
íntimo com a natureza marca para serem
imaginário
profundamente a religião africana vistas de perfil.
africano
Poemas

Iteques
CÂMARA CLARA

Nos habituaram a ver retratos da beira-


da para o centro, isto é, das mucamas para
as senhoras; do menino de serviços para
os bigodes arqueados. Foi um modo para
adiar as mãos que ordenavam o gado, a bi- SÍLABA
cicleta e os lençóis. No inverno da foto,
tudo se dissolve, exceto a sensação de al- Outra língua alicia o palato, não
guém quase caindo da imagem. Seguro o se quer instrumento de suicídio. Não
seu braço, mas é ele quem me puxa para pode ser engolida para selar o desejo.
outra paisagem. É para uso desobediente, sendo mais
livre quanto mais nos pertence. A essa
O GRITO língua não se veda o devaneio, uma
vez afiada a vida é tudo o que se quei-
A palavra tem sido o lugar onde ra. Não está na boca e nela se arvora.
levantamos abrigo. Na plantação, no Testa o sentido, duvida de si mesma.
garimpo tecemos o grito, origem do Vai ao baile, está nua ao meio-dia. Não
que falamos. O que foi registro de re- é língua do suplício nem do vexame,
beldia não se aplacou, irrompe na pá- desenrola os signos e se pronuncia.
gina desnorteando os cães de caça. O
grito espreita atrás da escrita, não con- A LETRA E A VOZ
fia em setas, escolhe os atalhos. Os cães
foram ensinados a varar a noite e o O que ouço é o texto ou a voz de quem
tempo. A palavra, no entanto, é um o leu? Um e outra atravessam os moradores
edifício e se alarga para as margens da da casa só rumores. Pardais no teto, rusga
floresta. entre os netos. O chão vocifera, um vaso se
parte. Cada um, à sua maneira, engorda os
CADERNO B cômodos, quando conversa. As plantas e as
pedras nos ocupam com seus dialetos. Mas
O reboco caiu, nessa fenda a história se ouvimos, no meio de tudo, talvez um texto
desampara. Reaparecem, enfim, os mem- e a voz que o lê. Se é notícia rude ou sorte,
bros por acidente ou tortura colados à pa- se é nossa gente, como saber? No rascunho
rede. As tramas, os alicates, as ameaças de da tarde, escutar é um ato de espionagem.
morte. A história avança detrás da mesa,
desce as escadas, esgrima lá fora exausta de
sua única face. Onde presenciou um homem Edimilson de Almeida
carregando urina e fezes faz uma pausa, Extraído de:
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Casa da palavra: obra poética 3.
planta ali outra flora em outro sotaque. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003. p. 209, 211, 215, 219, 231.

50
Poemas

Posso vislumbrar meu futuro

Num mundo de caricatos moribundos

Sou o anterior e assim sendo

Mais belo, mais eu, mais puro.

Era apenas uma sombra

Hoje sobra luz agonizante

Como pás de cal em cima do assunto

Monólogo: monótono proparoxítona

ou seja, me sentas na sílaba fraca.

A palavra mata.

A palavra mesmo morta, mata.

Olho ao redor e pressinto

labirintos em espirais multicoloridos

Longe do arco-íris; perto de ti

Tão perto que te confunde.

A roda emperra na areia da frase solta

e eu guardo o meu riso de escárnio

para usá-lo na presença

de apenas uma testemunha:

o meu retrovisor.

A palavra mata.

A palavra mesmo morta, mata!

França

51
Da representação
à auto-apresentação
da Mulher Negra
na Literatura Brasileira
Conceição Evaristo*

C olocada a questão da
identidade e diferença
no interior da lingua-
gem, isto é como atos
de criação lingüística, a litera-
tura surge como um espaço
privilegiado de produção e re-
produção simbólica de sentidos.
Partindo dessas primícias, pode ser
observado que a literatura brasileira, desde
a sua formação até a contemporaneidade,
apresenta um discurso que insiste em pro-
clamar, em instituir uma diferença negativa
para a mulher negra. A representação lite-
rária da mulher negra ainda surge ancorada nas imagens de
seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto
de prazer do macho senhor. Interessante observar que deter-
minados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso li-
terário brasileiro, são encontrados desde o período da litera-
tura colonial.
Textos exemplares nesse sentido são os de Gregório de
Matos [1623-1696], apelidado como “Boca do Inferno”, por
suas críticas à colonização portuguesa. Entretanto, o poeta,
como qualquer homem do Brasil Colônia, acostumado e com-
prometido com a sociedade escravocrata, em versos como
estes revelava o conceito da época que pairava sobre as mu-
lheres escravas: “Jelu, vós sois a rainha das mulatas/ E sobre-
tudo sois a deusa das p...,” [reticências no original].
Arquivo Pessoal

É preciso ainda ressaltar que no final do mesmo poema


aparece a expressão “cabrinha”, que pode ser remetida ao
* Conceição Evaristo, doutoranda em masculino “bode”, apelido dado aos homens mulatos, que
Literatura Comparada, UFF, professora
da rede municipal de ensino da cidade
do Rio de Janeiro, escritora, ensaísta.
52
serviram também de debo- para a mulher negra na lite- Escrava Isaura (1875) de Ber-
che para o poeta. Os versos ratura brasileira? Estaria o nardo Guimarães. A trama
finais dizem: “Valha-te Deus discurso literário, como o ficcional não traz uma he-
por cabrinha, /Valha-te Deus histórico, procurando apa- roína negra. Na narrativa,
por mulata; /E valha-me gar os sentidos de uma ma- a senhora elogia a tez clara
Deus a mim/Que me mato a triz africana na sociedade da escrava e mais, parece fe-
guardar cabras”. brasileira? Teria a literatura licitar a moça por ter tão
Uma leitura mais pro- a tendência em ignorar o pouco “sangue africano”,
funda da literatura brasilei- papel da mulher negra na dizendo-lhe: “És formosa e
ra, em suas diversas épocas formação da cultura nacio- tens uma cor linda, que nin-
e gêneros, nos revela uma nal? Nesse sentido, é inte- guém dirá que gira em tuas
imagem deturpada da mu- ressante acompanhar as re- veias uma só gota de sangue
lher negra. Um aspecto a flexões de José Maurício africano” (A escrava Isaura,
observar é a ausência de re- Gomes de Almeida (2001) Guimarães, 1976, p.29,31).
presentação da mulher ne- sobre o indianismo român- Conclui-se então, que mes-
gra como mãe, matriz de tico e a construção dos mi- mo sendo a heroína uma es-
uma família negra, perfil de- tos de identidade nacional crava, a personagem foi con-
lineado para as mulheres para os brasileiros. cebida se distanciando o
brancas em geral. Mata-se Santos observa que as mais possível dos caracteres
no discurso literário a prole obras fundamentais do ro- de uma mulher de ascen-
da mulher negra. Quanto à mantismo brasileiro, O Gua- dência negro-africana.
mãe-preta, aquela que cau- rani (1857) e Iracema (1865), Diante do romance de
sa comiseração ao poeta, de José de Alencar, afirmam Guimarães e de tantas ou-
cuida dos filhos dos brancos uma origem mestiça para o tras obras da literatura bra-
em detrimento dos seus. Na povo brasileiro. Na primei- sileira, concordamos com
ficção, quase sempre, as ra, da fusão do casal Peri/ Sueli Carneiro, (2003, p.50)
mulheres negras surgem Ceci, o índio simbolizando que ao analisar a questão de
como infecundas e por tan- o espaço americano e Ceci gênero e raça vivida pelas
to perigosas. Aparecem ca- o universo europeu, surge
racterizadas por uma ani- um novo homem, o brasilei-
malidade como a de Berto- ro. Na segunda, Iracema, a
leza que morre focinhando, mulher da terra, se entre-
por uma sexualidade peri- ga ao herói português,
gosa como a de Rita Baiana, também aí, busca-se consa-
que macula a família portu- grar o caráter mestiço da
guesa, ambas personagens de sociedade brasileira, nasce
O Cortiço, (1890) de Aloísio o primeiro cearense, fruto
de Azevedo, ou por uma in- do colonizador com a mu-
gênua conduta sexual de lher da terra.(p.95).
Gabriela, Gabriela, Cravo e Significati-
Canela, (1958) de Jorge Ama- vo, sob o as-
do, mulher-natureza, inca- pecto de
paz de entender e atender negação
determinadas normas soci- uma per-
ais. Embora, a representa- sonagem
ção materna em muitos tex- central
tos literários possa desagra- que pu-
dar também às mulheres desse ser
brancas em geral, o que se negra, é o
pretende argumentar aqui romance
é: qual seria o significado da abolicio -
não representação materna nista, A
Kiko Nascimento

53
mulheres negras, diz que “as rimentada como mulher uma fala literária construída
mulheres negras fazem par- negra na sociedade brasilei- nas instâncias culturais do
te de um contingente de mu- ra. Pode-se dizer que o fa- poder. Nesse sentido, os tex-
lheres [...] que são retratadas zer literário das mulheres tos das escritoras afro-des-
como antimusas da socieda- negras, para além de um cendentes se inscrevem no
de brasileira, porque o mode- sentido estético, busca se- proposto por Homi Bhabha
lo estético de mulher é a mu- mantizar um outro movi- (1998, p.321) acerca da poe-
lher branca”. mento, ou melhor, se inscre- sia do colonizado. Para ele, o
Entretanto, se a literatu- ve no movimento a que discurso poético do coloniza-
ra constrói as personagens abriga todas as nossas lutas. do, não só encena o “direito
femininas negras sempre des- Toma-se o lugar da escrita, de significar ”, como tam-
garradas de seu núcleo de pa- como direito, assim como se bém questiona o direito de
rentesco, é preciso observar toma o lugar da vida. nomeação que é exercido pelo
que a família representou Nesse sentido, vários colonizador sobre o próprio
para a mulher negra uma das textos se tornam exempla- colonizado e seu mundo.
maiores formas de resistência res, como os de: Geni Gui- Pode-se concluir que na
e de sobrevivência. Como he- marães, Esmeralda Ribeiro, escre(vivência) das mulhe-
roínas do cotidiano desenvol- Miriam Alves, Lia Vieira, res negras, encontramos o
vem suas batalhas longe de Celinha, Roseli Nascimento, desenho de novos perfis na
qualquer clamor de glórias. Ana Cruz, Mãe Beata de Ie- literatura brasileira, tanto
Mães reais e/ou simbólicas, monjá dentre outras. Há do ponto de vista do con-
como as das Casas de Axé, ainda que se recordar da teúdo, como no da autoria.
foram e são elas, muitas ve- primeira romancista abolici- Uma inovação literária se dá
zes sozinhas, as grandes res- onista brasileira, Maria Fir- profundamente marcada
ponsáveis não só pela subsis- mina dos Reis, com a publi- pelo lugar sócio-cultural em
tência do grupo, assim como cação de Úrsula, em 1859. que essas escritoras se colo-
pela manutenção da memó- Não se pode esquecer, ja- cam para produzir suas es-
ria cultural no interior do mais, o movimento executa- critas. Da condição femini-
mesmo. do pelas mãos catadoras de na e negra, nasce a inspira-
Se há uma literatura que papel, as de Carolina Maria ção para esses textos a se-
nos invibiliza ou nos ficcio- de Jesus que, audaciosa- guir:
naliza a partir de estereóti- mente reciclando a mi-
pos vários, há um outro dis- séria de seu coditiano,
curso literário que pretende inventaram para si
rasurar modos consagrados um desconcertante
de representação da mulher papel de escritora. Ca-
negra na literatura. Asse- rolina escrevendo
nhoreando -se “da pena”, obras como: O quarto
objeto representativo do de Despejo, O Diário de
poder falo-cêntrico branco, Bitita, Pedaços de
as escritoras negras buscam Fome, apresentou
inscrever no corpus literá- uma escrita que para
rio brasileiro imagens de muitos veio macular
uma auto-representação. Cri- uma pretensa e desejo-
am, então, uma literatura sa assepsia da literatu-
FOTO: Ronaldo Barroso

em que o corpo-mulher-negra ra brasileira.


deixa de ser o corpo do “ou- Essas escritoras
tro” como objeto a ser des- buscam produzir
crito, para se impor como um discurso li-
sujeito-mulher-negra que se terário pró-
descreve, a partir de uma prio, uma con-
subjetividade própria expe- tra-voz à

54
Coração Tição
Ana Cruz

Quero me lambuzar nos mares negros


para não me perder,
conseguir chegar ao meu destino.

Não quero ser parda, mulata


Sou afro-brasileira-mineira.
Bisneta
de uma princesa de Benguela.

Não serei refém de valores


que não me pertencem.
Quero sentir sempre meu coração
como um tição.

Não vou deixar que o mito


do fogo entre as pernas iluda e desvie
homens e mulheres
daqui por diante.

América
Esmeralda Ribeiro

América do Sul, Rhythm and blues,


Chicago, África do Sul, Capitalismo
pobreza, lixo, vício, ismos

AMÉRICA
na terceira margem
sou azul
e me sinto só
Passado mas eu sei quem sou:
Histórico samba, rap, capoeira, blue
e tenho soul
Sonia fátima
In International Dimensions of
Do açoite Black Women’s Writing, Vol. 1, p. 203
da mulata erótica
da negra boa de eito
e de cama
(nenhum registro)
In Cadernos Negros –
Os Melhores Poemas, p. 118.

55
Quarto de Despejo
[fragmentos] Maria Carolina de Jesus

8 de dezembro ... De manhã o padre veio dizer a missa.


Ontem êle veio com o carro capela e disse aos favelados que êles

Kiko Nascimento
precisavam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há
de ter filhos – se filhos de pobre tem que ser operário? [...]
Quando o carro capela vem na favela surge vários deba-
tes sobre a religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhes
que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar
na igreja.
Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só com
pão. Não vestem e não calçam.
[1962, P. 120]

In E...FEITO DE LUZ, p. 31

ÙRSULA
[fragmentos] Maria Firmina dos Reis

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois


exclamou:
– Sim, para que estas lágrimas?!... Dizem bem! Elas são inú-
teis, meu Deus; mas é um tributo de saudade [...] Liberdade! Liber-
dade... ah! eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com
amargura. – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não
houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranqüila no seio da
felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, [...]
e ai com minhas jovens companheiras, brincando alegre, com o sor-
riso nos lábios, a paz no coração [...] Ah! meu filho! Mais tarde
deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz de
meus olhos e como penhor dessa união veio uma filha querida [...] E
esse país de minhas afeições e esse esposo querido, essa filha tão
extremamente amada, ah Túlio! tudo me obrigaram os bárbaros a
deixar! Oh! tudo, tudo até a própria liberdade.
[2004, p.115]

56
A Cor da Ternura
[fragmentos] Geni Guimarães

Minha mãe sentava-se numa cadeira, tirava o


avental e eu ia. Colocava-me entre suas pernas, en-
fiava as mãos no decote de seu vestido, arrancava
dele os seios e mamava em pé.
Ela aproveitava o tempo, catando piolhos da
minha cabeça ou trançando-me os cabelos. Conver-
sávamos, às vezes:
– Mãe, a senhora gosta de mim?
– Ué, claro que gosto, filha.
– Que tamanho? – perguntava eu.
Ela então soltava a minha cabeça, estendia os
braços e respondia sorrindo:
– Assim.
– Eu voltava ao peito, fechava os olhos e ma- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

mava feliz.(...). AMADO, Jorge.Gabriela, Cravo e Canela, São


Paulo, Martins Editora, s/d.
– Eu interrompia as perguntas da brincadeira ALMEIDA, José Maurício Gomes de. “Litera-
tura e Mestiçagem” in Outros e Outras na
para saber coisas além dela. Uma vez foi assim: Literatura Brasileira, org.Wellington de Al-
meida Santos, Rio de Janeiro, Editora
– Quem fez o fogo e a água? (...) Caetés, 2001.
AZEVEDO, Aloísio. O Cortiço, São Paulo, Áti-
– Mãe, se chover água de Deus, será que sai a ca, 1975.
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura, Trd.
minha tinta? De Myriam Ávila et al. Belo Horizonte,
Editora UFMG, 1998.
Credo-em-cruz! Tinta de gente não sai. Se saís- CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o Feminismo:
A situação da mulher negra na América
se, mas se saísse mesmo, sabe o que ia acontecer? – Latina a partir de uma perspectiva de gê-
nero” in Racismos Contemporâneos, org:
Pegou-me e, fazendo-me cócegas na barriga, foi di- Ashsoka /Takano Ed, Cidadania, Rio de
Janeiro, 2003.
zendo: - Você ficava branca e eu preta, você ficava CRUZ, Ana. ... E feito luz, Niterói, Ikenga Edi-
torial, s/d.
branca e eu preta, você branca e eu preta... FÁTIMA, Sônia. In Cadernos Negros-Os me-
lhores poemas, org: Quilombhoje,São
Repentinamente paramos o riso e a brincadei- Paulo, 1998.
GUIMARÃES, Bernardo. A Escrava Isaura, Rio
ra. Pairou entre nós um silêncio esquisito. de Janeiro, Nova Aguillar, 1976.
GUIMARÃES, Geni Mariano. A Cor da Ternu-
Achei que ela estava triste, então falei: ra, São Paulo, FTD, 1998.
JESUS, Maria Carolina. Quarto de Despejo,
– Mentira, boba. Vou ficar com esta tinta mes- Oficinas Gráficas da L. Francisco Alves,
Edição Popular, São Paulo, 1962.
mo. Acha que eu ia deixar você sozinha? Eu não. MATOS, Gregório de. Obras Completas de
Gregório de Matos, Coleção “Os Baia-
Nunca, nunquinha mesmo, tá? nos”, Salvador, Edição Universitária, s/d.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula, Editora Mu-
lheres, Santa Catarina, 2004.
Pp. 9, 10 RIBEIRO, Esmeralda. In International Dimen-
sions of Black Women’s Writing, Edited by
Carole Boyce Davies and ‘Molara Ogun-
dipe-Leslie, London, Pluto Press, 1995.

