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João Carlos Cattelan

Alex Sandro de Araujo Carmo


[org.]

ANÁLISE DE DISCURSO:
ESTUDOS DE ESTADOS DE CORPORA

2014
TOLEDO - PARANÁ
© João Carlos Cattelan - Alex Sandro de Araujo Carmo [org.]

Coordenação Editorial
Osmar Antonio Conte
Organizadores
João Carlos Cattelan
Alex Sandro de Araujo Carmo
Projeto Gráfico
Alex Sandro de Araujo Carmo
Revisão
João Carlos Cattelan

Ficha Catalográfica: Mariana Senhorini Caron - CRB9-1462

A532 Análise do discurso: estudos de estados de corpora - / João Carlos Cattelan,


Alex Sandro de Araujo Carmo (Orgs.) – Toledo: Editora Fasul, 2014.

274 p.

1. Análise do discurso. 2. Polifonia. 3.Publicidade – textos. I. Cattelan, João


Carlos. II. Carmo, Alex Sandro de Araujo.

CDD 21.ed. 401.41

ISBN 978-85-89042-25-3

Direitos desta edição reservados à:


Fasul Ensino Superior Ltda
Av. Ministro Cirne Lima, 2565
CEP 85903-590 – Toledo – Paraná
Tel. (45) 3277-4000 - e-mail: fasul@fasul.edu.br

É proibida a reprodução parcial ou total desta obra,


sem autorização prévia do autor ou da editora.

Depósito Legal na Biblioteca Nacional


Divulgação Eletrônica – Brasil – 2014
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO [1]

João Carlos Cattelan

CAPÍTULO 1 [3]

RECORTES E APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DO


DISCURSO
Luciane Thomé Schröder

CAPÍTULO 2 [ 29 ]

A OPACIDADE DA LÍNGUA, DA HISTÓRIA E DO SUJEITO:


UMA REFLEXÃO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
Franciele Luzia de Oliveira Orsatto

CAPÍTULO 3 [ 42 ]

SOBRE O DISCURSO JORNALÍSTICO QUE RESSOA:


ESPAÇOS DE INSCRIÇÃO EM OUTRAS MATERIALIDADES
DISCURSIVAS
Alexandre da Silva Zanella

CAPÍTULO 4 [ 64 ]

COMENTÁRIOS DE LEITORES:
A VIOLÊNCIA NOTICIADA NA INTERNET
Luiz Carlos de Oliveira

CAPÍTULO 5 [ 86 ]

O DISCURSO PUBLICITÁRIO NOS ANÚNCIOS DE


OPERADORAS DE TELEFONES CELULARES
Paula Fabiane de Souza Queiroz
CAPÍTULO 6 [ 106 ]

DISCURSO, POLIFONIA E CRIATIVIDADE NO TEXTO


PUBLICITÁRIO
Alex Sandro de Araujo Carmo

CAPÍTULO 7 [ 127 ]

A AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR:


EFEITOS DE SENTIDO E POLISSEMIA
Nelci Janete dos Santos Nardelli

CAPÍTULO 8 [ 155 ]

ZONA:
O ENTREMEIO COMO LUGAR DE CONTRADIÇÃO
Mirielly Ferraça

CAPÍTULO 9 [ 176 ]

BRASIL E BRASILEIROS EM PORTUGAL:


CONSTITUIÇÃO DE SUJEITOS E SENTIDOS
Alexandre Sebastião Ferrari Soares
Isabel Maria Ferin da Cunha

CAPÍTULO 10 [ 208 ]

QUANDO A ESMOLA É DEMAIS, O SANTO DESCONFIA?!


João Carlos Cattelan

CAPÍTULO 11 [ 239 ]

“CASCAVEL, QUEBRADA SOFRIDA”:


AS VOZES IDEOLÓGICAS NA MÚSICA DO GRUPO DE RAP “FACE
HUMANA DO GUETTO”
Silvana Trevizan

AUTORES [ 269 ]
APRESENTAÇÃO
João Carlos Cattelan

A apresentação de uma obra parece um momento oportuno o bastante


para poder fazer frente a algumas afirmações que se ouvem nos corredores
da universidade sobre determinadas disciplinas. Parece que, no mundo
acadêmico (como em outro qualquer, eu diria), campeia uma necessidade
de valorizar o terreno em que se pisa e ser “crítico” em relação ao espaço
em que o outro trabalha suas problemáticas de ensino, pesquisa e extensão.
Ainda que não fosse essa a motivação central, o senso comum, inclusive dos
que possuem alta titulação acadêmica, leva-os a fazer algumas afirmações que
parecem pouco embasadas. Vou me valer do espaço cedido para a atividade
de apresentar este livro para refletir brevemente sobre algumas.
Uma das afirmações que aparece bastante seguidamente sobre a
Análise de Discurso é que ela é uma disciplina hermética, estratosférica e
muito difícil. De modo geral, o efeito de sentido que a afirmação produz é
a de que, diferentemente de outras, ela seria muito difícil, complexa e fora
da realidade: pura abstração. E a resposta a esta crítica parece a mais fácil
de ser rebatida: não existe disciplina, mesmo as empíricas e de imediata
aplicação “visual”, têm um background teórico, um conjunto de conceitos,
uma metodologia de trabalho e um corpus de dados “privilegiado” sobre o
qual se aplicam. Neste terreno, não há uma régua que possa medir o maior ou
menor grau de hermetismo das disciplinas: elas são incomensuráveis.
A outra crítica, que vem em decorrência da primeira ou conjuntamente
com ela, é que a Análise de Discurso seria muito teórica, o que, em geral,
equivale a ser “sofisticada” demais do ponto de vista das suas elaborações
epistemológicas ou a ter qualquer aplicação prática: ela seria, assim,
meramente especulativa ou pura especulação teórica. E o que espanta os
críticos são as noções de formação social, formação ideológica, formação discursiva,
pré-construído, discurso transverso e, é claro, o calcanhar de Aquiles: assujeitamento.
Por um lado, eles seriam conceitos abstratos demais; por outro, não teriam
qualquer aplicação empírica, já que seriam noções puramente ideológicas e
não científicas. E, de novo, não é difícil atentar para o fato de que as outras
disciplinas não são diferentes: nelas, pululam conceitos como fonema, morfema,
sintagma, sentido, coesão, coerência (e tantos outros), cada um com seu grau de
dificuldade ou abstração que silencia traços idiossincráticos.
Outra crítica, ainda, é que a Análise de Discurso não é linguística e o
efeito de sentido pretendido é que o que recai sobre o terreno da Linguística
tem algum mérito; o que fica de fora, não deveria figurar na área das Letras.
Neste caso, é preciso admitir de pronto: ela não é linguística mesmo, pela
assunção de base de que não pretende descrever sistemas de língua e nem
se fechar num prisma de observação que apague aquilo que cerca o uso da
linguagem. Os ingredientes contextuais são elementos inapagáveis de quem
se coloca sob a ótica discursiva. E, aproveitando a deixa, é preciso frisar outro
ponto: a Análise de Discurso não é linguística, como às vezes, se ouve. Ela não
é um nível a mais, sobreposto à Semântica. Mas isto não significa, é preciso
enfatizar, que ela ignore a língua: aliás, ela faz parte do seu tripé.
E, por fim, há quem diga que a Análise de Discurso não serve para o
ensino de língua, pois não tem nenhuma aplicabilidade prática imediata. Se a
crítica se dá no sentido de afirmar que ela não deve ser conteúdo de ensino
nos níveis fundamental e médio, nada a observar. Isto deveria acontecer com
a maioria dos conceitos de outras disciplinas também e que, no entanto, já são
conteúdos consagrados. Mas que não tenha aplicação prática ou contribuições
a dar para o ensino de línguas, eis uma afirmação que pega pela singeleza de
sua defesa e pelo absoluto desconhecimento do que pode e do que faz a
Análise do Discurso. Se existe algo que a disciplina faz (com rigor e com
vigor) é “abrir os olhos” opacos do leitor para a produção dos efeitos de
sentido que circulam socialmente. Eu me atreveria a dizer: até mais do que as
disciplinas que são vistas como teorias canônicas da leitura. E, se o olhar do
leitor é preparado para ler, também o é para escrever e para refletir sobre o
que escreve e diz.
Mas, ao invés de fazer a defesa da disciplina, o que pode facilmente
fazer migrar para o terreno panfletário e prestar um desserviço para a Análise
do Discurso, que já leva pedras além do merecido (na maior parte das vezes,
injustamente), cumpre chamar a atenção para o fato de que este livro, ponto
a ponto, responde de forma contundente às críticas listadas acima e mostra
com uma limpidez inatacável a sua não imputabilidade à disciplina: e não
porque responda e argumente contra elas, mas porque mostra com estudos e
pesquisas o quanto ela é frutífera e o quanto pode vir a ser um instrumento a
serviço da educação e da elucidação do mundo em que vivemos. Com exceção
do primeiro capítulo, que pode dar uma contribuição a mais para a diminuição
do “hermetismo” da disciplina, todos os demais são de aplicação a corpus de
dados e, portanto, da sua contribuição efetiva para a educação e para a leitura.

______ [ 2 ]
CAPÍTULO 1

RECORTES E
APONTAMENTOS
SOBRE A TEORIA
DO DISCURSO

Luciane Thomé Schröder

[é preciso aprender que]:


Ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja:
é preciso suportar o que venha a ser pensado,
é preciso ‘ousar pensar por si próprio’.
(PÊCHEUX, 1997a, p. 304 )
[ainda que se saiba: isso não é impossível].


Esse texto1 não é uma apresentação da Análise de Discurso de orientação
francesa; constitui-se, mais, numa vontade de agrupar, em poucas páginas,
um mapa (que se sabe incompleto) da teoria que tem por objeto de estudo e
reflexão o discurso. No espaço teórico da Análise de Discurso, entende-se, que,
no lugar de respostas que apontem para certezas, o que há são possibilidades
de análises por meio de uma prática de leitura, que, a cada encontro com seu
objeto, pode ser res-significada, ou seja, trata-se de um “procedimento que
demanda um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise”
(ORLANDI, 2001a, p. 67). Não há respostas a serem perseguidas que
antecedam o processo de análise, porque não há, em definitivo, perguntas guias.
Obreiros em andaimes suspensos: talvez seja essa a definição para o trabalho
dos que trilham os caminhos da Análise de Discurso.
Segui-los significa transitar, de modo contemplativo, pelo objeto em
análise. Corpus sempre em movimento, seja porque se encontra em condições
de produção não estabilizadas, seja porque o olhar do analista é afetado pelas
suas próprias condições de produção, as quais não podem ser negadas, nem
apagadas, devido à presença silenciosa daquilo que move a todos enquanto
sujeitos de uma prática discursiva: os indivíduos estão, em última instância,
sempre sujeitos às ideologias:

Na verdade, todo ‘ponto de vista’ é o ponto de vista de um sujeito; uma


ciência não poderia, pois, ser um ponto de vista sobre o real (um ‘modelo’
do real): uma ciência é o real sob a modalidade de sua necessidade-pensada,
de modo que o real de que tratam as ciências não é senão o real que produz o
concreto-figurado que se impõe ao sujeito na necessidade ‘cega’ da ideologia.
(PÊCHEUX, 1997a, p. 179).

Apesar dos entendimentos e desentendimentos, aceitação ou negação


que uma análise pode provocar, ao assumir uma posição teórica, o sujeito,
na posição-autor-analista, encontra-se numa batalha que pode gerar algum
______ [ 4 ]
resultado, isto é, pode romper com práticas discursivas dominantes. Não de
modo a querer instaurar um dado novo, mas assumir com Pêcheux (1997a, p.
294) uma vontade: “tomo partido pelo fogo de um trabalho crítico [desejando]
que, por essa via, algo novo venha a nascer – contra o fogo incinerador que
só produz fumaça”. A criticidade almejada por meio da teoria da análise de
discurso significa trilhar um percurso nada fácil ou tranquilo, pois “A teoria
é política. E a análise de discurso que se filia a M. Pêcheux ‘sabe’ disso”
(ORLANDI, 2001b, p.36). Por isso, a batalha; por isso, os embates aos quais
os analistas de discurso colocam-se à mercê.
Inicia-se, então, buscando-se conceituar o termo “discurso”, porque
se entende que ele é o conceito cuja concepção é fundamental para a teoria. E
é a partir da sua compreensão que se abrem espaços para a constituição dos
demais procedimentos analíticos. Compreendê-lo, portanto, requer a atitude
de des-fixar o seu sentido de qualquer lugar estabelecido. Logo, entendido
pelo viés teórico da Análise de Discurso, o discurso pode ser lido como prática
de “Movimentos dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios
de conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de
incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestígios” (ORLANDI, 2001a, p.
10).
Como se percebe, o termo discurso é contraditório por natureza,
mas não pela ausência de uma coerência que confirme seus sentidos numa
dada sociedade; afinal, há o discurso religioso, político, jurídico e etc. dotados
de uma completude (relativa) por parte dos seus interlocutores. A contradição
referida significa o seu não aprisionamento a bases teóricas que lhes fixariam
um único e verdadeiro significado, já que o signo é ideológico e sua completude
se encontra na exterioridade (BAKTHIN, 1999), ou seja, no seu espaço
enunciativo. Uma definição para discurso obriga recusar os espaços de conforto
dos saberes legitimados, para se colocar no lugar da incômoda inquietação:
desocupar a ordem discursiva sociocultural e entrar na sua des-ordem.
Se o mundo e as pessoas do mundo se convertem, por fim, a
uma perspectiva discursiva, é preciso compreender a “realidade repleta de
mudanças e de contradições, de mudanças, portanto, de contradições” (PÊCHEUX,
1997a, p. 249 – sem grifos) que circundam os espaços sociais em que homens,
portanto, discursos coexistem. E, então, talvez, possa-se buscar nos discursos
não mais a resposta reveladora de uma verdade, mas as condições materiais
para a reflexão sobre possíveis posicionamentos dos sujeitos frente à sua
condição social em dado momento e em relação a um dado tema. Eis a tarefa
que se coloca como trabalho para o analista.
Refletir sobre o discurso, portanto, não é uma tarefa tranquila, isso
______ [ 5 ]
porque, como se sabe, os sentidos que se materializam em palavras, imagens,
símbolos e etc. não estão amarrados nem fixados, como já foi dito, a um
significado. Ele é, sempre, em lugar da certeza de que algo significa x, a
resposta de que também pode significar outras coisas: não-ditas, silenciadas:
o discurso, portanto, materializa, sempre, efeitos de sentido, devendo-se
considerar “a cada um, seu ponto de vista, e [mas], acima de todos, a verdade
inacessível!”. (PÊCHEUX, 1997a, p. 209).
Compreender o discurso na sua complexidade exige, então, vê-
lo como uma instância que (de)marca territórios entre os diversos campos
discursivos existentes nas sociedades organizadas, que constroem, por
meio das suas instituições (escola, igreja, aparelho jurídico, família e etc.),
horizontes de saberes a serem seguidos pelos sujeitos, entendendo-se, com
isso, o proposto por Bakhtin (1999, p. 121): “O centro organizador de toda
enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no
meio social que envolve o indivíduo”. Deve-se considerar que a sociedade
(com seus valores e crenças) sobredetermina os sujeitos, mapeando, para eles,
trajetórias discursivas centradas em valores ideológicos que se tornam alicerces
e organizam o mundo de uma comunidade. Devido a essa perspectiva é que
o conceito de ‘ideologia’ instaura-se na Análise de Discurso como ponto
nodal das discussões. E como o termo ‘discurso’, sua conceituação também
é complexa, devido à banalização que o termo sofreu (vem sofrendo) no
decorrer dos tempos e das apropriações que as mais variadas teorias fazem
dele.
Uma compreensão para o conceito de ideologia é tomá-la como
uma prática de “evidências”, que, ideologicamente, atua sobre os indivíduos,
interpelando-os em sujeitos (PÊCHEUX, 1997a), sem que tenham
consciência ou controle da intervenção em quaisquer relações. As ideologias
se imiscuem nos discursos que criam a vida social e se constituem como forças
materiais (PÊCHEUX, 1997a) necessárias à própria existência/sobrevivência
das sociedades: o homem é discurso e a “evidência” dos discursos para o
homem se explica pela “Penetração que se opera ‘por si só’ e, ao mesmo
tempo, inculcação que trabalha conscienciosamente sobre o resultado dessa
penetração [discursiva] para ‘se acrescentar a ela [a ideologia]’, de modo que,
no total, cada ‘sujeito’ saiba e veja que as coisas são realmente assim” (PÊCHEUX,
1997a, p. 224 – sem grifos no original): fórmulas inquestionáveis de verdades
que, feito ar, não se percebe, mas estão presentes em cada enunciado emitido.
Para a Análise de Discurso, “as palavras, expressões, proposições,
etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as
empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência às
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formações ideológicas” (PÊCHEUX, 1997a, p. 160 – grifos do autor), de
forma que os sujeitos falam sempre a partir de um determinado lugar social e
compreender isso é fundamental, pois, por meio dessa compreensão, podem-
se problematizar os sentidos estabelecidos. Para a teoria, formação ideológica
é “um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem
‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente à
posição de classes em conflito umas com as outras” (PÊCHEUX e FUCHS,
1975, In: GADET e HAK, 1993, p.166).
Ao encontro do conceito de Formação Ideológica, cunhado por
Pêcheux, recorre-se à discussão de Foucault que, em “A Arqueologia do
Saber” (1995), constitui o conceito de Formação Discursiva. Segundo este
autor, se “se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações,
posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que
se trata de uma formação discursiva” (FOUCAULT, 1995, p. 43), de modo
que, “analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços
aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas” (p.56).
Pode-se afirmar que as palavras estão imersas em um discurso
afetado pelo lugar social de onde é enunciado (afinal, não é qualquer um que
pode dizer qualquer coisa, em qualquer lugar). É a partir desse “lugar” de
onde o sujeito enuncia que se inscrevem as posições discursivas assumidas,
constituindo-se, assim, o conceito de Formação Discursiva, explicado como
“aquilo que numa formação ideológica dada, determinada pelo estado da luta
de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma
arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa,
etc.)” (PÊCHEUX, 1997a, p. 160 – sem grifos no original). Esse processo
marca definitivamente o assujeitamento ideológico a que os indivíduos estão
submetidos.
Reitera-se, portanto, a compreensão de ideologia como prática
histórica – porque ela escapa a qualquer política de fechamento, ou que se
deseja de cerramento dos sentidos. Conforme explica Althusser (1985, p. 97),
“A existência da ideologia e a interpelação dos indivíduos em sujeitos são uma
única e mesma coisa”, isto é, não há sujeito sem ideologia e só há ideologia
porque há sujeitos e sociedade.
Analisar a categoria de ‘sujeito’ como se apresenta sob o prisma
althusseriano (reiterado na tese pecheutiana do assujeitamento) é aceitar “a
evidência de que vocês e eu somos sujeitos – e até aí não há problema – [e
que] este é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar. Este é, aliás, o
efeito característico da ideologia – impor (sem parecer fazê-lo, uma vez que
se trata de evidências) as evidências como evidências”, pontua Althusser em
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Aparelhos Ideológicos do Estado (1985, p. 94).
As problemáticas que se colocam à questão da(s) evidência(s) são
parte significante da discussão em torno do fato de que os saberes de que
dispõem os sujeitos não passam de formas discursivas “políticas” assumidas
sem que eles saibam disso, de modo que o discurso

deixa de ser o que é para a atitude exegética: tesouro inesgotável de onde


se pode tirar sempre novas riquezas, e a cada vez imprevisíveis; providência
que sempre falou antecipadamente e que faz com que se ouça, quando se
sabe escutar, oráculos retrospectivos; ele aparece como um bem – finito,
limitado, desejável, útil – que tem suas regras de aparecimento e também
suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por
conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas ‘aplicações
práticas’), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma
luta, e de uma luta política. (FOUCAULT, 1995, p. 139 – sem grifos no original).

Toda prática discursiva pertence a uma cenografia que envolve os


sujeitos da enunciação; o conceito é cunhado por Maingueneau (2008, p. 70):

Como construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por
meio de uma cenografia professoral, profética, amigável etc. A cenografia é
a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por
sua vez, deve validar através da sua própria enunciação: qualquer discurso,
por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação
que o torna pertinente. A cenografia não é pois um quadro, um ambiente,
como se o discurso ocorresse em um espaço já construído e independente
do discurso, mas aquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio
dispositivo de fala. (sem grifos no original).

O assujeitamento se configura no espaço enunciativo, por meio de


formações discursiva que não demarcam um lugar discursivo. Dessa forma,
é que se pode afirmar que, “ao dizer que os sujeitos ‘funcionam sozinhos’
porque são sujeitos, isto é, indivíduos interpelados em sujeito pela ideologia,
[Pêcheux] fez com que algo novo fosse ouvido” (PÊCHEUX, 1997a, p. 296),
o que, sob certa perspectiva, era (é!) algo insuportável. Não existe sentido fora
da ideologia; não existem sujeitos fora da ideologia.
O que se tem, de certo modo, é que do sujeito é cobrado um
“posicionamento”; assim, sujeitos necessitam de um discurso para poderem
pensar a si mesmos, ou seja, para terem condições de assumirem o papel que
lhes cabe. Em verdade, “o sujeito se constitui pelo ‘esquecimento’ daquilo que
o determina” (PÊCHEUX, 1997a, p. 163). Esse ponto cego – o esquecimento
– lhe é fugidio, escapa-lhe, sempre; afinal, onde, como e quando se instituíram
as perspectivas daquilo que é bom ou mau, certo ou errado, por exemplo, se,
______ [ 8 ]
na verdade (o que é a verdade?), caberia aos sujeitos se compreenderem, não
como “eu”, mas como “nós”?
Segundo o autor, isso ocorre, dentre outras razões, porque o

sujeito se utiliza constantemente (...) do retorno sobre o fio de seu discurso,


da antecipação do seu efeito e da consideração da discrepância introduzida
nesse discurso pelo discurso de um outro (como próprio outro) para
explicitar e se explicitar a si mesmo o que ele diz e ‘aprofundar o que ele
pensa’. (1997a, p. 174).

Para a reflexão sobre o modo de funcionamento no discurso do


conceito de ‘esquecimento’, retoma-se Pêcheux que, de modo particular,
dividiu-o em dois, definindo-os como esquecimento nº 1 e esquecimento nº
2. O primeiro é da ordem do ideológico e o segundo dá ao sujeito a impressão
de que o que foi dito só poderia ser dito do modo que foi. Nas palavras do
autor,

Concordamos em chamar esquecimento nº 2 ao ‘esquecimento’ pelo qual


todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da formação discursiva que o
domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se
encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e
não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-
lo na formação discursiva considerada. Por outro lado, apelamos para a
noção de ‘sistema inconsciente’ para caracterizar um outro ‘esquecimento’, o
esquecimento nº 1, que dá conta do fato de que o sujeito falante não pode,
por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina.
Nesse sentido, o esquecimento nº 1 remetia, por analogia com o recalque
inconciente, a esse exterior, na medida em que – como vimos – esse exterior
determina a formação discursiva em questão. (PÊCHEUX, 1997a, 173).

Partindo desse ponto, quando o sujeito “assume” para si um discurso,


ele passa a ser, na perspectiva do assujeitamento, determinado. Parece ser
senhor de um dizer desejoso de enunciar sua verdade. Estabelece-se, então,
uma primeira relação contraditória nessa união pouco estável: entre aqueles
que (re)produzem um discurso estabelecido e o discurso em si, não há mais
que práticas ideológicas sendo enunciadas.
Para exemplificar, pode-se pensar no caso de quando os pais de
um viciado em drogas enunciam “meu filho é um adicto”. Primeiramente,
estabelece-se uma relação de paráfrase e sinonímia com “meu filho é um
doente/sou pai de um doente”, que movimenta sentidos de censura ao
preconceito em relação àqueles pais cujos filhos usam drogas, para que
outros sejam postos em cena, a partir das consequências da enunciação do
discurso da adicção que reorganiza a formação discursiva dominante, pois
______ [ 9 ]
a enunciação “meu filho é um adicto” leva, consequentemente, a não-ditos
que significam: o filho rouba, mas não é ladrão; o filho agride, mas não é um
agressor; o filho abandona os estudos ou o emprego, mas não é vagabundo; o
filho é maltrapilho, mas não é mendigo. Passa-se de uma formação discursiva
em que todo drogado é um mau elemento, para outra formação discursiva,
mais “digna”, que passa a atravessar esse sujeito social a partir do discurso da
adicção: muda-se o discurso e a ordem dos sentidos é alterada.
Isso acontece sem que os sujeitos tomem, efetivamente, consciência
das condições exteriores que os determinam, de modo que “o que cai,
enquanto significante verbal, no domínio do inconsciente está ‘sempre já’
desligado de uma formação discursiva que lhe fornece seu sentido, a ser
perdido no non-sens do significante” (PÊCHEUX, 1997a, p. 176 – grifos do
autor), mas que constitui a “impressão” necessária para que o sujeito faça a
escolha sobre uma ou outra forma de enunciar. No fim do processo, há, sob
a “escolha” de um termo e não de outro, o Esquecimento nº 1, que não deixa
rastros ou pistas, mas que simplesmente torna possível, inclusive, a tentativa
falha de demonstrar o seu funcionamento: “Esse discurso-outro, enquanto
presença virtual na materialidade descritível da sequencia, marca, do interior
dessa materialidade, a insistência do outro como lei do espaço social e da
memória histórica, logo como o próprio princípio do real sócio-histórico”.
(PÊCHEUX, 1997c, p. 55).
Aceita-se, desse modo, a complexidade que envolve os atos de
enunciação, os quais nunca são neutros, afinal “estamos inscrevendo nessa
forma-sujeito a necessária referência do que eu digo àquilo que um outro
pode pensar, na medida em que aquilo que eu digo não está fora do campo daquilo
que eu estou determinado a não dizer” (PÊCHEUX, 1997a, p. 173). Uma prática
enunciativa pertencente a uma formação discursiva, ainda que ilusória e
não crítica, constroi identidade para o sujeito e o faz uma voz na sociedade,
propiciando o exercício de práticas de autoridade e de autonomia forjadas
pela pretensa ilusão inscrita de uma falsa subjetividade.
Para a demonstração, retoma-se o quadro abaixo, que ilustra, em partes,
como se estabelecem as relações entre os sujeitos e as práticas enunciativas,
lembrando os conflitos que se instauram nas negociações discursivas entre
os sujeitos. Deve-se considerar como a relação entre os sujeitos é atravessada
pelas Formações Imaginárias:

______ [ 10 ]
Como se pode observar, nesse “jogo”, inscreve-se um conjunto
de formações imaginárias que leva o sujeito a fazer “escolhas” a partir dos
jogos de imagem que se travam entre os interlocutores. Os sujeitos estão
submetidos a determinadas condições de produção, conforme Pêcheux
(1969, In: GADET E HAK, 1993) expõe no quadro acima, na apresentação
da AAD-69.
O discurso, então, é tido “como um sistema de relações de substituição,
paráfrases, sinonímias e etc., que funcionam entre elementos lingüísticos –
‘significantes’ – em uma formação discursiva dada” (PÊCHEUX, 1997a,
p. 161), isto é, num “espaço de reformulação-paráfrase onde se constitui a
ilusão necessária de uma ‘intersubjetividade falante’ pela qual cada um sabe
de antemão o que o ‘outro’ vai pensar e dizer, e com razão, já que o discurso
de cada um reproduz o discurso do outro.” (PÊCHEUX, 1997a, p. 172),
conforme as relações de força (inconsciente) travada entre os interlocutores.
Os sujeitos assumem uma forma-sujeito, “de tal modo que cada um
seja conduzido, sem se dar conta, e tendo a impressão de estar exercendo
sua livre vontade, a ocupar o seu lugar” (PÊCHEUX e FUCHS, 1975, In
GATED E HAK, 1993, p. 166) numa dada situação: retoma-se, então, a
questão de assujeitamento ideológico, um dos problemas levados ao extremo
por Pêcheux, Althusser e Lacan.
Em relação à incorporação dos estudos de Lacan à Análise de Discurso,
deve-se lembrar que ele parte de uma releitura de Freud, revendo, sobretudo,
a relação do sujeito com o inconsciente. Para ele, segundo Pêcheux e Fuchs
(1975, p. 178), ”todo discurso é ocultação do inconsciente” ou “o inconsciente
é o discurso do Outro” (1997a, p. 133). A forma como isso afeta as relações
do sujeito com o discurso diz respeito ao fato de que, em todo discurso, seja
______ [ 11 ]
ele de que esfera for, há, de modo mais ou menos explícito, a presença do
Outro (com “o” maiúsculo), de modo que haveria sempre a voz do Outro
presente, cuja origem é exterior ao sujeito: ele encontraria raízes no discurso
dos pais, da igreja, da escola, da sociedade em geral, afetando o sujeito, que,
na perspectiva de Freud, é dividido entre consciente e inconsciente (“sujeito
clivado”). Pêcheux (1997c, p. 45), em referência a Althusser, cita:

Foi a partir de Freud que começamos a suspeitar do que escutar, logo do que
falar (e calar) quer dizer: que este ‘quer dizer’ do falar e do escutar descobre,
sob a inocência da fala e da escuta, a profundeza determinada de um fundo
duplo, o ‘querer dizer’ do discurso do inconsciente.

Para Mussalim (2001, p. 107), na retomada de Freud por Lacan, este


aponta que

Lacan assume que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, como


uma cadeia de significantes latentes que se repete e interfere no discurso
efetivo, como se houvesse sempre, sob as palavras, outras palavras, como se o
discurso fosse sempre atravessado pelo discurso do Outro, do inconsciente.

Nesse sentido, complementando as remissões teóricas feitas até


aqui, pode-se confirmar a tese da “a ascendência dos processos ideológico-
discursivos sobre o sistema da língua e o limite de autonomia, historicamente
variável, desse sistema” (PÊCHEUX, 1997a, p. 177). Na perspectiva teórica da
Análise de Discurso, entende-se que analisar a língua propicia entendimentos
voltados para o sistema linguístico em si, cuja compreensão é necessária,
porém o que se deseja observar, além disso, é o funcionamento desses
elementos linguísticos sob a luz da ideologia, com a finalidade de buscar o
desvelamento da opacidade linguística frente à incompletude da linguagem:
“A ordem simbólica, configurada pelo real da língua e pelo real da história, faz
com que tudo não possa ser dito e, por outro lado, haja em todo dizer uma
parte inacessível ao próprio sujeito”. (ORLANDI, 1996, p. 63). Esta é uma
posição reiterada por Pêcheux (1997b, p. 62), em “Ler o arquivo hoje”:

A materialidade da sintaxe é realmente o objeto possível de um cálculo – e


nesta medida os objetos lingüísticos e discursivos se submetem a algoritmos
eventualmente informatizáveis – mas simultaneamente ela escapa daí, na
medida em que o deslize, a falha e a ambigüidade são constitutivos da língua,
e é por aí que a questão do sentido surge do interior da sintaxe.

Posto em cena o sentido, parece haver a necessidade de crer em


identidade, subjetividade e autonomia intelectual. Entende-se que se tratam
______ [ 12 ]
de ilusões necessárias para os indivíduos se sentirem e serem interpelados
em sujeitos. Essa ilusão sobre a autonomia discursiva, tão necessária, não
apenas os faz incorporar discursos, mas reproduzi-los sem reflexão sobre
por que se diz o que se diz da forma como se diz; ou, ainda, por que se é
levado a crer em determinados discursos e não em outros, tomando-os como
fontes de verdades ou mentiras: não se questiona de onde vem a fidelidade de
manutenção de um posicionamento discursivo sobre os mais diversos temas.
Orlandi (1996, p. 96) reflete sobre esse processo silencioso e o modo como os
sentidos vão sendo estabelecidos. Para a autora,

Os aparelhos de poder de nossa sociedade geram a memória coletiva.


Dividem os que estão autorizados a ler, a falar e a escrever (os que são
intérpretes e autores com obra própria) dos outros, os que fazem os gestos
repetidos que impõem aos sujeitos seu apagamento através da instituição.
Seja essa instituição a igreja, o Estado, a empresa, o partido, a escola, etc. Em
todo discurso podemos encontrar a divisão do trabalho de interpretação,
distribuídos pelas diferentes posições dos sujeitos: o padre, o professor, o
gerente, o líder sindical, o líder partidário, etc. E há uma enorme produção
de textos (falados ou escritos) que trabalham essa divisão: regimentos,
constituições, panfletos, livros didáticos, programas partidários, estatutos,
etc. Os sentidos não estão soltos, eles são administrados. (sem grifos no original).

