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22 de novembro a 2 de dezembro • Belo Horizonte • Minas Gerais • Brasil

Este festival é dedicado ao


professor Pierre Sanchis,
Marielle Franco e
Mestre Moa
sumário
summary

11 Aquilombar-se sempre
Antônio Bispo

13 Sessão de abertura • Opening films

Ebó Ejé - Cinema Brasileiro e Afro-religiões

17 Brazilian Cinema and Afro-brazilian Religions


Percursos de uma curadoria
Ewerton Belico e Junia Torres

Mostra Contemporânea Brasileira • Brazilian Contemporary Showcase


37 Das urgências
Daniel Ribeiro, Layla Braz, Renata Otto e Tatiana Carvalho Costa

Mostra Contemporânea Internacional • International Contemporary Showcase


53 Para reformular resistências • To redevelop resistances
Carla Italiano, Luisa Lanna e Luís Fernando Moura

77 Sessões especiais/Lançamento • Special screenings/ Releases

83 Seminário • Seminar
Ebó Ejé - Cinema Brasileiro e Afro-religiões e VII Colóquio Cinema, Estética e Política

95 Ensaios e entrevistas • Essays and interviews

Minha vocação é para a liberdade


Entrevista com Makota Valdina por Amaranta Cesar 97

Dez gritos sobre a campanha contra as religiões de matriz africana


Marcio Goldman 104

Tradição, criatividade e resistência em territórios negros


Marcio Goldman 106

Orí (1989)
Beatriz Nascimento 112
Abá (1992)
Raquel Gerber 112

Porque “Ylê Xoroquê”?


Raquel Gerber 113
Brasil – o continente indecifrável de terras ocultas
José Sette 114

Cinema e descolonização
Ismail Xavier 116

Viver e morrer, o último quilombo


sobre Egungun (1982), de Carlos Brajsblat
Orlando Senna 125

Atlântico Negro -na rota dos orixás


Luis Nicolau Parés 130

Uma conversa sobre Santo Forte


Cláudia Mesquita
Ruben Caixeta de Queiroz 137

No rastro do outro: o sagrado e o cinematográfico


César Guimarães 144

“Tempo é o vento, vento é tempo”: montagem cósmica em Abá


André Brasil 149

Cinema e negritude: restituições de territórios e invenções de pertencimentos


sobre NoirBLUE: deslocamentos de uma dança, de Ana Pi, Nome de Batismo: Alice, de Tila Chitunda,
Maré, de Amaranta Cesar, e Galinhas no Porto, de Caioz e Luís Henrique Leal
Tatiana Carvalho Costa
Layla Braz 159

Bimi, Shü Ikaya


sobre filme de Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube
Daniel Ribeiro Duarte 165

Furna dos negros: o lar daqueles que historicamente resistem


sobre filme de Wladymir Lima
Leonardo Amaral 168

Uma existência que não consta nos autos


sobre Auto de Resistência (2018), de Natasha Neri e Lula Carvalho
Pablo Moreno Fernandes Viana 171
Olhar a rua, observar pessoas, inventar lugares
sobre Praça do peixe (2018), de Bernard Machado, Florence Defawes, Marina Sandim e Ralph Antunes
Maria Ines Dieuzeide 174

Inaudito: a água-viva de Lanny Gordin


sobre filme de Gregorio Gananian
Pedro Aspahan 176

Quando vaga-lumes entraram em cena


sobre Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados (2018), de Aiano Bemfica, Camila Bastos,
Cristiano Araújo, Pedro Maia de Brito
Vinícius Andrade 179

Pela continuidade da escuta


sobre Bloqueio (2018), de Victoria Alvarez e Quentin Delaroche
Hannah Serrat 182

Do que não é espelho: a relação etnográfica em Terremoto Santo


sobre filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca
Roberto Romero 184

O múltiplo da fotografia
sobre Travessia (2017), de Safira Moreira, e Inconfissões (2017), de Ana Galizia
Glaura Cardoso Vale 188

Caminhar entre mundos


sobre Tekoha Ha’e Tetã (2018), de Alberto Alvares
Julia Bernstein 192

Corpos desviantes e fragmentados:


notas sobre Sair do armário, de Marina Pontes, CorpoStyleDanceMachine, de Ulisses Arthur, e Escape,
de Vinicius Sassine, Mariana Paschoal, Julien Mérienne e Maria Chatz
Larissa Muniz
Marcos Alves 195

Parquelândia: trabalho, lazer e melancolia


sobre filme de Cecilia da Fonte
Julia Fagioli 198

Esperas e transformações
sobre Espera (2018), de Cao Guimarães
Thiago Rodrigues Lima 200

Sobre um povo torturado que não sabe o que é tortura


ou algo a dizer sobre o filme Universo preto paralelo, de Rubens Passaro
Paula Kimo 202
O nome da câmera – uma crítica indígena à invenção do cinema (e da cultura)
sobre Deekeni – Os olhos de Wiyu, de Júlio David Rodrigues e José Cury
Renata Otto Diniz 206

Do sonho real à real conquista


sobre Parque oeste (2018), de Fabiana Assis
Rafael Barros 211

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos


sobre filme de Renée Nader e João Salaviza
Ana Gabriela Morim de Lima
Ian Packer 215

Temporada
sobre filme de André Novais Oliveira
Kênia Freitas 219

Diante dos meus olhos


sobre filme de André Félix
Jair Tadeu da Fonseca 221

Corpos sob o risco do real – Circuito forumdoc.ufmg


Ana Lívia Rodrigues
João Ivo
Larissa Muniz
Lea Monteiro
Luís Oliveira
Marcos Alves
Pedro Antuña 225

Arte forumdoc.bh.2018
Do silêncio à cura, por Dalton Paula 233

234 Índices • Index

236 Créditos• Credits


ensaios e entrevistas
essays and interviews
ensaios mostra Ebó Ejé 97

Minha vocação é para a liberdade

Entrevista com Makota Valdina por Amaranta Cesar*

A
conversa que se segue aconteceu no Dez dias depois de conversarmos, no
dia 19 de outubro, quando a manhã momento em que finalizávamos a edição desta
ainda estava fria, aos pés de um abaca- entrevista, nos chega a notícia, pelo grupo de
teiro do Nzo Onimbya, terreiro fundado pela whatsapp do Nzo Onimboya, de que a Casa
família Pinto, no Engenho Velho da Federação, de Oxumaré, um dos tradicionais terreiros de
bairro de maior concentração de terreiros de Candomblé do Engenho Velho da Federação, teve
Candomblé de Salvador e do Brasil. A desfiar o seu muro pichado com as palavras “Jesus é o
mariô (mariwô), Valdina Pinto, Makota Zimewanga caminho”. Diante da notícia, no grupo virtual, a
ou, como é mais conhecida, Makota Valdina comunidade do Nzo debate a necessidade de
(conjunção do nome de batismo com o cargo criação de uma Frente de Resistência da Reli-
que exerce no Candomblé) estava ali, como de giosidade Africana para enfrentar os ataques
costume, trançando as atividades religiosas com que, supomos, serão intensificados a partir de
a história e a política, num elo sofisticado que agora. As lições de nossa mãe Zimewanga explici-
ela trama como ninguém. Makota Valdina dedicou tam-se na urgência da violência que se institucio-
seus 75 anos a perseguir, em todos os campos naliza e da luta contra o racismo religioso: nosso
da vida comum, aquilo que, segundo ela, é a trabalho e cuidado espiritual não se separa de
vocação de todo sujeito: a liberdade. E, assim, uma tarefa política, assim como no presente há
construiu uma reconhecida e notável trajetória sempre passado; de uma perspectiva histórica
como liderança religiosa do Candomblé Angola, mas também cosmológica. Porque, como ela diz,
militante negra e ativista ambiental. Mas é como “o Tempo é o vento”, aquilo que nos antecede e
"professora primária aposentada" que ela gosta sem o qual não podemos respirar, viver.
de se definir. Suas lições, por sua vez, amplifi-
cam-se nas dimensões do cosmos, são para ler AC – Eu queria que a senhora começasse
o mundo em seus complexos enlaces entre o contando um pouco da história desse espaço,
visível e o invisível. o Nzo Onimboyá: como foi que ele surgiu, o que

*Makota Valdina exerce a função religiosa de Makota no Terreiro Nzo Onimboyá, no Engenho Velho da Federação,
Salvador, Bahia, bairro em que nasceu e cresceu e onde se registra a maior concentração de Terreiros de
Candomblé no Brasil. Educadora, líder comunitária e religiosa brasileira, militante da liberdade religiosa, como
porta-voz das religiões de matriz africana, bem como dos direitos das mulheres e da população negra. Professora
aposentada da rede pública municipal de Salvador, foi membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. No ano
de 2005, foi proclamada “Mestra de Saberes” pela Prefeitura Municipal de Salvador. Amaranta Cesar é professora
e pesquisadora de Cinema e Audiovisual da UFRB, doutora em Estudos Cinematográficos pela Universidade de
Paris 3 - Sorbonne Nouvelle, idealizou e é curadora do CachoeiraDoc - Festival de Documentários de Cachoeira.
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ele significa na sua história, como é que ele atra- cura, é um terreiro que a gente cultua os Nkisis,
vessa as suas memórias? os Caboclos, mas também os Orixás, os Voduns,
que a gente tem consciência que a gente não é
MV – O Nzo Onimboyá tem a ver com minha puro, a gente tem influência de várias vertentes
história familiar, porque esse espaço foi a africanas, e sobretudo dos Caboclos. E leva o
primeira casa que meus pais construíram na nome de Onimboyá porque ele é o mentor da
década de 1940, precisamente 1940... Porque nossa família.
meu irmão mais velho nasceu em 1940, e a gente
nasceu aqui, foi a primeira casa que eles cons- AC –Eu queria que a senhora contasse um pouco
truíram. Minha mãe era de Candomblé, minha agora como foi exatamente a construção desse
mãe foi iniciada. E minha mãe teve que se iniciar espaço, como foi que vocês conseguiram trans-
e quem realmente deu caminho, chegou e falou formá-lo e como é a relação do culto aqui nesse
que minha mãe precisava cuidar da vida espiri- bairro com a urbanidade. Porque se precisa
tual dela no Candomblé, fazer o santo, que era muito da natureza e isso é um desafio no Engenho
assim que se falava antigamente, foi o Caboclo, Velho que é um bairro densamente povoado, com
o Caboclo Onimboyá, porque era o caboclo que muitas casas, com pouco espaço verde, eu queria
minha mãe recebia. Então, o Nzo tem a ver com que a senhora falasse um pouco sobre isso.
a família. Eu fui a primeira dos filhos a me iniciar,
a entrar no Candomblé, já adulta, no Tanuri MV – Quando eu era criança, se for olhar, a gente
Junsara que é aqui mesmo no bairro. Depois, até tinha muito mais espaço, o quintal era muito
foi minha irmã caçula, Maria Angélica, Vulasese, mais amplo, mas você sabe como é... Todo mundo
que hoje é a mãe desse terreiro, porque ela que aqui tinha quintal, que hoje em dia a gente é
é a “rodante”, a Mona Nkisi – que recebe o Nkisi. privilegiado por ter um, pequeno, mas a gente
E então meus sobrinhos, Paulo e Juninho, e meu tem quintal. E aí foram construindo casa... e
irmão, mais conhecido como Queinho, foram avança na terra, e a gente até nisso perdeu um
iniciados, e aí depois de setes anos, minha Mãe pouco. Mas, quando eu era criança, na década de
de santo já não era mais viva, foi que a gente 1940-50, era muito mato, muitas fontes d’água
começou a cuidar, fazendo uma obrigação que existiam aqui no bairro.
mais séria, porque sempre a gente botava uma Então, naquela época, a gente tinha muito
coisinha e tudo... E a gente aí começou a utilizar mais verde, eu lembro de muitas espécies de
o espaço, modificar o espaço, para criar uma Mata Atlântica que a gente não precisava ir para a
estrutura, ainda que seja tudo pequeno, mas criar Avenida Paralela, para lugar nenhum buscar, aqui
uma estrutura para iniciar pessoas. E assim é que por perto mesmo a gente conseguia as folhas. Eu
o Nzo está aí, quer dizer, é um terreiro, uma casa me lembro, era meninota, mas a gente ia para o
de santo nova. Sim, nova porque a gente está mato, que a gente conhecia folha, naquela época.
tocando agora, mas as coisas que nós cultuamos, E minha mãe mandava pegar uns galhos de folhas
os santos, já vem desde que minha mãe fez santo de São Gonçalinho, de murici, de capianga pra
no final de década de 1940 e início de 1950, então sacudir a casa no Sábado de Aleluia, no final de
a coisa já vem de longe. E hoje é um espaço que ano. Eu me tenho essa lembrança. Então era isso,
é não só da família, tem pessoas que não são e a relação da gente com o mato era muito forte,
da família que se cuidam aqui, é um espaço de a gente brincava nos quintais, a gente descendo
ensaios mostra Ebó Ejé 99

aí tinha a roça do Costa, tinha era sapoti, cacau, mas preservando para não encher de vidro, de
cajá-umbu, cajá, maracujá... A gente se embre- coisas. Quando a gente leva alguma bebida a
nhava por aí para catar fruto no mato, então na gente derrama na terra, quando a gente vai para
minha infância a relação da gente com o mato o mar do mesmo jeito. Então, aqui a gente tem
era muito forte, o mato era espaço de lazer, essa preocupação, e quando a gente se encontra
mas para a gente tinha também uma influência, entre irmãos de santo, de fé, eu estou chamando
a sabedoria, o conhecimento, a aprendizagem sempre atenção para isso. Outra coisa também,
de se relacionar com o mato. Eu lembro muito quando a gente vai para o mato que precisa tirar
da gente brincando aqui nesse quintal, que era a folha, eu sempre falo: vamos tirar a quanti-
muito diferente. Mas quando a gente resolveu dade que a gente precisa, porque outros vão
mesmo utilizar o espaço para fazer o culto, a precisar também. Se tem um galho que tá ali
gente começou a fazer algumas interferências florescendo, deixa aquele galho, vamos tirar de
no quintal, que estava jogado, então a gente outro. Se impedir daquela semente cair, a gente
começou a mexer. Tinha que ampliar um pouco, vai ficar com cada vez menos folhas. São essas
então teve que cortar algumas bananeiras. Aí a preocupações que a gente aqui tem, porque a
gente já enfrentando essa dificuldade de encon- gente precisa da natureza, e a gente tem que
trar as plantas, as folhas que a gente precisa, a tomar conta da natureza.
gente começou a intervir, começou até a replantar
algumas coisas, algumas folhas. Porque hoje em
dia está muito difícil, estão desmatando muito
aqui em Salvador, e a gente já não encontra mais
as plantas que a gente encontrava naturalmente,
que a gente precisa no culto, fica cada vez
mais difícil. E a gente hoje tem que aproveitar
todo espaço, planta num caco maior, planta no
balde, para ter a folha dentro de casa, eu mesma
tenho essa preocupação. Por outro lado, a gente
também, agora, fica na preocupação de como
cuidar desse mato que era mais denso, que tinha
também os animais, os bichos. Aqui no Nzo, a
gente tem essa preocupação: o que colocar no
mato, como colocar no mato, porque o mato de
hoje não é mais o mato de antes, então a gente já
não tem mais os animais que a gente tinha antes,
que consumia aquela oferenda, entendeu? Então,
a gente tem muito essa preocupação, de não
levar muitas vasilhas pro mato, a gente coloca as
coisas na folha. As áreas estão ficando cada vez
mais urbanizadas, e a gente não vai ficar largando
coisa por aí, então a gente faz nossas oferendas
aqui, bota no mato aquilo que tem que botar,
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AC –A senhora pode falar um pouco mais da o que a gente vê hoje. Eu hoje vejo uma verda-
relação que esse Candomblé, que é cultuado deira aberração. Eu vejo na internet os barra-
e praticado aqui, tem com a natureza, cões de Candomblé parecem casas de show.
especificamente? E quando a gente está fazendo, cultuando um
Nkisi, um Orixá, um Caboclo, tudo é mais simples,
MV – Ah, tem muito, porque índio não vive sem não precisa de brilho, não precisa de roupa, não
terra e sem folha, e o africano tradicional também precisa mesmo, é o mais simples possível. Então
não... Porque tudo bem que a África hoje é como a gente é quem cria essas coisas, então eu acho
qualquer lugar do mundo, mas os tradicionais que às vezes é muito consumismo, e a gente tem
na África precisam também da terra e do mato, que valorizar mais o que é natureza.
da mesma forma que o índio, e aqui a gente tem
uma relação muito forte com os Caboclos, que AC –A senhora podia falar então justamente dessa
são os ancestrais indígenas, justamente por causa relação entre o Nkisi e a natureza na filosofia e
do Caboclo Onimboyá. Então, a gente cultua as na cosmologia Angola?
entidades africanas, mas o Caboclo é muito forte,
sobretudo porque é o dono, é que dá nome ao MV – Natureza é Nkisi, Nkisi é natureza. Eu me
nosso terreiro. Então, é muito forte a questão confirmei em 1975, de todos os antigos que
da natureza, é muito importante para a gente. A eu conheci, com quem eu convivi, eu não me
gente precisa, a gente não tem Candomblé de lembro de nenhum contar lenda nenhuma de
prateleira nem de gaveta, a gente tenta ter um Nkisi, mas eu me lembro assim sempre de falar
espaço no nosso terreiro que eu digo “a gente da importância das folhas, da água, dos fenô-
não vai botar nunca cimento, aí tem que ser chão menos da natureza, da importância disso. No
mesmo, deixa o chão aí para a planta que tiver final da década de 1980 ou início de 1990, eu
que nascer, que a gente não plantar, nascer, um conheci um africano do Congo, que ele vivia
lugarzinho que a gente tiver que possa dar planta, nos Estados Unidos, e eu aprendi muita coisa
plantar, tem que ter o chão”. Então a natureza é com ele, e eu tive a oportunidade de ver que
muito importante para o Candomblé, sim. Porque muito das coisas que a gente fazia, ainda que as
hoje em dia, eu até crítico muito, eu vejo muito pessoas não explicassem para a gente, tinha um
na internet esses mega barracões, essas mega fundamento, tinha uma anterioridade, tinha um
festas, com muita coisa, muito consumismo, e pé lá na África. Ele era Fu-Kiau.2 Então quando
eu acho que isso não é muito o que eles querem, eu tive acesso aos escritos, aos ensinamentos
eles que eu estou falando são os Caboclos, os de Fu-Kiau, eu vi que a gente do Candomblé
Nkisis, os Orixás. Eles querem coisas mais simples, Angola, apesar de não ter lendas, não ter mitos,
que antigamente eram mais simples as coisas. não ter essa coisa toda que tem na cultura Iorubá,
No tempo que eu não era de Candomblé ainda, dos Orixás, a gente tem a nossa própria cultura,
mas era, porque respirava Candomblé, vivenciava nossas próprias culturas, porque quem formou
Candomblé, era diferente, as roupas eram de e forjou o Candomblé Angola foram as culturas
chita, chitão, tinha uma ou outra melhorzinha que linguísticamente são hoje classificadas como
para determinadas entidades, Orixás, mas não era bantu. Até muita gente diz que candomblé é bantu,

2. Kimbwandende Kia Bunseki Fu-Kiau pesquisador da história e das culturas Kongo.


ensaios mostra Ebó Ejé 101

não tem esse negócio de Candomblé bantu, é mundo precisa de água, todo mundo precisa de
Candomblé Angola ou Congo Angola. Esse é ar, precisa da química do remédio, do alimento
o termo. Agora, tem influência dessas várias que está na terra. Vai para o laboratório, mas o
culturas bantu, porque não foi, como no Ketu, só laboratório tem que tirar a matéria que taí, que
uma cultura, a Iorubá: tem a cultura dos Bakongo, foi e é colocada o tempo todo por Nzambi. Você
dos Luba, dos Lunda, dos Kioko, dos Nlele e tantos vê que a gente está assim, ‘‘ah, foi o pássaro que
outros que são agrupados linguisticamente como trouxe”, sim, mas o pássaro trouxe de onde? Às
bantu. Então, eu aprendi com Fu-Kiau algumas vezes nasce uma planta que você não plantou,
coisas sobre essa visão desses povos bantu, são ninguém plantou, está ali, entendeu? Então é isso,
culturas muito ligadas a provérbios, ao invés de então Nkisi é isso. E o Nkisi vem de um verbo,
lendas, tudo é muito explicado com provérbios, tem um verbo que chama kinsa, que quer dizer
que servem para explicar a vida na comunidade, a cuidar, curar, tomar conta, tomar cuidado. Então
visão de mundo, os fenômenos da natureza e por Nkisi é isso, é essa essência, essa energia, que
aí vai. E aí uma das máximas, de ditos que aprendi está aí para tomar conta da gente, para cuidar
com Fu-Kiau, é quando ele nos ensina sobre o da gente; é essa essência que está na natureza.
que é que o povo bantu, aliás, não, os bantu, Então, se é isso, a gente precisa do nkisi e a gente
porque bantu é povo... Bantu é plural de muntu, precisa cuidar da natureza.
muntu é ser humano, pessoa, bantu são pessoas, Então, cada vez que a gente deixa poluir
seres humanos... Quando ele, pra explicar o que fontes de água, cada vez que a gente contribui
é a terra, o que é esse planeta Terra, que é a para que as águas no mundo sejam poluídas, a
casa comum de todos os seres humanos, diz gente está fazendo com que a gente fique sem
que a terra é “Futu dya nkisi dya kanga kalunga Nkisi. Quando a gente fala “ah, porque Oxum,
mu diambo dya moyo”.. Futu é como um sachê, porque Dandalunda é a deusa do amor”... Não,
um pacote, a terra é um pacote de essências Dandalunda é água, é a força da água, é a força
curativas. Então, na verdade, o que a gente cultua vital da água. Isso é Dandalunda. E isso é Oxum,
que é o Nkisi é isso, não é um rei, uma rainha, Aziri, porque a gente pode dar nomes diferentes,
uma coisa... Nkisi é isso, uma coisa que está no mas água é água. Você pode na outra língua ter
mundo para todo mundo, ainda que não acredite, outro nome, mas é isso que é Oxum, isso que é
não saiba, não cultue... Essa química que está Dandalunda, isso que é Aziri... Como o ar, quem
aí nesse planeta, no ar, na terra, em tudo que é que vive sem ar? Todo mundo precisa do vento,
está aí, que foi selado, que foi codificado, que de Tempo, do ar, todo mundo precisa.
foi amarrado, foi enlaçado por Kalunga (Kalunga
é o mesmo que Nzambi, o mesmo que Deus, o AC –Talvez fosse bom se a senhora pudesse falar
mesmo que Olorum), selado com intenção de vida, agora, justamente, uma vez que a natureza é tão
Mudiambo Dyamoio, para a vida. Então, tudo que fundamental…
está nesse pacote foi colocado por Kalunga, por
Nzambi, por Deus, Jeová, Javé, Alah, não importa MV – e é fundamental mesmo...
o nome que queira dar, para dar vida na Terra e
ao ser humano. Então, todo ser humano, branco, AC –... de como a senhora se tornou uma ativista,
preto, gordo, magro, rico e pobre, que conheça uma ativista ambiental, mas também uma ativista
e que não conheça, depende disso. Porque todo política num sentido amplo.
102

MV – A década de 1970 foi muito importante coisa que a gente sempre fez, porque é da nossa
para a gente, aqui no Brasil, aqui na Bahia, de essência. A gente precisa fazer. Qual é o índio
um retomar… Porque o negro, desde quando foi que não é ambientalista, qual é o índio que não
trazido para aqui, o negro na condição de escravo, está ligado à ecologia? Se ele precisa, se o jeito
ele nunca parou. Mas a década de 1970 foi muito de ele viver, de ele morar, de ele ser é mato, é
importante, porque a gente reorganizou formas natureza? Entende? Quem bota o nome são os
de lutar contra o racismo, contra a discriminação. caras da Universidade, mas, naturalmente, todo
E aí eu me tornei ativista. E naquela época, justa- índio, todo negro é ambientalista, é ecologista, e
mente, eu acho que foi um chamado deles. Eu sabe de ecologia. E sabe mesmo, mais do que, às
acho que eles me chamaram para, através da vezes, quem inventou o nome. Porque é parte da
minha crença, através do Candomblé, eu fazer vida da gente. Então, eu me tornei essas coisas,
meu ativismo negro, meu ativismo enquanto ser hoje em dia me chamam de não sei o quê, não
humano. E aí eu comecei a primeiro reivindicar o sei o quê... historiadora, não sei o quê. Não sou
direito que os angoleiros tinham, da mesma forma coisa nenhuma. Eu sou uma professora primária
que o povo do Ketu, que foi muito pesquisado, aposentada. Eu me formei em 62 como profes-
muito estudado, e graças a Deus nós não fomos... sora primária. Essa é a minha formação. Fiz vesti-
Graças, porque, se não, também muita coisa bular um dia, entrei na Universidade Federal da
tinha sido distorcida, tinha sido estereotipada Bahia, e saí. E minha universidade é a vida. A vida
como a cultura Iorubá foi. tem me ensinado, entendeu?
Eu comecei a falar dos angoleiros, do E... político, porque... quem é que não é?
Angola, não a falar em fundamentos, como muitos Todo ser humano tem de ser político, se ele
pesquisadores, antropólogos, etnólogos fazem, está vivendo no mundo, se ele é consciente, ele
mas mostrando que a gente tinha uma visão de tem de fazer política. Necessariamente, não
mundo, e também reivindicando ser sujeito dessa política partidária, mas tem que fazer política.
fala, porque a gente era objeto de pesquisa. Hoje, Qual é o ser humano que está articulado, que
graças a Deus, a coisa tem mudado, mas até está vivendo, que está consciente, que não é
aquela época estudavam muito sobre a gente e político? Tem que ser, tem que fazer política.
achavam que a gente não tinha que falar porque Quando eu luto contra racismo, quando eu luto
era de dentro, quem tinha de falar era quem vinha por direitos humanos, quando eu luto contra a
de fora. Ninguém pode falar melhor de mim do falta de respeito, a intolerância, quando eu luto
que eu própria, entendeu? E aí comecei a fazer por isso tudo, eu estou fazendo política. É porque
meu ativismo negro, daí veio o ativismo politico... eu quero viver num mundo em que eu tenha
E aí comecei essa coisa de meio-ambiente por deveres, mas em que eu tenha meus direitos
defender o Parque São Bartolomeu, um espaço garantidos, enquanto ser humano, enquanto
importante pra nós – não sei agora, porque cidadão. E eu acredito que os Orixás querem isso
tudo está mudado também. Mas comecei a lutar pra gente. Porque nenhum ser humano foi posto
como ambientalista. Sou ambientalista, qualquer no mundo para ser escravo, para ser oprimido,
um que é de Candomblé tem de ser, porque a para ser submisso. Minha vocação é a vocação
gente precisa. Ah negócio de ecologia, não sei para a liberdade, eu tenho que ter liberdade.
o quê. Isso a gente já era, índio já era, negro já Liberdade de pensar, liberdade de agir, liber-
era. Ficam inventando um bocado de nome pra dade de falar. E, hoje em dia, eu fico muito triste,
ensaios mostra Ebó Ejé 103

porque na década de 70, a gente, negro, tinha Orixá, dança de Orixá? Não! Vá defender, vá falar
às vezes muito mais disposição para lutar, para do meio-ambiente e mostrar nossa posição, a
falar, para dizer essas coisas do que hoje. Hoje importância disso para a gente. Vá ver a questão
eu vejo muita gente que diz estar livre, mas está de como a gente vive, como é a dificuldade para a
alienado, muito negro hoje alienado. Porque pra gente fazer as coisas, porque a gente precisa das
mim a pior escravidão é a escravidão da mente. coisas materiais. Qual é a coisa que a gente faz no
Você pode estar todo amarrado, todo cheio de Candomblé que não precisa de ir numa loja, não
grilhão, lá vendo o sol nascer quadrado, mas se é só na feira, vai na loja, vai no mercado. A gente
você tem liberdade no seu pensar você é livre, dá dinheiro pra todo mundo, ajuda a economia
você não é escravo. E você pode estar andando de todo mundo, não é? Precisa fazer mercado,
cheio de coisa, com liberdade, mas se você é de tudo você precisa numa casa de Candomblé.
escravo do que os outros pensam, isso é a pior Deixa dinheiro lá para os donos de supermercado,
escravidão para mim. E eu não tenho vocação pra deixa dinheiro nas lojas, deixa dinheiro na feira.
isso, e eu não ensino essa vocação para ninguém. A feira com um bando, um monte de safados de
Eu ensino vocação para se libertar. Você tem evangélicos que são contra a gente. Entretanto,
direito de pensar, dizer o que você acha, o que tem uma loja lá na feira ganhando dinheiro da
você pensa, o que você quer e ser diferente do gente. Aí a gente é diabo, mas o dinheiro da gente
que querem que você seja, porque a gente vive não é diabo. Tem que ver isso, né? Tem que ver
numa sociedade racista, numa sociedade babaca, isso. Essas coisas têm que falar, por que não
elitista, que não vale nada, que sempre nos sugou, faz um filme, mostrando essas coisas? Quantos
sempre roubou. evangélicos nos atacam, dizem que a gente é
demônio, satanás, diabo, mas o nosso dinheiro
AC –Como que a senhora vê a relação do cinema, eles pegam, porque estão todos com loja lá na
das imagens, com o sagrado, com as religiões de feira? A bíblia está lá aberta com o dinheiro de
matrizes africanas? Candomblé. Como se explica isso? E aí? Então,
MV – Eu acho o seguinte: tem um ou outro ligado tem que tirar o foco daquela coisa da magia, e
a cinema que é diferente, mas ainda fica muito mostrar essa realidade, porque isso tem a ver
aquela coisa de estereotipar, aquela coisa dos com a gente. Isso é Candomblé, falar disso é
efeitos. E aí muita gente faz essa coisa de filmar estar falando de Candomblé. Então, ao invés de
Orixá e mostrar festa. Não é por aí. Eu acho que, querer a imagem, bota essas realidades, faz filme
eu sempre fui contra o que sempre fizeram com a sobre essas coisas, porque eu acho que vai ajudar
nossa religião, de mostrar o exótico. Não ajudou muito mais a gente do que o que vêm se fazendo,
em nada, porque a gente continuou por nossa que é botar o Santo dançando, botar não sei
própria conta. Não ajudou. Então, o que ajuda o quê... não! Chega, já era isso, muito pobre.
agora é ver o que aflige o povo de santo. O que Vai falar de natureza, vai mostrar como estão
atinge o povo de santo? Vai fazer cinema pra falar derrubando árvores, como o poder público, ao
sobre isso. Porque nos atinge o que faziam antes: invés de plantar árvores, está derrubando árvores.
impedir que a gente faça o nosso culto, impedir Fala sobre isso que nos ajuda.
que a gente tenha a nossa crença do jeito que a
gente acredita. Vai fazer cinema sobre isso, fazer
filme sobre isso. Por que tem sempre que botar Transcrição: Carla Italiano e Frederico Sabino
104

Dez gritos sobre a campanha


contra as religiões de matriz africana*

Marcio Goldman**

8 de abril de 2015 os “modernos”. Por trás da conversa sobre


direitos dos animais subjaz, evidentemente,
1. A atual campanha contra as religiões de matriz a “certeza” de que as práticas sacrificiais das
africana é mais um capítulo de um racismo religiões de matriz africana são “falsas”. Não no
secular que sempre investiu contra essas reli- sentido reacionário de que se dirigem a seres
giões de todas as formas concebíveis. com os quais não deveríamos ter relações, mas
no sentido moderno de que se dirigem a coisa
2. A “novidade” da atual campanha é que ela se dá nenhuma. Seriam frutos da ilusão, não do erro.
a partir de um agenciamento entre uma semiótica
reacionária (os evangélicos - em geral de todas as 5. A intolerância da semiótica reacionária e a
cores) e uma semiótica moderna (os ecologistas – tolerância da semiótica moderna são, pois, os
em geral brancos). dois lados da mesma moeda. Os reacionários,
que sabem estar envolvidos em um conflito
3. A primeira semiótica é mais honesta. Supõe de verdades, não podem admitir práticas que
que as religiões de matriz africana estão erradas consideram erradas. Os modernos admitem,
porque acreditam e cultuam seres maléficos que, tranquila e condescendentemente, práticas que
erroneamente, consideram benéficos. O que consideram ilusórias. Mas isso só até o momento
significa que, neste caso, a única coisa pela qual em que imaginam que essas práticas entrem
se pode lutar, é que os evangélicos assumam - ou em conflito com suas próprias verdades, que
sejam obrigados a assumir - a mesma posição eles, claro, apresentam como universais. Nesse
das pessoas das religiões de matriz africana, que, momento, querem acabar com tais práticas e o
aliás, é a da constituição brasileira: as crenças e fazem com uma violência que poderia enrubescer
práticas religiosas não têm nada a ver com verdades qualquer reacionário.
universais e todos têm o direito de adotar religiões
que terceiros podem considerar equivocadas. 6. O problema é que as práticas sacrificiais das
religiões de matriz africana são técnicas de
4. A segunda semiótica – verde e branca – é manutenção do equilíbrio do cosmos, o que
mais insidiosa, como costuma acontecer com inclui, principalmente, o equilíbrio das pessoas.

*Originalmente publicado em: <https://www.facebook.com/marcio.goldman.5/posts/1658713457689929>.


**PPGAS – Museu Nacional – UFRJ/CNPq/CAPES/FAPERJ.
ensaios mostra Ebó Ejé 105

Por isso são quase sempre utilizadas para cuidar de preconceito e racismo. Como costuma acon-
dos males advindos dos desequilíbrios a que a tecer com excessiva frequência no caso brasi-
existência nos expõe. leiro, esse preconceito e esse racismo não se
autonomeiam e funcionam sem mencionar cores
7. É por isso também que não há e não pode haver e raças, sempre substituídas por pseudo-uni-
nenhuma “crueldade” com os animais desti- versais, como, neste caso, os louváveis ideais de
nados ao sacrifício, uma vez que isso agravaria respeito aos direitos dos animais e à natureza.
o desequilíbrio que se pretende combater. Todos
aqueles que possuem um mínimo de informação
sobre essas religiões sabem que os sacrifícios
têm que ser rápidos e indolores e que se o animal
demonstrar resistência ao processo deve ser
poupado sob pena de desastres ontológicos e
humanos.

8. Como também sabem todos aqueles que


possuem um mínimo de informação sobre essas
religiões, a maior parte dos animais sacrificados
é preparada para refeições comunais que não
apenas alimentam o espírito dos comensais
(promovendo seu equilíbrio), como alimentam
seus corpos e promovem uma socialidade cuja
qualidade deveria ser invejada por todos.

9. Nesse sentido, o máximo que o Estado poderia


exigir dessas religiões - a saber, que tratem os
animais mais ou menos como os laboratórios
que produzem vacinas devem fazê-lo - já é
cumprido por elas como que por definição. Bem
ao contrário, o modo como lidam com os animais
poderia, isso sim, servir de modelo não só para
nossos laboratórios como principalmente para
a barbárie de nossa indústria alimentícia.

10. É compreensível que a semiótica reacionária


não esteja interessada nessa indústria alimen-
tícia. Mas quando a semiótica verde e branca
moderna prefere o alvo, frágil e fácil, das religiões
de matriz africana em lugar daquele, poderoso
e difícil, dessa indústria alimentícia, a única
conclusão a que podemos chegar é que se trata
106

Tradição, criatividade e resistência


em territórios negros*

Marcio Goldman**

B
oa noite a todos e a todas. Eu gostaria fazem suas pesquisas para poder contar a outras
de começar agradecendo imensamente pessoas aquilo que aprendem com pessoas que
o convite feito a mim para dar esta sabem mais do que eles. Meu problema aqui,
palestra (conferência é muito solene!) de aber- hoje, é que devo falar também para as pessoas
tura do I Encontro da Tradição Angola-Congo em que, há mais de 20 anos, vêm me ensinando o
Ilhéus, organizado pela Associação Beneficente pouco que sei não apenas sobre o candomblé,
e Cultural Matamba Tombenci Neto. Agradeço, mas também sobre a consciência e a resistência
em especial, a presidente de honra da Asso- negras, e que, portanto, sabem mais do que eu
ciação, Dona Ilza Rodrigues, Mameto Mukalê, sobre aquilo de que devo falar.
grande mãe-de-santo deste terreiro. E também Assim, o que eu vou tentar fazer – e já vou
ao presidente e vice-presidente da Associação, pedindo desculpas se não conseguir fazer isso
Gilvan Rodrigues e Marinho Rodrigues; assim direito (e também se falar demais e chatear vocês) –
como ao presidente do Dilazenze, Ney Rodri- é tentar levantar algumas questões a partir do que
gues. Por meio deles agradeço também a todos aprendi aqui ao longo desses anos, acrescentando
os membros da família Rodrigues e do Terreiro algumas coisas que aprendi em outros lugares,
de Matamba Tombenci Neto, bem como a todos coisas que aprendi lendo, claro, mas também
os presentes. É uma grande honra para mim conversando e vivendo com as pessoas (e é isso
estar aqui hoje. basicamente o que um antropólogo tenta fazer
Mas, além da honra, devo confessar que para ganhar a vida).
também estou um pouco nervoso, mais nervoso Eu queria, então, abrir minha fala citando
talvez do que em todas as ocasiões em que falei uma frase de uma outra grande mãe-de-santo,
em muitos lugares e mesmo em outros países. Olga do Alaketo. Ao começar uma apresentação
Fiquei me perguntando a razão de tanto nervo- em um encontro realizado em Salvador há 30
sismo e a única conclusão a que consegui chegar anos, ela dizia que não estava ali apenas para
é que hoje, aqui, há algo de diferente. Porque, em agradar as pessoas porque – ela disse – “a gente
geral, os antropólogos – essa minha profissão – não faz nada para agradar, a gente diz uma coisa

*Palestra apresentada no I Encontro da Tradição Angola-Congo em Ilhéus, promovido pela Associação Beneficente
e Cultural Matamba Tombenci Neto, Organização Gongombira de Cultura e Cidadania e Grupo Cultural Dilazenze,
no dia 17/11/2006, no Terreiro de Matamba Tombenci Neto.
**PPGAS – Museu Nacional – UFRJ/CNPq/CAPES/FAPERJ.
ensaios mostra Ebó Ejé 107

para se conversar, para se estudar”. É o que vou e tem que existir toda uma hierarquia, que deve
tentar fazer. ser respeitada; existem as pessoas que sabem
Como muitos de vocês sabem, e ao contrário mais e as que sabem menos; as mais velhas na
de Dona Ilza, eu passei quase a minha vida inteira religião e as mais novas. Mas o interessante e
“alisando os bancos da faculdade”. E ainda passo. o importante é que as pessoas se conhecem,
Mas tento também “aprender na escola da vida” e e que aquelas que estão momentaneamente –
se ainda não “me formei na faculdade do tempo” porque no candomblé isso muda com o tempo
já começo a entrar em uma turma mais avançada. – na posição de iniciantes sempre podem falar
Começo, então, lembrando que esses com as mais antigas, podem perguntar coisas
encontros (e este é o terceiro, se não me engano: a elas, aprender e mesmo expor suas opiniões.
os outros foram mais internos ao terreiro) foram Ora, é justamente esse espaço comuni-
pensados primeiro por Marinho e depois pelos tário que nós podemos chamar de “território
outros membros do terreiro, como uma ocasião negro”. Essa ideia foi proposta por uma urba-
para se pensar, para se conversar e para se nista chamada Raquel Rolnik. Ela observou que o
estudar a religião do candomblé. Mas, como fato de que no Brasil não existem guetos negros
muitos de vocês sabem melhor do que eu, não propriamente ditos não significa necessariamente
existe, na verdade, religião do candomblé, assim, a ausência de territórios negros específicos; e
no geral. O que existe, primeiro, são as nações do que se, por um lado, esses territórios são em
candomblé, a nação ketu, a nação jeje, a nação geral marcados por uma certa marginalização e
angola, para só falar das maiores – e sabemos pela discriminação, por outro, eles também são
que é principalmente sobre a nação angola, ou espaços de criação, são espaços de criatividade.
angola-congo, que estamos aqui hoje para pensar, Assim, um território negro é um espaço
conversar e estudar um pouco. ativo, ele tem sua autonomia e ele não deve ser
Mas, mais do que isso ainda, como muitos confundido com um simples território segregado
de vocês também sabem melhor do que eu, ou marginalizado. Além disso, é claro que falar
não existe nem mesmo nação, assim, no geral: em territórios negros não quer dizer que estamos
existem os axés, as raízes de onde provêm os imaginando que só haja pessoas negras neles,
diferentes terreiros. Assim, o que existe mesmo, mas sim que neles impera um modo de vida e
nós sabemos, é a realidade concreta e vivida dos modos de convivência marcados pela experiência
terreiros. Para mim, isso é uma das coisas que da negritude.
faz a beleza do candomblé. Porque o candomblé Porque esses territórios são espaços vividos,
não é uma dessas religiões em que pessoas que o são obras coletivas construídas por grupos de
adepto não conhece, que ele nunca viu, decidem pessoas. Assim, quando falamos em territórios
o que ele deve fazer e como ele deve fazer. Os negros, não estamos contando apenas histórias
terreiros, também sabemos, são comunidades de exclusão e de marginalização, mas também
onde as pessoas se conhecem, onde elas às vezes histórias de construção de identidades e de vidas
discutem, até brigam um pouco, mas, acima de em comum.
tudo, onde elas convivem umas com as outras, onde Ora, como bem podemos imaginar, esses
elas aprendem a gostar e a respeitar umas às outras. processos de criação de territórios devem ter
Ao mesmo tempo, nós sabemos que nos existido desde o começo, desde quando pessoas
terreiros de candomblé, também sabemos, existe arrancadas de sua terra natal pela escravização
108

foram transportadas à força para um outro país, respeito pela hierarquia com o sentimento de
onde tiveram que se reapropriar do espaço e de comunidade. E eu acredito também que essa
suas vidas. Assim, a questão é como é possível combinação de hierarquia e comunidade tem a
produzir uma experiência de vida a partir de uma ver com as origens do candomblé. E sobre esse
ameaça de morte. ponto eu queria fazer algumas observações.
É como no jazz, nas palavras do pensador Primeiro, lembrando que quando os portugueses
francês Félix Guattari: chegaram ao Brasil, havia aqui – ao contrário do
que ainda se ensina em alguns lugares – mais de
O jazz nasceu a partir de uma catástrofe, a 10 milhões de índios (hoje devem ser uns 400 mil
escravização das populações negras. Depois, e já foram apenas 200 mil). Logo depois, houve a
houve uma conjunção de ritmos, de linhas escravidão africana, que a seu modo foi também
melódicas, com o imaginário religioso do uma espécie de genocídio.
cristianismo, das etnias africanas, com É importante lembrar que houve reações
um novo tipo de instrumentação, com um em todos os grupos indígenas, lutando contra
novo tipo de socialização no próprio seio os colonizadores ou fugindo para regiões mais
da escravidão e, em seguida, com encontros remotas. E é importante lembrar também que a
com as músicas brancas; houve, então, uma escravidão indígena durou até quase 1800, mas
espécie de recomposição dos territórios que era difícil escravizar gente que conhecia
subjetivos, nos quais não só se afirmou a terra, que vivia em comunidades, que podia
uma subjetividade de resistência por parte fugir para o interior. Donde a escravização dos
dos negros, mas que, além do mais, abriu africanos e a dura repressão sobre eles.
linhas criativas para toda a música pois os De 1550 até 1850 (300 anos!) é provável que
maiores músicos ocidentais, foram extre- cerca de 10 milhões de africanos tenham sido
mamente influenciados por esse ritmo e embarcados à força para as Américas, na maior
por esta música de jazz. Temos aí, portanto, migração transoceânica da história da humani-
o exemplo de uma catástrofe que, numa dade até a época (maior do que a migração dos
inversão quase total, enriqueceu até os europeus para as Américas ocorrida até o século
universos da música mais elaborados. XIX). Capturados nas mais diversas situações, os
escravos africanos provinham do sul da África (de
Assim, os espaços que acabaram cabendo Angola, Moçambique, Congo, África do Sul) ou do
aos negros na história das cidades brasileiras noroeste africano (os atuais Guiné, Benin, Nigéria).
foram investidos por uma criatividade que estru- Mas é importante lembrar que já nessas
turou e sustentou a comunidade mesmo nas situ- diferentes regiões africanas havia muitas rela-
ações mais negativas – e é esse investimento que ções e muitas misturas. Com a diáspora, essas
faz dos espaços, territórios existenciais. relações e misturas se acentuaram porque os
Agora sobre o candomblé: eu acredito que portugueses colocavam juntas pessoas de povos
o candomblé foi um desses espaços que foram diferentes, a fim de dificultar sua comunicação
trabalhados, ou melhor que o candomblé foi uma e, logo, sua organização para a resistência. Além
das forças que ajudaram a moldar esses espaços disso, era preciso se adaptar ao novo mundo.
de vida, foi uma das matrizes desses territórios Povos que falam línguas da família bantu, do
negros. Como vimos, o candomblé combina o sul da África (Angola, Moçambique, Congo, África
ensaios mostra Ebó Ejé 109

do Sul) foram os primeiros a serem escravizados. dos índios e dos santos dos católicos que alguns
As religiões desses povos são as religiões dos chamam “milonga”).
inquices (espíritos ligados à terra natal) e dos Porque é claro que o principal problema
antepassados, dos ancestrais (ligados às famí- de todo os candomblés, de todas as nações, de
lias e às linhagens). Ora, a diáspora separou os todos os terreiros, de cada pessoa, sempre foi
escravos de sua terra natal e os distanciou de como resistir. Como resistir a um sistema que
seus territórios; a escravidão separava os filhos discrimina, que oprime e que não apenas pode
de suas mães e de seus pais e tornava difícil o aniquilar pessoas, grupos e tradições, como
culto dos antepassados. Além disso, os escravos também – e isso pode ser ainda mais perigoso
bantu estavam dispersos pelas zonas rurais do porque é mais disfarçado – pode capturar essas
país, com dificuldades para se reunirem para a pessoas, esses grupos e essas tradições, fazendo
celebração de sua religião. com que suas religiões e suas vidas apareçam
Assim, os escravos bantu tiveram que como simples curiosidade ou folclore.
descobrir a nova terra para a qual tinham sido Porque a gente sabe que, apesar de algumas
trazidos à força; tiveram que descobrir onde aparências, não existe, no Brasil, essa “demo-
estavam os inquices e como preservar os ante- cracia racial” de que alguns ainda insistem em
passados; tiveram até que encontrar outros falar. A gente sabe que o racismo no Brasil
inquices e outros antepassados, como o caboclo, costuma ser meio disfarçado, sem se manifestar
o dono da terra – marca registrada, vamos dizer claramente, e que por isso ele é, às vezes, mais
assim, do candomblé angola-congo. Para isso, difícil de combater. Contra um racismo assim
foram às vezes ajudados pelos índios, mas, sutil, a resistência também tem que ser sutil e
sobretudo, tiveram que ajudar uns aos outros, cheia de jogo de cintura. E se observarmos bem,
cada um ensinando o que sabia de sua religião ela é mesmo! Ela é sutil e cheia de jogo de cintura
para os vizinhos que, em troca, faziam o mesmo. porque sabe usar criativamente a tradição! Este
Porque, como vimos, muitas vezes os escravos é o ponto! Porque a tradição não é uma simples
que estavam juntos vinham de lugares diferentes, repetição passiva, ela é, acima de tudo, uma
de tribos diferentes (os portugueses praticavam necessidade vital, uma força de resistência. Se
essa mistura para dificultar a comunicação, a aceitarmos isso, acho que temos que aceitar
aliança, a resistência). também que para resistir também precisamos
Mais tarde, já por volta de 1850, os nagô e os de outra coisa, precisamos de muita, de muitís-
jeje começaram a chegar com mais intensidade sima criatividade. Se isso for verdade, podemos
(e isso por causa de guerras na África). Como entender, então, a tradição e a criatividade não
eles foram concentrados nas regiões açucareiras como duas coisas opostas, mas como dois
próximas a grandes cidades como Salvador e aliados, como nossos principais aliados quando
Recife, os jeje-nagô conseguiram elaborar um queremos, quando precisamos resistir. Porque
modelo de culto que se mostrou muito resis- como todo mundo sabe, ninguém resiste a partir
tente. E é por isso mesmo que eu acho que esse do nada, para resistir é preciso ter armas; mas
modelo foi adaptado pelos angola-congo, que já todo mundo sabe também que ninguém resiste
estavam aqui e que começavam a ser levados do se ficar imóvel, se não se mexer, se não inventar
campo para as cidades, para seu próprio uso. novas armas. A sabedoria consiste, justamente,
(É a isso, assim como à absorção dos caboclos em saber combinar, dosar e equilibrar essas
110

armas, a tradição e a criatividade. Para falar a a um passado já morto e que, por isso, ela é
linguagem da música, que é tão importante aqui, impossível ou inútil. Mas eu acho que nós temos
ninguém improvisa em cima de nada, ninguém que entender que “reafricanização” tem a ver
improvisa se não souber tocar bem o seu instru- mais com resistência e com criatividade do que
mento, se não souber cantar; mas ninguém sobre- com volta ao passado e com simples saudosismo:
vive, ninguém cria, se, com aquilo que tem, com não se trata de repetição, de regressão, mas de
aquilo de que dispõe, não souber também impro- reforço, de reafirmação, de resistência. A África
visar. Porque resistir não é simplesmente reagir, se não é simplesmente uma coisa para ser copiada:
defender: resistir também é jogar para a frente! ela é um horizonte de referência (como Grécia
Assim, eu acho que dá para imaginar como e Roma no Renascimento europeu).
essas coisas aconteceram no caso do candomblé. Outras pessoas se acham no direito de julgar
Como vimos, a escravização privou os africanos o que é mais ou menos autêntico e condenar
de muitas coisas que eles usavam em sua vida o que seria menos. Mas, como dizia Dom Filó,
e em suas práticas religiosas. Mas é claro que do movimento black-soul do Rio da década de
a religião permanecia na cabeça e na alma das 1970, “por que o negro da zona norte deve aceitar
pessoas. Assim, foi preciso adaptar-se às novas que o branco da zona sul venha lhe dizer o que
condições de vida e para isso eu acho que muitas é autêntico e próprio ao negro brasileiro? Nós,
estratégias foram utilizadas. A primeira, a mais negros brasileiros, nunca nos interessamos em
óbvia, foi acionar as alternativas já presentes nas fixar o que é autêntico e próprio ao branco brasi-
diferentes religiões africanas, alternativas mais leiro” (história de Charlie Parker e a gravação
adaptadas às novas condições: exemplo do orixá com orquestra de cordas).
por descendência e por divinação. É que o prefixo “re” (de reafricanização)
Outras estratégias foram a descoberta dos não quer dizer só “movimento para trás”, “repe-
equivalentes brasileiros das coisas africanas, o tição”, “restauração” “retorno”… Quer dizer
uso dos saberes dos índios e até a adaptação das também “intensificar”, “recomeçar”, “reavivar”,
crenças dos portugueses – o que, como sabemos, “refrescar”, “reforçar”, “reunir”, “recusar” e,
também serviu como proteção contra as perse- sobretudo, “resistir”.
guições. Porque o candomblé e os “costumes Enfim, para ir terminando e não chatear
africanos” foram proibidos em 1905, e só em mais vocês, eu queria dizer que evitei, a muito
1938 as casas de candomblé puderam voltar a custo, a tentação de transformar esta apresen-
realizar cerimônias públicas, mas tinham que tação em uma espécie de sessão nostalgia, onde
pedir autorização à polícia. Essa licença só deixou eu ficaria apenas recordando coisas que aconte-
de ser obrigatória em 1976! ceram ao longo dos mais de 25 anos que conheço
Ao mesmo tempo, foi justamente a partir da o Tombenci. Mas agora, no fim, vou me dar esse
década de 1970 que assistimos o que o escritor prazer, lembrando que eu e Tânia fomos trazidos
Antonio Risério chamou de processo de “reafri- aqui pela primeira vez, nos idos de 1983, pelo
canização” do carnaval baiano. Mas essa reafri- grande Mário Gusmão, a quem aproveito para
canização não foi só do carnaval, mas de várias prestar minhas homenagens. Porque era Mário
coisas, e até mesmo das religiões. quem dizia, já na época da criação do Ilê Aiyê,
Ora, muita gente acha que essa reafricani- que a reafricanização “nada têm de nostalgia das
zação não tem nada a ver, que ela é uma volta florestas africanas”, e que “uma postura racista é
ensaios mostra Ebó Ejé 111

querer nos imobilizar no que dizem ser as formas


puras de nossa cultura”.
Assim, o que eu queria dizer é que aquilo
que muitas vezes se condena como “nostalgia”
pode ser resistência, e o que muitas vezes se
condena como “modernização” pode ser criati-
vidade. A grande força do candomblé e a grande
força das maiores casas de candomblé – e nós
estamos em uma – sempre foi saber dosar a
tradição e a criatividade, usando-as como armas
de resistência. Muito obrigado.
112