57
Um teatro negro para
um Brasil melhor?
Cristiane Sobral *

U m exercício indispensável de independência cultural para


qualquer artista negro no Brasil é, sem dúvida, produzir
um teatro que reflita sobre a experiência de ser negro
numa nação multiétnica e multicultural. De um lado a
platéia de um país. No meio dela, cerca de oitenta milhões de
brasileiros habitantes do país com o maior número de indiví-
duos da etnia negra fora da África. Indivíduos cada vez mais
conscientes do direito ao resgate legítimo do seu passado, da
sua identidade e complexidade.
Neste terceiro milênio, onde a cultura encontra cada vez
mais o seu lugar como instrumento chave para o desenvolvi-
mento sustentável do país, torna-se imprescindível refletir so-
bre a qualidade e a realidade do teatro nacional com as suas
potencialidades e limitações. Em tempos pós-modernos, não
poderia deixar de afirmar que o teatro é um espelho, não uma
caricatura.
Constituir um teatro nacional, diante do imperialismo es-
tético que considera a brancura como um cânone absoluto de
beleza, quando na verdade, ele é um entre outros, longe de
qualquer pretexto contra a brancura, exige um entendimento
multidisciplinar da história e sua evolução e, principalmente,
da diversidade que caracteriza sobremaneira a expressão ar-
tística brasileira, influenciada pelas manifestações correlatas
dos negros na diáspora.
Foto: Juliana Protásio
Arquivo Pessoal

* Atriz, escritora, professora de teatro. 1ª


atriz negra formada em Interpretação Da esquerda para à direita: Senhora Valdina Pinto (Makota do Terreiro Tanuri Juçara), ao lado do ex-senador Abdias do
Teatral pela Universidade de Brasília. Nascimento e do diretor teatral Hilton Cobra (diretor do Grupo Teatral Companhia dos Comuns), em participação no I Fórum
58 de Performance Negra, realizado em Salvador, Bahia, em maio último.
FOTO: Ronaldo Barroso/FCP

Ator Antônio Pompeo apresentando ao público, na


sede da FCP, em Brasília, em agosto de 2004, o
monólogo "Todos à Noite são Pardos".

Um ator negro é antes de tante dos estereótipos nor- Isso levanta várias ques-
tudo um ator e, como tal, malmente atribuídos desde o tões ligadas à elaboração dos
pode interpretar qualquer período pós-escravidão dramas, à composição dos
papel, aliás, a possibilidade de como a "mulata gostosa", o auditórios e às influências
viver diversos papéis é um "negro bandido", o "molequi- educativas do teatro. Sem dú-
dos maiores atrativos da pro- nho atrevido", o "preto velho", vida, torna-se indispensável
fissão. Esta potencialidade o "negro de alma branca", en- discutir os rumos do teatro
esbarra na real dificuldade de tre tantos outros. negro brasileiro e a relação
produção e localização de Para o encontro com a que o teatro possa ter diante
uma dramaturgia onde este- identidade brasileira, é preci- da experiência única de ser
ja representada a diversidade so resolver os conflitos de negro no Brasil.
cultural brasileira. A saída identidade. Nesta conformi- É impossível entender a
aponta para o exercício cria- dade, faz-se necessário um situação atual sem conhecer
tivo da construção de histó- rompimento definitivo da ilu- alguns dos movimentos
rias inclusivas, iniciando uma são do mito da democracia mais importantes do teatro
revolução, cujo primeiro pas- racial brasileira, do conceito negro brasileiro a partir da
so está na direção da forma- do "dividir para melhor rei- década de quarenta, como o
ção e afirmação artística. nar", sistematicamente apli- Teatro Experimental do Ne-
É possível afirmar, sem cado para fragmentar e pro- gro, de Abdias do Nasci-
sombra de dúvida, que os vocar o conflito infértil entre mento, o Teatro Popular Bra-
dias de hoje traduzem um pe- os negros e mestiços pois pre- sileiro, de Solano Trindade, o
ríodo de ausência cênica do tos e pardos fazem parte da Teatro Folclórico Brasileiro de
personagem negro no teatro mesma etnia negra. Haroldo Costa, e o Teatro
tradicional, mas também é
verdade que este mesmo tea-
tro tem uma fixação de uma
imagem deformada do negro,
elaborada pelo imaginário do
branco. Este é o quadro que
se pretende modificar, rom-
pendo com os modelos tra-
dicionais de ficcionalização e
apresentação do sujeito e da
cultura negros.
Eis o desafio de um tea-
tro que ouse apresentar o per-
FOTO: Protásio/Reprodução FCP

sonagem numa perspectiva


multidimensional, sujeito das
suas próprias histórias e dis-
O ator Haroldo Costa palestra durante a realização do I Fórum de
Performance Negra, realizado em Salvador, Bahia, em maio último.
59
Profissional do Negro, de ra, da globalização, do capi- ragem a diversidade. Eis o
Ubirajara Fidalgo. Cabe ain- talismo selvagem. Alguns verdadeiro papel da liberda-
da destacar o vôo solo de embates de foro íntimo em de no espetáculo da vida.
Benjamin de Oliveira, o pri- confrontos subjetivos podem O desafio é imenso e con-
meiro palhaço negro do mun- ser avassaladores frente à clama aos verdadeiros guer-
do ainda no século XIX. To- opressão constante do pa- reiros. Pode-se ir muito mais
dos estes grupos mantive- drão imposto, onde o "que- longe conhecendo a fundo a
ram-se empenhados em rer-se branco" é invisível e si- teatralidade da cultura ne-
apresentar alternativas para a lencioso, desde a colonização gra, em seus mitos, ritos e
restrita participação do artis- brasileira, porque a imagem gestos. Pode-se ir mais longe
ta negro no nosso teatro. Não padrão do espelho em ques- ao modificar o ponto de vis-
devemos nos esquecer destas tão exibe a realidade do es- ta e enxergar horizontes co-
organizações que se articula- cravizador em primeiro pla- loridos mais condizentes
ram durante muito tempo e no e bem ao fundo, fora de com a irrefutável realidade
continuamente, atravessando foco, eis que surge a imagem histórica da miscigenação
os períodos de crise aguda da do escravizado. brasileira.
sociedade brasileira. A ação vence o medo da A vitória é certa para
Hoje, algumas iniciativas mudança. As nossas históri- aqueles que considerem o
desafiam o tom tradicional- as ainda estão invisíveis, não teatro como o lugar privi-
mente "monocromático" do obstante, existem, não há dú- legiado para o exercício das
teatro. Entre alguns dos no- vida, e esta crise gera uma práticas de auto-afirmação
vos grupos que estão mudan- imensa oportunidade criati- e sobrevivência. A vitória é
do a cena da va porque existe certa para aqueles que acre-
dramaturgia um desejo latente ditarem no indispensável
brasileira, com de mudança em exercício de tolerância e co-
a proposta de toda a esfera ter- existência pacífica. A sorte
um "teatro ne- ceiro -mundista acompanha os destemidos.
gro", estão as ansiosa pelo in-
companhias de gresso na nova or- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Teatro Ébanos dem mundial. A
Brilhantes, a inclusão da popu- BARATA, José Oliveira. Didática do teatro.
Cia. dos Co- lação negra na Coimbra, PA; Almedina, 1979, p. 148.
BRASIL, Ministério da Cultura. Munanga,
muns, a Cia. In vida pública do Kabenguele (Org). História do Negro no
Black e Preto e país produzirá Brasil. 1. ed, Brasília, Fundação
Cultural Palmares, 2004, p. 426.
a Cia. Étnica de uma inevitável e CUTI, Luiz Silva. Dois nós na noite e outras
Dança e Teatro, conseqüente ex- peças do teatro negro brasileiro. São
Paulo; Eboh, 1991, p. 154.
Arquivo Pessoal

todas com sede plosão de cresci-


FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido.
no Rio de Ja- mento à altura da 40. ed. São Paulo; Paz e Terra, 2005,
neiro, além do dimensão conti- p.213.
MEIRELLES, Márcio, Bando de Teatro do
grupo Caixa Preta, de Porto nental e da riqueza do patri- Olodum. Trilogia do pelô. Salvador;
Alegre, do Bando de Teatro mônio cultural brasileiro. Olodum,

Olodum, com raízes em Sal- É preciso oferecer às pes- MENDES, Míriam Garcia. A Personagem
Negra no Teatro Brasileiro. São Paulo;
vador, e do grupo Cabeça Fei- soas a chance de assistir à Ática, 1982, p. 210.
ta, de Brasília. transformação de um país PALLOTTINI, Renata. Introdução à
dramaturgia. São Paulo; Ática, 1998, p.
Todos esses grupos, em que já resolveu os seus pro- 74.
diferentes períodos históri- blemas de auto-estima e exi- PEACOCK, Ronald. Formas da literatura
dramática. Rio de Janeiro; Zahar, 1968,
cos, enfrentaram desafios de be-se em toda a sua pujança p. 330.
constituição e manutenção sem poupar nenhum ângu- PRADO, Décio de Almeida. Teatro de
das suas propostas estéticas, lo de visão. O Brasil dos bra- Gianfrancesco Guarnieri. São Paulo;
Global, 2001, p. 279.
de construção de uma lingua- sileiros pode conviver sem STANISLAVSKI, Constantin. A Construção
gem própria, desafios de so- medos ou mágoas com a di- da Personagem. Rio de Janeiro;
Civilização Brasileira, 1986, p. 325.
brevivência diante da ditadu- ferença e enfrentar com co-

60
O corpo e a dança
negra no cenário
artístico Soteropolitano
Nadir Nóbrega Oliveira *

N este documento objetivo refletir sobre o corpo e a dan-


ça negra em Salvador, capital do estado da Bahia, cuja
população é constituída na
sua maioria por negros e
mestiços. Salvador, primeira ci-
dade do Brasil onde foi criada
a primeira Escola de Dança
da Universidade Federal da
Bahia, na década de 50,
idealizada pelo Rei-
tor Edgar San-
tos, sendo
considerado
um espaço importante
para as discussões teó-
ricas/práticas na
América Latina
sobre estudos
do corpo e do
movimento.
Meus estudos
são baseados na Etnoce-
nologia2, pois compreen-
de o “estudo dos ele-
mentos que constituem
os modelos sistêmicos
das práticas e dos com-
portamentos espetacula-
res organizados”. (Pradi-
er, 1995 p. 9)
Arquivo Pessoal

No caso em estudo,
abordarei como o corpo
* Coreógrafa, Dançarina, mestranda em negro considerado por
Artes Cênicas da Universidade Federal
da Bahia. Autora do livro Dança Afro-
Sincretismo de movimentos.
61
alguns como lindo, forte, tes em Salvador expressam- Em Salvador, é vantajo-
sensual e espetaculoso, um se para o público como so ser negro3 no espaço ar-
corpo desejado, também quem “faz coisa de preto”. tístico, principalmente na
odiado e diabolizado por (Oliveira, 1992 p.50). O dança, mesmo não sendo o
outros. Ainda apresentado e mundo artístico é um espa- produtor ou empresário,
visto assim como também as ço social “onde a discrimi- existem preferências por es-
manifestações artísticas cri- nação racial é menos forte” tes corpos nas audições para
adas e mantidas por negros (Bourdier, 1996, p.257). tournées de companhias ar-
são consideradas folclore in- Apesar da folclorização tísticas no Brasil e no exte-
clusive nos meios academi- da arte afro-brasileira apro- rior.
cistas, espaços que ainda priada pelo discurso oficial, Podemos perceber que
perpetuam o Nomos euro- principalmente aquele liga- no Brasil, especialmente em
cêntrico, orientados pela do à propaganda e ao turis- Salvador, poucos são os li-
cultura ocidental hegemô- mo e também no meio artís- vros atualizados sobre artes
nica onde pen- afro-brasileira e
sam o sagrado e africana, como
profano como também é cons-
antagônicos. tante ver a arte
Um dos ele- como entreteni-
mentos mais for- mento, lazer e
tes da tradição coisa de pequena
africana é a dan- importância.
ça. Através dela, A arte quer seja:
os nossos ances- escultura, dança,
trais negros ex- pintura, música,
pressavam todos teatro, indumen-
os acontecimen- tária são tão pre-
tos naturais da sentes e necessá-
organização da rias para o ser
sua comunidade: humano como é o
agradecer as co- comer e o dor-
lheitas, a fecundi- mir. Para vários
dade, o nasci- povos, inclusive
mento, a saúde, a os africanos, tudo
vida e até a mor- se comemora
te. É comum ver- com arte. Dá pra
mos em docu- entender um
mentários sócios pouco por que
– políticos e cul- nós baianos gos-
turais, povos afri- tamos tanto de
canos, cantando e dançan- tico, os afro-descendentes dançar, cantar e represen-
do, expressando os seus in- através da sua dança e esté- tar. As nossas festas de lar-
teresses e a sua história. tica revidam a discrimina- go e os ensaios dos blocos
Para os afro-descenden- ção sofrida. “O negro edu- afros expressam muitíssimo
tes ficou destinado o sam- cou-se ouvindo dizer que o seu bem esta afirmativa.
ba, o maculelê, a capoeira, corpo era feio e grosseiro, que Em Salvador, a dança
ou seja, o “folclore”. Embo- não podia dançar balé clássi- está imbuída de um gestual e
ra essas manifestações cul- co por ter o seu quadril largo de um dinamismo próprios,
turais tenham sido incorpo- e os pés chatos, além da sua cuja simbologia não pode
radas como parte legítima cor ser incompatível para re- ser dissociada de sua matriz
da cultura nacional, os gru- presentar príncipes e prince- cultural, em especial a afri-
pos de dança afro existen- sas”. (Oliveira, 1992 p.53). cana, onde o dançar se tra-

62
duz como poder de comu- Durante as apresenta- Relacionar a produção
nicação em sentidos mais ções, assistimos com prazer estética negra africana na
profundos. os corpos deslizarem espon- categoria “arte”, (grifo nos-
Constatamos que ela re- taneamente, o requebro dos so) em igualdade à manifes-
produz em movimentos e seus quadris em coordena- tação, da mesma espécie, de
gestos elementos fortes ção com os braços sem os outros povos, tem provoca-
quais são reforçados com o tão conhecidos códigos ges- do um esforço para vencer
figurino, a música e a sua tuais de braços e pernas do as barreiras. Através destas
historia. Entendemos que os balé, preocupando -se em danças, podemos ver arti-
elementos estéticos, tanto preencher o espaço sem a culada a interdisciplinarida-
das danças sociais como das rigidez da dança acadêmica. de, a história, a antropolo-
religiosas, estão vinculados Dança esta que foge dos pa- gia, a religião, a geografia e
aos aspectos físicos, senso- drões homogêneos e euro- outras áreas presentes re-
riais, emocionais de qual- cêntricos impostos pelo mer- presentadas nos corpos dos
quer etnia. cado cultural. dançarinos, que neste mo-
É possível considerar- O Candomblé tem opor- mento são os donos do es-
mos a dança como uma das tunizado aos grupos um sig- paço.
formas de comunicação não nificativo material artístico. O corpo negro retrata a
verbal da cultura afro-bra- Além de movimentos recria- possibilidade na qual atra-
sileira, sendo um elemento dos de danças dos orixás, os vés da dança e da estética
importante na função de dançarinos/coreógrafos utili- mostra-se presente no mun-
manter e resguardar ao lon- zam elementos simbólicos e do, representando a filoso-
go da história conhecimen- representativos da religião fia de uma civilização sus-
tos fundamentais presentes como: búzios, palha da cos- tentada por fundamentos
e atuantes no processo civi- ta, miçangas e cabaça, assim rituais e mitológicos de cu-
lizatório dos afro-descen- como as costuras das suas nho religioso.
dentes baianos. roupas e amarrações. Um corpo que a tradi-
ção ocidental desenhou
como apropriado apenas
para o trabalho, convencio-
nalmente representado com
depositário de qualidades e
sentidos negativos e des-
prestigiados, reinscreve a
diferença com dignidade e
altivez, impondo-se como
signo da individualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOURDIER, Pierre. As Regras da Arte: Gê-


nese e estrutura do campo literário: São
Paulo, Companhia das Letras, 1996.
OLIVEIRA, Nadir Nóbrega. Dança Afro – Sin-
cretismo de Movimentos. Salvador. Ufba.
1992.
PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia. Ma-
nifesto, in Performance, Performáticos e
Sociedade: Brasília UNB, 1996.
NOTAS