É nesse sentido que tomam forma os conceitos de interdiscurso,


memória, pré-construído e discurso transverso a que Pêcheux (1997a, p. 162),
de modo geral, denomina “’todo complexo com dominante’ das formações
discursivas”, no sentido de que “’algo fala’ (ça parle) sempre ‘antes, em outro
lugar, e independentemente’”. Para o autor, em relação aos sujeitos, ter-se-ia,
correspondentemente, “uma memória discursiva que, face a um texto que
surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer,
mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados-relatados, discursos-transversos,
etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio
legível” (PÊCHEUX, 1999, p. 52 – sem grifos no original).
Entre as páginas 162 e 180 da obra Semântica e Discurso, Pêcheux,
de modo mais enfático, discute estes conceitos, buscando colocá-los à luz
de uma compreensão que ratifica a tese de que o sujeito não fala, mas é
falado; de que os saberes que se configuram em certezas e pontos de vistas
particulares tão próprios do discurso do sujeito-capitalista – que não se
cansa de afirmar “Eu falo” – venham a ruir frente a tais pressupostos: “o
que chamamos ‘domínio de pensamento’ (1997ª, pp. 190 e 124) se constitui
sócio-históricamente sob a forma de pontos de estabilização que produzem
o sujeito, com, simultaneamente, aquilo que lhe é dado a ver, compreender,

______ [ 13 ]
fazer, temer, esperar, etc.” (PÊCHEUX, 1997a, p. 161). E continua:

Observaremos que o interdiscurso enquanto discurso transverso atravessa e põe em


conexão entre si elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto
pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria prima na qual o sujeito
se constitui como ‘sujeito falante’, com a formação discursiva que o assujeita
(1997a, p. 167 – grifos do autor).

Eis o que torna possível afirmar que “o não-dito precede e domina a


asserção” (PÊCHEUX, 1997a, p. 261), sendo esse não-dito o que efetivamente
significa em razão dos apagamentos e silenciamentos que sofre, de modo que,
“‘refletindo o que todo mundo sabe, permite calar o que cada um entende
sem confessar’” (ORLANDI, 2002, p. 40); daí a constituição dos silêncios que
significam. Valendo-se da citação de Milan Kundera por Pêcheux (1997b, p.
60), pode-se afirmar que, “quando se quer liquidar os povos, se começa a lhes
roubar a memória” e, na ausência dela, impera o silêncio.
Faz-se um parêntese para explicar como, para a Análise de Discurso,
os conceitos de “silêncio” e de “memória” significam, pois se entende que há
uma inter-relação entre eles no sentido de que o segundo atua no desvelamento
do primeiro e por ambos se constituírem em ferramentas relevantes para a
análise dos corpora.
Sobre a constituição do conceito de silêncio, Orlandi, em As formas do
silêncio (2002), demonstra como o sentido se instaura a partir das práticas de
silenciamento ou de como o silêncio é constitutivo dos sentidos, não devendo
ser interpretado ou confundido com o estudo dos implícitos (como o entende
a pragmática), por exemplo, pois o silêncio tem status próprio. Para a autora,
“Quando não falamos, não estamos apenas mudos, estamos em silêncio: há o
‘pensamento’, a introspecção, a contemplação” (p. 37), e isso é significativo.
Assim, as práticas de análise sobre os não-ditos ganham em
significação, em razão do apagamento revelador daquilo que fica ausente no
discurso. A autora afirma que o princípio da historicidade é fundamental para
tornar o silêncio “visível e interpretável. É a historicidade inscrita no tecido
textual que pode ‘devolvê-lo’, torná-lo apreensível, compreensível” (2002, p.
60), já que ele é caracteristicamente o contrário. Nesse momento, interessa
ressaltar

o caráter fundador do silêncio, o silêncio constitutivo pertence à própria


ordem da produção do sentido e preside qualquer produção de linguagem.
Representa a política do silêncio como um efeito de discurso que instala
o antiimplícito: se diz ‘x’ para não (deixar) dizer ‘y’, este sendo o sentido
a se descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído. Por aí se

______ [ 14 ]
apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o
trabalho significativo de uma ‘outra’ formação discursiva, uma ‘outra’ região
de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas,
determinando consequentemente os limites do dizer. (ORLANDI, 2002, p.
76).

Pêcheux, em o Papel da Memória (1999), tece uma explicação para os


implícitos que evoca a questão da memória, a partir da questão “onde residem
esses famosos implícitos, que estão ‘ausentes por sua presença’?”. Para ele, se
existe uma prática de silenciamento que impõe sentidos (quer se deseje isso
ou não), para a sua captura, não basta observar o fio do discurso, mas se deve
verificar que, por meio da materialidade discursiva, colocam-se em cena o
objeto de leitura e o sujeito leitor, sendo que ele, na condição de sujeito sócio-
histórico e ideológico, portador de uma memória discursiva, promove leituras
sobre os sentidos não estabelecidos. Então, para o autor,

uma memória não poderia ser concebida como um esfera plana, cujas
bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido
homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um
espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos ou de retomadas,
de conflitos e regularização... Um espaço de desdobramento, réplicas,
polêmicas e contra-discursos. (PÊCHEUX, 1999, p. 56).

Essa seria, pois, uma via para a instauração dos sentidos. Ainda
sobre a problemática posta sobre o sentido e o processo de enunciação que
ilusoriamente faz o sujeito se ver como dono de seu dizer, Pêcheux apresenta
uma reflexão sobre o mesmo como processo metafórico de significação:

o sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma proposição por


uma outra palavra, uma outra expressão ou proposição; (...) o sentido
existe exclusivamente nas relações de metáfora (realizadas em efeitos de
subordinação, paráfrases, formações de sinônimos), das quais certa formação
discursiva vem a ser historicamente o lugar mais ou menos provisório: as
palavras, expressões, proposições recebem seus sentidos da formação
discursiva à qual pertencem. (...) Na verdade, a metáfora, constitutiva do
sentido, é sempre determinada pelo interdiscurso, por uma região do
interdiscurso. (...) O interdiscurso é fundamentalmente marcado pelo que
chamamos a lei de não-conexidade. Nessa medida, pode-se dizer que o que
torna possível a metáfora é o caráter local e determinado do que cai no
domínio do inconsciente, enquanto lugar do Outro (...) o sentido não se
engendra a si próprio, mas ‘se produz no non-sens’. (PÊCHEUX, 1997a,
p. 263).

A fim de propiciar uma visão geral do quadro em que se constituiu a


teoria, ainda que se peque pelas omissões e superficialidade com que alguns
______ [ 15 ]
dos temas possam ser tratados, retoma-se a discussão proposta por Pêcheux,
considerando as problemáticas levantadas sobre as orações restritivas e
explicativas. Por meio da análise de enunciados desse tipo, Pêcheux encontrou
as bases linguísticas (e epistemológicas) para defender a tese de que as
escolhas que o sujeito faz para a organização do discurso estão determinadas,
na língua, pelo aparato ideológico que a sobredetermina, o que o levaria a
revelar, na materialidade linguística, uma prática discursiva afetada pelo
sistema ideológico de que faz parte.
Por meio do estudo dos sentidos que se configuram nas orações
adjetivas explicativas ou restritivas, ele problematiza os aportes teóricos
que as sustentam, sobretudo a perspectiva idealista platônica, isto é, as
perspectivas do realismo metafísico e do empirismo lógico, explicando que
a compreensão para os sentidos que se configuram naquelas orações são um
problema de ordem político-filosófica e não apenas linguística. Segundo o
autor (1997b, p. 55), “As aporias de uma semântica puramente intralinguística
(ou de uma pragmática insensível às particularidades da língua), e as reflexões
sobre a especificidade do arquivo textual, levam a pensar que uma pesquisa
multidisciplinar é indispensável para um acesso realmente fecundo”.
E, em vias de dar conta dessa fecundidade, o autor se infiltra nas brechas
abertas pelo estruturalismo linguístico, explicitando suas falhas e rompendo
com esquemas estabelecidos, como se pode observar (a exemplo) na citação
abaixo:

Saussure deixou aberta uma porta pela qual se infiltraram o formalismo e o


subjetivismo; essa porta aberta é a concepção saussuriana de que a ideia só
poderia ser, em todo seu alcance, subjetiva, individual. De onde a oposição
da subjetividade criadora da fala à objetividade sistemática da língua.
(PÊCHEUX, 1997a, p. 60).

Pêcheux tece críticas em relação ao par língua/fala, explicitando


que a fala não é o discurso e, citando Paul Henry, afirma que “todo sistema
linguístico, enquanto conjunto de estruturas fonológicas, morfológicas e
sintáticas, é dotado de uma autonomia relativa que o submete a leis internas, as
quais constituem, precisamente, o objeto da Linguística” (PÊCHEUX, 1997a,
p. 91). E continua sua reflexão no sentido de demonstrar que “É, pois, sobre
a base dessas leis internas que se desenvolvem os processos discursivos, e não
enquanto expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva,
etc., que utilizaria ‘acidentalmente’ os sistemas linguísticos” (PÊCHEUX,
1997a, p. 91).
O autor contesta os posicionamentos de base estruturalista positivista
______ [ 16 ]
e, entre as páginas 41 e 63 da obra Semântica e Discurso, ao apresentar as
perspectivas teórico-filosóficas de língua(gem) que se baseiam num olhar
contrário aos pontos teóricos por ele defendidos, descontroi tais estudos,
para, enfim, defender seu modo de conceber, não uma nova ciência, mas uma
Teoria do Discurso, reafirmando, sempre, em primeiro plano, a soberania do
sujeito ideológico sobre a língua.

Ora, entre a concepção husserliana da subjetividade como fonte e princípio


da unificação das representações e a concepção fregeana do sujeito portador de
representações, é bem claro que, historicamente, a primeira tem dominado
constantemente e recoberto a segunda, de Kant até nossos dias, a tal ponto
que o mito romântico da criação e do autor (o ‘eu’ único que se exprime, etc.)
aparece como duplo literário da subjetividade filosófica: a subjetividade se
torna ao mesmo tempo o excedente contingente que transborda o conceito e
a condição indispensável da expressão desse conceito”. (PÊCHEUX, 1997a,
p. 57 – grifos do autor).

É contra essa forma de pensar que o autor se posiciona. Para ele,

Trata-se (...), de compreender como aquilo que hoje é tendencialmente a


‘mesma língua’, no sentido lingüístico desse termo, autoriza funcionamentos
de ‘vocabulário – sintaxe’ e de ‘raciocínios’ antagonistas; em suma, trata-se
de por em movimento a contradição que atravessa a tendência formalista-
logicista sob as evidências que constituem a sua fachada. (PÊCHEUX,
1997a, p. 26).

Assim, firma-se o posicionamento analítico de Pêcheux, que


não opera apenas sobre as marcas linguísticas, o que não significa que as
ignore, sobretudo, porque o seu funcionamento se constitui na materialidade
necessária ao analista. Mas é a partir dos estudos marcados pelo olhar teórico-
filosófico crítico do autor em relação às práticas estruturalistas de compreensão
do discurso que Pêcheux estabelece outra ordem de pensamento, onde não há
espaço para a presença de um indivíduo falante, mas para alguém interpelado
em sujeito pela ideologia, “de uma maneira tal que o teatro da consciência (eu
vejo, eu penso, eu falo, eu te vejo, eu te falo, etc.) é observado dos bastidores,
lá de onde se pode captar que se fala do sujeito, que se fala ao sujeito, antes de
que o sujeito possa dizer: ‘Eu falo’” .(PÊCHEUX, 1997a, p. 154).
Pêcheux, ao contestar as bases epistemológicas que buscam tornar
evidente que a linguagem é uma forma de comunicação livre dotada de
autodeterminação por parte dos sujeitos, parte de um olhar filosófico para
explicar a causa daquilo que falha – a língua, ao que ele denomina duas formas/
pensamentos conceituais que esbarram em problemas que ele busca elucidar,

______ [ 17 ]
que são o empirismo logicista (subordinação ao objetivo do subjetivo) e o
realismo metafísico (subordinação ao subjetivo do objetivo).
Para o autor, que defende pressupostos de base materialista, “o
essencial consiste em colocar a independência do mundo exterior em relação
ao sujeito, colocando simultaneamente a dependência do sujeito com respeito ao
mundo exterior” (PÊCHEUX, 1997a, p. 76 – grifos do autor), o que faz
emergir, segundo o autor, a categoria filosófica do processo sem sujeito, conforme
afirma em sua obra.
Pêcheux contesta toda forma de obviedade que possa sustentar a
relação de sentido entre a coisa e o nome: “Em suma, a evidência diz: as
palavras têm um sentido porque têm um sentido, e os sujeitos são sujeitos
porque são sujeitos: mas, sob essa evidência, há o absurdo de um círculo
pelo qual a gente parece subir aos ares se puxando pelos próprios cabelos”
(PÊCHEUX, 1997a, p. 32). O que existe, para a Análise de Discurso, são,
em verdade, efeitos de sentido postos em “evidência”, quando entram em cena
as condições de produção do discurso, o efeito de assujeitamento sofrido
pelo sujeito e a condição de o sujeito enunciar a partir de uma formação
discursiva afetada pelas relações de força que silenciosamente estão presentes
nos discursos: “Ninguém compreende a proposição há pedaços de bolo da mesma
maneira que compreende a proposição há corpos regulares. No primeiro caso, o que se visa
não é que haja pedaços de bolo em geral e em absoluto, mas que aqui e agora – com café –
haja pedaços de bolo”. A citação que Pêcheux faz de Husserl, a qual ele chama de
“essencialmente ocasional”, vem ao encontro do modo de perceber que, em
nome de um sentido, o que há, fundamentalmente, são efeitos de.
O sujeito não é o portador da palavra, mas é experienciado por
ela. Os discursos são uma representação das sociedades: dos seus valores,
da sua cultura, da moral adquirida por meio das práticas difundidas pelas
religiões, pelo estado, pela escola, pelas relações familiares e etc. (como já
dito). Os estudos dos processos discursivos foram, durante muito tempo,
negligenciados pelas ciências da linguagem, já que, como se sabe, aquele que
falava não era ouvido, porque não interessava a reflexão sobre por que se diz
o que se diz da forma como o dito está sendo enunciado, ou de onde vêm os
discursos e como eles significam, ou quem são os sujeitos da interação e de
que forma as condições de enunciação os afetam.
Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, problematiza as
circunstâncias tensas em torno do signo linguístico, assumindo posição contra
as duas correntes teóricas que ele denominou de objetivismo abstrato e de
subjetivismo idealista. Aproximam-se nesse momento, esses dois teóricos,
Pêcheux e Bakhtin, que, incansavelmente, cada um a seu modo, buscaram
______ [ 18 ]
explicitar o fato de que nada escapa à ideologia. E, de fato:

Não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos
se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente
organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um
sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada
pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do
meio ideológico e social. A consciência individual é um fato sócio-ideológico.
(BAKHTIN, 1999, p. 35 – grifos do autor).

Assim, “o deslize, a falha e a ambiguidade são constitutivos da língua.”


(PÊCHEUX, 1997b, p. 62). E, por mais que ocorram deslizes de sentidos,
num primeiro momento, os indivíduos enquanto indivíduos, tomados pela
ideologia, são demasiadamente cegos e surdos ao fenômeno polissêmico
e polifônico2 dos discursos, porém não mudos, já que se faz necessária a
perpetuação de um status quo por meio das repetições incessantes dos
saberes legitimados. Deve-se, contudo, criticar a mesmice que não permite
outros olhares e se fecha a controvérsias sobre as afirmações que conduzem
às práticas monofônicas dos sentidos: “o risco é simplesmente o de um
policiamento dos enunciados, de uma normalização asséptica da leitura e do pensamento, e
de um apagamento seletivo da memória histórica.” (PÊCHEUX, 1997b, p. 60 – grifos
nossos).
É considerando tais críticas propiciadas pelos estudos discursivos que
se recorre à Análise de Discurso: uma disciplina que interroga os discursos, não
permitindo que sua materialidade seja apagada e leve os sujeitos a respostas
superficiais, porque, para a teoria, não existe um sentido, mas efeitos de
sentido sócio-historicamente construídos. Não existe relação de neutralidade
entre os sujeitos e os discursos lidos ou proferidos, porque, entre eles – sujeito
e discurso –, silenciosamente, impõem-se relações de poder.
A Análise de Discurso implica num aprendizado constante e a
compreensão dos dispositivos de análise representa a condição de leitura que
leva à superação tanto da ingenuidade quanta da arrogância de ser senhor
do sentido, por que, como afirma Orlandi (2000, p. 116), “Compreender, eu
diria, é saber que o sentido poderia ser outro”. E pode ser.
A teoria leva ao saber que não é por meio de um estudo imanente da
língua que se chega a compreender a ordem silenciosa de organização dos
discursos: como “uma disciplina de entremeio não positiva, ela não acumula
conhecimentos meramente, pois discute seus pressupostos continuamente”.
(ORLANDI, 1996, p. 23).
Ratificando essa concepção de avaliação sobre a teoria, afirma-se,
ainda, que
______ [ 19 ]
A análise de discurso não é um método de interpretação, não atribui
nenhum sentido ao texto. O que ela faz é problematizar a relação com o
texto, procurando apenas explicitar os processos de significação que nele
estão configurados, os mecanismos de produção de sentidos que estão
funcionando. Compreender, na perspectiva discursiva, não é, pois, atribuir
um sentido, mas conhecer os mecanismos pelos quais se põe em jogo um
determinado processo de significação. (ORLANDI, 2000, p. 117).

A Análise de Discurso não é tida como uma ciência (como a


Linguística, por exemplo, o é): “E nisso não vai uma avaliação de demérito,
antes pelo contrário. Talvez se possa dizer da Análise de Discurso o que
Foucault disse do Marxismo e da Psicanálise: que são muito importantes
para serem ciências.” (POSSENTI, 2005, p. 399). Trata-se, portanto, de uma
disciplina e de uma prática de orientação teórica para a leitura.
Surgida na década de 60, na França, ela foi fundada a partir dos
estudos de Pêcheux, que teve, por sua vez, ao seu lado, dois importantes
nomes: Jean Dubois e Zellig Harris. Dubois esteve lado a lado de Pêcheux no
início da disciplina. Sem ignorar as diferenças que marcavam os interesses de
ambos, já que se tratava de um linguista e um filósofo, algo os unia no espaço
comum entre o marxismo e a política: “Na contramão das ideias dominantes,
eles partilham as mesmas evidências sobre a luta de classes, sobre a história,
sobre o movimento social.” (MALDIDIER, 1997b, p. 17). Contudo, como
mencionado, os olhares divergem. Segundo a autora (1997b, p. 18 – sem
grifos no original),

Em J. Dubois, [a Análise do Discurso como modo de leitura], deve substituir


a subjetividade do leitor unicamente pelo aparelho da ‘gramática’, rompendo
com a prática do comentário literário. Remetendo a literatura ao que ele
considera como sua miséria metolológica, (...) Em Pêcheux, a questão da leitura,
que se tornará posteriormente um tema decisivo, é colocada desde 1969 nos terrenos de
uma teoria não subjetiva, num ruptura tanto das práticas de explicação de texto, quanto
com os métodos estatísticos em vigor nas ciências humanas.

Por fim, para o linguista, a Análise de Discurso tinha o seu limite


pensado na passagem “natural” da palavra ao enunciado; já, para o filósofo,
ela “é pensada como ruptura epistemológica com a ideologia que domina
nas ciências humanas” (especialmente a psicologia). (MALDIDIER, 1997b,
p. 19). Encerra-se, aqui, a relação primeira que marcou o encontro entre
Pêcheux e Dubois.
Outro nome que esteve presente nos primórdios da Análise de

______ [ 20 ]
Discurso é o de Harris e o seu método denominado harrisiano. Precursor
das análises transfrásticas, teve seu estudo apropriado por Pêcheux para a
análise das superfícies discursivas. Porém, o método “mostrou-se insuficiente
para os propósitos da Análise de Discurso, que buscava reintegrar uma teoria
do sujeito e uma teoria da situação.” (MUSSALIM, 2001, p. 116). Ainda que
de forma breve, a menção aos dois autores que marcaram as reflexões de
Pêcheux ao elaborar o que viria a ser a disciplina de Análise de Discurso de
orientação francesa não poderia ser apagada.
Por meio dos constantes embates e debates que a marcaram, Pêcheux
foi aquele para quem o discurso significou “um verdadeiro nó. Não [sendo]
jamais um objeto primeiro ou empírico. [Mas] o lugar teórico em que se
intrincam literalmente todas suas grandes questões sobre a língua, a história,
o sujeito” (MALDIDIER, 2003, p. 15).
Pensada a partir do entremeio teórico de três grandes áreas do
conhecimento, a Análise de Discurso se articula por entre seus conhecimentos,
segundo texto de Pêcheux e Fuchs publicado em 1975 (In: GADET e HAK,
1993, p. 163-164). São elas:

1. materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas


transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; 2. da linguística,
como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação
ao mesmo tempo; 3. da teoria do discurso, como teoria da determinação
histórica dos processos semânticos. Convém explicitar ainda que estas
três áreas são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da
subjetividade (de natureza psicanalítica).

Inicialmente, a teoria estava centrada na análise de discursos políticos.


Hoje, contudo, a análise de discurso que se conhece é orientação para a
análise dos mais diversos corpora. Pode-se afirmar que, na sua origem,
compreendendo as condições de produção do seu fundador, os corpora
políticos efetivamente dominavam o cenário, tornando-se, portanto, o foco
das problematizações de Pêcheux. A partir das crises sócio-políticas que
afetavam o cenário Francês, eclodem as ideias de Pêcheux, que rompem e
desestabilizam com os pensamentos dominantes e que afetam, sobretudo, os
saberes cristalizados pelas ciências humanas e sociais. Nesse sentido, pode-se
afirmar que a Análise de Discurso

desorganiza a relação da lingüística com as ciências humanas e sociais, ao


tratar de maneira própria o que é língua, o que é sujeito, o que é sentido.
Porque ela mostra que a questão semântica ‘não é apenas mais um nível de
análise mas é o ponto nodal em que a lingüística tem a ver com a filosofia
e com as ciências sociais’. Porque ela afirma o real da língua mas também o
______ [ 21 ]
real da história, ao mesmo tempo. Porque ela inscreve o sujeito na análise.
Porque ela liga materialmente inconsciente e ideologia e trabalha não só com
a interpretação mas também com a descrição. (ORLANDI, 2002, p. 33).

Considera-se, a seguir, um recorte da obra A Inquietação do Discurso:


(Re)Ler Michel Pêcheux Hoje (2003), de Denise Maldidier. De modo geral, a obra
busca apresentar um relato cronologicamente organizado sobre os caminhos
percorridos pelo filósofo para chegar à fundação da Análise de Discurso.
Selecionaram-se alguns trechos, como o que segue, a fim de dar visibilidade
aos pensamentos e percursos seguidos pelo autor:

O projeto de Michel Pêcheux nasceu na conjuntura dos anos de 1960,


sob o signo da articulação entre a linguística, o materialismo histórico e a
psicanálise. Ele, progressivamente, o amadureceu, explicitou, retificou. Seu
percurso encontra em cheio a virada da conjuntura teórica que se avoluma
na França a partir de 1975. Crítica da teoria e das coerências globalizantes,
desestabilização das positividades, de um lado. Retorno do sujeito, derivas na
direção do vivido e do indivíduo, de outro. Deslizamento da política para o
espetáculo! Era a grande quebra. Deixávamos o tempo da ‘luta de classes da
teoria’ para entrar no ‘debate’. Neste novo contexto, Michel Pêcheux tentou,
até o limite do possível, re-pensar tudo o que o discurso, enquanto conceito
ligado a um dispositivo, designava para ele. (p. 16)

Discorrer, portanto, sobre as bases de fundamento da Análise de


Discurso significa retomar os percursos teóricos de Pêcheux e, posteriormente,
daqueles que, após sua morte, dando continuidade a seus estudos, buscaram
aprofundar as pesquisas realizadas nos primórdios da teoria, muitas vezes,
provocando novas fissuras, aprofundando conceitos e/ou dando a eles novas
roupagens. Desse modo, ainda que o exposto nesse texto refaça caminhos já
trilhados, buscou-se refazer o percurso.
De acordo com Maldidier (2003), Pêcheux “não produziu nem síntese,
nem sistema, mas deslocamentos e questionamentos” (p. 15) e aquilo que
hoje se conhece por dispositivos analíticos da Análise de Discurso faz parte
de um processo de construção e des-contrução por parte de “um filósofo que
se tornou linguista, sem deixar de ser filósofo” (p. 97). Nas palavras da autora,

Era sem dúvida preciso que a teoria fosse construída, para que sua
desconstrução produzisse iluminações, questionamentos. O percurso de
Michel Pêcheux deslocou alguma coisa. De uma ponta a outra, o que ele
teorizou sob o nome de ‘discurso’ é o apelo de algumas ideias tão simples
quanto insuportáveis: o sujeito não é a fonte do sentido; o sentido se forma
na história através do trabalho da memória, a incessante retomada do já-dito;
o sentido pode ser cercado, ele escapa sempre (p. 96).
No intuito de compreender relativamente os percursos de Michel
______ [ 22 ]
Pêcheux, tomar-se-á o caminho metodológico que apresenta a teoria a partir
das suas três fases, de onde os conceitos citados são retomados. As fases
são cronologicamente denominadas como AAD-69 (Análise Automática do
Discurso - AD-1), AD-75 e AD-83. Deve-se ressaltar que, no texto Análise de
Discurso: Três Épocas (1983), publicado pelo próprio Pêcheux (In: GADET
e HAK, 1993, p. 311-318), o autor revisita seus aportes teóricos e apresenta,
de forma sucinta, o que se pode considerar pontos que caracterizam cada uma
das três fases e aquilo que as marca de forma expressiva.
Recorrendo, portanto, ao texto, tem-se, na AD-1 (p. 312-313), o
momento conhecido como maquinaria discursiva, devido à “autonomia” com
que as análises se dariam sobre um corpus “fechado” a partir de “condições
de produção estáveis e homogêneas” e que suporiam “a neutralidade e a
independência discursiva da sintaxe”, com a finalidade de “construir sítios de
identidade parafrásticas interseqüenciais”. Nas palavras de Pêcheux (1993),

No horizonte, a ideia (que permanece em estado de ideia!) de uma álgebra


discursiva, que permita construir formalmente – a partir de um conjunto
de argumentos, predicados operadores de construção e de transformação
de proposições – a estrutura geradora do processo associado ao corpus.
(...) AD-1 é um procedimento por etapa, com ordem fixa, restrita teórica e
metodologicamente a um começo e um fim predeterminados, e trabalhando
num espaço em que as ‘máquinas’ discursivas constituem unidades
justapostas. (p. 313 - sem grifos no original).

O que ocorre é a defesa de um movimento analítico que ignora a


heterogeneidade e a polifonia por que os discursos são afetados pelo exterior,
ainda que sejam oriundos de sítios discursivos circunscritos a uma mesma
cadeia de significantes e pertencentes a um mesmo campo discursivo. Essa
concepção de organização dos discursos tem em vista um sujeito que, no
caso, é o sujeito assujeitado da Análise de Discurso, aquele levado a “pensar
que é livre, quando de fato está inserido numa ideologia, numa instituição da
qual somos apenas porta-vozes. Você não fala, é um discurso anterior que fala
através de você”, resume Possenti (1990). Esse assujeitamento a uma única
forma de pensar do sujeito inserido numa dada cadeia discursiva é levado ao
extremo na fase da maquinaria.
Contudo, nesse sentido, também, a autocrítica se instaura no âmago
das discussões: se se partia da ideia de que haveria um discurso que definia
(caracterizaria) os discursos em geral (o discurso religioso, o discurso médico-
científico, o discurso jurídico e etc.), cuja explicitação daria conta de apresentar
efetivamente como um dado discurso era organizado (por exemplo, como
se o modo de pensar dos sujeitos pertencentes a um partido político de
______ [ 23 ]
esquerda fosse sustentado por um discurso, cujo espaço de “origem” e
“circulação” estivesse restrito aos sujeitos daquela condição discursiva), isso é
reconsiderado em razão do conceito de Formação Discursiva apropriado de
Foucault e da presença do conceito de Interdiscurso, que passam a marcar a
segunda fase da Análise de Discurso.
Nesse momento, a teoria passa a trabalhar com a ideia de “relações
entre as ‘máquinas’ discursivas”, em que “uma FD não é um espaço estrutural
fechado, pois é, constitutivamente, ‘invadida’ por elementos que vêm de
outro lugar (isto é, de outra FD) que se repetem nela, fornecendo-lhe suas
evidências discursivas fundamentais.” (PÊCHEUX, 1993, p. 314). A ideia de
dispersão, apresentada por Foucault, “estoura” definitivamente com a ideia
de maquinaria, afetando, sobretudo, a “construção dos corpora discursivos,
que permitem trabalhar sistematicamente suas influências internas desiguais,
ultrapassando o nível da justaposição contrastada”. (PÊCHEUX, 1993, p.
315).
Destaca-se que, se o conceito de formação discursiva representou um
avanço na teoria, algo se mantinha: se a AD-1 partia do princípio de que uma
FD estaria na “origem” do discurso em análise e, por meio da prática analítica,
chegar-se-ia à sua qualificação, no segundo momento, a ideia de fechamento se
mantém em razão da ideia de confronto. Ter-se-iam formações discursivas em
conflito como se se tivesse FDxFD que gerariam, na análise de um discurso,
pelo menos, duas formas de “pensar” uma questão (o confronto entre os
partidos de direta e de esquerda, por exemplo), mantendo-se a concepção de
que o sujeito “continua sendo (...) puro efeito de assujeitamento” (PÊCHEUX,
1993, p. 314) aos Aparelhos Ideológicos do Estado (conforme Althusser).
Como citado, a evidência da noção de Interdiscurso, nessa segunda
fase, fez “designar ‘o exterior específico’ de uma FD enquanto este irrompe
nesta FD para constituí-la em lugar de evidência discursiva, submetida à lei
da repetição fechada [conforme o proposto na AD-(1)]”. (PÊCHEUX, 1993,
p. 314). Compreender o assujeitamento, que é o ponto nevrálgico da teoria
que supera o sujeito da enunciação e a sua autônoma subjetividade, passa a
ser uma prática para a Análise de Discurso que vê o sujeito como atravessado
pelo interdiscurso e por ideologias que determinam o dizer.
O conceito de interdiscurso, assim como o de memória, pré-
construído e discurso transverso são fundamentais para as reflexões que
sustentam as análises, porque eles são pano de fundo para os momentos de
análise, respaldando-as.
É, contudo, na AD-3, que se desmonta definitivamente as maquinarias
presentes na AD-2, assim como na AD-1. Pêcheux (1993, p. 315-316) firma
______ [ 24 ]
o propósito do “primado teórico do outro sobre o mesmo” e assegura as
evidências tanto da “desestabilização das garantias sócio-históricas”, quanto
da “desestabilização discursiva do ‘corpo’ das regras sintáticas”. Outro
ponto importante dessa “revisão” teórica pela qual passa a Análise de
Discurso diz respeito ao “estudo da construção dos objetos discursivos e
dos acontecimentos, e também dos ‘pontos de vista’ e ‘lugares enunciativos
no fio intradiscursivo’.” (PÊCHEUX, 1993, p. 316). Entra em cena,
também, o conceito de heterogeneidade mostrada e constitutiva de Authier-Revuz
(apud MAINGUENEAU, 1997, pp. 75 a 110), isto é, as heterogeneidades
enunciativas que marcam, segundo Pêcheux (1993, p. 316), as “formas
lingüístico-discursivas do discurso-outro”. Nessa ruptura, des-configura-se o
sujeito central do ego-eu, tendo-se a incursão pela psicanálise, que propicia a
problematização, por parte de Pêcheux, sobretudo da
sistência de um ‘além’ interdiscursivo que vem, aquém de todo autocontrole
funcional do ‘ego-eu’, enunciador estratégico que coloca em cena ‘sua’
seqüência, estruturar esta encenação (nos pontos de identidade nos quais o
‘ego-eu’ se instala) ao mesmo tempo em que a desestabiliza (nos pontos de
deriva em que o sujeito passa no outro, onde o controle estratégico de seu
discurso lhe escapa (PÊCHEUX, 1993, p. 316-317).