Orí (1989)* Abá (1992)*

Beatriz Nascimento** Raquel Gerber

Ô C
rí é um filme que participou da vida e omo todos os povos mais antigos do
da organização do movimento negro da mundo, os africanos trouxeram para o
década de 70. É fruto do encontro de Brasil o conhecimento da energia vital.
duas pesquisas: cinematográfica (Raquel Gerber) Na religião do “Candomblé” os movimentos
e histórica (Beatriz Nascimento). Iniciando em exprimem conexões com forças naturais como
1977, centralizado em São Paulo, documenta a água, o fogo, a terra, o vento. É, portanto, uma
outros estados e alguns países africanos, fixando união da essência, da energia e do espírito, três
variadas manifestações da afroamericanidade grandes suportes da vida. Se nisso há um mistério,
que brotaram naquele período. Mas Ôrí também é preciso tocá-lo, desvelá-lo, e conhecer os
é um épico, que ao revelar o herói civilizador efeitos da comunicação do Universo com
Zumbi, organizador do Quilombo dos Palmares o homem.
e sua democracia, reentroniza-o no presente O homem é um microcosmo que se integra
como organizador da consciência negra e por com o céu. O céu tem três tesouros – o sol, a
isso vale-se do texto poético. Como tal, passeia lua e as estrelas, que não envelhecem. O homem
por múltiplas formas de rituais iniciáticos: os tem condições de integração com a energia
encontros universitários, congressos nacionais cósmica. O transe místico no “Candomblé” signi-
e internacionais, as Escolas de Samba, as reli- fica ausência de qualquer preocupação externa.
giões afro-brasileiras, as sessões de soul music, O êxtase místico é uma mediatização com as
trazendo os anseios e os ritmos negros como energias que curam.
continuadores da História dos povos africanos da A África nos traz caminhos para o estudo
Diáspora. Não é por menos que Ôrí, que em Iorubá da ciência da vida e da natureza da alma humana.
significa “cabeça”, ao realçar o papel dos bantus Abá significa esperança de paz espiritual.
na sociedade brasileira ao mesmo tempo projeta Significa também encontro. A crença na “luz”
a contribuição cosmogônica nagô dos orixás. Por e a chegada ao estado da contemplação.
fragmentos que correspondem a processos inici-
áticos, se quer um filme reflexivo sobre as atuais
condições do planeta: as relações do homem com o
outro e consigo mesmo, com a nação e a natureza. 12

*Texto originalmente publicado como release de divul-


gação para o lançamento de Orí (1989), dirigido por
Raquel Gerber.
*Texto originalmente publicado como release de divul-
**Beatriz Nascimento (1942-1995) foi historiadora, gação para o lançamento de Abá (1992), dirigido por
professora, roteirista, poeta e ativista. Raquel Gerber.
ensaios mostra Ebó Ejé 113

Porque “Ylê Xoroquê”?*

Raquel Gerber

Y
lê Xoroquê é uma proposta de vivência religião, mas como uma das formas da existência
e rompimento com os clichês impostos e resistência negra no Brasil em busca de seu
à experiência existencial do homem na sentido de humanidade.
nossa sociedade. Nossa história pode ser resu- As filmagens foram realizadas durante 1980/
mida pela destruição gradativa da identidade 1981 em um terreiro de origem Bantu, da nação
e da natureza – hoje ameaçada pelo homem. Angola Muchicongo, onde se preservam algumas
O desconhecimento do caudal e valores da das tradições mais antigas de Angola em plena
cultura negra como fator presente e atuante e cidade de São Paulo – maior núcleo urbano-in-
não somente como raiz, reforça nossa fragmen- dustrial do país, e alta expressão do desenvolvi-
tação e nos distancia de nós mesmos. mento da civilização ocidental na América. Mas
Aqui vivemos o confronto de várias as línguas faladas no filme Ylê Xoroquê, que não
civilizações. conhecemos, traduzem outro processo civili-
O filme propõe viver, sentir e pensar as zatório, e a comunhão de Angola com os funda-
relações entre a pessoa e a cultura e as deter- mentos das nações Keto e Gege. Perguntaríamos
minantes culturais da formação da personalidade se o Candomblé no Brasil supera as diferenças
e identidade da criança numa família tradicional entre diversas etnias. Como está o homem negro
negra. Por outro lado, na concepção de mundo na sociedade brasileira de hoje?
africano o homem tem relações profundas com Dentro de outra concepção do mundo,
as forças da natureza que são simbolizadas pelos na civilização africana, no filme Ylê Xoroquê é
próprios “Orixás” (deuses) cuja morada original preciso deixar-se envolver por imagens, sons,
são as matas. E isto indica uma relação mais cores, corporalidade, ritmo, panos, outro espaço,
densa com o mundo instintual que a civilização outro tempo, da cor branco total – energia total
ocidental perde a cada momento. de Oxalá ao negro total que é matéria pura, para
No caso do homem negro, o filme aborda encontrar-se com Ogum Xoroquê, Orixá guerreiro,
um fato cultural que é: a confirmação da iden- defensor, Xangô, símbolo de realeza e justiça,
tidade da pessoa com seu “Orixá” (seu deus que Ossanha, rei das matas e Oxum das águas doces,
é igual a ela mesma) através da “iniciação”, onde cujo significado é a própria maternidade reali-
se confirmam ligações com o mundo dos mitos zando-se - A Criação e o Nascimento.
e de seus ancestrais, através do candomblé –
a religião dos “Orixás”. Mas Ylê Xoroquê não é
somente um discurso sobre o candomblé como São Paulo – Brasil, 05 de Novembro de 1981

*Texto originalmente publicado como release de divulgação para o lançamento de Ylê Xoroquê (1981), dirigido
por Raquel Gerber.
114

Brasil – o continente
indecifrável de terras ocultas*

José Sette**

C
onheci o escritor, etnógrafo e antropó- seus vastos conhecimentos sobre nossa terra.
logo, Nunes Pereira, em 1975, logo após Nunes possuía, na sua lúdica memória, as mais
terminar as filmagens do meu primeiro fantásticas histórias sobre seu amigo o alemão
filme “Bandalheira Infernal”. Fui até a sua casa Curt Nimuendajú, naturalista que todos ecolo-
que ficava no bairro de Santa Teresa, no Rio gistas de hoje em dia deveriam conhecer. Tinha
de Janeiro. Ele estava com 83 anos (nasceu em um humor sarcástico e contava-me, as garga-
1892). Cheguei até ele durante uma pesquisa que lhadas, quando o confundiam com o músico
eu fazia sobre os índios Maués. Fiquei amigo Nelson Cavaquinho (eram realmente muito pare-
fraternal deste sábio mestiço, nestes seus últimos cidos). Tudo que ele sabia e me interessava vinha
dez anos de vida. Ele frequentava a minha casa sempre em doses homeopáticas, como se ele
no Alto da Boa Vista e eu a sua. Conversávamos quisesse com isso prolongar os nossos encontros.
sempre sobre o Brasil e sua gente. O índio, o Um dia, depois de me ter presenteado os dois
negro e o branco: “as três raças tristes”, como volumes, com uma bela dedicatória, o seu livro
ele gostava de dizer. Nunes Pereira tinha uma “Moronguetá - Um Decameron Indígena”, conjunto
cultura geral extraordinária e via nele o intelectual monumental de lendas indígenas, prefaciado
experimentado que eu estava precisando para pelo grande poeta Thiago de Mello, de repente,
escrever um roteiro sobre o Brasil profundo que com grande alegria, retirou um livro que estava
ele gostava de chamar de “do continente indeci- escondido na sua vasta biblioteca com o título
frável de terras ocultas”. Seria um filme sobre as de “A Casa das Minas” e me disse: “Leia, Sette,
origens do homem brasileiro. Ele adorava essa aqui está o começo da história oculta do Brasil!
ideia, principalmente pelo tempero mágico que Aqui eu nasci, aqui eu cresci, vamos começar por
eu insistia em colocar nesta sopa antropológica. aqui”. Li o livro e, em 1976, rodamos a primeira
Com uma didática irrepreensível, ele me falava, parte do filme, guiado pelo velho morubixaba, em
lembro-me bem, com muita intimidade, do um Terreiro Mina Jeje de Dona Zuleide Amorim,
francês Roger Bastide e do Claude Lévi-Strauss, no Rio de Janeiro. Só quando fomos exibir o
enquanto me passava, com graça e traquejo, os filme na posse de Nunes Pereira na Academia

*Texto publicado como release de divulgação para o relançamento do filme Nunes Pereira – A Casa das Minas
(1978), dirigido por José Sette.
**José Sette é cineasta, roteirista, montador, diretor de fotografia e produtor cinematográfico nascido na cidade
de Ponte Nova (MG) em 1948.
ensaios mostra Ebó Ejé 115

Maranhense de Letras, é que rodamos a segunda a realmente tratar dos resquícios da cultura de
parte, agora na Casa das Minas da Rua São Panta- africanos naquela parte do Brasil”.
leão em São Luís. De volta ao Rio terminamos O tempo passa, já faz muitos anos que
a edição do documentário em duas partes e tudo isso aconteceu. Sinto-me hoje no dever
fizemos uma primeira e única exibição em 1978 de reviver a figura deste maranhense notável que
no MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio com a foi o meu amigo Nunes Pereira, restaurando e
presença de Nunes Pereira, Dona Zuleide e de reeditando os dois filmes sobre o livro “A Casa
toda equipe do filme, e foi quando seu ilustre das Minas” que é uma inestimável contribuição
amigo o mineiro José Aparecido de Oliveira fez, ao estudo das sobrevivências do culto dos vodus,
com sua brilhante oratória, um belo discurso de do panteão Daomeano, no estado do Maranhão.
apresentação e de defesa do grande antropólogo (Editora Petrópolis, Vozes, 1979). Assim, revi-
maranhense. Em 1985, pouco tempo após ele ser vendo essas histórias de gratas lembranças e
homenageado na produção do meu filme sobre de profunda amizade, foi que ressurgiu o filme
o poeta modernista francês Blaise Cendrars “Um “Nunes Pereira – A Casa das Minas” que terminei
Filme 100% Brazileiro”, ele veio a falecer. hoje a sua segunda e definitiva reedição.
Tendo passado mais de meio século de sua Por sua importância cultural espero poder
vida nonagenária trabalhando, viajando e escre- exibi-lo, o mais breve possível, em todo terri-
vendo as lendas que ouvia dos índios, com os tório nacional.
quais conviveu grande parte de sua vida, quando Assim, conto com o apoio dos amigos, dos
eu o conheci ainda movimentava, com nobreza produtores, distribuidores e exibidores, para
e inteligência, suas atividades de pesquisador que possamos juntos homenagear e dignificar
etnológico, viajando nas matas amazônicas, no a memória desse grande brasileiro.
Estado do Maranhão e por todo Brasil. Em sua
longa vida aproximou-se e cultivou a amizade
dos grandes vultos da ciência e da literatura em
nosso país e no exterior.
Nunes Pereira, amigo de grandes poetas e
de artistas que quando o viam, com sua cabeleira
branca cobrindo a máscara do velho morubixaba,
se perguntavam: por que ele teria saído de seus
habituais cuidados para com o homem tribal
amazônico e com a ecologia da hileia para tratar
dos remanescentes culturais dos Daomeanos na
Atenas Brasileira? A resposta vinha da alma de
menino ainda, memória de muito antes de ser
o grande etnógrafo indianista em que se trans-
formou. – “É que fui entregue por minha mãe,
D. Felicidade, à proteção do Vodum Badé, com
suas contas azuis, na casa matriarcal das Minas,
e, acolá, durante muito tempo, verifiquei a ritu-
alística Jêje, motivo da minha obra, a primeira
116

Cinema e descolonização*

Ismail Xavier**

N
a abertura do Seminário, dia 12 [de dentro de um espaço onde se toma possível e
Janeiro de 1981], a convite do SECNEB, indispensável o discurso das comunidades, e
Jean-Claude Bernardet fez uma apre- não apenas o discurso sobre elas, os trabalhos
sentação inicial de algumas questões a serem do SECNEB e o próprio seminário ofereciam a
debatidas durante os encontros. Basicamente, oportunidade de discutir esse problema central.
trabalhou a distinção entre “discurso sobre” – Nesta apresentação, Jean-Claude definiu
entendido como um discurso que, de fora, alguém bem a preocupação dos organizadores do
faz sobre uma determinada comunidade ou encontro e antecipou o elemento básico que se
grupo social – e “discurso de” – entendido como mostrou subjacente às diferentes discussões
uma fala que emana do próprio grupo focalizado que envolveram os participantes ao longo dos
e, portanto, expressa sua forma de encarar a três dias. Seja frente às dificuldades específicas
própria experiência, sua visão de si mesmo e encontradas pelo SECNEB no seu trabalho cine-
dos outros. Diante da tendência dominante de matográfico, seja frente à presença do negro em
se ver no Brasil um discurso sobre as classes determinados filmes brasileiros, um dos pólos
dominadas e “minorias” elaborado por alguém fundamentais do debate foi a diferença de enten-
que, não pertencendo ou não estabelecendo um dimento havida quanto à presença ou não de uma
diálogo profundo com o grupo tomado como ideologia de “recalcamento da cultura negra” no
tema, fala em seu nome e apresenta a seu modo profissional de cinema ou nos filmes.
as questões que julga essenciais, considerou Na primeira sessão do seminário, Marco
benvinda a recente evolução de trabalhos que Aurélio Luz fez uma recapitulação histórica das
procuram caminhar em sentido contrário. Se dife- diferentes formas pelas quais a cultura produzida
rentes grupos de cineastas e pesquisadores, em pelo branco construiu uma imagem do negro que,
especial os que têm discutido a questão do negro passo a passo, se mostrou correlata aos inte-
no Brasil, manifestam hoje esta necessidade, resses da dominação que marca a trajetória do
que envolve método e ideologia, de se mover negro no Brasil desde a implantação do sistema

*Ismail Xavier é teórico brasileiro e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
**Texto originalmente publicado na revista Filme Cultura, n. 40, ano XV, ago/out 1982, p. 23-28. Nota da edição
original: Este texto foi escrito a partir de uma transcrição de fitas pessimamente gravadas durante o seminário
promovido pela SECNEB (Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil) em janeiro de 1981. A competência
da transcrição não impediu a existência de muitas lacunas e boa parte do que pude dizer resulta da combinação
entre o registro e minha memória dos debates e comunicações. Muitas pessoas que participaram do evento
talvez estranhem a não referência determinadas intervenções. Em algum casos, isto resulta do dado técnico, em
outros, é responsabilidade minha como narrador do acontecido.
ensaios mostra Ebó Ejé 117

colonial até hoje. Ora criando fantasias para tornar dos preconceitos que estava apontando, uma vez
legítima a escravidão, ora elaborando uma teoria que este desempenha um papel que, segundo
científica para justificar a subalternização do a sua análise, é de um homem degenerado pelo
negro como “cidadão da república”, o discurso fanatismo. Na discussão que envolveu Juana
dominante cumpre uma função ideológica funda- Elbein, José Carlos Avellar e eu como figuras
mental no esquema da dominação, alimentando a empenhadas, a tendência nossa (dos críticos de
permanência de uma mentalidade colonial que se cinema) foi solicitar uma análise mais ampla do
infiltra em diferentes tipos de produção cultural filme e suas relações internas, seu estilo, para
e artística, aparecendo às vezes onde menos se melhor situar a questão – eu insisti no fato que
espera. Se a fala de Marco Aurélio deu ênfase à Sebastião não é personagem que representa a
crítica ao racismo positivista de Nina Rodrigues e cultura negra dentro do filme, mas líder de um
à desvalorização nuançada do negro no luso-tro- movimento religioso camponês inscrito na esfera
picalismo de Gilberto Freyre, seu objetivo maior do cristianismo, e seus atos devem ser analisados
foi evocar certos aspectos marcantes da história como representação que o filme dá a esse movi-
do cinema no Brasil para salientar como nesse mento, não da origem cultural e étnica do ator.
cinema se manifestou e ainda se manifesta a Juana Elbein levantou uma questão que permite
“ideologia de recalcamento da cultura negra”. Se a extrair do nosso debate um tema mais amplo de
referência à chanchada e a momentos anteriores reflexão: um detalhe de uma obra, independen-
deste cinema não causou polêmica, a inscrição temente de suas relações com o conjunto, pode
do Cinema Novo no universo de linguagem que, deflagrar certas reações e revelar certas noções
frente à questão do negro, ainda não se libertou recalcadas que têm forte incidência no nível das
da herança colonial e seus estereótipos, abriu emoções de quem faz ou de quem assiste a um
espaço para discordâncias que se estenderam filme. A observação dela me fez lembrar uma
por todo seminário. O ponto de tensão não foi conversa com Jean-Claude onde o assunto era
tanto a formulação de um diagnóstico geral da outro, mas curiosamente tínhamos chegado à
produção dos anos sessenta e sua inclinação mesma questão: ele me perguntou até que ponto
populista, lugar de exacerbação do “discurso o tipo de análise a que estamos habituados não
sobre” o povo, lugar de uma pedagogia de “desa- tem o efeito de recalcar elementos que, estando
lienação” que já trazia pronto o esquema geral à margem ou no detalhe sem presença essencial
da história e queria definir a priori, em nome nas relações do conjunto, tem bastante relevância
do povo, qual era o perfil exato de uma cons- na recepção, tem impacto forte no espectador.
ciência lúcida, transformadora. Havia conver- Na verdade, apesar de partirmos do princípio
gência neste ponto. A discussão se instalou no de que o essencial é saber respeitar a coerência
momento de apontar filmes brasileiros determi- interna da obra – e para isso é necessária a análise
nados como portadores dos antigos estereótipos – é inegável que uma leitura de sintomas isolados
do negro afinados à mentalidade colonialista. traz também sua contribuição. Deixo aqui esta
No primeiro dia, Deus e o diabo na terra do sol sugestão para debates metodológicos. Quanto
(1964) de Glauber Rocha, concentrou as polê- a Deus e o diabo, nossa tônica no seminário foi
micas, dada a presença do ator Lídio Silva no a convivência na discordância, tremendamente
papel de Sebastião, o líder messiânico. Marco salutar. No terceiro dia, quando fiz a “defesa” de
Aurélio viu na presença do ator negro um sintoma Deus e o diabo através de uma leitura cerrada do
118

filme, suas contradições internas e a lógica das Tonacci que já demonstrou o quanto a ruptura
suas profecias, tive a convicção de que todos com o “discurso sobre” e o diálogo mais profundo
saímos ganhando daquela reiterada confrontação com comunidades específicas, se dá com muito
de perspectivas de análise. maior eficiência a partir do uso do videotape
Marco Aurélio deu outros exemplos de este- e não do cinema. O trabalho de Tonacci com
reótipos encontrados em filmes como Bye Bye os índios evoluiu nesta direção, do cinema ao
Brasil (1979, de Carlos Diegues), e Tenda dos Mila- vídeo e a tendência da pesquisa antropológica e
gres (1977, de Nelson Pereira dos Santos), ficando de comportamento é a utilização do vídeo, mais
a polêmica em torno de Xica da Silva (1976, de ágil no registro e imediato na reprodução (Jean-
Carlos Diegues) reservada para o segundo dia. E -Claude salientou bastante a lentidão própria à
a consideração mais detalhada do “caso Barra- tecnologia do cinema).
vento” para o terceiro. As considerações de Juana Elbein em
Outros aspectos da comunicação de Marco resposta a Jean-Claude começaram com
Aurélio Luz deram ensejo à concentração da a descrição do setor de documentação do
conversa em tomo dos problemas encontrados SECNEB, voltado para a construção da memória
pelo SECNEB em sua própria atividade cine- da comunidade a partir da gravação da fala dos
matográfica. Um primeiro deles surgiu de sua que conservam a “memória oral” do passado –
crítica aos cientistas do início do século, que o uso do vídeo está previsto quando houver
encararam a arte africana como manifestação recursos. Em seguida, reconhecendo que houve
de uma incapacidade congênita da cultura negra uma postura tática da divulgação do SECNEB na
em chegar a uma representação “correta” da escolha do cinema como veículo, Juana lembrou
realidade exterior. Para eles, as “distorções” da os obstáculos, não só de ordem econômica
arte africana seriam expressão de uma menta- enfrentados pelo grupo: no seu contato com
lidade “primitiva e doente”. Esta interpretação os meios eletrônicos de comunicação e com a
já largamente contestada pelo próprio desen- chamada grande imprensa, a SECNEB enfrentou
volvimento da arte na Europa e nas Américas distorções e caricaturas muito próprias aos
neste século, ao ser evocada no seminário mecanismos gerais da indústria de transfor-
como exemplo de etnocentrismo já superado mação, cujo efeito básico é mascarar exatamente
pela pesquisa antropológica, mas não ausente aquilo que para a Sociedade é questão nuclear;
da sociedade, forneceu a ponte para considera- na realização de filmes, há que se enfrentar as
ções sobre a tensão entre a linguagem do cinema dificuldades criadas pelo “contexto ideológico
dominante e a cultura africana. Jean-Claude em que está envolvida a linguagem cinemato-
observou que se poderia perguntar à SECNEB o gráfica”. No primeiro dia, Juana equacionou
porquê do seu empenho justamente na esfera rapidamente algo que desenvolveu em sua faia
do cinema. De um lado, frente a alternativas que ao final do seminário: há duas ordens de ques-
dariam maior ênfase à forma de expressão já tões. A primeira é o arsenal de códigos culturais
inseridas nos códigos da cultura africana, sem (tomados como verdades técnicas) que o profis-
as tensões com um meio de expressão forte- sional de cinema traz consigo – é, no momento,
mente marcado pela representação naturalista impossível contar apenas com os membros
em sua versão mais industrializada. De outro, das comunidades negras para realização de
frente à experiência de cineastas como Andrea filmes e o trabalho envolve profissionais com
ensaios mostra Ebó Ejé 119

distintas experiências. A segunda é a pesquisa de da sobrevivência de heranças coloniais neste


linguagem necessária para operar o que Juana particular. O cinema dominante, aquele que está
denominou “reformulação simbólica” ou também aí no mercado e cujos códigos e “magia” estão
“recodificação simbólica”, processo de encontrar já assimilados pelo brasileiro que vai ao cinema
os procedimentos especificamente cinematográ- e assiste à TV, é o cinema americano industrial
ficos capazes de traduzir o sistema simbólico da e seus similares. Observou que o cinema brasi-
comunidade, capazes de fazer do cinema um leiro, notadamente a partir do Cinema Novo, não
lugar onde a comunidade vê expressos os seus pode ser visto como um bloco; há experiências
valores e sua “visão do mundo” e vê retrabalhada diversificadas e as propostas alternativas são
a sua tradição e identidade em novos termos, muitas, todas elas procurando combater o
de modo a contribuir para que ela se processe efeito colonizador do esquema dominante.
dinamicamente no presente e não apenas celebre Efeito colonizador que atinge indistintamente
uma memória congelada, estática e separada da diferentes camadas da sociedade brasileira e
experiência atual. exige, no momento, uma análise mais detida para
Juana sublinhou: “é nosso firme propósito que se possa discutir melhor onde e como se
que a comunidade se instrumente. Depois, se ela manifestam nos filmes os “condicionamentos
vai querer fazer cinema ou não, é problema da colonizadores”. Avellar retomou os termos da
comunidade”. Por ora, é necessário o diálogo com discussão sobre filmes específicos e apontou
os profissionais e, se há sempre nas propostas o quanto as próprias diferenças de posiciona-
de cinema independente a possibilidade de mento presentes ao seminário estavam ligadas
uma tensão entre a experiência do técnico e a ao fato de que não estava claro o percurso de
linguagem buscada pelo cineasta, no caso do leitura que permitia diagnosticar a existência
SECNEB esta tensão se alia a outra mais ampla de preconceitos em certos filmes brasileiros,
que envolve a familiarização do profissional com que estariam sendo lidos com os instrumentos
a comunidade, a superação do estranhamento equivocados (ou com os olhos de quem está
mútuo, a necessidade de uma inserção pessoal marcado pela experiência diante do cinema
mais decisiva de quem faz o filme no universo da americano). Novamente retomou a questão das
comunidade, implicando um processo de entrega fronteiras do termo “colonização” e, em decor-
a que nem todo o mundo está disposto ou em rência, descolonização. Diante de solicitações em
condições de assumir. Na hora da filmagem, há nome de nuances e complexidades (dos quais fui
detalhes de comportamento e compreensão que também porta-voz em alguns momentos), Juana
são decisivos e tudo complica porque certos foi bem clara, sintetizando a questão decisiva
estranhamentos são inconscientes. para a SECNEB: “nosso universo de trabalho é
No que diz respeito à questão da linguagem a cultura negra e o negro; esse universo repre-
frente ao contexto ideológico onde se insere a senta um segmento da população que, do nosso
produção cinematográfica, José Carlos Avellar ponto de vista, tem de ser completamente revisto
lembrou a necessidade de se evitar um certo a nível do cinema nacional; haverá outros que
“achatamento”, que tenderia a opor o cinema colocarão o mesmo para o segmento do índio,
de pesquisadores da cultura negra – espaço para a mulher, para o homossexual, todas essas
privilegiado da descolonização – ao restante do tipicidades que a representação cinematográfica
cinema brasileiro tomado como um bloco – lugar focaliza traduzindo uma posição ideológica e uma
120

intervenção no contexto histórico dado. Então arte que volta a figurar uma escrava que aceita a
a leitura que a gente está tratando de fazer é aliança com o poder colonial pensando somente
uma leitura ideológica e política deste ponto de na ascensão de classe, ou seja, figura a individua-
vista específico”. lização daquele que “conhece o lugar”, daquele
No segundo dia, a conversa em torno de Xica que “suja na entrada ou na saída”.
da Silva refletiu as diferenças de acento, a maior A discussão foi longa. Ressaltarei apenas
ou menor sensibilidade dos debatedores ao apelo alguns pontos que permitem colocar questões
por uma revisão total, expresso nas palavras de mais gerais. Houve por exemplo o mesmo tipo
Juana. Beatriz Nascimento deu início à conversa de polarização havida frente a Deus e o diabo,
fazendo um histórico da polêmica que a envolveu desta vez mobilizando mais Avellar e Juana. De
após o seu artigo A senzala vista da casa-grande, um lado, a análise detalhada do filme e suas
publicado no jornal Opinião, quando do lança- relações internas era vista como sustentação
mento do filme de Carlos Diegues. Para ela, o para a defesa: o filme traria dentro de si todas
cineasta foi infeliz ao se comprometer com um as críticas endereçadas à personagem Xica da
esquema onde o negro se transforma em produto Silva. Ele não seria a exaltação dela, mas a sua
vendável num filme que acaba reproduzindo uma crítica. De outro, a referência às fantasias do
ideologia racista, uma visão estereotipada da branco face à mulher negra eram caracterizadas
mulher negra. Observou que, nos últimos anos se por Juana como ofensa à forma do feminino na
criou um “novo mercado do negro”, havendo uma cultura negra; a mulher-objeto que encarna uma
multiplicação de financiamentos a “produção disponibilidade sem lei para o erótico é uma
sobre” o negro, tanto nas artes quanto na área projeção do branco, que anula os valores básicos
acadêmica. Isto acontece exatamente quando relacionados com a mulher na comunidade negra
se organizam instituições que visam afirmar a onde o corpo é um elemento ritualístico, uma
“produção do” negro, a cultura afro-brasileira “partícula dos poderes universais; para a pessoa
no conjunto da cultura nacional. Xica da Silva foi que tem um orixá, é uma partícula desse orixá ...
“um desmentido aos nossos projetos de formação O que dá tanta força, digamos, à cultura afri-
cultural”. E foi vivido como experiência traumá- cana é que cada ser humano é uma partícula
tica por alguns setores. “Vejam bem que Xica profundamente ligada a conceitos e poderes,
da Silva surge num momento em que toda uma forças universais”.
faixa etária de jovens negros se preocupa em Jean-Claude lembrou que o tratamento
protestar contra a discriminação racial através dado por Juana ao filme de Carlos Diegues era
do som e das danças do Black Soul nas grandes igual ao que usualmente se aplica à pornochan-
cidades do Brasil. Sua nova identidade é a dos chada. E entre Xica da Silva e a pornochanchada
Muhammad Ali, dos James Brown, dos Malcom que focaliza a mulata como objeto sexual há uma
X e de outros líderes que lutaram para pôr fim à grande diferença. O filme de Diegues se propõe
crise racial americana. Vivenciamos como essa como liberador, como inversão de valores frente
produção cinematográfica que surge a partir aos preconceitos contidos no chavão: consciente
de Xica da Silva atua como um banho de água do cliché, se põe como paródia. Numa sugestão
fria numa população potencialmente produtiva; paralela à de Avellar, Jean-Claude afirma que a
enquanto esses jovens e não jovens buscam sua análise ideológica do filme passa por mediações
identidade racial positiva, é feita uma obra de que a tomam mais complexa.
ensaios mostra Ebó Ejé 121

A intervenção de Muniz Sodré retomou a “Nem todos os brasileiros tem olhos iguais”.
questão em outro nível de modo a englobar os Esta frase de Avellar gerou considerações as mais
vários aspectos levantados: a intenção de liberar diversas, começando por sua própria observação
está, no filme, comprometida com uma ideia falsa de que “é um pouco utópico a gente admitir que
de subversão, de mudança. A simples inversão de a responsabilidade do realizador com o filme
uma estrutura dada – no caso, uma estrutura de possa ser medida de imediato por uma reação
preconceitos e discriminações – não altera em particular de um grupo de pessoas que veem
nada o código, não existe uma mudança efetiva. É aquele filme”.
uma alternativa a partir do mesmo lance cultural Se, de um lado, esta formulação chamou
que sustenta a ordem, é uma inversão de sinal a atenção para a diversidade de experiências
que aceita os termos da equação. Nestes termos, gerada pela obra, a discussão sobre o espectador
Carlos Diegues representa uma determinada brasileiro levou à caracterização do mercado
consciência possível do intelectual progressista exibidor e os condicionamentos de natureza colo-
que, dando continuidade a uma visão carnava- nizadora por ele criados. Condicionamentos que
lista da História e do país inaugurada por Oswald embaralham a relação do público brasileiro com
de Andrade e a Antropofagia, é capaz de cele- o cinema brasileiro. Posta a questão do mercado,
brar rituais “de inversão”, abalos temporários colocou-se a tese de que Xica da Silva traz em
da ordem que se renova, mas não consegue ver sua própria textura de imagem e som a marca
acertadamente a posição da cultura do negro. das soluções de compromisso, onde se procura
Os próprios instrumentos da sua crítica à socie- reconciliar a postura crítica e os parâmetros do
dade o impedem de perceber a sua própria “boa espetáculo vigente e, assume-se o risco de ver
consciência paternalista”. “Eu acho que a coisa entrar pela porta dos fundos os estereótipos e
teria de ser encaminhada mais para uma revisão as discriminações expulsos pela frente. Na busca
dos padrões teóricos que informam a possibili- do diálogo com o público, há o envolvimento
dade de pensar que os intelectuais de esquerda inevitável numa batalha que tem várias frentes
transam. Um grande ‘grilo’ seu é não poder ver de luta. Se o seminário discutiu mais as questões
o imediatamente político na cultura negra, ou de ideologia e linguagem, não foi esquecido que,
nos fatos negros, ou nos fatos indígenas, ou em usando a fórmula de Marco Aurélio Luz, “cinema
qualquer fato. Ele não vê o político se traduzir e descolonização” é também descolonizar o
imediatamente a partir das possibilidades que mercado, que não foi construído por nós.
tem de entender o que é política”. No terceiro dia, a primeira parte do semi-
Essas observações, quanto às limitações nário foi dedicada à minha leitura de Deus e
fundamentais desta subversão pela inversão que o diabo – capítulo de trabalho que estava em
mantém os dados do problema dentro das regras andamento na ocasião (janeiro de 1981). Sinteti-
do jogo, foram retomadas por Jean-Claude. Este zando os problemas do “cinema de autor” e as
concluiu que, nestes termos, o problema de Xica exigências da militância pedagógica de efeitos
da Silva estaria no fato de que a intenção de conscientizadores imediatos, o filme de Glauber
liberar se fez dentro do quadro de referências nos dá um rico exemplo de como a obra de
do intelectual que tende a projetar em suas arte não é um duplo da ideologia, não reflete
personagens questões que pertencem ao seu apenas intenções, mas é síntese do processo
próprio universo. de produção, com todos os problemas. Uma
122

vez pronta, apresenta tensões entre a busca melhor sua leitura dos sintomas do recalque da
de uma determinada coerência e as múltiplas cultura negra em alguns detalhes ou cenas de
contradições internas que cabe à análise elucidar. filmes. Lembrou cenas de Iaô, documentário de
No caso de Deus e o diabo, para resumir aqui, Geraldo Sarno – as imagens da camarinha esco-
procurei caracterizar os movimentos internos lhidas pelo cineasta não seriam casuais: “a vida
de um filme que oscila entre a visão “de fora” de uma noviça 24 horas na camarinha tem muitos
da experiência do camponês, submetendo-a à momentos; tem momentos de lucidez, de semi-
crítica de quem possui uma formação erudita, e a consciência, etc.... o filme recorta as 24 horas e
visão “de dentro” desta mesma experiência, uma a imagem que escolhe transmitir para a plateia
vez que a recapitulação de um trajeto histórico é de uma Iaô ‘babada’, com a câmera chegando
procura se afinar aos parâmetros da tradição bem perto...”. Apesar da indubitável boa-fé de
oral do sertão, a qual expressa uma determi- Geraldo Sarno, “há uma distância entre a intenção
nada forma de consciência. No filme, a tensão consciente de quem realiza e a introjeção de toda
entre o “expressar uma consciência” e “expli- uma história de cinco séculos de colonialismo
cá-la de fora” está presente o tempo todo. Há que afeta a percepção. Eu tenho o maior respeito
dois movimentos que marcam a convivência de por Geraldo, sinto que não quis mostrar que a Iaô
perspectivas, uma apoiada na outra. Há um certo é isto, mas é o que passa para a plateia”.
diálogo dentro do filme, diálogo num sentido bem A questão de filmar ou não dentro da cama-
determinado. Ou seja, não é que existam dife- rinha – “quando o cinema entra na camarinha, ele
rentes perspectivas simultaneamente – o funda- já está violentando o grupo porque é contra todas
mental é que elas afirmam, perante a mesma as normas” (Juana) – nos levou de Iaô a Barra-
questão, coisas opostas. De um lado, temos a vento, pois o filme de Glauber Rocha traz também
crítica à alienação religiosa própria à pedagogia este dado de violentação ao que foi explicado
da época; de outro, é o próprio sistema simbólico como inerente à própria condição do espaço
submetido à crítica que acaba por organizar o sagrado. “Quando eu saí do filme eu falei que
andamento de tudo dentro do filme. A lógica não precisava filmar na camarinha, que não podia
de sua profecia – “o sertão vai virá mar” – não filmar na camarinha; isto era um ponto sensa-
está apoiada exclusivamente em metáforas que cionalista. Barravento tem camarinha filmada,
apontam para o modelo da luta de classes: a mas com os meninos, com os garotos de cabeça
profecia se constrói enquanto termo final de raspada como se fossem garotas” (Luiz Paulino).
uma teologia que tem fundo metafísico, que se Luiz Paulino dos Santos, autor do projeto original
sustenta nos estratagemas do destino apontados de Barravento, prestou o seu depoimento, colo-
pelo cego cantador e por Antônio das Mortes. cando a sua experiência na história deste filme
Discutida esta questão da “lógica da controverso que, como todos sabemos inclusive
profecia” – o “plano da história” que traz a a partir do que o próprio Glauber já declarou, foi
certeza do sertão virar mar –, voltamos ao assumido por este a meio-caminho quando já
detalhe de Lídio Silva, ator negro, e enveredamos em fase de filmagem.
por considerações sobre o impacto da cena do No primeiro dia do seminário, Paulino já
sacrifício da criança em um público marcado por havia antecipado alguns dados, falando de sua
um contexto ideológico de barbarização do negro. origem – “eu tenho um avô preto... e o que
Juana procurou outros exemplos para explicitar me levou mais à temática foi uma questão de
ensaios mostra Ebó Ejé 123

amor mesmo e reconhecimento, apesar de que (Glauber), por quem ele nunca deixou de ter
eu tenho também uma questão índia em mim; “admiração, carinho e amor... simplesmente
um massacre de índios que eu vi quando era existiu um fato que nos levou a um atrito, quando
menino me traumatizou a tal ponto que eu fugi houve uma infantilidade da minha parte e da
um pouco da coisa; e aí, estudando daqui e dali, dele, que a gente não soube contornar, porque
eu fui levado mais à questão afro”. Quanto ao houve elementos estranhos que vieram provocar
breque na realização do filme, Paulino já fizera isto”. Na Bahia, “a gente fazia um cinema humilde;
uma observação: “o candomblé na realidade era carregava o tripé nas costas e descia a ladeira
visto como uma coisa meio estranha, uma coisa da Conceição ou a ladeira da Montanha para ir à
que se podia aguentar assim até certo ponto... rampa do mercado, quando estive filmando Um
mas ali naquele filme havia verdade demais, prin- dia na rampa. O negativo era coisa de amealhar
cipalmente porque tinha se voltado para uma o dinheiro de cada um... tínhamos na Bahia uma
outra perspectiva... a progressista não me inte- câmera que sobrara da campanha de um prefeito
ressava nunca...”. O progresso, a seu ver, implica que queria ser governador”. No meio do processo
a eliminação daquelas comunidades como a de eleitoral, alguém comprou uma Arriflex e não
Buraquinho, focalizada no filme, verdadeiros tinha como usá-la “com esta máquina foi feita
redutos de uma cultura autêntica que desapa- muita coisa de cinema na Bahia”.
receram. “Houve exigências, disseram que eu “Quando eu conheci o Glauber, eu o conheci
não poderia ser lírico, nem poeta, que eu devia dentro de um movimento integralista, chamado
ter uma visão crítica... exigiam a visão crítica e CEPA – Centro de Estudos de Pensamento e
me deram a ‘liberdade’ de ser político”. Ação – fizemos amizade; conversa de parceiros
No seu depoimento no terceiro dia, Paulino de noites a fio.” Quanto ao CEPA, concluíram que
lembrou que a concepção original do filme nunca aquilo não dava – “isso não é simpático ao cinema,
foi levada em conta – não interessou à crítica, de não é simpático à arte”. Paulino comentou que
direita ou de esquerda, considerar o nascedouro o curioso era que as paredes todas do CEPA
do filme em sua posição mais em defesa da eram pintadas “pelo Raimundo de Oliveira, que
cultura negra, mais coerente com o próprio era pessoa ingênua, de uma pureza incrível, e
candomblé e preocupado com a repressão a nem estava sabendo que aquilo ali era integra-
este, e não com os imperativos do progresso. A lismo”. A coisa não dava pé e “partimos para
política do projeto original era de compromisso outra, trabalhando em outro sentido”. Aqui, o
com a afirmação do negro, dos princípios de depoimento evoca os contatos com o Rio, a ativi-
uma cultura, dos seus ancestrais. “A história de dade intensa de Glauber nas articulações que
Barravento é a busca da liberação. Aquela rede é deram origem ao Cinema Novo; o incentivo de
uma desgraça daquela gente; vem do progresso... Walter da Silveira aos jovens cineastas baianos, o
entre este e os orixás, quer dizer, as forças da contato com Nelson Pereira dos Santos. O histó-
natureza – isto seja bem explicado – eu fiquei rico chega a Barravento, a descoberta de Lídio
com as forças da natureza...”. Paulino, no depoi- Silva, as conversas com o pessoal do candomblé,
mento, reiterou a sua crítica ao falso progresso a preparação do filme – elementos evocados
cultural e social promovido pela burguesia e as rapidamente por Paulino.
multinacionais. Para ele, o filme que resultou A avaliação do significado deste episódio
é coerente com o ponto de vista do realizador para a sua carreira como cineasta fez com que
124

ele retomasse as dificuldades com que deu reconhecimento íntimo. Foi uma conversa muito
continuidade ao seu trabalho, comentasse a sincera, eu digo mesmo quase sagrada, que me
experiência de Crueldade Mortal (1977), sua deu estímulo. Eu estava a ponto de sucumbir.
participação como diretor de um episódio do Não fora a conversa com o Paulo Emílio e eu
longa-metragem que está sendo produzido teria sucumbido”.
pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio Ao final, Paulino esclareceu que tem
de Janeiro e o seu atual projeto apresentado a intenção de publicar o roteiro original de
Embrafilme e aprovado dentro do Programa de Barravento. “Eu peguei isto porque o pessoal
Desenvolvimento de Projetos, roteiro que leva do cineclube Barravento estimulou um pouco...
adiante a sua preocupação com a temática do achavam que eu tinha mágoa e não ia ao cine-
negro. Na recapitulação, não poupou referências clube... barravento é uma palavra muito bonita;
negativas à crítica, num diálogo franco comigo e o próprio Guimarães Rosa me perguntou pelo
com Jean-Claude (Avellar não estava presente). título do filme, ‘foi você quem deu?’... E eu falei
Finalmente, contrapôs o usual silêncio da crítica ‘foi’. Ele falou: ‘mas é uma coisa muito bonita’...
frente ao caso Barravento a uma conversa que Agora, barravento não é título apenas porque é
teve com Paulo Emílio já na década de setenta. uma palavra bonita, é pelo que significa; é um
“Paulo Emílio esteve me procurando porque ele termo revolucionário, é a mudança, é a transição”.
queria saber mais sobre Barravento no aspecto O seminário se encerrou com longa conversa,
religioso... conversamos e evidentemente chegou infelizmente não gravada, onde Juana comentou
um momento em que falei: ‘pois é, Paulo Emílio, em maiores detalhes os problemas da prática da
esta parte aqui, que se passa onde está o Hotel SECNEB na lida com o cinema, fazendo consi-
Meridien, eu filmei, assim como outras...’. Então, derações sobre o cinema antropológico em
o Paulo Emílio ficou perplexo na cadeira, e eu geral. Reiterou os problemas de comunicação e
senti que os dois olhos dele tomaram todo o compreensão mútua que aparecem no momento
espaço, toda a figura dele, não como se fosse em que a equipe de profissionais – hoje neces-
um detalhe, mas como se fosse uma super-im- sária – estabelece contato com as comunidades,
pressão, tal a perplexidade de saber que no filme bem como as dificuldades por ela encontradas
tinha cenas que eu havia filmado. Eu, por uma para pensar um cinema que incorpore a si os
questão de educação, disse que o Nelson Pereira códigos da cultura negra. Na discussão com as
(que foi o montador do filme), para dar tempo pessoas que tinham visto os filmes nos dias ante-
ao filme, teve de colocar estas cenas. Agora, riores, ficou patente o consenso de que o trabalho
o Paulo Emílio sabia, por um depoimento do tinha evoluído muito na direção desejada, mas ela
Glauber dado a Raquel Gerber, que o Glauber mesma sublinhou as limitações do que até então
havia dito que meu original era uma história mexi- havia sido feito no sentido de produzir um cinema
cana com prostitutas e gigolôs. Isto está no livro que não fale sobre a codificação do mundo elabo-
da [editora] Paz e Terra prefaciado pelo Paulo rada pela cultura negra, mas seja esta própria
Emílio. Ora, como uma estória mexicana com codificação em ato, expressa em termos de
prostitutas e gigolôs, a que Glauber se referiu imagem e som.
em tom pejorativo, estava inserida no filme que
ele estava assinando? Daí toda a perplexidade do
Paulo Emílio, que me deu um abraço assim de
ensaios mostra Ebó Ejé 125

Viver e morrer, o último quilombo*


sobre Egungun (1982), de Carlos Brajsblat

Orlando Senna**

A
luz atlântica brilha na água verde e na Estes conceitos, como se sabe, foram
praia incendeia a ilha de Itaparica, os pré-concebidos, nasceram da desinformação
coqueiros, a aldeia de pescadores há e da estratégia de imposição dos valores euro-
pouco descoberta pelos turistas. O alagbá peus. E se alimentam no etnocentrismo do poder
Antônio Daniel de Paula, 108 anos de idade, sorri brasileiro. A dificuldade em perceber as impli-
e pousa os olhos no mar, enxuga uma lágrima cações reais do candomblé, dos orixás, a função
de velhice e volta a falar para a câmara e para psicossocial dos terreiros – devido à branca e
os que se escondem atrás dela: “pra quem não espessa cortina de fumaça lançada pelos deten-
sabe é nada, nada, nada. Do nada Deus fez o tores da difusão cultural – não significa que estas
mundo”. Refere-se ao culto dos oguns, dos espí- relações tenham perdido sua força ou seu caráter
ritos dos mortos, segundo práticas herdadas da de afirmação social. O contrário é, naturalmente,
cultura nagô e replantadas no universo simbó- mais verdadeiro: o patrimônio cultural africano
lico afro-brasileiro. É o tema de Egungun, docu- e seus mecanismos interferentes tornaram-se
mentário longo realizado por Carlos Brajsblat e mais dinâmicos à medida em que se viam amea-
Juana Elbein dos Santos com assessoria direta çados – de maneira empolgante e espetacular
de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre como as escolas de samba do Rio de Janeiro e
Didi, escultor, escritor e sacerdote. É o terceiro o aumento progressivo de afoxés e blocos negros
de uma série de filmes projetada pela Secneb – em Salvador da Bahia; de maneira persuasiva,
Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, penetrando fundo no tecido psicossocial através
cujo sentido é uma revisão dos conceitos (histó- do desdobramento e assimilação dos orixás nos
ricos, religiosos, filosóficos, sociológicos) sobre cultos sincréticos brasileiros, umbanda, batuque,
a presença e a importância do elemento africano macumba, jarê; de maneira densa, sutil, primal
na composição da sociedade brasileira – prin- e misteriosa, mantendo no decorrer dos séculos
cipalmente como este elemento se comporta mitos – estrutura de identidade cultural – cuja
na química política das etnias, de que maneira origem se perde nos milênios da África.
preserva e projeta suas instituições no espaço O culto aos eguns inscreve-se nesta última
multicultural e muitas vezes hostil do país, de categoria. O egun, espírito de alguém que viveu e
que maneira os exercícios míticos e rituais se morreu, é uma manifestação intimamente ligada
manifestam como afirmação social. à vivência humana, à história e à estrutura da