2 Ver Pradier e Bião, 1997


3 Sugerimos ver Sansone, 1996.

63
Evitando a “esportização”
e a “folclorização”,
a capoeira se afirma
como cultura negra 1

Paula Cristina da Silva Barreto*

A rgumentar que a capoeira deve ser consi-


derada como cultura negra – evitando o
uso das definições que tentam re-
duzi-la apenas ao esporte/luta
ou folclore/dança - nos leva diretamen-
te à reflexão sobre o que é cultura
negra, e sobre qual é a relação des-
ta com a etnicidade e as políticas
identitárias.
É sabido que as crenças, ri-
tuais e cerimônias de origem
africana têm sido objeto de re-
pressão, perseguição e diabolização
nas Américas. Embora o reconhecimen-
to parcial das contribuições afro-latino-
americanas às culturas nacionais dos paí-
ses das Américas tenha ocorrido ao longo
do século XX, isso não significou o total
desaparecimento das formas abertas e/ou
sutis de desvalorização e invisibilização
das expressões culturais negras
na região. Em parte, com o
objetivo de reverter esta si-
tuação, surgiram, em di-
versos países da Améri-
ca Latina, a partir
das últimas déca-
Arquivo Pessoal

das do século XX,


iniciativas de afirmação da
* Socióloga; professora adjunta do identidade afro-latino-ame-
Departamento de Sociologia da
Universidade Federal da Bahia;
coordenadora do Instituto Nzinga de
64 Capoeira Angola.
Arquivo Pessoal

ricana, que associavam dis- culturais de diversos tipos, ra negra no Brasil foram bem
cursos de denúncia do racis- formal e informalmente cons- sucedidas no sentido de di-
mo contra os negros e desta- tituídas, foram, gradativa- vulgar para um público mais
cavam as contribuições afri- mente, integrando os movi- amplo, dentro e fora das fron-
canas às sociedades nacionais, mentos negros recentes, o que teiras nacionais, a riqueza das
especialmente, no campo da inclui organizações carnava- diversas expressões culturais
cultura. Diversos atores - lescas, religiosas, grupos de negras existentes, chegando,
como organizações não-go- capoeira etc. Em alguns Es- em alguns casos, a evitar o
vernamentais, o Estado, a tados, como a Bahia, as ações desaparecimento daquelas
Igreja Católica, as Universi- destas organizações culturais que se encontravam em situ-
dades e os organismos inter- serviram de referência e ins- ação de maior vulnerabilida-
nacionais, entre outros - tive- piração para iniciativas que de. A repercussão destas
ram um papel importante foram surgindo em outros ações, na elevação da auto-es-
nesse processo. Estados, dando existência ao tima individual e coletiva da
No caso do Brasil, desde que se tornou o amplo e di- população negra e mestiça
o final da década de 1970 sur- versificado campo que cons- brasileira, é algo que merece
giram inúmeras organizações titui o que, atualmente, é en- destaque pela importância
anti-racistas que conformam tendido como “cultura ne- que tem na reversão de um
os movimentos negros atuais. gra”. Desse modo, pelo me- dos efeitos mais nefastos do
As ações destas organizações nos para a parte dos movi- racismo.
provocaram alterações nos mentos negros, formada por No entanto, esse esforço
discursos e práticas acadêmi- organizações, grupos e indi- de afirmação e valorização
cas, oficiais e populares, no víduos cujas ações têm se de- positiva da cultura negra no
sentido de questionar a de- senvolvido na área cultural, Brasil tem outros desdobra-
mocracia racial como um houve uma relativa superpo- mentos que merecem uma re-
mito, dar visibilidade ao ra- sição entre a construção de flexão cuidadosa, posto que,
cismo brasileiro e propor po- formas de identidade étnica em alguns casos, são contra-
líticas públicas que garantis- (negra) e de identidade cul- ditórios com os objetivos mes-
sem a ampliação das oportu- tural. mos que inspiraram estas ini-
nidades sociais para a popu- Tais ações de afirmação e ciativas. A análise da história
lação negra. Organizações valorização positiva da cultu- recente da capoeira e, espe-

65
cificamente, das transforma- processo diz respeito às ten- inserir a capoeira no também
ções nos discursos e práticas tativas de redução da capo- lucrativo mundo das ativida-
que ocorreram a partir do iní- eira a uma única definição, des turísticas e, nesse caso, é
cio da década de 1980, permi- ou melhor, de regulação da conhecida a presença de
te abordar esta questão que capoeira segundo uma visão apresentações de capoeira
está no centro do debate atu- que impõe um modelo úni- como parte dos shows folcló-
al sobre identidade, cultura co, que pretende se tornar ricos que, em geral, apresen-
negra e política. hegemônico e que é bem tam de maneira descontextu-
Depois da perseguição exemplificado pela assertiva alizada e condensada diver-
aberta no final do século XIX, de que ‘a capoeira é uma só’. sas expressões da cultura
a história da ca- Segundo essa afro-brasileira.
poeira no sécu- lógica, não há Buscando escapar das ar-
lo XX tem sido reconhecimen- madilhas da ‘esportização’ e
marcada por to da existência da ‘folclorização’, muitos gru-
repetidas tenta- de diversos es- pos de capoeira, bem como
tivas de norma- tilos, lingua- capoeiristas, mestres e contra-
tização e con- gens, aborda- mestres, tentaram encontrar
trole, bem gens e apropri- um outro espaço para a ca-
como por dis- ações da capo- poeira através da afirmação
putas em torno eira, o que sig- desta como cultura negra e
da origem e da nificou na prá- popular. Esse caminho foi
definição – tica impor a sendo pavimentado ao longo
como folclore, muitos mestres das décadas de 1980 e 1990.
como esporte, e capoeiristas a As dificuldades encontradas
como cultura adesão à con- nessa empreitada não foram
negra e/ou po- cepção da ca- poucas e se assemelham
pular, como fer- poeira como àquelas enfrentadas por ou-
ramenta para a esporte, o que tras manifestações culturais
luta anti-racista do ponto de tradicionais e populares no
e em prol da in- vista formal, Brasil. Tais dificuldades estão
clusão social e muitas vezes, relacionadas ao fato de que
racial. Diante se traduziu em estas manifestações, por um
da ausência de políticas pú- iniciativas que buscaram im- lado, não foram consideradas
blicas para a capoeira, o que por a filiação de mestres e como produtos com valor
aconteceu ‘espontaneamen- grupos de capoeira às ‘Fede- de mercado suficiente para
te’, a partir dos anos 1960, foi rações’ e “Confederações’ de atraírem investimentos do
a expansão dos segmentos capoeira, nos moldes do que setor privado e, por outro
que afirmaram a capoeira acontece com outros espor- lado, também não foram alvo
como esporte e adotaram dis- tes. Durante muito tempo, a de políticas públicas dese-
cursos e práticas condizentes afirmação de que ‘a capoeira nhadas com a finalidade de
e afinados com os propósitos é uma só’ serviu para impor, valorizá-las enquanto bens
da expansão das empresas, por exemplo, aos praticantes culturais de toda a sociedade.
cujo objetivo era disputar um da Capoeira Angola, que es- Esse cenário tem muda-
espaço para a capoeira no tes abandonassem tal estilo, do bastante na última déca-
mercado da “cultura física”. considerado anacrônico por da com a participação cres-
Próxima a essa vertente, te- aqueles que se apresentavam cente de representantes do
mos as iniciativas de inserção como defensores da moder- universo da capoeira no de-
da capoeira no lucrativo nização e da transformação bate sobre a cultura em sua
mundo das competições es- da capoeira em esporte naci- articulação com a construção
portivas. onal. da identidade negra; com o
Um dos aspectos mais Em outra direção, mui- surgimento de ações gover-
preocupantes de todo esse tos praticantes tentaram namentais no sentido de for-

66
Angola como estilo tradicio-
nal são freqüentes as tensões
entre a continuidade e a mu-
dança, tensões estas que se
evidenciam sobremaneira
quando se trata, por exemplo,
de discutir as construções de
gênero e de raça. Como en-
tender as reivindicações de
Arquivo Pessoal

valorização da contribuição
feminina à história recente da
mular políticas públicas para nio Cultural Imaterial. Por capoeira em geral e da Capo-
a capoeira que se inserem em outro lado, evitar que nesse eira Angola, em particular, e
um contexto mais geral, mar- processo sejam adotadas de- de alteração das práticas ma-
cado por iniciativas visando finições essencialistas de cul- chistas presentes no cotidia-
a promoção da diversidade tura negra, que, muitas vezes, no dos grupos e nas relações
cultural e da igualdade raci- incluem noções de pureza entre mestres e alunas, já que
al; e com o surgimento de racial e estabelecem conexões a presença feminina é recen-
mobilizações lideradas por diretas entre certas caracte- te e, portanto, não poderia
organizações internacionais rísticas fenotípicas e determi- ser considerada como parte
– como a UNESCO – visan- nadas competências culturais da ‘tradição’ da capoeira?
do a definição de marcos le- ‘africanas’ herdadas. Em lu- Como entender a participa-
gais, bem como a obtenção de gar da adoção de tais defini- ção de pessoas que não são
apoio dos Estados, para a no- ções, acredito que é de gran- afro descendentes, ou tem
ção de Patrimônio Cultural de interesse focalizar os pro- origem nacional distinta da
Imaterial. Tais iniciativas da cessos através dos quais de- brasileira, em atividades cul-
UNESCO são recentes, mas terminadas expressões cultu- turais que reivindicam o seu
estratégicas por favorecer a rais passaram a ser percebi- caráter tradicional e a raiz
articulação em escala global das pelos praticantes e pelo africana, como ocorre com a
de diferentes atores, visando público em geral como ‘cul- Capoeira Angola, já que esta
o enfrentamento das adver- tura negra’, o modo como a participação também não
sidades que são comuns às ‘tradição’ é redefinida nestas pode ser considerada parte
manifestações culturais tradi- expressões, e a relação destas da ‘tradição’ da capoeira?
cionais e populares em vári- com as construções de iden- Estas questões emergem
as partes do mundo, evitan- tidade étnica e as formas de nesse novo cenário em que
do que a discussão desses te- (auto) identificação. não se trata mais de afirmar
mas seja, excessivamente, Essa discussão é de mui- a existência da Capoeira
marcada por argumentos na- to interesse para o debate re- Angola e defender o seu es-
cionalistas3. cente sobre a capoeira, em um paço, mas sim de consolidar
Nesse contexto, temos contexto marcado pelo mai- e expandir as atividades de
diante de nós um duplo de- or reconhecimento popular e mestres e discípulos, que
safio: por um lado, afirmar a institucional da existência da atuam não apenas no Brasil,
capoeira como cultura negra, Capoeira Angola como estilo mas participam dos fluxos
assegurando que sejam im- tradicional e distinto da Ca- globais da cultura negra de-
plementadas políticas públi- poeira Regional. Acontece senvolvendo atividades em
cas coerentes com tal defini- que ao afirmar a Capoeira diversos países.
ção, que levem em conta a
heterogeneidade existente
1 Agradeço a leitura cuidadosa e os comentários de Rosângela Costa Araújo e Poloca Barreto.
nesse campo e que estejam
NOTAS

3 A respeito das iniciativas da UNESCO relacionadas ao Patrimonio Cultural Imaterial, ver os


afinadas com o objetivo de seguintes documentos: Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e
Popular (1989); Proclamação das Obras Primas do Patrimônio Oral e Intangível da
garantir que a capoeira seja Humanidade (2001); Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003)
no www.unesco.org.
reconhecida como Patrimô-

67
Cinema negro
aspectos de uma arte
para a afirmação ontológica
do negro brasileiro
Celso Luiz Prudente*

É
importante observar que a literatura sempre influen-
ciou outras áreas do conhecimento. No caso específi-
co do cinema, se, por um lado, temos a constante adap-
tação de clássicos da literatura brasileira, por outro,
mesmo as obras recentes e sem vínculos com a litera-
tura ainda tratam o negro quase sempre de forma estereoti-
pada e restrita a relações de subordinação. Constata-se, tam-
bém, que é pouco freqüente a presença do negro na função
de diretor.
Arquivo Pessoal

Percebe-se desde a literatura romântica brasileira a pre-


sença do preconceito racial que persiste em nossos dias. Por
* Antropólogo, cineasta, doutor em exemplo, na obra de Bernardo Guimarães, A Escrava Isaura, a
Educação pela USP, pesquisador do
Núcleo de Estudos e Pesquisas
Interdisciplinares sobre o Negro
68 Brasileiro da USP – NEINB
narrativa descreve a heroína, no 8º Festival In-
uma escrava, com atributos ternacional de
dos brancos, pois somente Curtas-Metra-
por meio do fenômeno do gens de São Pau-
embranquecimento poderia lo, em 1997, e na
atribuir ao negro esse trata- 1a. Mostra Inter-
mento de elevação humana. nacional do Cine-
Clóvis Moura também obser- ma Negro, em
va que o mundo ficcional dos 2004. Sem esque-
autores do romantismo reser- cer que há uma
vou para o negro apenas “a nova geração de
condição de exótico e de bes- negros brasileiros
tial” (1988: 26). que vem se dedi-
A influência africana, en- cando a realizar
tretanto, se faz sentir em toda seus próprios fil-
a cultura brasileira. No cine- mes, nas princi-
ma, essa presença não é ig- pais capitais do
norada pelos cineastas, con- país.
forme observa o pesquisador Observando
Marcelo Tassara: esses cineastas
negros, é sensato
supor a influên-
“Um rápido passar
cia de Glauber
de olhos pela nossa
Rocha. O cineasta militante neo-realismo italiano, a esté-
cinematografia
Ari Cândido é um dos que se- tica cinema-novista é funda-
revela a constante
guiu essa linha de incursão mental para se compreender
presença do negro,
glauberiana à África, ao rea- a emergência de um cinema
ocupando um justo
lizar na Etiópia, em 1979, o negro no Brasil.
lugar na formação
curta-metragem “Por que a A imagem da pobreza e a
da nossa identidade
Eritréia?”, que mostra a guer- imagem do pobre são repre-
como povo “Tenda
ra civil do povo daquele país. sentadas, preponderante-
dos Milagres”,
“Ganga Zumba”, O papel do Cinema mente, pela figura do negro
“Xica da Silva”, “O Novo, na formação desses no Cinema Novo, posição
Amuleto de Ogum”, diretores, provavelmente com a qual a juventude ne-
“Orfeu Negro” e deve-se aos aspectos sociais gra se identificou, pois via sua
tantos outros de afirmação popular que se realidade discutida no cine-
pilares, incluindo-se contrapunham ao colonialis- ma como, por exemplo, no
inúmeros mo cultural dos grandes es- filme “Barravento”1. Aliás, é
documentários, túdios (Vera Cruz e Mariste- possível dizer que o ideólogo
como “Ori” e “Iaô”, la), reprodutores da ideolo- do Cinema Novo, Glauber
atestam essa gia do cine- Rocha, via no
afirmação.” (apud ma norte- negro a confi-
Catani, 2002: 80) americano. guração da
Realçando o imagem do
Assim, a cultura cinema- lado poético povo (Pruden-
tográfica brasileira há tempos em lugar da te, 1995: 155).
registra a história do negro. técnica, o Em 1970,
Mas cabe destacar agora que que caracte- Glauber esteve
há uma nova tendência cine- riza a influ- na África (Con-
matográfica no âmbito étni- ência france- go Brazzaville),
co, denominada cinema ne- sa da Nouve- onde realizou o
gro, que ganhou visibilidade lle Vague e do filme “Leão de