Ainda que de forma sucinta, incompleta e lacunar (como não poderia


deixar de ser), buscou-se construir um percurso da Análise de Discurso.
Sobre as reflexões de Pêcheux, talvez o autor não imaginasse a
repercussão que os seus estudos tomariam, no Brasil, sobretudo, encabeçados
por pesquisadores que despontam no cenário nacional e internacional, cuja
menção de um e outro nome seria inapropriado, frente aos importantes
trabalhos produzidos na área. Estes trabalhos, oscilando entre as vertentes
mais ortodoxas da Análise de Discurso e as novas perspectivas abertas, têm
revelado o quanto a teoria do discurso fundada por Pêcheux tem sido fecunda.
Por meio dela, é possível olhar para os discursos que circulam na sociedade
de modo menos ingênuo, mais crítico, mais incomodado, mais provocado:
tanto pelo que os discursos dizem, mas, acima de tudo, pelo que não dizem,
de modo que cabe ao analista buscar, dentre as possibilidades abertas pelo
dizer, também aquilo que não é dito, mas que significa, que faz sentido e que
constrói novas relações de significantes não pensados, talvez, até mesmo, não
desejados.

______ [ 25 ]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: notas sobre os


aparelhos ideológicos de estado. (Trad. Valter José Evangelista e Maria Laura
Viveiros de Castro). 7.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

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Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira; colaboração de Lúcia T. Wisnik e Carlos
Henrique D. chagas Cruz. 9 ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Trad. de Eduardo Guimarães. São


Paulo: Pontes, 1987.

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Neves. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

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discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. (Trad. Bethânia S.
Mariani et al.). 2.ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.

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Ana Raquel e SALGADO, Luciana (orgs.). Ethos Discursivo. São Paulo:
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MALDIDIER, Denise. A Inquietação do Discurso: (Re)ler Michel Pêcheux
Hoje. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. São Paulo: Pontes, 2003.

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3 ed. São Paulo: Pontes, 2001a.

______ [ 26 ]
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Pontes, 2001b.

_____. Discurso e Leitura. 5 ed. São Paulo: Cortes; São Paulo: Editora da
Universidade Estadual de Campinas, 2000.

_____. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.


Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

_____. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5 ed. São Paulo:


Editora da UNICAMP, 2002. (Coleção Repertórios).

PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). IN: GADET,


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_____. Ler o arquivo hoje. IN: ORLANDI, Eni Pulcinelli (org.) [et al]. Gestos
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_____. e FUCHS, Catherine. A propósito da análise automática do discurso:


atualização e perspectivas (1975). IN: GADET, Françoise e HAK, Tony. Por
uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel
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POSSENTI, Sírio. Teoria do Discurso: um caso de múltiplas rupturas. IN:


MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução à
Linguística: fundamentos epistemológicos, v. 3. 2 ed. São Paulo: Cortez,
2005.

______ [ 27 ]
NOTAS

1) Esse texto é parte da fundamentação teórica pertencente ao trabalho de doutoramento,


intitulado “Entre as linhas do Discurso de Conforto Espiritual: uma análise da Literatura
Nar-Anon”, orientado pela professora Drª. Mariângela Peccioli Galli Joanilho e defendido em
23/03/2012, pelo programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Londrina, UEL, com apoio da Fundação Araucária/SETI, por meio da concessão
de Bolsa para Capacitação Docente.

2) Aqui, o conceito de polifonia está sendo tomado da perspectiva de Ducrot (1987). Para o
autor, significa a presença, na enunciação, de uma “superposição de diversas vozes” (p. 172) e,
mais, significa “a existência, para certos enunciados, de uma pluralidade de responsáveis, dados
como distintos e irredutíveis” (p. 182).

______ [ 28 ]
CAPÍTULO 2

A OPACIDADE
DA LÍNGUA, DA
HISTÓRIA E DO
SUJEITO:
UMA REFLEXÃO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO DO FEMININO

Franciele Luzia de Oliveira Orsatto


É consenso afirmar que, ao longo dos anos, o papel da mulher na sociedade
vem sofrendo profundas transformações. Principalmente a partir da década
de 1960, com a organização dos movimentos feministas, ocorreram mudanças
quanto à posição da mulher no cenário político, no mercado de trabalho e em
relação à sexualidade. Assim, pode-se pensar, a princípio, que os discursos
sobre a mulher também mudaram: se agora a mulher ocupa espaços sociais
antes masculinos, infere-se que alguns discursos “antigos” tenham deixado
de fazer sentido. Porém, tal conclusão é precipitada, porque a relação que se
estabelece entre a realidade e o simbólico não é unidirecional, automática ou
literal.
A Análise de Discurso, disciplina inaugurada por Pêcheux e originada
a partir da confluência entre o Materialismo Histórico, a Linguística e a
Psicanálise, prevê instrumentos teóricos para pensar questões como essa. Ao
analisar o discurso a partir de sua emergência no interior formações discursivas
(doravante, FDs), que materializam formações ideológicas (doravante, FIs), o
simbólico é pensado a partir de sua relação inescapável com as condições de
produção e o extralinguístico. Assim, é possível observar a tensão que ocorre,
no plano discursivo, entre paráfrase e polissemia, ou seja, entre o mesmo
e o diferente. Se o papel social da mulher mudou, como se supõe (numa
proporção talvez maior do que a realidade demonstra), até que ponto também
mudaram os discursos?
O que é dito sobre a mulher na esfera midiática, ao mesmo tempo
em que, de certa forma, reflete a maneira como a sociedade vê a mulher,
também contribui para manter ou modificar essa imagem. O processo de
representação do feminino, como qualquer processo discursivo, deve ser
compreendido a partir da opacidade, reflexo de um conjunto de elementos
opacos: língua, história e sujeito. Isso porque lida com uma língua que não é
transparente, com uma história que nos atravessa e sobre a qual não temos
controle e com um sujeito que, “iludido” pelo esquecimento, enuncia algo
______ [ 30 ]
que não lhe pertence e do qual não é a origem.
Este estudo tem por objetivo discutir a opacidade da língua, da história
e do sujeito, pensando em como essa opacidade caracteriza os discursos que
circulam no interior da esfera midiática. Em um primeiro momento, propõe-
se uma discussão teórica sobre a AD, focando essas questões, com base em
autores como Pêcheux (1997), Orlandi (2001) e Possenti (2005). Em seguida,
são analisados alguns enunciados da revista Nova, uma das publicações que
compõe o corpus de pesquisa do doutorado em Letras, em desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Para a AD, a língua não pode ser vista como um sistema autônomo
que os falantes mobilizam para traduzir o que pensam e o que sentem. A
ideia de tradução de um pensamento pré-concebido é inaceitável para a
teoria, assim como a existência de uma estabilidade inabalável do sistema
linguístico. Rompendo com o corte saussureano da língua versus fala, a língua é
considerada, pela AD, como parcialmente autônoma. Isso porque, ao mesmo
tempo em que ela tem suas regras próprias de fonologia, morfologia e sintaxe,
elas são colocadas em funcionamento segundo um processo discursivo, numa
certa conjuntura (POSSENTI, 2005). A língua interessa à AD, portanto,
quando considerado o seu funcionamento, ou seja, à medida que instaura
relações discursivas entre sujeitos.
Segundo Orlandi (2001), a língua é condição de possibilidade
do discurso. É ela que permite que textos sejam materializados e, por sua
vez, materializem discursos – e é nesse processo que efeitos de sentido são
construídos. Deve-se destacar que não há a construção de um sentido, mas
de efeitos de sentido. Em outras palavras, não é possível atravessar o texto
ou a suposta transparência da língua para descobrir o sentido que está do
outro lado; a língua é marcada pela opacidade e dá margem ao equívoco, ao
deslizamento e à polissemia.
Diferentemente da análise de conteúdo, a AD não trabalha com
o levantamento de informação, mas se preocupa com o funcionamento
discursivo. E, diferentemente da Semântica Formal – duramente criticada
por Pêcheux (1997) –, a AD não se preocupa com a dimensão estrutural
da língua com uma intensidade que seja capaz de esvaziá-la de sentido. Ao
contrário: a AD concebe o que é dito a partir de seu caráter inseparável da
sociedade que utiliza a língua e a partir da qual é possível pensar na gênese
______ [ 31 ]
dos enunciados. Em outras palavras, forma e conteúdo não se separam, pois
a língua é estrutura e acontecimento.
Quando se fala em acontecimento, fala-se do ponto em que um
enunciado instaura um novo processo discursivo, inaugurando uma nova
forma de dizer (FERREIRA, 2001). Porém, isso não ocorre de maneira
controlada e consciente. A fronteira entre o novo e o repetível é sempre
instável e sem demarcações claras. A formulação do novo não é acessível ao
sujeito enquanto indivíduo, mesmo que tenha a ilusão de que tem o poder de
criar. Trata-se de um processo inscrito na história, que não é linear e sobre o
qual o sujeito não tem controle.
O que o sujeito enuncia não se origina nele, por mais que ele tenha
a impressão de ser a fonte do sentido (processo denominado “esquecimento
ideológico”). O que dizemos não nos pertence, pois nosso enunciado apenas
ecoa sentidos já-lá. Somos meros porta-vozes do que é colocado em cena
pela memória discursiva, ou seja, de vozes que falam por si. Assim, não há
um sentido correspondente a uma representação literal da realidade que
“atravessa” um indivíduo transparente. Eis a opacidade do sujeito: os sentidos
são mobilizados por sujeitos inscritos em posições sociais, afetados pela
ideologia, pela história e pelo inconsciente.
Não há discurso, nem língua, nem sujeitos “neutros”. O discurso
carrega história e ideologia. A língua revela como a comunidade que a utiliza
se relaciona com o mundo real e a maneira como ela o interpreta. O sujeito
diz o que diz de acordo com as posições-sujeito que ocupa, no interior das
FDs que determinam o que dizer e no interior de FIs que determinam o que
pensar. Em outras palavras, o sujeito só é sujeito (em oposição ao indivíduo
biológico), porque a ideologia o interpela e porque o assujeitamento o
caracteriza.
Outra suposta transparência que a AD põe em causa refere-se à
história. Para Orlandi (1994), a história não deve ser pensada como sucessão
de fatos com sentidos dados; sua materialidade não pode ser apreendida em
si, mas no discurso: “Não estamos pensando a história como evolução ou
cronologia, mas como filiação; não são as datas que interessam, mas os modos
como os sentidos são produzidos e circulam” (ORLANDI, 1994, p. 58).
Tanto a história quanto a ciência não são caracterizadas pela
objetividade, mas sofrem um processo de naturalização realizado pela
ideologia. A evidência da história e do(s) sentido(s), construído(s) a partir
de determinações históricas, é uma produção ideológica. A opacidade da
história, portanto, também deve ser considerada, quando se propõe a analisar
o discurso, em especial, o da mídia, porque é a mídia, “em grande medida,
______ [ 32 ]
que formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a
identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente” (GREGOLIN,
2008, p. 16).

A MULHER EM REVISTA:
REALIDADE, FICÇÃO E CONTRADIÇÃO


Considerando as discussões teóricas realizadas até aqui, propõe-se
uma análise de enunciados da revista Nova à luz da AD francesa. Pode-se
dizer que a publicação é um veículo que circula no interior da esfera midiática,
em uma zona fronteiriça do jornalismo, cujo foco oscila entre informação
e entretenimento. Ao lidar com o simbólico e mobilizar vozes advindas de
diferentes FDs, a revista vai além da exposição de conteúdo informativo,
colocando-se, muitas vezes, no papel de “conselheira”, oferecendo
direcionamentos sobre como agir e, consequentemente, construindo uma
ideia do que é ser homem, ser mulher, ser negro, ser professor etc. Constroem-
se, a partir do que ora se mostra explicitamente, ora se oculta nas entrelinhas,
representações dos papéis sociais em questão.
A revista Nova é direcionada ao público feminino solteiro e jovem,
com idade entre 20 e 35 anos. Ela é uma versão nacional da Cosmopolitan, a
revista feminina mais vendida no mundo, e trata de assuntos como moda,
sexo, relacionamentos, carreira e celebridades. Se comparada às revistas
femininas que circulavam anteriormente ao seu lançamento, Nova chama a
atenção por não ser pensada para a mulher financeiramente dependente do
marido, que cuida da casa e dos filhos:

A revista Nova surge no Brasil, objetivando conquistar um público de


mulheres brasileiras que se diversificava cada vez mais: mulheres que
se distinguiam por diferentes estilos de vida; mulheres que tinham novas
expectativas de vida, em decorrência da liberação sexual; mulheres casadas,
mas principalmente não casadas (solteiras e descasadas), cujas preocupações
não eram mais o lar, mas a sexualidade e a independência financeira (SILVA,
2003, p. 183).

A revista, portanto, seria direcionada a uma “nova mulher


brasileira”, que surgiu após a emergência do feminismo, da descoberta da
pílula anticoncepcional, da inserção da mulher no mercado de trabalho e da
liberação sexual. O discurso da revista permite notar novas preocupações,

______ [ 33 ]
alheias ao ambiente doméstico, como se nota nas seguintes chamadas de capa,
para citar dois exemplos: “Qual é o seu tipo sexual? Faça o teste e descubra”
(NOVA, ed. 453, jun. 2011); “De demitida a promovida: saia da lista negra do
seu chefe para a lista vip do mercado” (NOVA, ed. 452, mai. 2011). Porém,
a abordagem sobre temas antes ignorados e/ou o tratamento mais ousado
para falar sobre esses assuntos realmente reflete a emergência de uma “nova
mulher”, independente e equiparada ao homem? Até que ponto é possível
identificar que se trata de uma “nova mulher”? Por trás de uma aparente
ruptura, seria possível identificar pontos que reforçam a doxa dominante
sobre a imagem do feminino? Estes são alguns questionamentos que surgem
a partir desse objeto de estudo.
No presente texto, focaliza-se a edição 466 da revista, de julho de
2012. A capa traz a imagem de uma mulher bem maquiada, de cabelos longos
e esvoaçantes. Trata-se de uma atriz de novela em evidência no momento, que
é identificada por meio de uma declaração que acompanha a foto: “Débora
Nascimento: ‘Hoje sei por que sou desejada’”. O enquadramento da foto
valoriza o corpo feminino como objeto de desejo, deixando apenas as pernas
fora do quadro. A atriz veste apenas a parte de baixo de um biquíni e uma
jaqueta aberta, deixando os seios quase totalmente à mostra. A foto encobre,
parcialmente, o nome da revista – o que não compromete a sua identificação
pela leitora, já que se mantém uma identidade visual: a fonte utilizada em toda
a capa e a disposição do título na página são sempre as mesmas.
A revista segue esta fórmula há várias edições: traz uma mulher de
destaque no momento, geralmente uma atriz, valorizando as formas do corpo
(magro e bem torneado) e a sensualidade. Acompanhando a foto, apresenta
uma declaração da mulher fotografada, com o objetivo de instigar a leitora a
conferir, nas páginas internas, a entrevista realizada com ela. As declarações
geralmente tratam de beleza, amor, sexo e sucesso pessoal e profissional. Na
edição analisada, por exemplo, o destaque é dado à questão da sexualidade.
Juntamente com a foto, o texto aciona a imagem de uma mulher que toma
atitudes para ser desejada: cuida do corpo, da roupa, da pose. Assim, a revista
não só atende às leitoras que também querem ser desejadas – assim como
a atriz, que compartilhará seu “segredo do sucesso” – mas determina, via
discurso, que é importante ser desejada. Para Foucault (2000), o discurso é uma
violência que fazemos às coisas. Em face disso, vê-se que a relação entre o
discurso e as condições externas de possibilidade, a partir das quais ele se
origina, não é especular. O discurso não apenas reproduz, mas tem o poder
de dizer como o mundo material deve ser.
A importância da beleza também é reforçada em outras chamadas
______ [ 34 ]
de capa da edição. Na tabela abaixo, são listadas todas as chamadas da edição
analisada:

Como se nota na tabela, confrontada com a fotografia da capa, a


beleza tem um lugar de destaque (chamadas 6 e 7). Isso não é notado apenas
nos temas das matérias, mas também na publicidade presente no interior da
revista; há anúncios de maquiagem, xampu, meias e pílulas para combater a
celulite, suplementos vitamínicos para “você ficar linda em todos os ângulos”,
lingerie, produtos relacionados à saúde (incluindo uma balança) etc. Poucos
anúncios não se enquadram na linha de cuidados com o corpo e com a
beleza, como o de uma emissora de rádio, de um aromatizador de ambientes
e de perfume masculino (sugestão de presente para o Dia do Homem,
recentemente instituído).
A chamada de capa 6 remete à ideia almejada por muitas mulheres
de alcançar a beleza (algo que parece se impor) sem esforço, com a ajuda
da medicina. Já a chamada 7 se refere à ideia de alcançar a beleza com
praticidade, conciliando essa busca com outras tarefas da mulher. Diante
disso, pode-se pensar: por que a mulher precisa fazer esse esforço para
ficar bonita, ou melhor, linda e poderosa? Entre as tarefas que precisam ser
conciliadas, ao lado do cuidado com a carreira profissional, estariam, talvez,
______ [ 35 ]
cobranças antigas a que a mulher precisa atender, como cuidar dos serviços
domésticos, do marido/namorado – ou da busca por esse par, dos serviços
domésticos e dos filhos? Parece se apresentar a necessidade de construção
de uma supermulher, apresentada como projeção ideal, mas apenas ficcional.
Em contraponto a essas expectativas, a mulher real não consegue atender a
tudo o que lhe é cobrado – o que gera frustação. Essa frustação está, inclusive,
presente na revista. Na seção “Dr. Gaudencio Explica”, o psiquiatra Paulo
Gaudencio responde a dúvidas das leitoras. Na edição em análise, as duas
cartas respondidas pelo médico exemplificam essa questão:

Estou cansada dos papéis que desempenho: dar atenção ao meu namorado,
à minha mãe, ao meu trabalho, aos meus estudos... Estou sufocada. Não saio
com amigas, não compro roupas para mim, não me mimo.

Dou muita atenção ao que os outros estão pensando. Me preocupo demais


se vou agradar os outros e chego até a me endividar comprando roupas caras
para impressionar. Mudo de opinião para satisfazer quem está por perto.
Não sei quem sou e me sinto perdida.

Por meio das cartas das leitoras, emerge um discurso que contradiz o
que é sustentado pela FD da revista. Enquanto a FD assumida pela publicação
sustenta que é possível ser uma mulher linda e poderosa, que atende a todas as
expectativas, a FD das leitoras demonstra que isso não é possível. Porém,
apesar da contradição, não há uma relação conflituosa entre essas duas FDs.
Isso porque o que elas compartilham tem mais força do que os pontos
em que elas se diferenciam: ambas as FDs veem a mulher linda e poderosa
como o que deve ser buscado. Há, portanto, um interdiscurso que atravessa
essas duas FDs, que está presente “no próprio coração do intradiscurso”
(MAINGUENEAU, 2007, p. 38). Essa relação entre as FDs e sua exterioridade
é sempre dissimulada, como alerta Pêcheux (1997):

o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência


do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do
interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade
material essa que reside no fato de que ‘algo fala’ sempre ‘antes, em outro
lugar e independentemente’ (PÊCHEUX, 1997, p. 162).

Outro ponto que deve ser observado, ainda em relação à chamada 7,


refere-se à união dos termos linda e poderosa, realizada por meio da conjunção
aditiva “e”. Estruturalmente, a conjunção apenas soma duas qualidades
almejadas pela mulher; por outro lado, no plano discursivo, pode-se dizer
que não há simplesmente uma adição. Um deslizamento de sentidos também
______ [ 36 ]
é possível, permitindo que haja também outra relação entre os dois termos:
a de que, para ser uma mulher poderosa, é preciso ser linda. Por meio de uma
relação entre a chamada e a capa da revista, pode-se pensar que ser uma
mulher poderosa equivale a ser desejada sexualmente. Observa-se, pois, no interior
destas FDs, a construção de processos metafóricos e de sinonímia: são usadas
palavras diferentes, mas que convergem para os mesmos sentidos, que se
repetem e se reforçam.
Além da beleza, outro assunto tratado pela revista são os
relacionamentos amorosos. Observa-se uma preocupação com o que é
considerado o “sucesso” da mulher nesse campo. As chamadas 1, 3 e 5 são
voltadas para isso. A chamada 1, “26 atitudes para você conquistar o namorado
dos seus sonhos”, destaca a busca da mulher por um companheiro – e,
assim como a busca pela beleza, também parece se impor como necessária.
Mais uma vez, a revista dita comportamentos. Na matéria correspondente
à chamada, são dados conselhos: “nada de passo de cachorra na pista” e
“não fale de filhos e casamento”. Como mostra a capa, a mulher deve ser
sensual (mas não pode ser cachorra), deve buscar um companheiro (mas não
pode falar de casamento). Curiosamente, também nesta edição, há o anúncio
do “Anuário Noivas” da editora Caras, que traz dicas de vestidos, alianças,
buquês, decoração etc. Assim, pode-se pensar que a instituição tradicional do
casamento ainda é almejada pela mulher. Porém, para realizar seu “sonho”,
ela deve fingir que é poderosa e independente e que não pensa nisso.
Na chamada 3, “Como transformar seu relacionamento em um
case de sucesso”, demonstra-se, mais uma vez, a preocupação com os
relacionamentos amorosos. A chamada é direcionada para a mulher que está
comprometida e, infere-se, que não quer perder seu parceiro. Ao utilizar o
termo “case” em vez de outros que poderiam estar presentes (como “exemplo”
ou, mesmo, “caso”), aciona-se uma referência ao mundo dos negócios, pois
case de sucesso é, geralmente, uma história de uma empresa ou profissional
bem-sucedido e é contado com o objetivo de mostrar caminhos que levaram
a atingir resultados positivos. Nota-se que há uma tentativa de mostrar a
integração da mulher ao mundo dos negócios: não se fala com uma mulher
que não domina esses termos e que está fora do mercado de trabalho. Porém,
ao mesmo tempo em que isso acontece, percebe-se que a referência a esse
universo não ocorre devido a questões profissionais; tanto é que não há, nessa
capa, nenhuma chamada que aborde essas questões. Apesar da pressuposição
de que a mulher desempenha um papel profissional, o destaque é dado à sua
relação com o homem – ainda que de outra forma, se comparado a épocas
anteriores, quando a mulher não fazia parte desse espaço social.
______ [ 37 ]
A chamada 5, “Você é exigente demais com os homens? Cuidado:
isso pode afastar aqueeele gato”, demonstra uma preocupação em encontrar
um parceiro. Devido à presença dessas três chamadas na capa, pode-se inferir
que ter um relacionamento é algo importante para a mulher: provavelmente,
mais do que o sucesso em outras questões, como a atuação profissional. Se já
é comprometida, a mulher busca estratégias para manter o parceiro; se ainda
não é, quer ser. Para isso, talvez ela precise diminuir suas expectativas em
relação ao sexo oposto ou ficará sozinha. Em outras palavras, determinadas
exigências não devem ser feitas para garantir que um homem esteja ao lado –
um preço que a mulher precisa pagar.
O assunto de maior destaque na capa da Nova em análise é a sexualidade.
A chamada 2, que apresenta o termo “Sexo lacrado” em fonte maior e de cor
diferente do restante do texto, parece dialogar com a fotografia (uma mulher
que quer ser desejada sexualmente). Para ler a seção “sexo lacrado”, é preciso
destacar uma espécie de lacre que “protege” o conteúdo e traz o seguinte
enunciado: “Voucher do prazer: válido por tempo indeterminado”. Se, em
tempos anteriores, só o homem poderia falar do assunto – o que demonstrava
uma visão machista e conservadora –, atualmente a Nova se propõe a falar
de sexo com a mulher, a quem também está autorizado o direito de buscar o
prazer sexual. O prazer da mulher é reforçado nas chamadas: fala-se em “spa
erótico para você (mulher leitora) relaxar e gozar”; em “barmen pelados”
que a agradariam, em “balada liberal” que pode ser desfrutada entre as
solteiras – algo impensável há alguns anos, visto que o sexo só era aceitável
no casamento, ao menos para a mulher – e citam-se, também, manifestações
diferentes da heterossexualidade, ao se colocar o depoimento de uma mulher
que teve prazer com outra mulher.
Porém, nota-se que a conversa parece se dar de maneira “escondida”:
não se pode falar sobre sexo com naturalidade, pois este é um assunto
“lacrado”, ou seja, um tabu. Talvez aí se manifestem resquícios de que, apesar
da liberação sexual a partir da década de 1960, a mulher ainda é, de certa
forma, reprimida sexualmente. Tanto é que os conselhos que são dados a ela
(como “nada de passo de cachorra na pista”, já comentado anteriormente)
parecem remeter a formas de controlar o exercício da sexualidade.
Logo abaixo das chamadas da seção “Sexo lacrado”, aparece a
chamada 4, “Turbine sua energia JÁ”. Esta chamada se refere a uma matéria
que traz dicas de saúde e bem-estar, de maneira geral. Mas a localização na
capa, abaixo do assunto “sexo”, permite uma associação de modo que a
“energia” de que fala a chamada seja interpretada como a energia para o sexo
– um dos assuntos englobados pela matéria nas páginas internas. Observa-
______ [ 38 ]
se, aí, portanto, um deslizamento de sentidos. Um significante – energia – é
associado a sentidos que não se referem a uma possível literalidade, mas a seu
entorno textual que, por sua vez, se refere a um espaço discursivo, utilizando-
se a terminologia proposta por Maingueneau (2007). Dizendo de outra forma,
os sentidos não estão ligados indissociavelmente a seus significantes, visto
que só podem tomar forma a partir do extralinguístico que os determina.
Trata-se de um sentido – ou melhor, efeito de sentido – que vem à tona
sem que se tenha controle sobre ele. Fazendo referência à Psicanálise, a qual é
constitutiva da AD, pode-se dizer que se observa aí a primazia do significante
sobre o significado: a energia sofre um deslizamento e, por mais que os editores
da revista afirmem que “não quiseram dizer” energia sexual ou energia para o
sexo, este é um sentido que emerge a partir de uma causa que não se pode
controlar, advinda do inconsciente. Como afirma Pêcheux (1997), só há causa
daquilo que falha; esta falha, portanto, que produz derivas de interpretação,
não é aleatória.
De maneira geral, observa-se que a edição em análise permite
tirar algumas conclusões, ainda que preliminares, sobre a organização da
revista. O eixo central da publicação é pautado em três assuntos: beleza,
relacionamentos, sexualidade. Assim, fala-se para uma mulher que deve buscar
ser linda (provavelmente para encontrar um parceiro), que deve buscar o
sucesso no amor (o que é materializado por ter um “gato” a seu lado), e que
tem direito ao prazer sexual (porém, que só pode/deve falar de sexo em um
espaço restrito, pois este é um assunto “lacrado”).
Quanto ao prazer sexual, antes restrito ao universo masculino, a mulher
pode agora buscá-lo, contanto que faça isso de maneira socialmente aceitável,
ou seja, sem ser “cachorra” – como apontam conselhos nas páginas internas.
Nota-se aí uma contradição, pois, ao mesmo tempo em que se fala de práticas
sexuais mais liberais, aconselha-se que a mulher não pode parecer sexualmente
liberal, ou será considerada “cachorra”. Tais contradições demonstram
que, por mais que a FD da revista seja aparentemente caracterizada pela
homogeneidade, há brechas que permitem o atravessamento do interdiscurso;
é no espaço contraditório das relações de reprodução e transformação da
sociedade que esses discursos se formam e, assim, a contradição também os
constitui.
Outro ponto a ser destacado sobre a revista é o papel do homem,
que parece ter um lugar importante no universo de interesse feminino: infere-
se, pois, que o sucesso e a felicidade da mulher são atrelados ao universo
do sexo oposto, pois só são encontrados quando ela atende às expectativas
masculinas – ou, mais amplamente, expectativas sociais consideradas como
______ [ 39 ]
expectativas masculinas, visto que não é apenas o homem o responsável
por essas “cobranças”. As matérias de relacionamento materializam essa
importância. Se a mulher está sozinha, deve lutar para conquistar um
companheiro (cuidando da aparência); se está comprometida, deve lutar para
manter seu par. Nos dois casos, a presença masculina, se não é fundamental,
é, no mínimo, muito valorizada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um primeiro momento, pode-se pensar que a revista em análise


esteja inserida em uma FD que se contrapõe à visão tradicional sobre o papel
da mulher, anterior à emergência do feminismo. Conforme já comentado,
antes da década de 1960, a mulher era reprimida sexualmente, tinha uma
participação muito restrita no mercado de trabalho e devia se dedicar às
tarefas domésticas, ao marido e aos filhos. Gradualmente, a história vem se
transformando e, em alguns aspectos, a mulher hoje não é a mesma mulher do
passado. Como materializado nas chamadas de capa, ela se insere no mercado
de trabalho, é sexualmente mais liberal e tem poder de compra para cuidar de
tratamentos estéticos e adquirir produtos de beleza.
No entanto, quando se analisam as contradições presentes no
interior da FD da revista, é possível encontrar os limites da suposta liberdade
feminina. A mulher nova, independente financeiramente, linda e poderosa, revela
resquícios da subordinação ao masculino. Ela deve se colocar como mulher-
objeto, desejada sexualmente, disposta a atender aos anseios do homem;
deve, também, esforçar-se para cumprir os papéis que se impõem – e,
provavelmente, esses papéis estejam mais próximos dos papéis antigos do que
possa aparentar. Por trás de uma imagem de poder – que, por ser necessário
afirmar, não é algo evidente e já conquistado –, talvez se esconda uma posição
de fragilidade diante da busca pela aceitação do outro (não só o homem, mas
a própria sociedade).
Assim, observa-se que, em alguns pontos, há a construção de uma
nova mulher, mas, ao mesmo tempo, em um nível mais profundo, reforça-
se o lugar da mulher antiga: agora a mulher é financeiramente independente,
mais liberada sexualmente; mas ainda deve dar conta de outras tarefas, ainda
deve buscar um parceiro (devendo, talvez, almejar o casamento) e ainda não
se iguala, em termos profissionais, ao homem, pois deve colocar questões
como a beleza em primeiro plano (ainda que tenha que fazer sacrifícios para
______ [ 40 ]
isso). É nessa aparente nova roupagem que reside a eficiência da manutenção
de questões arraigadas quando se fala do papel da mulher: eis a dissimulação
própria efetuada por FDs em embate que, ao mesmo tempo em que digladiam
em relação a pontos divergentes, reforçam o que é compartilhado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, M. C. L. [et al]. Glossário de termos do discurso: projeto de


pesquisa: A aventura do texto na perspectiva da teoria do discurso: a posição
do leitor-autor (1997-2001). Porto Alegre: UFRGS. Instituto de Letras, 2001.

GREGOLIN, M. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades.


Comunicação, Mídia e Consumo. Vol. 4., n. 11, p. 11-25. São Paulo:
América do Norte, 2008.

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar


Edições, 2007.

ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos.


Campinas: Pontes, 2001.

______. Discurso, imaginário social e conhecimento. Em Aberto, Brasília, ano


14, n.61, p. 53-59, jan./mar. 1994. Disponível em: <http://www.publicacoes.
inep.gov.br/arquivos/{989E6257-8E1E-430D-9754-20131EF45B81}_
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PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do


óbvio. (Tradução Eni Pulcinelli Orlandi et al.). 3 ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 1997.

POSSENTI, Sírio. Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In:


MUSSALIN, Fernanda. BENTES, Anna Christina. (Orgs) Introdução
à linguística: fundamentos epistemológicos, volume 3. 2 ed. São Paulo:
Cortez, 2005.

SILVA, M. C. F. Os discursos do cuidado de si e da sexualidade em


Claudia, Nova e Playboy. 2003. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto
de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

______ [ 41 ]
CAPÍTULO 3

SOBRE O DISCURSO
JORNALÍSTICO QUE
RESSOA:
ESPAÇOS DE INSCRIÇÃO EM
OUTRAS MATERIALIDADES
DISCURSIVAS

Alexandre da Silva Zanella

Os sentidos não se constroem fora da história,


da memória e do interdiscurso. O homem
não chega à linguagem de forma privilegiada,
nomeando o mundo pela primeira vez.
Na sua voz, outras vozes ecoam.
(J. C. Cattelan, 2008, p. 36)
Uma reflexão sobre os modos de ressonância dos sentidos é o que constitui o
objetivo principal deste capítulo. O recorte proposto é uma adaptação de parte
de minha dissertação de mestrado, na qual analisei os sentidos sobre as cidades
médias brasileiras em uma reportagem especial da revista Veja (ZANELLA,
2012). Como corpus, elegi para análise, aqui, materialidades verbais que não o
especial da revista, a saber: cartas de leitores e peças publicitárias, nas quais
verifiquei um processo de retomada dos sentidos produzidos por Veja em sua
reportagem. Investigar, então, o funcionamento desse processo de retomada
é parte central da discussão ora proposta.
Na tentativa de investigar como os sentidos são recebidos como
evidentes pelos sujeitos, Pêcheux (2009 [1988]) aponta:

Se é verdade que a ideologia ‘recruta’ sujeitos entre os indivíduos [...] e


que ela os recruta a todos, é preciso, então, compreender de que modo
os ‘voluntários’ são designados nesse recrutamento [...]. (p. 144, itálico
do autor, grifos meus).