*Texto originalmente publicado na revista Filme Cultura, ano XVI, n. 41/42, p. 68-70, Embrafilme, maio 1983.
**Orlando Senna é cineasta, roteirista e escritor baiano.
126

sociedade. Portanto, um conceito diverso do A radicalização desta experiência, inédita no


orixá, manifestação cuja simbiose se faz com a Brasil, resultaria (resultará) no surgimento de
natureza, com a criação do tempo, do mundo, do uma equipe de criação de dentro, formada por
homem. Orixás e eguns não se manifestam juntos, gente dos terreiros. A câmara na mão e no olho
no mesmo espaço sagrado, sendo cultuados da Yaô, a moviola manipulada pelo babalaô, o
em terreiros diferentes, com liturgias próprias. que transa o mistério.
Com os orixás o homem aprende e joga com as Outras experiências neste rumo – o caminho
relações cósmicas, com as poderosas energias desconhecido do cinema – foram tentadas e
do universo. Com os eguns o homem aprende e interrompidas: por Sol Worth e John Adair com
joga com as relações sociais, grupais, familiares. os índios navajos (Through Navajo Eyes), por
Mas como os orixás, os eguns são percebidos à exemplo. E por mim mesmo, envolvido em algo
direita (os masculinos, Baba-egun) e à esquerda semelhante com os garimpeiros da Bahia. São
(os femininos, lyá-agbá) e também neste aspecto tentativas de romper o conceito imperialista
os cultos são separados. As mulheres ancestrais de “tecnologia reservada”, aplicada ao cinema
se manifestam em coletividade, suas materiali- como autodefesa dos detentores dos meios
zações representam o poder feminino como um de produção. Os povos do hemisfério Norte
todo, todas as mulheres que passaram sobre a sabem fazer cinema, porque podem; os povos
terra se expressam como a Grande Mãe, segundo do hemisfério Sul não sabem fazer cinema porque
os ritos da sociedade secreta feminina Geledê não podem, não são industrializados. Conside-
(tema do filme anterior produzido pela Secneb, rando que alguns países meridionais são semi-
lyá-mi agbá). Os homens ancestrais se mani- industrializados e que o fascínio do cinema nos
festam individualmente, são reconhecidos e faz superar deficiências e desafios, a “tecnologia
chamados pelos seus nomes, invocados segundo reservada” dos europeus e norte-americanos
os ritos da sociedade secreta masculina Egungun. é uma meia verdade – a China, por exemplo,
desmontou uma câmara Arriflex, copiou pacien-
Iniciados temente cada uma das peças em tornos rudi-
Ambos os filmes e mais o primeiro da série, Orixá mentares e montou várias câmaras, ponto de
ninu ilê, originam-se do livro de Juana Elbein dos partida de seu cinema documental. Esta meia
Santos, O nagô e a morte, onde também está (um verdade, o fator indústria, é o meio obstáculo
dos capítulos) o argumento de Samba da criação para o crescimento de uma expressão audiovisual
do mundo de Vera Figueiredo. Responsável pela dos países pobres, dos povos e grupos nacionais
direção de Orixá ninu ilê (79) e de lyá-mi agbá e raciais discriminados na distribuição do poder
(80), Juana promove a formação de uma equipe e da riqueza humanos. Outro empecilho não há: a
iniciática de cinema para a realização dos filmes vocação cinematográfica é universal, a audimagem
produzidos pela Secneb, no intuito de reduzir em movimento é uma conquista do homem, o filme
os ruídos culturais na abordagem e interpre- é um meio de expressão a que todos têm direito.
tação dos temas. E reduzi-los a um mínimo Nenhum impedimento ou retração cultural separa a
possível como meta ideal, chegar a um grupo de África do cinema – sendo prova bastante o cinema
artistas e técnicos altamente familiarizados com popular que se faz hoje em Moçambique, vento
o complexo cultural afro-brasileiro e pessoal- renovador na linguagem e no destino dos filmes.
mente integrados em seus princípios existenciais. Nenhuma restrição de caráter religioso afasta as
ensaios mostra Ebó Ejé 127

novas técnicas de comunicação de milenar cultura O que não se vê


nagô, dinâmica por excelência. O resultado mais imediato da interação da equipe
Juana Elbein dos Santos persegue a ideia de com o tema e a locação, a comunidade Omô Ilê
uma equipe iniciática centrada no assobá Mestre Agboulá de Ponta de Areia, Itaparica, é que o filme
Didi e o trabalho está avançando lentamente de não idealiza esta comunidade, não tenta denun-
filme a filme. Talvez a equipe ideal esteja ainda ciá-la ou protegê-la: veicula sua história, suas
distante, mas nenhuma experiência conhecida por relações, alegrias e crises segundo uma perspec-
mim chegou tão longe nesta direção, impressão tiva interna, da própria comunidade que, por ser
confirmada por Egungun, onde a participação de específica, não se posiciona como berlinda de
integrantes do culto na filmagem, na montagem e comparações e análise exterior. O filme tenta
na concepção geral foi decisiva. O diretor Carlos expressar-se no ritmo comunitário, diluir sua
Brajsblat, participando do projeto Secneb há sintaxe na linguagem da aldeia de pescadores
quatro anos, convivendo com os cultores dos que estão deixando de ser pescadores em virtude
eguns em várias ocasiões, minuciosamente asses- das mudanças sociais e econômicas que ocorrem
sorado por Mestre Didi e por Juana, etnóloga que em Itaparica. Os autores do filme se esforçam
estuda e vivencia há quinze anos o assunto, coloca- por ver com os olhos da comunidade, operação
se como um intermediário capacitado, como uma compensada pela aura de verdade que perpassa
ponte entre a matéria bruta, virgem, desconhe- de sequência a sequência, enfatizando a sutil e
cida das sociedades secretas afro-brasileiras inquebrável ligação entre os símbolos e as coisas
(linguagem arcaica) e a técnica som/imagem/ mais importantes da vida, do dia-a-dia; um jeito
ação do cinema e TV (linguagem eletrônica). Esta de ver/ouvir que mantém intacto o enigma da
ponte, altamente sofisticada, é pênsil, como me aldeia e do filme, o segredo egungun. Pelo resul-
parece que sempre deve ser, lançada ao espaço tado em si e pelas possibilidades futuras desta
rente às águas plácidas ou revoltas da inspiração interação – um cinema comunitário – Egungun
pessoal, constantemente molhada por elas, pelos produz momento de pura emoção.
impulsos da demiurgia artística, outro mistério. A luminosidade dos dias de Ponta de Areia
contrasta fundo com a escuridão pré-elétrica das
noites, quando os espíritos dos antepassados se
materializam com voz rouca ou aguda e os vivos
se purificam para receber e distribuir o poder
que emana deles. Durante o dia, na festa anual
do Omô Ilê Agboulá, as mulheres pegam água
em latas e potes, os homens pescam, cuidam
da lavoura de frutas ou dão serviço nas compa-
nhias imobiliárias, em algum momento todos se
banham no mar esmeralda e os garotos brincam
de ojés correndo com suas varinhas à guisa
deixam, chicoteando o chão. A noite os verda-
deiros ojés, os iniciados na sociedade secreta
Egungun, utilizam os verdadeiros ixans, longas
varas mágicas, para trazer os espíritos do mundo
128

dos mortos (orun), mantê-los separados dos vivos tiras de pano, embaixo das tiras ninguém sabe o
enquanto estiverem neste mundo (aiyé) e rein- que tem, a morte ninguém sabe o que é”.
troduzi-los de volta ao além – o ixan separa o
mundo dos vivos do mundo dos mortos, um egun Enredo
não pode se aproximar de pessoa viva, não pode O enigma soa nos cantos em nagô, no silêncio
ser tocado. É o instrumento do ajé, sacerdote risonho e nas frases dos ojés, da morte só as
detentor do segredo da sociedade masculina – e roupas são visíveis. Na simbologia nagô (cultura
também de grande sabedoria e senso de equilí- da África Ocidental expandida para a América) a
brio, em razão mesmo do extraordinário caráter morte tem caráter masculino, em algumas lendas
de sua missão, canal aberto entre os vivos e os é um incansável guerreiro que devolve à terra o
mortos. São pessoas especiais que passam por pó dos corpos humanos para que outros corpos
longo noviciado e ritos de iniciação, guardando possam nascer. Sendo a morte o único canal
para sempre o mistério que envolve a sociedade que possibilita a continuidade da vida humana,
egungun. Os ojés falam para a câmera: “o sonho através da constante renovação de corpos, é
de todo menino é chegar a ser ojé” / “vi coisas também, em consequência, o único veículo da
maravilhosas que só um ojé pode ver” / “no dia expansão da espécie. Assim, os eguns se rela-
de minha iniciação senti que não vou morrer, cionam, luminosamente, com a perenidade da
os iniciados no mistério não morrem, vão para existência humana, com a mais exaltada alegria
o lugar do renascimento”. da vida. Morrer é renascer, ideia comum a todas
O lugar do renascimento! Talvez aqui esteja as culturas. O incomum, o singular, é a forma
a chave de tudo, da claridade atlântica que ante- de contato de cada cultura com este enigma; a
cede e sucede o breu noturno na aldeia e no filme, elaboração fisiológica, filosófica, psicológica de
do tema da morte em pleno viço da paisagem cada uma delas sobre esta questão (a única da
tropical, da alegria que veste o enigma: os eguns existência, disse Sartre). Os eguns disseminam
materializam-se cobertos com tiras de pano a energia vital, axé, e jamais desaparecerão do
coloridas, contas, espelhos, sementes, a câmera Brasil: “para que não existam mais eguns têm
aproxima da forma humana, do lugar onde deve de matar-nos a todos”, diz um iniciado. E outro,
estar o rosto, close – há uma rede e depois dela reparando nos loteamentos industriais que
uma sombra, impossível gravar o que está sob as avançam sobre a aldeia de gente negra e enso-
tiras. Os vivos recebem bênçãos e conselhos, os larada, na turista de biquíni, no policial que passa
eguns tratam de preservar e dinamizar a estrutura correndo: “o último quilombo é Ponta de Areia”.
social da comunidade, a continuidade física e A vida como ela é e que o filme documental
espiritual, ética e prática do grupo. Os ojés se capta como se obedecesse a um roteiro de
movimentam com suas varas: “cada qual no seu ficção – a equipe permaneceu cerca de dois
cada qual”. Surgem espíritos desconhecidos e meses filmando e sentindo que um acirrado
sem forma humana, panos de uma só cor esti- debate, embora em surdina, movimentava o
cados em triângulo – espíritos recentes, com círculo dos ojés por causa da avançada idade
os ritos de formação a meio caminho. Mortos do alagbá Antonio Daniel de Paula (“pra quem
e vivos defrontam-se na noite tropical, o ixan não sabe é nada, nada, nada. Do nada Deus fez o
constrói uma parede invisível entre o conhecido mundo”); durante a filmagem o centenário chefe
e o oculto. O segredo: “o que estão vendo são do culto e da comunidade morre, são realizados
ensaios mostra Ebó Ejé 129

os ritos fúnebres daquele que em breve será um e de síntese, todo o senso de equilíbrio de que
egun e explode o conflito: mais de um preten- são capazes, justamente as qualidades que os
dente, por se acharem investidos de direitos, à levaram ao privilégio do sacerdócio (“um homem
função de alagbá. A sucessão transforma-se em despersonalizado não pode ser ojé”). Os conflitos
grave problema no Omô Ilé Agboulá devido à sua humanos são outro mistério, a força motriz deles.
composição. Sendo um culto familiar em sua Mas nem por isso a comunidade afro-brasileira
origem, cada grupo sanguíneo tinha seus ojés, de Ponta de Areia, extensão da última casa de
seus espaços sagrados e seus eguns, os antepas- culto Egungun, se entrega ao desespero – os
sados, e a sucessão na chefia se fazia segundo anciãos são consultados, não é a primeira vez
práticas tradicionais, geralmente o mais velho ou que problemas oriundos da pluralidade familiar
o filho primogênito do alagbá o sucedia. Na Bahia, e grupal da comunidade vêm à tona. Os eguns
por muitas razões, famílias diversas passaram a participam do esforço comum muito mais por
realizar juntas os ritos – e depois estas comu- atitudes do que por palavras, um deles se encolhe
nidades se juntaram a outras, resultando atual- sobre um banco de madeira, expressa sua tris-
mente em apenas um terreiro egungun na Bahia, teza pelo que está acontecendo. E pouco a pouco,
possivelmente no Brasil, o de Ponta de Areia. Ali conversando e pensando, os ojés encontram uma
estão aglutinados vários grupos e famílias, vários solução. E o filme se apresenta ritualizado em si
terreiros, e portanto os critérios familiares de mesmo, evoluindo no contentamento do povo que
sucessão não mais funcionam. É uma situação brinca e trabalha sob o sol/cinema, captando e
de clímax, enfrentamentos pessoais, a roda da redistribuindo axé; na dor do desaparecimento
capoeira à vera que se abre no meio do povo, o físico do alagbá; no conflito que eclode ante o
avanço desautorizado sobre objetos e atividades trono vago e na reintegração da comunidade e
rituais, quebra da tradição. Este cisma ultrapassa do terreiro, alcançada quando os ojés encontram
as fronteiras de Itaparica e é comentado (isto uma saída para o impasse... Reticências porque,
não está no filme) por uma revista de circulação se um fotograma vale mais que mil palavras, o que
nacional e uma rede de televisão que informam pensar de um filme que pode abrir as comportas
ao público, respectivamente, que se trata de da imagem/ação, da fantasia, da fome de saber
disputa eleitoral corrupta e escandalosa e que o que vem depois das últimas galáxias, o que
o culto dos eguns é bruxaria vulgar, superstição, está sob os panos coloridos das entidades que
armadilha para incautos – o que nos devolve ao se materializam em Itaparica? Filmes, pensa-
tema do etnocentrismo e da falta de respeito. mentos, palavras, imortalidade escondem, cada
O filme prossegue, os últimos minutos. A qual no seu cada qual, caudal, o mesmo indevas-
dificuldade da sucessão é o assunto da comuni- sável mistério: quanto mais se cava mais fundo
dade, cala fundo também nas mulheres – que não é, quanto mais se tira mais se tem.
podem se iniciar na sociedade dos ojés mas parti-
cipam das cerimônias abertas e das festas anuais
e recebem oxé dos eguns; por alguma razão muito
profunda a feminina Oiá é chamada Rainha do
Egungun, sociedade secreta de machos. Os ojés
se reúnem, conversam, a evolução da crise exige
toda a sabedoria, paciência, poder de observação
130

Atlântico Negro – na rota dos orixás*

Luis Nicolau Parés**

E
m 17 de novembro de 1998, uma terça-feira, linguagem cinematográfica do diretor e da
foi apresentado no ICBA de Salvador o equipe de produção. Uma boa fotografia, de
filme Atlântico Negro - Na rota dos orixás, grande plasticidade, junto com uma montagem
dirigido por Renato Barbieri e Victor Leonardi. A rápida conferem ao produto um ritmo fluido
estreia do filme na Bahia fez parte dos eventos comparável, às vezes, com a estética contem-
organizados pelo movimento negro em torno do porânea do videoclipe. Esses fatores fazem do
Dia da Consciência Negra. Estavam presentes filme um produto de alto potencial comunicativo
nesse evento pessoas do MNU, do Ilê Aiyê e que deve facilitar a sua ampla divulgação.
outras organizações do ativismo negro baiano. A noção de um Atlântico Negro, expressão
Depois da mostra, que suscitou o entusiasmo surgida a partir do livro de Paul Gilroy, The Black
geral da audiência, falaram o diretor Renato Atlantic: double consciousness and modernity,
Barbieri e a ialorixá Mãe Stella, que deu apoio sobre a diáspora da comunidade caribenha no
ao projeto. O documentário, como sugere o Reino Unido, tem recentemente ganho grande
título, trata das relações históricas e cultu- aceitação nos meios intelectuais afro-america-
rais que existem entre o Brasil e a África, com nos.1 Pelo seu caráter abrangente, resulta num
especial atenção para aspectos da religião dos paradigma conceitual que permite reformular
orixás. O trabalho já merece reconhecimento muitas das dicotomias surgidas em torno da
por ser um dos poucos até agora produzidos na dualidade entre a África e suas diásporas tran-
área do audiovisual tratando da questão afro- satlânticas. A noção de um Atlântico Negro, como
-brasileira na sua dimensão transatlântica. Ele uma área cultural única e interligada, coloca a
conta com a participação, através de entrevistas, cultura dos afrodescendentes nas Américas e
de eminentes e significativos especialistas do na Europa em pé de igualdade com a cultura
tema – antropólogos, historiadores e líderes reli- africana de origem, e lhes confere um status de
giosos –, o que lhe confere um interesse intrín- autonomia que se opõe àquela visão nostálgica
seco. Executado em formato de documentário de uma África idealizada como terra-mãe, como
televisivo, possui uma boa qualidade técnica origem perdida. A noção de um Atlântico Negro é,
e demonstra o profissionalismo e domínio da antes que tudo, uma reivindicação da diáspora,

*Artigo originalmente publicado na revista Afro-Ásia, n. 21-22, 1998-1999, páginas 367-375.


**Luis Nicolau Parés é professor associado no Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia.
Suas principais áreas de pesquisa incluem a história e a antropologia das religiões afro-brasileiras e africanas
e suas conexões atlânticas.
1. Paul Gilioy. The Black Atlantic: double consciousness and modernity, Cambridge, Harvard University Press, 1993.
ensaios mostra Ebó Ejé 131

uma nova proposta de relacionamento com a Uidá. Essa abertura emblemática vai introduzir
sua história. O conceito, elaborado inicialmente toda uma série de sequências onde, através da
por intelectuais de fala inglesa, não reivindica voz de um narrador, comentários dos entrevis-
necessariamente a descontinuidade da diáspora tados e imagens da vida, rituais e festas ora do
com o seu passado africano, como defenderia Benin, ora do Brasil, se faz uma apresentação,
o modelo interpretativo “creolizante”, mas, ao ou melhor, representação da história e vínculos
contrário, pressupõe, sobretudo, a existência culturais entre os dois países.
de uma rede de comunicação intensa entre as Os conteúdos apresentados no documen-
comunidades da diáspora e a África, aliás, entre tário são variados, mas orbitam em torno de três
elas próprias também. O Atlântico Negro não grandes temas: a religião dos orixás, o tráfico de
vê mais um só movimento histórico de leste a escravos e a comunidade dos Agudá (descen-
oeste, da África para as Américas, mas aponta dentes dos escravos africanos retornados à
também para o sentido inverso, para as aporta- África). A primeira parte apresenta, de uma forma
ções da diáspora na África e para o contínuo fluxo genérica, a natureza do culto dos voduns e orixás.
e refluxo que sempre existiu entre as duas costas. Uma explicação mais demorada, dada por vários
O mar, até recentemente visto como fronteira líderes religiosos, é dedicada a Exu, a entidade
excludente e divisor de culturas, associado ao intermediária entre homens e divindades, tantas
corte traumático do tráfico, é visto agora, na vezes associada erroneamente ao diabo cristão.
época da globalização, como laço de união e, Através desse exemplo, o espectador reconhece
implicitamente talvez, como o novo âmbito terri- a similitude conceitual existente entre a reli-
torial de um potencial internacionalismo negro gião africana e a brasileira. Cabe notar que as
que, além das fronteiras dos países, é capaz de imagens de diversas atividades rituais que dão
comunicar e articular uma diversidade de grupos suporte ao discurso oral são bastante desconexas
da diáspora negra em um diálogo frutífero, na e estão montadas num ritmo rápido, que em
procura de uma consciência comunitária. algum momento leva a certa confusão. Quando se
É nessa ordem ideológica que se situa o fala, por exemplo, do culto dos orixás e voduns,
filme de Barbieri e Leonardi. Não é por acaso mostram-se imagens dos egunguns, culto de
que o documentário inicia o seu percurso com a origem iorubá dos ancestrais, que não é consi-
apresentação de um caso contemporâneo dessa derado propriamente culto de orixás; quando se
comunicação transatlântica estabelecida entre fala de Exu, mostram-se imagens de um Heviosso,
dois líderes religiosos, um do Maranhão e o outro vodun do trovão. Essas imprecisões podem passar
do Benin. Vai ser a história desse intercâmbio, despercebidas aos olhos do não-especialista, e
primeiro de mensagens gravadas em vídeo e poderiam ser consideradas licenças criativas a
depois de presentes rituais entre os dois líderes serviço da narrativa verbal, mas, na verdade, são
religiosos, o leitmotiv que vai pontuar e demarcar esses detalhes que põem em questão a fideli-
o discurso substantivo do filme. Na primeira cena, dade etnográfica do documentário e que podem
cronologicamente a última que foi gravada, Pai suscitar críticas dos participantes da religião.
Euclides, babalorixá da Casa Fanti Ashanti, em Depois dessa parte, através dos comentários
São Luís, lê uma mensagem de agradecimento em de Alberto da Costa e Silva, historiador e ex-em-
língua africana enviada ao seu amigo, o vodunon baixador brasileiro na Nigéria, que atuou como
Avimanjenon, chefe do Templo de Avimanje, em consultor de assuntos africanos no documentário,
132

e do historiador beninense Emmanuei Karl, há vendida como escrava pelo rei Adandonzan.
informações sobre o tráfico de escravos e o Sabe-se que Guêzo enviou várias embaixadas à
funcionamento do sistema escravocrata na Costa América à procura de sua mãe, e essa estória é
dos Escravos nos séculos XVIII e XIX. Antes de confirmada por testemunhas no Benin.
serem embarcados para as Américas, os escravos Depois dessa parte sobre a escravidão e
de Uidá eram obrigados a dar várias voltas em os seus vínculos com a religião, o narrador do
torno de uma árvore, conhecida como l’arbre documentário protesta contra as representações
de l’oublie (a árvore do esquecimento), onde, da África que não mostram o lado cotidiano da
supostamente, os escravos deviam esquecer o vida dos seus habitantes e, como alternativa a
seu passado, o que efetivamente nunca acon- essa tendência, passa-se a mostrar a festa de
teceu, já que, apesar de todas as dificuldades, recebimento dada à equipe do filme pela comu-
conseguiram preservar e reconstituir parte da sua nidade Agudá em Uidá. Apesar de a espontanei-
cultura, especialmente a sua religião. Passa-se dade dessa cena ser enganosa, já que é óbvia a
depois a introduzir a figura do baiano Felix de consciência dos participantes de estarem sendo
Souza, o Chachá, provavelmente o maior trafi- filmados, ela serve para explicitar no filme a
cante de escravos de toda a história que, morador presença da equipe de realização, um ponto de
em Uidá e com a colaboração do rei daomeano reflexividade que ajuda a relativizar a usual invisi-
Guêzo, estabeleceu, no início do século XIX, um bilidade dos autores. A cena serve também para
grande império comercial, deixando importante introduzir os Agudá, a comunidade formada pelos
descendência nessa cidade. Milton Guran, fotó- descendentes dos traficantes brasileiros e os
grafo e antropólogo que trabalhou no documentário libertos africanos que voltaram à África no século
como consultor na parte do Benin, comenta sobre XIX. Milton Guran, professor da UnB que escreveu
essa polêmica figura histórica. uma tese sobre o assunto, e a Agudá Madame
Salta-se de novo para o Brasil, numa Amégan, entre outros informantes, comentam
sequência um tanto confusa, onde alternam-se sobre esse segmento da sociedade beninense
imagens de Salvador e de São Luís. Imagens de e sobre a sua função como intermediários entre
grupos seculares, como o bloco Ilê Aiyê, são justa- a população autóctone e a administração fran-
postas a festas religiosas de Tambor de Mina, no cesa durante a época colonial. Complementa-se
Maranhão, o que, implicitamente, leva o espec- essa parte com comentários sobre a influência
tador leigo a pensar erroneamente que, sendo brasileira na arquitetura de Porto Novo, onde a
música e dança, trata-se tudo da mesma coisa. mesquita construída pelos Agudá islamizados
Passa-se logo a apresentar, brevemente, algumas reproduz os padrões estéticos das igrejas cató-
das casas mais famosas do candomblé baiano, licas brasileiras. Esse fato serve de ponte para
como o Gantois e o Axé Opô Afonjá. Mãe Stella, voltar à Bahia e comentar a presença dos Malês
ialorixá do último terreiro, comenta a genealogia em Salvador e sua participação na revolta de 1835.
das ialorixás daquela casa. De novo salta-se a O historiador João Reis explica que foi a partir
São Luís, à Casa das Minas, onde a atual zeladora, desses acontecimentos que muitos escravos e
Dona Dem Prata Jardim, fala da fundadora desse libertos africanos foram deportados para a África.
terreiro, a africana Maria Jesuína que, segundo Sem aparente conexão com a narrativa, a não
a hipótese de Pierre Verger, seria a mesma Na ser o nome, nessa parte mostram-se imagens
Agotime, rainha daomeana, mãe do rei Guêzo, do bloco Malê de Balê.
ensaios mostra Ebó Ejé 133

De volta ao Benin, as imagens dão conta da que gerenciado pela equipe do filme) segue vivo.
presença dos Agudá no Benin através de uma Pai Euclides e a mãe pequena do terreiro cantam
breve entrevista com o responsável pelo vodun uma cantiga em fon em São Luís. Intercalam-se
pessoal de Felix de Souza, de um discurso do imagens do Avimanjenon e do Adjahô Houmassé
atual Chuchá VIII (líder da comunidade dos Agudá frente ao monitor de vídeo vendo essa mensagem,
e herdeiro do título honorífico de Felix de Souza), o primeiro no seu templo de Uidá, o segundo na
e da celebração, em Porto Novo, da Festa do sua residência em Abomey. Significativamente, o
Bonfim e do desfile da Bourian (réplica Agudá Avimanjenon diz que entendeu a cantiga, e o velho
das festas do bumba-meu-boi). A ênfase dada Adjahô também a reconhece e começa a cantá-la,
à representação dos Agudá é, talvez, um dos o que confere a esse belo momento um alto
aspectos mais notáveis do documentário, já que, tom emotivo. Segundo comentários do diretor
em consonância com a ideologia do Atlântico Barbieri, quando chegou ao Benin e descobriu
Negro, aponta para as repercussões da diás- que a cantiga era reconhecida por várias pessoas
pora brasileira na África e apresenta um tema foi que se deu conta da importância do material
pouco conhecido do público brasileiro. Porém gravado em São Luís. Foi esse fato que o levou
essa ênfase no lado africano, tanto na questão a concentrar seus esforços no Benin e não na
da escravidão como no tema dos Agudá, mini- Nigéria, como estava planejado inicialmente, e,
miza importantes aspectos históricos do lado depois, a dar especial relevância a essa parte na
brasileiro, como, por exemplo, o processo de estrutura do filme, o que também não figurava
adaptação e resistência dos afrodescendentes no roteiro original. O Avimanjenon responde com
no Brasil, e a iniciativa de alguns desses afro- outra mensagem audiovisual que inclui uma outra
-brasileiros, como Martiniano Eliseu do Bonfim, cantiga, e com um presente, um bastão cerimo-
na dinâmica de comunicação transatlântica e a nial que a equipe do filme leva ao Maranhão. Pai
sua contribuição na configuração do candomblé Euclides recebe o presente de forma ritual, com
contemporâneo. várias filhas da casa vestidas para a ocasião de
Depois da parte dos Agudá, seguem, a modo Tobossi (a moda do Jeje maranhense), jogando
de interlúdio, imagens do mar que nos levam de o obi e lavando o bastão com uma mistura de
volta à Bahia, nessa ocasião à tradicional festa de folhas maceradas. Esse emblemático intercâmbio
lemanjá, no bairro do Rio Vermelho, onde vemos é considerado pelo narrador como um exemplo
os presentes às águas. Após esse ir e vir entre do “respeito e admiração mútua que o Brasil e
as duas costas do Atlântico, em que o espec- a África mantêm entre si”.
tador foi informado de variados aspectos histó- Certo, mas é aí que a linguagem cinemato-
ricos e culturais, segue uma parte, talvez a mais gráfica, com sua inevitável construção e recorte
original do ponto de vista de um documentário, da realidade, joga a favor da intencionalidade
em que se mostra o intercâmbio de mensagens ideológica do filme. O documentário não fala,
audiovisuais entre líderes religiosos do Benin por exemplo, que foi Pai Euclides quem pediu o
e do Brasil. Esse evento funciona, na narrativa bastão cerimonial, e que foi a equipe do filme que
do filme, como evidência e confirmação de que teve que pagar o presente, e assim por diante.2
o diálogo entre as duas bandas do mar (mesmo A cena de recepção do bastão cerimonial foi

2. O documentário também não explica a natureza da relação preexistente entre Pai Euclides e o Avimanjenon,
134

obviamente representada para ser filmada e não Como já foi dito, o documentário quer ser
parece responder a nenhuma tradição ritual da um produto de divulgação dirigido a um público
casa, o que, de novo, evidencia a capacidade amplo mas, em função de sua temática e orien-
que tem a produção de um documentário para tação ideológica, está especialmente dirigido
alterar ou gerar novas realidades. Essa capaci- à comunidade afro-brasileira. O filme já foi
dade intrínseca e manipuladora do filme não deve mostrado na TV GNT e vai ser distribuído nas
ser necessariamente negativa, já que, às vezes, escolas e outras redes institucionais, como festi-
pode levar a gerar situações capazes de revelar vais, congressos, terreiros, etc. Também uma
informações que não seriam acessíveis de outro versão francesa deve ser distribuída no Benin.
modo. Esse é o caso do chamado cinema partici- Não foi, portanto, a intenção dos autores produzir
pativo, do qual Jean Rouch é um dos mais claros um filme etnográfico ou científico para especia-
expoentes. No entanto, do ponto de vista etno- listas, mesmo que utilize material e conteúdos
gráfico e a serviço do rigor científico, é preciso suscetíveis de serem analisados do ponto de
que o documentário seja explícito quanto às suas vista antropológico, sociológico ou histórico.
estratégias de construção no processo de repre- Porém o filme pretende uma certa seriedade
sentação, já que, por trás das imagens montadas, na elaboração dos conteúdos que garanta a legiti-
existe sempre outra história que não é contada. midade do discurso. Prova disso é a participação,
O filme termina com o leitmotiv de que “o como entrevistados, de relevantes especialistas
mar, em vez de separar, uniu povos e culturas nessas áreas. A finalidade última do filme é, talvez,
diferentes”, e com vários dos entrevistados enun- contribuir para a elaboração de uma identi-
ciando frases conclusivas. Aparece a antropó- dade étnica dos afrodescendentes, reforçando
loga Juanita Elbein dos Santos reivindicando a e procurando gerar uma melhor compreensão
necessidade de superar a memória traumática da de certos referentes histórico-culturais. Tendo
escravidão e de considerar os aspectos positivos sido o segmento social dos afrodescendentes
do legado da ancestralidade. O antropólogo Júlio tradicionalmente privado de uma história própria,
Braga salienta que na época da globalização só essa iniciativa deve ser bem-vinda. O produto
vão se salvar aqueles que puderem conservar a audiovisual resultante tem qualidades provadas
sua identidade. Talvez o comentário mais emotivo para atingir o seu objetivo e deve receber o reco-
seja o do Adjahô que, em bela metáfora, resume nhecimento merecido.
a história das relações entre África e América Para atingir o alvo primordial de alta comu-
como a de duas crianças que foram separadas nicabilidade, o projeto recorre ao formato do
e que nunca mais se viram, mas que, um dia, documentário televisivo, com as vantagens e
a ocasião foi dada a seus descendentes para desvantagens que esse método de represen-
se encontrarem. “Esse reencontro seria alguma tação comporta. Como já foi dito, tecnicamente
coisa de inexplicável. Sua alegria será inestimável o filme está belamente executado, a qualidade e
e nós nem poderíamos qualificá-la. É alguma o colorido das imagens são ótimos, a montagem,
coisa extraordinária”. na qual é raro um plano durar mais de cinco

mas posso dizer que se iniciou em 1995, quando, após uma viagem ao Benin, levei a Pai Euclides uma carta e uma
fotografia do Avimanjenon, assim como um vídeo das festas celebradas no seu templo de Uidá. Esse primeiro
contato foi seguido por uma troca de cartas escritas em francês e outras fotografias.
ensaios mostra Ebó Ejé 135

segundos, tem bom ritmo e o encadeamento o documentário não deixa de ser um artefato
das sequências narrativas flui sem dificuldades. construído que utiliza a mesma linguagem cine-
Formalmente, talvez, deva-se criticar a depen- matográfica e artifícios do gênero da ficção.
dência excessiva da narração verbal, o que dá ao Portanto, é importante questionar os métodos
documentário um certo tom didático. A necessi- de representação e construção utilizados para
dade de explicar uma história complexa leva os avaliar a fidelidade do texto audiovisual. O diretor
autores a utilizarem o artifício convencional da de um documentário deve tomar uma infinidade
narração oral, articulada nos comentários dos de opções de realização e é no conjunto dessas
entrevistados e na voz do narrador, esta sempre escolhas (conscientes ou inconscientes) que
onisciente e onipotente, imbuída de uma autori- reside o grau de fidelidade, autenticidade ou
dade a priori inquestionável. Esse recurso relega “realismo” do produto. Uma série de escolhas,
o visual a mero suporte ilustrativo que, na sua como a utilização de planos longos, respeito ao
fluida plasticidade, só serve para hipnotizar a som original das imagens, podem acrescentar
atenção do espectador, sem deixar as imagens o “índice de etnograficidade” de um documen-
se mostrarem por si sós. O visual não é utilizado tário. No caso de Atlântico Negro, diríamos que
como recurso narrativo autónomo. Em geral, a o “índice de etnograficidade”, dadas as esco-
rápida edição não dá tempo ao espectador para lhas realizadas, não é muito alto. Dado o limite
olhar, para ver e daí elaborar a sua própria inter- temporal do documentário, a multiplicidade
pretação. A combinação desses fatores faz de de temas tratados impede uma apresentação
Atlântico Negro um texto que, utilizando as cate- detalhada, e é inevitável uma certa superficia-
gorias de Umberto Eco, poderia ser catalogado lidade na análise. Porém, o “índice militante”,
de “fechado” (em oposição a um texto “aberto”), isto é, a intencionalidade ideológica e política
já que o espectador, submetido como está à subjacentes à construção do texto audiovisual,
tirania da palavra, não tem espaço para tirar as a vontade de projetar uma mensagem de valori-
suas próprias conclusões.3 Ele fica certamente zação da cultura do afrodescendente, parecem
seduzido pelo fluir das imagens, mas é a voz que prioritárias e mais marcantes.
comanda e impõe as diretrizes interpretativas. A representação da religião está na base
O gênero do documentário distingue-se dessa construção de identidade. Mas essa repre-
por enquadrar-se dentro do que Olivier de sentação não deixa de ser bastante fragmentada
Sardan chama de “pacto realista”.4 O suposto e descontextualizada, às vezes com enganosas
“realismo”, convencionalmente atribuído às justaposições que, do ponto de vista do rigor
imagens de documentários, confere ao produto antropológico e também religioso, são questio-
um grau de autoridade que permite legitimar náveis, como essa mania de pôr música tene-
certas realidades históricas e culturais de um brosa quando se mostram os altares dos voduns,
modo que o gênero de ficção, por exemplo, rara- mostrar os egunguns da Nigéria quando se fala
mente atinge. O espectador tende a acreditar na de voduns, passar das imagens do Ilê Aiyê a um
“verdade” das imagens documentais. No entanto, tambor de Mina, etc. A religião, sendo o aspecto

3. Umberto Eco. The role of the reader. Bloomington, Indiana University Press, 1979.
4. Jean Pierre Olivier de Sardan, “Pacte ethnographique et film documentaire”, Xoana, Images et Sciences
sociales, n. 2, 1994, p. 51-64.
136

cultural destacado, recebe, ao menos visualmente,


um tratamento mais bem impressionista, o que
poderia ser considerado contraproducente, se o
que se quer é um melhor conhecimento e valo-
rização dessa realidade. Feitas essas ressalvas,
vale salientar que Atlântico Negro apresenta enfo-
ques novos, como a ênfase nos Agudá e mesmo o
protagonismo dado ao Tambor de Mina do Mara-
nhão frente ao hegemônico Candomblé baiano. A
seleção, no documentário, de Pai Euclides como
o principal representante religioso no Brasil,
como já foi apontado, resultou da conveniência
inesperada dos seus laços com o Avimanjenon
e do fato de que a cantiga por ele cantada fosse
conhecida no Benin. Esse protagonismo de um
babalorixá maranhense poderia, até certo ponto,
ser ressentido por alguns religiosos baianos, mas,
na verdade, favorece a representação da religião
afro-brasileira na sua heterogeneidade e riqueza.
É evidente que um documentário de conteúdo
tão amplo vai deixar sempre alguns insatisfeitos
por não ter comentado ou mostrado este ou
aquele outro aspecto. Porém, no seu conjunto,
o trabalho é um esforço comprometido e sério
que vai contribuir com eficácia para a divul-
gação de alguns dos assuntos mais relevantes
da cultura afro-brasileira, e que, sem dúvida,
tem um importante potencial educativo.
ensaios mostra Ebó Ejé 137

Uma conversa sobre Santo Forte

Cláudia Mesquita*
Ruben Caixeta de Queiroz**

S
anto Forte abriu o terceiro forumdoc.bh, e religiões afro-brasileiras). Pelo que notei,
em 1999. Estávamos na organização e fomos muitos trabalhos se dedicam a uma casa, um
muito marcados por aquela sessão, com a terreiro, um ritual – mesmo que realizem, a
presença de Eduardo Coutinho e o comentário de partir desse recorte, um ensaio mais abrangente
Pierre Sanchis. Com sua forma rigorosa e mínima, sobre aspectos daquela manifestação religiosa.
centrada nas narrativas dos personagens sobre Os filmados aparecem então como personagens
suas experiências religiosas, o filme lançava outro de rituais ou de manifestações. Uma das coisas
olhar sobre a religiosidade popular no Brasil, que argumento na tese1 é de que há em Santo
revelando-nos a riqueza espiritual e imagina- Forte uma identificação total entre personagem
tiva de 11 moradores de Vila Parque da Cidade, e narrador. Os filmados são personagens de suas
comunidade na zona sul do Rio de Janeiro, em próprias histórias. Coutinho se recusa a filmar
fins do século XX. De lá para cá, reencontramos rituais, locais de culto, tudo é registrado no
Santo Forte muitas vezes, e as indagações em espaço da casa, concede-se muita autonomia
torno do filme se renovaram. A conversa que se para que os filmados narrem suas próprias vivên-
segue teve como ponto de partida o debate que cias. Ao propor essa forma, acredito que o filme
estabelecemos através de dois artigos: “Inventar dê a ver uma faceta da experiência popular reli-
para sugerir – notas sobre Santo Forte” (Cláudia giosa no Brasil menos conhecida, mais inédita,
Mesquita. Revista Devires v. 5, n.2, 2008) e “Santo pelo menos no cinema: aquela de uma religio-
forte: uma perspectiva antropológica sobre a sidade doméstica, da apropriação de diferentes
invenção do cinema e da religião” (Ruben Caixeta. referências pelos praticantes, essa maneira muito
Cinema em livro – Eduardo Coutinho. 7 Letras, 2017). livre de se relacionar com diversos repertórios
religiosos que percebemos nas narrativas dos 11
Cláudia Mesquita (CM) – Santo Forte está inse- personagens. Ao mesmo tempo, nota-se um claro
rido numa mostra mais ampla (Ebó Ejé – cinema protagonismo da umbanda nessa composição.

*Professora da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Co-autora, com Consuelo Lins,
do livro Filmar o real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo, e organizadora, com Maria Campaña
Ramia, de El otro cine de Eduardo Coutinho (Equador).
**Antropólogo e professor da UFMG. Pesquisador do CNPq. Foi um dos fundadores do forumdoc.bh. Pesquisa
junto aos povos indígenas das Guianas desde 1994. Trabalha nas áreas de etnologia, Amazônia, filmes documen-
tários e etnográficos.
1. “Deus está no particular – representações da experiência religiosa no documentário brasileiro contemporâneo”
(orientação: Ismail Xavier), defendida na ECA-USP em 2006.
138

Será que Coutinho, ao escolher essa forma marxista: as massas sendo manipuladas pelos
baseada quase exclusivamente no registro de grandes sistemas, sejam midiáticos, sejam reli-
atos de fala, de performances verbais, estaria giosos. Já na década de 80, há um olhar mais
revelando algo pouco apresentado no cinema atentivo, sobretudo para as religiosidades afro.
brasileiro que se voltou para as manifestações
religiosas afrodescendentes? O que você acha? CM – Sim, antes até: Iaô (Geraldo Sarno), por
exemplo, é de 1974. Nele já encontramos uma
Ruben Caixeta (RC) – Acho que sim. O filme é relação muito respeitosa, de proximidade e
de 1999, foi lançado há quase 20 anos. Naquele adesão ao que se dá no terreiro de Mãe Filhinha,
momento, pensando retrospectivamente, Santo destacando inclusive o que há de resistência
Forte representou uma grande novidade, do política naquela experiência... A propósito disso,
ponto de vista da linguagem inclusive. E acre- inclusive, tanto Jean-Claude Bernardet como
dito que Coutinho tinha consciência de que fazia Ismail Xavier vão identificar um movimento
uma coisa nova. O cinema da fala, baseado no de “antropologização do discurso” no cinema
encontro com o filmado e no diálogo, já existia, é brasileiro. No trabalho de Geraldo Sarno a gente
claro, mesmo no trabalho de Coutinho, mas esse percebe isso com nitidez: na passagem entre
filme radicaliza essa proposta. Ele vai aprofundar Viramundo (1964) e Iaô (1974). No primeiro ainda
o dispositivo do encontro, da escuta, da conversa, se nota uma postura bastante crítica, mesmo
saindo inclusive do espaço público... em filmes que haja diferenças no trato com a umbanda
sobre religião, em que comumente aparecia a igreja, e com o pentecostalismo. Ainda assim, religião
o terreiro, o templo, esse movimento é novo. é tomada em bloco como lugar de alienação,
de desembocadura da experiência difícil dos
CM – Contrasta muito com Fé, de Ricardo Dias, migrantes, da dificuldade para se inserirem na
lançado no mesmo ano: um filme todo voltado vida urbana etc.
para o registro de manifestações coletivas, que
por vezes envolvem centenas de pessoas, em RC – Já Coutinho é outra postura. Não há, em
amplos espaços... Santo Forte, visão ou julgamento prévios. Ele
vai revelar como as religiões são vividas pelas
RC – Sim, acho que há mesmo uma crítica de pessoas em sua experiência particular, sem colo-
Coutinho, um esforço para oferecer um contra- cá-las dentro de quadros e esquemas totalizantes,
ponto à “religiosidade do brasileiro”, tal como em blocos religiosos prévios... Não tenho o mate-
ressaltada em um filme como Fé: sincrética, rial bruto para verificar quais seriam os possí-
diversificada, pública... Muitos filmes sobre veis entrevistados (compilados pela pesquisa),
religião no Brasil acabam tendo como ponto de mas Coutinho dizia claramente que não estava
partida a crítica a uma forma religiosa, às reli- interessado em montar uma amostragem repre-
giões evangélicas, por exemplo. Mesmo o cato- sentativa, mas que escolhia cada personagem
licismo era visto no cinema com desconfiança. pela performance narrativa, pela capacidade
Tem muito filme sobre o seu papel negativo na de contar bem suas histórias.
dominação, na manutenção do status quo, o
sacerdote como alguém a serviço das classes CM – Tanto que só tem uma evangélica decla-
dominantes... Inclusive nas ficções. Aquela visão rada... num filme feito no Rio de Janeiro, cidade
ensaios mostra Ebó Ejé 139

mais evangélica do Brasil, onde mais de uma tem também o que você falou: o “construir-se”
igreja foram criadas por dia útil, segundo o como personagem para o público potencial
famoso Censo Evangélico do ISER (Instituto de que a presença da equipe antecipa, construção
Estudos da Religião) de 1992. E o protagonismo que tem uma dimensão estética, como diria
no filme é claramente da umbanda. Não sei se é Ismail Xavier. Produzir uma imagem de si que,
especular demais, mas parece haver uma relação no caso das mulheres (Dona Thereza, Quinha),
entre essas escolhas fílmicas (“quero ter bons corresponde também à afirmação de valor moral
narradores”) e o fato de que a maioria dos 11 e protagonismo no cotidiano: “criei sozinha filhos
personagens não frequenta mais igrejas, espaços e netos, porque meu marido era uma praga”
de culto, rituais públicos... Não que sejam “sem (Dona Thereza).
religião”, longe disso! A comunicação se dá em
casa. Será que é só uma coincidência? Entre a RC – Tudo isso requer um tempo de escuta. É
escolha de bons narradores e aquilo que o filme preciso retirar a pessoa do cotidiano e lhe dar o
acaba por revelar em termos de experiência? tempo de fabular... Coutinho cria com seu cinema
Já que Coutinho parece menos interessado “na um tempo para que o filmado possa se imaginar e
religião” – nessa ou naquela manifestação, com imaginar como ele quer ser visto pelo espectador.
suas características específicas – do que em É como se a pessoa se colocasse “dentro do
como as pessoas atribuem sentido a suas vidas, filme”. Enquanto o cinema observacional busca
como se explicam e se imaginam, valendo-se de exatamente o oposto: captar a pessoa antes do
um repertório espiritual. momento em que o filme se instaura. Na medida
do possível, claro. Sobre a memória, há maneiras
RC – Há uma escolha por fazer um filme no qual diversas de se trabalhar. Penso em documentários
o que importa é não só como os personagens clássicos, como os de Rouch e Perrault. Coutinho
vivem a religião em suas vidas particulares, se distingue por propor uma cena “interna”, mais
mas como transmitem essa experiência para controlada. Um cinema mais “interior”, tanto no
Coutinho e para os espectadores – o diretor sentido espacial como no da religiosidade, tal
como mediador entre os filmados e nós. Nesse como ela é vivida e narrada pelos personagens.
sentido, ele não quer romper totalmente com Santo Forte inova ao filmar a religião... algo que
a reportagem... é muito difícil de fazer, aliás. No campo da
antropologia hoje até o conceito de religião é
CM – Coisa que ele assumia, aliás: “meu sonho questionado. Exatamente pela pretensão tota-
é fazer da reportagem uma das belas artes”. lizante que carrega. Não há “uma religião”, há
Radicalizar o uso da entrevista, a aposta na religiosidades que são muito diferentes e diferen-
palavra falada. Com essa opção quase exclusiva, temente vividas.
Coutinho revela aspectos que um filme voltado
para o cotidiano, ou que se concentrasse na CM – Vamos falar de nossa polêmica? (risos). O
etnografia de uma casa, por exemplo, possivel- meu artigo sobre Santo Forte2 sugere, segundo
mente não abarcaria. Por exemplo, a memória a sua leitura, um reforço da velha dicotomia
de experiências passadas. Ou a imaginação. E weberiana entre indivíduo e sociedade. Que

2. “Inventar para sugerir – notas sobre Santo Forte” (Revista Devires v. 5, n.2, jul/dez 2008)
140

você identifica, sobretudo, numa citação de narram outras conversas que tiveram. Ou seja,
Reginaldo Prandi, que uso para fundamentar a as histórias são quase sempre narradas na forma
ideia de “bricolagem”. As histórias das vivências de diálogos (“aí eu disse, aí ela disse”...). Essa
religiosas são narradas em Santo Forte com o relação conversante com o mundo se afasta da
recurso a uma composição de muitas referên- proposta de uma “individualização” radical da
cias e práticas. Dona Thereza não incorpora mas experiência que a citação de Prandi faz supor. Veja
vê a Vovó Cambina... A visagem do catolicismo essa outra citação que trago no texto, de Michel
popular aparece combinada com o repertório de Certeau, que também fala em “bricolagem”.
da umbanda, e com histórias de reencarnação O trecho é sobre a “arte da conversa” (uma das
típicas do espiritismo “linha branca” frequen- artes do fazer, das práticas de apropriação e
tado pelos patrões da personagem: “ Vivi uma engenhosidade dos pobres, segundo o autor).
vida na Antiguidade, estou pagando os pecados Eu cito: “As retóricas da conversa ordinária são
da rainha”. Enfim: um repertório narrativo práticas transformadoras de situações de palavra,
“compósito”, e que eu tentava caracterizar com de produções verbais onde o entrelaçamento
a noção de “bricolagem”, puxada do Reginaldo de posições locutoras instaura um tecido oral
Prandi. Eu cito um trecho do autor em nota de sem proprietários individuais, as criações de
rodapé: “A construção de sistemas de signifi- uma comunicação que não pertence a ninguém”.4
cação depende cada vez mais da vontade de Bonito não é? Os narradores no filme incorporam
grupos e indivíduos. No limite, cada indivíduo diferentes posições nas histórias que narram,
pode ter o seu particular modelo de religiosidade fazem diferentes papéis, constroem-se na inte-
independente dos grandes sistemas religiosos ração com outros. Mas enfim: a partir da crítica
totalizadores que marcaram até bem pouco a à interpretação de que o filme manifestaria uma
história da humanidade. (...) Os deuses tribais “individualização” da experiência religiosa, você
africanos adotados na metrópole não são mais os escreve (em seu artigo5) que, diferente disso,
deuses da tribo. São deuses de uma civilização Santo Forte fortaleceria outra concepção de
em que o sentido da religião e da magia passou pessoa e de sociedade. Nem sincretismo nem
a depender sobretudo do estilo de subjetivi- manipulação da religião segundo interesses indi-
dade que o homem, em grupo ou solitariamente, viduais. Seria algo mais próximo da concepção de
escolhe para si”.3 “pessoa compósita e dividual”. Eu te cito: “Uma
pessoa ora pode ser católica, ora umbandista, tal
RC – Eu acho muito weberiano isso! (risos) qual para os Gimi ora pode ser masculina, ora femi-
nina”. Você lembrava, a propósito, de Quinha, perso-
CM – Mas veja só: no mesmo artigo, tento nagem de Santo Forte: “hoje eu acordei macho, um
descrever o “dialogismo” do filme. A ideia de que, dia eu amanheço homem, outro dia mulher”. Você
a partir de conversas com Coutinho, as pessoas transpõe a discussão de gênero – tal como faz Marilyn

3. A realidade social da religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.


4. A invenção do cotidiano 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
5. “Santo forte: uma perspectiva antropológica sobre a invenção do cinema e da religião” (Ruben Caixeta. Cinema
em livro – Eduardo Coutinho. Org. Eliska Altman e Tatiana Bacal. 7 Letras, 2017).
ensaios mostra Ebó Ejé 141

Strathern para o povo Gimi6 – para a vivência da reli- igrejas evangélicas, apesar do discurso de ódio,
giosidade pelos filmados em Vila Parque da Cidade. toda uma experiência e todo um repertório da
Poderia explicar? umbanda estão presentes. Mas o discurso é:
ser evangélico é tudo menos ser umbandista.
RC – A leitura do Prandi é muito weberiana, muito Enquanto os personagens de Santo Forte nos
colada em nossa ontologia ocidental de oposição aparecem muito mais como pessoas compósitas
entre indivíduo e sociedade. Primeiro o indivíduo, e dividuais, que vivem bem essa composição
depois a sociedade – ela seria um somatório dos heteróclita de diferenças.
indivíduos. E o ideal seria chegarmos ao momento
em que a sociedade não fosse mais essa enti- CM – O que é “dividual”?
dade onipresente e dominante – e o indivíduo
não existisse a não ser para reiterá-la. A visão RC – É um termo criado por Marilyn Strathern
muito crítica à religião, presente em Marx ou em como alternativa conceitual ao “individual”. Da
Weber, se deve a isso: ela é tomada como caso mesma forma como ela propõe “socialidade” no
limite da sociedade organicamente constituída, lugar de “sociedade”. O que existem são rela-
os indivíduos seguindo aquilo que o dogma reli- ções, sempre atualizadas a partir do momento
gioso lhes impõe. Mas há, sobretudo em Weber, em que duas pessoas interagem. Parece com a
a ideia de que a religião vai deixar aos poucos citação que você trouxe do Certeau. Enquanto
de ter essa dimensão totalizante e, mesmo que para nós os indivíduos compõem o todo que é a
ela exista como entidade total, os indivíduos vão sociedade. Aí tem toda uma discussão: o que vem
viver suas experiências religiosas de acordo com antes, o indivíduo ou a sociedade? Mas Marilyn
as particularidades de cada lugar, contexto etc. É Strathern nos diz que essa questão não precisa
a perspectiva otimista. O que ressalta para mim, ser colocada. Toda relação social é contextual.
em Santo Forte, é outra coisa: uma concepção de “Divíduo” é uma alternativa conceitual, mas que
sociedade, ou da relação indivíduo sociedade, vem junto com a noção de “pessoa compósita”. O
que se aproxima mais dos melanesianos do que “indivíduo” são vários indivíduos. O todo (socie-
dos ocidentais. As pessoas não têm problemas dade) não é feito de partes... Ou melhor, uma
em viver, e em compor internamente, diferentes parte pode ser um todo. A propósito, tem dois
narrativas – o que tem a ver com a experiência conceitos importantes na obra de Roy Wagner:
religiosa efetivamente. Só que para a nossa socie- “convencionalização” e “diferenciação”. A ideia
dade isso não é bem visto, se pensarmos na ideo- é a seguinte: nós vivemos sempre a partir de
logia, nos valores hegemônicos: temos que ser ou uma dada convenção, um conjunto de regras,
isso ou aquilo. Ou homem ou mulher. Ou umban- normas, valores etc. A gente não inventa isso
dista ou evangélico. Se você mistura as coisas a cada momento. Ele está pensando na cultura
é porque ainda não compreendeu muito bem. como fenômeno simbólico: na linguagem, nas
Você está num limbo confuso, meio anárquico. performances rituais... Quando você as atua-
O ideal é separar melhor, embora na prática liza na prática, faz uma torção na convenção.
isso não aconteça. A gente sabe que, nalgumas Qualquer atualização é uma invenção. Você não

6. STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Mela-
nésia. Campinas: Editora Unicamp, 2006.
142

inventa do nada, mas a invenção é uma atuali- um universo à parte... Acredito que os planos
zação e uma diferenciação. das estatuetas ajudem nessa costura sutil entre
os diferentes narradores: eles vão pontuando
CM – Mal apropriando, então, Santo Forte seria o protagonismo da umbanda nas narrativas,
um filme de “diferenciações” explícitas? sugerindo um plano espiritual compartilhado.
Já os vazios... Coutinho dizia que não gostaria de
RC – Acho que sim. Coutinho podia não ter isso mostrar o que não se pode ver. E que, mesmo que
na cabeça, nesses termos, mas o filme é possível ele filmasse alguém incorporando uma entidade
porque essas pessoas são múltiplas, são compó- num ritual, o mistério da comunicação religiosa
sitas. A pessoa compósita tem várias dentro dela. não seria apreensível. Ele propunha trabalhar
Em uma situação particular ela pode ser uma com “vazios” (planos fixos, filmados em espaços
daquelas, mas isso não a define o tempo todo. da casa dos personagens, sem presença humana)
Depende da relação em que você está colocado. para que o espectador acionasse suas referên-
cias e imaginasse. E talvez os vazios acabem por
CM – Ainda não falamos sobre os “vazios” e as participar da figuração da experiência religiosa,
imagens de entidades, planos em Santo Forte tal como o filme a retrata (a partir das narrativas
que fogem da ênfase quase exclusiva em atos dos personagens): no espaço da casa, no tempo
de fala. Eu acho que, com as estatuetas, o filme do cotidiano, sem espaço especial de culto para
marca a sugestão de que há um plano espiritual que as relações e as trocas se deem.
compartilhado pelos personagens. Isso apesar
de ser um filme totalmente na contramão do RC – Sim, em vez do altar, do espaço coletivo de
dito “documentário sociológico”. Coutinho é da culto, imagens de cômodos, de quartos: reduto
geração do cinema novo e dizia pretender fazer do segredo, da intimidade, da crença talvez...
algo diferente do que marcou a concepção de Os planos funcionam também como transição,
sua geração sobre a religiosidade popular, como passagem entre partes, expediente recorrente
você já notou... Ele não queria voz narradora, em qualquer cinema. Para mim eles são um ponto
sequências temáticas, nada que antecipasse forte. Num filme todo falado, provocam descon-
para o espectador conclusões mais gerais sobre forto, funcionam como quebra de expectativa,
a religiosidade popular naquela localidade. A como paragem para reflexão, questionamento do
despeito disso, o que é paradoxal, Santo Forte que o espectador está vendo. Eles cortam as pala-
não deixa de ser um filme interpretativo, que vras, atuam como “vazio” de linguagem também.
oferece um diagnóstico de certas tendências da Me lembro de uma passagem d’A invenção da
experiência religiosa, tal como vividas naquele cultura, de Roy Wagner, sobre o pintor flamengo
momento, naquele lugar. Mesmo com sua aposta Pieter Bruegel (1525-1569), o velho.7 Ele tem telas
radical nas cenas individuais: cada personagem que reproduzem passagens da Bíblia. Mas essas
é uma sequência no filme, um tempo, um espaço, passagens são retratadas em cenários flamengos,

7. “Os povoados bíblicos retratados em O recenseamento em Belém e O massacre dos inocentes, pinturas de
Bruegel, são comunidades flamengas da época em todos os aspectos. Os eventos em si, a chegada de Maria e José
a Belém para o censo e o intento dos soldados de Herodes de assassinar o menino Jesus, podem ser reconhecidos
nos quadros: Maria veste um manto azul e está montada num burrico; José carrega uma serra de carpinteiro; um
censo está sendo realizado; os soldados estão assediando o populacho e assim por diante. No entanto, a aldeia
ensaios mostra Ebó Ejé 143

são adaptadas ao contexto do pintor. Roy Wagner


recorre a esse exemplo para ilustrar a impossibi-
lidade de se descrever ou narrar qualquer coisa
apenas com elementos do contexto originário.
Quando você conta uma história para alguém
que não viveu o mesmo que você, há um esforço
para que o ouvinte compreenda, e isso implica
em mobilizar elementos da vida dele. Fico imagi-
nando que os vazios sugerem algo da ordem do
invisível. Como fazer isso com o cinema, essa
linguagem baseada na visão, na imagem? As
estatuetas da umbanda têm o sentido de evocar
algo que não está lá: são mediadoras de uma
divindade. Planos para retratar o que não está
presente, mas que o espectador deve construir
para si, assim como o crente de uma religião
constrói uma religiosidade para si a partir do
que é convencionado.