69
Sete Cabeças”, que no close, vai caracte-
descreve a luta revo- rizar nuances de rela-
lucionária pela des- ções coletivas. As ce-
colonização euro - nas em primeiro pla-
péia. Tal filmagem no tecnicamente des-
significou para ele, tacam o objeto do
de acordo com seu conjunto (Deleuze,
testemunho “(...) 1994. 147- 48).O cine-
uma identificação asta negro, entretan-
cultural de um bra- to, quando usa o pri-
sileiro que retorna às meiro plano sugere
suas origens” (Pes- impregnar no perso-
soa, Fleury, 1975: 35). nagem nuances de
No que diz res- um comportamento
peito aos elementos coletivo, a partir de
cinematográficos, o uma ação afirmativa
cinema negro recen- da memória africana.
te ressalta os aspec- Pode-se considerar
tos socioculturais do isso como um traço
negro, a influência característico do ci-
dos cultos afro-bra- nema feito por dire-
sileiros, em particu- tores negros.
lar a mitologia yoru- É possível que
bá, bem como a mú- esse traço seja uma
sica e os instrumen- especificidade da
tos musicais, caracte- arte negra, pois tam-
rizando traços dos conheci- pois sugere que o luxo é a ra- bém está presente no gênero
mentos essenciais2 da africa- zão da miserabilidade. Em musical. Dificilmente consta-
nidade. Ainda sobre o aspec- sua imagética, cristaliza-se ta-se o fenômeno da execu-
to do código cinematográfi- uma dicotomia de pobres e ção solo de um instrumento
co3, isto é, o significado de um ricos que se projeta em ne- africano ou aclimatado, como
filme, tem-se a constante luta gros e brancos. exemplo tem-se a bateria da
pela inclusão social e pela ci- Seria importante um es- escola de samba. É possível
dadania. tudo em relação ao aspecto supor que a estética negra tra-
A exemplo disso, o filme do código fílmico,4 isto é, a ga um resíduo ontológico, em
“Abolição”, realizado por Zó- sintaxe do filme – sua lingua- que o ser se manifesta na bus-
zimo Bulbul em 1988, mostra gem específica –, o significan- ca do princípio de família,
o Rio de Janeiro, em especial te (seqüências, cenas, planos, fragmentada na diáspora.
os bairros de Copacabana, sonorização e montagem), Essa família, no entanto, deve
Leblon e Ipanema – berço da em que se percebe indícios ser entendida no sentido
intelectualidade das décadas específicos do cinema negro, amplo, isto é, uma família te-
de 60 e 70 –, como uma espé- no qual há traços que refle- lúrica e não apenas biológi-
cie de referência de beleza e tem a afirmação coletiva por ca. Esse é um fenômeno de
de cultura. A narrativa reve- meio da religião, da música e religiosidade, pois Olorum, a
la a ausência de crítica social da dança. Há uma persistên- morada dos orixás, está situ-
por parte dessa intelectuali- cia, inclusive, dos temas reli- ada embaixo da terra (Verger:
dade branca, alheia à margi- giosos em filmes dirigidos 1981).
nalização dos pobres e à dis- por cineastas negros. A separação da família e
criminação de que os negros O uso constante do pla- a reificação da escravidão re-
são objeto. O filme propõe no geral conjugado com o pri- sultaram em um sentimento
conseqüentemente uma re- meiro plano, em que o per- que se manifestava nos cul-
flexão de natureza marxista, sonagem é individualizado tos religiosos com a idealiza-

70
ção de uma africanidade. Es- cinema negro no Brasil. Um sob a coordenação do pesqui-
sas manifestações dos negros dos primeiros cineastas ne- sador Marcelo Tassara, já exis-
persistem e, ainda hoje, atu- gros, Zózimo Bulbul, realizou te uma atenção especial em re-
am como mecanismos de de- em 1976, “Alma nos olhos”, lação ao cinema negro, inclu-
fesa para resistir às relações em que narra a quebra dos sive quanto a esse aspecto.
opressivas, que o negam en- grilhões com a transformação Em outro filme, como “O
quanto ser, e se constituem interna do ser, numa coreo- rito de Ismael Ivo”, realizado
num traço estético presente grafia inspirada, provavel- em 2003, o cineasta Ari Cân-
em toda arte negra. As per- mente, na luta de Ogum, que dido apresenta o consagrado
das materiais sofridas pelo representa o guerreiro na bailarino negro em habilido-
negro desde a escravidão, o mitologia yorubá. sa coreografia de candomblé.
levam a uma vivência subje- O filme de Bulbul é um A composição da cena da
tiva de compensação, na qual exemplo do ponto de vista dança na praia, com o baila-
os rituais sagrados o rino em pleno mar,
religa à força vital de obedecendo ao rit-
seus ancestrais e lhe mo dos tambores,
possibilita uma iden- sugere a africani-
tidade sociocultural. dade do protago-
A exemplo disso, nista, que repre-
Sartre (1968) obser- senta, provavel-
vava que a despeito mente, um orixá.
do trabalho escravo A emergência de
o negro produzia um cinema negro
cânticos, pois está pode ser constada,
mais perto da natu- sobretudo, no mo-
reza que favorece a vimento paulista
criação poética; o tra- Dogma Feijoada,
balhador branco, por nascido em 2001.
sua vez, está mais li- De acordo com
gado à aquisição da Rodrigues (2001),
técnica para domi- “esse grupo, co-
nar as questões prá- mandado por Je-
ticas do dia-a-dia (p. fferson De [ne-
91-3). Se por um lado gro], reúne cineas-
o branco tem uma tas que seguem
visão de mundo pau- uma cartilha (...)
tada pela relação das pela qual os filmes
mãos, em função da têm de ser dirigi-
questão material; o dos por realizado-
negro relaciona-se res negros; (...) e a
com o mundo a partir do sartreano sobre a poesia ne- temática tem de estar rela-
olhar, dada sua relação com gra, mas que pode ser visto cionada à realidade do ne-
a natureza. Essa maneira pe- também no cinema negro, gro brasileiro” (p. 141). “Gê-
culiar de ser do negro pode conforme apresentamos aci- neses 22”, primeiro filme de
ser vista como um elemento ma. Todas essas considera- Jefferson De, mostra uma
diferencial de sua arte quan- ções nos permitem indagar se interpretação negra da tra-
do comparada com outras vi- existe ou não uma sintaxe dição judaico-cristã e apre-
sões estéticas. que caracterizaria o olhar senta a angústia do negro
Esses elementos do uni- dos realizadores negros bra- que assimilou a cultura do
verso africano no negro bra- sileiros. No Laboratório de outro. Esse grupo expressa
sileiro também parecem estar Mídias Digitais da Escola de um nível de participação e
presentes na emergência do Comunicação e Artes da USP, complexidade sociais que

71
É possível considerar, as-
sim, que há no cinema negro
uma espécie de busca onto-
lógica por parte de seus rea-
lizadores e que seus filmes
são constituídos pela preocu-
pação de uma luta contra a
opressão e a afirmação da hu-
manidade do negro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHOSA, Zita. 8º Festival Internacional
de Curtas-Metragens de São Paulo
[catálogo] Museu da Imagem e do Som, São
Paulo, 1997, p. 75.
ECO, Humberto. A estrutura ausente. São Paulo:
Perspectiva, 1987.
GUIMARÃES, Bernardo J. da Silva. A escrava
Isaura. Rio de Janeiro: Ed. Ouro, [s.d.]
MERLEAU-PONTY, Maurice. “O cinema e a
nova psicologia”. In: Ismail Xavier (Org.). A
experiência do cinema. 1a ed., Rio de
Janeiro: Graal, 1983.
MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro. São
antes estava restrita apenas 15). O cinema negro, portan- Paulo: Ática 1988.
Pessoa, Ana, FLEURY, Fausto. Glauber por
aos diretores brancos. to, ainda pode ser caracteri- Glauber. [s. l.:s:n], 1975, p. 35.
PRUDENTE, Celso. Barravento – o negro como
Conforme o jurista Dal- zado como “arte de causa”, possível referencial estético no cinema
novo de Glauber Rocha. São Paulo: Editora
mo Dallari “(...) a arte negra pois busca fazer valer a hu- Nacional, 1995.
seria coisa nova (...) refletin- manidade do negro negada ___. Mãos negras – antropologia da arte negra.
São Paulo: Panorama do Saber, 2002.
do a luta do negro por sua ao longo da história. ___. A pedagogia afro da Associação Meninos
do Morumbi: entre a carnavalização e a
afirmação” (Prudente, 2002: Merleau-Ponty lembra que: cultura oficial. São Paulo, 2003. 293 p. Tese
(Doutorado em Cultura, Organização e
Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo.
“Para o cinema, como para a psicologia RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e
moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o o cinema. 3a. ed., Rio de Janeiro: Pallas.
2001.
ódio traduzem comportamentos. (...) Uma boa SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o
racismo. (Trad. J. Guinsburg) 5a. ed., São
parte da filosofia fenomenológica ou Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.
TASSARA, Marcelo. “Manifestações da cultura
existencial consiste na admiração dessa afro”. In: CATANI, A. M et al. (Orgs.). Negro,
inerência do eu ao mundo e ao próximo (...) educação e multiculturalismo. São Paulo:
Panorama do Saber, 2002, p. 80.
em fazer ver o elo entre o indivíduo e o VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás – deuses
iorubás na África e no Novo Mundo. 10ª ed.
universo, entre o indivíduo e os semelhantes São Paulo: Corrupio, 1981.
(...). Pois o cinema está particularmente apto
REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS
a tornar manifesta a união do espírito com o
ABOLIÇÃO (filme). Direção de Zózimo Bulbul.
corpo, do espírito com o mundo, e a Rio de Janeiro, 1988. 180min, color., 35mm.
expressão de um dentro do outro. Eis porque ALMA no olho (filme). Direção de Zózimo
Bulbul. Rio de Janeiro, 1976, 12min, p&b,
não é surpreendente que o crítico possa, a 35mm.
AMOR no Calhau (filme). Direção de Celso
propósito de uma fita, evocar a filosofia. (apud Prudente. Cabo Verde, 1992. 8min, color.,
Xavier, 1983: 116)] 35mm.
AXÉ – alma de um povo (filme). Direção de Celso
Prudente. Angola/Brasil, 1995. 15min, color.,
35mm.
GÊNESES 22 (filme). Direção de Jefferson De.
São Paulo, 2000. 5min, p&b, 16mm.
1 Esse filme “pretende o público internacional e acredita em possibilidades que não lhe LEÃO de sete cabeças (filme). Direção de
pertencem, mas apenas ao povo e à marcha, que é o negro”. Rocha, Diário de Noticias Glauber Rocha. Roma (Itália), 1970. 95min,
Salvador, 1960, 25-26/dezembro. color., 35 mm.
NOTAS

2 Conceito apresentado na Tese de Doutorado, A pedagogia afro da Associação Meninos do O RITO de Ismael Ivo (filme). Direção de Ari
Morumbi: entre a carnavalização e a cultura oficial (Prudente, 2003: 89). Cândido. São Paulo, 2004. 15min, color.,
3 De acordo com Eco (1987), o código cinematográfico diz respeito “à reprodutibilidade da 35mm.
POR QUE a Eritréia? (filme). Direção de Ari
realidade por meio de aparelhos cinematográficos” (p. 139).
Cândido Fernandes e Mohamed Charbagi.
4 Ainda segundo Eco, o código fílmico “codifica uma comunicação ao nível de determinadas
França/Tunísia, 1979. 16min, color., 16mm.
regras narrativas” (1987: 139).

72
Patrimônio
Imaterial
A democratização
da memória
Raul Lody*

P rofissional/cidadão, volta-
do há 33 anos para tra-
balho antropológico de
base afrodescendente,
sempre questionei as
hierarquias e os luga-
res patrimoniais aufe-
ridos na oficialidade
do Estado. Certamen-
te, sabe-se da não hi-
erarquização da cul-
tura, compreen-
dendo-se cada ex-
periência e mani-
festação em con-
textos e cenários
sociais próprios e
peculiares.
Assim, mo -
vimentos inter-
FOTO: Ronaldo Barroso

nacionais vão ampli-


ando olhares e reali-
zando ações valorati-
vas pelo reconheci-
Arquivo Pessoal

mento patrimonial
de artesãos, músicos,
* Raul Lody é museólogo, antropólogo, cozinheiros, festas,
autor dos livros Jóias de Axé (2001), O
Povo de Santo (1995), entre outros.

73
rituais religiosos e demais compreender o valor patri- exterior para discutir esse
manifestações tradicionais, monial. campo das representações
populares e étnicas, referen- Dessa feita foram aber- culturais e sociais dos po-
ciando as civilizações do tos quatro livros para os re- vos. Isso se deu nos anos 90,
mundo. gistros de manifestações do quando pude relatar expe-
O Brasil integra-se a es- patrimônio imaterial. O pri- riência em curso no Museu
ses movimentos internacio- meiro para os saberes, o se- da Imagem e do Som do Rio
nais e celebra, junto com a gundo para as celebrações, de Janeiro com o projeto A
Unesco, protocolos de sig- o terceiro para as formas de voz do povo-do-santo, reu-
nificados políticos em prol expressão e o quarto para os nindo pelas técnicas da his-
do conhecimento e da pre- lugares. tória oral, 18 depoimentos
servação do chamado patri- A inclusão e o registro de lideranças religiosas
mônio imaterial. de um bem num dos livros afrodescendentes do Rio e
Pelo Decreto nº 3551, de terão como critério a refe- do Grande Rio.
4 de agosto de 2000, o presi- rência da continuidade his- Outras experiências bra-
dente de República institui tórica do bem, destacando- sileiras foram relatadas, e
o Registro de Bens Culturais se sua relevância nacional escreveu-se assim a Carta de
de Natureza Imaterial que para a memória, a identida- Fortaleza, documento de
constituem patrimônio cul- de e a formação da socieda- que sou signatário e que ini-
tural brasileiro, cria o Pro- de nacional. cia, formalmente, um pro-
grama Nacional do Patrimô- Muitas ações preconiza- cesso em prol de uma polí-
nio Imaterial e dá outras ram a formalização desses tica que contemple as ex-
providências. critérios por parte do Esta- pressões do patrimônio ima-
Diferente do instituto do. Delas destaco importan- terial.
tradicional do tombamen- te seminário que ocorreu na Para desempenhar a po-
to, para o denominado pa- cidade de Fortaleza, no Ce- lítica oficial sobre patrimô-
trimônio material, o regis- ará, reunindo diferentes es- nio imaterial, o IPHAN as-
tro é outra e nova forma de pecialistas do Brasil e do sume seu papel histórico.

74
As propostas de regis- do Benim, África Ocidental. que ativa todos os gostos da
tro, bem como documenta- Bolinho de feijão (Phaseolus mesa baiana. Pimenta que
ção necessária para justificar angulares Wild); ajeum é ver- remete ao gosto primordial
e informar sobre a impor- bo que, em Iorubá, designa de uma África partilhada
tância do tema a ser regis- o ato de comer. Então, o que por todos nós brasileiros.
trado, são dirigidas ao as mulheres (que fazem e Acarajé, o bolo de fogo,
IPHAN, que encaminhará, vendem na rua o alimento) filho do dendê fervente, da
para análise e pronuncia- anunciam, acará, acará ajé, cor que lembra o fogo, sím-
mento, ao Conselho Con- acarajé, é o bolinho de co- bolo ancestral desse elemen-
sultivo do Patrimônio Cul- mer. Inicialmente, apenas to marcado pelo vermelho e
tural. frito e no formato de uma o marrom de Iansã, a moça
Todo cidadão, associa- colher de sopa. Mais tarde, da tarde, do céu avermelha-
ções, secretarias, fundações, amplia-se e vira quase pão do, e que é também Oyá, o
ONGs e demais membros da de hambúrguer, funcio - mesmo orixá, mulher guer-
sociedade civil podem apre- nando como verdadeiro reira, quente, sexualmente
sentar e sugerir temas para sanduíche. Um verdadeiro devotada a seu marido Xan-
serem registrados enquanto ‘sanduíche Nagô’, rece- gô, Alafim, rei de Oyó. As-
bens culturais de natureza bendo acréscimos, rechei- sim, os acarajés fazem o car-
imaterial. os vários, tais como vata- dápio predileto de Oyá e in-
Nesse âmbito, destaca- pá, um vatapá simplifica- tegram-se ao amalá, prato
se trabalho pioneiro e exem- do, o chamado ‘vatapá de de quiabos, dendê e pimen-
plar realizado pelo Centro acarajé’, caruru, camarão tas com que, acrescido de
Nacional de Cultura Popu- defumado e a salada. acarajés maiores e alonga-
lar do IPHAN, instituição Combinando-se todos dos, se agrada Xangô.
que acatou minha indicação os ‘adubos’, tem-se uma far- Ao elemento fogo rela-
para formular e fundamen- ta e deliciosa refeição. Sim! cionam-se o acarajé e, ex-
tar por documentos, segun- Pimenta, ‘molho Nagô’, da- tensivamente, o epó, o den-
do os critérios oficiais do quela pimenta antiga que é dê, alaranjado-avermelha-
INRC – Inventário Nacional cerimonialmente renovada do, cor fundamental para os
de Referências Culturais, o sobre a base de dendê cardápios dos orixás, que
pedido formal de registro do (Elaeis guineensis L.) e que identificam seus alimentos à
acarajé e da baiana de aca- faz ferver o paladar, a boca história da árvore sagrada
rajé. esquentar, o sabor aumen- dos Iorubá, que é o igi opé,
Os temas profunda- tar; pimenta que cheira e ou o sagrado dendezeiro.
mente integrados à vida co-
tidiana, à história e às tradi-
ções sociais, culturais e reli-
giosas da Bahia – especial-
mente do recôncavo, desta-
cando-se a cidade do São
Salvador – mobilizou dife-
rentes segmentos, como li-
deranças do candomblé, his-
toriadores, Associação de
Baianas de Acarajé e Min-
gau, entre outros.