Considero, na esteira de Pêcheux (ibid.), que a “operação” da


ideologia mascara o caráter material do sentido da linguagem, o qual depende
de duas formas. A primeira é a de que o sentido é determinado pelas posições
ideológicas que são produzidas num processo sócio-histórico. Isto significa
que o sentido se altera conforme as posições das formações ideológicas1
que regulam as formações discursivas2 e os sujeitos (aquilo que dizem). A
segunda forma é a de que toda formação discursiva dissimula sua dependência
do interdiscurso, definido como o “todo complexo com dominante das
formações discursivas, [...] submetido à lei de desigualdade-contradição-
subordinação que [...] caracteriza o complexo das formações ideológicas” (p.
149), pela evidência do sentido. Portanto, a formação discursiva acoberta aquilo
que vem de antes e de outro lugar (histórico-ideológico).
Ainda de acordo com Pêcheux (2009 [1988]), assinala-se que o
imaginário do sujeito se identifica com a formação discursiva na qual está
inserido. A forma-sujeito seria, portanto, pautada no funcionamento
______ [ 43 ]
espontâneo do sujeito, no não reconhecimento dessa força de domínio.
Se a “realidade” se impõe ao sujeito por meio de um desconhecimento que
é, na verdade, fundado num reconhecimento compartilhado entre os (outros)
sujeitos, e que nesse reconhecimento é que se acobertam as determinações
que fazem com que o sujeito ocupe um dado lugar, é possível, para o analista
de discurso, verificar as identificações do sujeito através do interdiscurso. Em
outros termos, o sujeito, ao dizer, acessa sempre algo já dito, que ele atualiza
sem que se dê conta desse funcionamento. Isto provoca a ilusão de que ele é
senhor de seu dizer, efeito necessário à própria constituição do sujeito.
Essa ilusão ocorre porque há dois tipos de “esquecimento”
(PÊCHEUX, 2009 [1988]). O esquecimento número 2 refere-se à enunciação,
isto é, ao uso de uma forma de dizer selecionada dentre uma gama de
possibilidades ao invés de qualquer outra num sistema de enunciados, o que
dá a impressão de haver algum tipo de consciência nessas escolhas. Este tipo
de esquecimento produz como efeito a existência de uma conexão entre a
realidade e o pensamento, fazendo com que se pense que o que se diz só pode ser
dito de uma determinada forma, com determinadas palavras. O esquecimento
número 1, por sua vez, é acobertado pelo funcionamento do esquecimento
2. Este esquecimento põe que o sujeito não pode extrapolar os limites de
sua FD, dando a ilusão de que aquilo que diz é originalmente construído
por ele, proporcionando a fantasia da liberdade; “esquece-se”, de maneira
involuntária, que o que se diz já foi dito antes, por outrem (ORLANDI, 2010
[1999]; PÊCHEUX, ibid.).
A partir dessas colocações, para se chegar aos efeitos de sentido que
os discursos produzem, isto é, aos sentidos possíveis que são suscitados no
interlocutor a partir de um discurso determinado, não se pode partir da noção
de que o sujeito é livre, espontâneo e dono de si, mas, sim, das condições de
reprodução e transformação das relações de produção, tanto no contexto
imediato (englobando o onde, o quando, o para quê), quanto em âmbito amplo
(o ideológico determinado sócio-historicamente, como as relações sociais
e políticas envolvidas). Só então se considera que a ideologia tem uma
exterioridade que afeta o real.
Vale também apontar que a linguagem se (re)faz oscilando entre o
mesmo e o diferente, como diz Orlandi (2010 [1999]). Essa tensão funciona
por meio de processos de paráfrase e de polissemia. Segundo a autora,

Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há


sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase
representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-
se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase
______ [ 44 ]
está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos
é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o
equívoco. (ibid., p. 36, grifos meus).

Se todo dizer é sempre um já-dito, o que se instaura a partir dos


processos discursivos são cadeias ou parafrásticas ou polissêmicas. Os
sentidos vão nos meandros que levam os sujeitos ou ao mesmo lugar, e temos
então a paráfrase, ou a um lugar outro, e temos a polissemia. Nesse entremeio,
pode-se dizer que o sentido sempre pode ser outro, em face de que a língua
e a história afetam os sujeitos, isto é, dependem “de como trabalham e são
trabalhados pelo jogo entre paráfrase e polissemia” (ORLANDI, ibid., p. 37).
Para Pêcheux (2009 [1988]), uma questão cara à teoria do discurso
seria a do recrutamento ideológico. Segundo o autor, interessa considerar “de
que modo todos os indivíduos recebem como evidente o sentido do que ouvem e
dizem, lêem ou escrevem (do que eles querem e do que se quer lhes dizer),
enquanto ‘sujeitos-falantes’” (p. 144, itálicos do autor). Essa evidência se dá
entre as várias formações discursivas, isto é, no embate que as engendra. O
sujeito, nesse embate, é constituído no interior de uma formação discursiva,
mas, como diz Lagazzi (1988), “ao mesmo tempo constitui uma relação
própria com [ela], relação própria permeada pela história desse sujeito.” (p.
25).
Buscarei, pois, mostrar os modos como o discurso de Veja funciona
em dois momentos: a) ao recrutar sujeitos na seleção das cartas dos leitores e
b) ao reverberar em outras materialidades discursivas. Comecemos, pois, com
as cartas dos leitores.
De acordo com Soares (2006), as seções dedicadas à publicação de
cartas dos leitores compõem espaços de materialização de outras vozes que
não as da revista, isto é, daqueles que compõem seu corpo editorial. Nessas
seções, a proposta, ainda segundo o mesmo autor, é promover uma integração
entre o semanário e aqueles que o leem, permitindo que o leitor materialize sua
opinião, como se fizesse parte da construção daquele.
Conquanto esse sujeito, que chamarei aqui de leitor-autor, encontre
nessas seções um espaço que supostamente seria seu, onde haveria uma ilusão
de liberdade para dizer, pouco se sabe acerca do processo de seleção e edição
das cartas. De fato, sabe-se apenas que cabe à revista escolher quais, dentre as
cartas recebidas, serão publicadas e se, em caso afirmativo, serão publicadas
na íntegra, como se vê no informe de Veja:

PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas


para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de
______ [ 45 ]
identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação, VEJA [...].
Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas
resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente
seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana
(Revista Veja, 01/09/2010, p. 42, grifos meus).

Conforme Zanella (2012), a imprensa, ao proferir seus compromissos


com a objetividade, a imparcialidade, a neutralidade, etc., apresenta uma
concepção idealista de linguagem – “uma língua desambigüizada”, segundo
Mariani (1998) – e “esquece” o real da história e a luta de classes que afeta os
sujeitos e que faz com que os sentidos venham já dados, ao mesmo tempo em
que, antagonicamente, utiliza a língua “de modo determinado” (PÊCHEUX,
2009 [1988]), a seu favor. Há uma “eficácia ideológica da transparência
da informação [que] intervém na construção [...] de interpretações que se
apresentam para o leitor como a expressão da realidade” (MARIANI, 1999,
p. 111). Ainda com Mariani (ibid.), o problema da crença na neutralidade
do discurso jornalístico, produzida a partir de uma concepção de linguagem
transparente e objetiva, retrato do mundo, ainda não foi superado. Isso faz
com que fique apagado para o leitor que o discurso jornalístico deriva de redes
de filiações de sentidos às quais não se tem acesso. Por sua vez, essas filiações
parafraseiam sentidos hegemônicos que são relevantes para as instâncias que
os dominam.
Se o discurso jornalístico se quer imparcial, objetivo, neutro, etc., a
seção de cartas do leitor poderia constituir uma quebra neste ritual: nela, os
leitores poderiam, mediante identificação indispensável, corresponderem-se com
a redação da revista e terem, caso escolhidas, suas cartas publicadas. Produz-
se um efeito de sentido de que seria possível, neste espaço, dizer tudo quanto
se quisesse dizer, apresentar uma subjetividade; isso porque, na esteira de
Souza (1997), as cartas do leitor podem se configurar entre “dois espaços de
discurso” (p. 70), ou seja, as cartas que se inserem na instituição jornalística
são, ao mesmo tempo, também uma prática subjetiva, isto é, de emergência
de (uma) subjetividade. Isto poderia significar que não haveria, nesse tipo
de seção, necessariamente uma dependência ao discurso pretensamente
imparcial, neutro e objetivo da revista. Não obstante, também conforme
Souza (ibid.), há um “processo” de legitimação das cartas enviadas, ou seja,
há um “lugar institucional” que valida as cartas como “discursos pertinentes”
(p. 52) a ocupar um determinado espaço discursivo. Assim é que também se
pode compreender porque é aberto, na revista, um espaço para a voz do leitor.
Por outro lado, não há garantias sobre a fidedignidade do texto desse sujeito,
pois o texto pode ser resumido, como se viu na citação acima. Ainda que a
______ [ 46 ]
revista reserve um domínio à opinião do leitor, o seu conteúdo é mediado e
passa pelo crivo da edição. Nesse sentido, o semanário se reserva o direito de
escolher o que publicar.
No que diz respeito às cartas selecionadas para a análise neste estudo,
selecionei como recorte o total de cartas que faziam menção à reportagem
especial sobre as “Cidades médias: as 20 metrópoles brasileiras do futuro”,
publicado por Veja, em 1º de setembro de 2010. As cartas aparecem nas duas
edições posteriores de Veja, a saber: edição 2181, de 08/09/2010, e edição
2182, de 15/09/2010. Embora o semanário não apresente o total de cartas
recebidas com relação à reportagem sobre as “metrópoles do futuro”, há
uma indicação, na seção Leitor da edição 2181, de que o especial foi um dos
‘assuntos mais comentados’ da semana: “Assuntos mais comentados: Artigo
de J.R. Guzzo; Especial Cidades Médias; [...]” (Revista Veja, 08/09/2010,
p. 37, grifos meus). Essa seleção contempla, portanto, o total de sete cartas do
leitor publicadas com referência ao especial “Cidades médias”.
Observaremos, ao longo da discussão proposta, de que forma as
cartas publicadas no espaço supracitado comentam a publicação da revista.
Para Soares (2006),

O efeito produzido pela palavra comentário, em se tratando de imaginário


construído do discurso jornalístico, é o de que ali se pode e se deve
(principalmente) posicionar-se (ocupando uma posição-sujeito)
diante do que é lido, de forma que a matéria apenas sirva como um ponto
de partida para o que será posto, a partir desse primeiro texto (p. 195, grifos
meus).

Para Foucault (2009 [1996]), a noção de comentário traz consigo


uma função restritiva e coercitiva, ainda que seu papel possa ser “positivo
e multiplicador” (p. 36). Isso porque é um procedimento de controle que
retoma, fala sobre, transforma discursos e, assim, perpetua um determinado
dizer. Comentar é, pois, fazer ressurgir aquilo que é comentado, sobre o que
se comenta. Como diz Foucault: “O comentário conjura o acaso do discurso
fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo,
mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo
realizado” (ibid., p. 26, grifos meus). Comentar, retomemos, é então permitir
que um dado texto primeiro possa continuar em cena; é reabrir o ato já
encerrado e aplaudido para que seja, novamente, assistido e celebrado.
Nesse sentido, vejamos como o gesto de comentar ocorre de maneiras
distintas nessas sete cartas. O grupo de cartas que se apresenta na sequência é
marcado por leitores-autores que parabenizam Veja pela publicação:

______ [ 47 ]
CARTA 1: Parabéns pelo especial sobre as vinte metrópoles brasileiras
do futuro (Especial Cidades Médias, 1º de setembro). Percebi que os dados
sobre a elevação do PIB dos municípios se referem ao período de 2002 a
2007, e talvez por isso Três Lagoas (MS) não esteja relacionada entre as
cidades com maior crescimento industrial. Nos últimos dois anos, ela teve
um aumento do PIB de 300%, com o início da produção da Fibria (papel
e celulose) e de outras trinta fábricas de diversos setores. Além disso,
estão em fase de construção outra fábrica de celulose ainda maior e uma
siderúrgica. Também está projetada para 2014 a fábrica de fertilizantes
da Petrobras, que será a maior do país. Três Lagoas ocupa ainda a 56ª
posição entre os municípios exportadores do Brasil. Essa edição prova que
o futuro do Brasil está no interior. (Marco Garcia de Souza, Secretário de
Desenvolvimento Econômico; Três Lagoas/MS. Revista Veja, ed. 2181 de
08/09/2010, p. 51, grifos meus).

CARTA 2: Parabenizamos VEJA pela excelente reportagem sobre as


cidades médias brasileiras e desejamos trazer um adendo quanto ao papel
da indústria na economia de Campina Grande (“A rival de João Pessoa”,
1º de setembro). Aqui está situada a maior unidade têxtil do mundo
em uma única planta de produção, a Coteminas, com 160 000 metros
quadrados totalmente climatizados. Na cidade também se localiza a única
fabricante das sandálias Havaianas, a Alpargatas S.A., produzindo
650 000 pares por dia e empregando mais de 8 000 trabalhadores. As
duas empresas são responsáveis por 75% das exportações da Paraíba. O
Brasil está encontrando o caminho da descentralização da economia
e da interiorização do desenvolvimento. (Francisco de Assis Benevides
Gadelha, Presidente da Federação das Indústrias do Estado da Paraíba;
Campina Grande/PB. Revista Veja, ed. 2181 de 08/09/2010, p. 51, grifos
meus).

CARTA 4: Excelente reportagem. Lamento apenas que o mapa


que localiza Campina Grande (na pág. 112 da edição 2180 de VEJA) seja
o de Pernambuco. A cidade fica na Paraíba, estado ao norte de
Pernambuco. (Liliane Araújo; Campina Grande/PB. Revista Veja, ed. 2181
de 08/09/2010, p. 51, grifos meus).

CARTA 7: Meu pai contava que, ao tomar a decisão de assumir o cargo


que conquistara em concurso do Banco do Brasil, minha avó lhe perguntou:
“Mas, meu filho, onde fica essa cidade que nem no mapa existe?”. Como
ela poderia imaginar que, após 75 anos, Londrina se transformaria nessa
linda e nova metrópole regional? Parabéns por mostrar ao Brasil
pérolas não conhecidas por muitos. (Luiz Edgard Bueno; Londrina/PR.
Revista Veja, ed. 2182 de 15/09/2010, p. 59, grifos meus).

Destacam-se, pois, quatro enunciados que explicitamente parabenizam

______ [ 48 ]
o especial:

a) “Parabéns pelo especial sobre as vinte metrópoles brasileiras do futuro” (Carta 1);
b) “Parabenizamos VEJA pela excelente reportagem” (Carta 2);
c) “Excelente reportagem” (Carta 4);
d) “Parabéns por mostrar ao Brasil pérolas não conhecidas por muitos” (Carta 7).

O fato de a revista publicar quatro (dentre as sete) cartas que a


cumprimentam pela reportagem especial evidencia o processo de circulação
da revista: se há leitores de diferentes lugares geográficos que comentam a
reportagem da mesma maneira positiva, isso significa que o trabalho com os
sentidos lançados pelo especial é bem-sucedido. Com esse recorte, pode-se
verificar como o semanário produz um efeito de sentido de que o que está
publicado é algo digno de celebração, como se o especial fosse, evidentemente
– considerando-se que são os próprios leitores da revista que o dizem –, um
serviço prestado que estivesse dando a conhecer as cidades do futuro, já que
caberia à revista informar:

essa pretensa informatividade jornalística se sustenta com base em uma


ideologia utilitária, ou seja, parte-se de um pressuposto (construído
historicamente na relação entre jornais e leitores) de uma necessidade
social de saber os fatos relatados. (MARIANI, 2006, p. 34, grifos meus).

Os leitores-autores dessas cartas supracitadas, ao parabenizarem Veja


pelo especial, não estão, porém, inaugurando um dizer. Na esteira de Foucault
(2009 [1996]), considero que esses comentários explicitam algo que já “estava
articulado silenciosamente no texto primeiro” (p. 25, itálicos do autor)3.
Prosseguindo com as análises, na carta 5, lemos:

CARTA 5: VEJA nos presenteia com mais uma reportagem de alto


gabarito (Especial Cidades Médias, 1º de setembro). Mostrar o novo perfil
de cidades médias brasileiras que estão se desenvolvendo a passos largos
é um serviço de utilidade pública e uma injeção de ânimo para
acreditarmos que o país ainda tem oportunidades para quem luta por
dias melhores. (Pablo Braga; Montes Claros/MG. Revista Veja, ed. 2182 de
15/09/2010, p. 59, grifos meus).

Aqui, destaco a afirmação desse leitor-autor: “VEJA nos presenteia


com mais uma reportagem de alto gabarito”, o qual diz que a revista está
prestando “um serviço de utilidade pública”. Nesse viés, Veja, por meio dos
sentidos da opinião de leitores, pode enfim ‘assegurar’ que é um veículo de
comunicação respeitável, compromissado com as verdades-da-informação4.

______ [ 49 ]
E, dessa forma, é possível notar como

O efeito do discurso jornalístico que faz sentido para os leitores é o de que,


nessas revistas, a linguagem é um meio de comunicação de informação. Os
leitores agradecem ao editor ou à própria revista (como uma entidade
que se auto-organiza) pelos serviços prestados, pelas informações
recebidas e veiculadas através dela (SOARES, 2006, p. 197, grifos meus).

O imaginário de que o discurso jornalístico estaria a serviço da população


atua para que os sentidos veiculados na seção Leitor reverberem os do especial
sobre as “cidades do futuro”. É o que se vê, retornando à carta 1, quando
o sujeito-leitor-autor conjectura o fato de sua cidade (Três Lagoas/MS) não
estar listada no ranking da revista: “Percebi que os dados sobre a elevação
do PIB dos municípios se referem ao período de 2002 a 2007, e talvez por
isso Três Lagoas (MS) não esteja relacionada entre as cidades com
maior crescimento industrial” (Carta 1, grifos meus). A publicação desta
carta, que poderia manifestar um furo da reportagem, altercar as informações
apresentadas pela revista (como desatualizadas, equivocadas, parciais, etc.), ao
contrário, apenas reforça o sentido veiculado no especial de que há cidades
que almejam se tornar “metrópoles do futuro”. É o próprio leitor-autor quem
sana a dúvida de sua cidade não estar listada entre as 20 “metrópoles do
futuro”, como se poderia glosar: se minha cidade não está no ranking, deve ser porque
os dados utilizados são estes (e não estes outros). Nada, então, é questionado à revista.
Além disso, estas outras metrópoles não listadas não são outros modelos
urbanísticos senão aqueles que estão na formação discursiva da revista5:

Nos últimos dois anos, ela [Três Lagoas] teve um aumento do PIB de
300%, com o início da produção da Fibria (papel e celulose) e de outras
trinta fábricas de diversos setores. Além disso, estão em fase de construção
outra fábrica de celulose ainda maior e uma siderúrgica. Também está
projetada para 2014 a fábrica de fertilizantes da Petrobras, que será a
maior do país. Três Lagoas ocupa ainda a 56ª posição entre os municípios
exportadores do Brasil (Carta 1, grifos meus).

Nessa carta, vê-se então como o imaginário de desenvolvimento e


modernização da cidade passa pelo que a revista efetiva ao longo do especial.
A industrialização promove o crescimento da cidade, como se evidencia em
“aumento do PIB de 300%” (devido ao “início da produção da Fibria [...] e de
outras trinta fábricas de diversos setores”), “estão em fase de construção outra
fábrica de celulose ainda maior e uma siderúrgica”, “a fábrica de fertilizantes
da Petrobras, que será a maior do país” e o fato de a cidade ocupar “a 56ª
posição entre os municípios exportadores do Brasil”.
______ [ 50 ]
O que se verifica a partir dessa carta é que o leitor-autor, embora
se coloque subjetivamente, supostamente emitindo sua opinião, isto é,
supostamente podendo ocupar (falar de) um lugar distinto do da revista, o
seu ponto de vista provém a mesma formação discursiva hegemônica que
atravessa o discurso de Veja6, já que, ele mesmo diz: “Essa edição prova que
o futuro do Brasil está no interior” (Carta 1, grifos meus).
O sujeito-leitor-autor da Carta 2, de forma semelhante, ao dizer que
“desejamos trazer um adendo” por meio do qual visa ampliar as informações
veiculadas sobre a cidade de Campina Grande/PB, reforça os sentidos sobre
desenvolvimento, crescimento, modernização:

Aqui está situada a maior unidade têxtil do mundo em uma única planta
de produção, a Coteminas, com 160 000 metros quadrados totalmente
climatizados. Na cidade também se localiza a única fabricante das
sandálias Havaianas, a Alpargatas S.A., produzindo 650 000 pares por
dia e empregando mais de 8 000 trabalhadores. As duas empresas são
responsáveis por 75% das exportações da Paraíba (Carta 2).

Assim o leitor, além de agradecer à revista pelo especial, reforça os


sentidos lá produzidos, pois faz recuperar um já-dito. E, nesse retorno, também
faz com que o discurso de Veja se atualize. Da mesma forma que a revista
constrói discursivamente seus ‘dados’ como provas evidentes e irrefutáveis de
que a industrialização traz desenvolvimento, o leitor-autor da carta o faz: ele
fala sobre as grandes fábricas e suas elevadas produções, fala que elas geram
emprego e, nesse dizer, apaga a instalação de outros sentidos, já que, segundo
ele, “O Brasil está encontrando o caminho da descentralização da economia e
da interiorização do desenvolvimento” (Carta 2).
A partir do que se diz nesta carta, vê-se como o leitor-autor habita
a mesma formação discursiva da revista, isto é, parafraseia aquele já-dito,
fazendo com que ele continue em evidência. Seria possível pensar, por
exemplo, que essa retomada instigue (mesmos ou outros) leitores a (re)ler o
especial.
Na carta 6, por sua vez, tem-se:

CARTA 6: VEJA resgatou a autoconfiança dos brasileiros e provou que


o Brasil já está no futuro nessas localidades (Carla Grimm; São Gabriel
do Oeste/MS. Revista Veja, ed. 2182 de 15/09/2010, p. 59, grifos meus).

A leitora-autora, ao dizer que “VEJA resgatou a autoconfiança dos


brasileiros e provou que o Brasil já está no futuro nessas localidades”, ressoa
mais uma vez o imaginário constituído acerca do discurso jornalístico (p.4-ss.).
______ [ 51 ]
Quando enuncia que o semanário “resgatou a autoconfiança dos brasileiros”,
verifica-se que há um assujeitamento ao dizer da revista que faz com que
os sentidos ali publicados se tornem os sentidos verdadeiros ou os únicos
possíveis. O sujeito assume, como Veja, que, ao falar sobre o desenvolvimento
das cidades médias brasileiras, leve-se em consideração todos os brasileiros.
Isso vem ao encontro do que Souza (1997) aponta com relação à
construção da subjetividade no espaço público: a questão da “moral cívica”
(p. 22). Coloca-se, aqui, na ordem do público algo que é da ordem do privado:
se se trata de autoconfiança, ou seja, confiança em si mesmo, o sentido produzido
pela leitora-autora é o de que seria possível, a partir da leitura de Veja (note-
se que a questão da autoconfiança não está relacionada exclusivamente ao
especial Cidades médias), sanar uma questão pessoal que, entretanto, é posta
como um problema social. Assume-se que Veja possa e deva falar em nome
dos brasileiros, já que se constitui como autoridade midiática. Não obstante,
caberia a pergunta: a quem se fala, enfim, quando se trata de “autoconfiança
dos brasileiros”? Qual o sentido de autoconfiança aqui? Autoconfiança em
quê? Essas questões, embora muito relevantes, não serão exploradas neste
estudo, mas vale dizer que se Veja afirma que há um Brasil que dá certo e que é
possível ser bem-sucedido nas “metrópoles do futuro”; isto não significa que
todas as camadas sociais possam alcançar o sucesso. Se houve um resgate da
autoconfiança, como afirma a autora da carta, o sentido que se produz é o de
que ela havia sido perdida. Resgatar a autoconfiança, porém, não seria algo da
ordem do privado e do pessoal, independentemente da publicação (ou não)
da revista?
Considero que o discurso jornalístico, por seu funcionamento e, por
conseguinte, por seu efeito de evidência, cria essa ilusão de completude e de
poder, ilusão que é assumida pelos leitores recrutados pela mesma formação
discursiva:

Leitores e jornalistas encontram-se [...] enquadrados nos domínios de


pensamento de sua época, ficando imersos em uma agenda (organizada
pelos ‘donos’ do jornal) previamente constituída por interpretações
legitimadas, ou já tomadas como socialmente consensuais, ou que virão a se
tornar consenso por força, exatamente, dos efeitos produzidos pela própria
imprensa. É possível afirmar, então, que há uma ritualização ideológica
presente no discurso jornalístico, entendendo ritualização aqui como
uma forma de manutenção e repetição de determinados sentidos
(MARIANI, 2006, p. 34, grifos meus).

Por outro lado, a partir da leitura da seção Leitor, é possível também


analisar como todo discurso está sujeito à falha7. Se o sujeito jornalista,
______ [ 52 ]
enquanto uma posição de sujeito, ajusta-se a este imaginário de neutralidade,
objetividade, imparcialidade, veracidade, etc. (MARIANI, 1998) que habita
o discurso jornalístico, vê-se nas cartas 3 (abaixo) e 4 (apresentada acima),
lapsos cometidos por Veja no especial em questão. A noção de lapso, aqui,
vem no sentido de contrapor à visão da linguística e do discurso da ciência
que propõem uma possibilidade de língua fechada, completa, sem falhas, pois
que não contempla o sujeito presente em sua estrutura (MAIA, 2006). Não
se considera, dessa perspectiva, que os equívocos de Veja se tratem de meros
“erros” de informação, pois se lida, no âmbito da AD, com o conceito de
inconsciente8. Segundo Maia (ibid.), as formas do lapso de escrita podem
se dar em “casos de repetição ou esquecimento de palavras, de distorção de
nomes, de supostos erros tipográficos ou ortográficos” (p. 35).
Na carta 3, lê-se:

CARTA 3: Em relação à reportagem “A rival de João Pessoa”, informamos


que a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) não
participa do programa de melhoramento genético de algodão da
Embrapa, especialmente o colorido. Na verdade, a responsável pela
geração e lançamento de cultivares coloridos de algodão no Brasil é a
unidade da Embrapa conhecida pelo nome de Embrapa Algodão (Carlos
Alberto Domingues da Silva, Chefe adjunto de pesquisa e desenvolvimento
da Embrapa Algodão; Campina Grande/PB. Revista Veja, ed. 2181 de
08/09/2010, p. 51, grifos meus).

Aqui, o leitor-autor da carta questiona uma ‘informação’ trazida pelo


semanário numa das matérias que integram o especial e, na sequência, corrige
o dito da revista, no enunciado que se inicia com “Na verdade, [...]”. O
leitor-autor, portanto, identifica no dito da revista uma fenda; há, na matéria
em questão, uma afirmação que é questionada. O imaginário de veracidade
da informação compartilhado pela revista Veja, a partir da carta do leitor,
poderia ser quebrado, já que num dado momento houve a publicação de um
lapso. Com essa carta, o suposto controle dos sentidos ritualizado no discurso
jornalístico é rompido, visto que, embora haja, no processo de produção
jornalístico, uma preocupação maior com o dizer por parte dos sujeitos
ocupando a posição de enunciadores desse dizer, há, como diz Orlandi (2010
[1999]), “alguma coisa mais forte [...] [que] traz em sua materialidade os
efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas vontades” (p. 32, grifos
meus). Essa coisa mais forte é da ordem do inconsciente, o que faz com que
o equívoco no discurso produza um efeito de sentido (muito provavelmente)
inesperado pelo semanário: “sempre algo escapa, foge ao controle e marca o
lugar do excêntrico, de outro centro e isso que fala, fala ou escreve através
______ [ 53 ]
de nossas bocas e mãos” (MAIA, 2006, p. 35). Mas a falha pode tomar dois
desdobramentos:

uma vez instalada uma fratura em rituais ideológicos, dois são os


desdobramentos socialmente possíveis, dois são os destinos para o sentido
inesperado: a falha, enquanto lugar de resistência, pode engendrar
rupturas e consequente transformação do ritual, ou, por outro lado,
pode vir a ser absorvida pelo discurso hegemônico, contribuindo para
a permanência dos sentidos legitimados historicamente (MARIANI,
2006, p. 36, grifos meus).

Considero, portanto, que a publicação da carta 3 não constitua


nem um lugar de resistência aos sentidos produzidos nem uma tentativa de subjetivação
porque: a) não transforma a ritualização do discurso jornalístico, isto é, não
põe em xeque as noções de neutralidade, objetividade, veracidade e etc.; b)
está publicada num espaço que supostamente comportaria a opinião do leitor,
podendo estar submetida à edição; e c) não apresenta, por parte do leitor, um
contradiscurso.
Nesse viés, entendo que o lapso da carta 3 seja, por conseguinte,
absorvido pelo discurso hegemônico da revista, como se se tratasse de consertar o
dito por meio da carta. É como se o efeito de sentido ‘indesejado’ produzido
pelo lapso fosse ressignificado, mas não no sentido de promover uma ruptura
com o dizer da revista. Ao contrário, trata-se de fazer o sentido (re)encontrar
seu lugar na formação discursiva de Veja e, assim, assegurar que o semanário
continua sendo um meio de comunicação confiável, preocupado com a
verdade (daí a publicação da ‘correção’), dentre outras inscrições possíveis.
Na carta 4, há menção a outro lapso no especial sobre as “cidades do
futuro” (curiosamente, os dois ocorreram na mesma matéria, sobre a cidade
de Campina Grande/PB). A leitora-autora refere-se a um erro de localização
no mapa que acompanha cada reportagem, no qual, ao invés de a revista
localizar Campina Grande no Estado na Paraíba, localizou-a no Estado de
Pernambuco: “Lamento apenas que o mapa que localiza Campina Grande
[...] seja o de Pernambuco. A cidade fica na Paraíba, estado ao norte de
Pernambuco” (grifos meus).
Mais uma vez, em relação a essa carta, considero que a sua publicação
venha no sentido de apagar ou, ao menos, reparar um suposto erro – “suposto”
porque, desta perspectiva teórica, como já foi dito, leva-se em consideração
o primado do inconsciente; por conseguinte, as falhas são manifestações da
ordem do inconsciente que inserem uma nova mensagem e produzem outro
efeito de sentido (MAIA, 2006). O fato de a revista publicar uma reparação

______ [ 54 ]
faz com que se interprete a existência de uma espécie de colaboração entre o
sujeito-leitor-autor e o seu destinatário. A réplica, assim, não promove qualquer
deslocamento de sentidos: enquanto o lapso da localização da cidade produz
sentidos que vão de encontro com o imaginário constituído da instituição
jornalística e com o discurso da revista, este não é abalado, pelos mesmos motivos
que já foram enumerados logo acima. Ao elogiar a revista, a leitora efetiva seu
posicionamento na mesma formação discursiva. Seu lamento é apenas com
relação à localização errada; ela não lamenta, por exemplo, o fato de sua cidade
estar incluída no especial. Portanto, o efeito de sentido produzido a partir desta
carta é o de que estar entre as 20 “metrópoles do futuro” é algo positivo e a ser
valorizado, como se o dizer da revista refletisse uma única realidade. Só resta
queixar-se, então, que aquela “cidade do futuro”, por assim o ser, deva ser referida
‘corretamente’.
Na sequência, vejamos como os sentidos produzidos pelo especial de
Veja são reproduzidos também em outras materialidades discursivas de circulação
mais estrita: em veículos publicitários na cidade de Cascavel. A fim de investigar
como algumas empresas locais reproduzem o fato de Cascavel ser considerada
uma “metrópole do futuro”, ora mostrando a voz de Veja, ora a silenciando,
destaco três recortes de peças publicitárias veiculadas em uma revista de circulação
regional, em um panfleto de uma escola de idiomas e no site de um residencial
de uma empreendedora imobiliária. As peças circularam em Cascavel logo após a
publicação do especial de Veja, no final do ano de 2010.
O que chama a atenção nessas três peças publicitárias e as insere em
minha análise é o fato de elas trazerem o enunciado “metrópole do futuro”. Na
primeira, tem-se:

PEÇA 1: Revista Diference (ed. outubro-novembro/2010):


“Às vésperas de completar 58 anos, Cascavel ganha status de
‘metrópole do futuro’” (grifos meus).

