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Revista01 PDF
Revista01 PDF
Da representação à auto-apresentação
da mulher negra na literatura brasileira
Conceição Evaristo 52
Um teatro negro para um Brasil
AXÉ DE FALA
melhor?
Cristiane Sobral 58 Leci Brandão
O corpo negro e a dança negra no Observações 85
cenário artístico soteropolitano
Mãe Beata de Iemonjá
Nadir Nóbrega Oliveira 61 Respeito aos Ancestrais 86
Evitando a “esportização” e a
Ramón Rodrigues
“folclorização”, a capoeira se afirma
Tradição e Política 87
como cultura negra
Paula Cristina da Silva Barreto 64
Cinema negro: aspectos de uma arte
para a afirmação ontológica do negro
brasileiro MOSAICO
Celso Prudente 68
Patrimônio imaterial – A 1ª CONAPIR
democratização da memória Estado e Sociedade
Raul Lody promovendo a Igualdade 89
73
Vídeos educativos
sobre inclusão e valorização racial 89
CULTURA NEGRA
pelas ondas da Rádio Palmares
RESENHAS
Prêmio Palmares de Comunicação
Terras de Palavras ineditismo para a mídia étnica
Por Fabiana de Lima Peixoto 77 Os Negros 90
A Cor da Ternura um “cast” afro-brasileiro em cena
Por Ione Jovino da Silva 78 92
PÉROLAS NEGRAS
ENTREVISTA
Abdias do Nascimento:
A África e sua Diáspora: novas
90 anos - Memória Viva
parcerias
Carlos Lopes 80 93
3
A Revista PALMARES - CULTURA AFRO-BRASILEIRA é uma ini-
ciativa da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, que
tem como objetivo principal a instituição de um veículo de divulgação da
produção cultural dos artistas, dos militantes e dos intelectuais negros
brasileiros. Desde já esconjuramos a tentação de uma publicação veicula-
dora de qualquer tipo de propaganda institucional. Acreditamos que o
papel de uma fundação pública de cultura negra é promover a produção
e a circulação de idéias referenciadas no patrimônio cultural que nos foi
legado por nossos antepassados africanos, capazes de fortalecer nossa
identidade e, ao mesmo tempo, estabelecer o diálogo com todos os com-
ponentes da diversidade cultural brasileira.
CULTURAS NEGRAS,
civilização brasileira* Joel Rufino dos Santos
5
bola, os uniformes e o hand e os negros invadiram as terá contribuído para des-
book ensinando a jogar. Termi- grandes equipes. Com Faus- moralizar essa espécie de
nados os matches ia o team to, “A Maravilha Negra”, Le- bovarismo que faz com que
vencedor, já enxertado com ônidas, “O Diamante Negro” nos suponhamos ser bran-
burguesinhos daqui, festejar e o veterano mulato Frienden- cos.
nas confeitarias: “When more reich, “El Tigre”, os negros in- O bumba-meu-boi é um
we drink togheter, more fri- ventaram a “maneira” brasi- caso perfeito de luta pelo di-
ends we will be!” leira de jogar futeboI: escuro reito de representar. Conhe-
Após a Grande Guerra - ou claro de pele, verdadeiro cemos o enredo original: uma
que tanta coisa mudou no craque passa a ser o que joga negra grávida que deseja co-
Brasil - é que o foot-ball se na- “daquela maneira”. O que mer língua de boi leva o ma-
cionalizou, embora ainda em vem em seguida é conhecido, rido a matar o animal prefe-
1940 um marmanjo ao derru- cada geração será liderada rido do amo. Separada a lín-
bar outro arranhasse a gar- por um grande jogador afro- gua, faz-se a repartição festi-
ganta num “Sorry”! Em 1920, brasileiro: Fried gera Fausto va das carnes e vísceras. O
quando Lima Barreto quis que gera Leônidas que gera negro foge, é recapturado por
fundar a Liga Nacional con- Zizinho que gera Pelé... O índios amigos, é punido e,
tra o Futebol, o esporte já era Brasil se torna conhecido com ajuda de mandingueiros,
brasileiro mas permanecia como o “país do futebol” e ressuscita o boi com um clis-
branco. Era jogado por negri- tem no mundo a cara de um ter no rabo. Todo ano, até o
nhos do Maranhão ao Rio negrinho de Três Corações. fim dos séculos, encena-se a
Grande do Sul, em fields sem O Barão do Rio Branco, morte e ressurreição de Ápis.
grama e bolas esbeiçadas, mas que zelou pela nossa imagem A etnografia do boi no
os grandes times - o Botafo- de país branco, sofreria. Se Norte e Nordeste remonta ao
go, o Corinthians, o Grêmio, amasse o futebol, ao menos século XVIII. A matriz mito-
o Náutico... - só admitiam poderia comemorar: já não lógica estava na África e na
mulatos de gorra e maquia- somos sparrina da Argentina. Europa, mas a sua difusão
dos. A um certo Carlos Alber- Outro caso formidável é pelo Brasil é uma proeza do
to, por exemplo, deve o Flu- o do bumba-meu-boi, talvez negro-brasileiro: onde houve
minense seu apelido de “pó- o mais antigo e universal dos escravidão, houve boi. É
de-arroz”. nossos folguedos. como aquelas histórias de
Nessa fase, nosso Em julho de 1955, um jor- mouras encantadas: onde
futebol não pas- nal argentino publicou a char- chegaram pretas velhas -
sa de imitação ge que ilustra a abertura des- como aquela vó Totônia, do
do inglês ou do te artigo.5 O embaixador bra- menino Zé Lins do Rego -
platino. Jogáva- sileiro protestou com vee- elas ficaram conhecidas. Mas
mos contra eles mência. O editor argentino a história do boi é também
“para aprender ” retorquiu: o protesto brasilei- uma história de repressão e
e se ro era por aquele “negrito” e clandestinidade, até pelo me-
nos não pelo resto. nos este século. Não podia ser
goleavam sentía- De qualquer jeito, uma diferente: o motivo do folgue-
mos o orgulho modalidade “sutil” do racis- do é o desejo da negra e o es-
do sparring. mo brasileiro é o “monopó- pírito é a representação do ne-
Com a Revolu- lio de representação” pelo gro e do branco pelo negro.
ção de Trinta, branco. Aqui, brancos sem- Ao levar o bumba-meu-boi
porém, veio a pre conviveram com negros, a toda parte, subtraindo-o do
profissionaliza- mesmo sob a escravidão. Do contexto cultural europeu,
ção do futebol - que não gostam é de serem acrescentando-lhe as remi-
e, aliás, também representados por eles, fora niscências da África profun-
a do samba, os ou dentro do país. Nesse da, os afro-brasileiros eleva-
Kiko Nascimento
6
Aloísio Magalhães, que primida em nome da ordem terra de ninguém a que cha-
elevou a reflexão sobre o pa- e bons costumes - atingira aí mamos futuro.
trimônio a um patamar supe- o seu limite de ente cultural. Tocamos a essa altura no
rior àquele em que a deixara Lá por 1910, a capoeira cario- que deveria ser uma correta
Mário de Andrade, costuma- ca encerrava o seu tempo de politica de patrimônio para o
va usar a metáfora do bodo- empuxo para trás, na alegoria Brasil - um país novo e po-
que: um impulso para a fren- de Aloísio Magalhães: era bre. 6 Pois seria inaceitável,
te necessita de um empuxo apenas uma tradição dos ne- com efeito, chegar ao fim do
para trás. Quando é que um gros. Faltava-lhe o impulso século com a primitiva idéia
bem se torna patrimônio? para a frente, o lançamento de patrimônio a preservar: o
Não basta ser antigo, tradici- no futuro, e esse foi dado monumento histórico de pe-
onal, histórico - este é o em- pela sua incorporação ao dra e cal. Mário de Andrade
puxo do bodoque para trás. novo esporte, o futebol, que com sua enorme intuição - e
É preciso que o bem atinja adi- estava se nacionalizando e enorme porque ele tinha a
ante, se arremesse de encon- massificando: a maneira bra- noção de cultura como coisa
tro ao indevassável que cha- sileira de jogar futebol é o des- política - já nos convencera de
mamos futuro. Este é o im- dobramento natural do jogo que patrimônio histórico
pulso do bodoque para a fren- de capoeira. A capoeira, nes- abrange as artes arqueológi-
te. Dessa definição decorrem se momento, torna-se patri- cas, ameríndia, popular e his-
as duas características básicas mônio brasileiro e, como tal, tórica; as eruditas nacional e
de um bem de patrimônio: um ente de civilização - isto é, estrangeira, e as aplicadas na-
pertinência no espaço e du- um produto sofisticado resul- cionais e estrangeiras. Mas foi
ração no tempo. tante do encontro de tradições preciso esperar o último go-
Decorre também esta: o diferentes. Mais que um pro- verno do ciclo militar (1978-
patrimônio é um ente de ci- duto, aliás, um processo. 1982) para substituir-se a idéia
vilização e não de cultura, so- Um conjunto de circuns- de patrimônio a ser preserva-
bretudo na sua feição de pa- tâncias da história brasileira do pela de bem cultural (abran-
trimônio nacional. Exemplifi- permitirá aos negros urbanos gendo este o patrimônio his-
quemos com a capoeira. Sua continuar a tradição da capo- tórico na definição de Mário).
origem remota é controversa, eira no interior do novo es- Dizia, naquela ocasião, o novo
talvez descenda das artes porte. Temos aí uma defini- titular do IPHAN:
marciais japonesas, chegando ção inteligente de patrimônio: “(...) o conceito de bem
às senzalas brasileiras com es- um bem, uma maneira que cultural no Brasil continua
cala em Angola. Como a en- vem de trás, do interior de restrito aos bens móveis e
contramos no Brasil antes de um contexto cultural deter- imóveis, contendo ou não
1850, é cultura crioula - prati- minado, e que penetra nessa valor criativo próprio, im-
cada por boçais,
africanos e criou-
los, afro-brasilei-
ros. Como a en-
contramos na ci-
dade do Rio de
Janeiro do final
do século, já faz
parte do ethos ur-
bano, cada malta
com seu território
Kiko Nascimento
7
pregnados de valor histórico na energia política
(essencialmente voltados para necessária para di-
o passado), ou aos bens da cri- minuir as injusti-
ação individual espontânea, ças sociais que nos
obras que constituem o nos- constrangem?
so acervo artístico (música, li- Encontramo-
teratura, cinema, artes plásti- nos, pois, diante
cas, arquitetura, teatro) qua- de um processo ci-
se sempre de apreciação eli- vilizatório em que
tista (...). Permeando essas as culturas negras
duas categorias, existe vasta representam o nú-
gama de bens - procedentes cleo pesado. Ao di-
sobretudo do fazer popular - zer civilização que-
que por estarem inseridos na remos significar
dinâmica viva do cotidiano encontro prolongado de cul- tanto, uma espécie de esqui-
não são considerados como turas distintas, gerando pro- zofrenia - a divisão da mente
bens culturais nem utilizados dutos novos e sofisticados - com a subsequente rejeição
na formulação das políticas como foi o caso, por exemplo, de uma das partes e substi-
econômica e tecnológica. No do Egito faraônico, do Renas- tuição da visão realista por
entanto, é a partir deles que cimento ou da Revolução fantasias e delírios.
se afere o potencial, se reco- Americana; e, ao dizer cultu- Certa feita um irmão de
nhece a vocação e se desco- ras, nomeamos os campos- James Baldwin, o escritor nor-
brem os valores mais autênti- de-força em que se conden- te-americano, foi destratado
cos de uma nacionalidade”.7 sam as representações e os no Exército por um oficial
sentidos. Essa percepção é branco. James, preocupado
antiga no pensamento brasi- com a depressão em que o
leiro, vem pelo menos da se- rapaz caíra, escreveu-lhe uma
gunda metade do século pas- carta: o racismo se baseia no
sado, quando se tratou de medo; quando o racista bran-
projetar a nação designando co se depara com um negro
um lugar para a maioria ne- não é um indivíduo humano
gra e mestiça excluída da que ele vê, mas uma criação
Que esse salto na idéia de “cultura”. Nos anos setenta, da sua mente, um pesadelo -
patrimônio tenha ocorrido com a emergência dos movi- “above alI you must take care
sob o governo militar de João mentos negros, acentuou-se not to step inside bis nightma-
Batista Figueiredo pode sur- o que diferenciava negros de re”. Entrar naquele pesadelo
preender, mas indica, por um brancos, mas isso só funcio- era tornar-se um crioulo (ni-
lado, o descompasso entre nou como tática - digamos as- gger). Aí, por volta de 1950,
política cultural e política em sim - de luta organizada con- um sociólogo brasileiro, hoje
geral, e, por outro, a desvalia tra o racismo. Efetivamente, esquecido, Guerreiro Ramos,
daquela quando se trata de brancos e negros são, no Bra- chegava a idêntica conclusão:
pensar o destino do país sil, desiguais sociais e, fre- o “problema do negro” é
como um todo. Faz lembrar quentemente, muito desi- mero sintoma da patologia do
o velho axioma: “O Brasil só guais. Democracia racial nun- branco. Guerreiro não nega-
funciona quando a direita ca passou aqui de atroz iro- va, é claro, a vertente cultu-
controla a economia, o cen- nia. No campo das represen- ral - simbólica, diríamos hoje
tro a política e a esquerda a tações e dos gestos - das ex- - das problemáticas negra e
cultura”. Em que momento pressões sinceras - não há di- indígena. O que não aceitava
reuniremos condições, no ferenças importantes entre o era cedê-Ias ao domínio da
Brasil, para negar o axioma e brasileiro negro e o branco. A antropologia - uma classe de
converter a energia simbóli- discriminação dos não-bran- estudos que, sintomatica-
ca, de que nos orgulhamos, cos fica sendo entre nós, por- mente, sempre foi mais de-
8
senvolvida nos estados de mai-
or presença negra. Essa era, ali-
ás, a base da sua crítica aos pre-
cursores dos estudos sobre o
negro, Nina Rodrigues, Ar-
thur Ramos e Oscar Freire, que
equipara em nulidade científi-
ca, com certo exagero, a De-
bret, Kidder e outros descriti-
vos. Ou se considerava o ne-
gro como protagonista social
e político, sem distingui-lo do
auto-denominado branco, ou
nada.
Não haveria, pois, uma
negritude a reivindicar, mas
uma povidade.
Guerreiro Ramos não era
preto retinto, pertencia àque-
la faixa de mulatos escuros
em que a “raça” pode ser es-
colha do freguês. A sua foi ser
negro. Dessa opção ele ex-
traiu as seguintes conseqüên- mente dividido. Então, des- lógico, instituído simultane-
cias lógicas: cobre-se-me a legitimidade de amente pela cor, pela cultu-
“Então, em primeiro lu- elaborar uma estética social ra popular, pela consciência
gar, percebo suficiência pos- de que seja um ingrediente da negritude como valor e
tiça do sócio-antropólogo positivo a cor negra. Então, pela estética social negra.
brasileiro quando trata do afigura-se-me possível uma Qualquer indivíduo brasilei-
problema do negro no Brasil. sociologia científica das rela- ro pode ocupar esse lugar,
Então, enxergo o que há de ções étnicas. Então, compre- mesmo que lhe falte eventu-
ultrajante na atitude de quem endo que a solução do que, almente uma daquelas con-
trata o negro como um ser na sociologia brasileira se cha- dições, e desse lugar visua-
que vale enquanto “acultura- ma o ‘problema do negro’, lizar a sociedade e a civili-
do”. Então, identifico o equí- seria uma sociedade em que zação brasileiras. Visualizar
voco do etnocentrismo do todos fossem brancos. Então, desde dentro, desde a enzi-
“branco” brasileiro ao subli- capacito-me para negar vali- ma, desde o seu núcleo pe-
nhar a presença do negro dade a esta solução”.8 sado que são as culturas ne-
mesmo quando perfeitamen- Nesse raciocínio, negro gras - ou negro-brasileiras,
te identificado com ele pela deixa de ser uma “raça”, ou para distinguir das negro-
cultura. Então, descortino a mesmo uma condição feno- africanas de que proxima-
‘precariedade da brancura típica e passa a ser um topo mente descendem.
como valor. Então, converto
o ‘branco’ brasileiro, sôfrego
1 Freire tentaria provar que, além disso, o negro era ainda mais nativo do Trópico que o índio.
de identificação com o pa- 2 Freire, Gilberto. Casa Grande & Senzala, Editora Universidade de Brasília, 1963, p. 374 e 375.
3 “Os brasileiros falam como um livro aberto” se queixava Ramalho Ortigão.
drão estético europeu, num 4 Entre outros, Nei Lopes, Ayres da Mata, Yeda Pessoa, Carlos Vogt & Peter Fry, Gladstone
caso de patologia social. En- Chaves de Melo.
NOTAS
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O Ônibus e o Atabaque:
Para Além de “Raça“ e “Classe”
a Identificação Civilizatória.
Marco Aurélio Luz
Arquivo Pessoal
O filme “Todos a Bordo”, Essas dessemelhanças se
de Spike Lee, sobre um ôni- constituem em abordagens
Marco Aurélio Luz
bus que atravessa os EUA, le- características da vida metro-
Doutor em Comunicação e autor vando em excursão um gru- politana em um país indus-
dos livros Agadá: Dinâmica da po de homens negros para a trial imperialista como os
Civilização Africano-Brasileira,
Cultura Negra em Tempos Pós-
marcha de “um milhão de EUA. Assim, é que conflitos
Modernos, entre outros. homens”, liderada por Far- de gerações, de gênero, de
rakan, que procurou de- valores, voltados para a mo-
monstrar a pujança da união bilidade social e individual,
de significativa parcela da incluindo a competição exa-
população americana pela cerbada, a ideologia do con-
luta de conquista da plenitu- forto, o narcisismo alimenta-
de de seus direitos civis, leva- do pela cultura de massa, es-
nos também a viajar pelos ca- tão presentes na viagem do
minhos da elaboração da vida ônibus.
social contemporânea. Alguns personagens das
O que nós podemos ela- tramas, que colocam em cena
borar, no meu modo de pen- a discussão dessas temáticas,
sar, é que a mensagem que o são assim constituídos: pri-
filme nos traz é de que essa meiro um pai que traz o filho
união não pode ser realizada acorrentado a sua cintura
a partir dos paradigmas soci- para ser super vigiado, te-
ológicos ou antropológicos mendo sentença judicial que
que se projetam desde o sé- lhe ameaça retirar o pátrio
culo XIX para a atualidade, poder, caso o menino adoles-
centrados nas categorias de cente reincida em delinqüir.
“raça” e “classe “, no caso es- Para um e outro, a “marcha”
pecífico aplicados à chamada é encarada de modo comple-
“população negra” ou “povo tamente diferente e vai se dis-
negro”, ou ainda “afro-des- tanciando dos objetivos a
cendentes”. medida que o principal é
Tanto um conceito quan- superarem aquela situação.
to o outro se esvaem a medi- Numa brecha o menino foge.
da que os personagens do Recapturado, é somente com
ônibus vão revelando suas re- uma dramática declaração de
ferências identitárias consci- amor que se refaz o laço ver-
entes e que marcam seus in- dadeiramente humano entre
teresses na dinâmica social, pai e filho...
embora todos negros, apa- No segundo, uma briga,
rentemente, “Oh! Quão des- envolvendo relações homos-
semelhantes!!!” sexuais entre dois dos viajan-
10
o “melhorzinho”, tentando tradicional afro-americana
contagiar todos enquanto a em geral, e que foi criado
“marcha”... por ideólogos europocêntri-
Por fim, o quarto, mas cos, exatamente num con-
não o último, é o persona- texto de agressão colonial e
gem de um senhor que imperialista.
pega o ônibus no cami- Em outro filme, “Faça a
nho. Comerciante de Coisa Certa”, Spike Lee
automóveis bem su- brinca e ironiza com a si-
cedido, divulga sua tuação de um comerciante
Kiko Nascimento
11
seus valores e se dilaceraram ricanos simbolizados pela de fundamental importância
em meio a angústia do viver presença do atabaque. Sen- na dinâmica litúrgica, onde é
sob a égide de um sistema ex- te o coração... Foi como se saudado, respeitosamente,
tremamente opressivo, dis- sentisse que havia cumpri- por todos os sacerdotes e sa-
farçado de “mundo livre”, do, finalmente, sua missão, cerdotisas, autoridades e fiéis
mas que hoje todos já sabem, transmitindo sentido e for- presentes, reconhecendo o
livre para os opressores... ça para a possibilidade de seu poder e magnificência.