CM – Será que Coutinho alcança com o filme


também uma reflexão sobre a imagem?

RC – Acho que é um filme que quebra, sobre-


tudo, com a ideia de que a religião “domina” os
indivíduos. Mas talvez sim: um filme que nos
permite pensar o que é a imagem... Todo filme
documentário, sendo ou não sobre religião, fala
de algo que não está mais ali. Nesse ato de atua-
lizar o que não está mais presente, algo se perde.
É sempre um ato criativo, nos termos de Roy
Wagner. Fico pensando se podemos pensar na
crença ou na experiência religiosa como algo
análogo à crença na imagem.

está coberta de neve em ambas as cenas, as pessoas se vestem como camponeses setentrionais, e os telhados
altos e íngremes, as árvores podadas e a própria paisagem são típicas dos Países Baixos. Todos esses deta-
lhes serviram para tornar familiares os eventos da Bíblia, torná-los críveis e reconhecíveis à sua audiência –
e Bruegel, se pressionado, poderia ter “explicado” seus esforços nessas bases.” (In: WAGNER, Roy. A invenção
da cultura. Cosac Naify, 2010, p. 44).
144

No rastro do outro:
o sagrado e o cinematográfico

César Guimarães*

Ele é um caboclo bruto uma das aulas dadas por Maria Luiza Marcelino
lá do fundo do grotão no curso "Confluências quilombolas contra a
oi tira a pemba, risca o ponto colonização", ela se dirigiu aos professores e
vem salvar seus irmão alunos então reunidos em torno das questões
oi tira a pemba, risca o ponto quilombolas e nos lançou as seguintes palavras:
vem salvar nossa nação “vocês, que acabaram com nós, agora tem que nos
(ponto de Umbanda cantado por ressuscitar”.1 Ficamos em silêncio, estupefatos.
Maria Luiza Marcelina, Zeladora do Centro Em seguida, como que devolvendo aos brancos
Espírita Caboclo Pena Branca, em Ubá, MG) a língua que um dia eles extirparam dos negros,
ela cantou este ponto: “Era um caboclo bruto/
lá do fundo do grotão/oi tira a pemba, risca o

N
o universo das religiões afro-brasileiras, ponto/vem salvar nossa nação”.
as referências aos caboclos e pretos Para Maria Luiza, os caboclos e os pretos
velhos são elaborações complexas da velhos não apenas nos interpelam para saldar
experiência histórica, dos modos de viver e uma dívida histórica com o seu povo: eles
de pensar dos povos indígenas e afrodescen- nos escolheram e nos atraíram para uma luta
dentes. Essas experiências são marcadas tanto que busca ressuscitar a terra, devolvendo-lhe
pela violência extrema que guiou o apagamento a fertilidade, e a nós também. O trabalho de
sistemático das formas de vida e dos saberes dos cura promovido pelos pretos velhos e caboclos
afro-brasileiros e dos ameríndios (como teste- é, simultaneamente, um processo de cura das
munham a escravidão e o genocídio indígena), nossas relações sociais adoecidas, machucadas.
quanto pela invenção de um potente imaginário Lembremos daquele quadro de Abdias do Nasci-
político e poético que sustenta as lutas e os ideais mento, intitulado Okê Oxossi, no qual a bandeira
de emancipação concebidos por esses povos. Em brasileira, disposta na posição vertical, é cortada

*Professor Titular da FAFICH-UFMG, pesquisador do CNPq e editor da revista Devires – Cinema e Humanidades.
1. Implantado na UFMG em 2014, em parceria com o INCT de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, coordenado
pelo prof. José Jorge de Carvalho, da UnB, Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais busca
introduzir, na universidade, o contato com outras lógicas cognitivas baseadas em conhecimentos não-escolares
e não-eurocêntricos (gerados conforme outras modalidades de produção, transmissão e transformação). Para
tanto, propõe-se um diálogo simétrico entre os saberes de matrizes indígenas, afrodescendentes e populares
com a produção do conhecimento científico e artístico em diversas áreas de conhecimento deles decorrentes.
(cf. www.saberestradicionais.org).
ensaios mostra Ebó Ejé 145

e puxada para cima pela flecha de Oxossi (que foram os povos quilombolas que os acolheram.
nunca cai!) e tem seu lema positivista (Ordem Tal como aqueles, estes também sabiam plantar,
e Progresso) substituído pela saudação iorubá cuidar da terra, curar os doentes e tratar dos que
Okê. A nação dos caboclos – a despeito das sofriam. Trazer a vida de volta à terra, curando-a,
cores verde e amarela – não se identifica nem é a tarefa para qual os caboclos nos convocam –
com a Pátria Mãe nem com o Estado brasileiro. ela afirma.
A cada vez que um encantado ou um caboclo é Não por coincidência, na cerimônia de
invocado, é uma nação inteira que é chamada, abertura do Programa de Formação dos Saberes
e não apenas um indivíduo, como enfatizou o Tradicionais da UFMG, em 17 de setembro deste
Cacique Babau (liderança tupinambá da Serra ano, Dona Maria da Glória de Jesus, liderança
do Padeiro) em recente aula na UFMG.2 Centenas tupinambá da Serra do Padeiro, abriu o evento
e centenas são os nomes dos caboclos e das cantando para o caboclo lavriano (que traba-
caboclas: Tupinambá, Mata Bruta, Treme Terra, lhava nas lavras de ouro), em homenagem a Minas
Ubirajara, Boca da Mata, Cobra Coral, Jurema, Gerais: “Caboclo, tu vem pra mina/Pra serra do
Jacira, Irani, Iracema, Ayrumã, Iaciara, Estrela do Palmeiral/Eu venho pra terra de conde/Aldeia de
Mar e mais tantos e tantos outros... Os caboclos Oxalá”. Como vemos em Tupinambá – o retorno
são o nome do múltiplo, inumeráveis. da terra (2015), de Daniela Alarcon, em suas
Na Umbanda – em contraste com o inúmeras batalhas contra fazendeiros, pistoleiros,
Candomblé – o autor de um canto transpõe Polícia Federal e até o Exército Brasileiro, os
“termos de um domínio da experiência, que tupinambás sempre contaram com a ajuda e a
seria o domínio secular, para o domínio espiri- sabedoria dos seus Encantados, que lhes dão
tual, transformando imagens ou termos profanos continuamente forças para protegerem a terra
em metáforas do sagrado” (CARVALHO, 2006, (são eles os seus verdadeiros donos, junto com os
p. 272). Ao falar das entidades com os termos ancestrais, como afirma Glicéria Jesus da Silva).
que se utiliza para falar dos homens, os pontos Em um desses ataques, inclusive, seu Lírio, o
cantados operam uma transfiguração complexa pajé, recebeu o caboclo lavriano, que na ocasião
de certos componentes da experiência histórica lhe deu orientações para que seu povo resis-
em meios para o contato com os pretos velhos e tisse aos ataques. Aconselhados pelos Encan-
os caboclos. À maneira de poemas guiados pela tados, durante muitas gerações os tupinambás
fabulação, os pontos permitem que a experiência aguardaram – estrategicamente recuados –
traumática do genocídio que atingiu os povos para lançar uma luta mais determinada e potente
pretos e indígenas seja recontada sob outro contra seus inimigos a partir de 2000, como disse
prisma, como o faz Maria Luiza Marcelino. Ela o Cacique Babau.
se vê “nas mãos desses espíritos” que, por sua Com o retorno da terra às mãos de seus
vez, nos fizeram de instrumentos para ressuscitar verdadeiros donos, também retornaram os
a terra. Para ela, quando os indígenas tiveram pássaros (curió, chororão, jacupemba) e muitos
suas terras roubadas pelos brancos, “os caboclos outros animais, que agora se avizinham das casas.
ficaram flutuando, perdidos, entristecidos”, e Até mesmo os Encantados voltaram a percorrer

2. Embora os tupinambá – assim como outros povos indígenas – se sirvam do termo Caboclo em seus cantos (tal
como na tradição religiosa afro-brasileira), para eles os encantados são espíritos vivos, e não espíritos de mortos.
146

os matos à noite, em forma de luzes que vão acompanhados pela explicação do narrador (em
de um lado a outro da serra, como diz Gildete voz over), enquanto as ações ritualísticas nas
de Oliveira Barbosa Santos, também no filme quais se sobressai a dimensão sensível do evento
de Daniela Alarcon. Da locas de pedra escon- filmado (danças, cantos, toques de atabaques,
didas no meio da serra aos riachos onde mora gestualidades) são filmadas com som direto, e
a Mãe D’água, os caboclos nunca deixaram de o comentário explicativo é suspenso em certos
coexistir com os humanos. Enfrentando aquela momentos (sobretudo quando se acompanha o
“mó desumanizadora” que veio “moendo as ritual realizado em uma das moradas de Iemanjá
gentes” e destruindo as culturas ameríndias e no rio Paraguaçu).
afrodescendentes (RIBEIRO, 2015, p. 89), uma Após o belo plano-sequência (em preto-e-
rede de referências – que cruza e mistura compo- -branco) da abertura, com a câmera se movendo
nentes da experiência histórica, da cosmologia e suavemente para a esquerda, dando a ver, pouco
da geografia humana – garantiu uma constelação a pouco, as casas, as ruelas, as crianças que
de contatos entre esses povos que lhes permi- brincam e as pessoas na calçada, e em obediência
tiram manter uma memória coletiva na qual se à explicação do narrador que menciona as duas
forja tanto uma vinculação com a ancestralidade linhas que presidem os cultos ali realizados (a
quanto uma poderosa imaginação política que dos orixás iorubás e a dos caboclos), a montagem
lhes fornece instrumentos de luta e de resistência estabelece um contraste entre os diferentes
no presente. espaços (físicos e simbólicos) do terreiro. Situada
Essa episteme governada pelo múltiplo – no interior do barracão onde são celebradas
como múltiplas são as figuras dos caboclos – as festas públicas, a câmera mostra primeiro o
dispõe de modos de sentir e de crer – firmados espaço dedicado aos assentos dos orixás (e em
no canto e na dança –, que descortinam para nós especial, de Iemanjá) e, em seguida, o do caboclo
novos modelos de conhecimento: os saberes de Tumba Junsara. Em um movimento descendente
um mundo outro, que não abandonou os liames (em conformidade com o orixá da terra), exibe-se
entre a terra e o céu, os homens, os animais, as o pé de cajá, dedicado a Obaluaê, e logo em
entidades, a mata, os rios, os espíritos, as árvores, seguida, o oiti, árvore do caboclo Tumba Junsara
as divindades e as plantas. Quando o caboclo (dois planos, um do interior do terreiro e outro
chega, quando sua nação se faz presente, sua do exterior percorrem o tronco, que atravessa
aparição no ritual traz a tensa energia da corda o telhado, e acompanham os galhos que sobem
de um arco retesado, como vemos em Espaço para o céu). Entre o espaço urbano e o mato,
Sagrado (1975), o filme que resultou da primeira colocando-os em comunicação, encontra-se o
visita que o cineasta Geraldo Sarno fez ao terreiro juá, árvore de Exu.
de Dona Filhinha, o Ilê Axé Itaylê, em Cachoeira, De maneira similar, coloca-se em para-
no Recôncavo baiano. lelo duas cenas ritualísticas. Na primeira, Mãe
Com o intuito de “documentar o espaço Filhinha, a Ialorixá, dança em roda, acompanhada
sagrado de um candomblé típico do Recôncavo por algumas mulheres, ao som dos atabaques e
Baiano”, e reconhecendo seu caráter introdu- do canto. Na segunda cena ela surge incorpo-
tório diante do tema (vivenciado muito recen- rada no caboclo Tumba Junsara, cuja aparição é
temente), o filme é governado por uma estru- regida por uma pequena operação de montagem.
tura dual: os espaços são descritos visualmente, Mostra-se inicialmente uma coluna na qual lemos
a inscrição, pintada à mão: “Tumba Junsara. Rei o caboclo: dedo imitando o gesto do arqueiro,
dos astres”. Em seguida, um plano próximo exibe olhos apertados para melhor mirar, destinados
o desenho do caboclo, pintado na parede, atrás e a nós, espectadores, mas donos de um olhar que
acima dos atabaques: perna firmemente apoiada nos atinge e vai além de nós.
na rocha, seus braços ainda guardam o esforço Se os filmes podem se avizinhar desse
de retesar a corda do arco, tendo lançado a flecha. microcosmo que não cessa de manter diversas
Na verdade, jamais veremos o verdadeiro alvo relações de troca com o cosmo, será à maneira
dessa flecha, situado em um fora-de-campo que de um limiar em que adentramos sem nunca saber
nunca será apanhado pelas bordas do quadro se estamos na distância justa: perto ou longe
cinematográfico, por mais que elas avancem, demais, dentro ou fora. Um limiar não é algo que
como bem sabe aquele canto que diz: “Ele atirou/ se ultrapassa, mas um espaço e um tempo que
Ele atirou, ninguém viu/Só seu Flecheiro é quem experimentamos – imersos em um não-saber –
sabe/aonde a flecha caiu”. Numa decupagem e cuja circularidade vem complicar a operação
simples, o desenho é recortado e mostra-se de enquadramento: o que escolhemos ver, o que
parte da rocha, duas serpentes (uma delas tres- deixamos de fora? Como recortar em bordas o
passada pela flecha) e o sol. O plano seguinte que é de natureza circular? (Pergunta que Pai
reúne o caboclo e seu arco, a flecha disparada, Ricardo de Moura, Zelador da Casa de Caridade
as duas serpentes, o sol e os enfeites que pedem Pai Jacob do Oriente, no bairro Lagoinha, em
do teto. Em seguida mostra-se o seu assenta- Belo Horizonte, fazia sempre aos alunos e profes-
mento, a pedra no centro do peji. Só então surge sores do curso “Catar Folhas: Saberes e Fazeres
148

do Povo de Axé”, na UFMG). Como dividir em cena, podemos sonhar com uma maneira dele
unidades descontínuas um tempo que dura e suspender – provisoriamente – suas medidas, e
volta, em ciclos, em ondas, em repetições que se deixar afetar por um canto – que não precisa
instauram, a cada retorno, uma diferença? Pouco de olhos abertos –, como este:
vemos, pouco sabemos. Sabemos por partes,
vemos somente parcelas. E no entanto, temos o Invocação a Sultão das Matas
corpo inteiro, os olhos e os ouvidos envolvidos (Wally Salomão)
por um todo indivisível.
Por ocasião da filmagem da festa de caboclo Eu tava na boca da mata
no terreiro de Mãe Efigênia (Mametu Muiandê), Eu vi a campa bater
outra mestra que atuou no curso “Catar Folhas: Ajoelhei, botei meu ouvido no chão
Saberes e Fazeres do Povo de Axé”, presen- Dei um grito e um assobio
ciamos como o dispositivo do cinema é desa- Na chegada de Sultão
fiado a compor a cena fílmica de outro modo,
diante da aparição das entidades. Havíamos Sultão das Matas É É É
combinado com Makota Kidoiale (filha de Mãe Sultão das Matas É É Á
Efigênia) de não filmar a incorporação, cientes Sultão das Matas É É É
dos muitos embaraços e decepções que esse Sultão das Matas É É Á
tipo de registro já causou aos povos de terreiro. (Ponto de Candomblé de Caboclo em louvor de
Estávamos na cozinha, filmando a preparação Sultão das Matas que Bidute me ensinou desde
da comida quando, de súbito, as pessoas que a infância em Jequié e nos auges da solidão e
desespero recorro sempre a cantar de cor.)
ali trabalhavam “viraram no santo”. Imediata-
mente, os estudantes que filmavam desviaram o
foco da câmera para o chão. Mais tarde, quando Referências
olhamos esse registro interrompido, notamos
CARVALHO, José Jorge de. A tradição musical
que, antes da incorporação dos que preparavam
iorubá no Brasil. Um cristal que se oculta e se
a comida, os tambores e cantos já soavam no
revela. In: TUGNY, Rosângela Pereira de; QUEIROZ,
fora-de-campo, pois o caboclo Ubirajara acabara
Ruben Caixeta de. Músicas africanas e indígenas
de chegar na sua cabana, do outro lado do
no Brasil (org). Belo Horizonte: Editora da UFMG,
terreiro. Os ajudantes da cozinha tinham sido
2006.
chamados pelo Ubirajara, algo que só nos demos
conta depois, atrasados. Na verdade, durante os RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e
preparativos da festa, os assobios dos caboclos o sentido do Brasil. Rio de Janeiro: Global, 2015.
já cortavam a cena filmada, enquanto nossos
olhos, mediados pelo olho ciclópico da câmera,
nada percebiam. Se um dos pontos cantados da
Umbanda diz “pisa caboclo, no rastro do outro”,
no momento da filmagem esse outro, ser de fuga,
nos escapava.
Embora o cinema nunca possa aban-
donar o enquadramento e a composição da
ensaios mostra Ebó Ejé 149

“Tempo é o vento, vento é tempo”:


montagem cósmica em Abá*

André Brasil**

A
frase que intitula o texto é de Makota faz encontrar a tradição do cinema experimental
Valdina Pinto, liderança do terreiro àquela do documentário (o cine-transe de Jean
Nzo Onimboya, em Salvador: antes, ela Rouch, a fenomenologia do rosto em Aloysio
ressaltava que, para a cultura bantu, o tempo é Raulino, Andrea Tonacci e van der Keuken, a
profundo, anterior ao humano: tempo, portanto, montagem disruptiva de Godard ou, em outros
ancestral.1 termos, de Arthur Omar; os longos planos que
Há muito a aprender com a formulação de não apenas contemplam mas “respiram” com
Makota Valdina: ela sugere uma espécie de onto- a natureza, em James Benning). A lista poderia
logia (ou melhor, uma pragmática) das passagens se alongar, mas nenhuma dessas referências –
e das transmutações. Trata-se, em outros termos, de resto, não reivindicadas explicitamente por
de abrir caminhos: como passar do tempo ao Gerber e Amaral – dariam conta de expor a singu-
vento e do vento ao tempo? Ou ainda do tempo laridade de Abá, algo que se refere, acreditamos,
antes do humano ao tempo humano, ao tempo à internalização pelo filme de certos fundamentos
com o humano (a história)? Como passar do vento das afrorreligiões às quais se dedica e das quais
ao tempo de modo que um se torne o outro sem retira não apenas seu tema, mas, principalmente,
deixar de ser um e outro? seu modus operandi.
Não seria esta uma operação de montagem, São imagens do transe que abrem o filme.
operação, portanto e em alguma medida, Mais precisamente, elas se seguem a dois breves
cinematográfica? planos: o primeiro, a cartela com o nome do filme,
^^^^^ como se traçado a giz (ou à pemba, lembrando,
quem sabe, o ponto riscado dos terreiros). O
Abá (1992) é um filme de Raquel Gerber e segundo, o plano fixo do céu, algumas nuvens,
Cristina Amaral que, em sua poética concisão, o canto do pássaro. O azul do céu nos leva, em

*Esse texto não seria possível sem o minucioso relato sobre Abá, que me foi enviado por Raquel Gerber, a quem
agradeço enormemente. Muitas das idéias aqui esboçadas surgiram de conversas – entre uma carona e outra –
com Ewerton Belico. Agradeço a ele também a oportunidade de escrever sobre esse belo filme. A Junia Torres,
Edgar Barbosa Neto, Amaranta Cesar e César Guimarães, sou grato pela leitura generosa do artigo.
**Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG, onde integra o Grupo de Pesquisa Poéticas da
Experiência e a equipe de editores da Revista Devires – Cinema e Humanidades. Participa da Formação Transversal
em Saberes Tradicionais da UFMG.
1. Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P0ziJx0KWRE>.
150

parecem flutuar no espaço). Diferentemente de


certa tradição documentária do cine-transe (da
qual, novamente, Jean Rouch é figura central),
Abá não prepara o espectador para o que virá:
nenhuma narração, nenhum contexto, nenhum
plano-sequência a nos permitir adentrar, pouco
a pouco, a experiência do ritual. Não se trata
de expor ou explicar o transe, nem de entrar
“em fase” com ele por meio do plano-sequ-
ência, mas sim de mostrar como, de um a outro
plano, uma força invisível atravessa os corpos:
o corte interrompe a ação, mas deixa passar a
energia de uma imagem a outra, de um gesto
a outro.
Um novo plano do céu azul parece ampliar
o “escopo” das passagens operadas pelo filme.
Afinal, em sua relação com os corpos em transe,
a natureza não é objeto de contemplação, nem
faz “contexto” para o evento. Pensemos talvez
em um atravessamento (ou uma vibração): para
retomar os termos de Makota Valdina, o vento
atravessa o tempo como o sopro de ar atravessa
o corpo que respira. O corpo torna-se vento, na
medida em que passa a respirar (ou a vibrar) com
ele. O vento venta por meio do corpo do tempo.
Os corpos em transe ventam, ondulam, voam,
cintilam, adensam e se rarefazem; abrigam, em
si, os elementos da natureza em torno.
Abrigar o vento em seu corpo é o que
permite ao pássaro voar: a música – o som do
agogô, o atabaque rápido – só aparecerá agora
sob planos dos pássaros-pescadores (aqueles que
se insinuaram na banda sonora das seqüências
anteriores?) a sobrevoar o mar e as montanhas
de Praia Grande, em São Paulo, onde se realiza a
festa de Iemanjá. Se antes era o azul que matizava
corte sêco, ao vestido também azul da pequena as imagens, agora elas ganham coloração verde
Iemanjá em transe. e marrom, a lembrar que “existe a terra que é
Segue-se, em planos curtos, uma sequência terra”, como dirá Beatriz Nascimento em Orí
de mulheres em transe (a ausência do canto ou (1989), filme anterior de Raquel Gerber. Corta-se
do toque do tambor desampara os corpos que então para a água límpida sobre as pedras, como
ensaios mostra Ebó Ejé 151

se, em um movimento circular tácito, o céu tenha


se tornado mar, em um câmbio súbito entre o
que está em cima e o que está embaixo (como
nos ensinou Ricardo de Moura, Pai Ricardo, em
uma das aulas que ministrou no Curso Catar
Folhas, na UFMG).2
Permanece o som dos atabaques. Da super-
fície cintilante da água (matéria originária de
onde orixás – ou inquices – femininos retiram
sua força vital) somos apresentados, por meio
de uma fusão, à estatueta africana, deusa da
fertilidade deitada sobre a pedra. O zoom in da
câmera sublinha a gravidez e a linha em zig-zag
que define seu corpo.
Se, como sugere o célebre filme de Alain
Resnais e Chris Marker, as estátuas também
morrem (quando entram na “botânica da morte”
da “cultura”), em Abá, a estátua do Museu Etno-
gráfico e Etnológico da USP ganha vida, ao se
reinserir no regime sensível de trocas e circu-
lações produzido pelo filme.

2. Trata-se da disciplina Catar Folhas: saberes e fazeres do povo de axé, parte do Programa de Formação
Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. A disciplina foi ministrada a alunas e alunos de graduação por
Mãe Efigênia Maria da Conceição (Mametu Muiandê, do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango), Pedrina Lourdes dos
Santos (Capitã da Guarda de Massambique de Nossa Senhora das Mercês), Nylsia Lourdes dos Santos (Iyanifa
Ifadara, de Ilè Asé Asegún Itèsiwajú Aterosún) e Pai Ricardo de Moura (Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente).
152

de um corpo a outro por meio da montagem


em planos breves. Mais do que a sucessão dos
eventos ou a integralidade da performance,
os planos fazem tocar as mãos, os corpos (e
o sagrado), em uma montagem por contato;
montagem tátil, em que o que se toca é tangível
e intangível.
A performance com o fogo e, em um corte,
a chama luminosa parece rebater e refletir sobre
a superfície do oceano. Mais uma vez, cintila a
imagem, as mãos erguidas acolhem a energia que
vem dos corpos e que vem da natureza, a luz do
sol (a mesma que emana de Orí) ilumina as folhas
de uma ramagem e, aqui, com muita intensidade
(a ponto de estourar a imagem), a montagem por
contato faz transitar luzes e reflexos.
É esse trânsito de energia – nada transcen-
dente, muito concreto, o invisível a circular pela
matéria visível da imagem – que nos conduz a
África: o mar, Atlântico-mãe, lugar da dialética,
como nos diz Beatriz do Nascimento na bela
cena de abertura de Orí: dialética transatlân-
tica entre África e América, origem e diáspora.
Em Abá, o corte é uma espécie de portal, a nos
abrir outro mundo (que, ao mesmo tempo, nos
soa tão próximo e afim). Estamos no Senegal –
a entrada da África ocidental – precisamente
nos povoados de Joal e Fadiouth: mãe e filha
lavam o cereal à beira mar; ao longe, uma mulher
carrega o cesto na cabeça; a câmera se aproxima
dos rostos das crianças e recebe os olhares em
retorno; outra mulher, o peixe enorme sobre a
cabeça. Ela olha para a câmera, estreita os olhos
diante da luz forte.
Novamente, o céu: o mesmo, outro céu.
Uma fusão, e o plano se estria, com o ziz-zag
Iemanjá dança, agora, no terreiro de Angola da tapeçaria de miçangas. Como se a costura
Muchicongo – Ylê Xoroquê. As mãos recebem a das imagens pela montagem se explicitasse nesse
energia dos orixás (inquices), amparam ciosa- desenho que encerra o filme.
mente os corpos. Novamente, o transe não se
prolonga no plano-sequência, mas parece passar ^^^^^
ensaios mostra Ebó Ejé 153

Abá é um cadinho do cosmos. O filme se preserva em uma montagem predominan-


retira sua força, antes, da fenomenologia dos temente disruptiva?
corpos em transe. Depois, da montagem, que De fato, em Abá, o corte abrupto, disruptivo,
chamaremos “cósmica”. Há algo ali que nos não apenas expõe o caráter deliberadamente
desconcerta: como a sensação de continuidade artificial e construído do filme, acusando costuras,
154

interstícios e distâncias entre as imagens, mas ^^^^^


nos sugere também uma continuidade subter- Orí – o longa de Raquel Gerber – dedica-se
rânea que essas distâncias guardam: entre o a investigar a presença histórica dessa força
céu, os corpos em transe, o vôo do pássaro, a vital que liga os povos africanos e diaspóricos:
estatueta africana, as montanhas, o oceano, as essa historicidade materializa-se nas falas e nas
mulheres senegalesas, a geometria em zig-zag reuniões políticas dos movimentos negros; no
das miçangas, marca-se a heterogeneidade reggae de Gilberto Gil e no samba-funk da Banda
da composição. Mas, nos interstícios do hete- Black Rio; nos bailes e nos desfiles de carnaval,
rogêneo, algo passa, marcando assim uma nas danças e nos gestos. “O homem negro não
espécie de continuum. Esse o gesto paradoxal será liberto, enquanto ele não esquecer, no gesto,
da montagem cósmica: o corte disruptivo não que não é mais um cativo”, nos diz Beatriz Nasci-
resulta em descontinuidade e, por sua vez, a mento, sobre as imagens do baile black). Por isso,
continuidade apreendida no conjunto, não resulta cabe ao filme distender, expandir, sublinhar e
em um todo orgânico. A montagem cósmica relacionar, diacrônica e sincronicamente, eventos
permite revelar a continuidade do descontínuo e distantes, em um trabalho amplo de explicação
a descontinuidade do contínuo (que surge, desa- (ainda que não haja ali qualquer propósito expli-
parece, adormece, ressurge inesperadamente citamente didático).
para se religar ao heterogêneo de onde provém Abá, por sua vez, nos parece um filme estru-
e para onde retorna sem cessar). tural: ele concentra, em sua concisão poética,
E o que flui? Como nos disse Raquel Gerber, aquilo que em Orí se estendia como historicidade:
Abá dedica-se a um tema que não pôde ser abor- a força vital de uma África profunda. Vale-se da
dado frontalmente em Orí: trata-se da força vital poesia – sua depuração formal – para evidenciar
que circula de um a outro elemento da natu- a origem: subterrânea, emergencial, eventual,
reza, atravessa os corpos e irrompe no transe – violenta ou sutil, ela permanece pulsando no
“linguagem da memória” (para Beatriz Nasci- presente dos corpos. O tempo ancestral como
mento). Ela é o que une os povos da África e da o tempo de hoje, diria Makota Valdina.
diáspora e se materializa, de modos singulares, Se essa é uma relação dialética, é porque
nas formas artísticas africanas. Como dirá Kaben- a origem não se encontra exclusivamente no
gele Munanga (2009), essa circulação da força passado, mas na relação do passado com suas
vital manifesta-se de diversas maneiras, mas re-existências no presente: dialética transatlân-
caracteriza ontologicamente a África. tica entre a África (ou as Áfricas) e as diásporas na
Em suma, ao se construir por meio de América. Dialética que tem no mar sua imagem
uma montagem cósmica (que reúne elementos extensiva (histórica e geopolítica) e, no transe,
díspares para revelar uma inaudita continuidade sua imagem intensiva (somática, gestual).
entre eles; que revela o contínuo sem obliterar Mas esta é, antes de tudo, uma dialé-
que ele é constituído de descontinuidades), o tica que faz atravessar o cosmos pela história
filme de Raquel Gerber e Cristina Amaral parece e a história pelo cosmos. É que, ao abrigar o
conferir assim uma forma cinematográfica – tráfico de escravos e a rota da colonização,
breve, provisória, dinâmica – para o axé (ase) o espaço cósmico transatlântico – o mar – é
ou gunzo. atravessado pelo trauma histórico. A opressão
ensaios mostra Ebó Ejé 155

e a violência necropolítica3 da escravização montagem compõe e cuida dos heterogêneos.


(ainda tão presente) encontra antítese na resis- Ao fazê-lo, produz “eventos cósmicos” (Stengers,
tência (também presente) dos quilombos e dos 2018): toma-se a natureza não como objeto (de
terreiros: não seria a força vital o resultado dessa conhecimento, pela ciência; de contemplação,
dialética? Resultado ao mesmo tempo cósmico pela arte; ou de propriedade, pela economia),
e histórico que, latente, subterrâneo, irrompe mas sim como parte constituinte de relações no
no presente dos corpos e dos coletivos. interior das quais possui agência. Em situações
Essa dialética será também estruturante em cosmopolíticas, a natureza (tomada, ela também,
Abá e é ela que nos leva às imagens documen- como sujeito) altera, por dentro, outros sujeitos
tais no Senegal, revelando uma África presente, com os quais se relaciona: o que, em Abá, produz
tão distante (geograficamente) e tão próxima essas alterações é o vento – força vital – que vem
(histórica, religiosa e culturalmente). De um pólo da África: o próprio tempo, capaz de ligar uma
a outro da dialética – da origem à diáspora, da imagem à outra. O oceano, o transe.
África as Américas – a relação não é linear, homo-
gênea, nem cronológica, mas feita de coexistên- ^^^^^
cias, adormecimentos e reemergências. Se nenhuma das referências cinematográ-
ficas masculinas do cinema experimental ou do
^^^^^ documentário são suficientes para dizer do gesto
Abá é uma forma cosmopolítica, condensa de Raquel Gerber e Cristina Amaral em Abá, é
em sua montagem – como uma pequena rocha porque o filme sugere - ou mesmo reivindica -
marítima incrustada de pedaços de outras pedras, uma dimensão feminina desta força vital.
conchas, ferragens e minúsculos seres viventes – Algo que Orí antecipa, dando à hipótese
relações humanas e não-humanas. a historicidade dos quilombos. Afinal, nos diz
Antes de tudo, a proposição cosmopolítica, Beatriz Nascimento naquele filme, cabia às
tal como formulada por Isabelle Stengers (2018), mulheres nos quilombos dispor os alimentos na
nos exige reconhecer que “não estamos sós no floresta. Com isso, cumpriam sua obrigação com
mundo”,4 nos atentar às agências não-humanas o sagrado e com a história: faziam a oferenda aos
com as quais coexistimos (os animais, as plantas, orixás e alimentavam os negros fugidos. Susten-
os orixás e inquices, os encantados); as dimen- tavam o cosmos e a fuga; a ancestralidade (ante-
sões visível e invisível por onde transitam. Em rior ao humano) e a história (entre os homens).
seguida, nos diz Stengers, tudo está relacionado, Há, nesse sentido, certa afinidade com
mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, esse Juana Elbein dos Santos (penso sobretudo em
vinculo precisa ser criado, constantemente reite- Iyá Mi Agbá – mito e metomorfose das mães
rado e cuidado. Trata-se de um vínculo frágil e nagô, 1981). As três – Elbein, Gerber e Amaral –
parcial entre o não-humano e o humano, entre compõem uma parte não suficientemente reco-
natureza e história, que deve ser criado e que nhecida da história do cinema brasileiro: em seu
demanda, portanto, o trabalho de montagem. A trabalho de direção ou montagem, elas religam o

3. MBEMBE, Achille. Necropolítica, 2018.


4. Trata-se do livro de Tobie Nathan, prefaciado por Stengers, Nous ne sommes pás seuls au monde: les enjeux
de l’ethnopsychiatrie, 2001.
156

cinema ao cosmos, fazendo transitar nas imagens


uma força, obliquamente, feminina. Poder de
expansão, diria Elbein, “capaz não apenas de
assegurar a continuidade física, mas de plantar e
semear os modos e valores do egbe” (comunida-
des-terreiro).5 Sabemos o quanto essa hipótese
pode soar arriscada aqui, mas, ao internalizar, em
sua forma mesma, relações cósmicas, o cinema
não revindica, de certo modo, se reconhecer
mulher?

Referências

NATHAN, Tobie. Nous ne sommes pás seuls au


monde: les enjeux de l’ethnopsychiatrie. Paris:
Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2001.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1


edições, 2018.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos.


Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica.


Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69,
abr. 2018.

5. ELBEIN, Juana e DOS SANTOS, Deoscoredes. A cultura nagô no Brasil, 1993, p.47.
ensaios mostra brasileira 159

Cinema e negritude:
restituições de territórios e invenções
de pertencimentos
sobre NoirBLUE: deslocamentos de uma dança, de Ana Pi,
Nome de batismo: Alice, de Tila Chitunda, Maré, de Amaranta Cesar
e Galinhas no Porto, de Caioz e Luís Henrique Leal

Tatiana Carvalho Costa*


em colaboração com Layla Braz**

É preciso a imagem para recuperar a


deslocamentos de uma dança, 2018) cons-
identidade. Tem-se que tornar-se visível.
troem narrativas que reinventam percursos da
Porque o rosto de um é o reflexo do outro.
memória coletiva e criam outras possibilidades
O corpo de um é o reflexo do outro. E em cada
de existência como “autorreferencial sujeito
um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade
do dizer” nas imagens, reafirmando, com o
está na raiz da perda da identidade.
Cinema, a negritude positivada defendida por
Beatriz Nascimento1 Aimée Césaire:

A
Mostra Contemporânea Brasileira traz [A Negritude] é uma maneira de viver a
alguns dos mais provocativos curtas- história dentro da história, a história de uma
metragens realizados por diretores e comunidade cuja experiência parece, em
sobretudo diretoras negras na atualidade. E a verdade, singular, com suas deportações de
potência desses filmes se manifesta nas diversas populações, seus deslocamentos de homens
formas de invenção de lugares de resistência e de um continente a outro, suas lembranças
de pertencimento à negritude na linguagem e a distantes, seus restos de culturas assassi-
partir dela. nadas. [...] busca de nossa identidade, afir-
Safira Moreira (Travessia, 2017), Tila Chitunda mação do nosso direito à diferença, aviso
(Nome de Batismo: Alice, 2017) e Ana Pi (NoirBLUE: dado a todos do reconhecimento desse

*Professora e pesquisadora, coordena o projeto Pretança/UNA, participa da segundaPRETA e do grupo Cor, Raça
e Gênero PPGCom/UFMG. Integra a comissão de seleção da Mostra Contemporânea Brasileira desta edição do
forumdoc.bh.
**Bacharel em Cinema e Audiovisual, produtora cultural e integrante da comissão de seleção da Mostra Contem-
porânea Brasileira desta edição do forumdoc.bh.
1. Orí. Direção de Raquel Gerber. São Paulo: Versátil, 2008. 1 DVD (91 min), som, cor.
160

direito e do respeito à nossa personalidade Em outros campos artísticos, a discussão


coletiva. (CÉSAIRE, 2010, p. 109-113) sobre a representação e a representatividade
da negritude também se intensifica. Em Minas
Ampliando a ideia de “personalidade cole- Gerais, testemunhamos movimentos de aqui-
tiva” e diversa, junto delas, Rubens Passaro lombamento artístico com a SegundaPRETA e a
(Universo Preto Paralelo, 2017) conecta as proeminência negra no Festival Internacional de
imagens da memória da escravização aos Teatro – FITBH 2018. E São Paulo sediou, no MASP
discursos sobre torturas no período da Ditadura e no Instituto Tomie Ohtake, uma das mais impor-
Militar no Brasil, nos chamando atenção para a tantes exposições de artes visuais sobre o tema
atualidade do fascismo e das imposições de uma na América Latina, a Histórias Afro-Atlânticas.
necropolítica, enquanto Ulisses Arthur (Corpo
Style Dance Machine, 2017) faz um exercício de Cinema por e cinema com
rememoração de uma história recente de LGBTs, Compreendemos e agimos em função da urgência
também sobrepondo temporalidades, para dar a na defesa de um lugar para o cinema feito por
ver particularidades da identidade negra e queer. pessoas negras. Mas entendemos também que,
A exibição deste conjunto de filmes rever- neste momento histórico em que despontam
bera e amplifica uma crescente (ainda que insu- fascismos, é importante olharmos para os gestos
ficiente) presença de negras e negros no fazer aliados – ainda que saibamos que “o aliado não é
do cinema brasileiro. Festivais, mostras e cine- uma categoria estável”.3 Em parte dos filmes sele-
clubes ao longo deste ano se dedicaram mais cionados, há apontamentos acerca dos modos
ou menos intensamente a obras produzidas por de fazer cinema com pessoas negras. Tomamos
esses (novos?) sujeitos, a reboque do que tem emprestado o termo “cinema com” da ensaísta e
sido bravamente defendido há uma década pelo curadora Carla Maia, em sua definição do “caráter
Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul e pelo relacional das obras” feitas com mulheres:
CachoeiraDoc. Em Belo Horizonte, destacamos o
FESTCURTASBH que, em sua 20ª edição e cura- parece crucial na elaboração de um
doria de Heitor Augusto,2 trouxe um apanhado pensamento em torno de um cinema com,
amplo e diverso de obras realizadas por pessoas e não sobre: apostar na indeterminação,
negras e promoveu um seminário que traçou investir na aliança entre estética e política
o percurso da presença dessa filmografia na enquanto possibilidade de reinvenção de
história do Cinema Brasileiro. Neste mesmo ano, um campo sensível do qual os “sem-parte”
o 50º Festival de Brasília recebeu o maior número podem, finalmente, tomar parte, numa
de inscrições de filmes de negras e negros de sua redistribuição dos lugares de quem fala
história, um ano após a polêmica com Vazante e quem é ouvido. O cinema – sobretudo
(2017), e premiou o protagonismo negro atrás e o documentário, supomos – pode favo-
à frente das câmeras. recer a criação de cenas dissensuais, e ao

2. Cf. Cinema Negro: capítulos de uma história fragmentada. In: Catálogo do FESTCURTASBH. Ana Siqueira [et
al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. p. 57-58.
3. Expressão repetida por Cíntia Guedes na performante A gente combinamos de não morrer, com Jota Mombaça
no FITBH 2018.
ensaios mostra brasileira 161

expor “situações de palavra”, permitir que no chão, dia e noite eram iguais para nós o
a igualdade pressuposta entre os seres seja sono sendo negado devido ao confinamento
sempre colocada à prova, na medida em que dos nossos corpos. Ficamos desesperados
confere visibilidade aos corpos e alcance às com o sofrimento e a fadiga. (LARA, 1988,
vozes daqueles/as que compõem a “parte p. 272)
que falta”. (MARTINS, 2018, p. 169 – grifos
da autora) O jovem Mahommah Gardo Baquaqua foi
traficado para o Brasil nos anos 1840. Ao longo
Em uma das sessões programadas para de sua vida, ele manteve diários que foram
esta edição do forumdoc.bh2018, estão reunidas reunidos em uma publicação lançada no Brasil
obras que trazem a potência da direção cine- somente em 2017. O trecho acima é lido em um
matográfica empreendida por pessoas negras – dos fragmentos de fala no filme. No espaço onde
NoirBLUE: deslocamentos de uma dança (2018) possivelmente Mahommah teria desembarcado,
e Nome de Batismo: Alice (2017) – e as possi- o presente do filme nos mostra uma sucessão
bilidades do diálogo deste cinema feito “com”, de estátuas, brinquedos e souvenires em formas
em gestos de escuta e co-criação executado de galinhas. A câmera observa discretamente
por pessoas brancas – Maré (2018) e Galinhas o homem negro que percorre a praia, a área
no Porto (2018). de comércio e de ruínas onde ele delimita os
possíveis espaços de confinamento de outros
Apagamentos, reinvenções corpos negros em séculos anteriores. Ele se posta
“Não sei quando começamos a ter lembranças”. em meio a turistas em embarcações de visita às
A primeira frase no voice over de Galinhas no paisagens. Ao sobrepor digressões sobre a bruta-
Porto (2018), de Caioz e Luiz Henrique Leal, é lidade da escravização de pessoas negras a esse
acompanhada da imagem de uma paisagem com movimento de um único corpo negro no presente
um mar ao fundo. A voz menciona as primeiras daquele território desmemoriado, o filme restitui
fotografias do século XIX e quem jamais pôde à paisagem a violência de seu passado. Um gesto
ser visto nelas. “Há galinhas no porto” era o de redenção?
código para a chegada de navios negreiros que A câmera em Galinhas no Porto observa. Em
desembarcavam ilegalmente na segunda metade Maré, de Amaranta Cesar, ela se torna cúmplice.
do século XIX4 numa praia próxima à cidade de Essa proximidade é potencializada pela cons-
Recife. No final do século XX, a região virou um trução de uma temporalidade que faz coexis-
dos pontos turísticos mais desejados do país: tirem a ação física dos corpos e uma camada
Porto de Galinhas. do que age invisível sobre o espaço, sobre esses
corpos e sobre o próprio tempo do e no filme.
Fomos empurrados para o porão, total- Somos apresentadas ao mangue e a uma
mente nus, os homens foram amontoados oferenda a uma senhora-tempo, entidade que
de um lado e as mulheres de outro, o porão o habita. Seria ela a força que o atravessa? Na
era tão baixo que não podíamos nos levantar lida com as castanhas de dendê, uma mãe tenta
éramos obrigados a nos agachar ou sentar convencer as filhas a irem para o colégio. “Elas

4. O tráfico de pessoas escravizadas, no Brasil, foi coibido em 1831 e proibido em 1850 pela Lei Euzébio de Queiróz.
162

querem ir embora para Salvador”, pensa a mãe De observadora e cúmplice, a câmera


em voz alta. “Dizem que as escravidão já acabou. assume o olhar de mulheres negras que buscam
Quem disse que acabou? Continua aí. Não vê as imagens de si no território da memória ances-
quem não quer”, afirma, a pilar as castanhas. tral. Nome de Batismo: Alice (2017) e NoirBLUE,
Olhada de baixo para cima, a não-atriz e sua fala deslocamentos de uma dança (2018) lidam, em
ganham a força das socadas no pilão. As irmãs primeira pessoa, com uma ideia de retorno
Patrícia e Diguinha, uniformizadas, desviam-se ao continente africano. Nos dois, as diretoras-
do caminho e adentram o mangue. Entramos protagonistas Tila Chitunda e Ana Pi lidam, cada
com elas. A mais velha ensina a mais nova sobre uma à sua maneira, com o não-lugar da inter-
o trabalho e os humores do lugar: “então, você seção diaspórica nos corpos. Tila enfrenta as
é a rainha do mangue”, ironiza Diguinha. Mas a reverberações de uma migração decorrente da
mãe quer inventar uma nova vida para as filhas, guerra pela independência de Angola nos anos
diferente da vida que inventaram para ela. 1960. Ana Pi lida com a secular passagem de um
As meninas parecem divididas entre a povo pela Porta do Não-Retorno.
vontade de ir e um chamamento para a perma- A história de seu nome, Alice – dado em
nência. E elas não voltam para casa. Da janela, a homenagem à sua avó –, é a razão encontrada por
mãe observa a ausência, recolhendo duas mari- Tila para a ida a Angola. Nascida no Brasil e filha
tacas para junto de seu peito. A noite cai, a maré imigrantes, ela viaja com a mãe para a terra natal
sobe. As forças agem no tempo, naquele espaço, e materna. Numa estrutura cronológica, o filme
o filme se abre para elas, a compartilhar conosco parte da decolagem para outro continente e nos
imaginários e crenças. “Adeus, camarada, adeus, leva, com a câmera-olho de Tila, pelo percurso às
adeus que eu já vou m’embora, pelas ondas do ruas, estradas, cidade e aldeia até a despedida
mar eu vim, pras ondas do mar eu vo’mbora”. para o retorno ao Brasil.
Acompanhamos a cantoria e um progressivo “Nossas visitas chegaram, lhes esperamos
acender de lamparinas nas casas e nas ruas. “Ô, por muito tempo”, cantam os parentes. Apesar
Iemanjá, ekô, ekô, Oxum obá”. Amaranta César é da calorosa acolhida, no caminho para Bié, terri-
hábil na construção poética da procissão-resgate tório Ovimbundo de onde vem sua família, Tila se
encenada pelas mulheres na bela paisagem da frustra ao tentar reconhecer o desejado pertenci-
comunidade quilombola do Vale do Iguape. Na mento: “me sinto estrangeira neste lugar”, ela diz
noite, senhora-tempo-mangue espera, fazendo em voice over enquanto aponta a câmera para a
fogo em seu cachimbo. “Diguinha, Diguinha”, paisagem que passa pela janela do carro. “É frus-
ouvimos, enquanto vemos a menina a caminhar trante estar aqui e não compreender o que dizem
ao lado dela na luz do dia. Cantos de lamento os mais velhos”, ela afirma voltando seu olhar
marcam o retorno das mulheres, sem Diguinha, para os parentes que conversam em umbundo,
na manhã. Acompanhamos as personagens de dialeto do “local de nossas origens”. A câmera
perto. A câmera, cúmplice das não-atrizes, apre- reafirma a presença dela naquele território mas
senta uma coerência com um processo do que já encarna o olhar estrangeiro que observa, com
chamamos aqui de um “cinema com” (MARTINS, curiosidade, uma terra distante. Ao não conse-
2015). A fábula encenada faz aparecer na tela o guir se encontrar com a África imaginada, Tila
desejo que vem do conjunto de mulheres que se decepciona e nos apresenta o paradoxo da
inventam o filme.
ensaios mostra brasileira 163

construção identitária diaspórica: qual é, afinal, de nossa existência e de nosso pertencimento


nosso afro-pertencimento? que, para ela, está “alojado em uma metáfora” e
que nos obriga a “ser um tipo de ficção”. Ainda
Não podemos jamais ir para casa, voltar à segundo a autora, “viver na Diáspora Negra é, eu
cena primária enquanto momento esque- acho, viver como uma ficção – uma criação dos
cido de nossos começos e “autenticidade’, impérios e também uma autocriação. É como
pois há sempre algo no meio [between]. Não ser um ser vivendo dentro e fora de si mesmo”.
podemos retornar a uma unidade passada, Ana Pi olha, com a câmera, para os espaços
pois só podemos conhecer o passado, a em que reconhece ou constrói seu pertenci-
memória, o inconsciente através de seus mento. “E eu grite: acarajé! Me perguntaram:
efeitos, isto é, quando este é trazido para mas você fala iorubá?”, conta com sua voz doce e
dentro da linguagem e de lá embarcamos pausada. A temporalidade estabelecida por sua
numa (interminável) viagem. Diante da narração deixa escorrer, para o filme, as camadas
“floresta de signos” (Baudelaire), nos encon- dessa identidade-ficção. O suceder de espaços
tramos sempre na encruzilhada, com nossas e a menção desordenada a eles monta um mosai-
histórias e memórias (“relíquias seculari- cado território-memória. Ana também aponta a
zadas”, como Benjamim, o colecionador, as câmera para si e para a construção que faz de si
descreve) ao mesmo tempo em que esqua- nesse lugar. Ao filmar outros corpos que também
drinhamos a constelação cheia de tensão performam para a câmera ela entra em quadro.
que se estende diante de nós, buscando “Signature” é a dança mas é também seu gesto
a linguagem, o estilo, que vai dominar o no e com o filme.
movimento e dar-lhe forma. (CHAMBERS O artista goiano Dalton Paula, cuja série de
apud HALL, 2003, p. 26-27) pinturas A Cura compõe este catálogo, realizou
dois retratos para a já mencionada exposição
Longe de verdade buscada por Tila Chitunda, Histórias Afro-Atlânticas: João de Deus Nasci-
Ana Pi encara performaticamente a ideia de mento e Zeferina. O retrato de João de Deus foi
pertencimento. NoirBLUE é o azul de tão preto. A criado sem uma referência visual: imagens dessa
expressão racista é apropriada e positivada pelo figura histórica da resistência negra não existiam.
percurso de Ana com seu manto azul e sua dança Um dos curadores da exposição, Hélio Menezes,
em ruas, calçadas e ruínas de países da África explica que parte da obra de Dalton é inspirada na
Subsaariana de onde, séculos passados, partiram estética dos ex-votos e “têm uma relação direta,
milhões de pessoas pela Porta do Não-Retorno portanto, com uma espécie de cura – os ex-votos
rumo ao novo mundo. têm essa função, de serem deixados nas laterais
Para Dionne Brand (2002, p. 18-19),5 essa das igrejas, nos altares, pedindo a cura”.
“Porta”, “real e metafórica”, tem status de “uma Em A Cura, Dalton traz corpos negros com
mítica” para pessoas negras descendentes referências a territórios de pertencimento, em
de africanos escravizados e espalhadas pelas ações de cura física e simbólica ou ainda de
Américas. Essa mítica define a ambivalência iniciação. Os olhos dos personagens estão

5. Trecho traduzido por Ana Maria Gonçalves e disponível em: <http://www.geledes.org.br/onde-andara-a-boa-


-e-velha-liberdade-por-ana-maria-goncalves/#gs.hSL7zQ8>. Acesso em 08/04/2017.
164

fechados, numa possível introspecção e transcen-


dência, num agenciamento de outras presenças
para além do visível. João de Deus Nascimento
e Zeferina têm os olhos abertos, numa altivez
para o presente da ação. Dalton complexifica a
relação com a espacialidade e a temporalidade
das negruras, numa gama diversa e complementar
de potências. Com uma heterogeneidade de
auto-representações e de experiências com
a negritude, as buscas e invenções nos filmes
presentes na seleção aqui comentada parecem
apontar para esses gestos – atentos e complexos –
de estabelecer resistência e cura pelas imagens,
ampliando as fissuras em um modo histórico de
narrativas excludentes e de opressão.