______ [ 55 ]
PEÇA 2: New York School (peça circulada em outubro/2010):

Na peça 2, o destaque está num dos pontos apresentados como


“motivo” para estudar naquela escola de idiomas:

(ampliação)

Destaca-se, aqui, o enunciado que retoma o especial de Veja: “A New


York School ensina com qualidade desde 1991 e é a escola que mais cresceu
em Cascavel, a metrópole do futuro” (grifos meus).
Por fim, na peça 3, tem-se:

______ [ 56 ]
PEÇA 3: Residencial Treviso (peça circulada no último
trimestre/2010)

A respeito dessa peça, há duas referências à reportagem do semanário:


na primeira, lê-se: “Parabéns, Cascavel! A metrópole do futuro”; e, na
segunda, “VEJA – Cascavel entre as 20 metrópoles brasileiras do futuro”
(grifos meus).
Considerando que os três textos foram coletados logo após a
publicação do especial de Veja, entre setembro e dezembro de 2010, pode-se
verificar como o enunciado que repercute deriva daquela publicação9. Isto é
evidente nas peças 1 e 3, nas quais se faz menção à matéria de Veja: na peça 1,
a revista Diference10 escreve que “Às vésperas de completar 58 anos, Cascavel
ganha status de ‘metrópole do futuro’” (sem indicação de página, grifos
meus) e, no texto que compõe a matéria, expressa:

Cascavel recebeu esse título [de “metrópole do futuro”] pela Revista


Veja, em sua edição de 1º de setembro de 2010, ao lado de outras 19 cidades
de médio porte do Brasil em que, segundo a revista, o “futuro já chegou”
(Revista Diference, ed. out.-nov., 2010, grifos meus).

Vale apontar que há aqui um jogo com os sentidos de ganhar e receber.


O lide11, ao utilizar o vocábulo ganhar, produz alguns efeitos de sentido dentre

______ [ 57 ]
os quais se poderia perceber uma repercussão dos sentidos já-lá no especial
de Veja; se se afirma que Cascavel ganhou um status, isso representa uma
conquista que, embora não se diga de que forma foi alcançada, supõe-se que seja
por algum tipo de merecimento, reconhecimento ou mesmo sorte. Não há,
todavia, uma preocupação da revista Diference com as formas de se alcançar
esse status. Dessa forma, seria possível considerar que, de acordo com o seu
dizer, basta que informem que Cascavel o ganhou e apenas isso. Quando se
emprega o termo receber, ainda outros efeitos de sentido se produzem. A
expressão receber um título efetiva, além de um ganho, o reconhecimento de
sua legitimidade.
Na peça 3, também se faz menção ao semanário da Editora Abril
ao trazer o logotipo da revista e ao referenciar o “anúncio” diretamente. Por
outro lado, na peça 2, não há qualquer referência explícita que recupere a
publicação do especial. A expressão “metrópole do futuro” comparece na
peça publicitária de modo natural, isto é, apagando o intertexto (o especial
de Veja).
Se nas peças 1 e 3 os efeitos de sentido derivam – e, de certa forma,
diria que eles dependem – dos sentidos que o semanário da Editora Abril
efetiva, reforçando os sentidos do discurso de Veja, na peça 2, além disso,
os sentidos dados por Veja são (re)tomados como evidência. Nesse viés,
pode-se compreender como o dizer do semanário emerge (embora apagado)
nesta peça como fonte de um dizer que estaria comprometido com a verdade;
não seria, pois, senão lógico assumi-lo e reverberá-lo. Dessa forma, ocorrem
relações também intertextuais nas peças 1 e 3, enquanto na peça 2 há uma
relação interdiscursiva.
É, sobretudo, com relação à última que se pode verificar como o
esquecimento é estruturante, como diz Orlandi (2010 [1999]). A partir da
publicação da peça 2, é possível considerar que, mais do que uma ressonância
de sentidos, há ali um desvelamento de como a ideologia afeta os sujeitos.
Se houve autorização, por parte dos interessados, para a veiculação de uma
propaganda como esta, podemos considerar que haja uma reverência ao que
Veja diz e, por conseguinte, que haja um reforço daquele dizer, como se o
que o semanário publicasse pudesse e devesse ser levado em consideração.
Considera-se, ademais, que isso ocorra porque, no discurso publicitário,
recuperar um dito de um veículo de comunicação tão difundido quanto Veja
seja fator contribuinte para os fins da publicidade, isto é, para a venda de um
produto (seja uma revista, seja uma matrícula numa escola de idiomas, seja uma
casa, etc.). Pode-se dizer, a partir das análises empreendidas, que os efeitos de
sentido produzidos pelas peças publicitárias vão ao encontro daqueles que
______ [ 58 ]
Veja efetiva, já que os sujeitos estão fadados a significar em sua dependência
a um (sempre) já-dito. Nesse caso, o enunciado emblemático de “metrópoles
do futuro” utilizado pelo semanário. O que importa esclarecer, enfim, é que as
peças publicitárias demonstram, por seus processos discursivos, uma inscrição
na história e na língua que produz determinados sentidos.
Na peça 2, vê-se ainda como a partir do enunciado “metrópoles do
futuro” ocorre um deslizamento de sentido para “a escola do futuro”, mais
uma vez reforçando e naturalizando os sentidos produzidos por Veja, como
se se dissesse que, por estar na “cidade do futuro”, é natural que haja uma
“escola do futuro”. É relevante, diante disso, notar a construção do enunciado,
que se vale de uma oração adjetiva restritiva12: “A New York School ensina
com qualidade desde 1991 e é a escola que mais cresceu em Cascavel, a
metrópole do futuro” (grifos meus). Os sentidos que se produzem aqui são
os de que não se trata de qualquer escola, mas da escola que mais cresceu numa
cidade que é considerada a metrópole do futuro. Efetiva-se, a partir disso, que,
por estar numa “metrópole do futuro”, a escola teria uma atenção direcionada
ao ensino de qualidade. Por esses motivos, não seria senão natural dar-lhe a
preferência.
Em geral, não se notam deslocamentos nas peças publicitárias
analisadas, ou seja, esses discursos não levam ao diferente. Eles vêm para
reforçar aquele dizer de Veja e contribuir não só para sua estabilização, mas
também para imobilizar os sentidos a partir de “comentários”, na acepção
foucaultiana discutida acima, já que parabenizar a cidade por ser uma
“metrópole do futuro”, concordar que Cascavel tenha ganhado este “status”
e inseri-lo nas instituições da cidade, como em “escola do futuro”, sejam
marcas de um assujeitamento a uma dada formação discursiva e, além disso,
de uma atualização de um dizer primeiro.
À guisa de conclusão, pode-se dizer que, a respeito das materialidades
que ressoaram após a publicação do especial, observou-se que ,se a seção
destinada às cartas do leitor supostamente poderia ser um espaço para exibir
uma opinião que não condissesse com a da revista, isto é, se pudesse, enfim,
ser um espaço de suporte de um contradiscurso, em Veja isso não ocorre.
A queixa, o lamento, o protesto das cartas não vêm para contra-argumentar o
dizer do semanário. Ao contrário, eles vêm para reforçar, (r)emendar o dizer
hegemônico que atravessa o especial.
As cartas são uma espécie de retificação da própria revista, haja
vista que o que dizem parte do âmbito do pré-construído, dos sentidos já
pré-estabelecidos (cf. SOUZA, 1997), mas escritas por sujeitos ausentes
no processo de produção do semanário. E, nesse processo, os efeitos de
______ [ 59 ]
sentido indesejados pela revista podem enfim ser estabilizados, de modo que os
sujeitos-leitores-autores fazem o trabalho intencionado pelo semanário: ao dar
visibilidade aos seus leitores, trabalha-se para uma naturalização dos sentidos
efetivados, como se eles fossem comuns a todos. De um modo ou de outro,
antes – na publicação do especial – ou depois – com as cartas do leitor –
tenta-se amarrar a significação. Veja, enquanto destinatário das cartas, coloca-
se em posição de cumplicidade com o leitor e este, provavelmente por isso, tem
sua carta publicada13. Produz-se aí o que Souza (1997) denomina de “pacto
confidencial” entre o sujeito-leitor-autor e o seu interlocutor. Se a carta é uma
“expressão do privado, do íntimo” (ibidem, p. 83) do autor-leitor, cria-se um
efeito de legitimidade, de verdade daquilo que é dito. E, em minha análise,
o espaço concedido ao dizer deste leitor, individual, reafirma o dizer de Veja
transpondo-se a um âmbito maior, público, pois é como se dissesse: se o
sujeito fala com sua própria voz, é natural que o que ele diz não seja senão a
verdade. Nesse sentido, vê-se como a ilusão de um sujeito fonte de seu dizer
e no controle de sua linguagem retorna, apagando a filiação a uma formação
discursiva.
A partir das peças publicitárias selecionadas, por sua vez, viu-se como
os sentidos ali inscritos também ocupam a mesma formação discursiva de Veja.
A expressão “metrópoles do futuro”, dada como se fosse lógica e facilmente
recuperável, porque produzida por uma revista de ampla circulação nacional,
(re)aparece para reiterar os mesmos sentidos que o semanário produz. Pode-
se dizer, a partir daí, que mais do que reverberar, os discursos das peças
publicitárias reproduzem o discurso de Veja como se fosse o discurso da
verdade e, nesse processo, trabalham para a estabilização dos sentidos que a
revista efetiva. Em outras palavras, a repetição da expressão, posto que se dá
em diferentes momentos (a enunciação é sempre outra), vem para reativar
e firmar os sentidos (já) efetivados por Veja. Como diz Mariani (1998), a
instituição jornalística necessita de leitores/consumidores a quem se dirija
para se manter dominante. Daí haver a necessidade de considerar que todo
produto midiático produz, interpretando os fatos e acontecimentos, para um
segmento da sociedade.
Vale dizer, enfim, que por meio dessas materialidades escolhidas foi
possível verificar como alguns sentidos se fixam e se repetem. Nas vozes dos
leitores-autores, nas dos sujeitos publicitários, outras vozes ecoam. Embora a
extensão da circulação do especial seja muito mais ampla e certamente ressoe
noutros meios, numa medição que seria, de fato, impraticável, considero que
a partir das análises sobre as quais me debrucei foi possível evidenciar de que
modo circulam os sentidos, sem pretender a exaustividade.
______ [ 60 ]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CATTELAN, João Carlos. Colcha de retalhos: micro-história e subjetividade.


Cascavel, PR: Edunioeste, 2008.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 19. ed. Trad. Laura Fraga de


Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2009 [1996].

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da


Língua Portuguesa. 2001. Versão digital.

LAGAZZI, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas, SP: Pontes, 1988.

LEAL, Maria do Socorro Pereira. Os sentidos de ‘povo roraimense’ em


textos de parlamentares (1999 e 2005). Dissertação (Mestrado em Letras).
Universidade Federal Fluminense, 2006.

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MARIANI, Bethânia (org.). A escrita e os escritos: reflexões em análise do
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______ [ 61 ]
do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. GADET, Françoise;
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SOARES, Alexandre Sebastião Ferrari. A homossexualidade e a AIDS


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(Doutorado em Letras) – Curso de Pós-Graduação em Letras, Universidade
Federal Fluminense – Niterói, RJ: 2006.

SOUZA, Pedro de. Confidências da carne: o público e o privado na


enunciação da sexualidade. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997.

ZANELLA, Alexandre da Silva. Metrópoles do futuro: o barulho por trás


do ranking de Veja. 2012. 119 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Curso de
Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2012.

NOTAS

1) Para Pêcheux (2009 [1988]), os “[...] ‘objetos’ ideológicos são sempre fornecidos ao mesmo
tempo que a ‘maneira de se servir deles’ – seu ‘sentido’, isto é, sua orientação, ou seja, os
interesses de classe aos quais eles servem –, o que se pode comentar dizendo que as ideologias
práticas são práticas de classes (de luta de classes) na Ideologia”. (p. 132). Assim, os sentidos
mudam conforme as posições dos sujeitos, no embate ideológico.

2) Entende-se por formação discursiva “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a
partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,
determina o que pode e deve ser dito.” (p. 147, itálicos do autor).

3) Já na introdução do especial de Veja, ao se falar, por exemplo, do trabalho dos jornalistas


envolvidos na produção da reportagem (seleção das cidades, visita às cidades, entrevistas, etc.),
produz-se o sentido de que se trata de algo a ser comemorado. (cf. ZANELLA, 2012).

______ [ 62 ]
4) A expressão é de Mariani (1998).

5) Em minha dissertação de mestrado (ZANELLA, 2012), analisei os sentidos que constituem


no discurso as “metrópoles do futuro” de que fala Veja. Dentre os resultados a que cheguei,
estão o de que, inserida numa formação discursiva neoliberal, a revista afirma que o crescimento
econômico das cidades passa pela industrialização, pela mínima intervenção do Estado, pela
ascensão da classe média, pela prestação de serviços que atendem a uma demanda dessa classe,
dentre outros fatores.

6) Queremos com isso dizer que o sujeito-leitor-autor das cartas, em seu processo de escritura,
está em outro momento enunciativo: o da emissão de uma opinião que é sua e que poderia
não corresponder necessariamente com o dizer da revista. Não obstante, o seu dizer parte do
já-dito por Veja. O que o leitor-autor diz está previamente definido pelo semanário e pelas
condições de produção de seu dizer.

7) A este respeito, sugiro a leitura do Anexo III de Semântica e discurso: uma crítica à afirmação
do óbvio (PÊCHEUX, 2009 [1988]).

8) Para Pêcheux e Fuchs (2010 [1990]), a articulação das três regiões do saber que constituem a
análise de discurso – a saber: o materialismo histórico, a linguística e a teoria do discurso – são
“atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica)” (p. 160).
O inconsciente, na teoria pêcheutiana do discurso, funciona como uma estrutura que produz
efeitos de evidência do sujeito, por “dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu
funcionamento” (PÊCHEUX, 2009 [1988], p. 139).

9) Embora minha seleção, nesta subseção, seja restrita a três peças publicitárias encontradas,
de certa maneira, fortuitamente, considero que, mais do que mostrar a quantidade de peças
que reverberam o dizer da revista, é relevante, aqui, investigar como e por que esse dizer
aparece noutros textos. Leal (2006), a este respeito, diz: “a AD não coloca a quantidade, em sua
extensão, como algo a ser considerado, mas uma “exaustividade vertical, em profundidade”,
em que os dados “[...] são ‘fatos’ de linguagem com sua memória, sua espessura semântica, sua
materialidade lingüístico-discursiva”. (Orlandi, 2000, p. 62). Não se trata, pois, de considerar
os textos em sua “completude”, como um dado a ser manipulado, mas “como exemplares do
discurso”. (Orlandi, 2003, p. 10).

10) A revista Diference é uma publicação da Editora Diference que se configura como uma
revista publicitária, tendo em vista que traz reportagens sobre empresas e personalidades de
cidades locais do Oeste paranaense. Seu design gráfico segue os moldes da revista Caras, da
Editora Abril.
11) Lide corresponde a “linha ou parágrafo que apresenta os principais tópicos da matéria
desenvolvida no texto jornalístico; cabeça” (HOUAISS, 2001).

12) Para uma discussão sobre o funcionamento das orações adjetivas e seu papel na constituição
da teoria do discurso pêcheutiana, sugiro a leitura da 2ª parte de Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio, de Pêchex (2009 [1988]).

13) A questão da cumplicidade produzida entre o sujeito-leitor-autor da carta e o seu


“destinatário” é debatida por Souza (1997).
______ [ 63 ]
CAPÍTULO 4

COMENTÁRIOS
DE LEITORES:
A VIOLÊNCIA
NOTICIADA NA INTERNET

Luiz Carlos de Oliveira


O leitor que inicia a leitura deste texto e o autor que o redige, irmãos em sua
constituição pela linguagem, os dois inteirados imaginariamente do seu “eu”
autônomo e palpável, estarão, a cada significante, a cada reflexão, constituídos
e constituindo sentidos1 sobre o que leem e escrevem, sobre o mundo e si
mesmos, através de mecanismos não identificáveis por eles, senão sob o efeito
e a evidência de serem um “eu” que pensa e atribui os sentidos que esse
“eu” deseja: efeitos, assim, do trabalho levado a cabo pelo inconsciente e
pela ideologia; trabalho que não é perfeito, que falha e possibilita a tomada
de novos trajetos na produção discursiva. Além disso, os dois são efeitos
e agentes da materialidade histórica, tomada sob o aspecto da memória
discursiva e da conjuntura histórica que marca as condições de produção do
dizer, momento no qual se expressa cada um de forma singular, isto é, o
leitor-autor constituído ideologicamente e individualizado pelo Estado.
É com o objetivo de compreender o funcionamento dos elementos
que compõem esse processo discursivo que a Análise de Discurso Francesa
(doravante, AD) busca examinar os modos pelos quais a constituição dos
sujeitos e dos sentidos ocorrem.

Trago então, as pistas deixadas por Pêcheux ao retomar Lacan e Althusser:


o sujeito dividido, ou seja, afetado pelo inconsciente, quando diz ‘eu’ [...], o
faz a partir de um efeito retroativo que é resultado de sua constituição pela
linguagem – os significantes aparecem sempre como já-lá – e interpelação
pela ideologia – o efeito de evidência dos sentidos, produzido a partir de
significantes colados a determinadas significações. Para ter a ilusão de ser
sujeito do que diz, sendo assujeitado a significantes com significações
determinadas, foi necessária uma pré-inscrição no campo da
linguagem, e isso não se realiza de qualquer maneira. (MARIANI,
2006, p. 28, grifos meus).

Assim, essa constituição dos sentidos e dos sujeitos, que está sob a
marca da evidência, não é fruto da vontade de cada ser, mas resulta, como
efeito, da interpelação ideológica que constitui o sujeito através da linguagem.
______ [ 65 ]
É resultado do funcionamento do inconsciente que o afeta sem que tenha
controle sobre o modo como isso ocorre.
A linguagem antecede o sujeito. E sua inscrição na linguagem, desde o
nascimento, não é vazia, mas uma inscrição discursiva na qual os significantes
já estão conectados a determinados sentidos. Esses significantes permitem
também perceber o inconsciente operando sobre o sujeito2, através dos
lapsos, equívocos, chistes, etc.
Nesse sentido, sob o viés da AD, a ideologia sintetiza a relação
imaginária que os sujeitos mantêm com as suas condições materiais de
existência. “Na ideologia, o que é representado não é o sistema das relações
reais que governam a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária
destes indivíduos, com as relações reais em que vivem” (ALTHUSSER,
1974, p. 82, grifos meus).
Dessa forma, a ideologia constitui simultaneamente, através da
linguagem, os sujeitos e os sentidos em uma determinada conjuntura histórica
marcada pelas relações de força, pelos embates ideológicos característicos das
contradições de classe. É sobre uma base linguística que o processo discursivo
ocorre (PÊCHEUX, 2009, p. 147).
Segundo Pêcheux (2009, p. 141), isso ocorre porque a ideologia
dissimula o modo pelo qual funciona produzindo um “efeito retroativo”,
ou seja, ela interpela o indivíduo como sujeito autônomo (como sempre já
sujeito), como se os efeitos de sentidos que o constitui só pudessem ser aqueles
e não outros. À semelhança da ideologia, Pêcheux (2009, p. 162) aponta para
a forma como o sujeito é afetado pelo inconsciente. Mariani (2006), sobre o
modo como o inconsciente e a ideologia atuam na constituição do sujeito,
afirma:

Para Pêcheux, em sua proposta teórica da relação entre o inconsciente e a


ideologia, essa dependência ao significante, ou seja, essa inscrição no campo
da linguagem não se realiza fora do ideológico [...] Na constituição da
subjetividade, então, ocorre um duplo processo engendrado pela inscrição
do significante estruturando o inconsciente e constituindo o sujeito: uma
identificação simbólica do sujeito à formação discursiva na qual ele
se constitui e um assujeitamento ideológico aos sentidos que essa
mesma formação discursiva, enquanto matriz de sentidos, produz.
(MARIANI, 2006, p.28, grifos meus).

Portanto, o discurso sintetiza a articulação da ideologia e do


inconsciente com a linguagem na constituição dos sentidos e do sujeito. Dessa
forma, só podemos refletir sobre nós mesmos (compreender-nos sujeitos) se
inseridos no campo da linguagem e, portanto, interpelados pela ideologia e
______ [ 66 ]
afetados pelo inconsciente. Assim, é possível afirmar que não há sujeito fora
da ideologia e que os posicionamentos de cada sujeito estarão relacionados
ao modo como em uma determinada conjuntura histórica os sujeitos são
constituídos. Nesse processo, as formações ideológicas sintetizam, num
momento, as regionalizações ideológicas que demarcam a constituição dos
sujeitos e sentidos em posicionamentos específicos, tendo como referência os
aparelhos ideológicos do Estado3 (família, escola, exército, igreja, etc.).
Assim, os efeitos de sentidos ocorrem pautados pelo trabalho
das formações ideológicas e das formações discursivas (doravante, FDs).
Poderíamos resumir:

as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas


por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido
em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se
inscrevem. (PÊCHEUX, 2009, p. 146-147, itálicos do autor, grifos meus).

Pelas FDs, efetiva-se na linguagem a interpelação. Enquanto a


formação ideológica representa as inúmeras maneiras pelas quais a interpelação
ideológica pode ocorrer em uma determinada conjuntura histórica, as FDs
são os trajetos mais ou menos estabilizados que esses posicionamentos
ideológicos tomam na linguagem4, o modo como o dizer ocorre, ou seja,
como cada palavra é empregada efetivamente.
Assim, diferentes FDs, enquanto trajetos discursivos orientados
pelas formações ideológicas, produzem distintos discursos. Destarte, “se o
sujeito fala a partir do lugar do professor, suas palavras significam de modo
diferente do que se falasse do lugar do aluno” (ORLANDI, 2007, p. 39). Um
mesmo significante pode tomar inúmeros trajetos discursivos de acordo com
os posicionamentos nos quais está inscrito o sujeito, no seio de uma FD;
como também diferentes significantes podem estar conectados a efeitos de
sentidos aproximados. A palavra “casamento”, na atual conjuntura histórica
brasileira, provavelmente, produzirá distintos efeitos de sentidos para
religiosos, ateus, héteros ou homossexuais, efeitos que estarão conectados aos
posicionamentos mais ou menos estabilizados oriundos da igreja, da família,
do discurso jurídico (direito), etc.
Portanto, através da descrição e caracterização das FDs, é possível
perceber a interpelação ideológica constituindo o sujeito e, ao mesmo
tempo, o inconsciente o afetando através de irrupções na cadeia significante
de termos e falhas que fogem ao controle e que necessitam ser domados;
nesse momento, a ideologia age, retomando, reformulando e conectando os
significantes a determinados efeitos de sentidos.
______ [ 67 ]
No processo de transformação do indivíduo em sujeito por meio
da interpelação ideológica, a forma-sujeito é o modo pelo qual resulta a
interpelação, produzindo um sujeito jurídico com direitos e deveres que deve
responsabilizar-se pelo seu dizer. Assim, a

ideologia jurídica instala uma ambiguidade no sujeito: ao mesmo tempo em


que este se vê como um ser único, senhor e responsável de si mesmo, ele é
‘intercambiável perante o Estado’ (Haroche, 1984), que se dirige a cidadãos,
a cada um e a todos ao mesmo tempo, a uma massa uniforme [...] que têm a
ilusão da unicidade. (LAGAZZI, 1988, p. 20-21).

Refletindo sobre o tema deste trabalho, o sujeito, enquanto leitor-


autor, sob a insígnia da unicidade, da responsabilidade e da autonomia,
ressoam determinados efeitos de sentidos sobre as notícias que retratam
a violência. Ao produzir comentários sob o mesmo mecanismo, toma
imaginariamente como evidente o que leu e comenta. “Se o sujeito é opaco
e o discurso não transparente, no entanto o texto deve ser coerente, não-
contraditório e seu autor deve ser visível, colocando-se na origem de seu
dizer” (ORLANDI, 2007, p. 75). Ao mesmo tempo em que o arcabouço legal
do “Estado de Direito” concebe ao sujeito a “liberdade de se expressar”,
cobra, em contrapartida, que o dizer ocorra dentro de certos parâmetros, que
não permaneça no anonimato, que o autor possa ser responsabilizado por
algum deslize nas regras estabelecidas dessa liberdade. Assim, trata-se de

constatar que todo sujeito é constitutivamente colocado como autor de e


responsável por seus atos (por suas “condutas” e por suas “palavras”)
em cada prática que se inscreve; e isso pela determinação do complexo
das formações ideológicas (e, em particular, das formações discursivas)
no qual ele é interpelado em “sujeito-responsável”. (PÊCHEUX, 2009, p.
198, itálicos do autor, grifos meus).

Destarte, “há um modo específico de inscrição do significante em


cada sujeito” (MARIANI, 2006, p. 31). Ao ler uma determinada matéria que
retrata a violência e redigir o seu comentário, a FD aponta para o sujeito o que
pode e deve ser dito. Porém, esse apontamento não é completo; nele existem
brechas5 e, ao mesmo tempo, há a história do leitor-autor que a redige. A FD
que produz o sujeito de maneira singular não está imune a essa singularidade,
pois é resultado específico do modo contraditório pelo qual a sociedade
existe, ou seja, as contradições de classe, e o modo como o inconsciente afeta
o sujeito.

______ [ 68 ]
AUTORIA NA REDE ELETRÔNICA

Ao refletir sobre a constituição do sujeito na internet, considero


aspectos não evidentes que constituem o sujeito e sustentam o seu dizer.
Considero, também, o modo como a rede eletrônica é tomada por seus
usuários, apagando a forma específica pela qual funciona. Segundo Romão
(2006), a “textualidade eletrônica” pode ser tomada com um arquivo no qual
são depositados dados recortados, manipulados, que passam por filtros e são
tratados.

De um lado há recorte e seleção de certos textos, imagens e


informações que instalam sentidos na Internet e estão autorizados a
entrar na rede de arquivos e aceitos para circular nos sites, banco de
dados, portais etc. Por outro lado, também é verdade, outros tantos
sentidos são desprezados e eliminados, pois ao falar X, sempre calamos
Y. Essa dupla face indica que há um direcionamento de tais seleções [...]
que é engendrado pela ideologia como o processo que neutraliza e legitima
certos sentidos, apagando outros, indesejáveis ou tidos como não relevantes.
(ROMÃO, 2006, p. 305-306, grifos meus).

No caso dos portais de notícias, deve-se considerar esse mecanismo


no qual os temas são pautados segundo os aspectos ideológicos, a
quantia de visitas recebidas, a quantidade de acessos em cada link sobre
determinado assunto, a polêmica despertada nos comentários dos leitores, os
compartilhamentos efetuados nas redes sociais e o acesso às propagandas e
aos endereços eletrônicos dos anunciantes.
Nesse contexto, não se pode deixar de fazer menção às características
do discurso jornalístico. Mesmo fragmentado no arquivo digital, o dizer
presente em cada matéria, permeada e envolta por links/tags, está sob o
molde da objetividade e imparcialidade que constitui imaginariamente o
fazer jornalístico e que trabalha na homogeneização dos efeitos de sentidos
conforme os trajetos discursivos em que o sujeito está inscrito. Ao afirmar
que a produção do discurso jornalístico é homogeneizante, o que se deseja é
demonstrar

a sua submissão ao jogo das relações de poder vigentes, é sua adequação


ao imaginário ocidental de liberdade e bons costumes. É, também, o
efeito de literalidade decorrente da ilusão da informatividade. Estas
propriedades, no nosso entender, estão no cerne da produção jornalística:
são aspectos invariantes de qualquer jornal de referência. (MARIANI,
1998, p. 63, grifos meus).

______ [ 69 ]
Essas “propriedades” influenciarão a constituição dos comentários
dos leitores que produzirão o seu dizer a partir de um discurso primeiro,
conforme Foucault (2009), ou seja, a matéria jornalística publicada no portal
de notícias que retrata a violência. Ao abordar os procedimentos internos de
controle do discurso, Foucault (2009) traça três procedimentos: o comentário,
a função de autoria e as disciplinas científicas. Para o autor,

O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte:


permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de
que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade
aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio do comentário, daquilo que
arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara, a circunstância da
repetição. O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua
volta. (FOUCAULT, 2009, p. 25-26, grifos meus).

O leitor-autor, ao produzir distintos dizeres a respeito de um texto


jornalístico, que está sob o imaginário da literalidade, não se afasta deste texto
primeiro, aliás, esse texto se realiza no comentário. Nesse caso, o comentário é
um discurso que normatiza a circulação discursiva, na medida em que delimita
as fronteiras e as possibilidades de circulação dos efeitos de sentidos em uma
determinada conjuntura histórica. O que é dito no comentário não é estranho
e não rompe com o que é considerado aceitável de ser dito.
A partir disso, na análise dos comentários publicados nos portais
de notícias, deve-se considerar uma distinção na constituição dos efeitos
de sentidos e dos sujeitos, ou seja, os comentários sobre outros comentários,
possibilitados pela quase simultaneidade do dizer que marca as publicações na
rede eletrônica. Assim, devem-se levar em conta as condições de produção
do discurso nas quais a internet permite outras formas e possibilidades de
comentar e, concomitantemente, outros modos pelos quais pode resultar a
constituição do sujeito enquanto leitor-autor (singularidade).
Essa quase simultaneidade aludida leva a refletir que

o texto eletrônico não apresenta páginas a serem viradas como acontece no


livro convencional, o imenso pergaminho digital vai enrolando várias
vozes, que se deitam umas sobre as outras na descida e na subida
do cursor. Engendra-se o novelo heterogêneo de sentidos, sujeitos e
arquivos, que se justapõem em um patchwork de fundura e largueza
imensas, fazendo tagarelar ditos tantos. (ROMÃO, 2006, p. 309, grifos
meus).

Esse “novelo heterogêneo de sentidos” marca o modo como


se estruturam os comentários publicados no portal CGN, no qual são
______ [ 70 ]
apresentadas cinco opiniões por página, cabendo ao leitor selecionar se quer
ir para a próxima, ou anterior, parte deste “novelo”, e continuar a desenrolar
o fio dos sentidos.

COMENTÁRIOS NO PORTAL DE NOTÍCIAS:


ESPECIFICIDADES E DISTINÇÕES

Interesso-me pelo modo como ocorre a produção de comentários


sobre uma matéria publicada em um portal de notícias que se refere à
violência, buscando destacar alguns discursos que estão presentes e trazer
a especificidade e possíveis distinções desses dizeres na internet frente aos
comentários publicados na mídia impressa.
Destaco que a proposta desta discussão não foca a violência
enquanto categoria sociológica, mas se preocupa em traçar o modo como os
sujeitos enquanto leitores-autores do portal de notícias estão constituídos ao
discursivizar a violência na internet. Portanto, não me preocupo em definir o
que seja a violência, mas em trazer os posicionamentos discursivos presentes
nos comentários desses leitores-autores sobre o tema.
O portal de notícias CGN foi criado na cidade de Cascavel no ano
de 2006. Passou por uma reestruturação em 2011, quando se filiou ao grupo
Universo Online (UOL). O portal exibe notícias da cidade de Cascavel (e
região) e também referentes à cidade de Curitiba e sua região metropolitana.
As matérias são integradas, em regra, respectivamente, por vídeo, texto e
fotos, o primeiro iniciado com publicidade que pode ser “pulada” após alguns
segundos de exibição. Logo abaixo da matéria, existe um espaço dedicado aos
anunciantes (“Patrocinado por:6”); mais abaixo, estão os links que permitem
compartilhar a matéria nas redes sociais e, logo abaixo destes, há a exposição
dos comentários – quando algum já foi publicado – e o espaço onde os
leitores-autores podem escrever opiniões, avaliar positiva ou negativamente
e/ou responder outros comentários já publicados.
Ao se clicar no espaço dedicado aos comentários, surge uma caixa
de diálogo com “restrições” impostas ao leitor-autor que deseja comentar a
matéria ou responder alguma opinião já publicada:

Os comentários feitos na CGN são moderados. Antes de escrever


observe as regras e seja criterioso ao expressar sua opinião. Não serão
publicados comentários nas seguintes situações:
Que não possuam relação com o conteúdo noticiado.
______ [ 71 ]
Que contenham teor calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação
à violência ou a qualquer ilegalidade.
Que contenham conteúdo que possa ser interpretado como de caráter
preconceituoso ou discriminatório a pessoa ou grupo de pessoas.
Que contenham linguagem grosseira, obscena e/pornográfica [sic].
Que transpareçam cunho comercial ou ainda que sejam pertecentes [sic] a
correntes de qualquer espécie.
Que tenham característica de prática de Spam.
O CGN não se responsabiliza pelos comentários dos internautas e se
reserva ao direito de, a qualquer tempo, e a seu exclusivo critério, retirar
qualquer comentário que possa ser considerado contrário às regras
definidas acima.
Todos os comentários enviados para a CGN possuem identificação IP
armazenada em nossos servidores para que posteriormente possa ser
usado para identificação e/ou localização do autor.
Caso você concorde com todas as restrições acima citadas confirme abaixo.
Concordo com os termos acima. Não concordo (grifos meus).