Um senhor de idade con- união entre os diversos se- Para além dos limites do
ta sua história de inserção e res do ônibus de um milhão “sistema”, representado pela
exclusão no sistema, uma his- de homens e muito mais... estrada, pelo ônibus, pelo ra-
tória banal , primeiro de su- Quando é internado no cismo, pela exploração e pela
jeição voluntária e depois de hospital e realiza sua via- marcha nos seus limites, esta
revolta pela injustiça de um gem, o grupo está pouco in- outra territorialização, a co-
sistema que usa, abusa e joga teressado na “marcha” para munalidade afro-americana,
fora... mas, aqui no ônibus,
ocupará o espaço de perso-
nagem principal.
Sua experiência é a tra-
jetória de quem exauriu os li-
mites de possibilidade de re-
alização de sua humanidade
no âmbito do sistema. Ele
percorreu os caminhos pos-
síveis, presenciou a história
e ali estava só, todavia trazia
consigo um pequeno ataba-
que que o acompanhava...
12
DIVERSIDADE
CULTURAL,
FOTO: Comunicação Social/MinC
identidade e
GILBERTO PASSOS
GIL MOREIRA
resistência.
Gilberto Passos Gil Moreira
Músico, composito, cantor,
político, intelectual, integrante
do Movimento Tropicalista,
Ministro da Cultura do Brasil.
Duas perguntas diretas apaixonados pela mesma se-
abrem qualquer cogitação leção de futebol.
sobre identidades e diversi- A segunda resposta é,
dade cultural brasileira. A naturalmente:
primeira foi feita por Rena- - O Brasil tem a cara de
to Russo, em música canta- todos os povos que o com-
da pelo conjunto Legião Ur- puseram.
bana: Relembrando o antro-
- Que país é esse? pólogo Darcy Ribeiro, que
A segunda é a clássica criou uma tipologia cultural
exortação de Cazuza: para os países americanos,
- Brasil, mostra a tua o Brasil estaria incluído no
cara! grupo dos “povos novos”,
A resposta imediata à diferentes daqueles incluí-
primeira pergunta é: dos nos grupos dos tradici-
- O Brasil é um grande onais, como os países andi-
país, composto de vários nos, com uma multi-cente-
países que falam a mesma nária cultura incaica que os
língua e são identifica, e dos incluídos
no grupo dos países de cul-
turas européias transplanta-
das, como a Argentina. Nós
outros, povo novo, sería-
mos o resultado de uma
amálgama original de
várias matrizes cultu-
rais africanas, européi-
as, indígenas e asiáticas.
Hoje, o nosso olhar
sobre o “povo novo”
brasileiro não visuali-
za um produto acaba-
do, definitivo, resultado
mestiço de um proces-
so de diversidade cultu-
13
ral. O povo bra- onal africana
sileiro é um para o Brasil, a
povo novo por- cultura afro-bra-
que vive um pro- sileira constitui-
cesso permanen- se como cultura
te de preserva- negra no Brasil,
ção e criação cul- produto original
tural, nos marcos de uma constru-
da diversidade. ção cultural no
Somos um país exílio, em cons-
novo exatamente tante intercâm-
porque somos bio com as cultu-
mutantes, um ras de outros po-
país do futuro, vos igualmente
como sempre subalternizados
tem proclamado. na formação só-
Quando o futuro cio-econômica
chegar, aí sim, brasileira. As vias
seremos um país de intercâmbio
velho e tradicio- entre negros e
nal. índios é tão evi-
Neste pro - dente que, ainda
cesso permanen- hoje, em comuni-
te de produção dades remanes-
do novo, dois as- centes de antigos
pectos são im- quilombos, não
portantes. Por saberemos onde
um lado, preser- termina o qui-
var a diversidade lombo e onde
cultural brasileira começa a aldeia.
implica na prote- A marca origi-
ção e defesa do patrimônio e se atualizam no convívio nal da nossa cultura negra
cultural brasileiro, material com influências culturais de brasileira é a sua obstina-
e imaterial, conforme defi- outras matrizes, inclusive da resistência. Principal ví-
nido nos artigos 215 e 216 da aquelas que vem do exteri- tima da antiga escravidão e
Constituição Brasileira, que or. Por outro lado, a diver- do subseqüente sistema de
especifica a prioridade de sidade cultural brasileira desigualdade racial, as po-
preservação do patrimônio necessita simultaneamente pulações negras brasileiras
cultural constituído pelos da democracia, como cultu- foram historicamente exclu-
segmentos não dominantes ra política capaz de assegu- ídas da fortuna, dos prestí-
no processo de formação do rar as condições de igualda- gios e do poder. Ao invés da
Brasil, os indígenas e os de de acesso ao fomento e à resignação à inferioridade e
afro-brasileiros. É sempre divulgação a todas as mani- a um destino de desapari-
importante reafirmar que o festações e identidades que ção biológica e cultural,
processo de preservação não a compõem. como ocorreu no Rio da
pode ser um ritual de con- A cultura afro-brasilei- Prata, os negros brasileiros
gelamento no passado de ra é o mais eloqüente exem- constituíram na cultura o
práticas culturais. A preser- plo da vitalidade cultural seu território de resistência.
vação de bens culturais é um brasileira, em uma ambiên- Aí se reavivaram as matrizes
processo constante de “up cia de diversidade. Longe culturais africanas e se de-
grade”, em que as referên- da simples transposição da senvolveram as estratégias
cias originárias se adaptam diversidade cultural e naci- de enfrentamento e negoci-
14
ação com os ricos e podero- ba afirma-se e expande-se ção subalterna e colonizada
sos, sempre não negros. No na diversidade. É samba de simples regionalismo lu-
lugar de um discurso polí- duro, samba-de-roda, sam- sitano. Há quase um século
tico e ideológico, o desen- ba-côco, samba escola, sam- atrás Noel versejava:
volvimento de um discurso ba pagode, samba reggae. - É brasileiro, já passou
identitário negro construiu Em sua diversidade de de português.
o núcleo dinâmico de um samba, continua a ser sam- Assim, a resistência cul-
processo contemporâneo de ba negro e brasileiro, que tural afro-brasileira, é tam-
valorização cultural, de pro- se dança no pé e nos qua- bém a independência da
moção social e de plenifica- dris, que sacode sandálias e cultura brasileira em seu
ção dos direitos de cidada- adereços. conjunto, entendida como
nia. A música, a dança, as Graças a esta vitalidade um permanente processo
manifestações religiosas, a da resistência cultural, a nos- de mudança, em que afir-
estética pessoal, a história e sa cultura brasileira não ficou ma-se a identidade nacional
a literatura foram os nossos aprisionada em uma condi- em sua diversidade.
manifestos de resistência.
Cada um destes lugares
de resistência é um exemplo
histórico de construção de
identidade em um ambien-
te de diversidade cultural.
A capoeira, por exemplo,
como cultura corporal que
se expressa como luta,
como dança, como religio-
sidade, como jogo e brinca-
deira, afirma-se, hoje, ao
lado da música, como a prá-
tica cultural brasileira de
maior difusão em todo o
mundo. Contam-se aos mi-
lhares os centros e grupos
de capoeira, do Japão ao
Canadá. Ela é o produto ori-
ginal de um processo de sis-
tematização de vários jogos
de perna e lutas marciais
africanas que se operou no
Brasil, por mestres negros
que circulavam entre Per-
nambuco, Bahia e Rio de Ja-
neiro. Incorporou os ele-
mentos místicos do Can-
domblé de Nação Angola,
absorveu golpes e símbolos
das artes marciais orientais,
dividiu-se até em duas ex-
pressões, ditas Angola e Re-
gional. Com todas as ache-
gas, continua Capoeira e
continua em expansão. As-
sim como a Capoeira, o Sam-
15
Conto Adulto
PONTO RISCADO
Arquivo Pessoal
Cuti
NO ESPELHO Luiz Silva nasceu em Ourinhos/
SP, em 1951. É mestre em
Literatura pela Universidade
Estadual de Campinas
(Unicamp) e autor dos livros
Poemas da Carapinha (1978),
Por um momento ficou sem pensar. um movimento a Batuque de Tocaia (poemas,
Nesse meio tempo, andou até a porta que- mais esboçado, Jú- 1982), entre outros.
rendo não crer. Imaginou, em seguida, ter lio despejaria o ve-
escutado mal. Um arrepio correu na espi- neno embolado dentro de si. Metalizou-se
nha. Sem ação, sentou e ficou matutando, ao tocar o volumoso instrumento em sua
labareda nas pupilas. O barbeiro, um bran- cintura. Estava todo, pleno, uma rocha ex-
co, dava continuidade a seu trabalho como plosiva. O barbeiro tremeu, ferindo o freguês.
se o outro já estivesse longe. Júlio foi po- Vermelhos. Os dois foram ficando vermelhos.
voado de pensamentos violentos, relâmpa- A temperatura no pequeno salão tinha subi-
gos desatados riscando o céu de dentro. Pas- do. Júlio sorriu com os dentes cerrados. O
sou, deixando uma conclusão martelando: freguês balbuciara uma reclamação, fez um
“Tudo culpa da Zenaide! Me encher o saco movimento bruscontido com a aplicação do
pra... Tudo culpa da Zenaide!” Percebeu, mertiolato, levantou, rabo-de-olho assusta-
tropeçando em alguns raciocínios, sua fuga do e cabeça baixa. Saiu deixando os dois.
passando verniz sobre a carne viva do pro- Nenhum pio no ambiente: tensão: imobili-
blema. A esposa, nada, nada tinha a ver dade: tensão: imobilidade: tensão: imobili-
com o acontecido. Firmou a concentração dade: tensão: imobilidade:
no fato e fitou o barbeiro. - O Senhor quer se sentar, por favor... -
- Cala boca! ou te retalho com essa tua suspirou o barbeiro. Tinha visto, de relan-
navalha. Senta aí! - apenas pensou. Toma- ce, a morte niquelada.
ria o instrumento daquele estúpido e. . . Júlio teve asco. Um rato à sua frente. Já
Tudo diante do freguês que também se es- conhecia aquela atitude, aquele jeito muito
forçava para não dar a mínima importân- comum de se conformar às algemas.
cia à presença de Júlio. - Levanta os olhos, palhaço! - ao que o
- Filho-da-puta... - e rapidamente agre- barbeiro obedeceu.
diria com muita força os dois. Apenas pen- Um nó de olhar. Ódio e culpa se acasa-
sou. Nenhuma palavra entreabriu seus lá- laram. A desproporção física e bélica não
bios. Pensou outras tantas coisas, e seus davam margem ao barbeiro sequer imagi-
olhos, sentia-os inchados, cada vez mais, e nar uma reação. Catatônico, ele chorava
uma quentura dos diabos cozinhando ódio. num silêncio de desenganado. O medo e
Contraiu a musculatura facial no li- sua viscosidade.
mite. Foi ficando senhor de si. Olhos em Júlio obrigou-o a sentar-se, cara para o
brasa na direção do barbeiro. Um silêncio espelho. Engatilhou a arma. Deixou-a na
cheio de farpas. Se alguma coisa fosse dita, prateleira próxima. Apossou-se da navalha.
16
Conto Adulto
Cuti
17
Conto Adulto
PRÓLOGO
Uma tragédia baiana, que só poderia acontecer
na Bahia, se acontecesse em outro local com certeza
era um conto ou uma lenda, entretanto aconteceu
e todo mundo da cidade viu e quem dormia soube
quando acordou, quem estava fora soube quando
chegou, até na Cochinchina se comentou.
Kiko Nascimento
As casas abrem as portas e as janelas floridas muitas Anas, Ritas, Lindinalvas,
com panos de cetins vermelhos nas sacadas Bernadetes, Zorildas, Cláudias, Ma-
dos sobrados das ruas de pedra. Começa a rias, Marilhas, Marinas e muitas se-
mercar pelas ruas o leiteiro e o jornaleiro, ao nhoras de cabelos brancos contrastan-
passo que acordam com o sol as mulheres do como o negrume de suas peles,
trajando vermelho rumo ao mercado, algu- adornadas em ricas pratas, todas be-
mas meretrizes, além de suas saias rodadas, las que parecem ter untado suas fa-
adornam-se, também, com flores no canto da ces com a manteiga da lua. Elas se-
orelha, enquanto que alguns homens libidi- guem em direção ao terreiro, ou ao
nosos e obscenos brindam o sol com a últi- mercado que está todo enfeitado de
ma, da recente madrugada, que acaba sendo palmas de Santa Rita, vermelhas.
a primeira do dia, jogando um pouco no chão Em meio aos incensos e flores, os
para o santo. As crianças brincam nas portas atabaques rompem o silêncio na
das casas com bolas de gude, de piscina na garoa do amanhecer.
bacia grande de alumínio com fundo de ma- Ao mesmo tempo em que a
deira, outras seguem fardadas com os livros manhã rasga o vermelho do céu, um
amarrados num cinto para o colégio. circo fantástico chega na velha cidade da
18
Conto Adulto
Bahia, com uma carroça enfeitada com uma do anúncio disposta a colocar a barba
lona colorida em forma de cone, com os de molho. Mas, logo, é surpreen-
palhaços saltitantes, pernas-de-pau, ma- dida, interceptada, por um ho-
labaristas, trapezistas, equilibristas e ati- mem, sentado na encruzilhada,
rador de facas, fazendo exibições para os que veste uma roupa de duas cores,
passantes, enquanto a criançada, alegre, de um lado vermelho e do outro
animada descalça, e alguns ainda de pi- preto. Ele lhe oferece uma larga
jama, começam a correr entre o mul- gargalhada, enquanto fuma no
ticor dos balões e as carroças de canto da boca um charuto e
animais, ao som estridente do abriu uma garrafa de mara-
megafone, anunciando a fa, enche uma cabaça cheia
chegada do circo. de cachaça e oferece
Entre todos os para a mulher barbada
personagens veio, de macacão verme-
também, a do- lho. Esta não retru-
madora de ca, toma a cabaça
animais, da mão do homem
uma mu- da roupa de duas
lher de cin- cores e toma três
tura fina, de goles largos.
seios fartos e de náde- O fogo lhe toma o corpo,
gas abundantes, com seu revelando-lhe a sua candura
biquíni preto e chicote nas mãos, e a que estivera escondida por trás
mulher barbada de macacão verme- de suas longas barbas. Ela desa-
lho, bem forte, não muito gorda, botoa as três primeiras casas do
quase dois metros de altura. macacão vermelho e solta a
Ela acabou de ser demiti- sua cabeleira, juba de leão.
da, ela é muito reativa e bra- Neste instante, ela lembra dos
ba, mas acabou tendo leões da domadora de biquí-
vergonha e não respon- ni preto, por um instante
deu aos insultos do dono do cir- deixar vacilar um olhar
co, pois ele perceberá a existên- apaixonado e angustiante.
cia de um affair entre ela e a do- – Nada disso! Diz o
madora de animais. homem da roupa de duas co-
Triste e desolada, a mulher barba- res, sentado no acostamento da
Kiko Nascimento
19
trancará o caminho, será a senhora que irá baianas em toda a cidade, é ventania, é fura-
abrir as portas da cidade, a destranca rua, para cão, é tornado. Elas se olham, fumegantemen-
três mulheres barbaras, três Marias, pois hoje te, numa velocidade circular, estremece o chão
irei sair de folga para entrar na folia. e a terra, enfurece o céu e o mar e, de repen-
– Que folia? te, das três explode um raio.
– Aguarde e verás, fará também parte É dia 4 DEZEMBRO, nessa hora sai uma
dela. santa da Igreja para a procissão. As três Ma-
– E quanto ao dono do circo? - retruca a rias, três mulheres barbaras, três mulheres de
mulher barbada com olhos esbugalhados e pavios curtos, Maria Quitéria, Maria Bonita
vermelhos do fogo da cachaça, já com um e Maria Bethânia.
cigarro entre os dedos, põe a mão na cintura
com um gesto severo de vingança e ânsia de
enjôo ao pensar no dono do circo.
– Deixe ele para lá, “deixe o prego que o
martelo chama”, - e dá uma longa gargalha-
da que faz arrepiar os mortos nas catacum-
bas - o que importa é que irás abrir a porta da
cidade para as três mulheres barbaras, três
Marias que desceram do céu, três mulheres
de pavios curtos, que botam fogo pelas ven-
tas, três mulheres da pá virada, isso por si só
já basta, nunca ouviu falar delas? Elas têm
muita fama pelas suas brabezas. Com uma
mulher barbara não se brinca. Elas vêm de
longe,de muito longe, de muito tempo, que
não se sabe a quanto tempo, mas se sabe que
desde que o tempo é tempo, elas surgiram
no céu e descem sempre aqui pra terra, des-
sa vez elas virão assim: Uma virá de cabelos
trançados de roupa caqui, com anéis nos de-
dos, e vem de trem. A outra virá de cavalo de
uniforme azul, com os cabelos torados com
espada em punho, e a última vem de barco
com vastos cabelos ondulados, de vestido
branco e muitos colares, pulseiras douradas
nos braços e nas orelhas argolas de ouro.
A mulher barbada é uma mulher barba-
ra, com seu macacão vermelho desabotoado
as casas iniciais, ela segue a sua rota, o seu
destino, até a praça do terreiro e com a imen-
sa chave enferrujada abre as portas da cida-
de.
Uma grande ventania se assolou pelas
ruas da cidade, fazendo tremer os panos das
sacadas das janelas das ruas de pedra. As três
mulheres já chegaram na cidade, elas chegam
Kiko Nascimento
20
DA BARRIGA
Arquivo Pessoal
1
DO ABUTRE Jussara Santos
Natural de Belo Horizonte,
professora de língua portuguesa
e literaturas de língua
“restavam os bichos; a gente poderia ser bicho: os portuguesa. Autora do livro De
flores artificiais (2002).
bichos não apodrecem tão facilmente como os ho-
mens, os bichos não possuem árvores genealógicas,
nem livros de linhagens, eles se vestem de acordo
com os espécimes, suas roupas nunca mancham,
nunca deformam e são previamente encolhidas.”
Adão Ventura
22
Conto Adulto
*
CORPO-TEXTO
Arquivo Pessoal
Maria Helena
Vargas da Silveira
Natural de Pelotas/RS,
Com seu corpo nu, ainda escondido atrás Os fogos de especialista em Educação,
da cortina, Azatewaa continuava com a lin- artifício estoura- membro da Academia Pelotense
guagem cênica do invisível, ensaiando a visi- vam no alto e co- de Letras. Autora dos livros É
Fogo, O Sol de Fevereiro, entre
bilidade. Afastou a cortina de sua frente, mais reografavam es- outros.
e mais.. Apareceu na janela, quando quis apa- trelas de prata.
recer. Estava livre e disposta a fazer um ge- Aquele corpo, lá em baixo, voltou a cabeça
renciamento ostensivo de seu corpo nu. para cima e as luzes, que irradiavam, tor-
naram-se cada vez mais intensas, chegan-
do à direção do corpo feminino. Os fogos
explodiam, quando o corpo-mistério, pro-
jetando os raios luminosos de todos os ân-
gulos vitais, olhou para o céu. Ao erguer a
cabeça para acompanhar o espoucar dos
fogos, no delírio da festa, descobriu a mu-
lher nua, na janela. Não, não ficou in-
diferente. O cenário era muito especi-
al para os sentidos culturais de seu
corpo macho.