Referências
CESAIRE, Aimé. Discurso sobre a Negritude. Belo
Horizonte: Nandyala, 2010.

BRAND, Dionne. A map to the door of no return:


notes on belonging. Toronto: Vintage Canada,
2001.

HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Medi-


tações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2003.

LARA, Silvia Hunold. Biografia de Mahommah G.


Baquaqua. Revista Brasileira de História, v.8, nº
16,. São Paulo, 1988. p. 269-284.

MARTINS, Carla Ludmila Maia. Sob o risco do


gênero: clausuras, rasuras e afetos de um cinema
com mulheres. 2015. 285p. Tese (Doutorado em
Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
ensaios mostra brasileira 165

Bimi, Shü Ikaya


sobre filme de Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube

Daniel Ribeiro Duarte*

A
o começarem o filme Bimi, Shü Ikaya seus irmãos. Eles vieram te visitar para se curar
(2018) com o plano aproximado da de todo o mal com seu poder”.
casca da Samaúma – uma das árvores Por mais que tentemos, é difícil que um
sagradas mais respeitadas pelos povos amazô- plano de cinema feito por nawa (não-indígenas)
nicos pela sua dimensão monumental (que pode atinja a forma como um realizador indígena –
chegar a 90 metros de altura) e seus amplos e particularmente os Huni Kuin – é capaz de
poderes medicinais – os realizadores Huni mostrar uma planta ou árvore como quem filma
Kuin parecem colocar o filme, desde já, em um parente – um parente mais velho, é claro.
ligação e compromisso com camadas tempo- Junto ao poder medicinal está o poder da sabe-
rais mais amplas do que as alcançadas por nós doria e da ancestralidade: se as plantas são as
não-indígenas. grandes mestras, e os mais velhos são os inter-
A narrativa prossegue com a imagem dos pés mediários desta ciência. Bimi, pajé tardiamente
de uma mulher que caminha no chão da floresta, revelada (até porque às mulheres não era dado
entre as milhares de plantas que foram estudadas entrar em contato com estes conhecimentos) mas
por uma tradição verdadeiramente enciclopé- hoje respeitada inclusive pelos homens, ocupa
dica no que diz respeito ao seu poder medicinal. este lugar com a consciência de ser uma criança
Cercada pelos mais jovens, Bimi seleciona folhas, aos pés da Samaúma.
manuseia e corta. O filme vai seguir atento às Bimi pinga suco de Bawe nos olhos das
mãos da pajé, que buscam a força da floresta para meninas, para elas “terem boa memória no apren-
entregar aos corpos que ela pode curar. Estas dizado dos Kene, os desenhos da nossa cultura”.1
mãos ganham uma importância fundamental no Ela não foi criada para o xamanismo, mas para o
filme, pois muitas vezes são elas que conectam artesanato, como todas as meninas a quem não
os planos entre si. A fala também é um agente era permitido beber a medicina sagrada do Nixi
mobilizador deste poder curativo: nesta primeira Pae, combinação da Ayahuasca com a folha do
sequência, Bimi se dirige à Samaúma e diz que Mariri que ensina o saber sobre as plantas e a
trouxe aquelas crianças até ela para que fossem medicina. Embora seu pai a tenha proibido de
curadas. “Eu dei seu nome para eles, eles são tomar o cipó, dizendo que a mulher que usa

*Pesquisador, curador e realizador de cinema. Integra o coletivo Filmes de Quintal. Doutorando em Cinema pela
Universidade Nova de Lisboa.
1. In: Manual das crianças Huni Kuĩ Yumebu há uĩtã hariri ikaĩti disponível em: <http://www.tecendosaberes.
com/wc/uploads/2015/08/PgsManual_HuniKui_bx.pdf>.
166

a planta fica com fraqueza, quando Bimi teve cantarem e fazer suas curas. Para eles, filmar
acesso a ele pela primeira vez (já tendo um neto) Bimi é um gesto fundamental para registrar um
começou logo a cantar e curar. Os outros pajés pouco deste conhecimento. Eles combinam
souberam de seu trabalho e se interessaram, de inscrever o projeto em editais, para fazer
chamando-a para beber o Nixi Päe com eles e um filme mais estruturado, com mais pessoas
aceitando-a como pajé. trabalhando. O cinema é comparado à caça pelos
O cinema indígena, desde que se expandiu jovens cineastas, já que é preciso astúcia para
para um grande número de aldeias e etnias, tomou saber onde procurar dinheiro e apoios para a
muitas formas e respondeu a diversas finalidades realização. A ajuda dos brancos (entre eles Tiago
destes povos. Entre as funções do cinema para os Campos e Ernesto de Carvalho, no som, foto-
povos originários está a de preservar a tradição. grafia e montagem) é vista como um precioso
O filme de Bimi, ao mostrá-la para eles próprios auxílio, por saberem como se mover no mundo
e para o mundo exterior, a legitima como pajé: do cinema e dos editais.
“Eu não saio por aí falando que eu sou pajé, mas O cinema é caça, mas também artesanato.
vocês resolveram fazer este filme! Isto é um O filme segue mostrando a pajé Bimi ensinando
reconhecimento e eu agradeço. Eu digo que às crianças as atividades próprias ao mundo
estou apenas começando, e quem vai se formar feminino. Elas colhem algodão, plantas e cozi-
são vocês”. Bimi se refere a uma construção do nham. O algodão é usado para redes e outros
saber medicinal que se transmite e consolida tecidos com padrões geométricos Kene, dos
através das gerações, diante da enormidade de Huni Kuin. Foi realizando estas atividades que
conhecimento que há guardado pela floresta. A Bimi aprendeu a cultura dos ancestrais, e talvez
mulher xamã também refere-se à dificuldade na seja esta sabedoria de entrançamentos e geome-
transmissão dos saberes Huni Kuin. De fato, na trias que a tenha enraizado no conhecimento,
primeira metade do século XX, os Huni Kuin (e tornando-a pajé de forma tão imediata, assim
muitos outros povos amazônicos) foram escravi- que bebeu o Nixi Pae.
zado para trabalhar nos seringais, desaldeados e Uma sequência forte do filme trata tanto da
muitos foram mortos por epidemia ou violência, própria realização do projeto quanto da sobrevi-
rompendo a corrente de transmissão da sabe- vência da cultura Huni Kuin. Um dos realizadores
doria tradicional. Bimi, Shu Ikaya é um filme da expõe a proposta que foi trazida por alguns: fazer
tradição, que busca registrar a sabedoria dos uma festa com música dos brancos, dançar e
mais velhos, e cuja personagem principal relança depois fazer o ritual do Nixi Pae. Bimi pede a
este conhecimento do passado como algo em palavra e mostra a sua liderança: o projeto tem
permanente movimento, que deve ser sempre o seu nome, aquela maloca também, e desta
completado pelos mais novos que o recebem. maneira não poderia permitir que o projeto fosse
Há um longo plano em que dois dos reali- pretexto para iniciar festas de outro tipo que
zadores conversam sobre o filme. O cinema é não aquelas da tradição, pois “é nas festas que
visto como um instrumento para reconectar o começam os problemas”.
povo Huni Kuin à sua espiritualidade, através da Diante do preparo do Nixi Pae, realizado
valorização do conhecimento tradicional. Falam inicialmente por homens, Bimi traz um grupo de
das antigas cerimônias de Nixi Pae, quando os mulheres, que se sentam próximas aos caldeirões
pajés bebiam quantidades enormes do chá para no fogo para ouvir a xamã cantar uma melodia
ensaios mostra brasileira 167

que atrai bons pensamentos. Para ela, o conhe-


cimento não deve ser restrito a poucos, mas ser
ensinado a quem quiser aprender.
Na parte final do filme, vemos a festa do Nixi
Pae. Na sombra larga e protetora da Samaúma,
Bimi e outros pajés distribuem a medicina
e depois passam por cada um dos presentes
oferecendo a sua cura e o seu sopro, massa-
geiam e cantam para afastar os maus espíritos. A
beleza desta sequência é rara: o visível é intenso
mas ainda assim intui-se que o mais importante
daquilo que está sendo filmado não pode ser
visto. Radicaliza-se aqui o gesto cinematográfico
de dar a ver o invisível. Testemunhamos algo sem
o alcançar inteiramente, sabendo da força com
que atua sobre a vida deste povo.
O filme tem ainda uma espécie de epílogo,
em que Isaka e Siã, os mais jovens entre os três
realizadores, são filmados conversando sobre o
fazer cinema. Isaka diz que está muito satisfeito
de ter feito o projeto sobre sua avó Bimi e se
sente “um cineasta fazendo cinema”. Se por um
lado o filme legitima a sua ancestral e os seus
conhecimentos, através desta realização o jovem
é incorporado aos fazeres da aldeia, quando se
torna o veículo de uma tradição. Eles visualizam,
com a ajuda dos jovens, a criação de uma produ-
tora, com divisão do trabalho e aprofundamento
na tarefa do registro. Siã concorda, mas relembra
a interdependência entre o registro e a manu-
tenção da tradição, sendo esta última o que dá
força ao trabalho: “sem a cultura, não temos o
que filmar”. Neste filme vemos um duplo movi-
mento: ao mesmo tempo em que o cinema se
incorpora à cultura, é legitimado como modo de
ajudar na sua sobrevivência.
Os cantos soam, as buzinas Huni Kuin tocam,
as câmeras filmam e a tradição continua. O
trabalho da mulher pajé forma gerações, como
a fruta que tem o mesmo nome que ela: Bimi,
aquela que dá flor e depois germina novamente.
168

Furna dos negros: o lar daqueles


que historicamente resistem
sobre filme de Wladymir Lima

Leonardo Amaral*

E
ste texto foi escrito nas vésperas do Em suas teses sobre a história, Walter
segundo turno da eleição para presidente Benjamin afirma que “articular historicamente
do Brasil, em 2018, e forjado a partir de o passado não significa conhecê-lo como ele de
um sentimento ambíguo de angústia e otimismo, fato foi. Significa apropriar-se de uma reminis-
pois reside na força daqueles que já foram resis- cência, tal como ela relampeja no momento de
tência a esperança de um futuro melhor, ainda um perigo.”2 O filósofo nos ensina que é preciso
que tardio. escavar a terra, buscar aquilo que foi soter-
No Capítulo 3 de Um defeito de cor,1 Ana rado, para que se dê vazão à história daqueles
Maria Gonçalves cita um provérbio africano que que foram vencidos. Nos momentos de um
diz: “Aquele que tenta sacudir o tronco de uma perigo iminente, buscar no passado os modos
árvore sacode somente a si mesmo”. A rigidez do de resistência.
tronco de uma árvore é uma forma de resistência No início de Furna dos negros (2018), uma
e suas raízes um modo de permanecer no mundo. canção é cantada à capela: “Serra da barriga
Corta-se uma árvore, mas não se retira sua raiz, cadê nosso amigo/ Faz 300 anos que ele faleceu/
ela permanece e se distribui no solo, para que Nosso amigo é Zumbi dos Palmares/ Ele foi
não se esqueça de que ali outrora existiu um ser embora e nunca mais voltou/ Ele foi, deixou os
forte e grandioso. Ao sacudir uma árvore, por quilombola/ Pra vencer a luta e ser vencedor”.
um efeito de ação e reação explicado pela física, Após sua execução na banda sonora do filme,
sentimos a força dessa troca em nosso corpo. Gerson Paulino dos Santos e Dominícia Maria
A força que nos percorre e nos faz sacudir nos dos Santos são acompanhados de costas pela
coloca nessa sintonia com a raiz, o passado, que câmera enquanto se embrenham por árvores
implica diretamente no presente. de pequeno porte de galhos retorcidos e secos

*Curador das mostras: Retrospectiva Helena Solberg (CCBB, 2018), Mostra Escola Cidade Aberta (Caixa Cultural,
2017), Tempos de Kuchar (SESC, 2016). Membro de comissão de seleção dos festivais: Festival Internacional de
Curtas de BH (2010-2013), forumdoc.bh (2015 e 2017), Semana dos Realizadores (2016), Lumiar (2018). Doutorando,
mestre e graduado em Comunicação Social pela UFMG. Roteirista, diretor e montador de curtas e longas desde
2008. Ensaísta e crítico pela revista eletrônica Filmes Polvo (2007-2013).
1. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Editora Record, 2013, p. 111.
2. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1994, p. 224.
ensaios mostra brasileira 169

enquanto, através da voz off, ele nos revela que uma cultura africana e negra no Brasil, que
seus povos ancestrais viveram na Serra da Barriga, muitas vezes é posta em perigo por movimentos
onde se localizava o famoso quilombo de Zumbi reacionários e destrutivos. Gerson, filmado de
dos Palmares, que significou um dos maiores atos dentro da caverna, relembra o período de luta
de resistência negra de Alagoas e do Brasil. Agora, de seus bisavós, avós e pais para que hoje ele
o local é constituído por um novo quilombo, onde e seus filhos possam ser donos daquela terra.
as primeiras casas de alvenaria são construídas Segundo ele: “a terra pertence primeiro a Deus,
para abrigar os habitantes da região. Os povos, e segundo, a nós, que somos os vigias da terra”.
que antes viviam ali, habitavam uma espécie de Em seguida, já fora da gruta, Gerson indica com
furna cravada em meio a uma pedra. Lá residiam a mão os domínios territoriais dos quilombolas
os descendentes de Palmares. Em uma sequência que vivem perto de uma plantação de aroeira
do filme, Gerson demonstra pela câmera operada e as terras onde ele e sua família residem. A
pelo documentarista Wladymir Lima a maneira câmera acompanha o movimento indicativo feito
como seus antepassados dormiam naquele logra- pelas mãos do ancião e através de um movimento
douro. O espaço é estreito e pouco afeito ao panorâmico ressalta geograficamente a conquista
conforto. Ainda assim, Gerson se deita no meio de um lar ao longo de séculos.
das pedras, na pequena vala que ali se forma e No documentário, um outro movimento
diz que eles pegavam no sono e se ajeitavam de resgate se dá com a retomada da festa de
daquele modo. Lá era o refúgio de muitos que Reisado, na qual as tradições passadas são
conseguiam fugir dos donos de escravos. trazidas para o presente. Enquanto se preparam
A situação agora é diferente. Dominícia tem com as vestes para o Reisado, Gerson explica,
orgulho da nova casa. Eles explicam como se dá na voz off presente na banda sonora do filme,
a lida diária no roçado e como antigamente eram como aprendeu a dançar com seu sogro, pai de
vítimas da exploração de patrões e também da Dominícia. O relato funciona como uma espécie
precarização do trabalho. Gerson e Dominícia de trova, que traz aos iniciados (dentre os quais,
são os primeiros residentes do quilombo a terem o espectador) as informações históricas do
sua casa de alvenaria. As outras residências ainda tempo passado: “aí tomei conta do Reisado, eu
estão em processo de construção. Vicentina Maria mais ela, que é tradição daqui, pra não deixar ir
da Conceição ainda mora em um dos barracos de água abaixo.”
construídos com madeira e lona. Mas ela já pode O festejo tradicional é filmado por uma
avistar sua nova moradia em processo. Diz, com câmera bem próxima, que busca se deixar aden-
orgulho e felicidade, a respeito da nova casa e trar no rito, uma vez que isso é permitido a partir
a oportunidade de se estabelecer em um lugar da intimidade que se estabelece com Gerson.
onde seus avós e bisavós antigamente residiram. Mais uma vez, um canto típico se espalha pela
Benjamin refuta um progresso da história banda sonora e se constitui como uma história
para reafirmar uma história em ciclos e resgates oral, que é preciso sempre ser cantada e recan-
do passado. Furna dos negros é permeado por tada para que os novos não se esqueçam de seus
canções que retomam o período da escravidão antepassados, de suas raízes. Durante a filmagem
e do quilombo de Palmares como forma de do Reisado, surgem, no campo, várias crianças
resistência e lembrança de um tempo pretérito que acompanham e aprendem com os mais velhos
no qual se consolidou, através de muita luta, uma tradição de luta para a sobrevivência de
170

uma cultura. Furna de negros é, sobretudo, essa


história oral, cantada por Gerson e Dominícia
e presente também na fala de ambos, em seus
modos de contar essa história. Assim, resgatam
da terra, cravada na caverna onde outrora viveram
seus ascendentes, uma história dos vencidos
que é preciso sempre lembrar, nunca esquecer.
Transformam a palavra cantada em um lar, onde
se sentem confortáveis e em paz.

Referências
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história.
Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e polí-
tica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio


de Janeiro: Editora Record, 2013.
ensaios mostra brasileira 171

Uma existência que não


consta nos autos
sobre Auto de Resistência (2018), de Natasha Neri e Lula Carvalho

Pablo Moreno Fernandes Viana*

M
aioria do povo brasileiro, segundo mortes são registradas como resistência à ação
dados do IBGE (2017), os negros são da polícia do Rio de Janeiro, daí o termo que
também os que mais morrem, de nomeia a obra. Os autos de resistência consistem
acordo com o mapa da violência, com números no registro de ações policiais em que há civis
crescentes entre 2002 e 2012: mortes de brancos mortos, quando os membros da corporação
caíram 32%; as de negros aumentaram 32% alegam ter agido em legítima defesa.
(GENOCÍDIO, 2015). Já se reconhece que a morte Num cenário político em que candidatos
sistemática do povo negro no Brasil é um geno- discursam que “se fizer o enfrentamento com a
cídio, política de extermínio de um povo. Parte polícia e atirar, a polícia atira. E atira pra matar”
significativa dessas mortes é ocasionada por (RODRIGUES, 2018), uma obra como Auto de
policiais, treinados a adotar como um padrão Resistência é necessária e urgente. Necessária
suspeito pessoas periféricas, pobres e de pele porque comprova que o estado age para matar.
preta. No entanto, ignoramos a realidade dessa Comprova, a partir de vídeos, imagens e testemu-
estrutura tão consolidada e “a ideologizada nhos que, da parte das vítimas, não houve resis-
democracia racial produz um discurso racista tência, não houve ataque, sequer houve crime e,
e legitimador da violência e da desigualdade racial muito menos, legítima defesa. Urgente porque
diante das especificidades do capitalismo brasi- denuncia que, apesar da esperança relatada
leiro” (ALMEIDA, 2018, p. 141). nos raros casos em que há provas que afirmam
Parte dessa realidade é denunciada no a excessiva violência policial, nem sempre é
documentário Auto de Resistência (2018), de possível comprovar os exageros. Explicita que
Natasha Neri e Lula Carvalho. Os diretores acom- há recorrente adulteração de cenas de crimes.
panham a saga de mães e familiares, cujos entes Escancara também a impotência da fala dos entes
queridos foram assassinados por policiais. Em queridos despedaçados pela dor do luto contra a
todas as histórias, um fio condutor perpassa os narrativa da polícia, do Estado e da Justiça, que
acontecimentos: trata-se de homens, negros, não se esforçam para diminuir a trágica estatística,
moradores de favelas, mortos por policiais; as sem ao menos investigar a fundo os ocorridos.

*Professor do Mestrado em Comunicação Social e nos cursos de Cinema e Audiovisual e de Publicidade e


Propaganda da PUC Minas. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, Mestre em Comunicação
pela PUC Minas.
172

“É morador! É morador!”. Wilton, Wesley, Os abusos são frequentes num contexto em


Cleiton, Carlos Eduardo e Roberto, jovens entre que o alvo da violência tem cor e classe social,
16 e 26 anos, foram assassinados com 111 tiros pela em lugares em que a polícia atira primeiro, para
polícia, em Costa Barros. O crime dos jovens depois perguntar. Se a resposta à pergunta após
foi estar em um carro à noite e cruzar com a os tiros surpreende, mexe-se um pouco daqui,
Polícia. Os cinco rapazes foram tomados como um pouco de lá, cria-se um cenário, uma narra-
traficantes, mais de uma centena de tiros foi tiva que torna a vítima em algoz. Se tudo isso
disparada e a mãe de Wilton, que chegou à cena não funciona, lança-se mão da burocracia para
do crime enquanto o filho ainda vivia, foi impe- postergar e atrasar o processo. A dor das mães?
dida de se aproximar e testemunhou os policiais Não importa. A dor de uma família destruída?
adulterando o local, colocando armas próximo Não interessa. Relativiza-se a vida ao afirmar que
aos jovens baleados. O filme mostra a reconsti- os direitos humanos só protegem bandido, num
tuição do crime, mostra falas dos advogados de ato de desumanização e culpabilização daqueles
defesa, da promotoria, acompanha o processo cujo crime foi nascer preto e pobre. O resultado
de investigação e a luta dos familiares para que é a impunidade.
os policiais responsáveis sejam submetidos a Outro mérito de Auto de Resistência é
júri popular. a homenagem a Marielle Franco. A vereadora
O caso Alan e Chauan, na favela da Palmei- aparece em diversos momentos, ao lado das mães
rinha, também é emblemático por ter provas que buscam justiça por seus filhos, acompa-
contundentes da violência policial. Três amigos nhando sua batalha. O filme é dedicado a ela,
conversam e brincam com a câmera de um celular. que foi assassinada em 14 de março de 2018, com
Um deles corre atrás do outro e dois policiais, quatro tiros na cabeça, num crime cuja inves-
que passavam pelo local numa viatura, abrem tigação se arrasta há mais de 200 dias, até o
fogo contra os jovens Alan, 15 anos, e Chauan, momento em que este texto é finalizado, sem
19 anos, que são baleados. Eles são socorridos, denúncia aos atiradores e mandantes do assassi-
mas Alan não resiste. A Polícia informa que a ação nato, que sequer foram descobertos pela polícia.
ocorreu porque os jovens abriram fogo contra Auto de Resistência recebeu críticas por não
a viatura. No entanto, o carro estava equipado inovar na forma. Também foi criticado por soar
com câmera de segurança, que registra toda a repetitivo nos discursos das mães que precisam
operação. As imagens entram no filme como um contar, contar e contar de novo suas histórias
exercício metalinguístico de cinema documental. ao poder público. Se incomoda por ser cansa-
Além disso, o celular utilizado pelos jovens para tivo, cabe o exercício de empatia de se colocar
a brincadeira antes do tiroteio também registra no lugar das famílias destruídas e do volume
o ataque. Com os registros audiovisuais como assustador de autos de resistência nas favelas
provas, os policiais são levados a júri popular brasileiras. Se assistir aos relatos cansa, vale o
e condenados diante das provas contundentes, exercício de se sensibilizar e buscar reencontrar
apesar de haver tentativas de criminalizar a humanidade perdida. O esforço das mães e
Chauan, o sobrevivente ao atentado. Ainda que demais entes queridos pela memória dos seus
tenha havido condenação dos policiais, essa não não consta nos autos. É resistência para quem
é a realidade da maioria dos casos, inclusive dos o direito de existir é luta cotidiana.
demais casos relatados no documentário.
ensaios mostra brasileira 173

Referências
ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural. Belo
Horizonte: Letramento, 2018.

GENOCÍDIO da juventude negra no Brasil, O.


Geledés Instituto da Mulher Negra. São Paulo.
2015. Disponível em: <https://www.geledes.org.
br/o-genocidio-da-juventude-negra-no-brasil/>.
Acesso em out. 2018.

RODRIGUES, Arthur. A partir de janeiro, polícia


vai atirar para matar, afirma João Doria. Folha de
São Paulo, Poder. São Paulo: Folha de São Paulo,
2 out. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.
uol.com.br/poder/2018/10/a-partir-de-janei-
ro-policia-vai-atirar-para-matar-afirma-joao-
-doria.shtml>. Acesso em out. 2018.
174

Olhar a rua, observar pessoas,


inventar lugares
sobre Praça do peixe (2018), de Bernard Machado, Florence Defawes,
Marina Sandim e Ralph Antunes

Maria Ines Dieuzeide*

T
alvez o desafio a que Praça do peixe garota, algo de sua história. Mas não. A explosão
(2018) se dispõe seja o de, ao observar anunciada por Mc Kevinho é abruptamente
as pessoas que se aglomeram ali, acessar cortada, o plano não acompanha a bicicleta
o modo como elas criam para si aquele espaço. O e somos levados a observar outros homens,
curta começa quase herdeiro do direto: câmera compenetrados na tarefa de sobreviver. A
mais distante, no exercício do registro sem dinâmica do filme (o desafio?) vai se revelando:
interferência, a olhar um grupo de pessoas que a câmera se detém em algumas pessoas, nos
remexem sacos de lixo. Aos poucos os planos revela pouco, mas deixa espaço para que o som
se aproximam, mas as vozes seguem inaudíveis, adentre o universo de cada uma delas. Adentrar
cobertas com o som forte dos veículos que ou inventar? A partir dos gestos, da dedicação
passam por ali. Até que uma presença femi- de cada um a cada coisa, os sons se descolam da
nina irrompe o quadro, assumindo sua voz e matéria remexida filmada em preto e branco e
seu protagonismo. Ela encara a câmera, explica parecem especular e recriar as percepções que
procedimentos de que lança mão para atravessar aqueles homens e mulheres teriam sobre a fatia
a noite, dirige o fotógrafo: “filma ali o peixe!” – de espaço que lhes sobra – ou que é apropriada
e ele obedece. Fora de campo, começa um por eles. Praça do peixe nos envolve em uma
funk, que funciona como uma deixa para que o cuidadosa elaboração sonora na tentativa de nos
filme saia do “direto” e assuma outros artifícios fazer conhecer ou compartilhar desses modos
do cinema: o som abandona a diegese, o plano de ocupar a praça, de viver na rua.
individualiza a personagem (ainda que nunca Assim, procedimento fílmico que é, ao
saibamos seu nome) e o funk parece tocar só som é permitida a recomposição do material
pra ela, que domina a rua em toda sua extensão, captado, evidenciando ritmos e timbres que
atravessando-a com sua bicicleta. surgem durante essa noite, a partir de cada movi-
Pareceria, então, um documentário de mentação. Não se trata de ouvir as histórias dos
personagem: em seguida conheceríamos essa personagens, mas de tentar captar e transformar,

*Pesquisadora de cinema e curadora. Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Integra o grupo de pesquisa
Poéticas da Experiência (UFMG) e trabalha na produção e edição da Revista Devires - Cinema e Humanidades. É
uma das curadoras do Cineclube Sorpasso e colaboradora da revista Rocinante.
ensaios mostra brasileira 175

na tela, as experiências vistas. Até que a pista exatamente de onde elas vêm, já que a câmera
sonora se descola do universo ruidoso que não detém mais sua caminhada, não se deixa
envolve os catadores de lixo e é completamente capturar. Ela segue, perscruta, atravessa.
tomada por um samba quando o filme descobre Depois deste longo plano que percorre a fila
o jogo de futebol. As pessoas filmadas, antes de gente que se prepara para dormir, a câmera se
vistas sozinhas ou em pequenos grupos, agora são detém sobre um homem velho que leva um boné
enquadradas num conjunto maior. Elas se espa- onde se lê “hungry”. O homem parece descon-
lham, disputam a pista com ônibus, demarcam fortável com a câmera que o encara. Ele desvia
seus campos e gols. De universos individualizados os olhos, a câmera permanece; ele esboça um
passamos a lidar com uma pequena comunidade sorriso tímido, devolve e sustenta o olhar, volta
à qual o curta oferece trilha musical, tentando a ficar sério. É só aí, depois de ver tanta gente à
captar os vínculos que se estabelecem ali ou margem, que os letreiros vão nos informar que
talvez desviá-los em alguns centímetros, deslo- aquela multidão, proveniente de diferentes
cando-os do frio, da noite que avança, das sobras. lugares, espera uma doação de peixes.
Mas então o corpo nu de uma mulher (que Como lidar com a fome do outro? Como
tem seu rosto desfocado digitalmente para não olhar para o outro? Praça do peixe parece se
ser identificada) parece jogar o filme para o colocar esse desafio, mas não há uma única
lugar da impossibilidade. Sua entrada em campo resposta para isso. Como habitar o universo
instaura o silêncio, interpõe distância e cons- criado por cada um? Diante das alteridades, como
trangimento. Sua nudez talvez só pretenda um entender e dar a ver esses modos de ocupação,
passeio, mas esse corpo nos afronta, interrompe as relações tecidas, a experiência da margem?
o futebol, perturba o correr da noite e talvez, de Neste curta, parece prevalecer o exercício de
modo enviesado, reforça os laços da comuni- construir maneiras de, com o cinema, inventar,
dade que se criava antes: diante desse corpo que ocupar e compartilhar o espaço da rua.
parece habitar outra camada de experiência, que
percebe o espaço em outra dimensão, a comu-
nidade se agrega para rechaçar. O filme já não
consegue outra entrada a não ser a observação
distante e o silêncio total.
A irrupção desta mulher sem rosto parece
estilhaçar os universos que Praça do peixe se
esmerava em construir, deixando clara a difi-
culdade de lidar com o espaço da alteridade.
A câmera, então, assume a diferença, aceita a
barreira que se interpõe entre quem filma e quem
é filmado e expõe sua condição exógena: expli-
cita o desconforto dos que são capturados pela
lente, encara e é encarada, interpelada, burlada
por eles. Depois do silêncio, o som direto: agora
sim escutamos as vozes que tentam interagir
com essa presença, mas nem sempre sabemos
176

Inaudito: a água-viva de Lanny Gordin


sobre filme de Gregorio Gananian

Pedro Aspahan*

L
ogo no início, Inaudito (Gregorio Gananian, Sutra do Coração. O invisível prepara o visível.
2017), ao mesmo tempo homenagem e O multiartista José Roberto Aguilar performa o
oferenda, apresenta o guitarrista tropica- suprematismo de uma dança-pintura do branco
lista Lanny Gordin – aquele que encenou a própria sobre o branco e arranja a pauta vazia diante da
morte diante da câmera de Sganzerla –, num jogo qual o solo blue da guitarra distorcida, à la Jimmy
de luzes e silhuetas, como um teatro de sombras Hendrix, pode se inserir, negando qualquer inter-
que permuta as posições do personagem na pretação ou metáfora. “Som, sssssommm, só o
imagem. O longa inventa inauditos modos de som e o silêncio”, declama Jards Macalé. O som
arte-vida, no encontro com a loucura, com a vem de outras esferas. É a construção de um novo
arte contemporânea e com a experimentação estilo: o “free total”. A música pura. Um La Monte
musical. De um quadro a outro, Lanny atravessa Young chino-brasileiro eletrificado. A loucura
mundos mas se mantém numa mesma espiral da música, dessa outra linguagem, expressa o
sonora que está sempre a retornar em ritor- seu mundo interior, como “duas jabuticabas
nelos fragmentados e seriais, pois não apenas o que andam lado a lado, observando o linguajar
Brasil e a China fazem parte de um só território das outras.” Frequências ondulantes, a energia
imaginário-criativo-poético-musical, como de penetra o corpo e o transforma em música. Tocar
um mesmo universo sem fronteiras, do mesmo é calar a escuta das vozes internas e tornar-se
cosmos, de um mesmo tempo do ser agora. Sem música, fluir com a música, ver, pegar, comer o
começo, nem fim, sem passado, presente ou som: um corpo sem órgãos musical. O incons-
futuro, além da existência e da não existência, da ciente como máquina-esquizo produtora de
eternidade, do infinito, do além do além, do todo sonoridades infinitas.
e do nada, da vida e da morte: as palavras desse O filme se estrutura a partir de uma lógica
mestre zen dos ruídos eletrônicos se amplificam serial e fragmentária, reunindo diferentes perfor-
diante da mão erguida da estátua de um Buda mances ou happenings artísticos, num diálogo
gigante, a sugerir coragem. Poderíamos acres- fortemente marcado pela proximidade com as
centar: “a forma é o vazio, e o vazio é a forma. artes contemporâneas (pintura, dança, cinema,
Tudo que tem forma é exatamente o vazio e tudo poesia, teatro), pelos encontros com outros
que é vazio é exatamente a forma”, como diz o músicos e pela improvisação. Um pontilismo

*Doutor em Comunicação Social pela UFMG, onde desenvolve pesquisa de pós-doutorado junto ao Programa de
Formação Transversal em Saberes Tradicionais. É também músico e realizador, dedicando-se às relações entre
as formas musicais e cinematográficas.
ensaios mostra brasileira 177

construído com liberdade, de forma rizomática A figura da água ganha uma enorme centra-
e por livre associação. A forma do filme também lidade na lógica, na estrutura e na sensibilidade
improvisa, à sua própria maneira, em diálogo do filme. Não apenas por sua imagem especular,
com o free total de Gordin, dando a ver a sua mas também por suas ondas, que remetem à
musicalidade fílmica. A passagem de um plano própria forma acústica do som. A água nos ajuda
a outro pode se dar por um som, uma cor, um a ver o som, habilidade inata ao guitarrista
movimento, um território, um traço, um afeto, Lanny Gordin. Ao longo do filme vemos poças
um gesto, uma textura, criando linhas de forças d’água, cachoeiras, arrebentação das ondas
que se entrecruzam e se sobrepõem no tempo. do mar, ondinhas menores no alto mar, ideo-
A relação imagem e som é complexa e disjuntiva, gramas chineses desenhados no chão com água,
como as duas jabuticabas que caminham lado a o vapor das nuvens, fumaça, um aquário. Lanny
lado, mas sem se submeterem uma à outra, inte- percorre algumas pontes sobre lagos, chega no
ressadas que estão no linguajar exterior, produ- limite de um pier sobre o oceano, atravessa
zindo assim um amplo espaço de liberdade entre uma porta com o mar ao fundo (toda porta
o que se vê e o que se escuta, seja na relação tem duas faces). Mesmo as paredes branca ou
com a palavra, com o som, com o silêncio ou com vermelha, que parecem sólidas num primeiro
a música. A imagem pode viajar no tempo e no momento, podem se tornar líquidas e fluidas
espaço, produzindo poesia e não se submetendo com as tintas do pintor que invadem o quadro
ao imperativo da sincronia. ou com as mãos que as penetram. A imagem
A forma fílmica parece dialogar com os pode parecer sólida, mas é muitas vezes líquida,
princípios de composição da música do século fluida, sonora. A água também sugere a travessia
XX: a estética do serialismo com suas variações entre mundos, do visível ao invisível sonoro, do
por espelhamento, a aleatoriedade e o jogo do material ao espiritual, do Brasil à China, de
I-Ching, a improvisação e o free jazz. Ela oscila ponta cabeça, da normalidade à loucura. A nave-
entre o rigor do controle das séries e a improvi- gação como processo criativo é um lançar-se
sação: dois caminhos diferentes que podem nos em águas desconhecidas. O oceano se torna
conduzir para uma mesma sensação de aleatorie- o espaço exterior e sem borda da criação, imagem
dade, mas sem perder de vista uma certa linha historicamente associada à loucura, como
narrativa, pautada na vida de Lanny. aponta Foucault:
Próximo ao início do filme, o guitarrista se
apresenta, contando um pouco da sua história, Fechado no navio, de onde não se escapa,
a origem chinesa e russa dos seus pais e avós. o louco é entregue ao rio de mil braços,
Enquanto isso, vemos a imagem do personagem ao mar de mil caminhos, a essa grande
de ponta cabeça para que o seu reflexo na poça incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro
d’água pareça normal. A imagem transcende a no meio da mais livre, da mais aberta das
normalidade, vai além, em busca de um estado estradas: solidamente acorrentado à infinita
superior. Antes, tínhamos visto o Tai Chi Chuan encruzilhada. É o Passageiro por excelência,
de trás pra frente. As operações de variação por isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à
espelhamento, próprias do serialismo musical, qual aportará não é conhecida, assim como
são aplicadas sobre a imagem. não se sabe, quando desembarca, de que
178

terra vem. Sua única verdade e sua única transparência. É assim que a água ganha vida e
pátria são essa extensão estéril entre duas é libertada no oceano sem bordas da criação
terras que não lhe podem pertencer. (...) artística. O filme se torna ficção científica e nos
Uma coisa pelo menos é certa: a água e a transporta, na nau dos loucos, para um outro
loucura estarão ligadas por muito tempo mundo, uma Pasárgada futurista, onde é possível
nos sonhos do homem europeu. (FOUCAULT, falar com deus, e onde a frequência sonora é
1978, p. 16-17) acelerada para se tornar luz divina por toda a
eternidade. Um lugar sem lugar, onde o tempo
Em uma das imagens mais incríveis do foi abolido, sem início, sem fim. A água e a luz
filme, Lanny Gordin visita um aquário gigante na alimentam uma frondosa árvore, diante da qual
China e se depara com um enorme conjunto de ele pergunta: o que é a vida?
águas-vivas que flutuam sobre o azul. Enquanto
escutamos os efeitos de notas curtas de suas
Referências
pedaleiras elétricas com a guitarra, ele diz que
ELMOR, Carime. Entrevista: Gregorio Gana-
toca “música free” e está vendo as águas-vivas
nian fala sobre o filme Inaudito. Scream & Yell,
nadando. Elas são águas que são vivas e precisam
2018, disponível em: <http://screamyell.com.
ser libertadas no oceano. A sequência parece
br/site/2018/06/08/entrevista-gregorio-ga-
sintetizar um amplo conjunto de sentidos, desde
nanian-fala-sobre-o-filme-inaudito/>. Acesso
a musicalidade da imagem, com as águas-vivas
em 22/10/2018.
flutuando no azul da água, como as notas da
guitarra repercutidas pelos efeitos da pedaleira, FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade
mas também, o desejo de libertar as águas no Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.
oceano, um desejo libertário que poderíamos
associar também à relação com a loucura. Inau-
dito é um filme singular e muito especial em vários
aspectos, não apenas por conseguir produzir uma
biografia musical de um grande artista (talvez
inaudito) da música brasileira, mas por fazer
isso fora da rasa lógica comercial tão recorrente
nesse novo gênero cinematográfico. Poucas vezes
na história do cinema brasileiro, pudemos ver
um filme tão comprometido eticamente com a
loucura de seu personagem, tratando esse tema
tabu, sem estigmas e metáforas superficiais, sem
estetização ou exploração gratuita da imagem
do outro. Muito pelo contrário, o filme se ancora
na fina escuta desse sujeito, o que permite à
forma fílmica tornar-se música, ir além, trans-
cender a normalidade e encontrar um estado
superior. A água viva também é fogo (em seu
delírio de libertação) e queima. É respiração e
ensaios mostra brasileira 179

Quando vaga-lumes entraram em cena


sobre Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados (2018),
de Aiano Bemfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo e Pedro Maia de Brito

Vinícius Andrade*

De onde ninguém esperava, revelador do duplo caminho de engajamento


pareciam emergir novos sujeitos coletivos, oferecido pelo filme. Nota-se, assim, uma
que criavam seu próprio espaço e requeriam dimensão em que as ações que se desenrolam
novas categorias para sua inteligibilidade diante dos nossos olhos se embebem de teor
Eder Sader, Quando novos personagens simbólico, de expressividade plástica, de carga
entraram em cena metafórica. Esta pode ser fruída nas luzes das
casas que cintilam ao fundo das imagens, suge-
rindo-nos uma relação com a “cidade”, na cor

U
m oportuno enunciado parece brotar do céu, que em uma das sequências adquire
de dentro do jogo visual e cênico feito o tom de iminente alvorecer, conectando-nos
de corpos, silhuetas, pequenos gestos, ao imaginário da madrugada como momento
penumbra, vozes, ruídos e luzes fugidias que propício à luta, ou ainda na intermitência das
compõem Conte isso àqueles que dizem que fontes luminosas, como lanternas, responsáveis
fomos derrotados: o de que, bem ali onde e por repartir o que se vê e o que não se vê, fazendo
quando os poderes instituídos (o Estado em os ocupantes assemelharem-se a uma horda de
parceria com grupos econômicos, a mídia corpo- seres brilhantes trabalhando sob a escuridão.
rativa e as forças policiais) menos esperam, a luta Ao mesmo tempo, uma dimensão mais indi-
social acontece. Mais especificamente, enquanto cial das imagens nos dá evidências a respeito
muitos, distribuídos em matizes diversos do da singularidade das ações que estão em anda-
espectro político, acreditam que o estado de mento no interior dos planos e sobre um possível
coisas posto em causa no Brasil nos últimos anos contexto imediato que as envolve. Isso pode ser
passa sem respostas contundentes, o enfrenta- assinalado através de palavras ditas no trans-
mento está sendo travado e tem como protago- correr das situações, como as de orientação para
nista um sujeito coletivo. as pessoas que descem do ônibus (“por aqui,
Que esse enunciado possa ser recolhido a pessoal!”), indicando que se trata de uma mobi-
partir de elementos que, trazidos para a “frente” lização coletiva organizada com fim específico,
da imagem pelos realizadores, não expõem nos símbolos ou dizeres que por vezes conse-
situações totalmente visíveis ao espectador, é guimos distinguir na camisa das pessoas (“Morar

*Doutorando em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro do grupo de pesquisa
Poéticas da experiência.
180

dignamente é um direito humano”), informando- legalidade onde precisamente nada as autorizaria”


-nos que as ações visam a conquista de moradia, (BRENEZ, 2006, p. 38).
ou ainda nos gestos concretos de proteger o Talvez essa singularidade, que a seu modo
território, preparar comida, escavar a terra e comparece em Conte isso, surja mesmo em razão
montar barracas, bem como o de “hastear” a das circunstâncias de produção vivenciadas pelos
bandeira, que delimita o terreno com a marca realizadores junto à luta do MLB, por meio das
histórica da luta em curso. quais as imagens elaboradas inserem-se num
Mas, a rigor e com efeito, em momento trabalho mais amplo de comunicação desen-
algum uma dessas dimensões (simbólica e indi- volvido a partir do interior do movimento (e que
cial) se descola para operar sem a cumplicidade encontra analogias na nossa história sociocul-
da outra. Pelo contrário, parecem mesmo ende- tural, como a prática do Vídeo Popular). Assim,
reçar-se mutuamente. Um momento exemplar o pensamento é levado a considerar a função
dessa cumplicidade, em que parece chegar a estratégica das imagens e a fazê-las desdobra-
um grau elevado de condensação, é a cena em rem-se em diferentes formas de participação na
que um homem segura uma foice, ora em pé, ora luta (ativando mobilizações, servindo à segurança
agachado, à espreita de alguma possível ameaça dos militantes, integrando peças jurídicas), com
à ação conduzida pelo coletivo. Sua posição de suas possíveis trilhas de circulação (reuniões,
alerta para um perigo real, a atenção cerrada, o redes sociais, circuitos alternativos de exibição),
corpo em prontidão, a foice nas mãos, a atmos- processos que acabam por atravessar, incidir,
fera que o cerca, são elementos que, simulta- fazer eco e deixar marca na forma dos filmes.
neamente, aportam sentidos práticos, ligados à Tal intersecção entre a produção de imagens
ocupação situada do território, e significados e as exigências concretas de uma luta parece
simbólicos, relacionados a uma ideia mais ampla fazer justiça a uma característica fundamental
de luta e resistência política. apresentada por mulheres e homens que se
Nessa conjugação me parece estar um dos lançam na luta por moradia digna nas cidades
aspectos mais estimulantes do trabalho desse brasileiras. Esses militantes, trabalhadores orga-
grupo de realizadores militantes que têm se nizados em movimentos para efetivar um direito
engajado ao lado do Movimento de Luta nos que lhes concerne, sujeitos que estabelecem um
Bairros, Vilas e Favelas (MLB) em Belo Horizonte. projeto comum por meio do qual reelaboram
A virtude de fazer da imagem o campo de relação suas identidades e expressam seus desejos de
entre o atravessamento das forças que fazem transformação social, aparecem como demons-
vibrar a luta e uma experimentação interessada tração viva do que seja o entrecruzamento produ-
e comprometida acerca das formas de figurar tivo entre forças de sobrevivência e forças de
tal luta, intrincando as tomadas de posição que mobilização coletiva, um entrelaçamento radical,
estão na origem da fabricação das imagens ao decisivo, entre vida e luta.
seu domínio sensível. Um traço que evoca o argu- Em Conte isso àqueles que dizem que
mento da pesquisadora Nicole Brenez (2006) – fomos derrotados, eles irrompem no silêncio
formulado em outro contexto, mas útil aqui – de da noite como quem surge das zonas de invi-
que as “obras cruciais” são aquelas capazes de sibilidade social para onde normalmente são
transgredir ou recusar as separações “ideolo- expulsos e ascendem suas chamas como quem
gicamente determinadas”, criando “sua própria recusa o apagamento a que continuamente são
ensaios mostra brasileira 181

submetidos. Se aqueles que se julgam triunfantes


ou mesmo os que não enxergam as respostas a
esses supostos vencedores dão por encerrada
a batalha, vangloriando-se da vitória, Conte isso
volta sua atenção para o que foi ignorado, para
aqueles outros que, ao modo de vaga-lumes
– “seres luminescentes, dançantes, erráticos,
intocáveis e resistentes enquanto tais” (DIDI-
-HUBERMAN, 201 1, p. 23) – entram para redefinir
a cena fílmica e política.