As restrições impostas se assemelham ao modo como os comentários


dos leitores publicados nos periódicos impressos são regrados (ver Oliveira
(2012)). Esse regramento se refere ao modo como ocorre o imaginário sobre
o discurso jornalístico inserido no processo de identificação do sujeito pelo
Estado, ou seja, “da liberdade” e dos “bons costumes” (cf. MARIANI,
1998, p. 63), no qual se pode dizer tudo, porém tudo o que for autorizado pelo
regramento jurídico.
Neste sentido, a objetividade e a imparcialidade que constituem
imaginariamente o modus operandi do discurso jornalístico permitem a
elaboração das regras apontando o que não pode ser publicado (apesar de
não dito, também o que pode ser publicado), sugerindo que o leitor-autor seja
“criterioso”, que escreva de modo a não ser mal “interpretado”, que não use
“linguagem grosseira...”, apontando para a existência de um “moderador”.
Ao leitor-autor parece restar produzir o seu texto no molde proposto e não
fugir “do conteúdo noticiado”. As regras infligidas, além do mais, estão
relacionadas à individualização jurídica imposta pelo Estado, na qual o sujeito
deve responsabilizar-se pelo seu dizer, identificar-se e evitar escrever algo pelo
que possa ser penalizado.
Além dessas restrições, o leitor-autor pode redigir seu comentário
com no máximo 140 caracteres. Também deve identificar-se com um nome e
e-mail. Porém, esses dois campos podem ser preenchidos de forma aleatória,
pois não há necessidade de efetuar cadastro no portal e não há validação do
e-mail digitado. O fato de o leitor-autor não necessitar se identificar com
seu nome e e-mail válido permite pensar em uma brecha e na resistência às
regras impostas, à forma como a imprensa e o Estado buscam normatizar os
______ [ 72 ]
dizeres. Por outro lado, essa resistência pode ser relativizada ao se considerar
que, independentemente da validação dos e-mails e nomes, o usuário pode
ser rastreado (“identificação e/ou localização”) através do número do IP:
“Todos os comentários enviados para a CGN possuem identificação IP
armazenada em nossos servidores para que posteriormente possa ser usado
para identificação e/ou localização do autor” (grifos meus). É o “grande
irmão” a nos vigiar!
Para poder “expressar sua opinião”, após a leitura (ou não) das
restrições, o leitor-autor deve clicar no botão “concordo com os termos
acima”, reforçando a noção do sujeito uno e autônomo que pode decidir
se expressar ou não, permitindo, também, perceber a caracterização do
“sujeito de direito” que deve seguir regras e usufruir direitos. Dessa maneira,
as “restrições” impostas podem ser descritas como um contrato no qual as
cláusulas tomam o aspecto da literalidade/objetividade e abrangem cada um
e todos os leitores-autores, predominando a individualização jurídica imposta
pelo Estado, único que pode qualificar se o sujeito praticou um delito e se
merece ser responsabilizado ou não. Assim,

Vale lembrar, com relação ao discurso jurídico, sua função de interpelação-


identificação que atua sobre os processos de constituição do sujeito:
o sujeito de direito tanto é aquele que se reconhece/enuncia sob a
evidência do Eu – uma singularidade, com suas vontades e responsabilidades,
portanto – como também é aquele que poderá, virtualmente, ocupar o
lugar ‘vazio’ instaurado pela universalidade das leis [...]. (MARIANI,
1998, p. 77, grifos meus).

A matéria cujos comentários foram selecionados se refere a uma


abordagem policial que resultou na morte de duas pessoas na cidade de
Cascavel, publicada em 6 de setembro de 2013, às 18h06min, com o título:
“Mortos em confronto eram perigosos, segundo PM”. Foram publicados 73
comentários sobre o texto até a data da pesquisa (15/09/2013). Selecionei
quatro comentários de leitores, que considerei como sequências discursivas7
(doravante, SD), sendo, respectivamente, os dois primeiros e os dois últimos
comentários publicados até a data na qual efetuei a coleta do corpus. O
primeiro leitor-autor que aceitou as restrições estabelecidas, ao comentar a
matéria publicada pelo portal CGN, identificou-se como “sou dos direitos
humanos”. O leitor-autor diz:

SD1: sou dos direitos humanos 06/09/2013 18:41h


15 (+) 47 (-) só deus para salvar nossa cidade e seu povo da total calamidade
que nós assola, é um salve se quem puder(hoje o povo comemora mortes)
Responder este comentário (grifos meus).

______ [ 73 ]
O comentário que foi publicado trinta e cinco minutos após a
matéria se refere a um posicionamento de defesa dos direitos humanos. Por
ser o primeiro comentário publicado, esse posicionamento não pode estar
relacionado diretamente à resposta dos dizeres de outros leitores-autores
sobre o texto jornalístico, nem diretamente à matéria que não faz menção aos
direitos humanos ou a alguma “comemoração” sobre o fato noticiado (morte
de duas pessoas).
Assim, esse dizer pode estar ligado a outros discursos (memória
discursiva (já-ditos)) efetuados em outros momentos no mesmo espaço virtual
ou em outros e dos quais o leitor-autor discorda, como se percebe no final
do seu comentário, “hoje o povo comemora mortes”, focando a contradição
presente na naturalização da violência e a menção a um passado melhor
que o presente, no qual as pessoas não comemoravam mortes. Por outro
lado, mesmo que a matéria não se refira diretamente aos direitos humanos,
o posicionamento do leitor-autor está construído em relação à violência; ser
dos direitos humanos marca uma oposição à violência retratada na matéria,
ou seja, a morte de duas pessoas, envolvidas anteriormente, segundo o portal
de notícias, com práticas punidas pela lei.
Além do dizer ligado a uma FD dos direitos humanos, há na SD1 a
FD que formula um discurso religioso e que permite pensar em outro dizer
não presente, mas que sustenta os efeitos de sentidos do comentário, ou
seja, o interdiscurso que retoma a passagem bíblica da destruição de Sodoma
e Gomorra (“só deus para salvar nossa cidade e seu povo da total
calamidade que nós assola”, grifos meus).
Para Pêcheux (2009), no funcionamento do interdiscurso, a FD
absorve elementos pré-construídos alhures e os reformula através da
associação com elementos que são encadeados no enunciado (discurso
transverso8), produzindo os sentidos (evidentes) em que são fornecidos os
fundamentos da identificação do sujeito com as FDs, de acordo com as
condições ideológicas nas quais elas estão inseridas. Sobrevém “um ‘trabalho’
de unificação do pensamento, em que as subordinações se realizam ao se
apagarem na extensão sinonímica da paráfrase-reformulação” (PÊCHEUX,
2009, p. 245).
Destarte, na SD1, a FD religiosa produz efeitos de sentidos da ajuda
divina (“só deus para salvar”) contra o individualismo e a naturalização da
violência (“é um salve se quem puder”) que leva “o povo” a “comemorar
mortes”. O pré-construído do poder de “deus” (que pode castigar/
destruir/salvar) sustenta o dizer e permite a formulação dos termos “nossa
______ [ 74 ]
cidade” (Sodoma e Gomorra/Cascavel), “seu povo” (pecadores bíblicos/
Cascavelenses), “calamidade” e “assola” (pecado/violência). Além do mais,
pode-se pensar na substituição destruir/“salvar”. Assim, o pré-construído
fornece o efeito do “sempre-já-aí” e o “mundo das coisas” como universalidade.
Esse efeito “consistiria numa discrepância pela qual um elemento irrompe
no enunciado como se tivesse sido pensado ‘antes, em outro lugar,
independentemente’” (PÊCHEUX, 2009, p. 142, grifos meus).
Assim, pode-se destacar o discurso religioso predominante no
comentário e realçar o discurso transverso que associa “deus” à valorização
da vida (que “salva”), porém não totalmente estabilizado, pois a menção aos
direitos humanos faz ecoar efeitos de sentidos de outra FD, sobre os aspectos
legais e jurídicos da preservação da vida, sobre o papel do Estado de garantir
a segurança pública e dos excessos cometidos pelos agentes do estado.
O comentário da SD1 recebeu avaliação negativa de 47 pessoas e
positiva de outras 159. Essa avaliação deve ser levada em conta, pois reforça a
produção dos efeitos de sentidos de uma maioria/minoria que concorda ou
discorda de um determinado posicionamento. A avaliação dos comentários
deve ser analisada sob o prisma do processo de constituição ideológica dos
dizeres, porém deslocado das restrições e das cláusulas cominadas, pois, ao
avaliar os comentários dos outros leitores-autores, o internauta não necessita
aceitar os termos impostos pela página do portal de notícias. Podendo “se
expressar” apenas com um clique, o seu dizer não é explicitado no site, mas
seu posicionamento, sim. O leitor-autor, nesse caso, é apenas um número
na quantificação das avaliações dos comentários já postados, porém, mesmo
enquanto número, não deixa de produzir efeitos de sentidos sobre o tema.
Essa é uma das distinções que podem ser elencadas em relação às
opiniões dos leitores-autores publicadas nos periódicos impressos, pois, nas
cartas de leitores publicadas nesses periódicos, não há a possibilidade de a
avaliação ocorrer quase simultaneamente aos comentários e estar presente na
constituição dos efeitos de sentidos.
No comentário posterior (SD2), publicado vinte e dois minutos após
o primeiro, o leitor-autor que se identifica como “DEGRINGOLADO”,
refere-se aos direitos humanos citados na SD1 e se distancia desse discurso,
fixando-se no fato de que “FALTA DEUS”:

SD2: DEGRINGOLADO 06/09/2013 19:03h


7 (+) 29 (-) Não precisa ser dos Direitos humanos pra ver q a vida
predeu o valor.as pessoas hoje ama mais a morte do q a vida,isso tem
nome. FALTA DEUS
Responder este comentário (grifos meus).

______ [ 75 ]
O termo “DEGRINGOLADO” está aliado à perspectiva de que “a
vida predeu o valor” e “FALTA DEUS”, produzindo o efeito de sentido de
um passado positivo no qual a vida era valorizada, respaldada possivelmente
pela presença de “DEUS”. Assim, o leitor-autor está orientado por uma FD
de cunho religioso como na SD1, porém se afasta da FD dos direitos humanos
(“Não precisa ser dos Direitos humanos”). Ao focar sua opinião no amor à
morte (falta de Deus) e falta de valor à vida, a FD religiosa segue um trajeto
próximo ao da SD1, que reforça a necessidade de uma força sobre-humana
para conter a violência.
Ao se referir ao primeiro comentário, a SD2 permite destacar o
mecanismo do simulacro discursivo, no qual o leitor-autor imaginariamente
se coloca no lugar do primeiro comentador e aponta que, apesar de não
concordar com o posicionamento dele sobre os direitos humanos (como se
soubesse realmente que posicionamento é esse), aproxima-se no que toca à
falta de valor à vida e à necessidade da presença de uma força extra-humana.
Essa simulação, conforme Pêcheux (2009), remete à identificação que produz
imaginariamente o sujeito inteirado capaz de pensar-se, pensar o outro e se
colocar no lugar do outro:

(‘se eu estivesse onde tu (você)/ele/x se encontra, eu veria e pensaria


o que tu (você)/ele/x vê e pensa’), acrescentando que o imaginário da
identificação mascara radicalmente qualquer descontinuidade epistemológica.
(PÊCHEUX, 2009, p. 118, grifos meus).

Maingueneau (1997), ao comentar como ocorre essa simulação


discursiva, afirma que

Esta interação entre dois discursos em posição de delimitação


recíproca pode ser compreendida como um processo de ‘tradução’
generalizada, ligada a uma ‘interincompreensão’. Tradução de um tipo
bem particular, entretanto, pois ele opera [...] de uma formação discursiva à
outra, isto é, entre zonas da mesma língua. [...] Assim, quando uma formação
discursiva faz penetrar seu Outro em seu próprio interior, por exemplo,
sob a forma de uma citação, ela está apenas ‘traduzindo’ o enunciado
deste Outro, interpretando-o através de suas próprias categorias.
(MAINGUENEAU, 1997, p. 120, itálico do autor, grifos meus).

Além disso, há nos dois comentários a aproximação dos efeitos de


sentidos sobre as “pessoas”/“povo” que “comemoram” e “amam” a “morte”,
construindo uma perspectiva negativa que só pode ser revertida pelo caminho
divino, contornando outras possibilidades mais diretas de combate à violência,
______ [ 76 ]
como a ação estatal, o investimento em educação, em saúde, distribuição de
renda, segurança, saneamento básico, dentre outros.
Há, assim, na SD2, um discurso que produz uma perspectiva
de causa e efeito da presença de “deus” e o consequente fim da violência
e da necessidade de combater a presença de atos/seres que contrariam os
preceitos divinos, formulado a partir de um posicionamento predominante
da FD religiosa ao se distanciar do discurso dos direitos humanos. Nessa
perspectiva, “só deus para salvar” e “FALTA DEUS”, respectivamente, das
duas SDs acima, apesar de não situarem o sujeito no mesmo posicionamento
discursivo, aproximam-nos.
Na SD2, ainda é possível analisar o modo de produção dos
comentários na rede eletrônica, especificamente no portal CGN, e nos
periódicos impressos. Como se pode perceber, o sujeito da SD2 faz referência
direta à SD1. A quase simultaneidade da publicação dos comentários na rede
eletrônica leva os leitores-autores a comentarem não apenas a matéria em
si, mas considerar, além da narrativa jornalística, as opiniões já publicadas
de outros leitores-autores, produzindo a evidência da democracia digital.
Portanto, o sujeito constituído na rede eletrônica pode ser concebido

como o sujeito do discurso em relação a um poder, posição inscrita pela


ideologia e pela memória e constituída por condições de produção datadas
historicamente. Afetados pela navegação em uma superfície de dados
prefixados anteriormente, o sujeito se movimenta na rede do já-dado,
já-dito e já-traçado por um outro sujeito, embrenhando-se em nós
que já foram atados por outrem. Assim, o poder dos acessos e dos
acessamentos, tantas vezes maculado pelo chavão da liberdade, se
limita ao gesto de inscrever-se em locais que já foram autorizados,
previamente lidos e acomodados. (ROMÃO, 2006, p. 307, grifos meus).

Romão (2006), ao abordar a autoria na internet foca os blogs pessoais.


Apesar de a constituição dos comentários no portal CGN estarem imersos
em outro mecanismo, ou seja, o do discurso jornalístico, é possível conceber
esse processo de inscrição do sujeito em locais já previamente estabelecidos,
seja a partir do texto da matéria ou dos comentários postados que passarão
pelo filtro do “moderador”. Nesse aspecto, na constituição dos efeitos de
sentidos dos comentários publicados no portal de notícias, além da matéria,
devem-se considerar os comentários já postados, o que não pode ser dito em
relação aos periódicos impressos, nos quais o leitor-autor não tem acesso às
opiniões alheias ao formular o seu dizer.
Diferentemente dos comentários publicados nos periódicos
impressos, normalmente em seção específica que se refere à edição anterior, a
______ [ 77 ]
escritura dos leitores-autores no site da CGN ocorre logo após a publicação
da notícia de forma quase simultânea, ficando exposta logo abaixo da matéria,
permitindo que se produzam outros/mesmos efeitos de sentidos sobre o
texto jornalístico e sobre os comentários que podem vir a ocorrer. Portanto,
deve-se considerar essa especificidade, na qual o leitor-autor entra em contato
com gestos de autoria outros, além daqueles presentes no texto da matéria
veiculada no portal de notícias.
Nesse caso, o da quase simultaneidade dos discursos publicados, é
necessário questionar como manejar o princípio de comentário proposto
por Foucault (2009), uma vez que não é apenas a matéria que fomenta as
discussões publicadas, mas também os comentários, abrindo-se espaço para
a produção ilusória de um espaço democrático e plural. Foucault esclarece a
problemática da seguinte maneira:

Não há, de um lado, a categoria dada uma vez por todas, dos discursos
fundamentais ou criadores; e, de outro, a massa daqueles que repetem,
glosam, comentam. Muitos textos maiores se confundem e desaparecem,
e, por vezes, comentários vêm tomar o primeiro lugar. Mas embora
seus pontos de aplicação possam mudar, a função permanece; [...]
Mas quem não vê que se trata, cada vez, de anular um dos termos
da relação, e não de suprimir a relação ela mesma? Relação que não
cessa de se modificar através do tempo; relação que toma em uma
época dada formas múltiplas e divergentes. (FOUCAULT, 2009, p. 23-
24, grifos meus).

Portanto, ao considerar como uma particularidade da rede eletrônica


a quase simultaneidade na publicação das postagens que leva o leitor-autor,
muitas vezes, a se reportar diretamente a outros comentários e não à matéria
em si, pode-se correr o risco de afirmar que a matéria publicada no portal e que
os distintos comentários formam uma amálgama10 (matéria + comentários já
publicados) que contribui para a constituição dos sujeitos e dos efeitos de
sentidos sobre o tema, porém isso não desestabiliza a “função” ou princípio
do comentário. Mesmo a matéria “anulada” como texto primeiro não deixa de
estar presente em um ponto inicial “esquecido” pelo leitor-autor que se volta
para um comentário específico e não aborda a matéria.
Essa distinção da composição entre os comentários publicados na
internet e nos periódicos impressos é relevante por permitir destacar a forma
como na rede eletrônica a constituição dos efeitos de sentidos estão marcados
pelas possibilidades tecnológicas que a caracterizam, isto é, pelas condições
de produção do discurso e pelas características que marcam esta rede, que
são tomadas como evidentes e reforçam o sujeito como autônomo. Como
______ [ 78 ]
destaca Romão (2006),

A topografia caótica do ciberespaço, a fragmentação dos arquivos lincados


à mercê do sujeito-navegador, a tagarelice de vozes emergentes não se sabe
de onde nem de quem, a permanente remissão a elas para instalar o dito, o
efeito de liberdade (e desorientação) da página eletrônica e a possibilidade de
escrita e leitura em vários lugares em curto intervalo de tempo dão conta
de novas condições de produção que exigem nova formulação teórica
e, por conseguinte, um novo conceito de autoria. (ROMÃO, 2006, p.
325, grifos meus).

Ao trazer a discussão por esse caminho, cabe destacar que na SD2 o


comentário se refere tanto ao outro leitor-autor (SD1) quanto à matéria, não
anulando o texto jornalístico publicado no portal enquanto texto primeiro;
porém, é possível perceber a especificidade na qual a constituição do sujeito
enquanto leitor-autor-navegante ocorre de maneira sui generis.
Na SD3, o leitor-autor que se identificou como “alfa” felicita a
“Grande Policia Militar” pelo “excelente trabalho”.

SD3: alfa 09/09/2013 13:09h


0 (+) 0 (-) Meus parabéns a Grande Policia Militar fizeram um excelente
trabalho.Abraços a todos os PMs DEUS os protejam.
Responder este comentário (grifos meus).

Diferentemente das duas primeiras SDs, o leitor-autor produz


uma perspectiva positiva sobre o que foi narrado na matéria, fixando-se na
ação dos policiais. A violência, nesse caso, está sob o prisma da oposição e
distinção, produzindo o discurso-transverso de que “violentos são eles, os
outros”, no qual a polícia militar, que protege a sociedade e representa o
bem (merece ser felicitada), e as pessoas mortas, por sua vez, o mal, que deve
ser combatido e eliminado. A FD que permite essa formulação produz o
eufemismo “excelente trabalho” para se referir às duas mortes perpetradas
pelos agentes do Estado, distanciando-se da FD dos direitos humanos e do
posicionamento da FD religiosa, que valoriza a vida.
A menção a “DEUS” traz, como nas duas primeiras SDs, a FD
religiosa, porém em uma posição distinta delas, produzindo os efeitos de
sentidos da proteção às forças policiais e de uma presença divina que coaduna
com o “trabalho” da polícia. Nesse caso, a FD da legitimidade está associada
à FD religiosa sem contradições aparentes. “DEUS” e a lei encarnam a
perspectiva do bem. Dessa forma, a força divina ou sobre-humana deve
proteger os homens que combatem pessoas violentas.
Em consonância com os efeitos de sentidos da SD3, é o que ocorre
______ [ 79 ]
com a SD4, que corresponde ao último comentário publicado sobre a matéria
até o dia no qual foi efetuada a pesquisa (15/09/2013):

SD4: Aliviada 13/09/2013 21:41h


0 (+) 0 (-) Obrigada Pms, por Tirarem das ruas talvez pessoas que
fizessem mal a mim ou a minha Familia, Admiro vcs Guerreiros!!
Responder este comentário (grifos meus).

A leitora-autora, que se autodenomina “Aliviada”, agradece aos


policiais militares utilizando o eufemismo “tirarem das ruas” para se referir
à ocorrência das duas mortes relatadas na matéria. Esse discurso se justifica,
segundo a posição discursiva na qual a leitora-autora está constituída, pelo
mal que “talvez” essas pessoas pudessem fazer.
O advérbio “talvez”, na forma empregada, pode representar um furo
na FD predominante que é a da legitimidade, porém não a desestabiliza. Os
efeitos de sentidos estão, como na SD3, produzidos sob o prisma da oposição
entre o bem e o mal; respectivamente, entre nós (“a mim ou a minha família”)
e eles (“pessoas que fizessem mal”). Dessa forma, a polícia militar é produzida
como “Guerreiros” que tiram o mal da rua.
A denominação “Guerreiros” é possível nessa FD, pois, na construção
da oposição entre o bem e o mal, o policial “tira das ruas”, não uma pessoa
comum, mas o “meu” inimigo, o inimigo da “minha família” e o da sociedade.
Por isso, é possível reforçar que o advérbio “talvez” não desestabiliza a
predominância da FD da legitimidade da ação estatal, apesar de representar
um dizer que põe em dúvida a ação das “pessoas que fizessem mal” ou a
atuação policial e do Estado, discurso que advém de outras FDs, como a dos
direitos humanos e a do discurso religioso da valorização da vida.
Dessa forma, a violência nestas duas SDs está constituída sob uma
perspectiva exterior, ou seja, violentos são os outros que tomam atitudes
violentas contra as pessoas de bem que podem recorrer ao “trabalho” da
polícia; não é mais a “calamidade que nós assola” (SD1). Assim, as FDs
que permitem a formulação das duas últimas SDs selecionadas produzem
um discurso positivo sobre a matéria, formulando eufemismos, elogios aos
“Guerreiros” (de qual guerra? Guerra contra o quê/quem?) da polícia militar
que merecem a proteção divina, distinguindo as mortes ocorridas (legitimadas)
da violência cotidiana.
Nas SDs analisadas, é possível perceber, no processo de constituição
dos sujeitos e dos efeitos de sentidos, como a FD orienta a forma como
cada leitor-autor se identifica. Como já foi dito, apesar da obrigação de
preencher o campo “nome”, não há a imposição de o internauta inserir um
______ [ 80 ]
nome previamente cadastrado no portal de notícias. Disse acima que os
leitores-autores preenchem o campo de forma aleatória, mas cabe aqui uma
reformulação: como é possível destacar, as expressões inseridas no campo
“nome” nas quatro SDs estão diretamente conectadas aos posicionamentos
discursivos dos leitores-autores.
Na SD1, “sou dos direitos humanos” marca o posicionamento em
relação à preservação da vida, seja a partir da perspectiva jurídica e estatal,
seja a partir da divina e sobre-humana; na SD2, “DEGRINGOLADO”
aponta para a perda do valor à vida, para a decadência dos tempos atuais,
focando um passado positivo que, aliado à FD religiosa, produz apenas a
solução divina para o problema da violência; na SD3, “alfa”, que considera
positivo os fatos relatados na matéria e pede a proteção divina para os
agentes policiais, identifica-se com um termo que está ligado ao cotidiano
de quem trabalha na área da segurança privada, pública ou na área militar. O
termo “alfa” representa a primeira letra do alfabeto internacional utilizado
normalmente nas transmissões via rádio e com o objetivo de evitar erros e
ambiguidades na interpretação das letras. Assim, as letras do alfabeto recebem
outra denominação: a: alfa, b: bravo, c: charlie, d: delta, e: eco, etc. Já na SD4,
a leitora-autora “Aliviada” agradece aos policiais pelo fato de terem “tirado
da rua” pessoas que talvez fizessem mal a ela ou a sua família, justificando a
utilização do termo pelo qual se identificou. Dessa forma, nesse mecanismo
de identificação, é possível destacar uma ancoragem na qual a expressão que
o leitor-autor se identifica está associada à FD que o constitui.
Ao considerar as quatro SDs, pode-se destacar um trajeto específico
dos efeitos de sentidos. As duas primeiras SDs tomam direções mais ou
menos estabilizadas. Isso também ocorre nas duas últimas; nestas, no entanto,
produzindo outros efeitos de sentidos, outra maneira pela qual os sujeitos são
constituídos ao comentar a matéria e ao se posicionar sobre a violência. Esses
trajetos mais ou menos regulares de produção dos efeitos de sentidos podem
ser explicados pela paráfrase:

A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer.


Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado.
A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia,
o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga
com o equívoco. (ORLANDI, 2007, p. 36, grifos meus).

A paráfrase, aliada à analogia do “pergaminho digital” (ROMÃO,


2006), dada a forma pela qual se desenrolam os comentários no portal,
respectivamente, SDs 1-2/3-4, deixa pensar que exista uma relação no modo
______ [ 81 ]
como ocorre o encadeamento dos comentários dos leitores-autores. Talvez,
não por acaso ou coincidência, existam dizeres mais ou menos próximos
entre as duas primeiras SDs e as duas últimas. Isso pode ser pensado como
um processo metafórico, modo já destacado por Orlandi (2007), ao trabalhar
com a representação na qual ocorrem transferências sucessivas de “a,b,c,d”
até findar em “e,f,g,h”:

A metáfora é constitutiva do processo mesmo de produção de sentido e


da constituição do sujeito. Falamos da metáfora não vista como desvio
mas como transferência. Na representação [...] podemos observar o
trabalho produzido pelo deslize (a deriva), pelo efeito metafórico, lugar de
interpretação e da historicidade. [...] Nessa representação o ponto de
partida (a,b,c,d) e o ponto de chegada (e,f,g,h), através dos deslizamentos de
sentidos – efeitos metafóricos – que se deram de próximo em próximo,
são totalmente diferentes. Mas essa diferença é sustentada em um
mesmo ponto que desliza de próximo em próximo [...] vemos aí a
historicidade representada pelos deslizes produzidos nas relações de
paráfrase que instalam o dizer na articulação de diferentes formações
discursivas, submetendo-os à metáfora (transferências), aos
deslocamentos: possíveis ‘outros’. (ORLANDI, 2007, p. 79, grifos meus).

Com isso, não se quer afirmar que exista um funcionamento fixo e já


dado no modo pelo qual as FDs se relacionam nos comentários publicados
no portal de notícias, mas se quer apontar que essas distintas relações
entre FDs ou posições discursivas produzem diferentes encaminhamentos
discursivos que não podem ser desconsiderados, ainda mais na rede digital,
cuja fragmentação sob a forma de links/tags permite que a qualquer momento
o leitor-autor possa transitar de um comentário ou matéria a outro com
apenas um clique.
O que pode ser destacado, nesse caso específico, é como se dá o
processo discursivo, por exemplo, como “DEUS” que “salva” e “falta” das
duas primeiras SDs está presente na SD3, produzindo efeitos de sentidos a
partir de uma FD religiosa, mas distintos das primeiras, ao tomar a violência
sob outra perspectiva, demonstrando a heterogeneidade que marca a FD. Já
na SD4 não é possível perceber a FD religiosa, porém ela está relacionada
com a FD da legitimidade da SD3 na forma como toma a violência cotidiana
e a função da polícia militar (Estado), silenciando a necessidade de se valorizar
a vida indistintamente ou refletir sobre os direitos humanos, aspectos esses
presentes nas duas primeiras SDs.
Como destaca Orlandi (2007), esse processo é de “ponto a ponto”,
“de próximo em próximo”, porém é um processo de deslizamento que
na rede eletrônica pode tomar caminhos incontáveis na constituição dos
______ [ 82 ]
comentários dos leitores-autores devido à maior interação possibilitada por
essa tecnologia. Para Romão (2006), ao comentar a constituição discursiva
dos sujeitos-autores em blogs na internet,

Talvez ‘a novidade’ seja afirmar que, na rede eletrônica, o sujeito-navegador


manifesta-se a partir da voz do(s) outro(s), reclamando a teia heterogênea
dos ditos alheios para fazer girar a sua condição de enunciador. Assim, a
autoria é marcada por vozes que vão se apoiando em superfícies patinadas
por outras vozes (sem as quais a navegação e a inscrição de sentidos
ficam comprometidas), de modo a desenhar uma estranha cartografia de
fragmentações de ditos, de retalhos de formulações e de retomadas de
relatos, enrolados no pergaminho digital. (ROMÃO, 2006, p. 326).

No contexto dos comentários nos portais de notícias, cada comentário


deve ser lido como um nó da rede eletrônica conectado a outros e que só
pode ser concebido dessa forma pela especificidade que constitui a internet.
Esses nós não existem e não são acessíveis nos periódicos impressos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Lisboa:


Presença/Martins Fontes, 1974.

FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1998.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2009.

LAGAZZI, S. O desafio de dizer não. São Paulo: Pontes, 1988.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. São


Paulo: Pontes, 1997.

MARIANI, B. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos


jornais. Rio de Janeiro: Revan, 1998.

_____. Sentidos de subjetividade: imprensa e psicanálise. Polifonia,


EdUFMT, Cuiabá, v.1 2, nº 1, p. 21-45, 2006.
______ [ 83 ]
MOURA, C. S. L. Identidade(s) afro-mestiço-brasileira(s) no imaginário
dos jornais. Niterói: UFF, 2004. 242 p. Tese de doutorado, Curso de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (área de
concentração em Estudos Linguísticos, linha de pesquisa em Discurso e
Interação), Niterói, 2004.

OLIVEIRA, L. C. As cartas dos leitores de Veja. In: O discurso sobre as


cotas para negros na revista Veja. Cascavel, PR: UNIOESTE, 2012. 151
p. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em
Letras (área de concentração em Linguagem e Sociedade), Cascavel, 2012.

ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7.ed.


São Paulo: Pontes, 2007.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


4.ed. São Paulo: Unicamp, 2009.

ROMÃO, L. M. S. O cavalete, a tela e o branco: introdução à autoria na


rede eletrônica. D.E.L.T.A, São Paulo, PUC, v. 22, n. 2, p. 303-328, 2006.

Internet: http://cgn.uol.com.br/noticia/63837/mortos-em-confronto-
eram-perigosos-segundo-pm. Acesso em: 15 set. 2013.

NOTAS

1) Cada sujeito a seu modo, mas não desconectados do processo que os constitui.

2) “nascemos em um mundo de discurso, um discurso ou linguagem que precede nosso


nascimento e que continuará após a nossa morte.” (FINK, 1998, p. 21, grifos meus).

3) “Ao falarmos em aparelhos ideológicos do Estado e de suas práticas, dissemos que cada um
deles era a realização de uma ideologia [...]. Retomamos esta tese: uma ideologia existe sempre
em um aparelho e em sua prática ou práticas. Esta existência é material” (ALTHUSSER, 1974,
p. 84).