Azantewaa deixava o sub-
jetivismo de seus devaneios
e não havia mais, naquele
momento, separação entre o
cultural, o orgânico, a mulher e o
homem. Passava a ser um amontoa-
do de informações para o decifra-
mento do imaginário. As luzes, sem
tempo e território definidos, invadi-
ram seu afecto, mobilizado pelas con-
vicções anteriores do seu percepto que
sincronizaram com a matéria viva do cor-
po oposto. Ele e ela, corpos-imãs.
As luzes cegaram seus olhos de fêmea.
Refletores intensos de radiação descomu-
nal acompanharam a descoberta da novi-
dade: a cintilância de um corpo negro,
macho. Sorriram.
* Extraído do livro Obá Contemporânea em que a autora se identifica por Helena do
Sul, obra inédita a ser lançada ainda em 2005 23
Conto Adulto
24
Conto Adulto
VISITANTE
Ubiratan Castro
INDESEJADO de Araújo
Natural de Salvador/BA. Doutor
em História, atual presidente da
Fundação Cultural Palmares/
MinC, membro da Academia de
As rezas eram uma folia. A novena de A assembléia do Letras da Bahia. Autor dos livros
São Roque da Tia Do Carmo rivalizava-se DIVA (Departamen- A Guerra da Bahia (2001),
Salvador era assim: Memórias da
com a trezena de Santo Antônio da Tia Ni- to de Investigação cidade (1999), entre outros.
ninha. Cada noite de reza tinha um padri- da Vida Alheia) fica-
nho que financiava o mingau. Tia Do Car- va triste, quando o assunto era a visita de Ber-
mo era viciosamente permissiva. Antes mes- nardo à casa de um parente ou conhecido.
mo da reza, ela liberava generosos canecos de – Bernardo está na casa de fulano há três
mungunzá para a garotada. Tia Nininha era, dias.
em oposição, opressivamente, mandona. No Todas tremiam.
Santantônio dela, quem não berrasse com fé: Bernardo era o substitutivo da palavra
- Glo-ri-ô-ô-so San-an-tan-tô-nio, não tinha que não se podia pronunciar: fome. Este era
direito a mingau. o grande terror de todas as famílias. Ela era
Depois da reza, tias, parentas e vizinhas, epidêmica, como na crise de 1929. Ela era sa-
se reuniam para o salutar exercício de rese- zonal, no tempo do paradeiro, meses em que
nha da vida alheia. Elas cortavam, costura- não se exportava cacau em Salvador. Ela era
vam e bordavam desventuras, fraquezas e terrível em momentos de doença e morte nas
malfeitos de amigos e de inimigos. Só os pre- famílias.
sentes escapavam, enquanto aí estivessem. Bernardo também andava mancomuna-
Para não serem entendidas, ou mesmo por do com os maus procedimentos. Maridos ca-
pudor e superstição, usavam palavras e ex- chaceiros, que se desempregavam para cair
pressões estranhas ao nosso vocabulário. Ao na gandaia, deixavam a família aos cuidados
invés de “botar chifre no marido”, elas fala- de Bernardo. Homens mulheristas, espécies
vam “serrar as canelas”. Por isso, todas as ve- de mulherengos militantes, gastavam o di-
zes que eu entrava na casa do vizinho, ficava nheiro com as raparigas e não levavam pra
olhando para as canelas dele, intrigado com casa senão seus próprios “berloques”. Nestes
a falta de cicatrizes. Dos frescos, dizia-se que casos, algumas não se continham e saía o pa-
eram “falsos ao corpo”. Os órgãos sexuais ti- lavrão:
nham nomes diferentes. O feminino era co- – Pica pura dá gastura!
nhecido como “a perseguida” e o aparelho
masculino completo era denominado de “ber-
loques de São Brás”.
Quando uma sobrinha grávida entrava na Alguns casos mereciam atenção especial.
roda, todas riam muito e exclamavam: As freqüentes visitas de Bernardo à casa do
– Menina, comeu feijão azedo! Tio Bené eram o motivo de debates apaixona-
25
Conto Adulto
dos. Esta era a principal bandeira de luta do za era a clientela. Trabalhava para um pú-
temido PCC, o Partido Contra Cunhadas. A blico pobre e de renda instável. Recebia
culpada de tudo era Vilma, coitada. Era uma muitos calotes e os fregueses demoravam a
mulher muito educada, muito atenciosa com pagar. Esta incerteza o tornava um cliente
todos, mas chegada a dindinha, ou seja, pre- indesejado para os agiotas. A única salvação
guiçosa. Ela, a cunhada, tinha transformado eram as irmãs.
o valoroso ex-sargento do Corpo de Bombei- De vez em quando aparecia uma prima,
ros. Ela o obrigou a dar baixa da Bomba, por- meio excitada e muito envergonhada, chama-
que chorava o tempo inteiro, com medo que va minha mãe no canto, e murmurava:
o seu amado se acidentasse em algum incên- – Tia, Bernardo está lá, há dois dias.
dio. Tudo fingimento, diziam as militantes do Essa notícia colocava a família em che-
PCC. O que as cunhadas não podiam escon- que. Como descobrir sobra em um orçamento
der era o grande carinho que um demonstra- tão regrado e todo comprometido? A solução
va pelo outro. Eles formavam um belo casal. mais freqüente era a gavetinha da máquina Sin-
Ambos de boa altura, de pele bem escura e ger. Parecia mesmo que a única utilidade das
lustrosa, cabelo preto, bem liso como o dos costurinhas que minha mãe fazia era socorrer
caboclos, eram da qualidade que o povo cha- os irmãos.
ma de Cabo Verde. Mas nem isso escapava Aquelas visitas doíam muito. Havia um
da língua das cunhadas. sentimento de revolta e solidariedade com os
– De que adianta tanto amor sem respon- queridos primos, que não podia se manifes-
sabilidade? tar por meio de nenhum gesto ou atitude pú-
– Fizeram 10 filhos que não podem criar. blica. Afinal, os vizinhos não deviam perce-
– E, mais a mais, Bené não se compre- ber nada. Aquilo era um segredo de família.
ende que é preto - dizia a feroz tia Nini- Ficava, também, um sentimento de culpa. Por-
nha. Pensa que está em Roliúde pra viver que eu era tão gordo e os meus primos rece-
de romance... biam tantas visitas de Bernardo?
Depois de trabalhar com a sogra, em
uma barraca de comida, no Mercado Mo-
delo, Tio Bené voltou a viver do seu ofício Outro caso doloroso era o da Tia Zefi-
de carpinteiro, trabalhando em domicílio. nha. Nossa tia-avó tinha mais de 80 anos, a
Levantava cumieiras, consertava móveis, mais velha da família. Ela era magrinha, de
repregava assoalhos e escadas. Sua fraque- cabelos lisos e grisalhos, penteados em uma
Kiko Nascimento
26
Conto Adulto
27
Conto Adulto
Estava sempre à frente das greves do sin- – Que é isso camarada! Você entendeu
dicato e dos comícios e pichações de paredes mal. E nunca mais apareceu.
organizadas pelo Partido. Nos anos da Alian- Também os vizinhos e conhecidos se afas-
ça Nacional Libertadora, era o intrépido lan- taram, com medo de ficarem visados.
çador de galinhas pintadas de verde nos co- Os investigadores de polícia, conhecidos
mícios dos integralistas. Por sua militância, era como secretas, vigiavam permanentemente
um homem marcado pelo DOPS e conheci- a casa, de tal forma que mãe e filha se senti-
do de todos os secretas do bairro. am em prisão domiciliar.
A segurança para tanto arrôjo era a cer- Um visitante conseguia furar o bloqueio
teza que o Partido cuidava do sustento e do policial: Bernardo. Nos três primeiros dias,
bem estar de sua mulher e de sua filha, nas acabaram-se o feijão, a farinha e a carne do
eventualidades de prisão ou de clandestini- sertão. Sobrou um pouco de café e um saco
dade. Pois bem, essa não era a experiência de de milho-alho, bom de fazer pipoca. E du-
sua mulher Alzira e de sua filha Olga. rante sete dias elas tomaram chafé com pi-
Lá um dia, João da Cruz sumiu de casa. poca. Olguinha choramingava muito.
Isto aconteceu logo depois do bate-boca en- – Atotô, meu pai Omolu, não me aban-
tre Juraci e Prestes no Congresso Nacional. done!
O presidente Dutra aproveitou a oportuni- Em um sábado de manhã, bateram na
dade para cassar o registro do Partido Comu- porta. Era Pezão, filho de Abigail, a irmã mais
nista. Iniciava-se um novo ciclo de persegui- velha de Alzira. Tinha vindo da feira de São
ções, que incidiam imediatamente sobre João, Miguel comprar os aviamentos para uma
que era muito visado. Logo no primeiro dia, obrigação de orixá. Ele foi logo comentando:
apareceu um companheiro de partido, de co- – Cadê Tio João? Não estou gostando
dinome Berto. Disse que fora designado para nada da cara de vocês. Vocês estão de Ber-
dar assistência à família de João. Falou, falou, nardo?
falou. Para não perder a viagem, foi logo dan- As duas não disseram nem que sim, nem
do umas entradas meio ousadas para o lado que não. Sorrindo sem jeito, não escondiam
de Alzira, que o repeliu na tampa. a vergonha.
– Onde já se viu? Procurar ousadia com Pezão foi embora muito constrangido. Lá
a mulher de um revolucionário! pelas 4 horas da tarde, ele apareceu de novo.
Não sou eu que vou dar o – Minha mãe está precisando de ajuda,
pretexto a nenhum burguês pra festa de Omolu. Ela sabe que Tio João não
reacionário chamar meu ma- gosta de Candomblé, mas ele nem está aí, não
rido de corno! é? Olhe, minha tia, lá na roça não tem luxo
não. É comida braba. Tem o sobe-e-desce! É
água, carne de sertão, quiabo e abóbora, su-
biu, desceu, comeu!
Olguinha riu muito. Alzira juntou os pa-
nos, pegaram o bonde do Retiro e dei-
xaram Bernardo sozinho em
casa.
28
Conto Infantil
Trecho do Livro
“O BÊ-Á-BÁ
Arquivo Pessoal
DO BAOBÁ” Inaldete Pinheiro
de Andrade
Natural de Recife, ativista do
Bem no meio da Tabanca há um Baobá. criaturas mais ve- Movimento Negro, especialista
Entre suas raízes o Homem-Grande vem sen- lhas da Tabanca. O em literatura infantil e escritora.
Autora dos livros Cinco Cantigas
tar-se. O Baobá e o Homem-Grande são as Baobá nasceu ali para se Contar e Pai Adão era
quando Olorum Nagô, entre outros.
criou o mundo. O
Homem-Grande vem da geração de outros
homens sábios que sempre viveram ali, co-
nheceram todas as histórias e as foram con-
tando um ao outro até chegar a este Ho-
mem-Grande.
Quando o Homem-Grande vem
sentar-se entre as raízes do Baobá,
as crianças o rodeiam e ele conta
as histórias que ouviu dos mais
velhos ou as histórias que ele as-
sistiu. Hoje ele vai contar uma his-
tória que seu avô lhe contou.
“... Era tempo de plantar: os ho-
mens, as mulheres e as crianças en-
chiam os bolsos de sementes e iam para
a roça ao redor da Tabanca. Todos plan-
tavam, todos colhiam, o alimento era re-
partido entre si. Um dia o Homem-Gran-
de, o bisa da bisa do bisavô, estava sentado
junto às raízes do Baobá, olhando a alegria
dos que iam para a plantação, quando, de
súbito, viu uns homens de cor de pele dife-
rente, muito bem armados, invadirem o ter-
Kiko Nascimento
29
Conto Infantil
“Muitos sóis,
muitas luas se pas-
saram. A criança viu
a primeira semente
brotar da terra e a
planta foi crescen-
do, crescendo, ficou
maior do que a cri-
ança, maior do que
o Homem-Grande:
a criança viu nascer
um lindo Baobá.
Outras sementes
brotaram e outros
Baobás cresceram e
o povo que foi ven-
dido, fugia e ia para
as matas e se junta-
va à criança, inici-
ando ali uma vida
como era na sua ter-
am chorado. O Homem-Grande, o bisa da ra – sem dono e sem senhor, o resultado do
bisa do bisavô acompanhou com o olhar o trabalho dividido por todos. Eles chama-
caminho das mulheres, dos homens e das cri- ram este lugar de Quilombo.
anças, deixando rastros de correntes pelo “O Baobá lembrava o Homem-Grande,
chão da Tabanca. o mais velho da Tabanca, o que conhecia
“As mulheres, os homens e as crianças fo- todas as histórias, fazia todas as curas de
ram amontoados junto a outros homens, ou- doenças, dominava os mistérios e profeci-
tras mulheres e outras crianças, num navio, as. O Homem-Grande é o feiticeiro da Ta-
não sabiam quando a noite ou quando o dia banca.
nasciam... “O Baobá era a maior planta do terrei-
“Entre as pessoas, uma criança prote- ro. Dava sombra, dava abrigo, dava alimen-
gia o bolso da túnica, nele guardava uma to. Da sua altivez contemplava o povo des-
semente que o Homem-Grande, o bisa da ta terra, que vivia criando formas para ser
bisa do bisavô, lhe ofereceu pouco antes da livre na terra que também foi invadida pe-
invasão da Tabanca pelos homens de cor di- los homens de cor diferentes.
ferente. O Homem-Grande dizia à criança “O Baobá irradiava axés de luta e o seu
que aquelas sementes, onde fossem planta- povo criou a capoeira. De pernada em per-
das, o seu povo viveria sempre. nada ia treinando o jogo para se livrar do
“O final da viagem do navio foi o início capataz na hora da fuga para o Quilombo.
de outra vida. Uma criança assistiu os pa- “O Baobá assistiu a organização do ma-
rentes serem misturados a outras pessoas, racatu que lembrava os reinados da sua ter-
leiloados e nunca mais os viu. A criança ra. O cortejo passava, os galhos e as folhas
conseguiu fugir daquele mercado – as mãos do Baobá balançavam de contentamento no
segurando as sementes no bolso da túnica batuque do baque-virado.
– correu, correu e embrenhou-se na mata “As folhas do Baobá ficavam tristes
mais próxima. quando viam as surras que o seu povo le-
“... e nas noites de silêncio total a criança vava no pelourinho e o viço do seu verde
saía da mata, fazia um buraco na terra e plan- logo voltava quando as rebeldias e as fugas
tava uma semente, lembrando as palavras do aconteciam.
Homem-Grande: “onde esta semente for plan- “O Baobá sorria quando o seu povo
tada o nosso povo viverá sempre”. abria a roda e dançava o coco, palmas e
30
Conto Infantil
umbigadas, saias rodadas rodando, o tam- Pequeno Príncipe, que dizia para ter cui-
bor tocando, gritos de festa e liberdade, por dado de não deixar os Baobás crescerem,
um instante, aguardando o dia de liberda- devendo ser arrancados logo que se distin-
de total. gam das roseiras, pois são perigosos.
“O Baobá sempre altivo assistia a resis- “O principezinho é príncipe, mas não
tência do seu povo, que continuava esca- é sábio, disse o Homem-Grande. O Baobá é
pulindo para não ser escravo. Um dia, os feito nós, foi espalhado em toda terra enri-
homens de cor diferente invadiram o Qui- quecendo a paisagem e dando equilíbrio à
lombo, destruindo o lugar de liberdade. natureza”, concluiu o sábio, alisando as ra-
“Muitas luas, muitos sóis se passaram. ízes do velho Baobá e com a outra mão dava
“Um dia, porém, os homens de cor di- cafuné na caçula, que adormecia no seu
ferente invadiram o Baobá, feriram suas colo”.
raízes, o tronco do Baobá sofreu, tombou, O Homem-Grande fechava os olhos
todo o seu povo chorou. As folhas murcha- sabendo que esta história seria contada
ram, o serrote rangendo de dor cortou os por estas crianças quando tiverem seus
seus galhos, só o tronco ficou. Mesmo as- netos e suas netas, repetindo um ciclo
sim, o tronco do Baobá era o maior do ter- que tem milhões de sóis e luas.
reiro.
“As crianças de to-
das as idades fizeram
roda em volta do tron-
co, pegaram papéis e
tintas, desenharam o
Baobá, tocaram tam-
bores, cantaram e
dançaram maracatu,
exaltaram Nanã – a
mulher mais velha –
fizeram oferenda para
todos os Orixás, lou-
varam os que ficaram
na travessia, condena-
ram o pelourinho e
exigiram a liberdade.
“Da seiva do Bao-
bá, invadido e violen-
tado, outros Baobás
brotaram e pareciam
dizer: “Pode me der-
rubar e continuo a re-
nascer ”.
“Outros Baobás
cresceram afirmando
a profecia do Ho -
mem-Grande: “onde
for plantado um Ba-
obá o seu povo vive-
rá sempre”.
“Homem-Grande,
o neto, lembra agora
às crianças uma histó-
ria mal-contada pelo
31
Conto Infantil
OS TESOUROS
DE MONIFA
Arquivo Pessoal
Sônia Rosa
Natural do Rio de Janeiro,
Minha avó Abgail sempre me falou da armário da minha professora da Rede Pública
Municipal, contadora de
bisavó dela que veio da África num navio mãe. Lá dentro
histórias, orientadora
negreiro quando era bem mocinha. Todos estão os diários educacional e escritora. Autora
os parentes e amigos que vieram com ela da minha tataravó dos livros O Menino Nito
ficaram pelo caminho...Ficou sozinha no africana escritos (1995), Aparício (1997),
Amores de Artistas (1998), obra
mundo, numa terra distante e na condição com letra muito altamente recomendável pela
de escrava.. Teve uma existência muito so- antiga e com mui- Fundação Nacional do Livro
frida. Mas nunca perdeu as esperanças de to esforço. Quan- Infantil e Juvenil, entre outros.
dias melhores para ela e para sua gente. A ta alegria, depois
bisa da minha avó Abgail se chamava Mo- de tantos anos, conhecer os seus sonhos,
nifa, que lá na terra dela significa “eu te- suas simpatias, suas rezas, algumas partes
nho sorte”. Ela acumulou um tesouro ao das músicas preferidas, as esperanças, os
longo da sua vida! Um tesouro muito espe- sustos, e ainda, as notícias da época em que
cial que veio passando de geração para ge- viveu ... Ela era muito esperta! Soube jun-
ração. Este tesouro mora agora na minha tar e recolher pedaços de seu tempo para
casa e fica dentro de uma grande caixa de que a gente de hoje pudesse espiar um pou-
madeira envelhecida na parte de cima do quinho do ontem... O encontro do
passado com o presente tem
embalado este tesouro
valioso da minha fa-
mília. Eu mesma, co-
nheço as rezas e al-
guns versinhos. Escu-
to as histórias de sua ter-
ra desde menininha e ado-
ro ouvi-las até hoje! Elas
me acalmam e me trans-
portam para o além mar e
para o além tempo...