Referências
BRENEZ, Nicole. História das formas. Recine -
Revista do Festival Internacional de Cinema
de arquivo. Ano 3, número 3. Arquivo Nacional,
dezembro de 2006.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobreviência dos


Vaga-lumes. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011.

SADER, Eder. Quando novos personagens entr-


aram em cena: experiências, falas e lutas dos
trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980).
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
182

Pela continuidade da escuta


sobre Bloqueio (2018), de Victoria Alvarez e Quentin Delaroche

Hannah Serrat*

B
loqueio (2018), de Victoria Alvarez e nas negociações em cena; e multiplica janelas,
Quentin Delaroche, registra a greve dos que nos permitem ver, em ato, tanto a mobili-
caminhoneiros no país, em maio de 2018, zação dos trabalhadores, quanto a produção e
às margens de Seropédica/RJ, e auxilia-nos a a reprodução de seus próprios registros, feitos
compreender, criticamente, algumas nuances pelas câmeras de seus celulares e compartilhadas
da situação política brasileira. O filme, que se incessantemente entre si. O filme de Delaroche
vale da urgência do registro, da montagem e da e Alvarez assombra-nos e desafia-nos, enquanto
distribuição (realizada apenas alguns meses após prenúncio perturbador de uma crise democrática
as filmagens), encontra o espectador a partir de que vem se aprofundando, pelo menos desde as
uma temporalidade espessa. O momento em que jornadas de junho de 2013, e que parece assumir,
vivemos, enquanto vemos o filme na atualidade com clareza, ao mesmo tempo, formas inespe-
(apenas alguns meses após a greve e tomados pela radas e absolutamente previsíveis.
perversa corrida eleitoral à presidência da Repú- O primeiro plano do filme é do interior de
blica), modula as cenas, abre lacunas, agencia um carro em movimento. Observamos a rodovia
linhas de força. Ouvimos os gritos, os cantos e duplicada, assim como o acostamento da pista
as orações dos manifestantes serem lançados e o canteiro central que, aos poucos, vão sendo
do passado para o presente, do presente para ocupados por pedestres, caminhões e pequenas
o futuro. Vemos as imagens, aparentemente placas improvisadas, escritas à mão. Em uma
distantes de nós, habitarem nossas vizinhanças. delas, lemos: “Intervenção militar”. No chão,
Com precisão, Bloqueio retrata a complexidade grafada de giz, vemos a mesma inscrição. A
de nossos tempos, entre desejos latentes de câmera que filma através do para-brisa sobrepõe
mudança e estados de paralisia. nossa perspectiva à do motorista e/ou dos cine-
Em 2018, enquanto nos havemos com a astas – no antecampo, a equipe será composta
impossibilidade do diálogo e o avanço da extrema apenas pelos dois realizadores que se dividem:
direita, que clama pela intervenção militar ao Quentin Delaroche faz a câmera, Victoria Alvarez,
som incessante do hino nacional, Bloqueio acolhe o som direto. De antemão, não partilhamos um
miragens, nas ilusões de um povo desejante, ponto de vista apenas, somos situados em relação
tomado pelo desespero; produz reflexos, de nós ao lugar social de quem faz o filme e tem um carro
que nos projetamos, de uma maneira ou de outra, de passeio para dirigir em uma rodovia pedagiada.

*Pesquisadora, crítica e realizadora de cinema. Mestre e doutoranda em Comunicação Social pela UFMG, integra
o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. É crítica colaboradora das revistas Cinética e Rocinante.
ensaios mostra brasileira 183

Não veremos os realizadores em cena, apenas o discurso monolítico que parecia tomar lugar.
ouviremos suas vozes em situações pontuais. O filme parece constantemente esperar por ela.
Pouco interpelam e, menos ainda, são interpe- Em momentos pontuais, os cineastas posi-
lados. Mesmo quando os personagens falam para cionam-se diante dos caminhoneiros (especifi-
a câmera, muitas vezes, é com o espectador que camente, questionando a demanda pela inter-
desejam falar. O plano inicial não apenas nos situa, venção militar), mas não dão prosseguimento a
portanto, em relação ao gesto do filme de ir ao seus argumentos. O desejo de escutar o que os
encontro dos caminhoneiros, vindo de fora dali, trabalhadores têm a dizer parece levar o cinema
mas nos aponta, brevemente, para esse lugar de a operar silêncios. Uma das poucas cenas que se
quem olha, de quem filma. O gesto é simbólico. abre, de fato, às diferenças de perspectivas, é
Estar na estrada, vendo o mundo passar pelo quando um casal jovem se aproxima dos cami-
para-brisa, dentro de um carro (e não de um nhoneiros, para entender suas demandas e ques-
caminhão), muda tudo. tionar o desejo pelo retorno da ditadura militar.
Em grande medida, Bloqueio constitui-se a De antemão, eles são recebidos com certa hosti-
partir dessa perspectiva externa e observacional. É lidade. Cuidadosamente, eles contam suas histó-
preciso ir ao encontro dos outros que lutam, regis- rias, se avizinham, recusam qualquer vinculação
trar o mundo se mover com eles, cada vez mais, mas partidária. Tentam criar um vínculo, demonstrar
sem intervir. Ao longo do filme, a câmera anda em afinidades. A aparição dos dois, no interior do
meio aos corpos filmados, aproxima-se dos rostos, filme, é preciosa, assim como a possibilidade de
por vezes quase toca um braço, um ombro, mas diálogo que se estabelece a partir daí. Mas, ainda
preserva o recuo. A frontalidade do registro que nos assim, eles só poderão apontar suas discordân-
aproxima dos sujeitos é a mesma que pressupõe cias, como faz a professora grávida, sem conse-
uma divisão intransponível entre os dois lados da guir justificar, esclarecer ou confrontar pontos de
câmera. Entre um e outro (ou, valendo-nos do gesto vista. O retrato produzido por Bloqueio adensa-se,
autocrítico que demandam nossos tempos, entre portanto: não se trata apenas de registrar o coti-
nós e eles), preserva-se o para-brisa. diano e as demandas do movimento grevista, mas
Se, como nos diz Amaranta Cesar,1 o cinema de colocar em cena distâncias, impossibilidades
militante “participa das lutas” (e não apenas as de diálogos, fraturas. No espelho produzido pelo
representa ou as traduz), o que faz Bloqueio, em filme, nós, que só podemos nos projetar no lugar
seu gesto observador? De início, o filme apre- ocupado pelos jovens militantes, precisamos nos
senta-nos os grevistas em sua singularidade de haver com o fracasso de um projeto político que
feições, falas e gestos. Mostra-nos homens e já não dá conta de alcançar os trabalhadores em
mulheres, caminhoneiros e caminhoneiras, de suas demandas, em sua luta. Por fim, a questão
várias partes do país (ainda que não consigamos que nos acompanha, se reporta a essa especta-
reconhecê-los por seus nomes). Cada um/a tem torialidade que o filme parece acionar: afinal, o
suas demandas e se engaja na luta como pode. que se passa quando aqueles que o assistem são
Diante de um plano geral, de um corpo coletivo mobilizados por outras projeções e desejam,
que canta e ora junto, uma pequena fala irrompe justamente, fazer calar as diferenças?

1. Em entrevista à Revista Continente. Disponível em: <https://www.revistacontinente.com.br/secoes/


entrevista/-uma-imagem-vibra-nos-sujeitos--libera-energia-de-luta->. Acesso em: 23/10/2018.
184

Do que não é espelho: a relação


etnográfica em Terremoto Santo
sobre filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca

Roberto Romero*

F
ilmado com jovens cantores gospel asso- culturais de periferia como o Brega e o Funk
ciados à gravadora Mata Sul, da zona da Ostentação ou o avanço do neopentecostalismo,
mata pernambucana, Terremoto Santo é, já retratado na série de fotografias Crentes e
nas palavras dos diretores Bárbara Wagner e Pregadores (2014) e mais recentemente neste
Benjamin de Burca, um “documentário musical”. Terremoto Santo.
O curta-metragem, que tem circulado tanto Mas a abordagem que distingue seu
como instalação em exposições de arte quanto trabalho, ao contrário do que o recorte de classe
nas telas dos festivais de cinema mundo afora, dos “outros” retratados possa sugerir, é menos
alterna uma série de cenas nas quais os cantores sociológica do que etnográfica, como gostaria
são convidados a executar os hinos gospel de sua de argumentar neste ensaio. Isso porque há uma
autoria em ambientes geralmente externos e algo preocupação que atravessa e orienta todos eles
idílicos, como lagos, cachoeiras, o topo de um em retratar o “outro” o mais próximo possível
monte ou as águas cristalinas de um rio. Rigoro- da maneira como este “outro”, sejam banhistas
samente compostas e observadas à distância e à de uma praia no subúrbio do Recife, MC’s da
profundidade dos planos gerais e quase sempre periferia de São Paulo ou jovens neopentecostais
fixos, as cenas remetem a fotografias. Tudo, do da Zona da Mata pernambucana, gostaria de se
cenário, da luz aos figurinos, é feito de modo a ver retratado. Em algumas das fotos, tal coinci-
acolher, nas imagens, a estética particular do dência aproxima os retratos de um estilo quase
universo evangélico neopentecostal, fenômeno “sob encomenda”; Terremoto Santo poderia, em
religioso crescente em todo o país. outros circuitos (naqueles próprios à rede de
O cuidado nas composições não é ocasional cantores filmados, por exemplo) ser exibido
em se tratando de um trabalho com as mãos de como um videoclipe. Tudo se passa como se
Bárbara Wagner. Mais conhecida por sua obra os realizadores evitassem mesmo sobrepor o
como fotógrafa, Wagner fez do retrato uma seu olhar às formas de auto-representação dos
marca pessoal, geralmente interessada em perso- próprios retratados. É na abertura ao olhar dos
nagens que de algum modo representam o Brasil outros sobre si e na atenção aos elementos que
das últimas décadas, embalado pela ascensão permeiam o seu universo onde Wagner e de
econômica das classes C e D, pelos movimentos Burca posicionam os seus próprios olhares.

*Doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional (UFRJ).


ensaios mostra brasileira 185

Estamos aqui diante daquilo o que Jean- pelo menos, têm uma boa cota de responsabili-
-Louis Comolli, na esteira de Claudine de France, dade). Mas em boa medida, creio, esta rejeição
notabilizou como a “auto-mise-en-scène”, isto se explica por um próprio desconhecimento ou
é, aquela convicção de que as pessoas filmadas desqualificação daquilo o que se entende como
possuem “uma mise-en-scène própria, autônoma, “etnografia”. Frequentemente, o que define um
em virtude da qual (...) mostram de maneira mais filme enquanto “etnográfico” tem tão somente a
ou menos ostensiva, ou dissimulam a outrem, ver com a coincidência entre os sujeitos filmados
seus atos e as coisas que as envolvem, ao longo de e os sujeitos tradicionalmente pesquisados pelos
atividades corporais, materiais e rituais” (2008, p. antropólogos, isto é, minorias étnicas, sociais,
83). Mas se esta mise-en-scène própria é inerente raciais ou sexuais. Outras vezes o adjetivo se
a qualquer processo filmado, em Terremoto Santo limita a reconhecer, no filme, procedimentos
ela orienta igualmente a própria mise-en-scène estéticos que se tornaram, na história do cinema,
dos diretores. Trata-se daquele gesto raro, como representativos do “filme etnográfico”, a saber,
também apontou Comolli, em que “a mise-en- a longa duração dos planos, a preferência pela
-scène mais decidida (aquela que supostamente câmera na mão, o recurso exclusivo ao som direto,
vem do cineasta) cede lugar ao outro, favorece além de certa rejeição por parte de quem filma
seu desenvolvimento, dá-lhe tempo e campo por qualquer intervenção, direção ou controle
para se definir, se manifestar. Filmar torna-se sobre quem ou o que é filmado. Muito pouco,
assim, uma conjugação, uma relação na qual se quase nunca, se aprofunda a discussão sobre
trata de se entrelaçar ao outro – até na forma” as próprias condições de realização do filme,
(2008, p. 85). Assim, a rigidez da composição aquilo que o precede e também o permite e
das cenas, além dos recursos evidentes à rotei- que podemos chamar de “relação etnográfica”.
rização e à ficcionalização em Terremoto Santo Qualquer etnógrafo ou etnógrafa sabe que
não contrariam a sua força documental, uma vez um dos maiores desafios diante da tarefa que
que todo este esforço de composição é colocado se incumbiu é falar daqueles com quem estuda
a favor das pessoas filmadas e das suas próprias para aqueles com quem estuda. Como reco-
formas de representação. Essa “abertura ao nhecia Marcio Goldman numa comunicação repu-
outro”, pelo cinema, é o que também aproxima blicada neste catálogo, convidado justamente
o curta daquilo o que entendemos como “filme a falar para aqueles com quem pesquisa, no
etnográfico”, especialmente neste festival. Terreiro Matamba Tombenci Neto, em Ilhéus: “em
O rótulo “etnográfico” costuma ser tão geral, os antropólogos (...) fazem suas pesquisas
evitado por cineastas ou artistas visuais quanto para poder contar a outras pessoas aquilo que
o “sociológico” – a evitação deste último sendo aprendem com pessoas que sabem mais do que
talvez mais compreensível.1 No campo semântico
2
eles. Meu problema aqui, hoje, é que devo falar
da crítica cinematográfica convencional, o adje- também para as pessoas que, há mais de 20 anos,
tivo costuma remeter quase sempre a uma nega- vêm me ensinando o pouco que sei não apenas
tividade associada a certa “caretice” formal (no sobre o candomblé, mas também sobre a cons-
que os chamados “antropólogos visuais”, no Brasil ciência e a resistência negras, e que, portanto,

1. Ver a esse respeito a contundente crítica de Jean-Claude Bernardet ao “modelo sociológico” no documentário
brasileiro em Cineastas e Imagens do Povo. Brasiliense, São Paulo, 1985.
186

sabem mais do que eu sobre aquilo de que trabalhos a reflexividade inerente aos próprios
devo falar”. atores pesquisados. Ao pesquisador caberia,
Por muito tempo, é verdade, os etnógrafos assim, muito menos definir o “contexto social” ou
foram protegidos ou se protegeram deste desafio, a natureza das relações que o engendram do que
quer seja pela distância geográfica entre aqueles seguir as próprias conexões estabelecidas pelos
de quem falavam e aqueles (seus pares) para atores, entre os próprios atores. Nas palavras
quem falavam, quer seja também por uma de Latour: “os atores estão sempre engajados
suposta e mais complicada “distância crítica” na tarefa de mapear o ‘contexto social’ em que
que aparentemente tornava os pesquisadores estão situados, oferecendo ao analista um corpus
até mais preparados para falar dos primeiros teórico completo sobre qual sociologia é mais
do que eles próprios, devido a uma superiori- adequada para aproximar-se deles” (2005, p. 32).
dade analítica qualquer ou à convicção de que Se faço, portanto, este breve excurso meta-
os analistas teriam algum acesso privilegiado à -etnográfico é porque o procedimento em jogo
cultura ou contexto alheios sendo capazes de ver em Terremoto Santo me remete a tal conexão.
ou entender aquilo que os próprios interlocutores Conexão reforçada por Bárbara Wagner em uma
(como que confinados nos limites da própria de suas entrevistas quando afirma que “o gesto
“visão de mundo”) seriam incapazes de perceber político do filme é de falar sobre os evangélicos,
ou compreender por si sós: as tais “estruturas”, as com eles”. Mas se falar com é o próprio funda-
“funções sociais” ou a “construção social” disso mento da “relação etnográfica”, falar para os
ou daquilo e por aí vai. próprios “etnografados” é, por assim dizer, o
Atualmente, no entanto, parece que o jogo seu teste crucial. Isso não significa reivindicar,
virou (ou, pelo menos, está virando). Seja pela evidentemente, alguma transparência absoluta
crítica a que a própria escritura etnográfica foi ou ausência ilusória de mediação entre estes
submetida a partir dos anos noventa, seja por “lugares de fala”. Trata-se, apenas, de reconhecer
uma maior proximidade e controle dos cole- que quanto mais próximo um lugar do outro, um
tivos pesquisados sobre os frutos e desdobra- lugar com o outro, mais bem sucedido será o
mentos das pesquisas e dos pesquisadores, o texto ou o filme etnográficos. E as consequên-
conforto da distância (geográfica, crítica, mas cias políticas de uma tal aproximação não são
também teórica e política) diminuíram ou se nada desprezíveis, pois estamos aqui no terreno
viram tensionados como nunca até então. Por da tradução e da diplomacia, tão urgente nos
outro lado, os próprios antropólogos passaram tempos que atravessamos.
a se interessar por coletivos nem tão distantes Em 1991, 9% da população brasileira se
e nada minoritários como cientistas, advogados, declarava evangélica. Em 2000, eram 15%. No
economistas e políticos, por exemplo. Conhecido censo de 2010, o número cresceu para 22%.
por um trabalho inovador nos estudos da ciência, Segundo algumas estimativas, os evangélicos
Bruno Latour é um dos principais nomes asso- poderão ser maioria no país em dez anos. De
ciado à crítica desta certa “sociologia crítica”. acordo com pesquisa do Ibope, nas eleições
Repudiando veementemente aquela tradição deste ano, o candidato Jair Bolsonaro obteve
epistemológica que destinava ao pesquisador o seu melhor desempenho entre o eleitorado
o posto de observador privilegiado de alguma evangélico: 66% preferiu o capitão ao professor
“realidade social”, o autor destacou em seus Fernando Haddad. Apesar de representar um
ensaios mostra brasileira 187

verdadeiro fenômeno na sociedade brasileira Referências


dos últimos anos, a presença evangélica tem sido BALOUSSIER, Anna Virginia. Curta com cantores
praticamente ignorada pelo documentário brasi- evangélicos bambeia entre respeito e deboche.
leiro contemporâneo. Em suas raras aparições, Folha de S. Paulo, 21/11/2017. Caderno Ilustrada.
a montagem estilo “sociologia crítica” costuma
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência
forçar a mão na linha do deboche ou da carica-
perdida – cinema, televisão, ficção, documen-
tura. Mas a questão é mais ampla: as esquerdas
tário. Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2008.
e suas raízes iluministas (quando não cató-
licas, como no Brasil) se afastaram há bastante GOLDMAN, Marcio. Tradição, criativadade e
tempo da religião como campo de disputas, resistência em territórios negros. Catálogo do
preferindo fazer ouvidos moucos ao estrondo forumdoc.bh.2018.
neopentecostal e abordar os fiéis pelo viés da LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an
“falsa consciência” sempre temperado por boas introduction to actor-network theory. Oxford
doses de classismo. No seu imaginário, sempre University Press, New York, 2005.
prevaleceu a imagem do evangélico fundamen-
talista, conservador, ignorante e manipulado por
suas lideranças religiosas. É difícil saber até que
ponto o estereótipo reforçado por uns alimentou
a performance adotada pelos outros.
Por onde tem passado, Terremoto Santo
provoca reações controversas na crítica e no
público. Em artigo publicado no jornal Folha de
S. Paulo, Ana Virginia Baloussier afirmou que
o filme “bambeia entre respeito e deboche”,
apesar de todos os evangélicos para quem ela
enviou o filme terem elogiado: “achei até que
fosse um diretor evangélico”, disse um pastor.
Numa comentada exibição na Janela Interna-
cional de Cinema do Recife, o filme foi recebido
às gargalhadas e vaias de indignação. A reação
é sintomática, sobretudo vinda de um público
majoritariamente cinéfilo e de classe média alta
universitária como o que circula em festivais.
Ao evitar falar com os evangélicos, negando-se
qualquer abertura à sua própria estética, o que
se está negando é a própria diplomacia, a própria
política. Mas é que Narciso não gosta...
188

O múltiplo da fotografia*
sobre Travessia (2017), de Safira Moreira, e Inconfissões (2017), de Ana Galizia

Glaura Cardoso Vale**

T
ravessia (Safira Moreira, 2017) e Incon- filmes, procuro perceber a utilização criteriosa
fissões (Ana Galizia, 2017) são filmes com do registro fotográfico neste cinema de mulheres:
fotografias, mas não só. O primeiro parte seja como reivindicação de uma imagem liberta
da fotografia de uma mulher negra segurando das formas opressoras para recontar a história,
uma criança branca. Começando por um recorte seja para tornar visível a ausência de alguém que
dos pés, passando por um detalhe do vestido, fez do registro fotográfico e fílmico a sua forma
depois das mãos a segurar a criança, dos rostos de vida.
que se tocam, até a imagem surgir completa. No O poder de síntese de Travessia e a habili-
verso da fotografia, sabemos a profissão: babá. dade também de Inconfissões – ao lidar com uma
O segundo é uma narrativa pessoal, a partir dos heterogeneidade de materiais – nos permitem
registros deixados pelo tio que a realizadora não mergulhar em mundos muito distintos, mas que
conheceu. Travessia fala da ausência1 de registros encontram no gesto de colocar a fotografia em
fotográficos das famílias negras, como nos lembra cena a sua potência. E é sobre essa potência
Heitor Augusto e Kênia Freitas,2 e da urgência que pretendo discorrer, levando em conta todo
de reconfigurar esse álbum. Inconfissões nos um histórico de documentários que recorrem à
revela que é justamente a presença do registro iconografia para dar conta de narrar memórias
nos álbuns de uma família de classe média branca e/ou denunciar atos bárbaros cometidos contra
que permitirá reconstruir uma memória para o minorias que resistem – apesar da brutalidade
tio ausente. Ao colocar lado a lado esses dois alheia e de políticas autoritárias que teimam em

*Este ensaio faz parte de uma série de reflexões que tenho desenvolvido desde 2013, tentando compreender a
solicitação da fotografia no cinema como dispositivo de rememoração. Quando Travessia (Safira Moreira, 2017) e
Inconfissões (Ana Galizia, 2017) me chegaram, quis logo entender como se dá a dimensão desse gesto atualizado
pelas realizadoras nesses dois curtas.
**Pesquisadora e ensaísta. Integra a Associação Filmes de Quintal e colabora com o forumdoc.bh desde 2003.
Doutora em Estudos Literários pela FALE/UFMG, com pós-doutorado em Comunicação Social pelo PPGCOM/
UFMG, tem se dedicado a editoração e oficinas de cinema e educação.
1. Conforme Heitor Augusto, Travessia “é um filme sobre a imagem ausente. Primeiro curta de Safira Moreira –
baiana radicada no Rio –, o documentário está na dialética entre diagnosticar – as fotografias de pessoas negras
no século 19 e começo do 20 remetem majoritariamente a trabalho e subserviência – e estancar a ferida, provendo
curas – as fotografias posadas feitas pelo próprio curta”. In: Cinema Negro: capítulos de uma história fragmentada.
Catálogo do FESTCURTASBH. Ana Siqueira [et al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. p. 57-58.
2. Cf. Catálogo do FESTCURTASBH. Ana Siqueira [et al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018.
ensaios mostra brasileira 189

excluí-las da vida em sociedade, como nos dá era artista, homossexual e que morreu de AIDS.
a ver Cabra Marcado para Morrer (1964/1984), Se em Travessia é preciso fragmentar, ampliar um
de Eduardo Coutinho.3 detalhe, para que a voz que narra se faça inteira,
Em Travessia, como já mencionado, a foto- em Inconfissões tudo que se achava fragmentado,
grafia inicial, em preto e branco, nos é apre- lembranças guardadas e esquecidas, aquilo que
sentada primeiramente em fragmentos até que resta da memória de um ente, precisa ser reunido,
seja colocada no centro do quadro. As demais organizado, para que se construa um retrato
fotografias, a maioria coloridas, serão manuse- possível, apesar da distância temporal, apesar
adas e mostradas de frente para a câmera por da ausência. Ao olhar para filmes que procuram
uma jovem mulher negra que as eleva à altura trabalhar com tais registros, estamos diante de
do rosto – o que nos faz imaginar um contra- alguns desafios: reconhecer a fotografia como
campo que confronta a primeira imagem, algo traço, vestígio ambivalente, ao mesmo tempo
que atravessa transversalmente a fotografia inti- ausência e presença; e, das poucas fotografias
tulada “Tarcisinho e sua babá”, datada de 1963. que restam, ultrapassar o seu valor documental,
As imagens coloridas são de cenas cotidianas: mas sem abandoná-lo, a fim de reconstruir um
pessoas reunidas na sala de estar, crianças em retrato potente para aqueles cujo registro fora
uma festa de aniversário, uma criança num carro negado de saída. Esse poder não está apenas
de brinquedo enquanto adultos se jogam no sofá, na fotografia em cena, mas também no poder
outra de duas mulheres sentadas e descontraídas imagético da fala, que reinscreve essas imagens
ignorando a pose, ao passo que um menino de pela/na palavra. Não à toa, ambos os filmes
pé, com um balão azul na mão, mira o fotógrafo. trabalham a palavra – poema, depoimentos e
Nas sequências de encerramento, o filme propõe cartas – em voice over. Como uma voz feminina,
a composição de quadros filmados, começando possivelmente da mãe da realizadora, constata
pela mesma jovem de perfil e de frente, depois em Travessia, ao dizer que o registro de que mais
um jovem casal, famílias negras em espaço se recorda da avó, mãe Vira, e da mãe dela é o
público, reunidas num banco de praça ou num de um casamento, já que naquela época foto-
parque, como se reivindicasse no presente, a grafia “era uma coisa muito cara”. Nas festas,
partir desses retratos, esse álbum que lhes aproveitava-se para realizar os registros. É nessa
fora negado no passado. Travessia pretende a privação que sabemos a dimensão comunitária
liberdade, o direito à imagem, para todas essas do gesto fotográfico.
pessoas que a câmera encontra e que remetem O que Travessia parece querer ressignificar
a outras tantas espalhadas pelo país, agora com é o lugar do retrato das pessoas negras nos seus
seus álbuns de família. próprios álbuns, na contramão de Babás (2010),
Inconfissões procura agenciar todo o mate- de Consuelo Lins, que parte de uma fotografia
rial que se achava fragmentado sobre uma exis- do século XIX, retrato de Augusto Gomes Leal e
tência, buscando, no núcleo de uma família, falar a ama-de-leite Mônica,4 e ao final do filme, na
daquele tio que partiu para o estrangeiro, que tentativa de mostrar que esse processo histórico

3. Sobre esse assunto, trabalhei mais detidamente no livro A Mise-en-film da fotografia no documentário brasileiro
e um ensaio avulso, publicado pela Filmes de Quintal Editora e Relicário Edições, em 2016.
4. Cartão-de-visita de João Ferreira Vilela. Recife, c. 1860. Acervo da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas
190

se perpetua, faz surgir um mosaico de fotografias segundo movimento do filme é o de transformar


desta cena reincidindo no presente. Já Travessia a ausência em criação na tela, posando para a
quer romper esse ciclo: ao partir da fotografia câmera do filme o retrato de diversas famílias
de uma mulher negra como babá, quer, como negras” (2018, p.163).6
narrativa, se libertar deste lugar marcado pela Já sobre o trabalho com fotografias e frag-
subserviência e colocar em futuro esse apare- mentos fílmicos em Inconfissões, a sinopse nos
cimento na vida cotidiana liberta.5 diz: “Luiz Roberto Galizia foi uma figura impor-
Das fotografias das babás negras com tante para a cena teatral nas décadas de 1970 e
as crianças brancas para os retratos filmados 1980. Foi, também, um tio que não conheci. Este
de Travessia, ao implodir o aprisionamento documentário procura um resgate do vivido, a
proposto por imagens como a de abertura do partir do registro feito em fotografias e filmes
filme, a realizadora se volta à multiplicidade dos Super-8 pelo tio Luiz e encontrado por mim
corpos negros na tela, em suas múltiplas formas 30 anos depois da sua morte”. Inconfissões se
de representação. Realizado por uma diretora depara com uma série de registros e só pode
negra, Travessia quer outra história. Como o contar com esse material, bem como um laudo
poema, de Conceição Evaristo, ecoa: na voz da psiquiátrico, emitido quando Luiz tinha apenas
bisavó, “lamentos”; na voz da avó, “obediência”; 16 anos, cartas de amigos para ele e dele para a
na voz da mãe, “revolta”; na sua voz, “versos família. Se o laudo médico anuncia já na juven-
perplexos, com rimas de sangue e fome”; e na tude uma insegurança em relação aos afetos,
voz da filha, que recorre a todas essas vozes, “se os registros nos mostram a possibilidade de
fará ouvir a ressonância, o eco da vida-liberdade”. se reinventar, de se relacionar com o mundo,
Sobre as estratégias de Travessia, de ultrapassar se tocar – a si mesmo e aos seus parceiros –,
a privação do fotográfico e multiplicar-se no também as paisagens e os cômodos do pequeno
cinematográfico, Kênia Freitas nos lembra que estúdio onde fora viver para estudar teatro e
“as imagens são pensadas, em primeiro lugar, artes nos EUA.
como ausências: a falta ou ínfima presença dos Estrangeiro e em busca de si, as fotografias
registros fotográficos familiares negros – o que, e filmes em Super-8 de Luiz Galizia reconfiguram
a princípio, situaria o filme mais nas relações de o universo afetivo pela/na imagem, acariciando
representações negras de [Stuart] Hall. Porém, o corpos e sendo acariciado, exibindo nus numa

Sociais (Recife – PE). In: KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Amas na fotografia brasileira da segunda metade
do século XIX. Disponível em: < http://www.studium.iar.unicamp.br/africanidades/koutsoukos/2.html>. Acesso
em 22/10/2018.
5. Basta um passeio pela seção intitulada “Retratos”, na Exposição Histórias afro-atlânticas (MASP, 2018), que
reuniu um conjunto pictórico e escultórico do século XVI ao XXI, para perceber que a pintura, o desenho e a
escultura trazem a presença altiva, elegante e respeitosa de mulheres e homens negros nesse gesto de retratar.
Dalton Paula, cujo trabalho compõe a arte deste catálogo, por exemplo, recupera e atualiza, especialmente
para essa exposição, o retrato de duas lideranças importantes: João de Deus Nascimento, líder abolicionista, e
Zeferina, que se rebelou contra o sistema escravocrata e teve papel fundamental na criação, no século XIX, do
Quilombo do Urubu.
6. Cf. FREITAS, Kênia. Cinema Negro Brasileiro: uma potência de expansão infinita. In: Catálogo do FESTCURTASBH.
Ana Siqueira [et al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. p. 163.
ensaios mostra brasileira 191

performance cotidiana, cenas também de para a profundeza indefinida onde o ‘presente’


atuação num palco que remontam a cabarés, recomeça o ‘passado’, mas onde o passado se
com seus trajes da noite. Um conjunto dessas abre ao futuro que ele repete, para que aquilo
imagens que o filme encontra chama atenção por que vem volte sempre, e novamente, de novo”
conter nelas encenação da tortura: um corpo nu (2005, p. 23).
estendido numa bancada de azulejos, com pés Sobre essa experiência do “tempo imagi-
e mãos amarradas.7 Seria uma menção a atos nário”, podemos pensar a fotografia, tanto em
violentos dos regimes autoritários da década de relação a Travessia quanto Inconfissões, como
1970 de que se tinha notícias ou seria a ence- “uma imagem errante, sempre ali, sempre ausente,
nação de uma prática de fetichismo que mistura fixa e convulsiva” – no sentido de revolucionária –,
prazer e dor? De todo modo, as fotografias que numa livre e inconsequente apropriação, uma
surgem na sequência posterior a essa são de vez que Blanchot se ocupa desse imaginário na
Luiz, nu e deitado nessa mesma bancada, com escrita. Acredita-se que os filmes operam no
o corpo liberto, sem nenhum tipo de amarras, limiar, entre o passado revisitado e o futuro que
com o rosto virado de lado e uma flor no canto a montagem projeta para as imagens. Ambos
da orelha, ao que parece, batendo as cinzas de fazem um uso particular da música, que dá ritmo
um cigarro. Podemos com isso inferir que, sobre a essas imagens. Travessia e Inconfissões são
esse corpo que se volta para si e para tudo que o filmes em pleno processo de descoberta e de
rodeia, o filme nos permite adentrar o cotidiano experimentação, são filmes que nos ensinam o
de Luiz Galizia circunscrito, principalmente, na poder inesgotável da fotografia – de se narrar
performance, expondo múltiplas camadas de a partir dos poucos registros que restam das
compreensão desse material deixado pelo artista. histórias individuais e coletivas. Não há ausência
É nessa multiplicidade de registro que Inconfis- que não se possa elaborar sobre/com ela.
sões encontra a possibilidade de redimensionar
essas imagens, endereçando-as ao espectador.
Referências
Assim, o espólio deixado pelo “tio Luiz” passa
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla
do particular ao público; transforma-se, na
Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
montagem, o que seria um imaginário pessoal,
da sobrinha que não o conheceu, numa dimensão FREITAS, Kênia. Cinema Negro Brasileiro: uma
coletiva. Luiz Galizia morre em fevereiro de 1985, potência de expansão infinita. In: Catálogo do
“quando ainda pouco se falava da AIDS no Brasil”, FESTCURTASBH. Ana Siqueira [et al.]. Belo Hori-
nos diz a realizadora. Como exercício de reme- zonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018.
moração, a partir dos fragmentos que conseguiu
KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona:
colher, Inconfissões faz lembrar uma passagem
Editorial Gustavo Gili, 2012.
de Maurice Blanchot quando menciona a experi-
ência do tempo imaginário em Proust: “A meta-
morfose do tempo transforma primeiramente o
presente em que ela parece ocorrer, atraindo-o

7. Agradeço a Matheus Pereira, por aprofundar a minha reflexão sobre essas fotografias que, em momento
oportuno, poderá ser melhor desenvolvida, e ao Rogério Lopes, pela leitura generosa deste ensaio.
192

Caminhar entre mundos


sobre Tekoha Ha’e Tetã (2018), de Alberto Alvares

Julia Bernstein*

O registro das memórias e narrativas, surge


Wera Kuaray é um jovem que resolve sair de
como um chamado, uma proposta de cinema
sua aldeia e, depois de muito andar, acaba se
urgente, a ser realizada por nós guaranis.
estabelecendo na cidade, onde busca manter seu
Alberto Alvares Nhandereko, seu modo de vida guarani, junto
a seus filhos. Teyllon, é a representação do pai
quando jovem, mas é também seu filho. Interpela

O
filme Tekoha Ha’e Tetã (Alberto Alvares, o pai detrás da câmera, porém aceita a brinca-
2018) começa com uma linda cena de deira e encena para as lentes de Alberto. Não é
crianças de várias idades se deliciando apenas Alberto, mas também seu filho que está
na lama, tomando um banho de chuva. Ao ser entre dois mundos, assim como o personagem
filmada com a já marcante câmera baixa de que combina as características de Teyllon com
Alberto, produz uma sensação de proximidade elementos da vida do pai.
e uma singela atenção para os detalhes, por estar As cenas articuladas no filme, foram
na mesma altura das crianças. A cena, embalada captadas ao longo do tempo, em locais muito
pelo ritmo do takwa py,1 desemboca no título. A distintos, como a aldeia Ihowy, no Paraná, e a
escolha de manter o título em guarani não creio cidade de Tanguá, no estado do Rio de Janeiro.
que seja à toa. Esse gesto simples e extrema- A diversidade de lugares e a demora na filmagem
mente significativo, parece falar de uma impossi- podem passar uma impressão de indecisão,
bilidade de traduzir os sentidos do guarani para o quando é justamente o oposto; Alberto é um
português, afinal, se toda tradução é uma traição diretor que sabe o que busca. Em viagem ao
e é preciso escolher uma língua para ser fiel,2 a Paraná para realização de um outro filme, viu
opção pelo guarani é política. a oportunidade de filmar com seu sobrinho
Transitando de forma fluida entre ficção Alcir (parecido com Teyllon) a cena da estrada,
e documentário, o filme é livremente inspirado em que o personagem deixa a aldeia. Em três
na trajetória do próprio diretor. O curumim planos resolveu a cena. Eu, que estava com ele

Mestranda em Comunicação Social (UFMG). Trabalha, principalmente, com edição de documentários e formação
*

em cinema, para jovens indígenas e não indígenas.


1. Som do instrumento feito de bambu (ou taquara), o takwa.
2. Como afirma Viveiros de Castro, ao resgatar o pensamento de Walter Benjamin (citando Rudolf Pannwitz), toda
tradução é uma traição e a boa tradução é aquela que opta por trair a língua de destino (VIVEIROS DE CASTRO,
2004, p. 5).
ensaios mostra brasileira 193

na viagem, perguntei se não queria filmar mais para a formação do educador, mas também para
um pouco, ao que afirmou que não era neces- a própria reflexão sobre a imagem e sua cons-
sário. Impressionou-me na época a firmeza da trução, pois, a monografia, assim como o filme,
resposta: afinal, o que ele ia fazer com essa cena? “tem como objetivo transformar minha memória
Perguntava-me, desconhecendo o restante do em história, dando sentido as vozes que fazem
material filmado. Agora está claro. Alberto, a meu parte de mim, e do meu Nhandereko” (ALVARES,
ver, parece trabalhar, cada vez mais, de forma 2018, p. 8) O caminhante Alberto parece transitar
precisa e madura, na construção de seus filmes com grande desenvoltura entre mundos, utili-
e não apenas no roteiro. zando as ferramentas do cinema para atender
A montagem é um elemento que merece ao chamado de seu povo Guarani.
destaque. O título que interrompe e retoma a Para encerrar, recorro a trechos da mono-
cena, ressignificando-a e reconduzindo a atenção grafia escrita por Alberto Alvares, “Da Aldeia ao
do espectador. O corte da altura dos pés do cinema: O encontro da imagem com a História”,
personagem na chuva para uma posição de orientada por Paulo Maia, que aprofundam meu
câmera semelhante em outro momento, dentro comentário:
da casa de reza, produz não só um falso raccord,
mas também uma potencial relação com os pés Minha trajetória de vida começou na aldeia
e com o caminhar do garoto. Os simpáticos jump Porto Lindo, município de Japorã, MS, onde
cuts utilizados no plano médio de sua filha já no morei até completar 18 anos. Quando tinha
final do filme, a brincadeira entre diegético e não mais ou menos 2 anos de idade, meus pais
diegético, reforçada pelas escolhas de montagem se separaram e minha mãe foi morar em
na cena da trilha do coral de Ihowy; esses são outra aldeia. Eu e meus 5 irmãos passamos
apenas alguns dos exemplos que, para mim, ilus- a viver com o nosso pai. Na maioria das
tram momentos muito felizes nas escolhas de vezes eu acompanhava o meu pai no roçado.
montagem do filme. Enquanto ele capinava, eu fazia armadilha
Em seus filmes até aqui, um procedimento de laço em volta do nosso roçado para
muito utilizado por Alberto é a narração, onde pegar inhambu. Gostava de acompanhar
costuma não só apresentar seus personagens e os meus irmãos na aldeia, e na escola para
aprendizados que obteve com eles, mas também comer merenda no horário de recreio. Até
falar de sua própria busca. Ao fazer um movi- que em um desses dias, uma professora
mento autobiográfico, o filme marca uma dife- não indígena da Funai me pegou pelo braço
rença fundamental em relação a maior parte da e me fez entrar na sala de aula, e sem eu
cinematografia do diretor. Agora é o próprio entender nada o que estava acontecendo
roteiro que fala de seu caminhar e sua vida. Se naquele momento, comecei a estudar na
antes o diretor filmava aldeias guarani para falar escola da aldeia.
desse modo de vida, em Tekoha Ha’e Tetã (2018),
sua família e sua trajetória são o foco da narrativa. (...)
Não à toa, essa reflexão cinematográfica ocorre
no momento em que Alberto cursa a Formação Convivi com a pedagogia do silêncio por
Intercultural de Educadores Indígenas na UFMG. muito tempo. Aprendi com os castigos
Creio que a experiência contribui não apenas que a escola era espaço de silêncio, e
194

de sofrimento. Me sentia prisioneiro do Referências


estudo. Até hoje não consigo entender esse VIVEIROS de Castro, Eduardo (2004). Perspec-
processo de escolarização que aprisiona o tival Anthropology and the Method of Controlled
aluno numa grade de currículo, com obje- Equivocation. Tipití: Journal of the Society for the
tivo de “preparar” para o futuro, e não para Anthropology of Lowland South America, v.2: Iss. 1,
viver o presente. Article 1. Disponível em: <https://digitalcommons.
trinity.edu/tipiti/vol2/iss1/1>.
(...)
ALVARES, Alberto (2018). Da aldeia ao cinema: o
encontro da imagem com a história. Monografia
Aos 14 anos parei de estudar, e comecei
orientada por Paulo Maia Figueiredo, no Curso
a cortar cana. Um trabalho duro, pesado,
de Formação Intercultural de Educadores Indí-
cada um trabalhando para tentar (sobre)
genas da UFMG.
viver. Um espaço de morte e violência,em
contraste com a vida tranquila da aldeia.
Meu pai queria que eu estudasse, mas eu
queria ter dinheiro para mim. Trabalhei no
canavial até completer 18 anos, e, em 2002,
me mudei para aldeia Tekoa Porã (Boa Espe-
rança), Espírito Santo.

(...)

Em 2014, prestei o vestibular na aldeia


Sapukai que fica no município de Angra
Dos Reis (RJ), para cursar a Formação Inter-
cultural para Educadores Indígenas (FIEI),
na habilitação em matemática, na Univer-
sidade Federal de Minas Gerais. O curso
me deu uma oportunidade de circular o
conhecimento Guarani dentro da UFMG com
os meus vários documentários produzidos
em diferente aldeias guarani nas regiões
Sul e Sudeste do Brasil, para diálogar com
os acadêmicos, pesquisadores e os profes-
sores, sobre o pensamento do filme Guarani
no cinema. O Curso me ajudou a pensar
sobre a imagem, a memória e as narrativas
Guarani, para registrar a eterna memória
do meu próprio povo, em todos os lugares
onde há o povo Guarani.
ensaios mostra brasileira 195

Corpos desviantes e fragmentados:


notas sobre Sair do armário, de Marina Pontes, CorpoStyleDanceMachine,
de Ulisses Arthur, e Escape, de Vinicius Sassine, Mariana Paschoal,
Julien Mérienne e Maria Chatz

Larissa Muniz*
Marcos Alves**

— Aí depois quando eu fui trabalhar lá em e nas conturbadas relações sociais. Pensando


Salvador, exigiram que eu tinha que mudar, nisso, se tornam especialmente importantes
aí eu mudei. filmes como CorpoStyleDanceMachine (2017), de
[...] Ulisses Arthur, Escape (2017), de Vinicius Sassine,
— É, no restaurante lá o dono não gostava do Mariana Paschoal, Julien Mérienne e Maria Chatzi,
meu jeito. "Por que não corta esse cabelo?" e Sair do armário (2018), de Marina Pontes. São
"Por que não muda esse estilo de ser?" obras preocupadas em expressar as estigma-
CorpoStyleDanceMachine tizações sofridas por esses corpos à margem,
as maneiras com as quais conseguem superar
momentos dolorosos de suas sociabilizações,

T
emos visto um crescimento assombroso os alívios ao compartilharem suas aflições com
de ataques de grupos de extrema-direita outros (mesmo que esses outros, sendo próximos
e/ou simpatizantes do neofascismo às ou não, não os aceitem) e os constantes reen-
minorias de nosso país. Indiferentes aos direitos contros e afirmações de suas subjetividades, por
humanos conquistados, que, sabemos, nem meio de expressões fílmicas singulares.
sempre respeitados. Por trás de muitos desses Se os três filmes se diferem em seus recursos
ataques, há um conservadorismo forte que busca cinematográficos, todos compõem um quadro
disciplinar (ou assassinar) os corpos que não simultaneamente afetivo, denunciante e autêntico,
se adequam à norma predominante de nossa fabricado por meio da fragmentação narrativa
sociedade branca, machista, misógina, rascista, e imagética. Essa escolha é fundamental devido
homofóbica etc., e se tornam corpos desviantes à impossibilidade de abranger esses corpos em
pelo simples fato de existirem e resistirem. suas totalidades: apenas alguns aspectos podem
Devemos, no entanto, lembrar que essas ser manufaturados, tais como a sexualidade opri-
pessoas persistem em suas atividades cotidianas mida, a performance do corpo e o cotidiano de

*Estudante de Publicidade e Propaganda pela UFMG. Crítica de Cinema na Revista Rocinante e voluntária do
forumdoc.ufmg.2018.
**Estudante de Ciências Sociais pela UFMG, com formação complementar em Filosofia. Bolsista do forumdoc.
ufmg.2018.
196

idas e vindas. Nesse sentido, nenhum dos filmes e assume sua personagem peculiar: lantejoulas,
tem a pretensão de generalizar uma experiência boca, cabelo, unhas, sorrisos, brilhos… tudo isso,
ou compor um diagnóstico de opressão. Eles que antes foi capturado em pedaços, aparece
decidem, em detrimento disso, expor trechos num quadro só, abraçando sua figura dançante e
de imagens, transformando experiências isoladas confiante. Os escritos que acompanham o filme
em narrativas sensíveis. também servem de suporte para o retrato: não
Sair do armário, com uma estrutura básica, são apenas legendas, mas um recurso expres-
é um soco no estômago. Mãe e filha discutem sivo que migra para diferentes cantos do quadro,
a sexualidade da última, que tenta entender surgindo e desaparecendo rapidamente. As pala-
porque a mãe não consegue aceitá-la. Não são vras de Tikal, assim como as vozes de Sair do
necessárias atrizes, cenários ou mises-en-scènes armário, ganham uma atestação física, para além
para elaborar o trauma da rejeição pelo precon- de sons soltos no ar, sendo cravadas na imagem
ceito: um fundo preto com legendas que ocupam do cinema. Nesse sentido, Tikal, para além de
o centro da tela e acompanham um diálogo confli- dispor de pedaços do corpo para compor um
tuoso é mais do que suficiente. A entonação de todo de sua imagem, também oferece uma versão
suas vozes, possivelmente documentais, são mais de sua vida, com pequenas alegrias, resistências
contundentes do que seria uma encenação da e opressões, elaborando um retrato rápido e
interação entre as personagens. A escrita que revelador da trajetória de um corpo que transita —
acompanha as falas é ainda mais eficiente: ela entre os desejos dos patrões, das pessoas, dos
surge na tela e marca o tom da conversa com santos e, claro, de seus próprios.
muita assertividade — é como se cravasse na Escape, como os outros dois filmes, maneja
imagem a materialidade da discussão, a qual, muito bem a questão de que uma vida não pode
por seu caráter discriminatório, tem consequên- ser capturada em alguns minutos de cinema.
cias trágicas para o mundo “real”. Assim, mesmo Para isso, a obra assume a distância com sua
quando as legendas desaparecem da imagem, personagem, sem, no entanto, ficar impedida
resta o fardo das “opiniões” da mãe, a qual expõe de buscar, por meio da filmagem, detalhes de
um preconceito incontornável: ela antes prefere sua trajetória e personalidade. A protagonista
sua filha sozinha (e heteronormativa) do que feliz. (Lludy) é apresentada sem grandes explica-
Já CorpoStyleDanceMachine utiliza da frag- ções. Objetos de mudanças a cercam e, se ela
mentação imagética do corpo para compor um inicialmente não percebe a câmera, de repente
retrato carnavalesco e sutil. Num ambiente de fala diretamente com o extra-campo. O fazer
boate noturna, com cores neon e fumaça de gelo documentário se revela, mas de maneira sutil,
seco, os enquadramentos que “mutilam” a figura como um roteiro escrito enquanto filmado, em
de Tikal ganham uma dimensão de contra-cultura. conjunto com a protagonista. Nessa aparente
É como se na confidência entre câmera e perso- elaboração conjunta, é importante a escolha
nagem Tikal se permitisse revelar, sob a promessa de montagem: a narrativa segue tempos dife-
de sua voz ser escutada e fabricada na imagem de rentes, e até mesmo línguas diferentes (portu-
maneira que corresponda à estética de seu corpo. guês e espanhol), para contar de forma não linear
É por isso, talvez, que vejamos seu rosto intei- parte da história de Lludy — brasileira, prosti-
ramente apenas ao final. Depois do pacto entre tuta e travesti. Não é clara a ordem das cenas
ele e a direção, Tikal encara a câmera de frente nos diferentes ambientes, mas cada uma segue
ensaios mostra brasileira 197

sua dinâmica própria: seja na exibição de seus


objetos pessoais para a câmera, seja por meio de
conversas corriqueiras sobre as mudanças de seu
corpo, Lludy transita entre diferentes fases de
sua vida, sem declarar qual situação é presente
ou passada. Essa alternância entre cenários e
Lludys (que também são fisicamente distintas,
pela roupa e pelo cabelo) compõe um retrato
complexo, pouco revelador no sentido de traçar
a jornada da personagem, mas sincero em sua
disposição íntima e despedaçada.
Filmes potentes em si, capazes de arti-
cular alteridades e nos colocar, por meio de
sua escolha estética, no âmago de uma reali-
dade delicada. Os diretores não buscam fechar
sentidos acerca das personagens, enaltecendo
seus sofrimentos ou reduzindo suas experiências,
mas procuram antes demonstrar a força de suas
vivências. É como a fumaça que cede espaço
para a figura de Tikal e resulta num rosto de 56
anos que encara a câmera sem nenhum pudor
para, então, quebrar a dimensão fixa do enqua-
dramento e se movimentar de acordo com sua
pulsão. Essa cena final de CorpoStyleDanceMa-
chine resume o vigor de um corpo que não pode
e não quer ser controlado, o qual, instituído de
uma subjetividade inapreensível por qualquer
forma limitante, dança — ocupando o quadro
com suas bordas e seus fragmentos, em toda
sua complexidade imensurável.
198