4) “Elas [as FDs] são constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas e suas
fronteiras são fluidas, configurando-se e reconfigurando-se continuamente em suas relações”.
(ORLANDI, 2007, p. 44).

______ [ 84 ]
5) O recalque do inconsciente não é perfeito e nem a interpelação ideológica. Assim, “os
traços inconscientes do significante não são jamais ‘apagados’ ou ‘esquecidos’, mas trabalham,
sem se deslocar, na pulsação sentido/non-sens do sujeito dividido [...]. Apreender até seu
limite máximo a interpelação como ritual supõe reconhecer que não há ritual sem falhas”
(PÊCHEUX, 2009, p. 277, itálicos do autor, grifos meus).

6) Posteriormente à realização da pesquisa, foi substituído por “Anúncios”.

7) Sequência discursiva “é aquela a partir da qual os outros elementos do corpus receberão


sua organização. Isso se dá a partir de dois níveis considerados por Orlandi – o da formulação
ou do intradiscurso (sequência linguística produzida) e o da constituição ou do interdiscurso”
(MOURA, 2004, p. 41, itálicos da autora).

8) Segundo Pêcheux (2009, p. 151-152), no funcionamento do discurso transverso, é possível


destacar a ocorrência de substituições no seio das FDs, porém em relação à FD predominante;
essa substituição pode ocorrer de duas formas: a. maneira simétrica (equivalência de significação
entre elementos A e B) ou b. por substituição orientada (implicação), na qual os elementos
A e B, ao passarem para a relação de substituição B e A, não sustentam a mesma relação
significativa na FD considerada.

9) Cada internauta só pode clicar uma vez em cada contador da avaliação, tendo a possibilidade
de avaliar o mesmo comentário de forma positiva e negativa. Porém, ele não consegue corrigir
o seu voto.

10) Mariani (2006, p. 40) usa o termo amálgama (leitor-missivista + editor) para se referir à
edição das cartas de leitores em jornais, especificamente, nas colunas escritas por psicanalistas.
Uso o termo em outra acepção.

______ [ 85 ]
CAPÍTULO 5

O DISCURSO
PUBLICITÁRIO
NOS ANÚNCIOS
DE OPERADORAS
DE TELEFONES
CELULARES

Paula Fabiane de Souza Queiroz


Este trabalho se propõe a analisar, sob a ótica da Análise do Discurso,
estratégias1 discursivas utilizadas em anúncios de operadoras de telefones
celulares, para, assim, vislumbrar o modo de funcionamento do discurso
publicitário.
As análises na integra encontram-se na dissertação de Mestrado
intitulada O Discurso Publicitário nos Anúncios de Operadoras de telefones Celulares.
Apresentam-se, neste ensaio, portanto, as considerações finais decorrentes
das análises.
Para as análises, foram selecionados três anúncios de cada uma das
três principais operadoras de telefonia móvel do Brasil: TIM, Vivo e Brasil
Telecom. Os anúncios foram selecionados por se valerem de estratégias que
permitem visualizar valores reiterados por cada operadora na tentativa de
persuadir o consumidor, o que ilustra alguns aspectos recorrentes no discurso
publicitário.

TIM: VIVER SEM FRONTEIRAS

Em face das análises dos anúncios da operadora TIM, podem-se


destacar alguns pontos que são recorrentes, sendo balizados por valores
específicos valorizados por essa operadora. Esses valores podem ser
reconhecidos nos slogans e nas imagens que veiculam.
Algumas reflexões podem ser realizadas, a princípio com relação ao
nome da operadora. TIM resulta das primeiras letras de Telecom Italia Mobile,
empresa de telefonia celular oriunda da Itália e que chegou ao Brasil no ano
de 1998. Um aspecto a destacar com relação ao nome da operadora é a sua
mudança de gênero. Isso ocorre, pois, em alguns anúncios, ele é incorporado
______ [ 87 ]
ao nome dos planos e em outros assume exclusivamente o nome de operadora,
como nos casos:

a) TIM mais completo e TIM Web.


b) Só a TIM tem as melhores tarifas para você fazer ligações
DDD e DDI.

No primeiro caso, TIM assume o nome do plano; por isso, o adjetivo


completo é flexionado no masculino, enquanto que, no segundo caso, o artigo
feminino marca o gênero da TIM, por se tratar do nome da operadora.
Assim, TIM não é, exclusivamente, nem masculino, nem feminino, pois passa,
seguidamente, por um processo de neutralização da oposição de gênero
(MAINGUENEAU, 2008a, p. 215).
A TIM, como marca, responsabiliza-se pelos enunciados produzidos
nos anúncios. Esta marca, assim, torna-se uma entidade abstrata, desligada
do estatuto de fabricante, o que lhe permite produzir discursos por meio dos
quais investe nos produtos certo conjunto de valores específicos.
A esse respeito, Maigueneau (2008a, p.212) afirma que

O nome de uma marca, como qualquer nome próprio está associado a um


conjunto variável de representações sedimentadas ao longo do tempo, um
‘imagem de marca’, sobre a qual a empresa deve agir constantemente. A
evolução dessa imagem se deve em boa parte aos discursos que a empresa
emitiu sobre ela mesma e sobre seus produtos, em particular pela publicidade.
Por mais que uma marca se coloque como uma identidade que transcende
os enunciados que ela produz, ela é, na realidade, modificada por esses
enunciados: tais enunciados podem reforçar ou, ao contrário, modificar essa
imagem. De um enunciado a outro, ela se esforça por tecer um discurso que
lhe seja próprio por intermédio das histórias que conta. A marca encarna,
assim, sua identidade por intermédio dos discursos que ela produz, e a
esse respeito o processo de incorporação desempenha um papel importante,
pois ele é mediador entre o princípio abstrato representado pela marca e os
conteúdos que ela pretende veicular [...] (grifos do autor).

Assim, a cada discurso veiculado pelos anúncios, a história e a


identidade da operadora se constroem. Estes discursos baseiam-se em
determinados valores historicamente especificados e, ao mesmo tempo,
contribuem para que eles sejam confirmados e reforçados.
A partir do slogan da operadora TIM, pode-se afirmar que um dos
valores aos quais ela lança mão para sustentar seus anúncios é o da liberdade.
Nota-se que o discurso de cada anúncio analisado contribui para reiterar este
valor.
______ [ 88 ]
Maingueneau (2008a, p.171) afirma que um slogan é uma espécie de
fórmula curta, destinada a ser repetida por um número ilimitado de locutores,
como uma citação. O slogan está associado a uma sugestão e se destina “a fixar
na memória de consumidores ou futuros consumidores a associação de uma
marca a um argumento persuasivo para a compra”.
Nos anúncios analisados, aparece o slogan da empresa TIM: viver sem
fronteiras. Desse slogan, podem ser extraídos alguns efeitos de sentidos que
produzem determinadas representações da empresa anunciante.
Verifica-se, em primeiro lugar, o interdiscurso com a organização
Médicos sem Fronteiras, que surgiu com o objetivo de levar cuidados de saúde
para quem mais precisa, independentemente de interesses políticos, raça,
credo ou nacionalidade, ou seja, sem fronteiras. Assim, ao realizar o interdiscurso
com esta organização, o slogan da empresa atribui a si todos os traços positivos
que aquela possui, atribuindo-os, ainda, aos seus produtos. Além disso, sobre
aquela organização, tem-se a representação positiva da ausência de fronteira
para a assistência social, considerando-a universalmente necessária. O slogan
se vale dessa representação e a sobredetermina com outros efeitos de sentido,
valorizando, de acordo com seus interesses, a ausência de fronteiras com
relação à comunicação.
Assim, o slogan permite inferir que a TIM propõe, por meio de seus
serviços, um modo de vida que apresenta um caráter positivo por ser sem
limites e sem barreiras. Ou seja, a qualidade dos serviços da TIM com relação
à comunicação proporciona um modo de vida sem empecilhos ou obstáculos.
Desta forma, os discursos produzidos pelos diversos anúncios da
operadora sobre ela mesma ou sobre seus serviços confirmam e reforçam seu
slogan e contribuem para a constituição de uma imagem positiva da empresa.
E em cada anúncio permanece a busca pela reafirmação da empresa e pela
busca da sua inscrição na memória do consumidor.
Portanto, após as análises realizadas, é possível destacar a ênfase
dada à comunicação sem limites, à ausência de fronteiras e à liberdade em
geral. Esses aspectos são especificados e valorizados na constituição de cada
anúncio.
Desse modo, por meio dos seus anúncios, a TIM, enquanto uma
unidade abstrata que se responsabiliza por eles e constitui uma identidade para
a marca, cria um universo de sentido que determina que os valores exaltados
por ela são necessários, úteis e importantes: essenciais. Para isso, os anúncios
realizam interdiscursos com outros que, de alguma forma, contribuem para
reforçar os aspectos positivos desses valores.
Ao mesmo tempo em que enfatizam a liberdade e comunicação
______ [ 89 ]
sem fronteiras ou limites, os anúncios procuram criar no leitor o desejo de
desfrutar desses valores. Em alguns casos, o próprio anúncio fornece imagens
de clientes que desfrutaram ou desfrutam das vantagens e se encontram,
assim, satisfeitos.
Mas, com maior força, os anúncios buscam demonstrar que a
operadora, por seus produtos e serviços, pode proporcionar ao consumidor o
acesso à liberdade que tanto valoriza. Desse modo, de certa forma, ela realiza
uma chantagem velada, para que o consumidor ceda aos seus apelos e participe
ativamente do universo de sentido constituído por seu discurso, que se coloca
como necessário para que a satisfação do cliente seja alcançada.
Os anúncios, ainda, apresentam imagens que são reforçadas pelos enunciados.
Estas imagens conferem uma corporalidade ao fiador do discurso, que assume
uma dinâmica corporal compatível com o espaço social que ocupa.
O consumidor, ao realizar a leitura do anúncio, ultrapassa a
decodificação e participa do microuniverso construído pelo discurso, por
meio de uma identificação exigida com o corpo apresentado.
Nesse sentido, pode-se considerar a noção de ethos, assim como
reformulada por Maingueneau (2005), a partir da retórica para a Análise do
Discurso, considerando que

alguma coisa da ordem da experiência sensível se põe na comunicação


verbal. As ‘ideias’ suscitam a adesão por meio de uma maneira de dizer
que é também uma maneira de ser. Apanhado num ethos envolvente e
invisível, o coenunciador faz mais que decifrar conteúdos: ele participa do
mundo configurado pela enunciação, ele acede a uma identidade de algum
modo encarnada, permitindo ele próprio que um fiador o encarne. O poder
de persuasão de um discurso deve-se, em parte, ao fato de constranger
o destinatário a se identificar com o movimento de um corpo, seja ele
esquemático ou investido de valores. O ethos pede que se aceitem valores
historicamente especificados (MAINGUENEAU, 2008b, p. 29).

Verifica-se, assim, a incorporação que a enunciação busca conferir ao


fiador do discurso do anúncio, tentando levar o coenunciador à incorporação
de esquemas e, por fim, à tentativa de constituição de uma comunidade
imaginária dos que aderem ao discurso.
Dessa forma, a busca de persuasão do consumidor se dá, conforme
Maingueneau (2005), a partir da associação do produto a um corpo, a um
estilo de vida e a uma maneira de estar no mundo; além disso, o discurso só
pode adquirir o caráter de acontecimento e persuasão, se permitir e propuser
esta incorporação.
Além desses elementos, verifica-se que a TIM recorre a estereótipos2
______ [ 90 ]
constituídos historicamente, reforça os efeitos de sentido que deles se
depreendem e os transforma de acordo com seus objetivos.
Os enunciados que formam a parte verbal dos anúncios, bem como
o slogan da empresa, possuem caráter argumentativo e buscam persuadir o
leitor a adquirir o produto a partir de uma representação positiva da empresa.
E, ao mesmo tempo em que organiza o discurso de modo a reforçar esta
representação, a empresa procura desvalorizar as outras operadoras,
colocando-as como inferiores. Nota-se, então, que os anúncios assumem
uma dupla função: fazer propaganda da TIM e contrapropaganda das outras
operadoras.
A ênfase que os anúncios dão à suposta preocupação da empresa com
o bem-estar dos consumidores se materializa, principalmente, nas diversas
vezes que aparecem promoções de serviços prestados gratuitamente. Neles,
a empresa busca mostrar que procura proporcionar bem-estar e satisfação
aos consumidores, que podem se sentir valorizados e beneficiados por ela, à
medida que utilizam de seus serviços sem pagar por isso.
Para auxiliar na constituição de uma imagem positiva da empresa,
ou para reforçá-la, os anúncios apresentam argumentos que conduzem à
conclusão de que a empresa oferece planos amplos, que envolvem telefonia
móvel e fixa, e que, no decorrer do tempo, ela é capaz de superar os próprios
planos e vantagens oferecidas. Dessa forma, revela-se a tentativa de, por meio
dos anúncios, manter os clientes e reforçar a representação positiva da marca.
Assim, o discurso dos anúncios da TIM, de maneira geral, deve ser
considerado para além de suas dimensões de sentido, como um conjunto
de comportamentos e dotado de uma materialidade. O que o discurso da
empresa propõe ao coenunciador é a incorporação das representações que
são materializadas, de modo que a persuasão objetiva ocorrer a partir da
identificação do leitor com as representações mostradas e da participação
ativa dele no universo de sentido constituído pelo discurso.

VIVO: SINAL DE QUALIDADE

Com relação à operadora Vivo, salienta-se a preocupação expressa


nos anúncios de transmitir a representação de uma empresa que prioriza
o bem-estar dos clientes e que cria promoções e oferece serviços a preços
baixos, para que eles estejam satisfeitos. Assim, os efeitos de sentido que tece
nas propagandas buscam conduzir o leitor para a representação positiva da
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empresa e para a incorporação dos valores expressos e destacados por ela.
Esta proposta de incorporação fica explícita nos anúncios em que
aparece a afirmação Eu sou Vivo, como depoimento de clientes que utilizam
os serviços da operadora. Então, mais do que uma relação comercial, o que
a Vivo procura estabelecer entre o cliente e a empresa é uma identificação de
valores a ponto de serem uma unidade.
Vê-se, ainda, que a operadora, em seus anúncios, explora a polissemia
do termo vivo, como flexão do verbo viver ou como adjetivo, para agregar
a si os efeitos de sentido que este termo produz, que pode defini-la como
uma empresa sagaz, esperta e ativa. Mas estes valores tornam-se ainda mais
importantes, se forem incorporados pelos clientes, que podem inferir que são
espertos e vivos, se desfrutarem das vantagens oferecidas pela empresa.
Nesse sentido, de acordo com Maingueneau (2008a), o nome da
marca se apropria das propriedades culturais que possuem determinadas
unidades lexicais para tirar proveito e constituir o discurso publicitário. Assim,
a operadora prioriza alguns valores e sugere ao cliente que os incorpore e
faça parte também da empresa, buscando estabelecer entre eles uma relação
afetiva que se sobrepõe à relação comercial.
O slogan da operadora Vivo “Sinal de Qualidade” contribui para
construir uma representação positiva da empresa, embora não esteja presente
em todos os anúncios. Por meio dele, além de se mostrar preocupada com a
satisfação do cliente e interessada em manter uma relação afetiva com ele, a
empresa se propõe como oferecendo serviços de qualidade.
O slogan joga com os efeitos de sentido do termo sinal, que pode
remeter tanto aos sinais eletromagnéticos emitidos pela operadora para
os celulares dos clientes, como à marca da empresa. O slogan garante a
qualidade dos serviços prestados pela operadora, afirmando que seus sinais
eletromagnéticos são de qualidade, como também afirma que a própria marca
da empresa é indício, prova e demonstração dessa qualidade.
A operadora Vivo possui, ainda, uma logomarca que aparece na
maior parte de seus anúncios. Trata-se de um pequeno bonequinho estilizado,
semitransparente, sem expressão facial e com uma postura convidativa. Esses
elementos expressam valores que os anúncios buscam incorporar à operadora.
Assim, o bonequinho personifica a empresa, bem como a tecnologia e os
serviços que oferece, tornando-a mais tangível e humana e atribuindo a ela
suas características: simplicidade, transparência e acessibilidade.
A logomarca aparece nos anúncios sempre próxima a uma figura
humana, como uma companheira. Dessa posição, pode-se perceber o convite
da operadora para que o cliente faça adesão aos seus planos e utilize seus
______ [ 92 ]
serviços, tendo-a como uma companheira que o acompanha nas atividades
do dia-a-dia.
O dinamismo do bonequinho e a diversidade de cores com que ele
se apresenta nos anúncios podem representar a diversidade da comunidade
de clientes que utilizam os serviços da operadora, bem como um convite
para que todos, apesar das diferenças, sintam-se incluídos por ela. As diversas
cores da logomarca representam, ainda, cada uma das empresas estatais que
deram origem à operadora a partir de suas privatizações.
A análise dos anúncios da operadora revela a preocupação de
construir uma representação positiva que comova o consumidor. Seu discurso
é constituído na tentativa de apagar a relação comercial que se estabelece
entre a empresa e o cliente e fazer sobressair a relação afetiva; por isso, seus
argumentos buscam persuadir, principalmente, pela emoção. Para construir
esta representação, a operadora se vale de diversas estratégias; uma delas é a
manipulação de datas comemorativas para a venda dos seus serviços.
Em um dos anúncios analisados, observou-se que tanto o enunciado
quanto a imagem, ao mesmo tempo em que faziam referência ao Natal,
buscavam fazer lembrar que a aquisição do produto anunciado era eficiente o
bastante para proporcionar felicidade.
Além disso, compreende-se que, embora recorram a elementos de
outras FDs, os anúncios não fogem às regras impostas pela FD comercial.
Dessa forma, embora parafraseie, ela acaba por dizer exatamente o que sua
formação discursiva determina e obriga.
É possível destacar que os anúncios se utilizam de discurso de outras
FDs na busca de persuasão e isto contribui para a representação de uma
empresa que coloca as necessidades e os desejos do consumidor acima de seu
objetivo de obter lucro.
Reforçando esta representação, os anúncios veiculam conteúdos que
permitem inferir que a Vivo respeita as diferenças de sexo e cor e que une
as pessoas que se encontram separadas pela distância. Para isso, a empresa
se mostra como conhecedora dos desejos e necessidades dos clientes, sendo
capaz de satisfazê-los.
Destaca-se que o anúncio se vale de outros locutores para falar bem
da operadora, retirando dela a responsabilidade pelos enunciados que veicula.
Às vezes, ele recorre à apresentação de testemunhos de clientes satisfeitos e,
outras vezes, recorre a pessoas públicas que podem afiançar o discurso.
A análise dos anúncios revela, ainda, que a operadora lança promoções
e oferece vantagens com o objetivo de superar as empresas concorrentes.
Contudo, esta concorrência se apresenta nos anúncios de forma implícita e
______ [ 93 ]
velada.
Os anúncios se pautam em valores estabelecidos socialmente e os
reforça, como no caso em que a empresa se mostra isenta de preconceito,
reafirmando-o, mesmo que de forma inconsciente, por meio dos elementos
que seleciona para se constituir.
Portanto, a partir das análises, pode-se concluir que, de maneira
geral, os anúncios da Vivo procuram divulgar suas promoções e vender seus
serviços de forma implícita, fazendo parecer ao leitor que a proposta não é
autoritária. Pode-se afirmar, então, que a maior carga persuasiva dos anúncios
está nessa forma velada de inserir os planos e serviços.

BRASIL TELECOM: AQUI É O LUGAR

Os anúncios da operadora Brasil Telecom fundamentam-se


principalmente no nacionalismo e na valorização de ser brasileiro. Embora haja
uma variação dos temas que motivam a propaganda, as cores predominantes
nos anúncios são sempre as da Bandeira do Brasil e, na maioria deles, há o
slogan da empresa, que reforça a valorização nacional.
Após a Independência do Brasil, em 1822, ocorre um surto de
nacionalismo no país que pode ser verificado com mais intensidade nas obras
literárias da Primeira Geração Romântica. Devido à constituição da antiga
colônia em país, a ideia de nação necessitava ser enfatizada como “um grupo
de pessoas ligadas por laços históricos e culturais” (OLIVEIRA, 2000, p.
103). Assim, a literatura foi utilizada como uma arma de ação política e social,
na busca de formar uma identidade nacional a partir dos elementos históricos.
Na literatura europeia, o nacionalismo foi marcado, principalmente, pelo
culto da Idade Média, na qual se encontrariam os elementos formadores da
nacionalidade de cada povo. No Brasil, a falta de um passado medieval levou as
obras românticas da primeira geração a valorizar, sobretudo, a figura do nativo
brasileiro: o índio. Este era descrito como um exemplo de comportamento
ético e comportamental.
Além disso, havia um forte apelo às belezas naturais encontradas no
Brasil. De acordo com Oliveira (2000, p. 103),

A natureza brasileira encontra um lugar privilegiado nesse momento de


nossa literatura. Seu exotismo e sua fartura estão presentes em inúmeras
obras românticas: os autores desse período procuravam valorizar as cores
nacionais, tudo o que era típico do Brasil: a natureza, o nativo, o pitoresco,
ou seja, aquilo que era gracioso e original.

______ [ 94 ]
Constrói-se, então, a idealização de uma nação perfeita, tanto com
relação à sua natureza, quanto aos seus habitantes, na busca de constituir uma
identidade nacional coesa. De acordo com Hall (2002, p. 47), “no mundo
moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma
das principais fontes de identidade cultural” e, para isso, os discursos que se
produzem em relação a uma nação são de suma importância. Estes discursos
constroem sentidos que se pautam em símbolos e representações que passam
a influenciar as concepções e as ações dos indivíduos que compõem uma
nação.
De maneira geral, o tema de fundo dos anúncios veiculados pela
operadora revela um forte apelo às questões relacionadas à nação como
uma instituição coesa, à qual seus componentes deveriam se identificar e
demonstrar amor e lealdade. Este caráter nacionalista revela-se nos anúncios,
principalmente, pelo nome da operadora, pelas cores que os constituem e
pelo slogan da empresa.
A Brasil Telecom surgiu após a privatização dos serviços de telefonia,
no ano de 1998. A privatização da empresa estatal responsável pela telefonia
desagradou a muitos brasileiros. Assim, o nome buscou amenizar os possíveis
impactos causados pela privatização, mantendo a representação de que,
embora não pertença mais ao Estado, a operadora comunga dos valores
nacionais.
As cores dos anúncios, verde, amarelo, azul e branco, reforçam o apelo
ao nacionalismo, à medida que remetem à Bandeira Nacional e ativam o saber
enciclopédico sobre o que é costume associar a ela. As cores fazem lembrar
as representações da bandeira e também o seu inverso, ou seja, ao mesmo
tempo em que o amarelo faz lembrar ouro e riqueza, ativa também a ausência
deles. Então, assim como a bandeira integra a nação, apesar das diferenças,
a operadora destina seus serviços a toda a população brasileira, tenha acesso
ou não à riqueza (amarelo), esteja no campo ou na cidade (verde), no céu ou
na terra (azul), em lugares pacíficos ou agitados (branco). Então, o anúncio,
por meio de suas cores, tece seu discurso baseado numa identidade nacional
em que

Não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe,
gênero, ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade
cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande
família nacional (HALL, 2002, p. 59).

Baseando-se nesta cultura nacional, a operadora convida o cliente a


______ [ 95 ]
utilizar seus serviços, adquirir seus produtos e assumir uma identidade cultural
brasileira, criando uma representação positiva da operadora, como aquela que,
assim como a Pátria, envolve todos os brasileiros, que valoriza os elementos
do país e convida seus clientes a valorizar também. Nesse sentido, é possível
verificar um determinado grau de xenofobia, pois a supervalorização do que
é nacional implica da desvalorização do que é estrangeiro.
Desse modo, à medida que os anúncios apelam para o nacionalismo
para tecer argumentos de uma empresa genuinamente brasileira, eles fazem
contrapropaganda das outras empresas de telefonia que se originaram em
outros países, como a TIM, empresa italiana, e a Vivo, que foi criada a partir
de investimentos de empresas portuguesas e espanholas.
Nesse sentido, a operadora, por ser nacional e ter Brasil até no nome,
como afirmava o antigo slogan da empresa, busca angariar vantagens na
concorrência com as outras operadoras, pois, enquanto estas disputam a
preferência dos clientes por meio de promoções que garantem vantagens
econômicas, ela apela para o nacionalismo. Isto pode levar a inferir que,
mesmo que os serviços das outras operadoras tenham valores iguais ou mais
baixos que os seus, optar por seus serviços é uma forma de demonstração
de amor e lealdade à Pátria. Este princípio protege a operadora de anúncios
concorrentes que apresentem promoções mais interessantes do que as
suas, o que se verifica nos anúncios analisados, em que sobressai o apelo ao
nacionalismo em relação às promoções apresentadas pela empresa.
Além disso, os anúncios podem conduzir o cliente a compreender
que utilizar os serviços de uma empresa nacional auxilia no desenvolvimento
econômico do próprio país. Dessa forma, o cliente pode se sentir duplamente
beneficiado: enquanto consumidor, que utilizou serviços de qualidade a preços
baixos, e enquanto cidadão brasileiro, por contribuir para o desenvolvimento
econômico da nação.
Nota-se, então, que os anúncios buscam valorizar a cultura nacional
e despertar o amor e a lealdade à pátria, enquanto se colocam como um dos
elementos nacionais a serem valorizados. Dessa forma, a lealdade e o amor à
Pátria são reivindicados pela empresa.
Estes mesmos valores nacionalistas podem ser verificados no slogan
“Brasil Telecom: Aqui é o lugar”, em que o nome do país e o advérbio de lugar
aparecem destacados, como se o aqui correspondesse, especificamente, ao
Brasil. O artigo definido permite compreender que não se trata de qualquer
lugar, mas de um local que apresenta boas razões para ser escolhido: o lugar
é o melhor. Pode-se afirmar que, propositalmente, alguns adjetivos foram
suprimidos, como melhor, bom, ótimo, agradável.
______ [ 96 ]
O slogan também permite compreender que a empresa seria o melhor
lugar para utilizar serviços de telefonia celular. E, se ela é o melhor lugar, é por
que as outras não são. Assim, mais uma vez, nota-se a propaganda que se faz
da empresa e a contrapropaganda realizada com relação às demais operadoras
que atuam no mercado.
Estes aspectos que apelam para o nacionalismo do consumidor
sobressaem nos anúncios, de modo que os outros elementos usados são
apresentados como algo extra, ou seja, ao optar pelos serviços da Brasil
Telecom, além de mostrar lealdade à Pátria, o consumidor aproveitaria, ainda,
promoções e serviços de qualidade.
As reflexões a respeito dos anúncios da operadora permitem, então,
afirmar que seu discurso se pauta, principalmente, no lugar comum de que o
que é nacional necessita ser valorizado: mas não só. Ancorado em questões
culturais, o discurso da operadora cria um universo de sentido e convida o
leitor a participar dele. Desse modo, os anúncios procuram elogiar e valorizar
a nação brasileira, ao mesmo tempo em que convidam o consumidor a fazê-lo
de uma maneira específica: pelo uso dos produtos e serviços da operadora.
Como se pode constatar, os anúncios enaltecem a nação e evocam
suas qualidades, como riquezas, belezas naturais e população, dentre outras,
com o objetivo de incluir a empresa entre os elementos que necessitam ser
valorizados pelos brasileiros.
Dessa forma, o convite para a valorização do que é brasileiro é,
implicitamente, um apelo para que os consumidores escolham utilizar os
serviços de uma empresa brasileira. Nota-se, portanto, uma tentativa de
igualar a empresa à pátria e reivindicar dos consumidores a mesma lealdade
que, em tese, é dada a ela.
À medida que valorizam o que é nacional, especificamente a empresa,
os anúncios desvalorizam o que é estrangeiro e este aspecto busca garantir
à operadora superioridade em relação às outras. Esta contrapropaganda
realizada pelos anúncios ocorre, às vezes, de forma implícita e, em outras,
explicitamente.
Pode-se afirmar que o discurso nacionalista é recorrente em todos os
anúncios analisados; ele é um elemento fixo da publicidade da Brasil Telecom
que, acompanhado de outros elementos, procura persuadir o consumidor.
Dentre estes elementos, destaca-se a recorrência a datas comemorativas,
como no anúncio em que, devido à comemoração do dia das mães, faz-se
uma representação positiva da figura materna e um apelo para que esta seja
valorizada e presenteada.
Assim, o discurso da operadora reforça a representação cultural que
______ [ 97 ]
se tem da figura materna, em que seus aspectos positivos são enfatizados e
se utiliza desta representação para persuadir o leitor a comprar o produto.
Então, a partir da idealização que faz da mãe, ao mesmo tempo em que
reforça esta representação, busca persuadir o leitor a adquirir o produto.
Além disso, os anúncios procuram construir a representação de uma empresa
que se preocupa prioritariamente com o cliente, mesmo que, para isso, seja
necessário renunciar ao lucro.
Embora a tentativa de agir sobre os leitores, por vezes, torne-se
explícita devido ao uso de verbos no modo imperativo, é possível perceber
que os anúncios buscam fazê-lo de forma velada. Dessa forma, apresentam
indícios que podem levar o leitor à ação desejada.
Para auxiliar no alcance de seus objetivos, o discurso dos anúncios
recorre a enunciados de outras FDs (médica, familiar, artística, biológica,
econômica e matemática, entre outras) e transformam/reforçam seus efeitos
de sentido, moldando-os da forma que melhor convém.
Do mesmo modo, os anúncios se pautam em representações sociais
de mãe, de pátria, de loucura, de economia e de qualidade que são feitas a
partir de recortes e representações da realidade, mas que são dadas como
realidade pura. Os anúncios, então, ao mesmo tempo em que partem destas
representações, por seu discurso, reiteram-nas.
Os anúncios analisados revelam que o discurso publicitário procura
colocar o consumidor como único ou maior beneficiado da relação comercial.
Isto se revela, principalmente, porque todos os anúncios mencionam algum
serviço que o cliente poderia utilizar gratuitamente, sem que a empresa,
aparentemente, tenha qualquer lucro com isso.
Assim, as reflexões permitem afirmar que os anúncios, por muitas
vezes, não enfatizam a venda de serviços e produtos, mas prometem a
conquista de sonhos e satisfação de desejos superiores ao próprio consumo,
que, por sua vez, revela-se apenas como um meio para atingi-los. Mais do
que a venda de serviços telefônicos, o que os anúncios da Brasil Telecom
procuram enfatizar é a possibilidade de o consumidor demonstrar afeto à
mãe, utilizar serviços gratuitos, sentir-se valorizado pela empresa, ser leal
à Pátria, despreocupar-se com problemas financeiros, dentre outros. Estes
argumentos, que buscam persuadir pela emoção, mesclam-se, nos anúncios,
com os destinados à razão e que enfatizam vantagens econômicas e outras
questões lógicas.

______ [ 98 ]
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as análises de três anúncios de cada uma das principais operadoras


de telefonia celular do país (TIM, Vivo e Brasil Telecom), é possível fazer
algumas afirmações a respeito do discurso publicitário e do gênero discursivo
anúncio. A comparação entre as operadoras revela os pontos que se repetem
nos anúncios e os que as diferenciam.
De modo geral, pode-se afirmar que os anúncios são um gênero que
pertence ao tipo discursivo publicitário e que, portanto, buscam se organizar
e tecer argumentos de forma a persuadir o consumidor a adquirir produtos.
Os anúncios impressos têm espaço bastante pequeno, em que são
apresentados a empresa e o produto, mas, principalmente, o leitor é convidado
a fazer parte do universo de sentido criado por eles. Por isso, os anúncios,
geralmente, apresentam frases curtas, com conteúdos menos complexos, para
chamar a atenção do consumidor e facilitar a leitura. Uma das estratégias de
construção do texto publicitário é eliminar qualquer elemento dispensável,
que não contribua para a elaboração adequada ou que possa provocar efeitos
de sentido contrários aos seus objetivos (PALACIOS, 2004).
Auxiliam, em seu caráter persuasivo, as representações culturais e
sociais de que se valem os anúncios e que fazem parte do imaginário do público
a que ele, supostamente, destina-se. Estas representações são reforçadas, à
medida que os anúncios enfatizam seus aspectos positivos e se valem delas
para persuadir o leitor a comprar o produto.
Para auxiliar na compreensão dos efeitos de sentido, bem como
para atingir seus objetivos, além do conteúdo linguístico, em sua maioria, os
anúncios apresentam imagens. Estas, geralmente, estão ligadas a estereótipos e
outras representações sociais que os anúncios, por seu discurso, transformam
e/ou reforçam. Sabe-se que o discurso publicitário se pauta em um já-dito
pré-construído e com ele dialoga; contudo, por sua prática discursiva, ele
sobredetermina os velhos efeitos de sentido e constrói novos, de acordo com
seus objetivos.
Navarro (2006, p.90) afirma que

o poder da imagem de conservar as forças das relações sociais e o fato


de os efeitos de sentido produzidos nos discursos da mídia emergirem do
diálogo estabelecido entre enunciado verbal e imagético parecem reclamar
o acréscimo do aspecto semiótico como uma terceira ordem que constitui
o discurso.