Acordei aquele dia com o
coração em festa! Era o
meu aniversário! Minha
mãe e Vó Abgail me cha-
32
Conto Infantil
Kiko Nascimento
com muito carinho e passá-lo
adiante. Foi a melhor no-
tícia que recebi na minha
vida! Que grande pre-
sente! A notícia veio
acompanhada de
uma novidade: iria co-
nhecer todo o tesou-
ro! Quando vi a enorme
caixa na cama de minha mãe,
fiquei impressionada! Nunca
havia visto uma coisa, assim, tão an-
tiga. Com cuidado toquei na caixa e come-
cei a fazer carinho nela... Ao mesmo tem-
po, comecei a pensar que há muito, muito
Para meus filhos e os filhos dos meus filhos!!!
tempo, as mãos da minha tataravó africa-
na pegaram naquela caixa e os seus dedos
As raízes de vocês estão na minha Áfri-
cansados de trabalhar sem hora, escreve- ca. Por isso, devem amar este lugar com
ram aqueles tesouros... De repente, foi me toda força do amor que mora no fundo do
dando um aperto no coração... Joguei meus coração de vocês. É lá que encontrarão a
braços por cima da caixa e a enlacei como mim e toda nossa gente.
num abraço. Era como se naquele momen- Desejo que sejam livres de corpo e
to eu abraçasse a minha tataravozinha e alma, e que, em suas vidas, sejam tratados
toda a sua gente.... Comecei a chorar... Ou por todos com dignidade e respeito.
melhor, a soluçar! Minha mãe e Vó Abgail Não se esqueçam da nossa história.
choraram junto comigo.. Não se esqueçam do nosso sofrimento. Mas,
Entre lágrimas, minha mãe me entre- principalmente, não se esqueçam da nossa
gou um envelope amarelado com uma car- luta. O corpo pode estar preso, amarrado,
maltratado, mas as idéias e os pensamentos
ta dentro e disse: _ Leia isto! É o primeiro
nunca se escravizam. É isso que faz a dife-
escrito a ser lido antes de tudo!
rença! Nesses tempos duros em que a triste-
As duas saíram do quarto, dizendo que za, às vezes, não nos permite nem levantar
iam beber água! E, então, fiquei sozinha! da cama, a imaginação é o atalho para aqui-
Foi muita emoção! Eu me sentia nova de- etar nossos corações... Nessas horas fecho
mais para aquilo tudo! Mas ao mesmo tem- meus olhos bem fechados e visito minhas sau-
po grande o suficiente para receber aquela dades... Encontro minhas pessoas queridas
responsabilidade toda! que ficaram pelo caminho e chego aos luga-
Abri o envelope. Respirei profunda- res da minha infância... Sinto o cheiro do
mente e comecei a ler:
33
Conto Infantil
34
Conto Infantil
ALGUMA COISA
Arquivo Pessoal
AGORA-EM-SI* Andréia Lisboa
de Souza
Natural de São Paulo, mestre em
Educação pela Universidade de
– CANSADA?... REVOLTADA...?! – estra- Mas que meni- São Paulo. Integra a equipe do
nhou a mãe, sem saber o que se passava. na esperta, orgu- Secad/MEC, responsável pela
implantação da Lei 10.639/03.
– É, isso mesmo!!! – retrucou a filha, en- lhosamente, pen-
Autora de contos e poemas.
faticamente. sou a mãe. Essa
– Mas... por quê? parte da história, todos nós sabemos: foram
– Ora... Ora, todos me interrogam: por trazidos, roubados, forçados, enfim. Essa se-
que, por que e por quê? Porque estou farta ria a denominação correta. Nas aulas de geo-
das aulas de história em que o professor ex- grafia, ainda há poucos detalhes sobre a Áfri-
plica sobre os escravos, as escravas, o sofri- ca. Alguns alunos não sabem se ela é um país
mento, a dor e a morte de muitos africanos ou um continente. O professor de ciências,
que vieram para cá... ops!! em uma de suas aulas, entrou na sala trans-
– VI-E-RAM??? Então, chegaram aqui por portando cartazes enormes, com fotos de cri-
livre e espontânea.... anças, mulheres e homens para dar aula. “To-
– Obrigação, interrompeu Kauane, cor- davia não me identifico em nenhum desses
rigindo-se. corpos expostos. O meu corpo possui uma
A intervenção de Kauane fez com que a história diferente e ele nunca dá explicações
mãe admirasse, orgulhosamente, a esperteza sobre esse corpo...”. Como a garota poderia
da filha. estudar outros corpos sem antes conhecer o
seu próprio corpo? Se
um dia viesse a ser pro-
fessora, com certeza,
não agiria assim.
Dificilmente, na esco-
la, as aulas versam so-
bre o corpo da mulher
negra, a profissão dela,
as idéias dela, as suas
criações, a sua HISTÓ-
RIA, etc. Ou ela não
tem história?
Prosseguindo seu diá-
logo com a mãe, disse:
– Você não sabe da úl-
tima, a professora de
educação artística pediu
para que pintássemos
um quadro com as mu-
lheres mais destacadas da família e o profes- lização de seus trabalhos: selecionar quem iria
sor de português – de tão enxerido que é, e pintar e quem iria descrever. Danarah afirmou
sempre com a desculpa do tal trabalho entre que a fase dos porquês seria uma das melho-
as áreas – pediu para que fizéssemos a descri- res e que, nesse momento, seria importante
ção de uma dessas mulheres, pode? procurar pessoas que conheciam a verdadei-
Danarah disse-lhe que não só poderia, ra historia dos descendentes de africanos, ou
como seria uma oportunidade para ela apre- seja, “a história dos negros no Brasil”. E esta
sentar as ne-mulheres-gras da família. história, é a história que não foi contada, ou
– Eu não conheço a história da minha melhor, ela foi escrita de acordo com os inte-
bisavó e nem a da minha avó, só a sua porque resses do dito “civilizado”, o homem branco.
vivo com você. A bisavó de Kauane era africana e, ao ser
A filha tentou explicar o que pensava so- trazida para cá, foi levada para uma fazenda
bre a trajetória da mãe: na Bahia. Pertencia à cultura dos Nagôs e fa-
– Diria que... ahn! Não consigo pensar lava em lorubá.
de imediato. Provavelmente que, você, du- “Ela era bela como você- suspirava a mãe-
rante a sua trajetória de vir-a-ser uma mulher tinha olhos grandes da cor de uma jabutica-
negra nesse país, viveu momentos de luta; ou- ba, pelo de ouro preto, gostava de usar rou-
tros de indignação e venceu muitos confli- pas nas cores: preto, verde, vermelho e ama-
tos, ao afirmar suas origens étnicoraciais. relo”. Essas são as cores da Unidade Africa-
Kauane estava com toda a razão, sua mãe na, atualmente.
obteve avanços, durante os anos que haviam A sua bisavó adorava contar histórias so-
se passado, pois decidiu fazer faculdade, se bre seu povo para acalmar a dor e o cansaço
tornar educadora e ocupar o espaço público dos outros africanos que, assim como ela, fo-
e privado, demonstrando total capacidade in- ram forçados a trabalhar o dia inteiro fizesse
telectual, seguida de disputas e conquistas. sol , fizesse chuva, sem poder cantar suas mú-
– Mas, como posso fazer isso? –insistiu, sicas e dançar suas danças. Porém, ela não se
provavelmente buscando ajuda- gostaria de calava diante da pressão exercida pelos explo-
pintar você, a vovó e a bisavó, além de des- civilizadores que queriam castigá- la, por per-
crevê- la. Que bom!- interveio a mãe- profes- ceberem o seu poder de influência e porque
sora naquele momento. ela não se deixava dominar.
Na realidade, ela tinha acabado de apon- – Ela não tinha medo? Eles eram impiedo-
tar o primeiro e importante passo para a rea- sos com o nosso povo, questionou Kauane.
A mãe, sentindo o peso dos anos vindou-
ros, disse à filha que estava envelhecendo e
não percebeu o quanto ela havia crescido, já
era uma moça! Só a mãe ainda não havia re-
parado e, naquele instante, via que a menina
se parecia muito com a bisavó. Então, resol-
veu contar- lhe uma história- segredo com a
condição de que Kauane se preparasse.
Solicitou que ela fosse até seu quarto, pe-
gasse um vestido dentro do baú antigo de sua
avó, tirasse os sapatos, colocasse o vestido, o
turbante, o colar e o bracelete de bronze que
estavam no mesmo baú e retornasse para en-
contrá- la embaixo de uma árvore milenar,
enorme, frutífera e acolhedora, cuja raiz nes-
Kiko Nascimento
36
Conto Infanto-Juvenil
estilo diferente, as mangas eram curtas e lar- va, para ouvir sua mãe contar a história de
gas, caídas ao ombro em forma de tiras, se dona Cotirene. “É uma história especial, não
ajustava ao busto e descia como se desenhas- pode ser dita de qualquer forma ou em qual-
se seu corpo, para depois, na altura da cintu- quer lugar”- segredou a mãe. A partir daque-
ra, enlarguecer novamente até cobrir os seus le momento, Kauane tornou-se uma mensa-
pés. “É um sonho? Só pode ser! Gostaria que geira de seus ascendentes e um dia contaria
o papai me visse assim, tão bela, tão gente, essa história para seus descendentes. A histó-
tão negra, tão afro, tão EU”. ria seria a única maneira de mantê-los vivos
– Você está mais bela do que qualquer (na memória), a fonte que a uniria aos seus
Bela, Maria, Marília, Clara ou Beatriz e o seu ancestrais.
pai está vendo você, quando eu a vejo, você Ouviu Danarah contar que sua bisavó se
se vê, as pessoas e os seus professores lhe tornou um ORIXÁ!
vêem você, pois você se parece com ele tam- – Um Orixá?! – bradou a menina. O que
bém: percebe as coisas que estão além, ques- é isso? Conta logo, vamos, conta!
tiona sem medo, se comunica pelos tambores – Muita calma nessas horas, minha filha,
e se preocupa em nunca deixar continuou a mãe com paciência:
apagar a chama do nosso povo.
– E a bisa...- lembrou Kaua- Os orixás eram mulheres e homens com
ne. poderes e sabedoria. Eram respeitados por
Esse momento da história causa da força que possuíam. Eram venera-
seria mágico, único e inefável. dos devido às suas virtudes. Nós adoramos
Certamente saberia o significado sua memória e os altos feitos que realizaram.
da palavra i-ne-fá-vel, quando aca- Por isso se tornaram orixás.
basse todo o ritual.
Acotirene! Esse era o nome – E agora? Oxalá! Eles não existem mais,
da bisavó tão presente- dis- mamãe?
tante. Murmurava consigo – Pensei o mesmo que você na época.
aquele nome, repetidas ve- – Qual a resposta?
zes, após a revelação da Sim. Existem, porque em cada vila, em
mãe. Todos os medos e hu- cada parte onde se encontrar um afro- des-
milhações, pelos quais pas- cendente, um culto pode ser estabelecido para
sou, Acotirene transfor- que possa lembrar de um ancestral de prestí-
mou em força. Finalmente gio e fazer- lhe homenagens. Elas herdaram
o convite: muitos. A bisavó de kauane se tornou uma
– Aproxime- se mais, minha divindade, uma espécie de Orixá, ligada a
filha; toque a terra e sinta a OIÁ-IANSÃ, senhora dos ventos e das tem-
sua energia, ela tem muita pestades. Iansã foi rainha do reino de Oyó,
força a nos passar, sua bisa- onde se localiza hoje a Nigéria, juntamente
vó a valorizava muito; sin- com Xangô, outra divindade ligada às forças
ta água ao molhar suas da natureza, rei dos trovões.
mãos nela; aproxime- se
do fogo que está aceso, Xangô, orixá do trovão,
para sentir melhor o calor Kawo Kabiyei Ie!
dele; inspire o ar e sinta- o Iansã, orixá da tempestade,
percorrer dentro de si. êpa Heyi Oiá!
Sinta quanta energia boa
gira ao redor do seu cor- As divindades que estariam mais direta-
po. mente ligadas às forças da natureza, envolvi-
Há muito tempo, Da- das na manipulação mágica do mundo, mais
narah vivenciou um dia tão presentes na construção da identidade da pes-
Kiko Nascimento
significativo quanto o de Kau- soa, eram os orixás. Eles iriam ocupar o cen-
ane; colocou a mesma vesti- tro das atenções na religião negra brasileira.
menta que agora a filha usa- – Sabe, mamãe, as pessoas, os professo-
37
Conto Infanto-Juvenil
res, os alunos precisam negrejar de verdade.- histórias, pois o momento em que as contaria
Negrejar? O que significa isso, minha filha ne- seria de extrema importância, muito mais, se-
grejada, se assim posso chamá- la? Você tem ria um ritual onde ela trocaria energia vital
idéia, não? sem precisar fazer anotações em papel, por-
Respondeu à negrejada mãe que ela po- que tudo ficaria gravado em sua memória. A
deria chamá- la desta forma. linguagem oral era (e é) muito especial, era (e
Ainda não sabia ao certo o que era isso, é) a linguagem do cor, cordis, da manutenção
pois à medida em que se descobria, conhecia da cultura... do povo... e da vida.
sua história e ao saber sobre seus ascenden- Naquele instante, o céu trovejava e mes-
tes, foi negrejando cada vez mais e mais e...- mo assim a lua apareceu, as folhas da árvore
Nossa Santa Bárbara! Salve IANSÃ! Essa me- balançaram com tanta força que jogaram a
nina anda por demais filosófica, até teorias água longe, apagaram o fogo e fizeram estre-
está formulando!- exclamou a mãe. mecer a terra. Kauane fechou os olhos, abriu
– Quem é Santa Bárbara? –estranhou Kau- os braços e sem o menor medo procurou co-
ane. municar- se com Cotirene, pois sabia que ela
A mãe explicou que acontecera, no Bra- estava presente e sentiu toda a força que a
sil, um sincretismo. Os negros, apesar de se- rainha dos ventos lhe pôde passar, permane-
rem trazidos e espalhados em lugares dife- ceu assim um longo tempo.
rentes, não deixaram de cultuar seus ances- Descobriu o verdadeiro significado da
trais, pois, esse hábito sempre foi praticado palavra inefável. Ao mesmo tempo em que
na África. No entanto, aqui eles tiveram de via escorrer aquela “lágrima clara sobre a sua
modificá- los, devido a só ser permitido, ofi- pele escura”, a noite chegara contagiante e a
cialmente, o culto ao catolicismo branco e de- chuva caía, abundantemente, ali fora. Cho-
vido ao fato e não terem a mesma estrutura rando, mandou toda e qualquer mentira em-
familiar que possuíam na África. Dessa for- bora. Alguma coisa acontecia no quando- ago-
ma, o culto católico aos santos, com certo ca- ra- em si. Seu compromisso era com a verda-
ráter popular, foi associado, por eles, ao culto deira VERDADE!
dos orixás; sendo assim mantiveram ligações
com seus ancestrais.
Pediu que a mãe contasse mais histórias
sobre os orixás. A mãe retrucou, carinhosa-
mente, à filha que as outras histórias ficariam
para as próximas histórias.
“Descubro que por ser negra, não sou um
ser inferior e passivo como muitos pregam
pelo mundo afora, mas, diferente e lutador.
Uso um colar para conquistar e um brace-
lete para me proteger, sou forte e in-
teligente, nada posso temer”.
Kauane estava negrejan-
do, a começar pela música
em que falaria com os tam-
bores, assim como os
mesmos que se comuni-
cavam entre si, depois
pela dança na qual, por
meio da ginga, se ex-
pressaria com o corpo
e com o coração e,
por último, pela cul-
tura e pelos conheci-
mentos ao (re) contar
histórias e ao fazer
38
Poemas
Terra de Negros
Oliveira Silveira
Poema publicado no livro Roteiro dos Tantãs.
Porto Alegre, livro editado pelo próprio autor, 1981.
39
Poemas
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Cinco Elementos
aos Manos & Minas do Movimento Hip Hop
A palavra cantada
juventude municiada
tomou de assalto
palcos praças ruas
rimando verbos conseqüentes
A palavra tocada
orquestra em didjei vinil
criatividade nos dedos
rotação vudum-vudum-vudum
A palavra dançada
B.Boy
B.Girl
passo lunar
compasso moinho
corpo robótico
em múltiplas formas flutua
A palavra grafitada
muros paredes
tela nua
mural dos excluídos
vestindo traços coloridos
em jato spray
A palavra revolucionária
becos vilas cohabs morros favelas
periféricas páginas cotidianas
dialeto de preto
raio X do gueto
em ritmo Che-Marx-Martin-Malcon-Mandela-Zumbinianos
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40
Poemas
Renascer
41
Poemas
Linhagem
Eu sou descendente de Zumbi Eu sou descendente de Zumbi
Zumbi é meu pai é meu guia Zumbi é meu pai é meu guia
Me envia mensagens do Orum Eu trago quilombos e vozes bravias
Meus dentes brilham na noite escura dentro de mim
Afiados como o agadá de Ogum Eu trago os duros punhos cerrados
Cerrados como rochas
Eu sou descendente de Zumbi Floridos como jardins
Sou bravo valente sou nobre
Os gritos aflitos do negro
Os gritos aflitos do pobre
Os gritos aflitos de todos
Os povos sofridos do mundo
No meu peito desabrocham
Em força em revolta
Me empurram pra luta me comovem Carlos de Assumpção
Poema publicado no livro O Quilombo. São Paulo,
editado pelo próprio autor, 2000, pg.47.
Todas
Negras Mães
velhas filhas
benzedeiras. herdeiras
Sábias sábias guerreiras
negras fêmeas sabiás
médicas negras transformadoras
parteiras. negras encantadeiras
Juízas
Luizas
astutas
artistas
passadeiras
bailarinas
negras Sabrinas
e tantas outras
negras meninas.
Cristiane Pereira
Poema publicado nos Caderno de Poesias “Versos Negros”, Brasília,
ENEGRESCER- COLETIVO NEGRO DF E ENTORNO, 2005.
42
Poemas
Enigma do Amor
Há uma ilha
há marfim
há tristes arquipélagos em mim.
Dentro de mim
solidão vestida de Arlequim.
Dentro de mim
ilusões traçadas à nanquim.
Dentro de mim
força guerreira vestida de cetim.
Dentro de mim
enfim mora
o enigma do amor.
43
Poemas
Canarinhas da Vila
Para Edson Lopes Cardoso,
e para uma turma de jovens formandos
44
Poemas
É desse jeito...
Dilmar, Dilduentorno
45
Poemas
Quilombo do Curiaú
Ai, Ahaí, meu ararú
quero ver as quilombolas
dançando no Curiaú
Curiaú é um quilombo
um pedacinho do Amapá
venha ver nossa cultura
e a beleza desse lugar
As negras do Curiaú
são bonitas e faceiras
quando dançam o batuque
no salão fazem zoeira
Ao chegar no Curiaú
Se quiser dançar escute
Os sons dos instrumentos
E dançar nosso batuque
46
Poemas
Ogum
o assentamento do quatro
ogum justiceiro encarnado
as armas de mercúrio
nariz de abas brabas
os tacões alados de hermes
a espada e a palavra armas
de jorge
wordswordswords
swords
parolagem brasa assoprada sem coração
verba
algum para ogum
despojos de guerra
banquete após uma expedição de conquista
ogum sentado firmeforte no quatro
se sua cadeira vermelha
aquele estrago
ogum bebum
gira dedibrônzeo o compasso na ponta
de um quatro
entrada de sola que talha
sempre dentro do esquadro
aparta-nos ogum de retrato e
de sol quadrado
Ronald Augusto
47
A ANCESTRALIDADE A arte africana sempre esteve presen- os nossos antepassados contando um pou-
te no cotidiano, ativando os objetos mais co das nossas raízes: os orixás, a boneca
simples quanto os destinados aos rituais akuaba, ancestral, o amor fraternal, o amor
ou cerimoniais religiosas. É imensa e pro- romance, mandalas, pano da costa,
funda a influência e contribuição à forma- uroboros, floresta, carimbos, desenhos, es-
ção da cultura brasileira. Nesse painel fo- culturas, baixo relevos, a grávida/fertilida-
ram usados elementos da ancestralidade, de, detalhes de objetos.