Parquelândia:
trabalho, lazer e melancolia
sobre filme de Cecilia da Fonte

Julia Fagioli*

U
m parque de diversões itinerante, o Park aspecto pode ser percebido nos silêncios, nos
Nossa Senhora da Conceição, se desloca olhares distantes dos personagens, mas, também,
pelo sertão do Piauí e de Pernambuco nos poucos depoimentos dos trabalhadores, dos
e o espectador é convidado a acompanhá-lo quais não sabemos os nomes. Um deles começa
em seu percurso. Logo nas primeiras cenas um sua fala refletindo que a vida é como um jogo,
contraste: as imagens do trabalho, repetitivas e “tem vez que você ganha e tem vez que você perde,
árduas; e as imagens das crianças se divertindo eu mesmo, até agora, tô perdendo”. Instantes
no parque. Ao intercalar os planos do trabalho e depois diz estar ali porque, no lugar onde vivia
do lazer, alternam-se os ruídos das ferramentas antes, o cerco havia se fechado, não era mais
contra o ferro, da lixa para o polimento, dos brin- possível continuar onde estava, com relações
quedos sendo montados e desmontados, com os desgastadas por sua dependência de drogas, tal
sons dos brinquedos funcionando e das pessoas como descreve. Tais momentos, raros no filme,
se divertindo. A desmontagem após os dias de nos permitem conhecer um pouco melhor seus
lazer no parque nos parece uma desconstrução personagens. Há sempre, porém, certa distância,
da magia, criando uma passagem ao mundo um isolamento dos indivíduos.
do trabalho. Um outro personagem foi trabalhar no
Decorre certa melancolia, que atravessa o parque após passar mais de dez anos preso. Ele
filme. Apesar de compreendermos que estamos fala da experiência da prisão e da sensação da
no sertão nordestino, não sabemos ao certo a liberdade após tantos anos, diz que está feliz
localidade, a equipe se desloca por estradas por estar ali, que a equipe do parque é, para
vazias. Há diversos momentos de silêncio e solidão, ele, uma família. Todos eles abrem mão de algo,
o tempo parece não passar. Após a montagem do deixam uma vida para trás, por opção – para
parque há pouco a se fazer, a não ser aguardar fugir de um passado –, ou, talvez, por neces-
até que se possa partir para a próxima cidade. sidade, deixando o convívio com a família e as
Freud (2011) caracteriza a melancolia como um pessoas queridas, e até o nascimento de um filho.
desânimo profundo e doloroso, persistente como O único dos personagens que diz o seu nome,
uma sombra que acompanha o indivíduo. Tal já nos momentos finais do filme, é Damião, que,

*Pesquisadora de Cinema. Doutora em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação


Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestra pela mesma instituição.
ensaios mostra brasileira 199

ao ser indagado sobre o apelido recebido de levando de volta ao universo do trabalho, quando
uma colega – Neguinho –, diz que gostaria de uma pessoa, de quem vemos apenas os braços e
ser chamado pelo seu nome. as mãos, lava a placa com o nome do parque. O
Deste modo, há uma sensação de deslo- segundo momento se dá algumas cenas depois do
camento – no tempo, no espaço, no isolamento primeiro. Após montados os brinquedos, todos
entre os indivíduos – que nos acompanha e jantam e, em seguida, assistindo a um vídeo no
intensifica a melancolia. O espectador não está celular, ao qual o espectador não tem acesso,
situado em relação ao espaço e ao tempo, a todos riem e se divertem.
equipe está afastada de uma vida anterior, não Passados esses pequenos instantes de
sabemos ao certo quem são aquelas pessoas, descontração, nos encaminhamos para os
nem mesmo seus nomes. Tais aspectos se inten- minutos finais do filme, retornando ao parque
sificam na segunda metade do filme, quando as vazio, após um dia de atividades, o silêncio e a
imagens do parque em funcionamento se tornam melancolia ressurgem. A ambiguidade entre o
mais escassas e dão lugar a um mergulho no trabalho e o lazer se intensifica em uma sequência
cotidiano: desmontagem, montagem, estrada, o de planos vertiginosos do parque funcionando
tempo ocioso, a espera e, novamente, a partida. com brinquedos e luzes girando. Logo após, na
Além do isolamento dos trabalhadores que manhã seguinte, não há mais movimento, com os
estão sempre se deslocando de uma cidade à brinquedos parados, todos descansam e a ideia
outra, outro fator importante tratado pelo filme do deslocamento e do isolamento reaparecem
é a precariedade das condições de trabalho e e são reforçados nas imagens e sons da chuva
de vida durante esse período. Eles viajam na que cai e nos leva aos créditos finais do filme.
carroceria do caminhão e não utilizam nenhum
equipamento de segurança, apenas luvas. Em
Referência
algumas cenas do filme, os vemos até dormindo
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo:
em brinquedos do parque. Um deles fala sobre
Cosac Naify, 2011.
o sofrimento de se trabalhar sem ter reconhe-
cimento, outro afirma que ainda não conseguiu
ganhar dinheiro trabalhando. Parquelândia nos
coloca diante do paradoxo entre a dura reali-
dade do trabalho e o encanto dos parques de
diversão. O filme desconstrói essa magia para
expor a situação dos trabalhadores, que no pleno
funcionamento do parque são invisíveis.
Há, porém, diante da melancolia que atra-
vessa essa realidade, dois breves momentos de
descontração, quando em um intervalo da viagem,
os trabalhadores mergulham e se divertem em
um lago na beira da estrada. Logo em seguida,
aproveitam para lavar seus objetos pessoais.
Após um corte, a água, que proporcionou um
respiro daquele cotidiano, agora retorna, nos
200

Esperas e transformações
sobre Espera (2018), de Cao Guimarães

Thiago Rodrigues Lima*

Alguém diz: esperar, notadamente aquelas mediadas pelos


“Aqui antigamente houve roseiras” – dispositivos eletrônicos, logo após os créditos
Então as horas iniciais essa impressão é desestabilizada, e as
Afastam-se estrangeiras, manifestações da espera adquirem no filme uma
Como se o tempo fosse feito de demoras. multiplicidade de texturas e dimensões.
Com sua ampla variação de significados,
Jardim, Sophia de Mello Breyner Andresen
a espera é tempo, mas também expectativa
Até onde a vista alcança, reina aqui o instante. que nasce na suspensão de um “entre atos”, no
Um daqueles instantes terrenos isolamento interior e na dispersão. Nela, se flana
que se pede que durem. por ideias e lembranças, por sonhos e conjec-
Instante, Wislawa Szymborska turas, por isso a espera é um ato privilegiado
onde a invenção é gestada ou, como a certa
altura a própria narração poética de Cao nos

D
o palco de uma sala escurecida, obser- diz, “Enquanto espero, devaneio. A espera é a
vamos os assentos vazios de um grande condição ideal para o devaneio. Um mundo que
teatro e suas dependências, ao mesmo não espera, não delira, não sonha”. Quem espera,
tempo em que um violinista afina seu instru- espera por algo, por alguém, por alguma coisa.
mento, solitário. O cenário é soturno, oblíquo e Ela não é partida nem chegada, mas processo.
esfumaçado, onde criaturas fantásticas se sentam Não é atoa que os registros de estradas povoem
em um banco ao lado de um telefone público ou a obra de Cao Guimarães. Como estruturas que
mexem em seus celulares e tablets. Assim como ligam regiões distantes umas das outras, são por
diversos músicos, elas esperam para performar excelência imagens de passagem, de travessia e
Norma, a ópera de Vincenzo Bellini. Outrora vazia, de transição. Assim como as estradas, a espera é
a sala se torna repleta de espectadores, cujos aquilo que se encontra no meio, no interstício de
rostos se azulam pelas luzes de seus telefones. dois ou mais pontos. Ela é, desta maneira, o vir
Eles também aguardam o início do espetáculo, a ser, e Espera é um convite a uma viagem que
alguns conversam entre si, e outros fazem selfies transita pela experiência de revelação.
ou mexem em seus celulares. Se em um primeiro Esperar o início da ópera. Esperar o sono
momento poderíamos pensar que Espera, de Cao em uma clínica especializada. Esperar os auto-
Guimarães, se deteria sobre as novas formas de móveis que atravessam uma estrada. Esperar a

*Mestre em Comunicação Social pela UFMG, realizador e curador.


ensaios mostra brasileira 201

viagem de ônibus ou de navio. Esperar que a Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães


seiva das seringueiras escoem para os recipientes Rosa (1994, p. 85) escreveu que “o real não está
cuidadosamente colocados nas árvores. Esperar na saída nem na chegada: ele se dispõe para a
que a força do vento derrube os manequins gente é no meio na travessia”. Se há algo que salta
de um precário comércio de beira de estrada. aos olhos no filme de Cao Guimarães, é que em
Esperar as manifestações do divino sob a forma seu percurso poético sobre as esperas, algo de
de cantos e orações. Do mais corriqueiro e banal, místico ou fantástico é encontrado na medida
até o encontro com um novo eu, o filme de Cao em que embaralha o ordinário e o extraordinário.
Guimarães deriva pelas nuances da espera com Existe uma proporcionalidade que justapõe essas
um registro prismático para encontrar um outro duas instâncias sob a égide de uma temporali-
tempo que prescinde de finalidade, que se torna dade em comum. Uma qualidade extraordinária
ele mesmo um universo autocontido. é dada às janelas do navio ao se assemelharem
No entanto, o tempo aqui não é árido e a telas de cinema, e também ao vento que inci-
tampouco possui uma rigidez glacial como a dentalmente derruba os manequins com sua
descrita por Song Hwee-Lim ao falar de um certo força. Por sua vez, o processo de revelação dos
cinema contemporâneo que privilegia a lentidão. rolos de filmes Super 8 e de transição para uma
De outra maneira, o tempo de Espera possui nova identidade de gênero ganham contornos
uma dinâmica própria entre o ato de contemplar ordinários, embora não percam suas respectivas
aqueles que esperam por algo e a linha narra- singularidades e potências. Já próximo de seu fim,
tiva sedimentada pela oscilação entre o desejo a ópera de Vincenzo Bellini preenche o campo
de revelar os filmes em Super 8 guardados na sonoro e Espera retorna a Gael, que se desen-
geladeira e o processo de transição de gênero faixa para revelar seu novo corpo, afirmando
de Gael Benitez. Aqui, o tempo da espera não é mais uma vez seu novo eu. Esperar é resistir, é
tomado como sinônimo ou mesmo correlacio- reinvenção, é se abrir para as pequenas e grandes
nado à monotonia, mas enquanto dormência que transformações que o tempo traz.
mobiliza uma força de transformação, seja aquela
do processo químico que dá vida aos registros
Referências
em Super 8 ou a que faz renascer a identidade
LIM, Song Hwee. Tsai Ming-Liang and a cinema of
de uma pessoa.
slowness. University of Hawaii Press, 2014.
Espera não lida apenas com o que fazemos
enquanto esperamos, mas também com o que ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas.
acontece em sua qualidade intersticial. Essa Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
variação pode parecer pequena, mas não é. Não
somos levados aos conteúdos das interações
com os celulares, à performance da ópera, aos
destinos daqueles que viajam, ao sono daquela
que não consegue dormir, às imagens dos muitos
rolos de Super 8 reveladas ou mesmo à nova vida
de Gael, mas à poesia do processo que leva às
mudanças, com suas curiosidades, cansaços,
angústias e devaneios.
202

Sobre um povo torturado


que não sabe o que é tortura
ou algo a dizer sobre o filme Universo preto paralelo, de Rubens Passaro

Paula Kimo*

Ele não é uma hashtag, ele é uma ameaça real. O primeiro, lidera um exército de sertanejos e
Rapper Edgar indígenas recrutados para derramar sangue no
extermínio da maior área de resistência quilom-
bola do país. O segundo, dispõe de depoimentos

T
rechos de uma carta do engenheiro e fontes históricas para pintar, com tinta à óleo
Teodoro Sampaio dirigida ao pintor sobre tela, a imagem de alguém que não conhecia
Benedito Calixto, em 1892, dizem do – um malfeitor, inimigo do povo, herói do Estado
processo de feitura de um quadro destinado à – criando uma obra que seria referência para os
representar Domingos Jorge Velho, “o vencedor demais quadros encomendados pelo Museu do
dos Palmares”. Contratado pelo governo de São Ipiranga de São Paulo, isso em 1903.
Paulo, o pintor recebeu a missão de representar Por sobre a imagem do carrasco dos
um dos maiores algozes da história do povo negro Palmares, Maria Rita Kehl, psicanalista e membra
brasileiro e, para isso, contou com depoimentos, da Comissão Nacional da Verdade, em off, fala
fontes históricas e cartas trocadas com historia- do mal radical, “aquele mal praticado por alguém
dores da sua época. Domingos Jorge Velho, por que acredita e está convicto que o que ele faz é
sua vez, foi contratado pelo governo de Pernam- em nome do bem”, postura tomada por tortu-
buco para comandar, em 1694, a destruição do radores no período militar brasileiro que, em
Quilombo dos Palmares, território quilombola nome do regime, praticavam atrocidades com os
que abrigava cerca de 30 mil negros e negras corpos detidos de militantes que lutavam contra
que buscavam no sertão refúgio à escravidão, a ditadura. Na próxima cena, vemos a imagem de
onde resistiram por 30 anos em meio ao período uma ilustração de Angelo Agostini, em 1886, para
escravagista brasileiro. Quase 200 anos separam a Revista Ilustrada, um dos principais veículos de
os feitos de Domingos Jorge Velho e Benedito oposição ao regime monárquico e à escravidão no
Calixto, mas, em comum, ambos contratados pelo Brasil da época: um homem negro amarrado no
Estado para pintar, cada um à sua técnica, um tronco, com as mãos para o alto, rendido, sendo
capítulo na História (com H maiúsculo) do Brasil. levado por outros dois negros, sob a supervisão

*Mestre em Comunicação Social pela UFMG com a pesquisa “Modulações das Imagens Insurgentes: a variação
do antecampo nos atos de disputa política”. Curadora da seção “A cidade em movimento”, da Mostra CineBH.
Cineasta, produtora cultural e ativista social. Integrante do coletivo Filme de Rua.
ensaios mostra brasileira 203

de um capitão branco. Em off, escutamos trechos do racismo estrutural no Brasil. Do outro, um


do depoimento de um torturador confesso: passado recente que persiste em ser lembrado
por amigos, familiares e militantes que lutam pela
— Quantas pessoas o senhor matou? instituição de mecanismos – como a Comissão
— Não lhe respondo. Nacional da Verdade – que possam trazer à tona
— O senhor se arrepende do que fez? os acontecimentos do período ditatorial, passado
— Não, vou lhe dizer porque, porque eu acho cada vez mais presente na ascensão da extrema
que cumpri o meu dever. direita e do conservadorismo que vivenciamos
na atualidade. Em comum, corpos humanos que
Ao associar imagens que representam o ultrapassam o limite estabelecido pelo poder
período da oficial escravidão no Brasil, datada vigente, ou que não se enquadram no princípio
de 1530 a 1888, com depoimentos em off sobre civilizatório da época – aquele que determina
a ditadura militar no país, corrente entre 1964 quem faz parte da comunidade, quem está auto-
e 1985, o filme Universo Preto Paralelo nos faz rizado a viver e gozar da vida em liberdade. Em
pensar nas relações que transparecem entre o comum, vidas pulsantes tratadas como matéria
regime escravagista e o regime militar brasi- descartável, objeto de dor e sofrimento, sob
leiros. Indo além, nos faz pensar sobre o que deliberação de uma noção de “bem” que deturpa
resvala desses regimes nos tempos atuais. Sobre- os princípios básicos de humanidade, ferindo a
pondo tais materialidades, imagens da violência Declaração Universal dos Direitos Humanos, o
e humilhação sofridas pelos negros escravizados único instrumento construído pelo ser humano
em território brasileiro, com relatos sobre os que pode ser capaz de dizer a ele mesmo o
horrores da tortura no período ditatorial no que é ser.
país, o filme apresenta um paralelo entre dois
tempos onde, em alguma medida, um alimenta — Quantos o senhor torturou?
o outro, levando o espectador à um lugar comum — Difícil dizer a quantidade, foi uma quanti-
da barbárie produzida pelas forças autoritárias, dade razoável.
sejam elas estatais ou capitais, em diferentes — Homens e mulheres?
épocas. Os depoimentos dos torturadores — Não, mulher subversiva pra mim é homem.
traduzem a frieza de um regime totalitário ao Eu não modifico o tratamento porque ela
lidar com o corpo vivo que contesta os mandos é mulher. Eu considerava ela um inimigo.
da época. As imagens de Angelo Agostini, Jean
Baptiste Debret, dentre outros artistas, trazidas O gesto do capitão do mato que chicoteia o
como representação do Brasil colônia, da monar- corpo negro sob comando de um senhor branco,
quia de outrora, tornam visíveis o escárnio do assim como a neutralidade do torturador que
corpo negro escravizado, a forma como era cumpre seu dever, passam pelo conceito de
tratado como mercadoria, exposto em praça banalidade do mal, de Hannah Arendt, citado
pública em eventos de punição e tortura. Desse por Maria Rita Kehl no filme, onde – nas nossas
lado, um passado que resiste ao esquecimento na palavras – o mal se torna banal quando aquele
luta dos povos negros em reconhecer a história que o pratica é incapaz de fazer julgamentos
de seus ancestrais, percebendo e combatendo, morais, sendo movido pela necessidade de
ainda hoje, traços e violências cometidas em nome executar ordens, cumprir um dever, seguir uma
204

diretriz traçada pelo poder que impera naquela poderio branco, estando, ainda hoje, na mira.
circunstância. Para além disso, ao caracterizar Foco de resistência, ou melhor, de sobrevivência.
os gestos de tortura revelados na Comissão da O rap “Intro U.P.P”, de Ba Kimbuta, do
Verdade, Maria Rita Kehl diz de um “outro lado álbum “Universo Preto Paralelo” que, inclusive,
da banalidade do mal” e acrescenta o prazer de dá nome ao filme, apresenta paisagens sonoras
se produzir a dor, o poder em dominar um corpo da violência praticada pelas UPPs (Unidades de
sem reação. O gozo em torturar, matar, causar Polícia Pacificadora) nas favelas cariocas. Sangue
o mal em nome do bem. preto inocente despejado no morro, a luta das
comunidades contra uma força do Estado que
— Quando o senhor vai se desfazer de um chega para “pacificar” com balas de borracha,
corpo, naquela época não existia DNA... spray de pimenta e munição pesada que perfura
quais são as partes, que se acharem o corpo, e mata os corpos que ali habitam. Uma barbárie
podem determinar quem é a pessoa? Arcada que atravessa os tempos, cria estatísticas que
dentária, digitais, só. alimentam o termo “genocídio da juventude
— Mas arrancava a cabeça ou quebrava os negra” e também massacra os povos indígenas,
dentes? invisibilizados também no filme, mas jamais
— Quebrava os dentes. esquecidos se quisermos falar de história (com
— Cortava as mãos? h minúsculo) do Brasil.
— Não, digital é daqui pra cima. O filme faz uso de recursos de edição, como
— Cortava os dedos. enquadramento e movimentação das imagens de
— E aí, se desfazia do corpo. arquivo, para compor as cenas que dão a ver o
— Enterrava ou não enterrava? sofrimento do negro escravizado, relacionando-
— Não. Nunca. as com depoimentos e relatos da Comissão
Nacional da Verdade. Ao que me parece, essa
Por outro lado, o paralelo alinhavado entre articulação de sons e imagens não pretende
imagens, relatos e testemunhos de distintos resumir as histórias de punição e tortura do povo
tempos pode remeter à uma diferença basilar que resiste em diferentes épocas da história
entre eles. O depoimento de Darci Miyaki, que do Brasil, tampouco equiparar as atrocidades
acessamos na última cena do filme, demarca correntes nesses distintos períodos. Mas, talvez,
algo dessa diferença: “o malefício causado pela o caráter inventivo do filme esteja no gesto de
ditadura militar não foi somente em relação a percorrer diferentes significantes para a palavra
nós, militantes, mas também ao povo”. Na tortura ao longo dos nossos tempos. Isso fica
ditadura militar os presos e torturados eram mais explícito quando chegamos, nos últimos
majoritariamente militantes, jovens, brancos, minutos do curta-metragem, no pronunciamento
em uma proporção significativamente menor de Jair Messias Bolsonaro durante a votação do
se comparado aos números (incalculáveis) e impeachment da Presidenta Dilma Rousseff,
tempos (imensuráveis) da violência racial que quando ele presta uma homenagem ao tortu-
teve início no tráfico de pessoas negras trazidas rador de Dilma, Carlos Brilhante Ustra.
de África durante a colonização do Brasil. No Em meados de 2018, em plena corrida
regime escravagista, teoricamente extinto na Lei presidencial, parte da população brasileira
Áurea de 1888, o povo negro é alvo da tirania do desconhece a presença e o sentido da tortura na
ensaios mostra brasileira 205

história de seu país. A forma como os discursos


de ódio são propagados pelas redes sociais,
resvalando nos embates partidários pelas ruas,
impulsionados pela pseudo potência messiânica
de Bolsonaro, aquela que ascende pelo que se
tem de mais baixo na sociedade, que dirige os
holofotes aos porões tirânicos de cada um e nos
coloca diante de uma questão: por que o brasi-
leiro não reconhece a dor daqueles que lutam
pela própria vida, pela conquista de direitos,
pela liberdade, pela democracia? Onde vamos
parar diante dessa avalanche de ódio que não
começou em 2016, no enaltecimento do Coronel
Ustra, tampouco em 1964 quando tem início o
período militar? Universo Preto Paralelo nos
coloca diante da tortura e do sofrimento que
o brasileiro vive desde sua constituição pelo
sequestro dos povos de África. Em suas lacunas,
nos faz pensar no extermínio dos povos indígenas
desde que o primeiro homem branco aportou em
terras tupiniquins. Nos remete à frágil juventude
da democracia neste país, sinalizando que muito
sangue há de escorrer e muitas vidas poderão
ainda sucumbir perante a imposição de um bem
que cega – e mata. Diante de um povo torturado
que não sabe o que é tortura, quantos mais preci-
sarão tombar para que a humanidade não perca
o que ainda tem de humana? Talvez, quando a dor
extrapolar o barraco da empregada doméstica e
adentrar os muros dos condomínios, saibamos
construir algum caminho. Afinal, a história só se
legitima quando construída com H maiúsculo,
do contrário, somos também fake news. Triste
humanidade Brasil.
206

O nome da câmera – uma crítica


indígena à invenção do cinema
(e da cultura)
sobre Deekeni – Os olhos de Wiyu, de Júlio David Rodrigues e José Cury

Renata Otto Diniz*

A
comunidade ye'kwana de Auaris (TIY - em torno da realização de rituais que se estru-
RR), Fuduuwaadunnha, juntamente com turam a partir dos cantos Acchudi e Ädeemi. A
alguns colaboradores não indígenas atenção à escrita e à gravação em áudio e vídeo
desenvolvem um projeto de salvaguarda dirigido a dos cantos, e das próprias cerimônias rituais, é
uma parte do imenso conjunto dos saberes tradi- parte central do projeto, Aaseesewaadi, uma
cionais da sociedade indígena ye’kwana.1 A partir vez que tais meios de registro passaram a ser
do Programa de Documentação (PRODOCUT), aceitos pelos mais velhos, e acatados pelas lide-
gerido pelo Museu do Índio/Funai em parceria ranças mais jovens, como instrumentos capazes
com a Unesco, as lideranças indígenas passaram de assegurar o domínio destes saberes tanto na
a seguir estratégias para reunirem os mais velhos contemporaneidade quanto para a posteridade.

*Mestre em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutoranda pelo PPGAS da Universidade de Brasília.
Foi técnica em antropologia da FUNAI entre 2009 e 2014, onde atuou nas coordenações de delimitação e
demarcação de terras; e proteção aos índios isolados e recém contatados. Co-dirigiu com Isael Maxakali e Sueli
Maxakali, o filme Quando os Yãmiy Vêm Dançar Conosco (2012). Integra a comissão de seleção e curadoria da
Mostra Contemporânea Brasileira do forumdoc.bh.2018.
1. As descrições históricas e etnográficas dizem que os Ye’kuana são vizinhos dos Piaroa (a oeste), dos Pemon
e Macuxi (a leste) e dos Sanumá/Yanomami (ao sul). Também dão notícia de que seu deslocamento em direção
aos grandes rios deveu-se, sobretudo, às relações com as frentes da expansão colonial, iniciadas, em meados
do século XVIII, com os espanhóis, desde o Orinoco, seguidos pelos holandeses, desde o Essequibo, os quais,
à época, penetraram e disputaram a região em busca do rio El Dorado (Guss, 1990); posteriormente, deveu-se
à exploração da borracha e, já em meados do século XX, à intervenção das missões religiosas (Arvelo-Jimenez,
1974) e de projetos estatais, como o Calha Norte, por fim, à corrida do garimpo iniciada na década de 80
(Albert, 2000). Atualmente, os Ye’kuana têm experimentado alguns deslocamentos de suas aldeias, sobretudo
nas imediações da fronteira venezuelano-brasileira, por causa de seus vizinhos Sanumá que avançam do sul para
o norte da área (Ramos, 1980; Lauriolla,2004). A maioria da população ye’kuana, cerca de 8000 pessoas, vive
em aldeias no lado venezuelano. Na Venezuela, os Ye’kuana têm suas aldeias dispersas no Estado Bolívar e no
Território Federal Amazonas. A outra parte do povo, com cerca de 600 pessoas, vive no lado brasileiro, em três
aldeias: duas delas localizadas no rio Auaris (ou Lebarejure) e a outra no rio Uraricoera (Lauriolla, 2004, p. 342).
Esta região de fronteira faz parte da zona chamada Camsoïna. Ela é formada pelas cabeceiras do rio Orinoco
(Pádamo, Cunucunuma, Cuntinamo, Ventuari, Paru, Caura) e do rio Uraricoera (Erebato, Merivari).
ensaios mostra brasileira 207

O registro permitira a averiguação e correção do tempo primordial. Como ensinam os mitos


de versões diversas, a reprodução fora do do Watunna, desde o início, todo o cosmo e
contexto ritual, o aperfeiçoamento da execução todos os ensinamentos foram criados a partir
por neófitos, bem como o acesso das futuras da disputa entre as forças originais do primeiro
gerações aos materiais gravados se, por (des) demiurgo, Wanadi, e as forças corruptivas de
ventura, os cantos deixassem de ser parte da seu irmão gêmeo, Odosha.
vida cerimonial do grupo. Sigamos uma versão da cosmogonia
O filme Deekeni – Os olhos de Wiyu resulta ye’kuana do Watunna, segundo a coletânea de
desta atenção ao registro dos saberes guardados Marc de Crivieux. Em resumo, conta-se que:
pelos Inchokomo, em geral, e dos cantos em No começo, havia Kahuña, o lugar empíreo.
particular. Resulta, portanto, da interação entre Havia os kahuhana, o povo sem noite, sem morte,
os jovens ye’kwana e seus mais velhos, assim sem fome, sem guerra, do lugar. A Terra estava
como entre ye’kwana e não-índios, em torno das junto de Kahuña, mas era desabitada. Wanadi, o
tecnologias de reprodutibilidade. Sendo assim, o ser supremo, brilhante como o sol, aquele que
filme é dirigido em dupla: Júlio David Rodriguez, jamais deixava Kahuña, quis povoar a terra. Dupli-
professor ye’kwana e presidente da Associação cou-se. Mandou seu duplo para lá. Chegando à
Wanasseduume, e José Cury, cineasta e professor Terra, Wanadi, aquele duplo que deixou Kahuña,
de audiovisual. Júlio foi escolhido pelos sábios pariu-se. Enterrou sua placenta e seu cordão
ye’kwana para gravar em áudio e vídeo a parte umbilical. Um verme da terra corrompeu as
dos saberes referente aos cantos Acchudi e carnes. Instantaneamente brotou Odosha. Wanadi
Ädeemi. José Cury ministrou as oficinas sobre fez umas pessoas para a Terra. Elas estavam
as técnicas de registro em audiovisual, montagem pescando. Odosha sussurrou no ouvido delas:
e finalização de filmes para jovens. Esta dupla de “matem os peixes”. Então, apareceu a morte. As
diretores já poderia antecipar toda a questão pessoas da terra morriam. Wanadi voltou para
posta pelo filme e que passaremos a discutir Kahuña (o céu empíreo). Wanadi duplicou-se
a frente. outra vez. Chegando à Terra, fez uma mulher, era
Antes, gostaria de chamar atenção para o sua mãe, Kumariawa. Ele a matou. Ele a enterrou.
fato de que o filme aninha-se numa reflexão rela- Para ele, a morte não passava de um truque. Ele
tivamente recente acerca da perspectiva indígena soprou e cantou. Quando Kumariawa brotava
em relação aos seus próprios saberes. Poderia novamente da terra, Odosha pediu à lagarta
dizer que o filme trata daquilo que a antropóloga que derramasse sobre ela a urina dele. Odosha
Manuela Carneiro da Cunha chamou de cultura sussurrou no ouvido de Yarakaru, o macaco
com aspas. Ainda mais porque trata-se de branco, “abra a chakara (cesto de xamanismo)
demonstrar a recusa ye’kwana de encarnar a mera de Wanadi”. A lagarta, que levava a urina de
posição de objeto de investigação (e tradução) Odosha, derramou-a em Kumariawa, que brotava.
para o interesse de um sujeito não-indígena. Yarakaru abriu a chakara de Wanadi, que continha
Assim como de demonstrar a particularidade a noite. Kumariawa foi queimada com a urina, que
ye’kwana na recusa de encarnar um exemplo lhe fora derramada. A noite, fugida da chakara de
da propalada ameaça de “degeneração” ou Wanadi, expandiu-se por toda a Terra. Tudo escu-
“perda” da cultura. Pois para os Ye’kwana, fica receu. Wanadi voltou para Kahuña. Wanadi dupli-
claro no filme, a batalha pela “cultura” provém cou-se. Aquele duplo chegou à Terra em trevas,
208

as pessoas viviam como animais, elas não podiam Imagine o leitor o que significa o registro
ver. Wanadi fez novas pessoas para a Terra. Ele escrito e, depois, os mecanismos de captura e
fez Shi, o sol, ele fez Nuna, a lua, ele fez Shiriche, reprodução de imagens, a fotografia, o cinema,
as estrelas. Aquelas pessoas ocuparam o céu o vídeo num sistema cosmológico, sociológico
da Terra. O céu verdadeiro de Wanadi (Kahuña) (estético, político) tal como concebido pela
não podia mais ser visto da Terra. As pessoas tradição ye’kwana, em que a duplicação parece
da Terra pediram novos corpos, elas não tinham funcionar no centro. A duplicação – operação
nada. Wanadi fez tudo novamente. Ele fez casas de toda forma de registro – é ela mesma uma
para as pessoas. Quando Odosha viu a primeira chave da estética ye’kwana. Poderíamos dizer
casa de Wanadi, em Wana hidi, ele fez uma outra sem exagero que ela pode ser – como o gado é
bem em frente. As pessoas que habitavam Wana para os Nuer, a feitiçaria para os Azande, o devir-
hidi eram os Sottoi. As pessoas que habitavam a -outro para os Araweté – um motivo incontor-
casa de Odosha eram os Odoshankomo. Wanadi nável de sua cultura. Diria mais, que esta cultura
sonhava com comida. Odosha sonhava com a estima um mundo sem centro, ou cujo centro é
fome. Wanadi sonhava com grandes colheitas. altamente relativo, pois assim que se toca num
Odosha dizia, “não, eu sonhei primeiro, sonhei ponto, no momento mesmo em que este ponto se
com a doença”. Wanadi não podia fazer mais coloca em cena, ali na posição de centro ou de
nada. Ele partiu com os Sottoi. Ele encontrou a ponto original do qual se parte, imediatamente,
caverna de Wade, o avô de todas as preguiças. este ponto se duplica. Simultaneamente, este
Wade era sábio. Ele recebeu Wanadi e os ponto engrandece porque se multiplica, e se
Sottoi. Odosha está procurando-o, procurando enfraquece, porque se corrompe e se transforma
por aí... um pouco. O duplo jamais é idêntico àquilo que
De acordo com o mito, a duplicação duplica, nunca é perfeito. E pode mesmo ser um
expressa o regime de diferenciação vigente no contrário. Que risco!
cosmos desde sua origem até os tempos atuais: Os cadernos, e todos os tipos de gravação
um sistema que faz simultaneamente corres- não são justamente um instrumento deste tipo?
ponder e opor os termos que relaciona. Dito de Não passaram a ser o recurso de que dispõem
outra forma, a intenção da duplicação é sempre hoje em dia os velhos sábios, Inchonkomo, para
reproduzir perfeitamente, assim como a intenção guardarem o conjunto de suas criações, de suas
de Wanadi é reproduzir perfeitamente o Céu na tradições, de sua cultura? Também não é verdade
Terra, mas isto significa necessariamente produzir que, por meio da anotação nos cadernos, e dos
a Terra, e produzir a Terra é concebê-la como registros em câmeras fotográficas ou filmadoras,
separada do Céu, o que, finalmente, significa que os velhos seguem atualmente sustentando a
a Terra é diferente do Céu. Portanto, a duplicação, existência de sua sabedoria? Mas também não
por um lado, é sempre um regime de espelha- é verdade que ao fazerem isto, perdem um
mento (ou multiplicação de semelhanças) pois tanto da sua própria maestria em perpetuar sua
tenta reproduzir perfeitamente, e, por outro, é sabedoria? Não abandonam em certa medida o
um regime de diferenciação (ou multiplicação de modo como faziam antes, “guardando tudo só
diferenças), já que duplicar é produzir além do na cabeça”? Mas também não é perfeitamente
que já havia. A perfeição, apesar de ser a meta, plausível afirmar que o princípio segundo o
jamais pode ser alcançada. qual reproduzir é simultaneamente assegurar e
ensaios mostra brasileira 209

corromper a existência da sabedoria dos ances- futuro, vocês vão querer ver como eram as
trais (ou a existência de qualquer ente do cosmo) festas antigamente”.
e que isso é um princípio próprio da sabedoria A segunda apoteose (uma segunda versão
ye’kwana? Sim, se levarmos em conta que na não poderia deixar de aparecer) vem na exegese
tradição ye’kwana todo processo de criação do primeiro discurso, na discussão entre os
implica uma duplicação. Portanto, sobre esse velhos sábios e os jovens cineastas, sobre o nome
“risco” que os jovens ye’kwana se colocam hoje da câmera, o nome da filmagem, ou seja, sobre
– quando pensam sobre os cadernos, sobre o o conceito ye’kwana de filmagem. Os cineastas
registro e preservação das festas, ou, de modo perguntam aos mais velhos: “Queremos saber, é
mais geral, quando pensam sobre o destino da perigoso para a pessoa ser filmada?”. Vicente de
sua cultura –, os velhos sábios ye’kwana já estão Castro responde: “Sim, pode matar. É coisa de
“cansados de conhecer”. não-indígena. Pode te fazer esquecer, te deixar
O mais fascinante do filme é o modo extre- cego. Assim falavam os antigos. A câmera é o olho
mamente delicado e dedicado (quase digo, de Wiyu. Por isso ela é assim, te mata, porque
“perfeitamente” elaborado) pelo qual o processo Odosha é outro tipo de gente. A câmera nasceu
de seu registro vai demonstrando todos os com Odosha”.
demais processos de construção e transmissão Os jovens tornam a perguntar: “Queremos
da sabedoria. A reunião dos velhos sábios de ainda saber sobre a câmera. Podemos nomeá-la
várias aldeias, a troca de avaliações, a escrita, a de outra forma? Podemos usar uma palavra
operação dos gravadores, as orientações cons- diferente de filmar? Como podemos chamá-la?
tantes sobre os mais variados modos de fazer Como podemos nomear a filmagem?”. Vicente
as coisas: ajustes na feitura do beiju, na pintura de Castro responde: “Eu não sei como chamá-la.
corporal, na imitação da voz, na construção do O que vocês acham? Antes não tinha nome. Na
orifício da flauta wana... época do contato dizíamos película, uma palavra
Tudo isso culmina na primeira apoteose do não-indígena. Por mim, vocês podem chamar de
filme. O primeiro discurso de Vicente de Castro, chu’tädö , imagem, cópia... Também damos este
o mais velho Inchonkomo, diz: “Estamos vivendo nome para outras coisas, como artefatos talhados
aquilo que os Inchonkomo haviam alertado: em madeira. Aqueles artefatos não são verda-
que iríamos nos espalhar [nos pulverizar, nos deiros, são apenas réplicas que fazemos... O filme
multiplicar] e que acabaríamos. Eles sempre que gravamos aqui sobre os pássaros, aquele
nos alertaram para isso. Os pajés vão sumir e filme era um chu’tädö , era uma dramatização.
os Achuudi irão acabar. O som da flauta wana Podemos chamar assim. Filmagem é chu’tädö”.
vai desaparecer. Estamos no tempo do qual A discussão entretanto não termina, a
os Inchonkomo falavam. Nossa cultura está pergunta volta-se para os filmadores, especial-
enfraquecendo desde a chegada do papel [do mente para o filmador não-indígena. Os sábios
homem branco, mas também do outro que indagam: “Os Ye’kwana que falam português
é representado por Odosha]. Os Inchonkomo deveriam perguntar aos não-indígenas se existe
falavam que o papel chegaria. Estamos no orientação para eles antes de filmar. Deveriam
tempo de que falavam. O que acabamos de ver perguntar se os não-indígenas foram adver-
é o nosso modo de ser desde o princípio. Penso tidos sobre os riscos da gravação das imagens,
que, como nossa cultura está se acabando, no se tomam medidas para se precaver e proteger
210

aquilo que estão filmando. Deveríamos perguntar Tomando o exemplo recente do processo
a você, José, você recebeu essa orientação?”. eleitoral neste país, fica explícito que falhamos
O filme termina com esta questão: quais miseravelmente. Não temos controle algum.
são nossas precauções a respeito do perigo de
corrupção e morte que envolvem a prática da
gravação, da manipulação da imagens, da captura
e transmissão das cópias? Estamos refletindo
sobre os riscos que essa prática envolve?
Durante todo o filme, aprendemos com
os Inchonkomo que, ao menos do ponto de
vista da sabedoria ye’kwana, toda operação de
invenção esteve desde sempre acompanhada por
um duplo, e que nada pode haver na terra cuja
existência seja completamente “original”. Desde
o Watunna, a criação esteve balançando sob o
par de demiurgos. De um lado, Wanadi pretende
criar perfeitamente, de outro, Odosha, seu irmão
gêmeo, inevitavelmente cria corrompendo a
criatura anteriormente inventada. O mundo se
mantém nessa pendulação, a partir dessa relação
de duplicação, de interação necessária e perigosa
entre dois diferentes.
Por isso os Ye’kwana estão atentos, sabem
que correm o risco de se enganar. Duvidam,
hesitam, tomam suas precauções. Bem antes da
“era da reprodutibilidade técnica”, os Ye’kwana
sustentam, aperfeiçoam e transmitem cultura,
“inventam-na” ao mesmo tempo em que a
“corrompem” um pouco.
E nós? A diferença entre a nossa invenção da
cultura e a deles, talvez esteja justamente no fato
de que eles sempre se preocuparam em prote-
ger-se da invenção, da cultura, sempre souberam
dos seus riscos. Mas nós o que fazemos com a
nossa? Nos precavemos? Nos resguardamos dos
riscos da multiplicação das imagens que criamos?
Estamos cientes dos riscos de nossos duplos, de
nossas imagens, de nossas projeções? O filme
nos indaga a todos.
ensaios mostra brasileira 211

Do sonho real à real conquista


sobre Parque Oeste (2018), de Fabiana Assis

Rafael Barros*

E
— Essa cova em que estás, ra princípio de 2005. O país vivia um
com palmos medida, momento econômico extraordinário
é a conta menor após a celebrada eleição presidencial
que tiraste em vida. que levou para o Planalto Central, no ano de 2002,
uma das maiores lideranças populares do país: o
— É de bom tamanho,
sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido
nem largo nem fundo,
dos Trabalhadores (PT). Não muito distante
é a parte que te cabe
dali, a exatos 202 km de Brasília, na cidade de
deste latifúndio.
Goiânia, Marconi Perillo (PSDB) ocupava o cargo
— Não é cova grande, de governador do Estado de Goiás. Ao passo que
é cova medida, assistíamos a implementação de uma nova agenda
é a terra que querias política em âmbito nacional, que objetivava a
ver dividida. garantia de direitos sociais à população, sobre-
tudo às parcelas mais pobres, e um processo
— É uma cova grande
de diálogo e construção junto aos movimentos
para teu pouco defunto,
sociais, em Goiás seguia em curso a política das
mas estarás mais ancho
elites conservadoras e agrárias do Estado.
que estavas no mundo.
Foi nesse cenário de contraste político que
Morte e Vida Severina,1 no bairro Parque Oeste Industrial de Goiana, a
de João Cabral de Melo Neto Ocupação Sonho Real – apesar da garantia
pública do governador Perillo de permanência
das famílias e da desapropriação do terreno por
elas ocupado, resultado do abandono de cerca
de 50 anos sem o cumprimento da função social
da propriedade e sem o devido pagamento de

*Antropólogo, mestre em Preservação do Patrimônio Cultural, produtor cultural e pesquisador do CER - Centro
de Estudos da Religião Pierre Sanchis/FAFICH/UFMG, tendo sido assessor técnico do Ministério Publico de
Minas Gerais. Atualmente é membro da Associação Filmes de Quintal e assessor parlamentar da Gabinetona das
vereadoras Cida Falabella e Áurea Carolina. É congadeiro, folião e banhista da Praia da Estação!
1. MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa e prosa. Antonio Carlos Secchin (Org.). 2ª ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2008. p. 159-160. (Biblioteca luso-brasileira: série brasileira)
212

impostos – foi violentamente despejada no dia tornar uma constante, diante de um imperativo
16 de fevereiro, após dez dias de tortura física retrocesso, onde as lutas sociais, os ativismos e,
e psicológica coletiva, com sucessivos ataques fundamentalmente, os movimentos de retomada
noturnos. Aproximadamente 14 mil pessoas e de democratização da terra podem se tornar
foram retiradas, à força, de suas moradias em crimes de terrorismo, faz-se mais que neces-
total desrespeito ao ordenamento jurídico. A sário, não apenas sonhar, mas (re)existir diante
Operação Militar produziu duas vítimas fatais dessas conquistas reais e seguir alimentando,
confirmadas, Pedro e Wagner, outros 16 feridos fecundando esses terrenos áridos e sombrios.
à bala, um desses ficando paraplégico, Marcelo
Henrique, e suspeita-se que o número de mortos
e feridos seja ainda maior, principalmente em
consequência de desaparecidos.
Eronilde Nascimeno era uma das lideranças
da ocupação. É ela que a câmera de Parque Oeste
acompanha no exercício de reconstrução da vida
e da permanente luta pelo direito à moradia. Após
o grande crime cometido, as famílias se reorgani-
zaram e seguiram firmes em seu propósito. Este
filme-testemunho apresenta essa trajetória de
superação e resistência, tornando-se instrumento
de desvelamento não apenas da opressão, mas
da máquina de invisibilização do poder popular
e de sua potência transformadora da realidade
social. Longe da cortina do espetáculo apre-
senta em suas miudezas as memórias vividas e
como que, no cotidiano, totalmente devotado a
construção coletiva, um cenário absolutamente
adverso foi sendo recomposto e redesenhado,
principalmente por mulheres que tomaram para
si as rédeas de suas histórias.
As lentes que acompanham Eronildes
alcançam aquilo que os olhos presenciaram, mas
revelam mais: aquilo que os olhares desenharam
ainda antes de ser visto e o que ainda está por
vir. Real Conquista, o bairro de agora, passa a ser
o terreno fértil onde a experiência comunitária,
ainda muito precária, move a fabulação de um
mundo possível.
Diante do atual quadro, onde tristes cená-
rios se anunciam, onde essas cenas pretéritas,
combativas e a serem combatidas, podem se
ensaios sessões especiais 215

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos


sobre filme de Renée Nader e João Salaviza

Ana Gabriela Morim de Lima


Ian Packer*

E
...quando alguém morre m Chuva é cantoria na aldeia dos mortos
os mortos o levam consigo (2018) acontece um valioso entrecruza-
e vão cantando mento entre a imaginação dos índios
fazendo barulho Krahô e a dos diretores Renée Nader e João
[é a chuva chegando] Salaviza, por meio do qual se produz uma esté-
tica visual e uma poética narrativa de outro modo
...o céu escurece improváveis caso esse encontro não tivesse sido
eles se vão dos mais profícuos. A beleza desse encontro
se divertindo inunda a tela e a transborda. Chuva... é resultado
fazendo barulho de uma experiência compartilhada, baseada em
[é a chuva chegando] deslocamentos e em vivências transformadoras
... já levaram o morto consigo para todos os envolvidos.
e lá se vão, as almas. No encontro com Ihjãc, Kotô e o pequeno
o tempo fecha, elas se vão Tepto, Chuva... recria alguns dos vários encon-
e ficam andando tros entre alteridades humanas e não-humanas
se vão cantando que povoam o mundo krahô. Na primeira cena
fazendo barulho do filme, o jovem Ihjãc vagueia pela floresta
[é a chuva chegando] ao encontro do carõ de seu pai, que lhe faz
um pedido: Ihjãc e sua família não devem se
Tradução de uma fala de Hacàc Krahô, esquecer de fazer o Pàrcahàc, festa de fim de
sobre a chuva-cantoria dos mortos luto, quando irão cantar e chorar a saudade pelo
morto uma última vez e, assim, esquecer sua alma,
permitindo que esta também se esqueça de seus
parentes vivos e siga seu caminho para a aldeia
dos mortos. A preparação da festa é, contudo,
atravessada por outro encontro de Ihjãc, desta
vez com o pahhi da gente-Arara. Presa de sua

Ana Gabriela Morim é pós-doutoranda em Antropologia Social na Universidade de São Paulo. Ian Packer é
*

doutorando em Antropologia Social na UNICAMP. Ambos desenvolvem pesquisa entre os índios Krahô, habitantes
do Tocantins.
216

sedução, ele se vê em vias de virar wajaka, figura que atravessam seu personagem e o engajam
ambígua, capaz tanto de curar quanto de atacar em múltiplos devires: “virar arara”, “virar pajé”,
por meio de feitiços. “virar branco”...
Buscando fazer com que a Arara o esqueça, Falamos de encontros e há, parece-nos, um
Ihjãc vai então ao encontro de outro estranho código sensível fundamental que os permeia. Os
mundo, aldeia de uma gente ainda mais perigosa: Krahô pensam o mundo e conformam seu modo
a cidade. Aqui, as ameaças, ao invés de se apazi- de vida diário e imemorial por meio de vários
guarem, se intensificam ainda mais: ao mesmo dualismos. Um deles se articula em torno dos
tempo ensurdecedora e ensurdecida, sedutora elementos Fogo e Água e de suas ressonâncias
e monstruosamente povoada por cavalos, cami- cosmológicas, ecológicas, rituais e compor-
nhões e mercadorias, a cidade urge, impaciente tamentais: a seca e a chuva, o dia e a noite, o
e acelerada pelo tempo dos relógios. E enquanto plantio e a colheita, a escassez e a abundância,
a Arara continua a se lembrar de Ihjãc e a dese- a coragem e o medo, a alegria e a tristeza, a
já-lo para si, longe de seus parentes ele parece vida e a morte. Não por acaso, no filme de João
novamente se esquecer do pedido de seu pai. e Renée – rodado em película e quase sempre
Chuva... se desenvolve, assim, entre espaços- durante o interstício fino entre luz e sombra
-tempo de diferentes mundos e sujeitos, relacio- que o amanhecer e o entardecer no Cerrado
nados por vetores de lembrança e esquecimento oferecem – estes elementos também abundam,
ensaios sessões especiais 217

sendo fundamentais para a textura de suas que alteridades estão tentando seduzir seu eu,
imagens e para a construção da trama. o que se reflete no seu próprio filho, tendo
O filme se inicia no auge da seca, quando as em vista a consubstancialidade corpórea que,
queimadas atingem o Cerrado. O fogo, quando para o pensamento krahô, existe entre eles.
criminoso e descontrolado, tem enorme poder Esta cena ecoará nos equívocos que marcam o
destrutivo, mas quando feito à moda indígena (des)encontro de Ihjãc com o sistema de
e controlado por seus saberes, também possui saúde na cidade. Ali, ele tenta explicar aos não-
grande poder regenerador e criativo: possibilita indígenas que não se sente “quente por fora não,
a abertura das roças, a fertilização da terra e a é quente por dentro”; entretanto, é visto como
recriação contínua do Cerrado. Temos assim a um “hipocondríaco”, cuja disfunção de ordem
chama sobre a água como indício da presença puramente psíquica o leva a nutrir certa obsessão
sobrenatural do pai; os tiros com armas de fogo pela doença e pela morte. Ihjãc sente, contudo,
na placa da aldeia como indício da presença que seu mal-estar é provocado pela intencionali-
ameaçadora dos não indígenas; as crianças brin- dade de um outro ser e que sua cura depende de
cando de noite com labaredas como indício da um ajuste cosmopolítico de suas relações com
presença dos mecarõ; a tocha que aparece a estas alteridades, como o alertou o velho wajaka.
Ihjãc em sonho e que desencadeia seu desejo Esta espécie de extroversão da subjetivi-
de retornar à aldeia para realizar a festa de dade do personagem é, vale notar, uma genuína
seu pai; as chamas queimando as chapadas... colaboração dos índios e dos atores Krahô à
Como as cachoeiras do Cerrado, o filme também maneira como o filme anima seus personagens
abunda em água: o barulho da chuva chegando e conta sua história. Uma das características
e anunciando a partida das almas dos mortos; a dos mitos ameríndios é que, quase sempre, há
camisa encharcada de Ihjãc pela primeira chuva poucas descrições acerca da subjetividade de
torrencial, como expressão de seu cansaço com seus heróis, como se as relações “internas” que
a vida citadina; as crianças brincando de dia na estes mantêm consigo mesmos pouco interes-
chuva como manifestação da alegria dos vivos sasse a seus narradores. Antes (ou mais) do que
que prevalece com o fim do luto; a resiliência isso, nas narrativas indígenas a ênfase costuma
das plantas que fazem rebrotar a paisagem verde recair nas relações “externas” destes com o
após a estiagem... mundo, estas sim descritas em grande detalhe
Fogo e água também entram na compo- e minúcia. As mudanças de posição do herói
sição de cenas fundamentais para a expressão perante alteridades humanas e não-humanas
da “psicologia” de Ihjãc e do aprofundamento costuma, assim, constituir o motor das narrativas
de sua relação com as alteridades perigosas que e é justamente isso que Chuva... põe em cena. O
passam a perturbá-lo. Retomamos, aqui, duas sofrimento do jovem Ihjãc perante a morte de seu
cenas principais para um breve comentário. pai não é uma questão apenas subjetiva e pessoal
Ao final da conversa sobre o misterioso que se resolveria num processo individual de
choro de Tepto e sobre a necessidade de se superação do luto, mas sim um problema cole-
buscar a ajuda de um wajaka, o barulho do tivo, que abrange suas relações com o espírito
crepitar das chamas da fogueira ganha inten- de seu pai, com parentes e não parentes, com
sidade sonora, como se queimassem Ihjãc por animais e outras alteridades não-humanas. É
dentro. Com olhar imóvel, ele começa a suspeitar uma questão objetiva, portanto, um problema
218

dele com o mundo e que o implica num processo Sob o sereno


sobre o qual ele não tem muito controle e que Sob o sereno
ocorre, em grande medida, à sua revelia. caça Quati sou
Essa característica é sugerida com força Sob o sereno
pouco mais adiante, quando Ihjãc observa seu Sob o sereno
reflexo na água, cena que também nos parece caça Quati sou
evocar a mitologia, mas não a mitologia ameríndia,
e sim a dos índios europeus, ou melhor, a mito- Deitados próximos ao fogo
logia de seus ancestrais greco-romanos: Narciso Sem fazer barulho
preso a seu reflexo, encantado por sua própria Escutem o forte canto dos antigos
beleza. Acontece, contudo, que Ihjãc não está Fiquem tranquilos
apaixonado por si mesmo, e sim observando Eu estou aqui
com suspeita a distorcida imagem-de-si que a no lugar dos nossos falecidos pais
textura aquosa do lago lhe devolve, reverberando com os belos cantos dos antigos
o grito de uma arara. Esta surge imediatamente e ainda que o Frio da noite me enfraqueça
na cena, atravessando o céu e irrompendo em sua de pé permaneço
imagem – novo indício eloquente de um Eu em Sobre a lenha
vias de se transformar em Outro. Assim, trata-se, Sobre a lenha
a bem dizer, de um anti-Narciso, de uma refração Labareda sou
do célebre arquétipo europeu pelas sensíveis
Sobre a lenha
lentes de João e Renée, mas, como dissemos,
Sobre a lenha
nos termos propostos pelo pensamento krahô.
Labareda sou
A sobreposição sutil de imagens visuais e
imagens sonoras que ocorre nestas duas cenas (Tradução do canto de Pootyt Krahô,
marca também várias outros momentos, exigindo cena final)
do espectador que não apenas veja, mas ouça
com atenção toda a trilha do filme – o que é
uma justa homenagem ao lugar central que som
e música têm na sociocosmologia krahô. Reali-
zada a festa e encerrado o luto, Ihjãc submerge
nas águas da cachoeira. Ressurge, então, a voz
de seu pai, desta vez entoando um lindo canto.
Não se trata, porém, de um fim – de Ihjãc ou do
filme. Ihjãc desdobra sua existência para além da
última cena – imagem deste mundo –, e, transfor-
mado em música, passamos a escutá-lo alhures,
cantando com seu pai, na aldeia dos mortos.
ensaios sessões especiais 219

Temporada
sobre filme de André Novais Oliveira

Kênia Freitas*

A
primeira vez em que Juliana (Grace Passô) movimento que se inicia nessa direção. Apesar
aparece em cena o seu olhar está voltado das rápidas olhadas pelo retrovisor, conferindo
para baixo, ombros caídos e o cabelo os amigos que ficaram a distância, Juliana segue,
liso escovado. Um corpo que se direciona para sem retorno. Uma gargalhada aberta se insinua,
o chão, para uma presença que precisa se anular, pela traquinagem com os companheiros, e logo
desaparecer. Nesse momento, ela entrega os se fixa em um sorriso discreto que acompanha
documentos necessários para o início do trabalho o olhar fixo para o horizonte.
como agente de fiscalização sanitária (focada no Entre as duas cenas, podemos vislumbrar
combate à dengue). O emprego é novo, a cidade na temporada que intitula o filme (e o preenche)
é nova e tudo é desconforto nessa configuração. um hiato de estados de espírito, de expressões
A câmera de André Novais Oliveira enquadra a corporais, enfim da presença de Juliana no
personagem obliquamente, de modo que Juliana mundo. Esse hiato é interligado pela matéria
evita não só o contato visual com a nova chefe e que compõe a narrativa do filme: a vida em suas
os colegas de trabalho, mas também qualquer formas mais singelas. A vida nos filmes de André
contato mais direto com o espectador. Novais Oliveira é não apenas a sua matéria, o
Na última cena de Temporada (André Novais elemento mínimo que liga os planos e faz mover a
Oliveira, 2018), Juliana está sentada ao volante história, mas uma aposta quase espiritual, trans-
e tenta com sucesso fazer o carro com defeito cendente, na sua potencialidade como cinema
pegar, enquanto os amigos empurram o veículo. de narrativas mínimas e íntimas.
Os cabelos agora crespos apontam para os lados e Assim, são os fragmentos do cotidiano
para cima. O enquadramento não é mais oblíquo, que transcorrem banalmente que nos guiam na
mas de perfil - o que possibilita observar o seu transformação de Juliana, adaptando-se ao novo
olhar e expressões faciais com proximidade. Os emprego, nova casa, novos amigos, ao término
seus olhos conferem rapidamente as marchas, os do casamento. Esse cotidiano vaza no filme como
pedais e o volante, mas concentram-se confiantes ações e gestos concretos: a transição capilar
no horizonte: na estrada livre pela frente e no da protagonista negra é uma das marcas dessa

*Pós-doutoranda (CAPES/PNPD) do programa de pós-graduação em Comunicação da UNESP. Doutora em


Comunicação e Cultura, pela UFRJ. Mestre em Multimeios, pela Unicamp. Formada em Comunicação Social/
Jornalismo, na UFES. Realizou a curadoria das mostras “Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora
intergaláctica” (2015/Caixa Belas Artes/SP), “A Magia da Mulher Negra” (2017/Sesc Belenzinho/SP) e “Diretoras Negras
no Cinema Brasileiro” (2017/Caixa Cultural/DF e RJ; 2018/Sesc Palladium/MG). Escreve críticas cinematográficas
para o site Multiplot! e integra o Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
220

materialidade de transformação do dia a dia.


