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CRÍTICA

m arxista
Walter Benjamin:

4ESENHAS
aviso de incêndio.
Uma leitura das
teses “Sobre o
conceito de História”
Michael Löwy
São Paulo, Boitempo, 2005, 160p.

PEDRO PAULO A. FUNARI*

Michael Löwy apresenta uma lei- tação original. Ao contrário do marxis-


tura original da obra do grande pensa- mo evolucionista vulgar, Benjamin não
dor alemão, a começar por sua caracte- concebe a revolução como um resulta-
rização do pensamento de Benjamin do natural e esperado, inevitável, como
como uma crítica moderna à moderni- resultado do progresso econômico e tec-
dade, mais do que uma abordagem nológico, nem mesmo como a resultante
moderna ou pós-moderna. A filosofia das contradições nas relações de produ-
da História de Benjamin apóia-se em ção. Ao contrário, introduz o conceito
três fontes diversas: o romantismo ale- de interrupção da evolução histórica que
mão, o messianismo judaico e o mar- leva à catástrofe, ao retomar o conceito
xismo. Não se trata de uma síntese de grego de “virar” (trephein) para “baixo”
perspectivas, mas de uma nova interpre- (kata), fazer ficar de ponta cabeça, le

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Departamento de História e Núcleo de Estudos Estratégicos, Universidade Estadual de
Campinas.

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bouleversement. Löwy explicita suas es- mentário dos séculos de lutas e sonhos
colhas, ao privilegiar a produção a par- de emancipação. Para ele, o conceito
tir de 1936, quando Benjamin volta-se mais importante do materialismo his-
para uma crítica marxista sui generis das tórico é a luta de classes, a luta entre
formas capitalistas de alienação. Será opressores e oprimidos. O Messias é a
nesse período que Benjamin irá classe proletária e o Anticristo, as clas-
dissociar-se, cada vez mais, das “ilusões ses dominantes, metáfora que lhe foi
do progresso”, formulando sua teoria da sugerida pelo teólogo protestante e so-
História. Löwy apresenta sua análise cialista revolucionário suíço Fritz Lieb.
como “talmúdica”, o que já estabelece Para Benjamin, o imperativo de
uma ligação direta com a tradição de escovar a História a contrapelo signifi-
comentário que havia, de uma forma ou ca ir contra a versão oficial da História,
de outra, influenciado, seja Marx, seja opondo-lhe a tradição dos oprimidos e,
Benjamin. Trata-se, pois, de uma grande consequentemente, a luta contra a cor-
“variação”, para usarmos um termo mu- rente. Os Arcos do Triunfo, como o
sical, em torno das teses sobre História. celebérrimo Arco de Tito (96 d.C.), ins-
Começa por afirmar que é preci- piraram a famosa frase das teses sobre
so situar o documento em seu contexto os documentos da cultura como docu-
histórico, no ápice do fascismo europeu mentos da barbárie, ao celebrarem a
e, ao consultar documento inédito do guerra e o massacre. As grandes obras
Arquivo Scholem, em Jerusalém, pôde de arte e civilização, como as pirâmides
constatar que o conteúdo do manuscri- citadas por Brecht, somente podem ser
to de Benjamin inspirou-se nas teses feitas à custa do sofrimento e da escra-
sobre o conceito de Justiça de Scholem. vidão dos oprimidos. A alta cultura não
Löwy não propõe a leitura “verdadeira” poderia existir sem o trabalho anônimo
das teses, mas uma interpretação. Deu- dos produtores diretos, dos excluídos.
se conta da dimensão universal das pro- A verdadeira História universal, funda-
posições, de sua importância para com- da na rememoração de todas as vítimas,
preender, “do ponto de vista dos venci- sem exceção, somente será possível na
dos”, não só a História das classes opri- futura sociedade sem classes. Nietzsche,
midas, como dos párias todos, das mu- citado em epígrafe por Benjamin, é to-
lheres aos judeus, dos ciganos aos índi- mado como advertência de que a
os e negros. O que distingue Benjamin historiografia deve servir ao presente
de Marx não é apenas a dimensão teo- “para favorecer o acontecimento de um
lógica, mas o papel reservado à reivin- tempo futuro”. A rememoração do pas-
dicação das vítimas da História, sado, dos mártires de todas as épocas,
propugnada por Benjamin, para quem serve à libertação que há de vir. As lutas
o marxismo não tem sentido se não for são mais inspiradas na memória viva e
também o herdeiro e executante testa- concreta dos ancestrais dominados do