BONEKA AKUABA
O ideal de beleza e
fertilidade. As
mulheres Ashanti
costumam carregá-las GRÁVIDA/FERTILIDADE
consigo, pois O processo vivificador
simbolizam fertilidade revivificando na outra vida.
AMOR ROMANCE
feminina e uma boa
Dois corpos se unem
gestação.
formando um só. Peça
descansador de cabeça PANO DA
COSTA
CARIMBOS Tecido
os carimbos eram usados para estampar Confeccionado
tecidos de maneira artesanal, mostrando por processo
na maioria formas geométricas. UROBOROS artesanal,
Serpente que morde padronagem e
AMOR CÓSMICO a própria calda e formato
O motivo “corrida de simboliza um ciclo retangular,
joelho”. Bordado encontrado de evolução acessório do traje
na bolsa de couro de xangô, encerrada nela ORIXÁS da baiana.
África Ocidental. mesma. Idéia de Eles possuem a energia do
movimento, de princípio e da transformação:
continuidade, de Xangô, Oxalá, Oxossi, Oxum, Exu.
autofecundação Eles protegem as plantas, os rios, o
mar, a terra, o ar, as fontes, as
Natural de Salvador, Goya Lopes é li- FLORESTA pedras, as árvores, os animais e as
cenciada em Artes Plásticas pela Uni-
a relação com a natureza é muito forte na pessoas
versidade Federal da Bahia (UFBA), es-
pecialista em Design, Museologia, Ex- ancestralidade africana. Há um convívio
pressão e Comunicação Visual, pela harmonioso com o meio-ambiente,
Universitá Internazionale Dell´Arte di buscando preservar e cultuar as florestas.
Firenze, Itália. Ao longo de sua carrei-
ra, Goya Lopes foi promotora de cursos
e workshops. Participante de congres-
sos, seminários e simpósios sobre Design ESCULTURAS
e Artes Visuais, a artista brasileira divul- Revela a
gou seus trabalhos com ênfase para
um recorte que valoriza a Arte Afro- capacidade
Brasileira. Promotora de exposições no artística do negro,
Brasil e Exterior, as obras de Goya Lopes mostra os
podem ser vistas em Nova Iorque, Sal- sentimentos,
vador e Brasília. O painel retratado nes- ANCESTRAL
te Ensaio Visual pode ser visto no sa- crenças religiosas
MANDALAS AMOR FRATERNAL A figura de um
guão de entrada da Fundação Cultural através de baixos
Mostra toda a energia e o vigor de uma O espírito de solidariedade antepassado,
Palmares/MinC, em Brasília. As fotos relevos e
são do fotógrafo J.J.Caju. família numa floresta em perfeita e de cooperação. as estetuetas
estatuetas que
harmonia com os animais, esse contato eram esculpidas
definem bem o
íntimo com a natureza marca para serem
imaginário
profundamente a religião africana vistas de perfil.
africano
Poemas
Iteques
CÂMARA CLARA
50
Poemas
A palavra mata.
o meu retrovisor.
A palavra mata.
França
51
Da representação
à auto-apresentação
da Mulher Negra
na Literatura Brasileira
Conceição Evaristo*
C olocada a questão da
identidade e diferença
no interior da lingua-
gem, isto é como atos
de criação lingüística, a litera-
tura surge como um espaço
privilegiado de produção e re-
produção simbólica de sentidos.
Partindo dessas primícias, pode ser
observado que a literatura brasileira, desde
a sua formação até a contemporaneidade,
apresenta um discurso que insiste em pro-
clamar, em instituir uma diferença negativa
para a mulher negra. A representação lite-
rária da mulher negra ainda surge ancorada nas imagens de
seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto
de prazer do macho senhor. Interessante observar que deter-
minados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso li-
terário brasileiro, são encontrados desde o período da litera-
tura colonial.
Textos exemplares nesse sentido são os de Gregório de
Matos [1623-1696], apelidado como “Boca do Inferno”, por
suas críticas à colonização portuguesa. Entretanto, o poeta,
como qualquer homem do Brasil Colônia, acostumado e com-
prometido com a sociedade escravocrata, em versos como
estes revelava o conceito da época que pairava sobre as mu-
lheres escravas: “Jelu, vós sois a rainha das mulatas/ E sobre-
tudo sois a deusa das p...,” [reticências no original].
Arquivo Pessoal
53
mulheres negras, diz que “as rimentada como mulher uma fala literária construída
mulheres negras fazem par- negra na sociedade brasilei- nas instâncias culturais do
te de um contingente de mu- ra. Pode-se dizer que o fa- poder. Nesse sentido, os tex-
lheres [...] que são retratadas zer literário das mulheres tos das escritoras afro-des-
como antimusas da socieda- negras, para além de um cendentes se inscrevem no
de brasileira, porque o mode- sentido estético, busca se- proposto por Homi Bhabha
lo estético de mulher é a mu- mantizar um outro movi- (1998, p.321) acerca da poe-
lher branca”. mento, ou melhor, se inscre- sia do colonizado. Para ele, o
Entretanto, se a literatu- ve no movimento a que discurso poético do coloniza-
ra constrói as personagens abriga todas as nossas lutas. do, não só encena o “direito
femininas negras sempre des- Toma-se o lugar da escrita, de significar ”, como tam-
garradas de seu núcleo de pa- como direito, assim como se bém questiona o direito de
rentesco, é preciso observar toma o lugar da vida. nomeação que é exercido pelo
que a família representou Nesse sentido, vários colonizador sobre o próprio
para a mulher negra uma das textos se tornam exempla- colonizado e seu mundo.
maiores formas de resistência res, como os de: Geni Gui- Pode-se concluir que na
e de sobrevivência. Como he- marães, Esmeralda Ribeiro, escre(vivência) das mulhe-
roínas do cotidiano desenvol- Miriam Alves, Lia Vieira, res negras, encontramos o
vem suas batalhas longe de Celinha, Roseli Nascimento, desenho de novos perfis na
qualquer clamor de glórias. Ana Cruz, Mãe Beata de Ie- literatura brasileira, tanto
Mães reais e/ou simbólicas, monjá dentre outras. Há do ponto de vista do con-
como as das Casas de Axé, ainda que se recordar da teúdo, como no da autoria.
foram e são elas, muitas ve- primeira romancista abolici- Uma inovação literária se dá
zes sozinhas, as grandes res- onista brasileira, Maria Fir- profundamente marcada
ponsáveis não só pela subsis- mina dos Reis, com a publi- pelo lugar sócio-cultural em
tência do grupo, assim como cação de Úrsula, em 1859. que essas escritoras se colo-
pela manutenção da memó- Não se pode esquecer, ja- cam para produzir suas es-
ria cultural no interior do mais, o movimento executa- critas. Da condição femini-
mesmo. do pelas mãos catadoras de na e negra, nasce a inspira-
Se há uma literatura que papel, as de Carolina Maria ção para esses textos a se-
nos invibiliza ou nos ficcio- de Jesus que, audaciosa- guir:
naliza a partir de estereóti- mente reciclando a mi-
pos vários, há um outro dis- séria de seu coditiano,
curso literário que pretende inventaram para si
rasurar modos consagrados um desconcertante
de representação da mulher papel de escritora. Ca-
negra na literatura. Asse- rolina escrevendo
nhoreando -se “da pena”, obras como: O quarto
objeto representativo do de Despejo, O Diário de
poder falo-cêntrico branco, Bitita, Pedaços de
as escritoras negras buscam Fome, apresentou
inscrever no corpus literá- uma escrita que para
rio brasileiro imagens de muitos veio macular
uma auto-representação. Cri- uma pretensa e desejo-
am, então, uma literatura sa assepsia da literatu-
FOTO: Ronaldo Barroso
54
Coração Tição
Ana Cruz
América
Esmeralda Ribeiro
AMÉRICA
na terceira margem
sou azul
e me sinto só
Passado mas eu sei quem sou:
Histórico samba, rap, capoeira, blue
e tenho soul
Sonia fátima
In International Dimensions of
Do açoite Black Women’s Writing, Vol. 1, p. 203
da mulata erótica
da negra boa de eito
e de cama
(nenhum registro)
In Cadernos Negros –
Os Melhores Poemas, p. 118.
55
Quarto de Despejo
[fragmentos] Maria Carolina de Jesus
Kiko Nascimento
precisavam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há
de ter filhos – se filhos de pobre tem que ser operário? [...]
Quando o carro capela vem na favela surge vários deba-
tes sobre a religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhes
que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar
na igreja.
Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só com
pão. Não vestem e não calçam.
[1962, P. 120]
In E...FEITO DE LUZ, p. 31
ÙRSULA
[fragmentos] Maria Firmina dos Reis
56
A Cor da Ternura
[fragmentos] Geni Guimarães
57
Um teatro negro para
um Brasil melhor?
Cristiane Sobral *
Um ator negro é antes de tante dos estereótipos nor- Isso levanta várias ques-
tudo um ator e, como tal, malmente atribuídos desde o tões ligadas à elaboração dos
pode interpretar qualquer período pós-escravidão dramas, à composição dos
papel, aliás, a possibilidade de como a "mulata gostosa", o auditórios e às influências
viver diversos papéis é um "negro bandido", o "molequi- educativas do teatro. Sem dú-
dos maiores atrativos da pro- nho atrevido", o "preto velho", vida, torna-se indispensável
fissão. Esta potencialidade o "negro de alma branca", en- discutir os rumos do teatro
esbarra na real dificuldade de tre tantos outros. negro brasileiro e a relação
produção e localização de Para o encontro com a que o teatro possa ter diante
uma dramaturgia onde este- identidade brasileira, é preci- da experiência única de ser
ja representada a diversidade so resolver os conflitos de negro no Brasil.
cultural brasileira. A saída identidade. Nesta conformi- É impossível entender a
aponta para o exercício cria- dade, faz-se necessário um situação atual sem conhecer
tivo da construção de histó- rompimento definitivo da ilu- alguns dos movimentos
rias inclusivas, iniciando uma são do mito da democracia mais importantes do teatro
revolução, cujo primeiro pas- racial brasileira, do conceito negro brasileiro a partir da
so está na direção da forma- do "dividir para melhor rei- década de quarenta, como o
ção e afirmação artística. nar", sistematicamente apli- Teatro Experimental do Ne-
É possível afirmar, sem cado para fragmentar e pro- gro, de Abdias do Nasci-
sombra de dúvida, que os vocar o conflito infértil entre mento, o Teatro Popular Bra-
dias de hoje traduzem um pe- os negros e mestiços pois pre- sileiro, de Solano Trindade, o
ríodo de ausência cênica do tos e pardos fazem parte da Teatro Folclórico Brasileiro de
personagem negro no teatro mesma etnia negra. Haroldo Costa, e o Teatro
tradicional, mas também é
verdade que este mesmo tea-
tro tem uma fixação de uma
imagem deformada do negro,
elaborada pelo imaginário do
branco. Este é o quadro que
se pretende modificar, rom-
pendo com os modelos tra-
dicionais de ficcionalização e
apresentação do sujeito e da
cultura negros.
Eis o desafio de um tea-
tro que ouse apresentar o per-
FOTO: Protásio/Reprodução FCP
Olodum, com raízes em Sal- É preciso oferecer às pes- MENDES, Míriam Garcia. A Personagem
Negra no Teatro Brasileiro. São Paulo;
vador, e do grupo Cabeça Fei- soas a chance de assistir à Ática, 1982, p. 210.
ta, de Brasília. transformação de um país PALLOTTINI, Renata. Introdução à
dramaturgia. São Paulo; Ática, 1998, p.
Todos esses grupos, em que já resolveu os seus pro- 74.
diferentes períodos históri- blemas de auto-estima e exi- PEACOCK, Ronald. Formas da literatura
dramática. Rio de Janeiro; Zahar, 1968,
cos, enfrentaram desafios de be-se em toda a sua pujança p. 330.
constituição e manutenção sem poupar nenhum ângu- PRADO, Décio de Almeida. Teatro de
das suas propostas estéticas, lo de visão. O Brasil dos bra- Gianfrancesco Guarnieri. São Paulo;
Global, 2001, p. 279.
de construção de uma lingua- sileiros pode conviver sem STANISLAVSKI, Constantin. A Construção
gem própria, desafios de so- medos ou mágoas com a di- da Personagem. Rio de Janeiro;
Civilização Brasileira, 1986, p. 325.
brevivência diante da ditadu- ferença e enfrentar com co-
60
O corpo e a dança
negra no cenário
artístico Soteropolitano
Nadir Nóbrega Oliveira *
No caso em estudo,
abordarei como o corpo
* Coreógrafa, Dançarina, mestranda em negro considerado por
Artes Cênicas da Universidade Federal
da Bahia. Autora do livro Dança Afro-
Sincretismo de movimentos.
61
alguns como lindo, forte, tes em Salvador expressam- Em Salvador, é vantajo-
sensual e espetaculoso, um se para o público como so ser negro3 no espaço ar-
corpo desejado, também quem “faz coisa de preto”. tístico, principalmente na
odiado e diabolizado por (Oliveira, 1992 p.50). O dança, mesmo não sendo o
outros. Ainda apresentado e mundo artístico é um espa- produtor ou empresário,
visto assim como também as ço social “onde a discrimi- existem preferências por es-
manifestações artísticas cri- nação racial é menos forte” tes corpos nas audições para
adas e mantidas por negros (Bourdier, 1996, p.257). tournées de companhias ar-
são consideradas folclore in- Apesar da folclorização tísticas no Brasil e no exte-
clusive nos meios academi- da arte afro-brasileira apro- rior.
cistas, espaços que ainda priada pelo discurso oficial, Podemos perceber que
perpetuam o Nomos euro- principalmente aquele liga- no Brasil, especialmente em
cêntrico, orientados pela do à propaganda e ao turis- Salvador, poucos são os li-
cultura ocidental hegemô- mo e também no meio artís- vros atualizados sobre artes
nica onde pen- afro-brasileira e
sam o sagrado e africana, como
profano como também é cons-
antagônicos. tante ver a arte
Um dos ele- como entreteni-
mentos mais for- mento, lazer e
tes da tradição coisa de pequena
africana é a dan- importância.
ça. Através dela, A arte quer seja:
os nossos ances- escultura, dança,
trais negros ex- pintura, música,
pressavam todos teatro, indumen-
os acontecimen- tária são tão pre-
tos naturais da sentes e necessá-
organização da rias para o ser
sua comunidade: humano como é o
agradecer as co- comer e o dor-
lheitas, a fecundi- mir. Para vários
dade, o nasci- povos, inclusive
mento, a saúde, a os africanos, tudo
vida e até a mor- se comemora
te. É comum ver- com arte. Dá pra
mos em docu- entender um
mentários sócios pouco por que
– políticos e cul- nós baianos gos-
turais, povos afri- tamos tanto de
canos, cantando e dançan- tico, os afro-descendentes dançar, cantar e represen-
do, expressando os seus in- através da sua dança e esté- tar. As nossas festas de lar-
teresses e a sua história. tica revidam a discrimina- go e os ensaios dos blocos
Para os afro-descenden- ção sofrida. “O negro edu- afros expressam muitíssimo
tes ficou destinado o sam- cou-se ouvindo dizer que o seu bem esta afirmativa.
ba, o maculelê, a capoeira, corpo era feio e grosseiro, que Em Salvador, a dança
ou seja, o “folclore”. Embo- não podia dançar balé clássi- está imbuída de um gestual e
ra essas manifestações cul- co por ter o seu quadril largo de um dinamismo próprios,
turais tenham sido incorpo- e os pés chatos, além da sua cuja simbologia não pode
radas como parte legítima cor ser incompatível para re- ser dissociada de sua matriz
da cultura nacional, os gru- presentar príncipes e prince- cultural, em especial a afri-
pos de dança afro existen- sas”. (Oliveira, 1992 p.53). cana, onde o dançar se tra-
62
duz como poder de comu- Durante as apresenta- Relacionar a produção
nicação em sentidos mais ções, assistimos com prazer estética negra africana na
profundos. os corpos deslizarem espon- categoria “arte”, (grifo nos-
Constatamos que ela re- taneamente, o requebro dos so) em igualdade à manifes-
produz em movimentos e seus quadris em coordena- tação, da mesma espécie, de
gestos elementos fortes ção com os braços sem os outros povos, tem provoca-
quais são reforçados com o tão conhecidos códigos ges- do um esforço para vencer
figurino, a música e a sua tuais de braços e pernas do as barreiras. Através destas
historia. Entendemos que os balé, preocupando -se em danças, podemos ver arti-
elementos estéticos, tanto preencher o espaço sem a culada a interdisciplinarida-
das danças sociais como das rigidez da dança acadêmica. de, a história, a antropolo-
religiosas, estão vinculados Dança esta que foge dos pa- gia, a religião, a geografia e
aos aspectos físicos, senso- drões homogêneos e euro- outras áreas presentes re-
riais, emocionais de qual- cêntricos impostos pelo mer- presentadas nos corpos dos
quer etnia. cado cultural. dançarinos, que neste mo-
É possível considerar- O Candomblé tem opor- mento são os donos do es-
mos a dança como uma das tunizado aos grupos um sig- paço.
formas de comunicação não nificativo material artístico. O corpo negro retrata a
verbal da cultura afro-bra- Além de movimentos recria- possibilidade na qual atra-
sileira, sendo um elemento dos de danças dos orixás, os vés da dança e da estética
importante na função de dançarinos/coreógrafos utili- mostra-se presente no mun-
manter e resguardar ao lon- zam elementos simbólicos e do, representando a filoso-
go da história conhecimen- representativos da religião fia de uma civilização sus-
tos fundamentais presentes como: búzios, palha da cos- tentada por fundamentos
e atuantes no processo civi- ta, miçangas e cabaça, assim rituais e mitológicos de cu-
lizatório dos afro-descen- como as costuras das suas nho religioso.
dentes baianos. roupas e amarrações. Um corpo que a tradi-
ção ocidental desenhou
como apropriado apenas
para o trabalho, convencio-
nalmente representado com
depositário de qualidades e
sentidos negativos e des-
prestigiados, reinscreve a
diferença com dignidade e
altivez, impondo-se como
signo da individualidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
63
Evitando a “esportização”
e a “folclorização”,
a capoeira se afirma
como cultura negra 1
ricana, que associavam dis- culturais de diversos tipos, ra negra no Brasil foram bem
cursos de denúncia do racis- formal e informalmente cons- sucedidas no sentido de di-
mo contra os negros e desta- tituídas, foram, gradativa- vulgar para um público mais
cavam as contribuições afri- mente, integrando os movi- amplo, dentro e fora das fron-
canas às sociedades nacionais, mentos negros recentes, o que teiras nacionais, a riqueza das
especialmente, no campo da inclui organizações carnava- diversas expressões culturais
cultura. Diversos atores - lescas, religiosas, grupos de negras existentes, chegando,
como organizações não-go- capoeira etc. Em alguns Es- em alguns casos, a evitar o
vernamentais, o Estado, a tados, como a Bahia, as ações desaparecimento daquelas
Igreja Católica, as Universi- destas organizações culturais que se encontravam em situ-
dades e os organismos inter- serviram de referência e ins- ação de maior vulnerabilida-
nacionais, entre outros - tive- piração para iniciativas que de. A repercussão destas
ram um papel importante foram surgindo em outros ações, na elevação da auto-es-
nesse processo. Estados, dando existência ao tima individual e coletiva da
No caso do Brasil, desde que se tornou o amplo e di- população negra e mestiça
o final da década de 1970 sur- versificado campo que cons- brasileira, é algo que merece
giram inúmeras organizações titui o que, atualmente, é en- destaque pela importância
anti-racistas que conformam tendido como “cultura ne- que tem na reversão de um
os movimentos negros atuais. gra”. Desse modo, pelo me- dos efeitos mais nefastos do
As ações destas organizações nos para a parte dos movi- racismo.