Mas também vaza como afetos imateriais, mas
substanciais nas imagens: no posicionamento
da câmera, nas distâncias e aproximações que
negociam proximidade e liberdade à protago-
nista. Em uma ética spinozista, o cinema de André
Novais Oliveira não separa corpo e espírito nestes
encontros de amizades, amores, amabilidade
entre desconhecidos - e do filme, e sobretudo
de sua protagonista, com os espectadores.
Assim, em Temporada esse paralelismo
de corpo e espírito mostra-se sobretudo na
relação de cumplicidade construída entre a
direção de André Novais Oliveira e a atuação
de Grace Passô, como Juliana. Essa cumplicidade
pode ser entendida a partir de uma das últimas
sequências do filme, na qual Juliana conta sobre
um período da infância em que passou quase
três anos sem falar. A mudez veio sem nenhum
problema físico ou psicológico diagnosticável, e
foi embora motivada pelo amor de Juliana por
uma vizinha mais velha, que sempre acreditou na
volta da fala da menina. No subtexto, a relação
desde a infância de Juliana com um existir no
mundo de temporalidade e reações próprias, fora
de uma expectativa quantificável, mas certeira.
Assim, na certeza e aposta de uma encenação de
ritmo e modulações próprias, a câmera de Novais
entrega-se à Passô, a sua temporalidade própria,
aos gestos sutis e as transformações gradativas
e permanentes da personagem.
Em tempos de ódio, impaciência e ranço
como grandes motivadores, a aposta na vida e nos
encontros positivos, sem alardes, sem gatilhos,
sem viradas, com cumplicidade e confiança no
cinema como arte narrativa é um gesto político
potente e necessário.
ensaios sessões especiais 221

Diante dos meus olhos


sobre filme de André Félix

Jair Tadeu da Fonseca*

O
filme de André Félix sobre a banda capi- artista famoso, quantos milhares e milhares
xaba Os Mamíferos já começa a fazer jus foram ignorados ou pouco reconhecidos? E, no
ao seu título com a imagem de olhares entanto, o primeiro não existiria sem os outros,
postados para um suposto palco musical. Tal pois todos fizeram parte de um esforço coletivo
cena, no sentido amplo da expressão, como cena para a criação de uma cena cultural muito ampla,
artístico-cultural, será a de Vitória, onde, nas no caso o rock brasileiro, que vai muito além de
décadas de 1960 e 1970 atuou, em diferentes alguns nomes exemplares.
formações, a banda, ou “conjunto”, como se Uma das muitas qualidades de Diante dos
dizia no Brasil daqueles tempos, com esse belo meus olhos está justamente em valorizar, com
e irônico nome. Não por acaso, em uma conversa a reunião fílmica d’Os Mamíferos (pois poucos
de botequim, um dos remanescentes do grupo deles são os que ainda estão juntos ou se
cita em primeiro lugar The Animals, banda britâ- encontram de fato no presente), as singulari-
nica que encarnaria o espírito, a “anima”, do dades, as histórias particulares de algumas das
rock’n’roll. figuras desse vasto quadro coletivo, tanto em
O filme poderia fazer (e de certo modo seu alcance nacional e internacional quanto nos
faz) parte da onda de importantes documentá- planos local (o da cidade de Vitória), e regional (o
rios sobre a música popular no Brasil aos quais do Espírito Santo), que não por acaso são funda-
temos assistido com prazer e sede de aprender, mentais para o filme. Outra de suas qualidades
mas é diferente por alguns motivos marcantes. é a de mesclar às histórias de vidas e reflexões
Primeiramente, por não se voltar para músicos dos personagens as paisagens da cidade, sejam
conhecidos e reconhecidos, em suas carreiras as das ruas sejam as naturais, sem que isso seja
de sucesso. Pelo contrário, apresenta-nos a apenas uma referência óbvia de localização, mas
história de um grupo quase desconhecido, e algo que se liga a essas vidas e reflexões através
pouco lembrado até em sua cidade de origem. da música, algo que nem sempre é devidamente
Com isso, em vez de “chover no molhado” da valorizado em filmes sobre... música. É de se
redundância, que caracteriza mesmo muitos dos lamentar que haja tanto desprezo pela música
bons filmes do gênero, nos revela algo da grande, em tantos documentários, que, por exemplo,
gigantesca, história invisível e subterrânea da cortam as canções pela metade, ou até antes. No
música pop-popular, não só no Brasil. Para cada caso em questão, acrescente-se que o material

*Professor-pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina e cancionista, ex-membro das bandas Sexo
Explícito, Divergência Socialista e O Último Número.
222

musical aí apresentado, trazido de arquivos que motorista que não respeita a faixa de pedestres
seriam praticamente inacessíveis de outro modo, em frente ao botequim (significativamente numa
é em grande parte inédito, pois a banda nunca sequência após outra em que se narra uma briga
gravou discos. Assim, um precioso acervo de no palco do Festival de Guarapari) e depois, já lá
qualidade do rock brasileiro pode ser preservado dentro, se apresenta como roqueiro aos demais
e divulgado. habitués, antes de citar os Animals. Posterior-
Entre as sequências em que vão e vêm mente, no mesmo local, mas para tomar café,
depoimentos dos remanescentes do grupo, há Brijó afirma: “Viver de música aqui? Ninguém!
muitos travellings de paisagens urbanas e natu- Melhor viver de bar. Entre a música e o bar, eu
rais que servem ora como “respiros”, ou pillow prefiro o bar”. Quando se vê o boteco do outro
shots, que suspendem a narrativa, principal- lado da rua, às vezes de dia, às vezes ao escurecer,
mente no início, ora como clipes das canções, enquanto passa gente, o trânsito flui, aumenta
sem que haja relações óbvias entre o que diz a ou diminui, é inevitável pensar que a vida passa,
letra e o que se vê. Por exemplo, num travelling mas a música continua, na vida e no fluxo fílmico.
noturno pelas ruas de Vitória, ouve-se na letra Noutra sequência, num restaurante de praia,
de uma música que “ninguém escuta”, o que onde um dos remanescentes da banda tem um
pode aludir num sentido mais amplo ao próprio restaurante, cujo nome significativo é Amizade,
raio de alcance de um trabalho artístico pouco dois parceiros postam-se frente a uma fogueira e
reconhecido, mesmo localmente. Ou, numa outro um deles (Afonso Abreu) compara a história d’Os
clipe-sequência, ouvimos que “eu vou lhe contar Mamíferos a um romance, para filosofar metafo-
o mundo, (...) mas daqui a duzentos anos, eu já ricamente sobre o passar do tempo, os conflitos
morri”, e nisso ressoa a importância da memória e a dispersão dos amigos, seu envelhecimento
de que trata o próprio filme. Aliás, é interes- e a morte de alguns deles, enquanto temos a
sante que ao menos três das canções referidas imagem escura e rubra das brasas ainda a arder
tragam nomes femininos: o hard rock que fala de na fogueira já quase extinta: “A gente se embre-
“Mônica, Verônica”, entre outras palavras propa- nhou no abstrato. Virou fantasma. Fantasma é
roxítonas; “Corina”, suingada como um samba bom, porque não bebe água, não gasta luz...”.
rock; e “Dita” (“Benedita”), embora haja poucas Mas enquanto alguns dos ex-membros da
personagens femininas em Diante dos meus olhos. banda aparentemente não se interessam mais por
Mesmo que eventualmente descubramos quem música, pelo menos como no passado, porque já
é quem, talvez fosse útil colocar algum tipo de buscaram outros caminhos, com o tempo, outros
legenda que identifique pelo menos os protago- procuram reativar parcerias, gravar canções
nistas da história, mesmo os mais recorrentes. novas ou antigas, inclusive com músicos de outra
Todos estes, mais ou menos, participam da geração, e continuar a criar algo, como vemos
narração do filme e aí podemos salientar, por em determinadas sequências do filme.
exemplo, Brijó, mais facilmente identificável até E entre os seus procedimentos o que talvez
por sua constância no boteco de esquina, em seja algo mais inusitado em Diante dos meus olhos
locações muito bem filmadas, tanto de dentro, é o que podemos chamar de pillow-sequência,
quanto nas mesas da calçada, ou, em planos próxima ao final, em que a interrupção do fluxo
gerais, do outro lado da rua. Em sua primeira narrativo, num longo respiro, traz à cena uma
participação no filme, ele surge em litígio com um montagem videográfica de clipes diversos do
ensaios sessões especiais 223

youtube, nos quais se salienta a manipulação


da cor (verde) em imagens de água, chuva, e de
interior de automóvel, mais alguns recortes como
os de drones, e uma experimentação com discos
de vinil, até que se volte às ruas de Vitória, antes
dos créditos finais, onde ouvimos, noutra canção
d’Os Mamíferos, que “no meio da paisagem (...)
corta essa, que eu não sou miragem”.
A respeito da cena cultural de Belo Hori-
zonte, dos anos 50 a 60, o crítico e cineasta
Maurício Gomes Leite escreveu sobre nossas
“pequenas ambições culturais”, no sentido de que,
mesmo em ambientes provincianos, nos quais os
horizontes parecem restritos e mesquinhos, há
um paradoxal espaço de grandeza, como o que
foi aberto pelos Mamíferos musicais de Vitória,
diante de nossos olhos e ouvidos.
ensaio extensão ufmg 225

Corpos sob o risco do real –


Circuito forumdoc.ufmg

Ana Lívia Rodrigues


João Ivo
Larissa Muniz
Lea Monteiro
Luís Oliveira
Marcos Alves
Pedro Antuña*

V
ivemos o fim de um projeto popular de que se propõe implementar. Assim, o Circuito1
construção democrática superado por propõe o risco do real, o constante conflito em
interesses privados. A narrativa que se que as populações marginalizadas se encontram,
estabelece nos nega o papel de agentes políticos, em oposição à hegemonia, ao Estado e ao privado.
bem como nossos direitos e nosso futuro. Não Um conflito que perpassa seus corpos e que os
se limitando a isso, procuram o emplacamento põe sob ataque.
subjetivo e simbólico, e também material: orga- É o corpo — político, subjetivo, humano —
nizam golpes, assassinam lideranças e promovem que ocupa esse lugar de iminência, de uma
genocídios. realidade que não atende (e nunca atendeu) às
Somos tomados por uma inquietação e uma exigências dos sujeitos esquecidos que decidem
impotência. Somos interrompidos, temos nossas reivindicar seus espaços. De corpos oprimidos
subjetividades disciplinadas, e nossa prática se tornam corpos ameaçadores, que desafiam a
podada. Nesse sentido a ascensão da direita e ordem ao se colocar na imagem e, consequen-
do conservadorismo é um golpe ao futuro. temente, decidir sobre como são vistos e como
Em todo esse processo, como ficam os percebem a si mesmos.
corpos que sempre estiveram à margem? Impos- Há ainda o outro risco do real, que atra-
sibilitados e roubados de seu futuro, constroem vessa e transforma o cinema, obrigando-o a
subjetividades e organizações em oposição ao enxergar esses corpos e deslocar a estrutura

*Idealizadores do Circuito forumdoc.ufmg 2018 - Corpos sob o risco do real, orientados por Cláudia Mesquita,
Paulo Maya e Ruben Caixeta.
1. O Circuito forumdoc.ufmg é uma iniciativa de bolsistas do programa de extensão forumdoc que, desde 2015,
constrói uma parceria com cineclubistas da universidade e moradores de ocupações e comunidades de Belo
Horizonte e região metropolitana. O objetivo deste projeto é organizar mostras temáticas itinerantes que articulem
tanto a comunidade acadêmica quanto o público fora da universidade, contribuindo para a formação audiovisual
e cidadã de ambos – buscando sempre um diálogo e debate entre as o público, realizadores e especialistas.
226

cinematográfica num gesto de alteridade. Esse em seu movimento atual, constroem narrativas
movimento de ultrapassar o cinema por meio por si mesmas.
do próprio cinema, resultante de realidades Nosso gesto curatorial caminhou nesse
urgentes que o cercam, permite que os corpos sentido, considerando os espaços urbanos que
falem intensamente com suas experiências pretendíamos ocupar. De nada adianta pensar
vividas, documentadas, encenadas ou recons- estruturas fílmicas, experimentações estéticas
truídas. Corpos que protagonizam a imagem e a e elaborações de mise-en-scène se antes não
alteram em suas vivências reais do mundo. pensarmos a possível potência dessas obras
Nos propomos a tratar não apenas de para os públicos do Circuito — normalmente,
corpos em cena, mas tratar em conjunto com pessoas dos próprios espaços onde as sessões se
aqueles com quem compartilhamos as imagens, deram (moradores da Ocupação Carolina Maria
para que surjam questões que nos afetem, nos de Jesus, funcionárias e gestantes do Hospital
mobilizem e nos transformem. Sofia Feldman, alunas do cursinho Transenem,
Esse “ver junto” proposto pelo circuito etc.). É difícil determinar se uma obra é ou
permite que, em comunhão com as imagens e não adequada para determinadas audiências,
com esses corpos, vejamos possibilidades, saídas, se ela será aceita ou rejeitada, confrontada ou
transformações. Que sejamos incumbidos de aplaudida. No entanto, é possível explorarmos
carga para entendermos nossas subjetividades os potenciais debates que podem surgir a partir
e o momento político, a fim de que vejamos desse cinema que, deslocado da caixa preta, seja
uma possibilidade, encontremos uma saída e em festivais, seja em salas comerciais, propõe
proponhamos uma transformação. É através do outras experiências, bem diferentes da espec-
cinema que esse diálogo se constrói – através tatorialidade em ambientes cinéfilos.
da orientação do outro e da reflexão conjunta Por isso, escolhemos uma série de filmes
pretendemos aprender: viver a impossibilidade pouco semelhantes entre si, os quais, com
e viver a resistência. suas propostas políticas, buscam alteridades e
tensionam o cinema - alguns mais, outros menos.
Curadoria Nesse movimento, procuramos entender as
Todas essas questões nos invadiam ao pensar o imagens que nos cercam e por quais razões elas
Circuito forumdoc 2018. Surgindo a partir de uma podem mobilizar ou repelir diferentes sujeitos
inquietação com a atual circunstância brasileira, que as experimentam. Procuramos, neste desvio
estagnada e apática, decidimos nos aproximar dos espaços “tradicionais” dos filmes, expor as
de filmes que abraçam os corpos — via de regra, fraturas entre quem faz e quem vê, quem propõe
à margem e subalternos — e estimulam suas a discussão e quem vive na pele suas implicações –
possibilidades de fala. Esses corpos, profun- ainda que a fronteira entre esses limites seja
damente ausentes na história do cinema como difusa e instável. São com esses corpos sob o
autores e construtores do próprio discurso, estão risco do real que temos uma chance de recon-
elaborando suas vivências e, com isso, afirmando figurar os Cinemas, tornando-os mais abran-
seus direitos de existir. O cinema, nesse sentido, gentes e mais sensíveis às imagens que tocam,
envolve o político: dar a ver presenças que histo- machucam, sensibilizam e transformam.
ricamente foram faladas por e raramente com, e
ensaio extensão ufmg 227

Sessão de abertura – Abertura, foi possível perceber atmosferas bem


Filmes de rua, A Gis e Calma distinguíveis. Calma, com seu prêmio de melhor
Na Ocupação Carolina Maria de Jesus, nos curta-metragem pelo Júri da Crítica na Mostra
reunimos para pensar o cinema e suas possibi- Foco, que compõe a rica programação da Mostra
lidades de acolher alteridades em uma estrutura Tiradentes em 2018, foi recebido de maneira
que emana resistência — da entrada do prédio, dolorosa. O tempo se arrastou, as pessoas se
controlada para garantir a segurança dos mora- inquietaram e, mesmo sendo um filme sobre
dores, às diversas bandeiras que marcam a ocupação numa ocupação, representou pouquís-
ocupação como um espaço de disputa política. simo aquela realidade. Sua composição artifi-
Fomos recebidos por uma dúzia de crianças cial incomodou mais que tocou; suas possíveis
que brincavam animadas pelos corredores, com significações flutuaram na sala e não pousaram
mochila nas costas e energia acumulada depois em lugar algum; seus quadros controlados e
de um longo dia de aula, talvez. Mais tarde, as sua montagem vagarosa repercutiram somente
mesmas crianças aprendiam capoeira: os sons vazios. A Gis, por outro lado, foi potente em
da música e da luta competiram com a trilha sua sensível construção: um filme-denúncia ou
sonora dos filmes, compondo uma sessão expres- uma obra-homenagem, na qual sua personagem
sivamente permeada pelo extra-campo da sala respira em cada quadro, como uma lembrança
de projeção. Num espaço carregado de lutas das opressões assassinas que a circundaram
e histórias, nada mais justo que uma exibição e de uma resistência manifestada tanto pelas
vulnerável às imprevisibilidades do real - cinema consequências de sua morte quanto pela própria
nenhum pode ganhar disso. criação do filme.
Filmes de rua, A Gis e Calma iniciaram o Foi, no entanto, Filmes de Rua que estreou
circuito de sessões urbanas. Os filmes abran- o circuito de modo mais intenso, sendo um
geram diferentes realidades, por meio de estra- filme que carrega em sua produção e em sua
tégias formais bem distintas: no primeiro, uma forma uma realidade incompreensível para a
câmera na mão inquieta e instável dá a ver, final- maioria do público da sessão. Um soco na cara,
mente, a perspectiva de moradores de rua — o no estômago e no olhar. Um pequeno pedaço
olhar é deles e não sobre eles; no segundo, um de uma situação brasileira cruel e absurda: a
filme-homenagem ensaístico denuncia o precon- realidade das ruas. Com alguns minutos de filme,
ceito assassino que extingue qualquer possibili- os meninos que encenam e documentam seus
dade de vida para o corpo desprezado de uma cotidianos escancaram a hipocrisia e o peso
travesti; no terceiro, com linguagem experimental, moral que cerca a classe média brasileira. Afinal,
a apatia domina o ambiente de uma ocupação e as mesmas pessoas que aplaudem os meninos
os sons externos que a invadem refletem a reali- que exibiram seu filme em festivais de cinema,
dade dura de um espaço ameaçado. Cada filme evitam, no dia-a-dia, moradores de rua como
ecoou de uma maneira particular, influenciada, se fossem insetos indesejados. Outra questão
em alguma medida, pelo ambiente de projeção. significativa é como essas pessoas se reconhe-
Quais filmes funcionam em quais espaços? É ceram na tela e, durante a sessão, comentaram
possível falar em “funcionamento” no cinema? as aparições de amigos ou gravações de determi-
Não temos respostas para essas questões nadas cenas, com risos, zoações e exclamações
mas, certamente, no contexto da Sessão de animadas. Novamente, houve um deslocamento:
228

se em ambientes cinéfilos um sussurro é mal consequentemente, de seus filhos, que dispõem,


recebido e logo rechaçado, ali, na Carolina Maria na grande maioria das vezes, de ambientes inós-
de Jesus, ninguém tinha o direito — ou sequer pitos nos primeiros meses de vida, próximos da
queria — calar a voz dessas pessoas que, talvez mãe, quando não se encontram em casos de
pela primeira vez, se viam numa imagem. recorrência a abrigos ou adoção.
Lírios não nascem da lei veio como um soco
Sessão Sofia Feldman – no estômago. Acostumados a trazer aos nossos
Lírios não nascem da lei discursos lapsos confabulados de realidade — e a
Na concepção dessa mostra, a oportunidade de desigualdade que a define —, somos tomados de
construir uma sessão com a equipe do Hospital surpresa pela vivência de mulheres que, dentre
Sofia Feldman parecia apenas uma possibilidade outras opressões, têm seus partos e gestações
distante e irreal. Levados pela urgência contra a mediante um sistema prisional que não as vê, que
precarização dessa instituição, conjuntamente as negligencia. Negligência. Palavra que cerceia
com a possibilidade de diálogo com o próspero todas as pautas relacionadas a esse tema. Não
movimento articulado em sua defesa, saímos a somente do sistema, mas de sua família, das
procura de conexões, pessoas com quem pode- pessoas de seu convívio, do meio social. A mãe
ríamos nos articular. O hospital, além de refe- presa não é vista, não é lembrada.
rência mundial em parto humanizado, é também Na sala da sessão, os olhos vidrados de reco-
acolhedor de mulheres em cárcere. A rigidez e nhecimento e empatia de pessoas que entendem
frieza que se espera de uma instituição de saúde no seu âmago todas as faces do ser mãe. Vez ou
não se faz presente. Talvez pela própria negli- outra, gemidos agraciados e em coro, quando na
gência estatal, as servidoras criaram espaços de tela aparece uma criança. Todas parecem esperar
afetos e possibilidades, o que representava um ansiosamente pelo seu momento do encontro, e
contraste com a instituição de controle máximo posso fazer uma aposta de que, nas cenas em
do Estado, o cárcere. que se mostra detalhadamente o cotidiano do
Quadrado de paredes imóveis, intactas, que cárcere com uma criança, elas se imaginam neste
nada deixam escapar. A certeza da ‘entrega’ — outro lugar e seus corpos estremecem.
palavra que gera calafrios — e a impotência Fabiana Leite e sua equipe tratam com
perante poderes outros que decidirão o futuro muita delicadeza e sensibilidade as história de
dos envolvidos. Choro, medo, tristeza, revolta, Dayane, Ana Carolina, Liliane e Marcela durante
despedida. O risco da realidade do cárcere é certo espaço de tempo. A diretora estava
ainda mais urgente em se tratando de materni- presente na sessão e, junto com a equipe do
dade. A ótica colonial e excludente em que se hospital, com gestantes que estavam em aten-
baseiam as leis e condutas de coerção arrasta dimento e convidadas referenciais no assunto,
quase sempre os mesmos corpos para esse levantou-se um debate sobre toda a problemá-
espaço: jovens, negras, solteiras, de baixa renda tica que envolvia o filme: corpos diversamente
e escolaridade (mais de 65% das mulheres em oprimidos por serem femininos, em situação
privação de liberdade se encontram nesse perfil, de cárcere, de baixa classe social e, sobretudo,
precisamente – dados do Infopen/2014). A vida corpos que geram corpos que via de regra serão,
não vista das mulheres em situação de apri- também, oprimidos. O debate foi muito afetivo
sionamento é uma afronta ao direito destas e, em todas as falas, dispondo de relatos pessoais,
ensaio extensão ufmg 229

lágrimas e bastante indignação perante as atro- Brasil. História essa que, como muitos capítulos
cidades exibidas. das lutas populares, pouco conhecemos, seja
O mais simbólico, triste e representativo foi, pela inaptidão na construção de narrativas sobre
sobretudo, sair da sala da sessão e ver uma mãe essas lutas, ou pelo apagamento ativo dessas
em privação de liberdade ser colocada dentro pela narrativa hegemônica.
da ambulância, algemada, para voltar para sua O longa de Carlos Pronzato entrevista
cela, evidenciando tudo o que tínhamos acabado diversos estudiosos e militantes anarquistas para
de ver. tentar traçar um grande entendimento sobre o
que foi a greve geral de 1917, pincelando seus prin-
Sessão II Feira do livro cipais temas. No debate em meio aquela poeira,
anarquista – 1917, a greve geral muitos participaram contribuindo e trazendo
Pela aproximação de alguns dos nossos membros vivências da resistência e da luta política que
com os organizadores da II Feira do Livro Anar- encaram no dia a dia, talvez pelo filme ter gerado
quista em BH, fomos convidados a compor um ânimo de ver anarquistas brasileiros retra-
sua programação com uma sessão do Circuito tando um pedaço importante de sua história
forumdoc.ufmg. O filme escolhido foi 1917, a greve naquele espaço e naquele evento em específico.
geral, de Carlos Pronzato, que participou da feira
e após a sessão compôs a nossa conversa. A feira Sessão Transenem –
e a sessão aconteceram no Espaço Comum Luiz Meu corpo é político e
Estrela, espaço de luta e resistência. Estamos todos aqui
A sessão tinha sido marcada para 12:30, Com a ideia inicial de exibir Meu corpo é político
assim começamos a chegar entre 10:00 e 11:00 e Estamos todos aqui, decidimos exibir e divulgar
para montar um local para exibição dentro do Lembro mais dos corvos. Mas, por coincidência,
casarão. Local muito iluminado e empoeirado no dia da exibição, alunos e professores do
para uma sessão de cinema. Entre tosses, aler- Transenem nos pediram que passássemos Meu
gias e a poeira subindo, junto dos organizadores corpo é político e assim o fizemos. Ao fim, após
da feira, aos poucos fomos criando um espaço sentirmos que precisávamos de um comparativo
de exibição. Ecos de marteladas eram escu- para incrementar o debate, acabamos exibindo
tados enquanto colocávamos a tela na parede também Estamos todos aqui.
e trabalhos em conjunto eram executados para Com as espectadoras e espectadores
conseguir tapar as janelas e buracos por onde reagindo aos estímulos dos filmes, a sessão do
chegava aquele sol de meio dia. Transenem criou uma relação em que nós respon-
Por fim conseguimos deixar tudo pronto ao díamos ao fluxo de imagens que nos eram apre-
horário da sessão: cadeiras enfileiradas, panos no sentadas. Os personagens ganhavam contornos
chão para as pessoas se sentarem e a luz do sol que eram comentados, seja de forma cômica,
filtrada ao máximo para não atrapalhar a sessão crítica ou de admiração.
e incomodar os espectadores. O debate se deu, em sua maior parte, no
A relevância do filme se deu tanto pelo que tange à representação LGBT no cinema, e
ineditismo da sessão, quanto por seu tema: recu- abriu margem para se pensar o que significa o
perar a história das trabalhadoras e trabalha- fazer cinematográfico contemporâneo e como
dores que organizaram a primeira greve geral no se dá a representação do outro e a necessidade
230

de filmes que sejam eles mesmos criados por À luz dos filmes Ara Pyau – A Primavera
autoras e autores LGBT. Guarani e Fantasia de Índio, procuramos esta-
Meu corpo é político criou algumas contro- belecer diálogos sobre a luta de indígenas em
vérsias. Para uma parte das pessoas presentes, ambiente urbano. Ambos tangenciam duas
tratava-se de um filme muito didático, que cruciais questões levantadas por atores polí-
representa apenas histórias de sucesso dentro ticos indígenas da contemporaneidade: a luta
da comunidade LGBT, algo que viria a servir a um pela terra e pela possibilidade da vivência tradi-
público cisgênero e desinformado; para outras, cional. Considerando essas como necessaria-
uma quebra de estereótipos, não associando mente interdependentes, somos normalmente
transexualidade e questões LGBT apenas a expostos a lutas indígenas em retomadas no
mazelas sociais. Estamos todos aqui foi entendido campo, enquanto o debate propriamente urbano
como mais potente e mais político por traçar uma é comumente preterido.
série de intersecções entre gênero, raça e classe, Em nossa concepção, a vivência tradicional
apontando para populações à margem, tendo na cidade é algo que se apresenta como dois
como protagonista uma travesti, negra e pobre significados quase opostos: a tradicionalidade,
em um constante embate contra o capitalismo algo que inevitavelmente se refere ao passado,
pelo direito a moradia e a uma vida digna. ao tempo intangível, a concepções hereditárias
Fomos provocados por termos esco- e ao campo. A cidade, o ambiente em que se
lhido exibir filmes sobre questões trans em produz o discurso hegemônico, que produz a
um cursinho popular para pessoas trans. Essas regra sobre o tempo, o ambiente do futuro, da
questões já eram muito discutidas e muito produção e da exclusão.
presentes naquele contexto, o que fez com que Através dos filmes, percebemos que não
houvesse um apelo para que exibíssemos, por poderíamos estar mais errados em manter essa
exemplo, filmes sobre a questão indígena, para aparente contradição. A luta dos Guarani no
que houvesse uma conversa sobre realidades Pico do Jaraguá se dá enquanto uma luta por
outras e sobre como operam as estruturas de uma tradicionalidade urbana. A cena de um ato
poder com relação a outros grupos, expandindo pela regulamentação da terra em plena Avenida
assim o escopo de análise sobre as estruturas de Paulista é emblemática para entendermos isso.
poder sob as quais estamos submetidos. Estão presentes faixas com palavras de ordem e
um microfone, usuais em manifestações de movi-
Sessão Indígenas na Cidade – mentos sociais, mas também realizam práticas
Ara Pyau e Fantasia de Índio culturais, jogos e rituais, a fim de apresentar sua
15 de Julho à noite, a Faculdade de Filosofia e identidade enquanto política, numa mise-en-s-
Ciências Humanas da UFMG já esvaziada, como é cene urbana, moderna.
de costume acontecer às sextas. Ávelin Buniacá-
-Kambiwa, nossa convidada, parece realizada ao Sessão de encerramento
ver pouco mais de 10 pessoas na sessão. “Quando O sábado eclodiu na avenida Bias Fortes. As
se trata da luta indígena, ainda mais na cidade, preparações, que começaram cedo, foram se
são poucos os interessados, ainda menos os que embalando com o ritmo da cidade; o ambiente
fortalecem”. Agradece a presença de todos, ao da Kasa Invisível, escolhido com precisão para a
iniciar o debate. ocasião, aspira à luta e vive constantemente sob
ensaio extensão ufmg 231

o risco do real, enquanto resistência anarquista discursiva ou de experiências entre os diversos


e artística. O circuito em si é caracterizado por sujeitos que coabitam essas exibições, mas a
um trabalho dinâmico e imediato, cerceado por potência delas se encontra justamente nas dife-
imprevisibilidades e necessitando de muito amor renças. Na possibilidade de afetação e escuta do
à causa para dar certo. Nessa sessão em especí- cinema, a alteridade se evidencia: seu discurso
fico caminhamos conjuntamente com o Coletivo se potencializa através da representação de sua
REDE e o Coletivo Galla, além dos integrantes da subjetividade política presente nos filmes.
Kasa Invisível, também constituídos de peças e
cenários ativos e resistentes, que somaram forças
e agregaram à sessão uma série de intervenções
artísticas e, por que não, políticas.
O filme tratava da luta de estudantes secun-
daristas e seu forte e impactante movimento
contra um governo que prospera em cortes
na educação. Conscientes da seriedade do
problema e na defesa de seu direito à escolari-
dade, os estudantes tomaram posse da escola
como uma forma de protesto e perduraram
firmemente durante todo o trâmite das nego-
ciações políticas. É um filme importante porque
retrata a forte articulação de sujeitos tão novos
politicamente, cuja vontade de um ensino justo
e de qualidade se canalizou para uma luta gigan-
tesca que abarcou o país inteiro, resultando em
muitos ganhos na educação e na promessa de
retorno, caso estes não sejam efetivados. A vigília
constante desses jovens é algo de se admirar e
a ser reproduzido.
A festa se consolida também como um
espaço fortemente político: foi pensada para e
por sujeitos que constroem e enfrentam cotidia-
namente a luta por sua existência, e que criaram
ali uma possibilidade de representação e excla-
mação de sua subjetividade.

Sobre a proposta
O assistir juntos, portanto, nos oferece uma alter-
nativa política, mas antes de tudo epistemoló-
gica. Através da experiência do filme podemos
trocar experiências e caminhos possíveis. Não
devemos, porém, considerar que existe paridade
233

Do silêncio à cura*
Dalton Paula

D
o universo de cores e dos mitos de Os Cavaleiros do Zodíaco surgiu
meu desejo, meu encanto pela pintura. Aos quatorze anos, eu copiava
esses desenhos de heróis usando papel-carbono e os coloria com lápis
de cor. Hoje percebo que a qualidade estética desse desenho animado (uma
mistura das mitologias grega e nórdica) foi minha porta de entrada para as artes.
Pouco tempo depois ingressei na Escola de Artes Visuais em Goiânia e
dei início aos meus estudos de pintura. Nas aulas, aos poucos foram surgindo
os traços do que atualmente fundamenta o meu trabalho artístico: o corpo.
O corpo negro, corpo silenciado pelo medo, pela insegurança, pela indi-
vidualidade e pela efemeridade. As referências nas quais busco esse corpo –
aliás, esses corpos negros – são os subúrbios, as congadas e os terreiros e ritos
das religiões de matriz africana.

São Benedito é Preto, Papai,


Eu também sou Preto, Mamãe,
Essa festa é de Preto, Papai,
Oh! Virgem do Rosário!

Esse trecho de uma música cantada no terno de Congo 13 de Maio da Vila


Mutirão, em Goiânia, confirma minha escolha por tais espacialidades negras, nas
quais os mitos são revividos, ressignificados; onde pessoas comuns se tornam
reis e rainhas de Congo e renovam sua fé na religiosidade afro-brasileira que
agrega santos católicos e divindades africanas, que contempla o sagrado em
música e dança, em corpo e movimento.
Nas reflexões que proponho com meu trabalho, o corpo é o elemento
central e é a partir desse corpo individual que busco atingir o coletivo.
Uso o silêncio para comunicar, para despertar o que me incomoda, para
repensar as imagens que aprisionam e abrir margens para reapresentar esses
corpos negros em outras histórias, em outras estruturas, capazes de reconhecer
o protagonismo de sujeitos que historicamente são silenciados.
Essas narrativas ainda precisam ser ditas, escritas, contadas, representadas.
Esse desafio me instiga a trabalhar e assumir (ou seria continuar?) essa missão
iniciada em tempos remotos que não alcanço na memória, empreendida por
aqueles e aquelas que vieram antes e abriram caminho...

*Originalmente publicado em: <https://daltonpaula.com>.


234

índice de diretores
index by director

Aiano Bemfica 40 Hans Herold 34 Ricardo de Moura 34


Alberto Alvares 48 Isabel Casimira Gasparino 33 Rogério Sganzerla 24
Alexandre Koberidze 72 Isaka Huni Kuin 39 Rubens Passaro 49
Aléxia Melo 33 Jean-Marie Straub 74 Safira Moreira 49
Amaranta Cesar 44 João Salaviza 77 Samuel Marotta 77
Ana Galizia 44 Jom Tob Azulay 24 Siã Huni Kuin 39
Ana Pi 45 José Cury 41 Silvana Moura 34
André Félix 78 José Sette 25 Tiago Mata Machado 79
André Novais Oliveira 79 Juana Elbein Santos 26 Tila Chitunda 45
Bárbara Wagner 48 Julien Mérienne 42 Tuna Espinheira 25
Ben Rivers 73 Júlio David Rodrigues 41 Ulisses Arthur 41
Ben Russell 73 Jumana Manna 74 Urânia Munzanzu 32
Benjamin de Burca 48 Júnia Torres 33 Victoria Alvares 40
Bernard Machado 47 Kazuhiro Soda 72 Vinicius Sassine 42
Bruno Vasconcelos 33 Larissa Figueiredo 32 Wladymir Lima 42
Caioz 43 Laura Huertas Millán 69 Zacharias Kunuk 73
Camila Bastos 40 Luís Henrique Leal 43 Zezinho Yube 39
Camila José Donoso 71 Luiz Saia 23
Cao Guimarães 50 Lula Carvalho 39
Carlos Brajsblat 27 Maoro Rocha Pitta 31
Cecilia da Fonte 46 María Cañas 70
Clement Cogitore 69 Maria Chatzi 42
Corneliu Porumboiu 70 Mariana Paschoal 42
Cristiano Araújo 40 Marina Pontes 47
Cristina Amaral 13, 29 Marina Sandim 47
Dieudo Hamadi 71 Maureen Bisilliat 23
Eduardo Coutinho 30 Natasha Neri 39
Emilio Le Roux 34 Nelson Pereira dos Santos 28
Ewerton Belico 77 Pedro Aspahan 78
Fabiana Assis 46 Pedro Maia de Brito 40
Florence Defawes 47 Quentin Delaroche 40
Gabriel Martins 31 Rafael Urban 32
Gilsonei Rodrigues Ralph Antunes 47
(Mestre Ney) 30 Raquel Gerber 13, 26, 28, 29
Glauber Rocha 27 Renato Barbieri 29
Gregorio Gananian 43 Renée Nader Messora 77
235

índice de filmes
index by film

A Última das Minas 32 Inaudito 43 Universo Preto Paralelo 49


Abá 13, 29 Inconfissões 44 Walrus Hunting 73
Alápini: a Herança Ancestral Jubiabá 28 Wild Relatives 74
de Mestre Didi Asipá 34 Kinshcasa Makambo 71 Yaô - Iniciação de Filho
Atlântico Negro - na Rota Let The Summer Never de Santo 23
dos Orixás 29 Come Again 72 Ylê Xoroquê 26
Auto de Resistência 39 Maré 44
Bahia de Todos os Exus 25 Merê 32
Baixo Centro 77 Minatomachi 72
Barravento 27 Noirblue - Deslocamentos
Bimi, Shu Ikaya 39 de uma Dança 45
Bloqueio 40 Nome de Batismo - Alice 45
Braguino 69 Nunes Pereira - A Casa das
Casa Roshell 71 Minas 25
Chuva é Cantoria na Aldeia Orí 13, 28
dos Mortos 77 Orixá Ninú Ilê 26
Conte Isso Àqueles que Dizem Orixás - Uma Tradição Viva 31
que Fomos Derrotados 40 Os Sonâmbulos 79
CorpoStyleDanceMachine 41 Parque Oeste 46
Da Vida das Abelhas 78 Parquelândia 46
Deekeni - os Olhos de Wiyu 41 Praça do Peixe 47
Diante dos Meus Olhos 78 Rapsódia Para um
Dos Tambores do Tombenci Homem Negro 31
aos Tambores do Dilazenze 30 Ritos Populares, Umbanda
Egungun 27 no Brasil 24
El Laberinto 69 Sair do Armário 47
Encontro com Iemanjá Para Santo Forte 30
Além dos Olhos 34 Tambor de Mina, Tambor de
Escape 42 Crioulo e Carimbó 23
Espera 50 Tekoa Ha’e Tetã 48
Expo Lio’92 70 Tem Quilombo na Cidade -
Exu Mangueira 24 Manzo Ngunzo Kaiango 33
Fotbal Infinit 70 Temporada 79
Furna dos Negros 42 Terremoto Santo 48
Galinhas no Porto 43 The Rare Event 73
Gens Du Lac 74 Travessia 49
236

organização | produção filmes de quintal projeto gráfico & diagramação


Junia Torres Ana C. Bahia
Carla Italiano
Layla Braz arte
Luisa Lanna A cura: Dalton Paula
Andreza Vieira
fotografia
Paulo Rezende
mostra/seminário ebó ejé: cinema brasileiro Daniela Paoliello
e afro-religiões
curadoria mostra gestão e assessoria jurídica
Ewerton Belico
Diversidade Consultoria
organização seminário Piancó & Gebrim Assessoria Jurídica
Junia Torres Diana Gebrim Costa
Roberto Romero
Cida Reis produção executiva assessoria
Pedro Leal
mostra contemporânea brasileira
curadoria/seleção site
Daniel Ribeiro Duarte
Gustavo Teodoro
Layla Braz
Mariana Nunes
Renata Otto
Caio Vaccaro
Tatiana Carvalho Costa
produção tradução
Layla Braz
Ana Carolina Antunes
Fernanda Regaldo
mostra contemporânea internacional
Frederico Sabino
curadoria/seleção Henrique Cosenza
Carla Italiano Julia Fagioli
Luisa Lanna Luisa Lanna
Luís Fernando Moura Luís Felipe Flores
produção Oswaldo Teixeira
Luisa Lanna Pedro Veras
Roberto Romero
catálogo Victor Guimarães
produção editorial e organização
Glaura Cardoso Vale logística
Junia Torres Andreza Vieira
Carla Italiano Carla Italiano
revisão Jéssica Dionísio
Glaura Cardoso Vale
Roberto Romero legendagem
Valéria de Paula Martins Gabriela Albuquerque
Isadora Barcelos

cabine de projeção
Julio Cruz
Marcela Santos
créditos forumdoc.bh.2018 237

programa de extensão forumdoc.ufmg agradecimentos


Dalton Paula, Antônio Bispo, CTAv, CCSP,
Ruben Caixeta de Queiroz Cinemateca Brasileira, Cinemateca do
Cláudia Mesquita MAM, Cultura Viva, Heitor Augusto, Janela
Paulo Maia Internacional de Cinema de Recife, Olhar de
Cinema de Curitiba, Indie Lisboa, Tiago Cardoso
bolsistas Bernardo, Kana Filmes, Marcos Cardoso, Silvana
Ana Lívia Rodrigues Pinto Moura, Amaranta Cesar, Cida Reis, Wellington
Luís Oliveira Cançado, Marcelo Vilarino, Rafael Barros, João
Marcos Afonso Alves Rocha Pontes, Juca Ferreira, Gabriel Portella, Gabriela
Barbosa, Leonardo Lessa, Milene Migliano, Julia
Bernstein, Helena Ignez, Pedro Rena, Regina
colaboração
Filmes, Adam George Fischler, Aaron Cutler,
João Ivo Rui Mendes, Maria Campaña, Rogério Brittes,
Lea Pinho Theo Duarte, Beth Formaggini, Olga Futemma,
Larissa Muniz Henrique Borela, Juliana Antunes, Daniel
Pedro Antuña Queiroz, Alessandra Brito, Marcos Martins,
Clara Flaksman, Helena Assunção, Stela Maris
VII colóquio cinema, estética e política da Costa, Fala Tambor, Bernardo RB, Fred
André Brasil Spada, Matheus Pereira, Fernanda Torres
César Guimarães Campos, Joana Oliveira, Carla Maia, Milene
Cláudia Mesquita Migliano, Bernard Machado, Paulo Maia, Arquivo
Eduardo de Jesus Nacional, Leandro Hunstock, festa Quem Tem
Pedro Aspahan Swing, Jefferson Gomes Ciriaco, as autoras e
Roberta Veiga autores que contribuíram generosamente com
a escrita de ensaios para este catálogo e aos
equipe de cobertura • colaboração realizadores e realizadoras que inscreveram
seus filmes para as Mostras Contemporâneas.
Projeto Pretança - UNA
Produtora Dígito Zero / Curso de Cinema e
Audiovisual - UNA

cine humberto mauro


gerente
Bruno Hilário
coordenador
Vitor Miranda
produção
Matheus Pereira
Julio Cruz
equipe técnica ISBN: 978-85-63837-16-5 (impresso)
Frames ISBN: 978-85-63837-15-8 (eletrônico)
Este catálogo foi composto com as fontes Aperçu
Mercídio Allvinho Scarpelli
e Tiempos Headline sobre Papel Pólen Soft 80g
suporte administrativo impressão: Imprensa Universitária da UFMG
Roseli Miranda
estagiária associação filmes de quintal
Josi Santos Avenida Brasil | 75/sala 06 | Santa Efigênia
CEP 30140-000 | Belo Horizonte-MG | Brasil
filmes@filmesdequintal.org.br
forumdoc.org.br
PATROCÍNIO

APOIO APOIO CULTURAL

ppgcom - programa de pós-graduação em comunicação social/ufmg


ppggan - programa de pós-graduação em antropologia social e arqueologia/ufmg

APOIO LOGÎSTICO

CO-REALIZAÇÃO

REALIZAÇÃO INCENTIVO

Projeto executado por meio da Lei


Estadual de Incentivo à Cultura de
Minas Gerais. CA 0258/001/2017

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