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BRE O CONCEITO DE HISTÓRIA”
que naquela, ainda abstrata, das gera- dustrial, em sua face masculina, branca
ções futuras. A última classe subjugada, e nacional, Benjamin propõe um pro-
o proletariado, vê-se como herdeira de jeto revolucionário de ambição
vários milênios de lutas, de combates emancipadora universal, protagonizado
derrotados de escravos, servos, campone- pelas classes oprimidas como sujeitos da
ses e artesãos. A força acumulada dessas práxis transformadora.
lutas torna-se combustível para a classe As conseqüências da análise de
emancipadora do presente que poderá Michael Löwy são importantes para os
interromper a continuidade da opressão. rumos tanto dos movimentos sociais,
Em franca oposição ao evolucio- como da historiografia, no início do sé-
nismo da Segunda Internacional, as te- culo XXI. Por um lado, indica como as
ses ressaltam que não há progresso “au- dicotomias entre oprimidos e opresso-
tomático” e o suposto automatismo da res, tantas vezes consideradas superadas
História, se aceito, levaria à reprodução e sem sentido, mostram-se essenciais
da dominação. O revolucionário busca para entender a dinâmica das socieda-
inspiração e força na rememoração e des históricas. Em seguida, a crença no
escapa, dessa forma, ao canto de sereia progresso inexorável tem servido para
do futuro garantido e seguro. O mar- ocultar clivagens e obscurecer a diversi-
xismo messiânico, tão próximo da Teo- dade no seio mesmo dos oprimidos. Por
logia da Libertação, recusa as armadi- último, mas não menos relevante, a
lhas da “previsão científica” e valoriza a historiografia que se quer desvencilhar
oportunidade, kairós, em grego, do fim dos embates do presente, da História
da opressão, da emancipação. Os calen- como atividade que finge descobrir “ver-
dários são expressão de um tempo his- dades” defendidas pela autoridade de-
tórico, heterogêneo, carregado de me- corrente do poder, ainda quando se quer
mória e de atualidade, ao contrário do progressista, mostra-se reacionária, de-
tempo vazio da tirania do relógio sobre fensora do status quo. Não menos rele-
a vida dos trabalhadores. O conjunto vante, pois a historiografia não é, mes-
das culturas tradicionais, pré-capitalis- mo quando o quer ser, uma tarefa me-
tas guarda em seus calendários e festas ramente acadêmica, mas insere-se na
os vestígios da consciência histórica do construção do passado e, portanto, da
tempo. Ao contrário do que pretende o perspectiva de futuro. Se a Escola de
discurso tranqüilizador da doxa atual, Frankfurt, no geral, propugnou a liga-
da opinião generalizada, a catástrofe é ção umbilical entre a rememoração do
possível, até provável, a não ser que fa- passado e a ação que, em potência
çamos algo. Na contracorrente da ten- (dynamei), pode forjar um futuro de li-
dência dominante na esquerda, que tan- berdade, Walter Benjamin foi aquele
tas vezes reduziu o socialismo aos obje- que mais ousadamente propôs o cará-
tivos econômicos da classe operária in- ter messiânico e revolucionário da His-

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tória. Em tempos de Arcos do Triunfo
de um Tito farsesco, como Bush, da
exibição dos espólios da guerra no
Iraque, as advertências de Benjamin
parecem mais atuais do que nunca.

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