provocaram alterações nos mentos negros, formada por No entanto, esse esforço
discursos e práticas acadêmi- organizações, grupos e indi- de afirmação e valorização
cas, oficiais e populares, no víduos cujas ações têm se de- positiva da cultura negra no
sentido de questionar a de- senvolvido na área cultural, Brasil tem outros desdobra-
mocracia racial como um houve uma relativa superpo- mentos que merecem uma re-
mito, dar visibilidade ao ra- sição entre a construção de flexão cuidadosa, posto que,
cismo brasileiro e propor po- formas de identidade étnica em alguns casos, são contra-
líticas públicas que garantis- (negra) e de identidade cul- ditórios com os objetivos mes-
sem a ampliação das oportu- tural. mos que inspiraram estas ini-
nidades sociais para a popu- Tais ações de afirmação e ciativas. A análise da história
lação negra. Organizações valorização positiva da cultu- recente da capoeira e, espe-
65
cificamente, das transforma- processo diz respeito às ten- inserir a capoeira no também
ções nos discursos e práticas tativas de redução da capo- lucrativo mundo das ativida-
que ocorreram a partir do iní- eira a uma única definição, des turísticas e, nesse caso, é
cio da década de 1980, permi- ou melhor, de regulação da conhecida a presença de
te abordar esta questão que capoeira segundo uma visão apresentações de capoeira
está no centro do debate atu- que impõe um modelo úni- como parte dos shows folcló-
al sobre identidade, cultura co, que pretende se tornar ricos que, em geral, apresen-
negra e política. hegemônico e que é bem tam de maneira descontextu-
Depois da perseguição exemplificado pela assertiva alizada e condensada diver-
aberta no final do século XIX, de que ‘a capoeira é uma só’. sas expressões da cultura
a história da ca- Segundo essa afro-brasileira.
poeira no sécu- lógica, não há Buscando escapar das ar-
lo XX tem sido reconhecimen- madilhas da ‘esportização’ e
marcada por to da existência da ‘folclorização’, muitos gru-
repetidas tenta- de diversos es- pos de capoeira, bem como
tivas de norma- tilos, lingua- capoeiristas, mestres e contra-
tização e con- gens, aborda- mestres, tentaram encontrar
trole, bem gens e apropri- um outro espaço para a ca-
como por dis- ações da capo- poeira através da afirmação
putas em torno eira, o que sig- desta como cultura negra e
da origem e da nificou na prá- popular. Esse caminho foi
definição – tica impor a sendo pavimentado ao longo
como folclore, muitos mestres das décadas de 1980 e 1990.
como esporte, e capoeiristas a As dificuldades encontradas
como cultura adesão à con- nessa empreitada não foram
negra e/ou po- cepção da ca- poucas e se assemelham
pular, como fer- poeira como àquelas enfrentadas por ou-
ramenta para a esporte, o que tras manifestações culturais
luta anti-racista do ponto de tradicionais e populares no
e em prol da in- vista formal, Brasil. Tais dificuldades estão
clusão social e muitas vezes, relacionadas ao fato de que
racial. Diante se traduziu em estas manifestações, por um
da ausência de políticas pú- iniciativas que buscaram im- lado, não foram consideradas
blicas para a capoeira, o que por a filiação de mestres e como produtos com valor
aconteceu ‘espontaneamen- grupos de capoeira às ‘Fede- de mercado suficiente para
te’, a partir dos anos 1960, foi rações’ e “Confederações’ de atraírem investimentos do
a expansão dos segmentos capoeira, nos moldes do que setor privado e, por outro
que afirmaram a capoeira acontece com outros espor- lado, também não foram alvo
como esporte e adotaram dis- tes. Durante muito tempo, a de políticas públicas dese-
cursos e práticas condizentes afirmação de que ‘a capoeira nhadas com a finalidade de
e afinados com os propósitos é uma só’ serviu para impor, valorizá-las enquanto bens
da expansão das empresas, por exemplo, aos praticantes culturais de toda a sociedade.
cujo objetivo era disputar um da Capoeira Angola, que es- Esse cenário tem muda-
espaço para a capoeira no tes abandonassem tal estilo, do bastante na última déca-
mercado da “cultura física”. considerado anacrônico por da com a participação cres-
Próxima a essa vertente, te- aqueles que se apresentavam cente de representantes do
mos as iniciativas de inserção como defensores da moder- universo da capoeira no de-
da capoeira no lucrativo nização e da transformação bate sobre a cultura em sua
mundo das competições es- da capoeira em esporte naci- articulação com a construção
portivas. onal. da identidade negra; com o
Um dos aspectos mais Em outra direção, mui- surgimento de ações gover-
preocupantes de todo esse tos praticantes tentaram namentais no sentido de for-
66
Angola como estilo tradicio-
nal são freqüentes as tensões
entre a continuidade e a mu-
dança, tensões estas que se
evidenciam sobremaneira
quando se trata, por exemplo,
de discutir as construções de
gênero e de raça. Como en-
tender as reivindicações de
Arquivo Pessoal
valorização da contribuição
feminina à história recente da
mular políticas públicas para nio Cultural Imaterial. Por capoeira em geral e da Capo-
a capoeira que se inserem em outro lado, evitar que nesse eira Angola, em particular, e
um contexto mais geral, mar- processo sejam adotadas de- de alteração das práticas ma-
cado por iniciativas visando finições essencialistas de cul- chistas presentes no cotidia-
a promoção da diversidade tura negra, que, muitas vezes, no dos grupos e nas relações
cultural e da igualdade raci- incluem noções de pureza entre mestres e alunas, já que
al; e com o surgimento de racial e estabelecem conexões a presença feminina é recen-
mobilizações lideradas por diretas entre certas caracte- te e, portanto, não poderia
organizações internacionais rísticas fenotípicas e determi- ser considerada como parte
– como a UNESCO – visan- nadas competências culturais da ‘tradição’ da capoeira?
do a definição de marcos le- ‘africanas’ herdadas. Em lu- Como entender a participa-
gais, bem como a obtenção de gar da adoção de tais defini- ção de pessoas que não são
apoio dos Estados, para a no- ções, acredito que é de gran- afro descendentes, ou tem
ção de Patrimônio Cultural de interesse focalizar os pro- origem nacional distinta da
Imaterial. Tais iniciativas da cessos através dos quais de- brasileira, em atividades cul-
UNESCO são recentes, mas terminadas expressões cultu- turais que reivindicam o seu
estratégicas por favorecer a rais passaram a ser percebi- caráter tradicional e a raiz
articulação em escala global das pelos praticantes e pelo africana, como ocorre com a
de diferentes atores, visando público em geral como ‘cul- Capoeira Angola, já que esta
o enfrentamento das adver- tura negra’, o modo como a participação também não
sidades que são comuns às ‘tradição’ é redefinida nestas pode ser considerada parte
manifestações culturais tradi- expressões, e a relação destas da ‘tradição’ da capoeira?
cionais e populares em vári- com as construções de iden- Estas questões emergem
as partes do mundo, evitan- tidade étnica e as formas de nesse novo cenário em que
do que a discussão desses te- (auto) identificação. não se trata mais de afirmar
mas seja, excessivamente, Essa discussão é de mui- a existência da Capoeira
marcada por argumentos na- to interesse para o debate re- Angola e defender o seu es-
cionalistas3. cente sobre a capoeira, em um paço, mas sim de consolidar
Nesse contexto, temos contexto marcado pelo mai- e expandir as atividades de
diante de nós um duplo de- or reconhecimento popular e mestres e discípulos, que
safio: por um lado, afirmar a institucional da existência da atuam não apenas no Brasil,
capoeira como cultura negra, Capoeira Angola como estilo mas participam dos fluxos
assegurando que sejam im- tradicional e distinto da Ca- globais da cultura negra de-
plementadas políticas públi- poeira Regional. Acontece senvolvendo atividades em
cas coerentes com tal defini- que ao afirmar a Capoeira diversos países.
ção, que levem em conta a
heterogeneidade existente
1 Agradeço a leitura cuidadosa e os comentários de Rosângela Costa Araújo e Poloca Barreto.
nesse campo e que estejam
NOTAS
67
Cinema negro
aspectos de uma arte
para a afirmação ontológica
do negro brasileiro
Celso Luiz Prudente*
É
importante observar que a literatura sempre influen-
ciou outras áreas do conhecimento. No caso específi-
co do cinema, se, por um lado, temos a constante adap-
tação de clássicos da literatura brasileira, por outro,
mesmo as obras recentes e sem vínculos com a litera-
tura ainda tratam o negro quase sempre de forma estereoti-
pada e restrita a relações de subordinação. Constata-se, tam-
bém, que é pouco freqüente a presença do negro na função
de diretor.
Arquivo Pessoal
69
Sete Cabeças”, que no close, vai caracte-
descreve a luta revo- rizar nuances de rela-
lucionária pela des- ções coletivas. As ce-
colonização euro - nas em primeiro pla-
péia. Tal filmagem no tecnicamente des-
significou para ele, tacam o objeto do
de acordo com seu conjunto (Deleuze,
testemunho “(...) 1994. 147- 48).O cine-
uma identificação asta negro, entretan-
cultural de um bra- to, quando usa o pri-
sileiro que retorna às meiro plano sugere
suas origens” (Pes- impregnar no perso-
soa, Fleury, 1975: 35). nagem nuances de
No que diz res- um comportamento
peito aos elementos coletivo, a partir de
cinematográficos, o uma ação afirmativa
cinema negro recen- da memória africana.
te ressalta os aspec- Pode-se considerar
tos socioculturais do isso como um traço
negro, a influência característico do ci-
dos cultos afro-bra- nema feito por dire-
sileiros, em particu- tores negros.
lar a mitologia yoru- É possível que
bá, bem como a mú- esse traço seja uma
sica e os instrumen- especificidade da
tos musicais, caracte- arte negra, pois tam-
rizando traços dos conheci- pois sugere que o luxo é a ra- bém está presente no gênero
mentos essenciais2 da africa- zão da miserabilidade. Em musical. Dificilmente consta-
nidade. Ainda sobre o aspec- sua imagética, cristaliza-se ta-se o fenômeno da execu-
to do código cinematográfi- uma dicotomia de pobres e ção solo de um instrumento
co3, isto é, o significado de um ricos que se projeta em ne- africano ou aclimatado, como
filme, tem-se a constante luta gros e brancos. exemplo tem-se a bateria da
pela inclusão social e pela ci- Seria importante um es- escola de samba. É possível
dadania. tudo em relação ao aspecto supor que a estética negra tra-
A exemplo disso, o filme do código fílmico,4 isto é, a ga um resíduo ontológico, em
“Abolição”, realizado por Zó- sintaxe do filme – sua lingua- que o ser se manifesta na bus-
zimo Bulbul em 1988, mostra gem específica –, o significan- ca do princípio de família,
o Rio de Janeiro, em especial te (seqüências, cenas, planos, fragmentada na diáspora.
os bairros de Copacabana, sonorização e montagem), Essa família, no entanto, deve
Leblon e Ipanema – berço da em que se percebe indícios ser entendida no sentido
intelectualidade das décadas específicos do cinema negro, amplo, isto é, uma família te-
de 60 e 70 –, como uma espé- no qual há traços que refle- lúrica e não apenas biológi-
cie de referência de beleza e tem a afirmação coletiva por ca. Esse é um fenômeno de
de cultura. A narrativa reve- meio da religião, da música e religiosidade, pois Olorum, a
la a ausência de crítica social da dança. Há uma persistên- morada dos orixás, está situ-
por parte dessa intelectuali- cia, inclusive, dos temas reli- ada embaixo da terra (Verger:
dade branca, alheia à margi- giosos em filmes dirigidos 1981).
nalização dos pobres e à dis- por cineastas negros. A separação da família e
criminação de que os negros O uso constante do pla- a reificação da escravidão re-
são objeto. O filme propõe no geral conjugado com o pri- sultaram em um sentimento
conseqüentemente uma re- meiro plano, em que o per- que se manifestava nos cul-
flexão de natureza marxista, sonagem é individualizado tos religiosos com a idealiza-
70
ção de uma africanidade. Es- cinema negro no Brasil. Um sob a coordenação do pesqui-
sas manifestações dos negros dos primeiros cineastas ne- sador Marcelo Tassara, já exis-
persistem e, ainda hoje, atu- gros, Zózimo Bulbul, realizou te uma atenção especial em re-
am como mecanismos de de- em 1976, “Alma nos olhos”, lação ao cinema negro, inclu-
fesa para resistir às relações em que narra a quebra dos sive quanto a esse aspecto.
opressivas, que o negam en- grilhões com a transformação Em outro filme, como “O
quanto ser, e se constituem interna do ser, numa coreo- rito de Ismael Ivo”, realizado
num traço estético presente grafia inspirada, provavel- em 2003, o cineasta Ari Cân-
em toda arte negra. As per- mente, na luta de Ogum, que dido apresenta o consagrado
das materiais sofridas pelo representa o guerreiro na bailarino negro em habilido-
negro desde a escravidão, o mitologia yorubá. sa coreografia de candomblé.
levam a uma vivência subje- O filme de Bulbul é um A composição da cena da
tiva de compensação, na qual exemplo do ponto de vista dança na praia, com o baila-
os rituais sagrados o rino em pleno mar,
religa à força vital de obedecendo ao rit-
seus ancestrais e lhe mo dos tambores,
possibilita uma iden- sugere a africani-
tidade sociocultural. dade do protago-
A exemplo disso, nista, que repre-
Sartre (1968) obser- senta, provavel-
vava que a despeito mente, um orixá.
do trabalho escravo A emergência de
o negro produzia um cinema negro
cânticos, pois está pode ser constada,
mais perto da natu- sobretudo, no mo-
reza que favorece a vimento paulista
criação poética; o tra- Dogma Feijoada,
balhador branco, por nascido em 2001.
sua vez, está mais li- De acordo com
gado à aquisição da Rodrigues (2001),
técnica para domi- “esse grupo, co-
nar as questões prá- mandado por Je-
ticas do dia-a-dia (p. fferson De [ne-
91-3). Se por um lado gro], reúne cineas-
o branco tem uma tas que seguem
visão de mundo pau- uma cartilha (...)
tada pela relação das pela qual os filmes
mãos, em função da têm de ser dirigi-
questão material; o dos por realizado-
negro relaciona-se res negros; (...) e a
com o mundo a partir do sartreano sobre a poesia ne- temática tem de estar rela-
olhar, dada sua relação com gra, mas que pode ser visto cionada à realidade do ne-
a natureza. Essa maneira pe- também no cinema negro, gro brasileiro” (p. 141). “Gê-
culiar de ser do negro pode conforme apresentamos aci- neses 22”, primeiro filme de
ser vista como um elemento ma. Todas essas considera- Jefferson De, mostra uma
diferencial de sua arte quan- ções nos permitem indagar se interpretação negra da tra-
do comparada com outras vi- existe ou não uma sintaxe dição judaico-cristã e apre-
sões estéticas. que caracterizaria o olhar senta a angústia do negro
Esses elementos do uni- dos realizadores negros bra- que assimilou a cultura do
verso africano no negro bra- sileiros. No Laboratório de outro. Esse grupo expressa
sileiro também parecem estar Mídias Digitais da Escola de um nível de participação e
presentes na emergência do Comunicação e Artes da USP, complexidade sociais que
71
É possível considerar, as-
sim, que há no cinema negro
uma espécie de busca onto-
lógica por parte de seus rea-
lizadores e que seus filmes
são constituídos pela preocu-
pação de uma luta contra a
opressão e a afirmação da hu-
manidade do negro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de Curtas-Metragens de São Paulo
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do a luta do negro por sua ao longo da história. ___. A pedagogia afro da Associação Meninos
do Morumbi: entre a carnavalização e a
afirmação” (Prudente, 2002: Merleau-Ponty lembra que: cultura oficial. São Paulo, 2003. 293 p. Tese
(Doutorado em Cultura, Organização e
Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo.
“Para o cinema, como para a psicologia RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e
moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o o cinema. 3a. ed., Rio de Janeiro: Pallas.
2001.
ódio traduzem comportamentos. (...) Uma boa SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o
racismo. (Trad. J. Guinsburg) 5a. ed., São
parte da filosofia fenomenológica ou Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.
TASSARA, Marcelo. “Manifestações da cultura
existencial consiste na admiração dessa afro”. In: CATANI, A. M et al. (Orgs.). Negro,
inerência do eu ao mundo e ao próximo (...) educação e multiculturalismo. São Paulo:
Panorama do Saber, 2002, p. 80.
em fazer ver o elo entre o indivíduo e o VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás – deuses
iorubás na África e no Novo Mundo. 10ª ed.
universo, entre o indivíduo e os semelhantes São Paulo: Corrupio, 1981.
(...). Pois o cinema está particularmente apto
REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS
a tornar manifesta a união do espírito com o
ABOLIÇÃO (filme). Direção de Zózimo Bulbul.
corpo, do espírito com o mundo, e a Rio de Janeiro, 1988. 180min, color., 35mm.
expressão de um dentro do outro. Eis porque ALMA no olho (filme). Direção de Zózimo
Bulbul. Rio de Janeiro, 1976, 12min, p&b,
não é surpreendente que o crítico possa, a 35mm.
AMOR no Calhau (filme). Direção de Celso
propósito de uma fita, evocar a filosofia. (apud Prudente. Cabo Verde, 1992. 8min, color.,
Xavier, 1983: 116)] 35mm.
AXÉ – alma de um povo (filme). Direção de Celso
Prudente. Angola/Brasil, 1995. 15min, color.,
35mm.
GÊNESES 22 (filme). Direção de Jefferson De.
São Paulo, 2000. 5min, p&b, 16mm.
1 Esse filme “pretende o público internacional e acredita em possibilidades que não lhe LEÃO de sete cabeças (filme). Direção de
pertencem, mas apenas ao povo e à marcha, que é o negro”. Rocha, Diário de Noticias Glauber Rocha. Roma (Itália), 1970. 95min,
Salvador, 1960, 25-26/dezembro. color., 35 mm.
NOTAS
2 Conceito apresentado na Tese de Doutorado, A pedagogia afro da Associação Meninos do O RITO de Ismael Ivo (filme). Direção de Ari
Morumbi: entre a carnavalização e a cultura oficial (Prudente, 2003: 89). Cândido. São Paulo, 2004. 15min, color.,
3 De acordo com Eco (1987), o código cinematográfico diz respeito “à reprodutibilidade da 35mm.
POR QUE a Eritréia? (filme). Direção de Ari
realidade por meio de aparelhos cinematográficos” (p. 139).
Cândido Fernandes e Mohamed Charbagi.
4 Ainda segundo Eco, o código fílmico “codifica uma comunicação ao nível de determinadas
França/Tunísia, 1979. 16min, color., 16mm.
regras narrativas” (1987: 139).
72
Patrimônio
Imaterial
A democratização
da memória
Raul Lody*
P rofissional/cidadão, volta-
do há 33 anos para tra-
balho antropológico de
base afrodescendente,
sempre questionei as
hierarquias e os luga-
res patrimoniais aufe-
ridos na oficialidade
do Estado. Certamen-
te, sabe-se da não hi-
erarquização da cul-
tura, compreen-
dendo-se cada ex-
periência e mani-
festação em con-
textos e cenários
sociais próprios e
peculiares.