O bolo de fogo

Acará significa bolinho,


sendo o nome original do
acarajé em locais do Golfo

75
real, tanto, aliás, quanto a
Comida sagrada urbana, marcando o lugar
África idealizada.
e comida de rua da vida cotidiana, que se
O acarajé é comida tipi-
amplia no tempo especial da
camente feminina, como o
A paisagem urbana de festa.
churrasco é tipicamente
São Salvador é, sem dúvida, Sem dúvida o acarajé,
masculino. Há um sentido
pontuada por uma das mais comida boa de comer e, es-
sexualizado de mulher no
importantes referências de pecialmente, comida boa de
bolinho de feijão-fradinho,
personagem, tipo sócio-cul- representar e de significar,
cebola e sal frito no azeite-
tural e econômico que é a é um marco da permanên-
de-dendê. Tudo lembra e
‘baiana de acarajé’. cia do gosto africano, for-
traduz o mundo dos orixás
Desde os ‘ganhos’ no mando e co -for mando o
e antepassados e permane-
tempo do Brasil colônia, as paladar do brasileiro.
ce no mundo dos homens e
mulheres e suas vendas am- Faz-se a identidade pelo
no prazer diário de comer o
bulantes pontuam a cidade, que se come, como se come
acarajé.
fazendo ‘quitandas’ ¯ co- e pela relação que há entre
mércio de frutas, doces de a comida e os múltiplos pa-
O Registro
coco, bolos, mingaus, pa- péis sociais dos indivíduos.
nos-da-costa e outros pro- Marca gênero, hierar-
Reunida a documenta-
dutos da costa africana, cuja quia, atividade profissional.
ção necessária e encaminha-
clientela, na Bahia, sempre Estabelece compromissos
da ao Iphan, que formatou
buscou e busca referenciar- com os rituais do dia-a-dia
o processo, então analisado
se e se situar nessa relação e aqueles das festas. Comer
pelo Conselho Consultivo
de identidades entre a Áfri- o acarajé, certamente, é
do Patrimônio Cultural, re-
ca e o Brasil. mais do que comer um bo-
sulta em aprovação pública
A história da cidade – linho de feijão temperado e
do pedido por ocasião de
especialmente o chamado frito no dendê; é comer e
reunião do referido Conse-
centro histórico, Pelourinho aproximar-se fisicamente do
lho no dia primeiro de de-
e áreas próximas, as praças, trajeto e da formação da
zembro de 2004, no Museu
esquinas e ruas da cidade vida brasileira e, pela boca,
de Arte Sacra da Bahia, Sal-
baixa ou os locais consagra- pelo olfato e pelo
vador.
dos, como Igreja do Bonfim, olhar, imbuir-se
Assim, o ofício da baia-
Elevador Lacerda, entre tan- do quanto é
na-de-acarajé integra o
tos outros – tem na baiana nossa e próxi-
elenco de bens patrimoni-
de acarajé forte sinalização ma essa África
ais do Brasil.

76
ra de silenciados aposta na força dos não-di-
tos, dos espaços em branco (ou em preto) da
página. Através de textos ficcionais, mais uma
vez, memórias fragmentadas exigem um es-
paço para que sejam recompostas. Talvez daí
venha a presença constante, perpassando pe-
los contos, da morte, da violência e de boni-
tos corpos negros.
As memórias e imagens apagadas, presen-
tes, por exemplo, no conto “A Bailarina” de
Lande Onawale, quando a linda moça negra
tem seu rosto escondido pela tarja do produ-
to anunciado na TV, transformam-se em sím-
bolo de palavras despedaçadas por séculos de
violência entranhada em famílias negras. Essa
fragmentação alcança plenitude de potência
no “pelo amor de De...” final do texto “Meu
Deus, cadê esse menino” de Kátia Santos. Ali-
ás, a dinâmica cinematográfica dada ao desen-
rolar dessa narrativa puxa o leitor pelo pé, fa-
zendo com que o desespero daquela mãe se con-
verta na representação de uma cólera coletiva
de humanidades violentadas desde as suas en-
tranhas por, pelo menos, cinco séculos.
As religiões afro-brasileiras, também pos-
tas em silêncio na nossa perversa trajetória

TERRAS histórico-social, ganham espaço, mesmo que


à força, nos contos “Mukondo” de Lande
Onawale e “De quando mataram o tempo”

DE SILÊNCIO Fabiana de Lima Peixoto*


de Eduardo de Oliveira. Cerimônias renega-
das pela tradição cristã invadem a cena, de-
monstrando o desrespeito tradicionalmente
imposto e o espaço marginal, todavia de re-
Gênero Literário: Contos sistência, que ocupou e ainda ocupa a fé ne-
Organização: Fernanda gra no Brasil.
Felisberto “Terras de palavras”, apesar de não ser a
Editora: Pallas primeira coletânea de contos afro-brasileiros
Ano: 2004 publicada no nosso mercado editorial, graças,
Total de páginas: 175 páginas por exemplo, à presença audaciosa e insistente
do grupo Quilombhoje, entre outras publi-
Terras de palavras? Terras de silêncios... cações individuais de peso, se destaca por
Ler o livro de contos “Terras de Palavras”, or- extrapolar fronteiras brasileiras através dos
ganizado por Fernanda Felisberto, faz o leitor textos de Mayra Santos-Febres (porto-rique-
reencontrar sentidos no silêncio, tanto a par- nha) e de Micheline Coulibaly (nascida no
tir de dicções negras autoritariamente silen- Vietnã), deixando registrado, através dos es-
ciadas, quanto através dos próprios interstí- critos dessas mulheres, a invisibilidade e o per-
cios da linguagem. verso silenciamento de olhares e vozes negras
Que há silêncio nas palavras, todo leitor em toda a diáspora.
desconfia, entretanto, a perspectiva dinâmi- Em contrapartida às violações imagina-
ca de vozes negras espalhadas numa diáspo- das nos textos da coletânea, vem o grito sub-

* Pesquisadora de Literaturas Brasileira, Afro-Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa


77
versivo de basta, transmudado em diferentes cido, com certeza, na ânsia mesmo de apar-
imagens pelos onze contos. Dentro dessa pers- valhar a existência do ser humano negro, ab-
pectiva, a presença de corpos mutilados, judicando-nos a própria humanidade.
como em “Mukondo” de Lande Onawale, Sem querer cair em senso comum acadê-
“Entreato” de Cuti e “Cenas” de Esmeralda mico, finalizo este comentário crítico, ressal-
Ribeiro, são o reverso dos corpos em vias de tando o quanto é valiosa uma publicação
ressuscitamento, mesmo que não completo, como a de “Terras de Palavras” não só para
no genial conto “Resinas para Aurélia” de mulheres e homens negros, mas para todo e
Mayra Santos-Febres. A presença central do qualquer leitor de um país como o Brasil que
corpo negro morto, das mulheres besuntadas tenta, desesperadamente, mesmo diante de
na oficina do jardineiro Lucas, ou vivo, re- tantas obviedades, deixar em baixo da terra a
presentado pelas mãos desse “refazedor” de mácula do racismo. Mas como bem nos ensi-
mundos, trazem de maneira avassaladora o nam as histórias de “Terras de palavras”, o
complexo erotismo dos negros na diáspora, que está em baixo da terra tem o poder de
entranhado, contraditoriamente, pela afetivi- procurar a luz do sol, saindo dela, florescen-
dade boa, pela solidão e pela violência. do tal qual as plantas do sensível jardineiro
Destaca-se também, nessa importante Lucas. Assim, devido à central importância
publicação, a diagramação bem feita e mo- para a cultura negra brasileira, espero que essa
derna, além das bonitas fotos dos autores, fun- publicação seja a primeira de uma série de
damental numa estrutura social onde o rosto milhares que a Pallas e a Afirma em conjunto
negro é sempre suprimido, apagado, escure- possam produzir.

A COR
DA TERNURA Ione Jovino1

Título: A cor da Ternura,


Autora: Geni Guimarães. São
Paulo: FTD, 1989. 10ª edição
1997.

O livro de Geni Guimarães é dividido em


dez capítulos. Por meio deles, a narradora-
personagem, que se chama Geni, nos traz lem-
branças de sua vida e dos conflitos cotidia-
nos que viveu.
O primeiro capítulo – Primeiras Lembran-
ças – nos dá a conhecer uma Geni garota
que se amamentava no peito da mãe e tinha
um grande amor por ela. Ressalta a beleza da

1 Mestre em Educação pela UFSCar. Técnica Pedagógica da CENP/SEE de São Paulo.


78
mãe e repara os mínimos detalhes: o riso, o lizar a vontade do pai. O dia de sua formatu-
caminhar, o cheiro dela. ra no magistério torna-se um grande aconte-
No segundo capítulo- Solidão de Vozes cimento na família. Todos são mobilizados e
– a narradora fala das mudanças que a che- envaidecidos prestigiam o Momento Cristali-
gada de um irmão mais novo ocasionam em no de Geni.
sua vida: perda do colo, da atenção, o sen- Mas Geni sabia que o diploma por si só
timento de abandono, o ciúme que sente não lhe garantiria nada. Tratou logo de inici-
do irmão. ar a procura pelo primeiro emprego. Obstá-
No terceiro capítulo - Afinidades: Olhos culo vencido, vem o primeiro dia de aula.
de Dentro – vemos que a destituição do posto Geni se desdobra para conseguir enfrentar a
de caçula da família leva Geni a buscar den- recusa de uma aluna branca em estudar com
tro de si formas de enfrentar a “solidão” que uma professora negra. E como lidar com as
a perda lhe impôs. Surgem amigos invisíveis, palavras era seu talento maior, é por meio
a afinidade com os animais e a preocupação delas que alcança a confiança, o respeito e a
da família. Em virtude disso, Geni volta a ter amizade da aluna.
as atenções da mãe e das irmãs. No seu livro infanto-juvenil A cor da ter-
No quarto capítulo - Viagens - e no quin- nura , Geni Guimarães buscou em si a meni-
to – Tempos Escolares - Geni, já em tempos de na que cresceu em fazendas e exterioriza suas
iniciar a escolarização básica, ainda nos mos- lembranças numa prosa poética notável.
tra sua facilidade para conversar com ani- Os capítulos mostram as fases da vida
mais e árvores, como também para viajar, pela da narradora-personagem e podemos acom-
sua imaginação, por meio de um balanço, para panhar a trajetória dela , desde a infância até
outros lugares. sua fase adulta.
Os tempos escolares são de descoberta de Nesse percurso conhecemos as suas difi-
si e dos outros. Esta também é a temática pre- culdades de construção da identidade étni-
sente no sexto e sétimo capítulos denomina- co-racial, a descoberta das mudanças em seu
dos Metamorfose e Alicerce, respectivamen- corpo na adolescência, e aportamos na fase
te. É hora de descoberta do modo como as em que a personagem se torna uma jovem
relações sociais e raciais se estabelecem pau- mulher.
tadas em valores que transformam diferen- Acrescenta-se a esse contexto, os desafi-
ças em desigualdades. os enfrentados como mulher negra, vítima de
Desde pequena Geni sabia que era negra preconceitos, conquistando uma profissão
e pensava muito a respeito disso. As diferen- considerada de prestígio e privilégio, ela cur-
ças de tratamento, os xingamentos dos cole- sa o magistério e, malgrado os percalços, for-
gas e pensou em mudar de cor. A escola é lo- ma-se professora.
cal em que ela se dá conta do desprestígio de Há que se ressaltar o fato de poder acom-
ser negra, da discriminação e da versão dis- panhar a trajetória da personagem desde a
torcida sobre a escravidão que era ensinada. infância até a fase adulta e também o papel
Nos três capítulos finais, Mulher, Momen- das mulheres negras na história. O modo
to Cristalino e Força Flutuante a narradora-per- como ela descreve a mãe, salientado-lhe a
sonagem vê as mudanças ocorridas no seu beleza e a simplicidade de seus gestos e atitu-
corpo. Juntamente com elas, vêm também des.
uma única frase que usaram para explicar o Um outro ponto a destacar é o modo poé-
que acontecia: ela estava se tornando mulher. tico como a autora conduz a narrativa. Sua veia
Geni decide ser professora, para provar poética perpassa todo o texto, dando o tom de
sua capacidade em alcançar tal posição e rea- sensibilidade da história.

79
Carlos Lopes

A ÁFRICA E SUA DIÁSPORA:


uma nova parceria
Por Ubiratan Castro de Araújo*

Desde a III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e


Intolerância Correlata, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, as
relações econômicas, políticas e culturais entre as populações do con-
tinente africano e as populações da diáspora africana ultrapassaram
os domínios da retórica identitária em busca de uma solidariedade
ativa.
Neste sentido, a Revista Palmares, Cultura Afro-Brasileira bus-
cou o depoimento do Dr. Carlos Lopes, um dos mais respeitados den-
tre os jovens intelectuais africanos contemporâneos.

Revista Palmares - Jovem in- era o único guineense forma-


telectual africano trazido pelos do no Brasil.
misteres da diplomacia, qual foi O Professor Cândido
sua primeira sensação ao che- Mendes já então ti-
gar ao Brasil? nha paixão pelas
Carlos Lopes, 43 anos, é cidadão de Guiné
questões da diversi-
Bissau e Cabo Verde, especialista em Desen-
Eu visitei o Brasil pela pri- dade cultural, ten- volvimento e Planejamento Estratégico. É diplo-
meira vez em 1983, acompa- do por isso organi- mado pelo Instituto Universitário de Estudos do
nhando o então Ministro da zado uma grande Desenvolvimento da Universidade de Genebra e
Educação da Guiné Bissau Fi- conferência sobre a um PhD em História, da Universidade de Paris 1
Panthéon-Sorbonne, autor e organizador de vinte li-
delis Cabral de Almada, já fa- afro-latinidade. E vros, e lecionou em Universidades e instituições aca-
lecido. Ele era amigo pessoal eu vim participar dêmicas, incluindo Lisboa, Coimbra, Zurique, Uppsala,
do Professor Cândido Men- nos debates. Tinha México, São Paulo e Rio de Janeiro.
des, pois havia estudado di- 23 anos e acabava Em sua trajetória profissional, Carlos Lopes foi responsável
pela criação de uma instituição ímpar de pesquisa aplicada na
reito no Largo de São Fran- de terminar o meu
África Ocidental (INEP), a reforma do sistema de avaliação do PNUD
cisco. Para que você imagine mestrado na Suíça. que vigorou durante vinte anos, e uma contribuição significativa para o
o que isso representava pode- Apresentei um tra- novo desenho da cooperação técnica internacional.
se afirmar, sem margens para balho que impres- É afiliado junto a muitas redes acadêmicas, ajudou a criar organizações não-
dúvidas, que naquela época sionou muito o governamentais e foi consultor da UNESCO, SIDA (Autoridade Sueca para a
Cooperação e Desenvolvimento), entre outras instituições. Lopes é membro
Professor Cândido de conselhos editoriais de muitas publicações e mantém presença regular
Mendes, que de- em jornais e periódicos dedicados à problemática Africana e ao desenvol-
pois me foi convi- vimento.
dando para novas O especialista iniciou sua carreira nas Nações Unidas, em 1988,
enquanto economista de desenvolvimento. A sua ascensão
estadas na sua Uni-
foi rápida ocupando vários cargos e posições de relevo no
as primeiras versidade. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,
sensações foram um Tenho que con- incluindo diretor Adjunto para Avaliação e Planifica-
misto de deslumbre e fessar que as primei- ção Estratégica. Em junho de 2003 foi designado
ras sensações foram pelo secretário-geral, Kofi Annan, como seu re-
inquietação um misto de des-
presentante no Brasil, acumulando também as
funções de representante residente do PNUD.
lumbre e inquieta-

80 * Editor-chefe da Revista Palmares, Cultura Afro-Brasileira


Carlos Lopes
ção. Todo o gigantismo de cie de mentor cultural da mi- volvido como um conceito da
uma cidade tão espetacular nha geração bem nos explicou diáspora. Tinha uma explica-
como o Rio de Janeiro não es- que se devia valorizar a diás- ção lógica. Enquanto os habi-
condia o choque de vermos pora, e assim nos preparou tantes do continente pouco
uma ausência de presença ne- para tolerarmos os mitos dos conheciam dos seus irmãos de
gra aos mais vários níveis. que vinham. outras partes e estavam mais
Nós, que imaginávamos que preocupados com sua liberta-
o Brasil era uma extensão da ção do jugo colonial concreto
África, descobríamos que esse dos seus territórios, os inte-
componente não fazia parte lectuais da diáspora vinham
do institucional. Estava es- de ângulo identitário tentar
condida. reestabelecer as pontes com as
suas origens. Para uns a refe-
Revista Palmares - Do outro rência tinha de pisar no chão,
lado do mar, como vocês recebi- ou seja, ser territorial. Para os
am os brasileiros negros, que da diáspora, não! Eles cons-
chegavam cheios de mitos de truíam uma noção continen-
identidade, buscando restabele- tal porque não tinham uma
cer a conexão perdida com a Áfri- realidade territorial, mas sim
ca originária? simbólica. Ao fazerem-no
eram sem dúvida influencia-
Temos de situar o contex- dos pelos debates dos anos 50,
to histórico. Depois das inde- com protagonistas que bebi-
pendências dos países africa- am dos movimentos de direi-
nos de língua portuguesa nos tos civis dos Estados Unidos.
anos 70, a idéia do Brasil nos
Havia poucos negros no Era uma realidade muito an-
era transmitida pelos coope- contingente dos glo-saxã e que tinha em figu-
rantes que vinham ajudar a exilados, e os que ras como William Dubois os
construção nacional. Entre vinham normalmente seus expoentes. Os Congres-
eles haviam brasileiros que es- sos pan-africanistas eram to-
tavam exilados e que vinham trabalhavam na dos feitos na Europa. O fato
com o seu espírito de solida- educação. Todos tinham de uma figura como Kwame
riedade. O mais ilustre a en- uma idéia meio mítica Nkrumah, e depois muitos
volver-se com a Guiné Bissau, outros nacionalistas africanos,
sem dúvida, foi Paulo Freire.
da África, mas depressa participarem não retira o mé-
A experiência dele esta refle- se adaptavam a nova rito de que a liderança era da
tida no livro “Cartas a Guiné realidade. diáspora.
Bissau”. Um das minhas pro- Não me parece apropria-
fessoras de ginásio foi a filha do estar a fazer julgamentos
de Paulo Freire, a minha que- Revista Palmares - Seguidor à posteriori do valor dessa
rida Fátima. desta percepção da diáspora afri- contribuição, que foi impor-
Haviam poucos negros cana pela ótica do pan-africanis- tante para unificar as lutas do
no contingente dos exilados, mo, como você avalia as contes- continente, que assim ganha-
e os que vinham normalmen- tações contemporâneas ao pan- ram mais vigor. Mas é certo
te trabalhavam na educação. africanismo, mesmo aquelas que se tratava de uma cons-
Todos tinham uma idéia meio mais radicais que o consideram trução algo utilitária e simbó-
mítica da África, mas depres- uma construção ideológica dias- lica e não muito realista. Não
sa se adaptavam a nova reali- pórica, que tende a desconhecer é por acaso que nesse mo-
dade. O convívio com os bra- as identidades nacionais em mento não se falava nem de
sileiros era mais fácil, eu diria África? pan-asianismo, pan-america-
mesmo exemplar. O intelectu- nismo, ou pan-arabismo, para
al angolano Mário Pinto de O pan-africanismo foi dar alguns exemplos mais fla-
Andrade que era uma espé- primeiro esboçado e desen- grantes. Mas havia o orienta-

81
Carlos Lopes
lismo, uma criação ocidental
segundo Edward Said. Claro
que os protagonistas princi-
pais do pan-africanismo da
época sequer conheciam o
continente de que falavam e
que classificavam como negro
(o que também era um mito
que acabou por pegar).

Revista Palmares - A Organi-


zação da Unidade Africana
(OUA), instituição maior do
pan-africanismo, conseguiu
cumprir algumas dessas mis-
sões de unidade, no sentido da A criação da União Africana decalca de
realização do grande sonho afri- maneira mimética a União Européia, mas
cano de constituição dos Esta- não tem nem o arcabouço nem a
dos Unidos da África? Como
nós deveremos entender a tran-
capacidade da integração européia
sição da OUA para a União
Africana, uma nova experiência
de colaboração e solidariedade regressados da América, ou ainda não ter captado a ima-
africana? seja, uma diáspora re-integra- ginação de muitos dos que
da. são indispensáveis para lhe
A Organização de Unida- O fato da OUA ter sido dar força.
de Africana teve um papel criada na Etiópia, único terri-
fundamental na evolução da tório não formalmente domi- Revista Palmares - A teoria da
África independente. Desde nado pelo colonialismo, tam- “Negritude”, tal como foi cons-
logo tinha como objetivo lu- bém era simbólico. Fruto das truída por Senghor, Césaire e
tar pelas independências de lutas pan-africanistas a insti- Damas, fundada na crença de
todos e criou um Comitê de tuição desde cedo se transfor- uma civilização ancestral co-
Libertação sob o impulso do mou num púlpito de discur- mum, não conseguiu transfor-
Presidente da Argélia, Ben so, com uma eficiência inte- mar-se naquela ideologia ali-
Bella. A luta da Argélia era o gradora duvidosa. A sua evo- mentadora de um movimento de
símbolo mais forte de radica- lução foi medíocre, transfor- massa pan-africanista?
lismo nos anos 60. Angola, mando-se aos poucos num
Moçambique, Guiné Bissau e clube de Chefes de Estado que A negritude promovia
depois o Zimbábue, Namíbia legitimavam os golpes de Es- uma visão culturalista, que
e África do Sul protagoniza- tado uns dos outros. depois teve várias manifesta-
ram lutas fortes que mobili- O fim da OUA tem a ver ções de caráter estético. Pode-
zavam a diplomacia da OUA, com o surgimento de uma se dizer que desempenhou
mais tarde. Na realidade, a nova visão liderada pela Áfri- um papel equivalente ao pro-
OUA desde o princípio foi um ca do Sul. Ela é chamada pelo tonacionalismo e ao nativis-
instrumento político dividido Presidente Thabo Mbeki de mo, movimentos que preten-
entre radicais, conhecidos renascimento africano. A diam mostrar um certo amor
como o grupo de Casablan- criação da União Africana ao que é negro e a uma an-
ca, e os moderados, apelida- decalca de maneira miméti- cestralidade comum dos po-
dos pelos primeiros de neo- ca a União Européia, mas não vos negros. Senghor foi o úni-
colonizados, reunidos no gru- tem nem o arcabouço nem a co expoente desse movimen-
po de Monróvia. Monróvia capacidade da integração eu- to dentro do continente. Tra-
era a capital da Libéria, país ropéia. Apesar de introduzir ta-se de mais um movimento
fictício criado para albergar os mecanismos novos, parece fundamentalmente, diaspó-

82
Carlos Lopes
rico e que teve dificuldades sujeitos os demais. Depois das aparelhos jurídicos, políticos e
em ser aceito pela intelectua- independências, a maior par- administrativos coloniais que
lidade do continente. Havia te dos novos poderes radica- passaram a ser controlados por
até uma certa competição en- lizaram esta divisão e, ao in- dirigentes africanos. Até mesmo
tre os promotores da negritu- vés de alargarem direitos ci- a imposição mecânica de insti-
de e os do pan-africanismo. dadãos, quiseram justificar tutos da democracia ocidental,
Mas na realidade eles tinham seu autoritarismo com a des- sem qualquer consonância com
a mesma fundamentação filo- culpa de que se tinha de pre- as realidades africanas, seria
sófica. servar a ancestralidade africa- também um tipo de violência.
na dos poderes tradicionais, Hoje, como construir uma de-
Revista Palmares - Como enten- ou seja, consuetudinários. As- mocracia africana?
der a incapacidade dos dirigentes sim se continuou a dualizar
africanos em transformar o Pan- as legitimações no terreno po- Essa é uma continuação
africanismo, adotado como ideo- lítico: para dentro uma e para do que dizia anteriormente.
logia dos Estados, em um movi- fora outra. Ou seja, foram criadas condi-
mento social de massas? ções para que a África se
Revista Palmares - Muitos transformasse em terreno de
O pan-africanismo nun- afirmaram que a cristalização de experimentação política. O
ca foi muito bem entendido autoritarismos nos estados pós- fato de os regimes autoritári-
pelas massas. Os dirigentes coloniais deveu-se em grande os terem falhado o desenvol-
africanos, desde cedo, fize- parte à manutenção de todos os vimento permitiu que se des-
ram uma distinção intuitiva sem lições sobre “o como fa-
entre a justificação e legitima- zer”; e daí a criar uma demo-
ção para fora e a que era ne- cracia de aparência vai um
cessária para manter o seu passo. Os dirigentes autoritá-
poder para dentro. Os pou- rios africanos perceberam que
cos dirigentes, que levaram tinham de mudar de tática e
até as últimas conseqüências discurso e hoje em dia vesti-
os seus desejos de integração ram as aparências democráti-
pan-africanos, sofreram uma cas e passaram a não perder
derrota política ou foram eleições; e as transformar em
afastados violentamente. Ca- mecanismos de legitimação
sos como os de Modibo Keita, dos seus comportamentos não
Kwame Nkrumah, Patrice democráticos.
Lumumba ou Amílcar Cabral
confirmam essa visão pessi- Revista Palmares - Como os
mista. Mas a verdade é que a povos da diáspora africana de-
idéia nunca morreu. Só o pre- vem rever as suas relações com
sidente Kadafi já tentou mais os povos do continente africano
de 10 uniões com outros Es- de modo a contribuir com o pro-
tados! cesso de desenvolvimento e de
Existem explicações teóri- construção da democracia afri-
cas para essa situação. Segun- cana?
do o autor Mahmood Mam-
dani, o colonialismo acabou Os africanos da diás- Em primeiro lugar ten-
aplicando duas legislações pora precisam entender tando conhecer a África. Vai
nos territórios que adminis- ser difícil ter uma relação sã e
trava: uma lei de matriz eu- a complexidade da enérgica com os níveis de des-
ropéia que oferecia direitos ci- África contemporânea, conhecimento que atualmen-
dadãos aos brancos e algumas nas suas várias mani- te prevalecem. Os africanos
elites cooptadas; e outra legis- da diáspora precisam enten-
festações sociológicas,
lação de caráter consuetudi- der a complexidade da África
nário que transformava em culturais, ou estéticas. contemporânea, nas suas vá-

83
Carlos Lopes
rias manifestações sociológi- O que eu digo é que se de- Revista Palmares - Quanto ao
cas, culturais ou estéticas. vem encontrar fatores novos pragmatismo, como poderíamos
Existe uma necessidade imen- para fortalecer a relação. Fi- redefinir e experienciar os con-
sa de estudo e relacionamen- car no mito, ainda por cima, ceitos de intercâmbio e de coo-
to. O mesmo é verdade em baseado no desconhecimen- peração?
sentido contrário. Os africa- to mútuo, não ajuda. A ideo-
nos do continente têm de logia do pan-africanismo está Acho importante que as
aceitar que as diásporas têm ultrapassada. Tem de se en- bases da cooperação tenham
a outra metade da memória, contrar outras âncoras que a ver com a necessidade de
como gosta de sublinhar o sirvam para aumentar a auto- também fortalecer a auto-
meu amigo historiador Elikia estima dos dois lados, valori- estima do povo brasileiro
Mbokolo. zar soluções pragmáticas, mas que tem mais sangue de ori-
Em segundo lugar é pre- também aceitar um papel im- gem africana do que euro-
ciso reconhecer que o que vai portante para a solidariedade. péia. O reconhecimento da
fortalecer a relação é o prag- contribuição histórica afri-
matismo. A diáspora indiana Revista Palmares - Então, o cana no terreno da econo-
ou chinesa tem uma relação que seria o real? mia levaria a um outro olhar
forte com o seu país porque da relação com a África. Não
faz negocio! Porque isso não Pode começar, por exem- se pode nem ir para a África
se pode imaginar em relação plo, por se introduzir o ensi- buscar apenas os fundamen-
a diáspora africana? no de História de África em tos do candomblé, nem só
todos os níveis de ensino no pensar na exploração do pe-
Revista Palmares - Você tróleo. O ideal é com-
fala isso para a esmagadora binar solidariedade e
maioria de africanos que sa- interesse pragmático
íram do continente como es- com a verdadeira ra-
cravos e estão hoje na base zão principal: o rela-
da pirâmide sócio-econômi- cionamento com as
ca nos seus países de desti- origens do Brasil mo-
no? derno.

Sim, mesmo pequena, Revista Palmares - No


essa contribuição é possí- seu entendimento, as po-
vel. Pode ser através de pulações negras nas
pressões junto de seus go- Américas devem respon-
vernos, sua classe média e der a esse impulso afri-
também pela valorização cano com um renasci-
das relações comerciais
O reconhecimento da contribuição mento africano nas diás-
com o continente. O histórica africana no terreno da eco- poras e, a partir dele, pro-
avanço da discussão no nomia levaria a um outro olhar da por novas parcerias en-
Brasil com este Governo relação com a África. tre a África Continental
tem sido surpreendente. e as Áfricas Diaspóri-
Deve-se reconhecer isso. cas?

Revista Palmares - Quando país, conforme prevê o pri- Sem dúvida. Os africanos
você fala que o sentimento de meiro Decreto assinado pelo das duas metades do Atlânti-
pertencimento entre os descen- atual presidente. Também se co têm um futuro importan-
dentes de africanos na diáspora podem fazer vôos para a Áfri- te pela frente. A geração dos
é muito fraco e ineficaz, signifi- ca. Os poucos que hoje exis- mais jovens vai viver o dia em
ca que a própria ideologia do tem são feitos por companhi- que haverá mais africanos que
pan-africanismo, ou idéias como as aéreas de Cabo Verde, An- chineses no mundo. É uma
a negritude, descolaram-se da gola e África do Sul. Do Bra- responsabilidade e uma opor-
África? sil, nada! tunidade!

84
LECI BRANDÃO
Cantora, compositora e conselheira do
Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial

Vinte de novembro de as persistem na invisibilida- namente, do desfile. Só existe


2004. Estava eu na cidade do de do negro. Lançamentos chance na bateria, alas de bai-
Rio de Janeiro passando pela de carros, imóveis, shop- anas e comunidade. Escola de
Avenida Presidente Vargas. pings, pacotes turísticos, samba presidida por negro não
De repente avistei um out- bancos, etc. nós não somos ganha carnaval.
door exibindo a data 20 de no- vistos. A crueldade maior é Nas universidades é ne-
vembro. Julguei ser uma ho- com a criança negra. Nos cessário a adoção de cotas
menagem ao Dia da Consci- comerciais, quando rara- para que a juventude negra
ência Negra e a Zumbi dos mente aparecem é de forma possa ter oportunidade de ter
Palmares. Qual não foi minha rápida sem direito a close. um curso superior.
surpresa ao ver o desenho de Será que a criança negra não Por estas razões, faz-se
um enorme mosquito. Na gosta de chocolate, iogurte, necessária a atuação dos go-
verdade, o referido out-door tênis, brinquedo, parque de vernos federal, estadual e
alertava para o inseto trans- diversões? municipal para que as ações
missor da dengue. Nada con- Na cabeça dos publicitári- afirmativas se concretizem.
tra as campanhas de saúde, os, NÃO. Queremos inclusão. So-
lógico. Mas não vi nenhum Companhias aéreas são mos cidadãos brasileiros. O
cartaz, faixa ou coisa seme- tímidas na admissão de ne- exercício da democracia exi-
lhante que fizesse uma única gros como comissários de ge que haja visibilidade para
referência ao aniversário de bordo. As redes de shoppings a nossa existência. O que nos
morte de Zumbi. evitam empregar negros em falta é oportunidade para al-
Nos programas de TV, suas lojas. Agências bancári- cançar metas fundamentais
opto pelo jornalismo. São as temem que gerentes ne- que nos permita disputar o
muitos canais e quase todos gros espantem a clientela. espaço nas mesmas condi-
têm noticiário. Reparei que Nos grandes restaurantes, ções de igualdade.
apenas dois canais dão opor- não vejo garçons negros. O Não devo esquecer que
tunidade aos apresentadores lugar deles fica limitado na além dos negros, os índios tam-
negros. Será que neste país, cozinha. bém são merecedores da aten-
jornalistas negros não sabem As escolas de samba fo- ção e do respeito deste país. O
falar ou a imagem deles não ram criadas pela negritude. Dia do Índio é 19 de abril.
faz parte do padrão da mídia? Atualmente, a gente negra
As agências publicitári- vem sendo excluída, paulati- Leci Brandão

85
BEATRIZ MOREIRA COSTA
Mãe Beata de Iemonjá. Yalorixá do Terreiro
Ilê Omi Oju Arô, em Miguel Couto, Nova Iguaçu/RJ

Eu estou com 74 anos e para enxugar as lágrimas tes de julgar procurar estu-
tudo que consegui eu agra- dos que choram e dividir dar e vivenciar esta religião
deço aos meus ancestrais. seu alimento para os que que trás para todos aqueles
Pois é através de minha fé e tem fome. Orixá é isto. que querem estar bem com
da força que eles me dão Às vezes eu paro para o sagrado e com a natureza,
que eu sigo em frente, res- pensar: que transformação unir os Orixás, pois eles só
peitando o espaço de outras o Orixá me causa! Transfor- nos dão e nada cobram.
pessoas para ser também mação esta de dignidade e Termino este texto com
respeitada dentro de minha harmonia em minha vida e um verso para agradar a mu-
religião, que é a força e o ar em tudo que me envolvi. lher que mais ama e que é
que eu respiro. Digo isso, Me lembro de uma grande uma eterna namorada da na-
principalmente, em respei- antropóloga, Monique Au- tureza, a lua, assim como os
to ao cargo que a minha Ia- grá quando ela fala no du- Orixás.
lorixá Olga de Alaketo me plo e na metamorfose. Que ‘Um dia olhei para o céu
entregou, meu Oiê (cargo linda metamorfose que pas- e vi a lua turva e achei feia.
de Ialorixá). Nunca me dei- samos nos entregando ao Depois, eu mesma pen-
xei levar pela vaidade e de- Orixá. Sou feliz porque per- sei comigo mesma: quão in-
samor para com meus ir- tenço a este mundo que é grata eu sou!
mãos de religião e para as dominado pela natureza, Ela ama e nada cobra.
pessoas que a mim chegam, pelo amor e pela tolerância. Sempre clara e límpida,
seja para algum conselho ou Procuro dar a lição de passando a sua luz, assim
algum problema. compreensão. Ensinar que como os Orixás passam para
Pai e Mãe de Santo tem você somente é compreen- todos nós que acreditamos ne-
que estar abertos para todos dido quando compreende o les, o amor, a dignidade, a hu-
os momentos que sejam ne- outro. Aqui fica algo que mildade e a sapiência, para
cessários. Ser médico, psi- tento passar para todos nós que somos sua eterna
cólogo ou juiz, e o mais sa- aqueles que vêem as religi- morada’
grado de tudo: ser mãe e ões afro-brasileiras por um
amiga. Dar a barra da saia ângulo que descrimina: an- Mãe Beata de Iemonjá.