Assim, mo -
vimentos inter-
FOTO: Ronaldo Barroso
mento patrimonial
de artesãos, músicos,
* Raul Lody é museólogo, antropólogo, cozinheiros, festas,
autor dos livros Jóias de Axé (2001), O
Povo de Santo (1995), entre outros.
73
rituais religiosos e demais compreender o valor patri- exterior para discutir esse
manifestações tradicionais, monial. campo das representações
populares e étnicas, referen- Dessa feita foram aber- culturais e sociais dos po-
ciando as civilizações do tos quatro livros para os re- vos. Isso se deu nos anos 90,
mundo. gistros de manifestações do quando pude relatar expe-
O Brasil integra-se a es- patrimônio imaterial. O pri- riência em curso no Museu
ses movimentos internacio- meiro para os saberes, o se- da Imagem e do Som do Rio
nais e celebra, junto com a gundo para as celebrações, de Janeiro com o projeto A
Unesco, protocolos de sig- o terceiro para as formas de voz do povo-do-santo, reu-
nificados políticos em prol expressão e o quarto para os nindo pelas técnicas da his-
do conhecimento e da pre- lugares. tória oral, 18 depoimentos
servação do chamado patri- A inclusão e o registro de lideranças religiosas
mônio imaterial. de um bem num dos livros afrodescendentes do Rio e
Pelo Decreto nº 3551, de terão como critério a refe- do Grande Rio.
4 de agosto de 2000, o presi- rência da continuidade his- Outras experiências bra-
dente de República institui tórica do bem, destacando- sileiras foram relatadas, e
o Registro de Bens Culturais se sua relevância nacional escreveu-se assim a Carta de
de Natureza Imaterial que para a memória, a identida- Fortaleza, documento de
constituem patrimônio cul- de e a formação da socieda- que sou signatário e que ini-
tural brasileiro, cria o Pro- de nacional. cia, formalmente, um pro-
grama Nacional do Patrimô- Muitas ações preconiza- cesso em prol de uma polí-
nio Imaterial e dá outras ram a formalização desses tica que contemple as ex-
providências. critérios por parte do Esta- pressões do patrimônio ima-
Diferente do instituto do. Delas destaco importan- terial.
tradicional do tombamen- te seminário que ocorreu na Para desempenhar a po-
to, para o denominado pa- cidade de Fortaleza, no Ce- lítica oficial sobre patrimô-
trimônio material, o regis- ará, reunindo diferentes es- nio imaterial, o IPHAN as-
tro é outra e nova forma de pecialistas do Brasil e do sume seu papel histórico.
74
As propostas de regis- do Benim, África Ocidental. que ativa todos os gostos da
tro, bem como documenta- Bolinho de feijão (Phaseolus mesa baiana. Pimenta que
ção necessária para justificar angulares Wild); ajeum é ver- remete ao gosto primordial
e informar sobre a impor- bo que, em Iorubá, designa de uma África partilhada
tância do tema a ser regis- o ato de comer. Então, o que por todos nós brasileiros.
trado, são dirigidas ao as mulheres (que fazem e Acarajé, o bolo de fogo,
IPHAN, que encaminhará, vendem na rua o alimento) filho do dendê fervente, da
para análise e pronuncia- anunciam, acará, acará ajé, cor que lembra o fogo, sím-
mento, ao Conselho Con- acarajé, é o bolinho de co- bolo ancestral desse elemen-
sultivo do Patrimônio Cul- mer. Inicialmente, apenas to marcado pelo vermelho e
tural. frito e no formato de uma o marrom de Iansã, a moça
Todo cidadão, associa- colher de sopa. Mais tarde, da tarde, do céu avermelha-
ções, secretarias, fundações, amplia-se e vira quase pão do, e que é também Oyá, o
ONGs e demais membros da de hambúrguer, funcio - mesmo orixá, mulher guer-
sociedade civil podem apre- nando como verdadeiro reira, quente, sexualmente
sentar e sugerir temas para sanduíche. Um verdadeiro devotada a seu marido Xan-
serem registrados enquanto ‘sanduíche Nagô’, rece- gô, Alafim, rei de Oyó. As-
bens culturais de natureza bendo acréscimos, rechei- sim, os acarajés fazem o car-
imaterial. os vários, tais como vata- dápio predileto de Oyá e in-
Nesse âmbito, destaca- pá, um vatapá simplifica- tegram-se ao amalá, prato
se trabalho pioneiro e exem- do, o chamado ‘vatapá de de quiabos, dendê e pimen-
plar realizado pelo Centro acarajé’, caruru, camarão tas com que, acrescido de
Nacional de Cultura Popu- defumado e a salada. acarajés maiores e alonga-
lar do IPHAN, instituição Combinando-se todos dos, se agrada Xangô.
que acatou minha indicação os ‘adubos’, tem-se uma far- Ao elemento fogo rela-
para formular e fundamen- ta e deliciosa refeição. Sim! cionam-se o acarajé e, ex-
tar por documentos, segun- Pimenta, ‘molho Nagô’, da- tensivamente, o epó, o den-
do os critérios oficiais do quela pimenta antiga que é dê, alaranjado-avermelha-
INRC – Inventário Nacional cerimonialmente renovada do, cor fundamental para os
de Referências Culturais, o sobre a base de dendê cardápios dos orixás, que
pedido formal de registro do (Elaeis guineensis L.) e que identificam seus alimentos à
acarajé e da baiana de aca- faz ferver o paladar, a boca história da árvore sagrada
rajé. esquentar, o sabor aumen- dos Iorubá, que é o igi opé,
Os temas profunda- tar; pimenta que cheira e ou o sagrado dendezeiro.
mente integrados à vida co-
tidiana, à história e às tradi-
ções sociais, culturais e reli-
giosas da Bahia – especial-
mente do recôncavo, desta-
cando-se a cidade do São
Salvador – mobilizou dife-
rentes segmentos, como li-
deranças do candomblé, his-
toriadores, Associação de
Baianas de Acarajé e Min-
gau, entre outros.
O bolo de fogo
75
real, tanto, aliás, quanto a
Comida sagrada urbana, marcando o lugar
África idealizada.
e comida de rua da vida cotidiana, que se
O acarajé é comida tipi-
amplia no tempo especial da
camente feminina, como o
A paisagem urbana de festa.
churrasco é tipicamente
São Salvador é, sem dúvida, Sem dúvida o acarajé,
masculino. Há um sentido
pontuada por uma das mais comida boa de comer e, es-
sexualizado de mulher no
importantes referências de pecialmente, comida boa de
bolinho de feijão-fradinho,
personagem, tipo sócio-cul- representar e de significar,
cebola e sal frito no azeite-
tural e econômico que é a é um marco da permanên-
de-dendê. Tudo lembra e
‘baiana de acarajé’. cia do gosto africano, for-
traduz o mundo dos orixás
Desde os ‘ganhos’ no mando e co -for mando o
e antepassados e permane-
tempo do Brasil colônia, as paladar do brasileiro.
ce no mundo dos homens e
mulheres e suas vendas am- Faz-se a identidade pelo
no prazer diário de comer o
bulantes pontuam a cidade, que se come, como se come
acarajé.
fazendo ‘quitandas’ ¯ co- e pela relação que há entre
mércio de frutas, doces de a comida e os múltiplos pa-
O Registro
coco, bolos, mingaus, pa- péis sociais dos indivíduos.
nos-da-costa e outros pro- Marca gênero, hierar-
Reunida a documenta-
dutos da costa africana, cuja quia, atividade profissional.
ção necessária e encaminha-
clientela, na Bahia, sempre Estabelece compromissos
da ao Iphan, que formatou
buscou e busca referenciar- com os rituais do dia-a-dia
o processo, então analisado
se e se situar nessa relação e aqueles das festas. Comer
pelo Conselho Consultivo
de identidades entre a Áfri- o acarajé, certamente, é
do Patrimônio Cultural, re-
ca e o Brasil. mais do que comer um bo-
sulta em aprovação pública
A história da cidade – linho de feijão temperado e
do pedido por ocasião de
especialmente o chamado frito no dendê; é comer e
reunião do referido Conse-
centro histórico, Pelourinho aproximar-se fisicamente do
lho no dia primeiro de de-
e áreas próximas, as praças, trajeto e da formação da
zembro de 2004, no Museu
esquinas e ruas da cidade vida brasileira e, pela boca,
de Arte Sacra da Bahia, Sal-
baixa ou os locais consagra- pelo olfato e pelo
vador.
dos, como Igreja do Bonfim, olhar, imbuir-se
Assim, o ofício da baia-
Elevador Lacerda, entre tan- do quanto é
na-de-acarajé integra o
tos outros – tem na baiana nossa e próxi-
elenco de bens patrimoni-
de acarajé forte sinalização ma essa África
ais do Brasil.
76
ra de silenciados aposta na força dos não-di-
tos, dos espaços em branco (ou em preto) da
página. Através de textos ficcionais, mais uma
vez, memórias fragmentadas exigem um es-
paço para que sejam recompostas. Talvez daí
venha a presença constante, perpassando pe-
los contos, da morte, da violência e de boni-
tos corpos negros.
As memórias e imagens apagadas, presen-
tes, por exemplo, no conto “A Bailarina” de
Lande Onawale, quando a linda moça negra
tem seu rosto escondido pela tarja do produ-
to anunciado na TV, transformam-se em sím-
bolo de palavras despedaçadas por séculos de
violência entranhada em famílias negras. Essa
fragmentação alcança plenitude de potência
no “pelo amor de De...” final do texto “Meu
Deus, cadê esse menino” de Kátia Santos. Ali-
ás, a dinâmica cinematográfica dada ao desen-
rolar dessa narrativa puxa o leitor pelo pé, fa-
zendo com que o desespero daquela mãe se con-
verta na representação de uma cólera coletiva
de humanidades violentadas desde as suas en-
tranhas por, pelo menos, cinco séculos.
As religiões afro-brasileiras, também pos-
tas em silêncio na nossa perversa trajetória
A COR
DA TERNURA Ione Jovino1
79
Carlos Lopes
81
Carlos Lopes
lismo, uma criação ocidental
segundo Edward Said. Claro
que os protagonistas princi-
pais do pan-africanismo da
época sequer conheciam o
continente de que falavam e
que classificavam como negro
(o que também era um mito
que acabou por pegar).
82
Carlos Lopes
rico e que teve dificuldades sujeitos os demais. Depois das aparelhos jurídicos, políticos e
em ser aceito pela intelectua- independências, a maior par- administrativos coloniais que
lidade do continente. Havia te dos novos poderes radica- passaram a ser controlados por
até uma certa competição en- lizaram esta divisão e, ao in- dirigentes africanos. Até mesmo
tre os promotores da negritu- vés de alargarem direitos ci- a imposição mecânica de insti-
de e os do pan-africanismo. dadãos, quiseram justificar tutos da democracia ocidental,
Mas na realidade eles tinham seu autoritarismo com a des- sem qualquer consonância com
a mesma fundamentação filo- culpa de que se tinha de pre- as realidades africanas, seria
sófica. servar a ancestralidade africa- também um tipo de violência.
na dos poderes tradicionais, Hoje, como construir uma de-
Revista Palmares - Como enten- ou seja, consuetudinários. As- mocracia africana?
der a incapacidade dos dirigentes sim se continuou a dualizar
africanos em transformar o Pan- as legitimações no terreno po- Essa é uma continuação
africanismo, adotado como ideo- lítico: para dentro uma e para do que dizia anteriormente.
logia dos Estados, em um movi- fora outra. Ou seja, foram criadas condi-
mento social de massas? ções para que a África se
Revista Palmares - Muitos transformasse em terreno de
O pan-africanismo nun- afirmaram que a cristalização de experimentação política. O
ca foi muito bem entendido autoritarismos nos estados pós- fato de os regimes autoritári-
pelas massas. Os dirigentes coloniais deveu-se em grande os terem falhado o desenvol-
africanos, desde cedo, fize- parte à manutenção de todos os vimento permitiu que se des-
ram uma distinção intuitiva sem lições sobre “o como fa-
entre a justificação e legitima- zer”; e daí a criar uma demo-
ção para fora e a que era ne- cracia de aparência vai um
cessária para manter o seu passo. Os dirigentes autoritá-
poder para dentro. Os pou- rios africanos perceberam que
cos dirigentes, que levaram tinham de mudar de tática e
até as últimas conseqüências discurso e hoje em dia vesti-
os seus desejos de integração ram as aparências democráti-
pan-africanos, sofreram uma cas e passaram a não perder
derrota política ou foram eleições; e as transformar em
afastados violentamente. Ca- mecanismos de legitimação
sos como os de Modibo Keita, dos seus comportamentos não
Kwame Nkrumah, Patrice democráticos.
Lumumba ou Amílcar Cabral
confirmam essa visão pessi- Revista Palmares - Como os
mista. Mas a verdade é que a povos da diáspora africana de-
idéia nunca morreu. Só o pre- vem rever as suas relações com
sidente Kadafi já tentou mais os povos do continente africano
de 10 uniões com outros Es- de modo a contribuir com o pro-
tados! cesso de desenvolvimento e de
Existem explicações teóri- construção da democracia afri-
cas para essa situação. Segun- cana?
do o autor Mahmood Mam-
dani, o colonialismo acabou Os africanos da diás- Em primeiro lugar ten-
aplicando duas legislações pora precisam entender tando conhecer a África. Vai
nos territórios que adminis- ser difícil ter uma relação sã e
trava: uma lei de matriz eu- a complexidade da enérgica com os níveis de des-
ropéia que oferecia direitos ci- África contemporânea, conhecimento que atualmen-
dadãos aos brancos e algumas nas suas várias mani- te prevalecem. Os africanos
elites cooptadas; e outra legis- da diáspora precisam enten-
festações sociológicas,
lação de caráter consuetudi- der a complexidade da África
nário que transformava em culturais, ou estéticas. contemporânea, nas suas vá-
83
Carlos Lopes
rias manifestações sociológi- O que eu digo é que se de- Revista Palmares - Quanto ao
cas, culturais ou estéticas. vem encontrar fatores novos pragmatismo, como poderíamos
Existe uma necessidade imen- para fortalecer a relação. Fi- redefinir e experienciar os con-
sa de estudo e relacionamen- car no mito, ainda por cima, ceitos de intercâmbio e de coo-
to. O mesmo é verdade em baseado no desconhecimen- peração?
sentido contrário. Os africa- to mútuo, não ajuda. A ideo-
nos do continente têm de logia do pan-africanismo está Acho importante que as
aceitar que as diásporas têm ultrapassada. Tem de se en- bases da cooperação tenham
a outra metade da memória, contrar outras âncoras que a ver com a necessidade de
como gosta de sublinhar o sirvam para aumentar a auto- também fortalecer a auto-
meu amigo historiador Elikia estima dos dois lados, valori- estima do povo brasileiro
Mbokolo. zar soluções pragmáticas, mas que tem mais sangue de ori-
Em segundo lugar é pre- também aceitar um papel im- gem africana do que euro-
ciso reconhecer que o que vai portante para a solidariedade. péia. O reconhecimento da
fortalecer a relação é o prag- contribuição histórica afri-
matismo. A diáspora indiana Revista Palmares - Então, o cana no terreno da econo-
ou chinesa tem uma relação que seria o real? mia levaria a um outro olhar
forte com o seu país porque da relação com a África. Não
faz negocio! Porque isso não Pode começar, por exem- se pode nem ir para a África
se pode imaginar em relação plo, por se introduzir o ensi- buscar apenas os fundamen-
a diáspora africana? no de História de África em tos do candomblé, nem só
todos os níveis de ensino no pensar na exploração do pe-
Revista Palmares - Você tróleo. O ideal é com-
fala isso para a esmagadora binar solidariedade e
maioria de africanos que sa- interesse pragmático
íram do continente como es- com a verdadeira ra-
cravos e estão hoje na base zão principal: o rela-
da pirâmide sócio-econômi- cionamento com as
ca nos seus países de desti- origens do Brasil mo-
no? derno.
Revista Palmares - Quando país, conforme prevê o pri- Sem dúvida. Os africanos
você fala que o sentimento de meiro Decreto assinado pelo das duas metades do Atlânti-
pertencimento entre os descen- atual presidente. Também se co têm um futuro importan-
dentes de africanos na diáspora podem fazer vôos para a Áfri- te pela frente. A geração dos
é muito fraco e ineficaz, signifi- ca. Os poucos que hoje exis- mais jovens vai viver o dia em
ca que a própria ideologia do tem são feitos por companhi- que haverá mais africanos que
pan-africanismo, ou idéias como as aéreas de Cabo Verde, An- chineses no mundo. É uma
a negritude, descolaram-se da gola e África do Sul. Do Bra- responsabilidade e uma opor-
África? sil, nada! tunidade!
84
LECI BRANDÃO
Cantora, compositora e conselheira do
Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial
85
BEATRIZ MOREIRA COSTA
Mãe Beata de Iemonjá. Yalorixá do Terreiro
Ilê Omi Oju Arô, em Miguel Couto, Nova Iguaçu/RJ
Eu estou com 74 anos e para enxugar as lágrimas tes de julgar procurar estu-
tudo que consegui eu agra- dos que choram e dividir dar e vivenciar esta religião
deço aos meus ancestrais. seu alimento para os que que trás para todos aqueles
Pois é através de minha fé e tem fome. Orixá é isto. que querem estar bem com
da força que eles me dão Às vezes eu paro para o sagrado e com a natureza,
que eu sigo em frente, res- pensar: que transformação unir os Orixás, pois eles só
peitando o espaço de outras o Orixá me causa! Transfor- nos dão e nada cobram.
pessoas para ser também mação esta de dignidade e Termino este texto com
respeitada dentro de minha harmonia em minha vida e um verso para agradar a mu-
religião, que é a força e o ar em tudo que me envolvi. lher que mais ama e que é
que eu respiro. Digo isso, Me lembro de uma grande uma eterna namorada da na-
principalmente, em respei- antropóloga, Monique Au- tureza, a lua, assim como os
to ao cargo que a minha Ia- grá quando ela fala no du- Orixás.
lorixá Olga de Alaketo me plo e na metamorfose. Que ‘Um dia olhei para o céu
entregou, meu Oiê (cargo linda metamorfose que pas- e vi a lua turva e achei feia.
de Ialorixá). Nunca me dei- samos nos entregando ao Depois, eu mesma pen-
xei levar pela vaidade e de- Orixá. Sou feliz porque per- sei comigo mesma: quão in-
samor para com meus ir- tenço a este mundo que é grata eu sou!
mãos de religião e para as dominado pela natureza, Ela ama e nada cobra.
pessoas que a mim chegam, pelo amor e pela tolerância. Sempre clara e límpida,
seja para algum conselho ou Procuro dar a lição de passando a sua luz, assim
algum problema. compreensão. Ensinar que como os Orixás passam para
Pai e Mãe de Santo tem você somente é compreen- todos nós que acreditamos ne-
que estar abertos para todos dido quando compreende o les, o amor, a dignidade, a hu-
os momentos que sejam ne- outro. Aqui fica algo que mildade e a sapiência, para
cessários. Ser médico, psi- tento passar para todos nós que somos sua eterna
cólogo ou juiz, e o mais sa- aqueles que vêem as religi- morada’
grado de tudo: ser mãe e ões afro-brasileiras por um
amiga. Dar a barra da saia ângulo que descrimina: an- Mãe Beata de Iemonjá.
86
RAMON RODRIGUES
Sindicalista, diretor do Bloco Axé e Capitão de Moçambique
87
rique em Monte Alegre,Mario les que ajudaram a construir çambiqueiro. Muito obrigado
Afonso (Marão) e Leonardo a nação, mas foram deixadas a Fundação Cultural Palma-
Marciano (Ituiutaba). a margem da miséria. res/MinC. Deixo música da
Já dentro das políticas Despeço-me de todo mo- resistência do negro em Uber-
afirmativas realizamos o pri- vimento negro, conclamando lândia contra discriminação.
meiro seminário da mulher para estarmos em Brasília no Qualquer contato pode ser
no congado, trabalhando, di- dia 16/11/05 para marcha feito para o e-mail
retamente, com a jovem que Zumbi + 10, pois é o ato mais ramonegrolindo@Yahoo.com.br.
tem função dentro dos gru- importante das entidades ci-
pos como bandeireiras e tem vis depois da conferência
idade de 7 até 18 anos tratan- mundial na África do sul, Querer não é poder
do, principalmente, a questão mas também deixo o convite Respeite o meu passado
da gravidez precoce. para que vocês venham co- Pois no meu congado
Também estaremos nos nhecer a África que sobrevi- Não pode mexer
reunindo com o reitor da ve, dentro do Brasil, a festa
UNIVERSIDADE FEDERAL em louvor a Nossa Senhora
DE UBERLÂNDIA para en- do Rosário e São Benedito Tive um sonho bonito
caminhar discursos sobre a que será realizada nos dias 9 Com São Benedito, mandou avi-
política de cotas, pois é o pa- e 10 de Outubro em Uberlân- sar.
pel da nossa irmandade pres- dia, tão conhecida como ter- Que a festa do congado
sionar o poder publico para ra de “Grande Otelo”, que Não é palhaçada pra ninguém
que possa oportunizar àque- também foi congadeiro e mo- mudar.
88
1ª CONAPIR
Reprodução/CRIAR BRASIL/FCP
Usar o rádio como meio de pro-
moção e divulgação da cultura afro-
brasileira, difundir novos conceitos
e conhecimentos sobre a contribui-
ção dos afro-brasileiros na formação
cultural do Brasil. Essa é a função do
Projeto Rádio Palmares, realizado
numa parceria firmada entre a Fun-
dação Cultural Palmares/MinC e as
ONGs Criar Brasil, Centro de Im-
prensa, Assessoria e Rádio e Afirma
Comunicação e Pesquisa.
O primeiro CD da Rádio Palma-
res foi lançado em novembro do ano
passado, composto por dois progra- Equipe Criar Brasil (da esquerda para a direita: Rosângela Fernandes, Valéria Mendonça, Alex Carlos, Márcia
Vales, Adriana Maria, Conceição Doce e Douglas Vieira (sentado com fones de ouvido) - a cultura negra brasileira
mas com aproximadamente 15 minu- em rede para 400 emissoras brasileiras
tos cada um e cinco spots para rádio.
O segundo CD da série é composto de 15 progra- bém realizam entrevistas com os ouvintes acer-
mas e o terceiro CD é composto por dois progra- ca dos temas. "As rádios já esperavam a algum
mas e cinco spots.Temas como "Quilombos, tempo por um material como este, que não tem
Juventude, O Negro na Mídia e Saúde Física e espaço na mídia convencional. A troca de experi-
Emocional da População Negra" são alguns dos ências é muito útil tanto para a Criar Brasil quan-
assuntos abordados nas produções. Uma rede de to para as rádios que estão divulgando o traba-
400 emissoras, distribuídas em todo o território lho", afirma Rosângela.
nacional, foi formada para veicular os programas. Para a coordenadora do selo editorial Afir-
Além desta rede, uma impor- ma, Fernanda Felisberto, a realização do Projeto
tante parceria firmada entre a Rádio Palmares oportunizou uma série de des-
Fundação Cultural Palmares e dobramentos. Entre eles, Fernanda enfatiza que
a Radiobrás, empresa oficial de os programas estão sendo utilizados como ma-
comunicação do governo fede- terial didático em diversos segmentos educati-
ral, assegura a veiculação de vos. Segundo Fernanda, "as emissoras públicas
dois programas e cinco spots têm o papel de trazer ao público em geral, temas
para rádio, produzidos especi- que não têm espaço nas emissoras convencio-
almente para ressaltar o Ano nais. Se há a possibilidade de aliar um novo tipo
Nacional de Promoção da de programação com conteúdo social, melhor
Igualdade Racial (2005) em ainda", disse a coordenadora.
3.876 emissoras de rádio de todo Os programas da série Rádio Palmares tam-
o Brasil. Os acessos a estes bém estão disponíveis para acesso na página da
spots são disponíveis através Fundação Cultural Palmares na Internet, pelo en-
do serviço Radioagência, dereço eletrônico www.palmares.gov.br.
montado pela Radiobrás
SERVIÇO:
(www.radiobras.gov.br).
A jornalista Rosângela Criar Brasil, Centro de Imprensa, Assessoria e Rádio: Rua
Fernandes, coordenadora da Cri- Teotônio Regadas, 26, sala 403, Lapa, Rio de Janeiro, RJ.
ar Brasil, aponta que as Fones: 0.xx.21. 2242.8671/ 2508.5204.
E-mail: criar@criarbrasil.org.br
avaliações feitas pelas rádios que
Afirma, Comunicação e Pesquisa: Rua Miguel Couto, 131/
divulgam o trabalho é muito boa. 12º andar, Centro, Rio de Janeiro, RJ. Fone(s): 0.xx.21.
Além de servir como ponto de 2223.0362/ 2203.0035. Site: www.afirma.inf.br. E-mail:
partida para debates e afirma@afirma.org.br
entrevistas locais, as rádios tam-
90
PRÊMIO PALMARES DE COMUNICAÇÃO:
INEDITISMO PARA A MÍDIA ÉTNICA
A Fundação nibilizados para uso O prêmio compreendeu
Cultural Palmares em sala-de-aula, duas modalidades em mídia:
(FCP) e a Funda- como ferramenta rádio e vídeo. Foram selecio-
ção Universitária promotora para a nados dez programas radio-
de Brasília (FU- aplicação da Lei fônicos e sete vídeo-docu-
BRA) promove- 10.639, de 9 de janei- mentários, de natureza histó-
ram o Prêmio Pal- ro de 2003, a qual ga- rica e cultural. A comissão jul-
mares de Comuni- rante o ensino da his- gadora foi composta por pro-
cação. O prêmio tória e da cultura fissionais da área de rádio e
foi lançado, ofici- afro-brasileira nos televisão e especialistas em
almente, no dia 16 currículos escolares. relações raciais e cultura afro-
de agosto de 2004, O objetivo do con- brasileira. A comissão organi-
e a premiação dos curso, realizado pela zadora do prêmio criou duas
trabalhos selecio- primeira vez pela ins- bancas para a avaliação dos
nados será reali- tituição pública fede- trabalhos de vídeo e uma para
zada no dia 20 de ral se baseou em os trabalhos radiofônicos. A
setembro, em ceri- apoiar a iniciativa de FUBRA e a FCP contribuem,
mônia realizada na cidade do produção de audiovisuais pela assim, para a promoção, da
Rio de Janeiro, e os trabalhos, difusão da arte, a fim de forta- equidade e diversidade de
em breve, estarão sendo veicu- lecer o tratamento da temática raça, gênero e faixa etária nos
lados em mostras universitári- étnico- racial nos meios de co- meios de comunicação de
as, na mídia e também dispo- municação. massa no Brasil.
Durante a promoção da 1ª meu Evaristo, Patrícia Costa, da sociedade. Aos dez anos de
Conferência Nacional de Pro- Nívia Helen, Sarito Rodrigues, idade foi acusado de roubo e in-
moção da Igualdade Racial, os Deoclides Gouvêa, Jozé Araú- ternado num reformatório. A
brasilienses assistiram à histó- jo, Audri da Anunciação, Linco- partir de 1930 levou uma vida
rica montagem de Os Negros, ln Oliveira e Jorge Lucas. O de vadiagem, entregue a ativi-
um dos mais importantes palco, além de todas as estre- dades delituosas. Na prisão,
textos para teatro do francês las, teve cenografia, figurino e condenado por roubo, escreveu
Jean Genet, sob direção do iluminação especiais. o romance Nossa Senhora das Flo-
diretor Luiz Pilar. A peça foi en- “O mercado de trabalho res (1944), cuja qualidade cha-
cenada durante dois finais de para o negro já não é fácil, mou a atenção de escritores
semana no teatro do CCBB imagine então a situação dos como Jean Cocteau e Jean-Paul
(Centro Cultural Banco do Bra- que escolhem o caminho do Sartre. A polêmica sobre Genet
sil). Veio completa do Rio de mundo das artes?” pergunta aumentou com o romance Que-
Janeiro, onde estreou em abril Pilar. Para ele, as condições de relle (1947), que Fassbinder
e teve 60 apresentações. Pri- trabalho nesta área sofreram transformou em filme e com a
meira montagem brasileira, já deterioração nos últimos autobiografia Diário de um La-
faz parte da história do teatro anos por conta de um discur- drão (1949), cuja escabrosa fran-
nacional. so de responsabilidade social queza - o autor se proclamava
Para o diretor, “foi muito e politicamente correto feito abertamente homossexual -
importante ter apresentado a pelos produtores. causou escândalo. Depois de
obra durante a Conferência por “Agora até os papéis que escrever alguns romances e
conta de atingirmos um públi- eram ocupados pelos artistas peças teatrais curtas que mos-
co bem mais diversificado, vin- negros já não são mais garan- travam a influência do exis-
do de todo o Brasil e tidos”, explica. tencialismo de Sartre, a peça
abordarmos a questão da A Peça: escrita em 1958, Os As Criadas (1947) revelou em
igualdade racial por meio do Negros apresenta uma estrutura Genet o dramaturgo de pro-
teatro”, disse Pilar, um dos úni- pouco convencional: não se fundidade intelectual, que dis-
cos diretores negros que con- trata de um texto com começo, pensava aos problemas de
seguiram espaço para atuar na meio e fim. Os 13 atores negros identidade no mundo moder-
grande mídia. dividem-se em dois grupos: os no um tratamento precursor
Segundo ele, muita gente que aparecem como eles mes- do teatro do absurdo.
fora do eixo Rio-São Paulo teve mos e aqueles que aparecem
a oportunidade de conhecer o mascarados para representar
SAIBA MAIS
trabalho. A peça volta a ser en- homens brancos. Para realçar
cenada em setembro na aber- essa atmosfera peculiar, foram Peça: Os Negros
tura do Festival de Teatro de concebidos toda a cenografia e Direção: Luiz Antonio Pilar
Porto Alegre. Em outubro, se- os figurinos. Cenário: Doris Rollemberg
gue para uma temporada em Jean Genet: Nascido em 19 Figurino: Nello Marrese
São Paulo. de dezembro de 1910, em Paris, Iluminação: Daniela Sanches
Formado por um estelar Jean Genet foi abandonado Trilha sonora: Gabriel Moura
grupo de atores negros, o elen- pela mãe e adotado por uma fa- Programação visual: Maria Julia Ferreira
co é composto por Sergio Me- mília camponesa. O futuro es- Produção executiva: Celso Lemos
nezes, Iléa Ferraz, Maurício critor conheceu desde a infân- Direção de produção: Norma Thiré
Gonçalves, Maria Ceiça, Ro- cia os mais sórdidos aspectos
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EXPOSIÇÃO
ABDIAS NASCIMENTO
90 ANOS – MEMÓRIA VIVA
Arquivo Nacional – Antiga Casa da Moeda Rio de Janeiro,
15 de novembro de 2004 a 1 de maio de 2005
Por Elisa Larkin Nascimento*
tar de confraterniza-
ção, uma mesa em
sessão plenária do
VII Congresso da As-
sociação Internacio-
nal de Estudos Bra-
sileiros (BRASA) e
uma mini-mostra no
Solar Grandjean de
Montigny, espaço
cultural da PUC-Rio.
Para coroar as
comemorações, o
IPEAFRO – Instituto
de Pesquisas e Estu-
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO dos Afro-Brasileiros
Foto de Lula Rodrigues
ABDIAS NASCIMENTO, Xangô Rodrigues Alves (Middletown, – realizou uma ex-
1970). Acrílico sobre tela, 102 x 154 cm.
posição e uma série
de eventos com o
A vida de Abdias Nasci- patrocínio da Petro-
mento se mescla com a pró- bras, em parceria
pria história brasileira no que com a PUC-Rio e
diz respeito à cultura e ances- com apoio da SEP-
tralidade africana e à luta por PIR, Fundação Cul-
políticas públicas de promo- tural Palmares, Mul-
ção da igualdade racial. Em tirio e Consulado
14 de março de 2004 ele com- dos Estados Unidos.
pletou 90 anos, e o movimen- O Colóquio In-
to social afro-brasileiro come- ternacional reuniu
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
morou a data com um ato estudiosos e pesqui- Foto de Vantoen Pereira, Design Gráfico de Luiz Carlos Gá.
Banner da exposição Abdias Nascimento 90 Anos - Memória Viva, Arquivo Nacional, 15 de
ecumênico realizado na tra- sadores vindos de novembro de 2004 a 1 de maio de 2005.
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Contaram com a colabora-
ção de artistas como Nélson
Rodrigues, Santa Rosa, En-
rico Bianco, José Medeiros e
muitos outros.
O Teatro Experimental
do Negro visava reabilitar e
valorizar a identidade, he-
rança cultural e dignidade
humana do afro-descenden-
te. Unia a atuação política à
afirmação da cultura de ori-
gem africana, representando ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
Foto de Ierê Ferreira
um avanço na luta contra o Ubiratan Castro Araújo, Abdias e Matilde Ribeiro nos 90 anos de Abdias Nascimento, 14 de março de 2004.
racismo no século vinte.
Oferecia cursos de alfabetiza- nindo a discriminação racial ceito de uma arte negra con-
ção e cultura geral e organi- como crime de lesa-pátria. tribuía de maneira positiva
zava eventos como o 1º Con- Quem visitou a exposi- para a construção de uma
gresso do Negro Brasileiro ção também pôde conhecer arte brasileira. O Museu de
(1950). Criou o Comitê De- um dos mais interessantes Arte Negra não só coleciona-
mocrático Afro-Brasileiro em projetos do Teatro Experi- va obras e incentivava o de-
1945. Advogava direitos tra- mental do Negro: o Museu de senvolvimento do talento de
balhistas para a empregada Arte Negra - MAN. Embora artistas afro-brasileiros, como
doméstica e políticas públicas nunca tenha conseguido também promovia eventos e
afirmativas para a população uma sede, sob a curadoria de provocava debates. É o caso
afro-descendente. Patroci- Abdias o MAN trabalhava de do Concurso de Artes Plásti-
nou e organizou em 1945-46 forma pioneira e bem didáti- cas sobre o tema do Cristo
a Convenção Nacional do ca a idéia de uma arte basea- Negro, promovido pelo TEN
Negro, que propôs à Assem- da em valores culturais afri- em 1955, na ocasião do 36º
bléia Nacional Constituinte canos e afro-brasileiros res- Congresso Eucarístico Inter-
de 1946 a criação de políticas peitados e levados a sério. nacional, em que a Igreja ca-
públicas para a população Com a colaboração de alguns tólica do mundo todo se con-
afro-descendente e um dis- dos mais renomados artistas gregava no Rio de Janeiro. A
positivo constitucional defi- da época, mostrou que o con- imprensa e os setores conser-
vadores da Igreja condena-
ram a iniciativa como “aná-
tema” e “uma agressão à Re-
ligião e às Artes”, nas palavras
de um editorial do Jornal do
Brasil que convocava as au-
toridades eclesiásticas a proi-
bi-la e reprimi-la. Numa sala,
dedicada ao tema do Cristo
Negro, estão expostas várias
obras que concorreram nes-
se concurso e outras, mais
recentes, que mostram como
continua atual e relevante
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
Foto de Ierê Ferreira esse tema. Essas obras fazem
Jovens da Educafro e PVNC exigem cotas nas universidades públicas antes de cumprimentar Abdias Nascimento no ato
ecumênico pelos seus 90 anos. Rio de Janeiro, 14 de março de 1914. parte de um conjunto de mais
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líticas públicas de ocasião de apresentar ao pú-
igualdade racial. blico do Rio de Janeiro uma
A exposição ocu- parte importante da memó-
pou todo o espaço ria da população afrodescen-
cultural da Casa dente no país. Agora o IPEA-
da Moeda – tanto FRO pretende levar a expo-
os salões nobres sição para outras cidades,
como os extensos aprofundando e desenvol-
cofres e espaços de vendo o trabalho didático e
reserva - somando de capacitação de professo-
mais de 850 m2 em res a partir do conteúdo apre-
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO que estavam à sentado.
Foto de Mauro Domingues
Abdias e crianças de escola em visita à exposição Abdias Nascimento 90 Anos - Memória
mostra mais de 417 O material, produzido
Viva, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 25 de novembro peças incluindo para a exposição, constitui
200 obras de arte, uma rica fonte de informa-
de 100 obras de arte da cole- 90 painéis fotográficos com ções para esse trabalho. O
ção do MAN, todas doadas textos, centenas de docu- mini-catálogo foi comple-
em apoio ao projeto, de artis- mentos de acervo (progra- mentado por quatro vídeos
tas como Manabu Mabe, Ivan mas, folhetos informativos, documentários e por uma
Serpa, Bonadei, Ana Letícia, cartas, medalhas e prêmios). série de textos e outras fon-
Anna Bella Geiger, Inimá de O conteúdo tinha quatro en- tes de informações colocados
Paula, Darel, Iberê Camargo, foques principais: à disposição do público num
Bess, Aldemir Martins, Au- 1. a obra criativa pictóri- cantinho de leitura, onde as
gusto Rodrigues, Enrico Bi- ca de Abdias Nasci- pessoas podiam ler e folhear
anco, e outros. mento (54 obras) no à vontade. O conjunto forma
O visitante também teve contexto das referênci- um precioso elenco de subsí-
a oportunidade de conhecer as culturais e civiliza- dios para alunos, pesquisa-
vários aspectos internacio- tórias africanas que ela dores e professores.
nais da questão racial, como explora; Já foi grande a contribui-
por exemplo o movimento da 2. o acervo de obras ar- ção dessa exposição para a im-
Negritude, protagonizado por tísticas do projeto do plementação dos objetivos da
africanos e antilhanos como Museu de Arte Negra Lei 10.639 no Rio de Janeiro.
Aimé Césaire, Leon Damas e (146 obras, entre escul- Certamente essa contribuição
Léopold Senghor. O Pan-Afri- turas, pinturas, dese- será multiplicada em Brasília,
canismo é outro movimento nhos e gravuras); Salvador, São Paulo, Belo Ho-
do mundo africano em que 3. a obra cênica artística rizonte e Porto Alegre.
Abdias Nascimento partici- e social do Teatro Ex-
pou durante o período de seu perimental do Negro
exílio. Depois de sua volta ao (1944-68);
Brasil, protagonizou a funda- 4. a produção intelectu-
ção e desenvolvimento do al, as propostas de po-
Memorial Zumbi, militou no líticas públicas, e a atu-
Partido Democrático Traba- ação internacional de
lhista de Leonel Brizola. Foi Abdias Nascimento e
deputado federal e senador, das organizações que
mantendo estreita ligação ele criou, apresentadas
com o movimento social afro- em vídeos, fotos e pai-
brasileiro, e dedicou seus néis fotográficos com
ACERVO ABDIAS NASCIMENTO
mandatos à proposta de cri- textos explicativos. Foto de Ierê Ferreira
Frei David acompanha jovens da Educafro na saudação a Abdias
ação e implementação de po- Dessa forma, tivemos Nascimento, 14 de março de 2004.
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