86
RAMON RODRIGUES
Sindicalista, diretor do Bloco Axé e Capitão de Moçambique

Inicio este depoimento nea, me utilizando da dança, desrespeito a urbanização e a


apresentando-me, sou Ra- dos contos, a batida dos tam- falta de reconhecimento cultu-
mon Rodrigues funcionário bores venerando nossos an- ral e ideológico é o nosso ini-
Publico da UNIVERSIDADE tepassados africanos, man- migo, mas como “Zumbi”
FEDERAL DE UBERLÂN- tendo toda tradição das nos- nunca nos entregaremos, pois
DIA e sou coordenador e tra- sas raízes africanas. mesmo com a falta de apoio
balho no sindicato da catego- Herdei do meu pai a pa- local, conseguimos a cobertu-
ria. Minha pasta no órgão se tente de 1º capitão do Mo- ra da festa em 1998 do Fantás-
refere a coordenação de polí- çambique de Belém, do qual tico, em horário nobre da rede
ticas sociais e anti-racista. Saú- estou à frente há 13 anos, em globo. De lá para cá tudo tem
do todo movimento negro do nossa cidade Uberlândia. Sou melhorado, mas sempre com
Brasil com muito Aché para ligado a Irmandade de Nossa o nosso próprio esforço.
quem é de aché, e saravá para Senhora do Rosário e São Be- Conseguimos alguns
quem é de saravá. Agradeço nedito, que surgiu em 1874 avanços significativos: um
a FUNDAÇÃO CULTURAL fundada por um escravo cha- centro de referencia da cul-
PALMARES por me dar à mado André, mas só reconhe- tura Negra Graça Axé, dois
chance de poder, rapidamen- cida em 1916. Atualmente são projetos que avançaram o
te, colocar para todo terri- 25 grupos de congado que processo cultural e ideológi-
tório nacional a importân- têm suas sedes ramificadas co “Memória Congado” e for-
cia ideológica e cultural da em todos os bairros da cida- mação de lideranças negras.
maior resistência cultuada, de, cada grupo com média de Todos com participação efe-
principalmente, na região 90 componentes entre crian- tiva de várias cidades da re-
sudeste no Brasil “A conga- ças e adultos. gião. Não poderia esquecer
da”. Tive grande incentivo Todos os anos trava-se algumas pessoas que ajudam
ancestral de meu pai Manuel uma luta difícil que lembra na construção do nosso con-
Saturnino Rodrigues conhe- nosso herói maior “Zumbi” gado em Uberlândia, região
cido na região do triângulo dos palmares, que é a realiza- e Minas Gerais. São eles seu
Mineiro como “Siricôco”, ção da festa em louvor a Nos- Candidato Ananias e seu
com quem aprendi a impor- sa Senhora do Rosário e São Charqueada de Uberlândia,
tância de poder contrapor a Benedito, que é realizada em Zulu em Araguari, Zinego
modernidade contemporâ- pleno centro da cidade, o em Uberaba, Vera e José Hen-

87
rique em Monte Alegre,Mario les que ajudaram a construir çambiqueiro. Muito obrigado
Afonso (Marão) e Leonardo a nação, mas foram deixadas a Fundação Cultural Palma-
Marciano (Ituiutaba). a margem da miséria. res/MinC. Deixo música da
Já dentro das políticas Despeço-me de todo mo- resistência do negro em Uber-
afirmativas realizamos o pri- vimento negro, conclamando lândia contra discriminação.
meiro seminário da mulher para estarmos em Brasília no Qualquer contato pode ser
no congado, trabalhando, di- dia 16/11/05 para marcha feito para o e-mail
retamente, com a jovem que Zumbi + 10, pois é o ato mais ramonegrolindo@Yahoo.com.br.
tem função dentro dos gru- importante das entidades ci-
pos como bandeireiras e tem vis depois da conferência
idade de 7 até 18 anos tratan- mundial na África do sul, Querer não é poder
do, principalmente, a questão mas também deixo o convite Respeite o meu passado
da gravidez precoce. para que vocês venham co- Pois no meu congado
Também estaremos nos nhecer a África que sobrevi- Não pode mexer
reunindo com o reitor da ve, dentro do Brasil, a festa
UNIVERSIDADE FEDERAL em louvor a Nossa Senhora
DE UBERLÂNDIA para en- do Rosário e São Benedito Tive um sonho bonito
caminhar discursos sobre a que será realizada nos dias 9 Com São Benedito, mandou avi-
política de cotas, pois é o pa- e 10 de Outubro em Uberlân- sar.
pel da nossa irmandade pres- dia, tão conhecida como ter- Que a festa do congado
sionar o poder publico para ra de “Grande Otelo”, que Não é palhaçada pra ninguém
que possa oportunizar àque- também foi congadeiro e mo- mudar.

88
1ª CONAPIR

Reprodução do cartaz oficial da 1ª CONAPIR/2005


ESTADO E SOCIEDADE
PROMOVENDO A IGUALDADE
Foram apontadas estraté- fazendo mais para também re-
Diversidade - 2 mil pessoas participaram da conferência, em Brasília.
gias de superação das desigual- solver questões raciais em todo
dades raciais para um futuro o hemisfério", afirmou Roberts.
A Primeira Conferência mais humano, justo e solidário, A ministra Matilde Ribei-
Nacional de Promoção da calcado no respeito à diferen- ro acompanhou as discussões
Igualdade Racial realizou, de ça. O comprometimento do e alicerçou a constituição dos
30 de junho a 2 de julho último, Brasil em combater a discrimi- Planos Estaduais de Promoção
o debate sobre a promoção da nação racial foi reforçado pelo da Igualdade Racial, que esta-
igualdade racial envolvendo presidente da Comissão Intera- belecem em nível local ações de
diversos grupos étnico- raciais. mericana de Direitos Humanos acordo com a realidade de cada
O evento reuniu duas mil pes- da OEA, Organização dos Es- Estado. Além disso, firmou com
soas nas dependências do re- tados Americanos, Claire K. governos estaduais e munici-
cém-inaugurado Centro de Roberts. "O Brasil é visto lá fora pais termos de adesão ao Fó-
Convenções Ulysses Guima- como um país que não apenas rum Inter governamental de
rães, na capital federal. O even- consegue discutir e resolver Promoção da Igualdade Racial,
to foi considerado como o mo- questões raciais internamente, a fim de concretizar políticas
mento histórico mais impor- mas que provavelmente está públicas anti-racistas.
tante ocorrido nos últimos
anos na área da Promoção da Fonte: Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualda-
de Racial (SEPPIR). www.presidencia.gov.br/seppir
Igualdade Racial.

VÍDEOS EDUCATIVOS SOBRE


INCLUSÃO E VALORIZAÇÃO RACIAL
Um importante instrumento de trabalho festa do Rosário, a capoeira, a umbanda e o can-
em prol da aplicação da Lei 10.639, de 9 de ja- domblé, bem como seu enfoque sobre a auto-
neiro de 2003, cujo texto determina a inclusão estima, a cidadania e a mídia. Mostra ainda sua
do ensino da história e da cultura afro-brasilei- experiência com o audiovisual, o circo e o hip-
ra nos currículos dos ensinos fundamental e hop, com destaque para o grupo NUC, Negros
médio. Assim podem ser considerados os dois Unificados Conscientes, que nasceu em uma das
vídeos educativos premiados no Primeiro Con- comunidades mais violentas da capital mineira
curso Nacional Produção de Livros e Vídeos e que reconta a história do Brasil através da rima.
sobre História, Cultura e Literatura Afro-Bra- Direção: Adriana Santos e Jorge Moreno. Dura-
Reprodução/CEAO/UFBA

sileiras, realizado pela Fundação Cultural Pal- ção: 28 minutos.


mares/MinC em parceria com o Centro de Estu- Mãos e Cérebros Negros aborda o traba-
dos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Fe- lho dos afro-brasileiros, quando da atua-
deral da Bahia (UFBA). O lançamento oficial ção como mestres de açúcar nos engenhos,
dos vídeos premiados ocorreu em duas cerimônias. Uma artesãos e artistas envolvidos na construção e decora-
promovida no dia 14 de junho último na Reitoria da Uni- ção de prédios públicos e eclesiásticos. O vídeo retra-
versidade Federal da Bahia e outra, no dia 29 de junho na ta o trabalho escravo como imagem de submissão. Nele
sede da Fundação Cultural Palmares, em Brasília. também são apresentadas formas com que mulheres e
homens negros trabalhavam no século XIX. Direção:
Os vencedores: Daniel Caetano. Duração: 25 minutos.
De volta pra Casa capta o olhar do jovem negro sobre
certas manifestações culturais, todas de origem africana: a Fonte: CEAO/UFBA - http://www.ceao.ufba.br
89
CULTURA NEGRA
PELAS ONDAS DA RÁDIO PALMARES

Reprodução/CRIAR BRASIL/FCP
Usar o rádio como meio de pro-
moção e divulgação da cultura afro-
brasileira, difundir novos conceitos
e conhecimentos sobre a contribui-
ção dos afro-brasileiros na formação
cultural do Brasil. Essa é a função do
Projeto Rádio Palmares, realizado
numa parceria firmada entre a Fun-
dação Cultural Palmares/MinC e as
ONGs Criar Brasil, Centro de Im-
prensa, Assessoria e Rádio e Afirma
Comunicação e Pesquisa.
O primeiro CD da Rádio Palma-
res foi lançado em novembro do ano
passado, composto por dois progra- Equipe Criar Brasil (da esquerda para a direita: Rosângela Fernandes, Valéria Mendonça, Alex Carlos, Márcia
Vales, Adriana Maria, Conceição Doce e Douglas Vieira (sentado com fones de ouvido) - a cultura negra brasileira
mas com aproximadamente 15 minu- em rede para 400 emissoras brasileiras
tos cada um e cinco spots para rádio.
O segundo CD da série é composto de 15 progra- bém realizam entrevistas com os ouvintes acer-
mas e o terceiro CD é composto por dois progra- ca dos temas. "As rádios já esperavam a algum
mas e cinco spots.Temas como "Quilombos, tempo por um material como este, que não tem
Juventude, O Negro na Mídia e Saúde Física e espaço na mídia convencional. A troca de experi-
Emocional da População Negra" são alguns dos ências é muito útil tanto para a Criar Brasil quan-
assuntos abordados nas produções. Uma rede de to para as rádios que estão divulgando o traba-
400 emissoras, distribuídas em todo o território lho", afirma Rosângela.
nacional, foi formada para veicular os programas. Para a coordenadora do selo editorial Afir-
Além desta rede, uma impor- ma, Fernanda Felisberto, a realização do Projeto
tante parceria firmada entre a Rádio Palmares oportunizou uma série de des-
Fundação Cultural Palmares e dobramentos. Entre eles, Fernanda enfatiza que
a Radiobrás, empresa oficial de os programas estão sendo utilizados como ma-
comunicação do governo fede- terial didático em diversos segmentos educati-
ral, assegura a veiculação de vos. Segundo Fernanda, "as emissoras públicas
dois programas e cinco spots têm o papel de trazer ao público em geral, temas
para rádio, produzidos especi- que não têm espaço nas emissoras convencio-
almente para ressaltar o Ano nais. Se há a possibilidade de aliar um novo tipo
Nacional de Promoção da de programação com conteúdo social, melhor
Igualdade Racial (2005) em ainda", disse a coordenadora.
3.876 emissoras de rádio de todo Os programas da série Rádio Palmares tam-
o Brasil. Os acessos a estes bém estão disponíveis para acesso na página da
spots são disponíveis através Fundação Cultural Palmares na Internet, pelo en-
do serviço Radioagência, dereço eletrônico www.palmares.gov.br.
montado pela Radiobrás
SERVIÇO:
(www.radiobras.gov.br).
A jornalista Rosângela Criar Brasil, Centro de Imprensa, Assessoria e Rádio: Rua
Fernandes, coordenadora da Cri- Teotônio Regadas, 26, sala 403, Lapa, Rio de Janeiro, RJ.
ar Brasil, aponta que as Fones: 0.xx.21. 2242.8671/ 2508.5204.
E-mail: criar@criarbrasil.org.br
avaliações feitas pelas rádios que
Afirma, Comunicação e Pesquisa: Rua Miguel Couto, 131/
divulgam o trabalho é muito boa. 12º andar, Centro, Rio de Janeiro, RJ. Fone(s): 0.xx.21.
Além de servir como ponto de 2223.0362/ 2203.0035. Site: www.afirma.inf.br. E-mail:
partida para debates e afirma@afirma.org.br
entrevistas locais, as rádios tam-

90
PRÊMIO PALMARES DE COMUNICAÇÃO:
INEDITISMO PARA A MÍDIA ÉTNICA
A Fundação nibilizados para uso O prêmio compreendeu
Cultural Palmares em sala-de-aula, duas modalidades em mídia:
(FCP) e a Funda- como ferramenta rádio e vídeo. Foram selecio-
ção Universitária promotora para a nados dez programas radio-
de Brasília (FU- aplicação da Lei fônicos e sete vídeo-docu-
BRA) promove- 10.639, de 9 de janei- mentários, de natureza histó-
ram o Prêmio Pal- ro de 2003, a qual ga- rica e cultural. A comissão jul-
mares de Comuni- rante o ensino da his- gadora foi composta por pro-
cação. O prêmio tória e da cultura fissionais da área de rádio e
foi lançado, ofici- afro-brasileira nos televisão e especialistas em
almente, no dia 16 currículos escolares. relações raciais e cultura afro-
de agosto de 2004, O objetivo do con- brasileira. A comissão organi-
e a premiação dos curso, realizado pela zadora do prêmio criou duas
trabalhos selecio- primeira vez pela ins- bancas para a avaliação dos
nados será reali- tituição pública fede- trabalhos de vídeo e uma para
zada no dia 20 de ral se baseou em os trabalhos radiofônicos. A
setembro, em ceri- apoiar a iniciativa de FUBRA e a FCP contribuem,
mônia realizada na cidade do produção de audiovisuais pela assim, para a promoção, da
Rio de Janeiro, e os trabalhos, difusão da arte, a fim de forta- equidade e diversidade de
em breve, estarão sendo veicu- lecer o tratamento da temática raça, gênero e faixa etária nos
lados em mostras universitári- étnico- racial nos meios de co- meios de comunicação de
as, na mídia e também dispo- municação. massa no Brasil.

PROJETOS PREMIADOS: CATEGORIA VÍDEO:


TÍTULO DO PROJETO
TEMA ESTADO AUTOR(A)
'INDICADO PARA PREMIAÇÃO'
1. Sob o signo da Justiça: A luta pelas O Negro na Universidade Distrito Federal Carlos Henrique Romão de Siqueira
Cotas na UnB
2. Iyalode - Damas da Sociedade Religiosidade de Matriz Africana São Paulo José Pedro da Silva Neto
3. Rosário do Seridó Quilombos Rio Grande do Norte Edson Soares do Nascimento
4. Makota Valdina: Um jeito negro de Mulher Negra Bahia Ana Verena Carvalho, Joiciléa Rodrigues
ser e viver Ribeiro e Paulo Rogério Nunes
5. Kamba Racê Movimento Negro Contemporâneo Distrito Federal Sionei Ricardo Leão
6. Samba Raro, o Legado de Simonal Juventude Negra São Paulo Jéferson Rodrigues de Rezende
(Jéferson De)
7. Ballet Pé no Chão Corpo Negro, Corpo em Movimento São Paulo Lílian S. Santiago e Mariana M. Monteiro

PROJETOS PREMIADOS: CATEGORIA RÁDIO:


TÍTULO TEMA ESTADO AUTOR(A)
1. A Lenda de Luiza Mahim Biografias de Personalidades Negras São Paulo Fábio Malavoglia
2. Geraldo Filme: Um Mestre na For- História do Samba São Paulo Juliana Dondo e Patrícia Corrêa de Melo
mação do Samba Paulista
3. Entre Stratchs e Tambores Música Negra Contemporânea Rio de Janeiro Carlos Augusto Baptista
4. Da Cor do Brasil - Debate com a Debate com a Juventude Negra Piauí Maria Gorete Pereira Gonzaga
Juventude no Rádio
5. Safari, uma viagem afro-brasileira Olhando para a África São Paulo Maria Inês Amarante
6. Núcleo Bartolomeu de Depoimen- O que é o Racismo? São Paulo Eugênio Correia Ferreira Lima
tos - Teatro Hip Hop
7. Abassá Vivências Religiosas Bahia Renata Almeida de Matos
8. Negrícia/Poesiação Poesia Negra Contemporânea Rio de Janeiro Wellington Pinto de Assis (Hélio de Assis)
9. A Voz das Mulheres Negras do Movimento Negro: Experiências Rio Grande do Sul Associação Cultural de Mulheres Ne-
Gueto para Fora gras (ACMUN)
10. Negra movimenta, necessidade e Movimento Negro: Experiências São Paulo Mateus Bertolini de Moraes
fertilidade
91
Os Negros,
um “cast”
afro-brasileiro

Foto: Vantoen Pereira Jr.


em cena
Faces - Parte do elenco de Os Negros: a partir da esquerda, Patrícia Costa,
Sérgio Menezes, Nívea Helen, Maurício Gonçalves e Sarito Rodrigues.

Durante a promoção da 1ª meu Evaristo, Patrícia Costa, da sociedade. Aos dez anos de
Conferência Nacional de Pro- Nívia Helen, Sarito Rodrigues, idade foi acusado de roubo e in-
moção da Igualdade Racial, os Deoclides Gouvêa, Jozé Araú- ternado num reformatório. A
brasilienses assistiram à histó- jo, Audri da Anunciação, Linco- partir de 1930 levou uma vida
rica montagem de Os Negros, ln Oliveira e Jorge Lucas. O de vadiagem, entregue a ativi-
um dos mais importantes palco, além de todas as estre- dades delituosas. Na prisão,
textos para teatro do francês las, teve cenografia, figurino e condenado por roubo, escreveu
Jean Genet, sob direção do iluminação especiais. o romance Nossa Senhora das Flo-
diretor Luiz Pilar. A peça foi en- “O mercado de trabalho res (1944), cuja qualidade cha-
cenada durante dois finais de para o negro já não é fácil, mou a atenção de escritores
semana no teatro do CCBB imagine então a situação dos como Jean Cocteau e Jean-Paul
(Centro Cultural Banco do Bra- que escolhem o caminho do Sartre. A polêmica sobre Genet
sil). Veio completa do Rio de mundo das artes?” pergunta aumentou com o romance Que-
Janeiro, onde estreou em abril Pilar. Para ele, as condições de relle (1947), que Fassbinder
e teve 60 apresentações. Pri- trabalho nesta área sofreram transformou em filme e com a
meira montagem brasileira, já deterioração nos últimos autobiografia Diário de um La-
faz parte da história do teatro anos por conta de um discur- drão (1949), cuja escabrosa fran-
nacional. so de responsabilidade social queza - o autor se proclamava
Para o diretor, “foi muito e politicamente correto feito abertamente homossexual -
importante ter apresentado a pelos produtores. causou escândalo. Depois de
obra durante a Conferência por “Agora até os papéis que escrever alguns romances e
conta de atingirmos um públi- eram ocupados pelos artistas peças teatrais curtas que mos-
co bem mais diversificado, vin- negros já não são mais garan- travam a influência do exis-
do de todo o Brasil e tidos”, explica. tencialismo de Sartre, a peça
abordarmos a questão da A Peça: escrita em 1958, Os As Criadas (1947) revelou em
igualdade racial por meio do Negros apresenta uma estrutura Genet o dramaturgo de pro-
teatro”, disse Pilar, um dos úni- pouco convencional: não se fundidade intelectual, que dis-
cos diretores negros que con- trata de um texto com começo, pensava aos problemas de
seguiram espaço para atuar na meio e fim. Os 13 atores negros identidade no mundo moder-
grande mídia. dividem-se em dois grupos: os no um tratamento precursor
Segundo ele, muita gente que aparecem como eles mes- do teatro do absurdo.
fora do eixo Rio-São Paulo teve mos e aqueles que aparecem
a oportunidade de conhecer o mascarados para representar
SAIBA MAIS
trabalho. A peça volta a ser en- homens brancos. Para realçar
cenada em setembro na aber- essa atmosfera peculiar, foram Peça: Os Negros
tura do Festival de Teatro de concebidos toda a cenografia e Direção: Luiz Antonio Pilar
Porto Alegre. Em outubro, se- os figurinos. Cenário: Doris Rollemberg
gue para uma temporada em Jean Genet: Nascido em 19 Figurino: Nello Marrese
São Paulo. de dezembro de 1910, em Paris, Iluminação: Daniela Sanches
Formado por um estelar Jean Genet foi abandonado Trilha sonora: Gabriel Moura
grupo de atores negros, o elen- pela mãe e adotado por uma fa- Programação visual: Maria Julia Ferreira
co é composto por Sergio Me- mília camponesa. O futuro es- Produção executiva: Celso Lemos
nezes, Iléa Ferraz, Maurício critor conheceu desde a infân- Direção de produção: Norma Thiré
Gonçalves, Maria Ceiça, Ro- cia os mais sórdidos aspectos

92
EXPOSIÇÃO

ABDIAS NASCIMENTO
90 ANOS – MEMÓRIA VIVA
Arquivo Nacional – Antiga Casa da Moeda Rio de Janeiro,
15 de novembro de 2004 a 1 de maio de 2005
Por Elisa Larkin Nascimento*

tar de confraterniza-
ção, uma mesa em
sessão plenária do
VII Congresso da As-
sociação Internacio-
nal de Estudos Bra-
sileiros (BRASA) e
uma mini-mostra no
Solar Grandjean de
Montigny, espaço
cultural da PUC-Rio.
Para coroar as
comemorações, o
IPEAFRO – Instituto
de Pesquisas e Estu-
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO dos Afro-Brasileiros
Foto de Lula Rodrigues
ABDIAS NASCIMENTO, Xangô Rodrigues Alves (Middletown, – realizou uma ex-
1970). Acrílico sobre tela, 102 x 154 cm.
posição e uma série
de eventos com o
A vida de Abdias Nasci- patrocínio da Petro-
mento se mescla com a pró- bras, em parceria
pria história brasileira no que com a PUC-Rio e
diz respeito à cultura e ances- com apoio da SEP-
tralidade africana e à luta por PIR, Fundação Cul-
políticas públicas de promo- tural Palmares, Mul-
ção da igualdade racial. Em tirio e Consulado
14 de março de 2004 ele com- dos Estados Unidos.
pletou 90 anos, e o movimen- O Colóquio In-
to social afro-brasileiro come- ternacional reuniu
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
morou a data com um ato estudiosos e pesqui- Foto de Vantoen Pereira, Design Gráfico de Luiz Carlos Gá.
Banner da exposição Abdias Nascimento 90 Anos - Memória Viva, Arquivo Nacional, 15 de
ecumênico realizado na tra- sadores vindos de novembro de 2004 a 1 de maio de 2005.

dicional Igreja N. S. do Rosá- vários países como


rio e São Benedito dos Ho- Gana, Benin, República De- várias partes do Brasil. Entre
mens Pretos, no Rio de Janei- mocrática do Congo, Estados os participantes estavam
ro. Houve também um jan- Unidos, França e Jamaica e de os professores Olabiyi Yai,
* Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro O sortilégio da cor: Identidade,
raça e gênero no Brasil, pesquisadora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, Rio (IPEAFRO) e
curadora da exposição Abdias Nascimento 90 Anos Memória Viva. 93
rias ligadas aos movimentos
sociais e ao terceiro setor. O
objetivo era contribuir para o
conhecimento e divulgação
da história e cultura afro-bra-
sileiras, objetivo expresso da
Lei n. 10.639 de janeiro de
2003, que torna obrigatória a
inclusão do estudo dessas
matérias no currículo escolar
do ensino básico e médio em
todo o País.
Assim, as crianças e os
jovens alunos, bem como os
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO visitantes adultos, puderam
Foto de Ierê Ferreira
Ato Ecumênico pelos 90 anos de Abdias Nascimento, 14 de março de 2004. conhecer fatos e eventos his-
tóricos como, por exemplo, a
Molefi K. Asante, Anani Dzi- No belíssimo espaço res- Frente Negra Brasileira em
dzienyo, Kabengele Munan- taurado da antiga Casa da que Abdias militava na déca-
ga, J. Michael Turner, Timo- Moeda, hoje sede do Arqui- da de 1930, o Congresso Afro-
thy Mulholland (Vice-Reitor vo Nacional, foi montada Campineiro que ele ajudou a
da UnB), Antonio Sérgio Gui- uma exposição da obra e do organizar em 1938, e o Teatro
marães, Monique Augras, acervo de Abdias Nascimen- Experimental do Negro que
Denise Fonseca e Ângela Pai- to. Além de sua própria pin- ele fundou em 1944. Essa en-
va. Os debates focalizaram te- tura, a mostra incluía docu- tidade quebrou a barreira de
mas como a ação afirmativa mentos históricos, vídeos, fo- exclusão do negro no palco e
numa visão internacional, as tografias e na dramatur-
artes e a cultura religiosa de obras de arte gia brasileiros.
origem africana, e aspectos de seu acer- Formou al-
da história afro-brasileira vis- vo que regis- guns dos mais
tos pela ótica da atuação de tram uma di- talentosos ato-
Abdias Nascimento e do Tea- mensão im- res e atrizes do
tro Experimental do Negro. portante da teatro brasilei-
A mostra de filmes abor- herança cul- ro, como Agui-
dou a presença e as formas tural do naldo Camar-
de retratar o negro no cine- povo brasi- go, Claudiano
ma brasileiro, com debates e leiro e cons- Filho, José
discussões sobre os filmes tituem uma Maria Montei-
como Rio 40 Graus, com a janela para ro, Arinda Se-
presença de Nélson Pereira boa parte da rafim, Marina
dos Santos, Castro Alves com história e Gonçalves,
a presença de Sílvio Tendler, cultura da Lea Garcia e
Chico-Rei de Walter Lima Jr., população Ruth de Sou-
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
e Família Braz de Arthur Fon- afrodescen- Fotografia de Lula Rodrigues za. Suas reali-
ABDIAS NASCIMENTO, Padê de Exu (Rio de Janeiro, 1988).
tes. Entre os participantes e dente no Acrílico sobre tela, 100 x 150 cm. zações teatrais,
palestrantes estavam de Joel país. Houve a começar pela
Zito Araújo, Carlos Alberto uma intensa programação de peça O imperador Jones, de
Medeiros, Júlio César Tava- visitas à exposição por parte Eugene O’Neill, foram acla-
res, Miguel Pereira, Uelinton de escolas, educadores, madas pela qualidade de in-
Alves. ONGs e entidades comunitá- térpretes e de cenografia.

94
Contaram com a colabora-
ção de artistas como Nélson
Rodrigues, Santa Rosa, En-
rico Bianco, José Medeiros e
muitos outros.
O Teatro Experimental
do Negro visava reabilitar e
valorizar a identidade, he-
rança cultural e dignidade
humana do afro-descenden-
te. Unia a atuação política à
afirmação da cultura de ori-
gem africana, representando ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
Foto de Ierê Ferreira
um avanço na luta contra o Ubiratan Castro Araújo, Abdias e Matilde Ribeiro nos 90 anos de Abdias Nascimento, 14 de março de 2004.
racismo no século vinte.
Oferecia cursos de alfabetiza- nindo a discriminação racial ceito de uma arte negra con-
ção e cultura geral e organi- como crime de lesa-pátria. tribuía de maneira positiva
zava eventos como o 1º Con- Quem visitou a exposi- para a construção de uma
gresso do Negro Brasileiro ção também pôde conhecer arte brasileira. O Museu de
(1950). Criou o Comitê De- um dos mais interessantes Arte Negra não só coleciona-
mocrático Afro-Brasileiro em projetos do Teatro Experi- va obras e incentivava o de-
1945. Advogava direitos tra- mental do Negro: o Museu de senvolvimento do talento de
balhistas para a empregada Arte Negra - MAN. Embora artistas afro-brasileiros, como
doméstica e políticas públicas nunca tenha conseguido também promovia eventos e
afirmativas para a população uma sede, sob a curadoria de provocava debates. É o caso
afro-descendente. Patroci- Abdias o MAN trabalhava de do Concurso de Artes Plásti-
nou e organizou em 1945-46 forma pioneira e bem didáti- cas sobre o tema do Cristo
a Convenção Nacional do ca a idéia de uma arte basea- Negro, promovido pelo TEN
Negro, que propôs à Assem- da em valores culturais afri- em 1955, na ocasião do 36º
bléia Nacional Constituinte canos e afro-brasileiros res- Congresso Eucarístico Inter-
de 1946 a criação de políticas peitados e levados a sério. nacional, em que a Igreja ca-
públicas para a população Com a colaboração de alguns tólica do mundo todo se con-
afro-descendente e um dis- dos mais renomados artistas gregava no Rio de Janeiro. A
positivo constitucional defi- da época, mostrou que o con- imprensa e os setores conser-
vadores da Igreja condena-
ram a iniciativa como “aná-
tema” e “uma agressão à Re-
ligião e às Artes”, nas palavras
de um editorial do Jornal do
Brasil que convocava as au-
toridades eclesiásticas a proi-
bi-la e reprimi-la. Numa sala,
dedicada ao tema do Cristo
Negro, estão expostas várias
obras que concorreram nes-
se concurso e outras, mais
recentes, que mostram como
continua atual e relevante
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
Foto de Ierê Ferreira esse tema. Essas obras fazem
Jovens da Educafro e PVNC exigem cotas nas universidades públicas antes de cumprimentar Abdias Nascimento no ato
ecumênico pelos seus 90 anos. Rio de Janeiro, 14 de março de 1914. parte de um conjunto de mais

95
líticas públicas de ocasião de apresentar ao pú-
igualdade racial. blico do Rio de Janeiro uma
A exposição ocu- parte importante da memó-
pou todo o espaço ria da população afrodescen-
cultural da Casa dente no país. Agora o IPEA-
da Moeda – tanto FRO pretende levar a expo-
os salões nobres sição para outras cidades,
como os extensos aprofundando e desenvol-
cofres e espaços de vendo o trabalho didático e
reserva - somando de capacitação de professo-
mais de 850 m2 em res a partir do conteúdo apre-
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO que estavam à sentado.
Foto de Mauro Domingues
Abdias e crianças de escola em visita à exposição Abdias Nascimento 90 Anos - Memória
mostra mais de 417 O material, produzido
Viva, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 25 de novembro peças incluindo para a exposição, constitui
200 obras de arte, uma rica fonte de informa-
de 100 obras de arte da cole- 90 painéis fotográficos com ções para esse trabalho. O
ção do MAN, todas doadas textos, centenas de docu- mini-catálogo foi comple-
em apoio ao projeto, de artis- mentos de acervo (progra- mentado por quatro vídeos
tas como Manabu Mabe, Ivan mas, folhetos informativos, documentários e por uma
Serpa, Bonadei, Ana Letícia, cartas, medalhas e prêmios). série de textos e outras fon-
Anna Bella Geiger, Inimá de O conteúdo tinha quatro en- tes de informações colocados
Paula, Darel, Iberê Camargo, foques principais: à disposição do público num
Bess, Aldemir Martins, Au- 1. a obra criativa pictóri- cantinho de leitura, onde as
gusto Rodrigues, Enrico Bi- ca de Abdias Nasci- pessoas podiam ler e folhear
anco, e outros. mento (54 obras) no à vontade. O conjunto forma
O visitante também teve contexto das referênci- um precioso elenco de subsí-
a oportunidade de conhecer as culturais e civiliza- dios para alunos, pesquisa-
vários aspectos internacio- tórias africanas que ela dores e professores.
nais da questão racial, como explora; Já foi grande a contribui-
por exemplo o movimento da 2. o acervo de obras ar- ção dessa exposição para a im-
Negritude, protagonizado por tísticas do projeto do plementação dos objetivos da
africanos e antilhanos como Museu de Arte Negra Lei 10.639 no Rio de Janeiro.
Aimé Césaire, Leon Damas e (146 obras, entre escul- Certamente essa contribuição
Léopold Senghor. O Pan-Afri- turas, pinturas, dese- será multiplicada em Brasília,
canismo é outro movimento nhos e gravuras); Salvador, São Paulo, Belo Ho-
do mundo africano em que 3. a obra cênica artística rizonte e Porto Alegre.
Abdias Nascimento partici- e social do Teatro Ex-
pou durante o período de seu perimental do Negro
exílio. Depois de sua volta ao (1944-68);
Brasil, protagonizou a funda- 4. a produção intelectu-
ção e desenvolvimento do al, as propostas de po-
Memorial Zumbi, militou no líticas públicas, e a atu-
Partido Democrático Traba- ação internacional de
lhista de Leonel Brizola. Foi Abdias Nascimento e
deputado federal e senador, das organizações que
mantendo estreita ligação ele criou, apresentadas
com o movimento social afro- em vídeos, fotos e pai-
brasileiro, e dedicou seus néis fotográficos com
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
mandatos à proposta de cri- textos explicativos. Foto de Ierê Ferreira
Frei David acompanha jovens da Educafro na saudação a Abdias
ação e implementação de po- Dessa forma, tivemos Nascimento, 14 de março de 2004.

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