______ [ 99 ]
Por vezes, as imagens são de pessoas que, aparentemente, estão
satisfeitas por utilizarem os serviços da empresa. Assim, elas conferem uma
corporalidade ao fiador do discurso, que assume uma dinâmica corporal
compatível com o espaço social que ocupa. Ao ler o anúncio, o consumidor
é convidado a ultrapassar a decodificação e participar do microuniverso do
discurso, a partir de uma identificação com o corpo apresentado.
Desse modo, o fiador do discurso incorpora determinados valores,
busca persuadir o cofiador a também incorporá-los e, assim, participar da
comunidade imaginária dos que aderem ao mesmo discurso.
Portanto, o discurso publicitário congrega linguagens verbais e não-
verbais, com ênfase, na maior parte dos casos, a esta última. Por seu objetivo
de levar ao consumo, ele associa os produtos que busca vender aos desejos
e às possíveis necessidades daqueles a quem pretende persuadir. Para isso,
as imagens apresentadas são investidas de materialidades que associam o
produto vendido ao alcance de um estado pleno de felicidade. De acordo
com Baudrillard (1995, p. 47), “todo o discurso sobre as necessidades assenta
numa antropologia ingênua: a da propensão para a felicidade”. Por isso, além
de vender produtos, o discurso publicitário busca alimentar no consumidor a
esperança de satisfação a partir da compra.
É comum que os anúncios busquem constituir, por meio do discurso,
uma representação positiva da empresa, na tentativa de apagar a relação
comercial que se estabelece entre ela e o cliente e fazer sobressair uma suposta
relação afetiva, mostrando uma empresa que se preocupa com o cliente,
mesmo que seja necessário renunciar ao lucro.
É possível destacar que o discurso publicitário utiliza-se de enunciados
de outras FDs para contribuir com a representação de uma empresa que
coloca as necessidades e os desejos do consumidor acima de seu objetivo
de obter lucro, sendo ele, aparentemente, o único ou maior beneficiado da
relação comercial.
Nessa tentativa, o discurso publicitário recorre a enunciados de
outras FDs, mas não foge às regras impostas pela FD comercial. Dessa
forma, embora parafraseie, acaba por dizer exatamente o que sua formação
discursiva determina e obriga.
Ao mesmo tempo em que organiza o discurso de modo a reforçar
esta representação, a empresa procura desvalorizar as outras operadoras,
colocando-as como inferiores. Nota-se, então, que os anúncios assumem
uma dupla função: fazer propaganda da empresa e contrapropaganda da
concorrência. A análise dos anúncios revela, ainda, que as promoções lançadas
e as vantagens oferecidas procuram superar as empresas concorrentes.
______ [ 100 ]
Portanto, nos anúncios, divulgar um produto significa adotar constantes
estratégias de diferenciação e de singularidade em relação aos discursos
concorrentes.
A ênfase que os anúncios dão à suposta preocupação da empresa com
o bem estar dos consumidores se materializa, principalmente, nas diversas
vezes em que aparecem promoções de serviços prestados gratuitamente.
Dessa forma, os anúncios procuram proporcionar bem-estar e satisfação aos
consumidores, que podem se sentir valorizados e beneficiados pela empresa,
à medida que utilizam de seus serviços sem pagar por isso.
Para auxiliar na constituição de uma imagem positiva da empresa,
ou para reforçá-la, os anúncios apresentam argumentos que conduzem à
conclusão de que ela oferece planos amplos, que envolvem telefonia móvel
e fixa e que, no decorrer do tempo, é capaz de superar seus próprios planos
e vantagens oferecidas. Dessa forma, revela-se a tentativa dos anúncios de
manter os clientes da empresa e reforçar a marca.
Destaca-se que os anúncios utilizam de outras vozes para falarem
bem da empresa, retirando dela a responsabilidade pelos enunciados que
produz. Para isso, às vezes, eles apresentam testemunhos de clientes satisfeitos
e, outras vezes, recorrem a pessoas públicas que podem afiançar o discurso.
Pode-se concluir que, de maneira geral, os anúncios procuram
divulgar suas promoções e vender seus serviços de forma implícita, fazendo
parecer ao leitor que a proposta não é autoritária. Pode-se afirmar, então, que
a maior carga persuasiva dos anúncios está nessa forma implícita de inserir
planos e serviços.
Embora a tentativa de agir sobre os leitores, por vezes, torne-se
explícita devido ao uso de verbos no modo imperativo, é possível perceber
que os anúncios buscam fazê-lo, em geral, de forma velada. Dessa forma, eles
apresentam indícios que podem levar o leitor à ação desejada. De acordo com
Carrascoza (2004, p.30),

A adoção de tais molduras, contudo, não exclui totalmente a utilização de


recursos persuasivos mais comuns ao discurso autoritário – com comando
explícito para induzir o leitor à ação de experimentar o produto ou serviço
anunciado. Mas contribui para o advento do texto publicitário alicerçado
num aparato suasório mais sutil – que não se contrapõe àquele, e sim
constitui outra maneira de se exercer a persuasão.

As observações permitem afirmar que os anúncios, por muitas vezes,


colocam em segundo plano a venda de serviços e produtos e prometem a
conquista de sonhos e satisfação de desejos superiores ao próprio consumo,
______ [ 101 ]
que, por sua vez, revela-se apenas como um meio para atingi-los. Para isso,
os anúncios recortam valores sociais, que, supostamente os consumidores
possuem, e os valorizam como essenciais, como a liberdade, para a TIM, e o
nacionalismo, para a Brasil Telecom. De acordo com Ghiraldelo (2008, p. 5),

A ação das propagandas não se restringe apenas ao holofote que põem


em cena certos valores sociais, culturais e estéticos, mas é justamente pelos
valores postos em evidência que elas podem levar um potencial consumidor
a, de fato, consumir o produto ou serviço que divulgam, na medida em que
esses valores fazem eco ao jeito de pensar e de viver do consumidor. Assim,
ao mesmo tempo em que de se apropriam dos valores da sociedade, as
propagandas contribuem para a manutenção de tais valores.

O interdiscurso realizado com enunciados de outras FDs cooperam


para a ênfase aos valores especificados, mas também para apagar o apelo
ao consumo e a tentativa de persuasão. Assim, o discurso publicitário é
articulado, de modo a não explicitar sua função social, buscando se mostrar
como informativo.
Os valores especificados e veiculados conferem aos anúncios uma
função mais nobre que a tentativa de vender produtos e serviços. Por isso, é
recorrente que os anúncios busquem vender sonhos e desejos e apelem à
emoção do leitor. Os sonhos e desejos são valorizados e enfatizados pelos
anúncios e apresentados como superiores à aquisição do produto. Mas deve-
se notar que os anúncios, ao buscarem persuadir o consumidor, deixam
indícios de que os sonhos serão alcançados e os desejos satisfeitos por meio
da aquisição dos produtos ou do uso dos serviços anunciados. Os argumentos
que buscam persuadir pela emoção se mesclam, nos anúncios, com aqueles
destinados à razão e que enfatizam vantagens econômicas e outras questões
lógicas. Portanto, pode-se concluir que

Seja na vertente apolínea (em que a indução é direta) ou na dionisíaca (em


que o caráter indutivo é mais indireto), o discurso publicitário objetiva, em
verdade, o benefício de quem o enuncia, embora tente convencer o receptor
de que ele será beneficiado ao consumir o produto ou serviço anunciado. Sua
função pragmática é apenas aparente (CARRASCOZA, 2004, p. 33).

Desse modo, quer seja por motivos emocionais ou por razões lógicas,
o consumidor vê-se chantageado pelo anúncio, pois a recusa ao apelo implica
em consequências que ultrapassam a não aquisição dos produtos ou a não
utilização de serviços, que podem representar desvantagem econômica e
prejuízos que se estendem a outros aspectos da vida.
Segundo Carrascoza (2004, p. 16), “o texto publicitário constitui o
______ [ 102 ]
tecido que reveste a alma da marca e pode permitir, por meio de elementos de
persuasão, que ela seja percebida como algo positivo para o público.” Pode-se
afirmar, então, que os anúncios são como uma roupagem que materializa o
discurso de cada uma das operadoras.
Ainda segundo Carrascoza (2004, p.16),

O texto publicitário aparece em vários formatos, semelhantes aos modelos


de uma vestimenta, embora sua trama seja confeccionada com vistas a
agradar (ou chocar) o auditório, a entrar em comunhão com ele, a mostrar-
se justamente conforme seus desejos e aspirações para assim seduzi-lo – ou
assustá-lo.

Portanto, embora os anúncios sejam distintos na forma de se


organizar, ou nos valores que desejam enfatizar, eles se assemelham, ou talvez,
se igualem, nos objetivos de buscar seduzir o leitor, levando-o à aquisição
do produto ou à adesão aos planos oferecidos. A sedução pretendida é
acompanhada da chantagem implícita de sérios prejuízos, caso o consumidor
não ceda ao apelo.
A partir dessas considerações, poder-se-ia elencar algumas
características comuns ao discurso publicitário:

• Valer-se de representações culturais e estereótipos;


• Conferir corporalidade positiva ao fiador do discurso;
• Convidar o leitor a participar do universo de sentido criado e
valorizado pelo discurso e incorporar os valores propostos por ele;
• Associar produtos a desejos e sonhos superiores ao consumo;
• Apagar a relação comercial que se estabelece entre cliente e
empresa e destacar uma relação afetiva;
• Inserir os planos e produtos que vende de forma velada;
• Fazer propaganda e contrapropaganda ao mesmo tempo;
• Fazer chantagem implícita ao consumidor;
• Disfarçar sua função social e mostrar-se meramente
informativo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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sociologia dos campos. IN: Imagens de si no discurso: a construção do
ethos. Ruty Amossy (org). São Paulo: Editora Contexto, 2005.

______ [ 103 ]
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. (Trad. Artur Morão). Rio de
Janeiro: Elfos, 1995.

CARRASCOZA, J. A. Razão e Sensibilidade no texto Publicitário. São


Paulo: Futura, 2004.

GHIRALDELO, C. Valores sócio-culturais e estéticos em propagandas de


aparelhos celulares divulgadas no Brasil de 1998 a 2007. In: VII ESOCITE
(Jornadas Latino-Americanas de Estudos Sociais das Ciências e das
Tecnologias). Rio de Janeiro 2008, 2008.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:


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MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: Imagens de si


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NAVARRO, P. O pesquisador da mídia: entre a ‘aventura do discurso’ e os


desafios do dispositivo de interpretação da AD. In: Estudos do texto e do
discurso: mapeando conceitos e métodos. Pedro Navarro (org). São Carlos:
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OLIVEIRA, C. Arte literária brasileira. São Paulo: Moderna, 2000.

PALACIOS, A. As marcas na pele, as marcas no texto: sentidos de tempo,


juventude e saúde na publicidade de cosméticos em revistas femininas
durante a década de 90. Bahia: Universidade Federal da Bahia, 2004. 312
p. Tese de Doutoramento. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura Contemporânea. Bahia, 2004.

______ [ 104 ]
NOTAS

1) O conceito de estratégia é entendido como um mecanismo de organização do discurso, mas


que também é determinado pelas regras impostas pelas FDs. Desse modo, o sujeito não tem
livre escolha e pela FD em que se acha inscrito é escolhido pela estratégia.

2) Estereótipo entendido como o resultado do processo de estereotipagem, definido por


Amossy (2005, p. 125) como a “operação que consiste em pensar o real por meio de uma
representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado”.

______ [ 105 ]
CAPÍTULO 6

DISCURSO,
POLIFONIA E
CRIATIVIDADE
NO TEXTO
PUBLICITÁRIO

Alex Sandro de Araujo Carmo


Nos estudos referentes à linguagem, dentre as muitas áreas do conhecimento
científico, sempre há, na busca da compreensão dos efeitos de sentido de
um enunciado, a procura por elementos extralinguísticos que completem as
lacunas deixadas no nível do intradiscurso da composição frásica. A linguagem
joga com os elementos constitutivos dos efeitos de sentido, que são, ora
explícitos, ora implícitos. Há muitos conceitos para estes elementos: doxa,
lastro cultural, “apoio coral”, memória discursiva, interdiscurso, etc.; cada um com suas
nuances próprias (referentes ao arcabouço teórico da área de conhecimento
de que provêm) e com uma característica em comum (corresponder ao que
não foi dito/escrito, porém compreendido ou utilizado como conhecimento
anterior).
Nesse sentido, destaca-se que uma das proposições básicas da Análise
de Discurso de linha francesa (doravante, AD) é que o sentido, ou melhor,
o efeito de sentido não é prévio ao discurso. A produção/reprodução de
um discurso se dá por dois fatores: por paráfrase e por polissemia, sempre
embasadas num discurso prévio. Segundo Orlandi (1996, p. 19), de forma
geral, “Da observação da linguagem em seu contexto, [...], podemos dizer
que a produção do discurso se faz na articulação de dois grandes processos,
que seriam o fundamento da linguagem: o processo parafrástico e o processo
polissêmico”. Para essa autora (1996, p. 20), a paráfrase é a matriz do sentido,
“é o que permite a produção do mesmo sentido sob várias de suas formas”; e
a polissemia é a fonte de linguagem “responsável pelo fato de que são sempre
possíveis sentidos diferentes, múltiplos”. A tensão entre esses processos é que
constitui as várias instâncias da linguagem. Essa tensão representa “o conflito
entre o garantido, o institucionalizado, o legitimado, e aquilo que, no domínio
do múltiplo, tem de se garantir, se legitimar, se institucionalizar”. A essa luz,
pretende-se mostrar (ainda que em um caso bem específico e pontual) como
essa tensão atua na (re)produção dos discursos publicitários.
A publicidade tem sido considerada, ao menos por alguns autores,
______ [ 107 ]
como linguagem de sedução e de persuasão. Por isso, talvez, na maioria
dos casos, os manuais de redação publicitária, ao determinar as técnicas de
sedução/persuasão do texto publicitário, colocam os redatores como tendo
a particularidade de ser a fonte e a origem do sentido do material publicitário
que desenvolvem. Neste sentido, observa-se que a expressão criatividade sugere,
enquanto efeito de sentido óbvio, o aparecimento espontâneo de algo que
não existia e que a partir de um dado momento passa a existir pela vontade
e capacidade inventiva de um sujeito. Pode-se apontar que, ao se tratar de
processos criativos em tais manuais, há o apagamento da tensão existente
entre os fundamentos da linguagem.
A criatividade deve ser entendida, pelo menos na publicidade, como
sinônimo de solução de problemas de comunicação. A essa luz, e na esteira
de Barreto (2004), compreende-se que o processo criativo na publicidade
deve ser entendido como solução de problemas mercadológicos e não como
capacidade individual que dependeria da intuição ou da genialidade de um
sujeito. Segundo o autor (2004, p.73), “O problema, contudo, é sempre,
invariavelmente, componente ativo, verdadeira razão de ser de tudo o que se
compreende sob o título ‘criatividade’. Simplesmente não há criatividade sem
problema referente”.
Desta forma, deve-se entender que o sujeito/redator, não sendo
a fonte e a origem do que diz no texto publicitário, procura solucionar
problemas de comunicação e, quando tais problemas são solucionados,
credita-se a este empreendimento o status de ação criativa. No entanto, não
se pode associar criatividade a genialidade, ao menos, na posição teórico-
filosófica deste estudo. Barreto (2004, p. 89) aponta que em algumas teorias
filosóficas modernas a criatividade é parte constituinte da natureza humana.
Para o autor (4004, p. 89):

Durante o século XVIII, muitos pensadores e escritores, em particular Kant


em sua Crítica ao Juízo, associaram criatividade e gênio. Kant entendeu ser
criatividade um processo natural, que criava suas próprias regras. Também
sustentou que uma obra de criação obedece a leis próprias, imprevisíveis. E
daí concluiu que a criatividade não pode ser ensinada formalmente, apenas
analisada e criticada.

Neste viés, observa-se que os manuais de redação publicitária não


ensinam, e nem pretendem ensinar, técnicas de criatividade, entendendo
está como advinda de um processo natural, haja vista que, se os manuais
entendessem que o processo criativo é um processo natural, não haveria
lógica em procurar desenvolver técnicas de aperfeiçoamento criativo.
______ [ 108 ]
Neste sentido, para demonstrar que a criatividade na publicidade
não emana da subjetividade inventiva e intuitiva de um sujeito, convocam-
se os conceitos de interdiscurso, discurso-transverso e pré-construído,
além do auxílio da teoria polifônica da enunciação para compreender os
desdobramentos (pontos de vistas, coro polifônico) enunciativos do sujeito
redator, para empreender a análise de enunciados publicitários com o intuito
de avaliar a tese do estudo que propõe observar a criatividade como um
processo não-subjetivo. Assim, procurar-se-á entender o funcionamento do
processo criativo publicitário e não apenas a função sedutora e persuasiva da
publicidade.

REDAÇÃO PUBLICITÁRIA:
(OU O DISCURSO NA PUBLICIDADE)

Carrascoza (2004), em Razão e Sensibilidade no texto publicitário, aponta


que o texto publicitário é fundamentado em duas forças que são, para
Nietzsche, a apolínea, sustentada no discurso racional, nos argumentos, e a
dionisíaca, que se apoia na emoção e no humor. Na mesma obra, o autor
diz que o texto publicitário opera basicamente por meio de duas funções:
a estética (fazer saber) e a mística (fazer crer), sendo que o fazer saber e o
fazer crer trabalham a favor do fazer querer publicitário, ou seja, fazer com que o
interlocutor ou o receptor da mensagem publicitária sinta vontade (desejo) e
experimente ou consuma o produto ou serviço.
Nesse sentido, pode-se destacar que um dos recursos utilizados pela
mensagem publicitária é o de mostrar ao público um mundo perfeito, usando
em seus anúncios imagens de lugares e objetos atraentes. Carvalho (2010),
no livro Publicidade: a linguagem da sedução, mostra que a publicidade deve estar
atenta à vida, aos hábitos, crenças e saberes do público, porque é com base
neles que a publicidade forma/constitui suas estratégias de comunicação,
com o fim prático de seduzir/persuadir/convencer o interlocutor e ajudar/
estimular na finalização da compra/aquisição de produtos/serviços. A autora
(2010, p. 18) destaca que, “com o uso de simples palavras, a publicidade pode
transformar um relógio em uma jóia, um carro em símbolos de prestígio e um
pântano em paraíso tropical”.
Percebe-se que a palavra (isto é, a prática discursiva) tem o poder de
criar e destruir, de prometer e de negar. A publicidade se vale dos recursos da
palavra (processos discursivos) para persuadir/convencer os interlocutores/
______ [ 109 ]
receptores. Neste sentido, fala-se que o texto publicitário possui algumas
funções. Martins (1997, p. 21), na obra Redação Publicitária: teoria e prática,
afirma que o texto publicitário, enquanto fonte informativa, possui a “função
de agilizador de consumo”. Da mesma forma, Sandmann (2003, p. 27), em A
linguagem da Propaganda, na esteira de Jakobson (1971) acerca das funções da
linguagem, apresenta que o texto publicitário atua, geralmente, em face das
funções apelativa (mensagem centrada no receptor) e estética (ou poética:
centrada na própria mensagem).
Como se pode observar, alguns manuais (sem tirar o crédito de suas
contribuições) colocam a publicidade como uma linguagem de sedução,
com linhas de força que atuam entre a razão e a emoção, com a função de
centrar suas mensagens ao nível do próprio texto (função estética/poética) e
ao nível do receptor/interlocutor (função apelativa). Neste viés, é pertinente
mostrar que estes manuais são determinados por pressupostos filosóficos
advindos de noções retóricas e pragmáticas que remontam à tradição idealista
(racionalista/metafísica/platônica e mentalista/empirista/aristotélica), que
coloca, cada uma a seu modo, o sujeito como um ser subjetivo e, por essa via,
como fonte e centro do sentido.
Assim, e a partir desta apresentação, este trabalho se propõe a
tecer alguns questionamentos a respeito da produção do texto publicitário,
deslocando o debate não para o estudo da função, mas para o estudo do
funcionamento da mensagem publicitária. Desta forma, alguns deslocamentos
e empréstimos serão convocados para demonstrar o empreendimento de uma
visada materialista para o estudo do discurso publicitário.
Deste modo, entende-se que, em alguns casos, os manuais de redação
publicitária buscam mostrar técnicas de produção textual que procuram
desenvolver determinadas capacidades de dominar recursos estilísticos que
a língua oferece e que permitem, em certos casos, dar espaço à inovação e à
criatividade como uma atividade subjetiva do sujeito/redator. Acredita-se que
esta criatividade, tal qual para Barreto (2004), também pode ser entendida
com solução de problemas de comunicação (de ordem mercadológica).
Neste sentido, aponta-se que o ponto fraco dos manuais se situa
no não entendimento de que a solução de problemas de comunicação
independe da capacidade inventiva do sujeito/redator. Em outras palavras,
não se pode colocar estas soluções como dependendo apenas da capacidade
subjetiva do sujeito/redator, pois ele não é a fonte e a origem desta solução,
haja vista que não se pode, ao menos em uma posição materialista, manter
o desconhecimento e/ou desconsiderar as condições de produção material
deste tipo de solução.
______ [ 110 ]
DISCURSO, POLIFONIA
E CRIATIVIDADE NÃO-SUBJETIVA

Uma primeira colocação deve ser feita antes de desenvolver o quadro


teórico da teoria materialista do discurso. Embora os objetos de crítica
do estudo sejam alguns manuais de redação publicitária e estes tenham
como orientação a tessitura daquilo que se convencionou chamar de texto
publicitário, o foco deste trabalho vai para além do texto. Por isso, torna-se
prudente deixar claro que o objeto de análise é o discurso (e, respectivamente,
algumas práticas discursivas) e não o texto, haja vista que este empreendimento
procura trabalhar não apenas com questões textuais, mas, antes de tudo, busca
compreender as práticas que se materializam sobre e pela discursividade.
Neste percurso, Possenti (1993), no capítulo Notas sobre o discurso
como questão pertinente, aponta que a questão do discurso se colocou para os
linguistas em três lugares: i) discussão sobre qual seria o objeto da linguística; ii) as
discussões sobre a natureza das línguas; iii) as solicitações que outras áreas de conhecimento
fizeram para a linguística.
A primeira questão se desdobra ao mesmo tempo em relação à extensão
do objeto e a um princípio mínimo de organização. A constituição de um objeto de
ciência precisa ser delimitável e representável. Assim, Saussure (1974), no Curso de
Linguística Geral, estabeleceu o objeto da linguística no nível dos signos por
sua convencionalidade. Os outros problemas relacionados à linguagem foram
colocados para a fala como o lugar onde se entrecruzam dados relevantes,
mas não sistematizáveis. Esta limitação do objeto da linguística, estabelecida
por Saussure (1974), custou, de certa forma, a exclusão do sentido para fora
das preocupações da Linguística.
Para Possenti (1993), a teoria linguística de Chomsky é a mais bem
sucedida no campo de ampliação do objeto da linguística. Essa teoria, no
nível da sintaxe, mostra a relação a um objeto mais extenso que o conjunto de
signos. Para ele (1993), Chomsky atribui um caráter inato a certos princípios
gerais das gramáticas possíveis. Neste sentido, entende-se que o que é inato
para Chomsky é convencionado para Saussure.
Possenti (1993), depois de apresentar as problemáticas dos objetos da
linguística em Saussure e Chomsky, aponta que havia também preocupações
em tentar explicar o discurso, enquanto unidade maior que o signo e a frase. É
neste sentido que se introduz a crítica de Pêcheux às proposições Saussurianas
e Chomskyanas.
Pêcheux e Fuchs (1993), em A propósito da análise automática do discurso:
______ [ 111 ]
atualização e perspectivas (1975), a partir da questão da interpelação, apresentam
o conceito de formação ideológica que se caracteriza como a constituição de
um conjunto complexo de atitudes e de representações que se relacionam
com as posições de classes. Este conceito mostra que o discursivo, justamente
pelo fato de não se poder identificar língua e ideologia, deve ser visto como
um dos aspectos materiais da materialidade ideológica.
Essa materialidade ideológica comporta, como um de seus
componentes, uma ou várias formações discursivas (doravante, FD)
interligadas que determinam o que pode e deve ser dito no interior de
determinadas relações de classes.
O fato de o sentido de uma sequência só ser concebível a partir
de uma FD leva ao entendimento de que as sequências discursivas sempre
pertencem a uma FD dada e que esse pertencimento se encontra recalcado-
esquecido para o (ou pelo?) sujeito.
A essa luz, como sustentar que o sujeito/redator seria a fonte e a
origem daquilo que diz nos textos publicitários? Neste sentido, apresentar-se-
ão duas questões que permitem pensar os processos criativos na publicidade.
Por meio da primeira, relativa ao deslocamento da função para o
funcionamento, procura-se demonstrar que a publicidade deve ser entendida
e estudada a partir de seu funcionamento enquanto prática discursiva e não
por meio de sua função. Realiza-se, aqui, o mesmo tipo de deslocamento
realizado por Pêcheux (1993) em relação ao par saussuriano Língua/Fala, que
coloca o estudo dos processos discursivos à luz de seu funcionamento e de
suas condições de produção.
A outra questão, relativa às estruturas sintáticas (superficiais e
profundas) da teoria chomskyana, que demonstram uma criatividade não-
subjetiva no uso da língua, permitiu a Pêcheux (1993) pensar os processos
discursivos em termos de estruturas discursivas analisáveis de superfície e em
estruturas profundas que as determinam (por exemplo: FD, Interdiscurso,
Discurso-transverso, Pré-construído).
A partir destas duas questões, pode-se apontar que os efeitos de
sentido não se processam no sujeito. Pêcheux (2009, p. 145), ao criticar a
forma-sujeito do idealismo, diz que, “sob a evidência de que ‘eu sou realmente
eu’ (com meu nome, minha família, meus amigos, minhas lembranças,
minhas ‘idéias’, minhas intenções e meus compromissos), há o processo de
interpelação-identificação que produz o sujeito”.
Dito de outro modo: o sujeito é constituído por dois fatores
fundamentais, isto é, ele é formado pelo esquecimento e pela identificação com
uma FD dada que se revela no interdiscurso e que produz o assujeitamento
______ [ 112 ]
por meio do recurso ao já-dito. Portanto, o dizer do sujeito, e no caso em
estudo, o sujeito/redator é “invadido/atravessado” por outros dizeres. No
entanto, esses outros dizeres se encontram apagados/esquecidos para e/ou pelo
sujeito (eis aí a ilusão publicitária de um estágio pré-discursivo). Para Pêcheux
e Fuchs (1993, p. 169), todo enunciado, para ser dotado de “sentido”, precisa
necessariamente pertencer a uma FD, e é “este fato [...] que se acha recalcado
para o (ou pelo?) sujeito e recoberto para este último, pela ilusão de estar na
fonte do sentido, sob a forma da retomada pelo sujeito de um sentido universal
preexistente”.
Ao recusar a forma-sujeito do idealismo, Pêcheux (2009) defende que
o sentido se estabelece em relações de substituição e paráfrase e que isso pode
ocorrer por equivalência ou por implicação. Pêcheux (2009, p. 151) afirma
que

essa possibilidade de substituição pode tomar duas formas fundamentais:


a da equivalência – ou possibilidade de substituição simétrica –, tal que dois
elementos substituíveis A e B “possuam o mesmo sentido” na formação
discursiva considerada, e a da implicação – ou possibilidade de substituição
orientada –, tal que a relação de substituição A ► B não seja a mesma que a
relação de substituição B ► A. (itálicos do autor).

Uma substituição por equivalência, em um discurso dado, pode ser


vista como em “o jantar estava delicioso” sendo trocado por “o jantar estava gostoso”.
Observa-se que os termos delicioso e gostoso são equivalentes em relação ao
sabor e ao prazer proporcionado pela refeição, haja vista que os efeitos de
sentido desses termos são sustentados por uma mesma FD sinonimizadora.
Porém, em relação à substituição por implicação, seria necessário
o encadeamento por meio de transversalidade, isto é, seria necessário o
aparecimento de um discurso-transverso. Segundo Pêcheux (2009, p. 154):

o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si


os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído,
que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui
como ‘sujeito falante’, com a formação discursiva que o assujeita. (itálicos
do autor).

Pode-se dizer que um discurso-transverso aparece quando uma


sequência Y atravessa perpendicularmente uma sequência X. Observe-se o
exemplo de Pêcheux (2009, p. 152-153), dado como no contexto de uma
sequência do tipo “constatamos a/b”: passagem de uma corrente elétrica/deflexão
do galvanômetro. Esta sequência, Y, que atravessa os substituíveis da sequência

______ [ 113 ]
X, determina que a relação de implicação seja feita de uma forma ou de outra,
alterando-se o modo de encadeamento, pode ser: “A passagem de uma corrente
elétrica determina a deflexão do galvanômetro” ou “A deflexão do galvanômetro
indica a passagem de uma corrente elétrica”. Esse atravessamento indica que a
sequência Y é o discurso-transverso da sequência X, pois determina o modelo
de encadeamento entre os substituíveis a/b da sequência X.
Nesse viés, o sentido, definido pelo processo discursivo que lhe cabe,
ocorre em termos de efeitos de sentido que se reproduzem a partir de relações
de substituição e de paráfrase de palavras e/ou expressões de uma mesma FD.
Para Pêcheux (2009, p. 146), é “a ideologia que fornece as evidências pelas
quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, um patrão, uma
fábrica, uma greve, etc.”. A ideologia simula a transparência da linguagem;
portanto, o caráter material do sentido de um enunciado é dependente do
interdiscurso:

o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência


do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do
interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade
material essa que reside no fato de que ‘algo fala’ (ça parle) sempre ‘antes, em
outro lugar e independentemente’ (PÊCHEUX, 2009, p. 149).

Pêcheux (2009) define, então, o interdiscurso como aquilo que


“fala sempre antes, em outro lugar e independentemente”. Nesta perspectiva,
compreendendo a (re)produção dos processos discursivos à luz da teoria
materialista do discurso, procurar-se-á mostrar, a partir de um caso pontual,
como se dá o processo discursivo de enunciados publicitários, para buscar
demonstrar que aquilo que se chama de criatividade publicitária é, antes de
tudo, ao menos neste caso, um processo criativo não-subjetivo atravessado
por vários outros dizeres.

EFEITO MÜNCHHAUSEN E POLIFONIA

A tese “a Ideologia interpela os indivíduos em sujeitos” designa, de


forma retroativa, que o sujeito é sempre-já-sujeito, ou seja, o não-sujeito, isto
é, o indivíduo é interpelado-constituído em sujeito pela ideologia. Sob essa
luz, o apagamento do fato de que o sujeito é resultante de um apagamento
necessário no seu próprio interior, fazendo-o se ver como “causa de si”, é
chamado por Pêcheux de “Efeito Münchhausen”, efeito pelo qual se consegue,
______ [ 114 ]
de modo fantástico, ser criador de si.
Dada a observação de que o sujeito não é criador de si mesmo, Pêcheux
(2009, p. 198) mostra que a interpelação do indivíduo em sujeito supõe um
desdobramento constitutivo do sujeito do discurso. Esse desdobramento faz
aparecer dois termos: um “representa o ‘locutor’, ou aquele a que se habituou
chamar o ‘sujeito da enunciação’, na medida em que lhe é ‘atribuído o encargo
pelos conteúdos colocados’”; outro “representa ‘o chamado sujeito universal’,
sujeito da ciência ou do que se pretende como tal”. Para o autor (2009), esse
desdobramento pode assumir diferentes modalidades. Dentre elas, destacam-
se a modalidade do bom sujeito, superposição entre o sujeito da enunciação
e o sujeito universal, de modo que a tomada de posição do sujeito realiza seu
assujeitamento; e a modalidade do mau sujeito, em que o sujeito da enunciação
“se volta” contra o sujeito universal por meio de uma “tomada de posição”
que consiste em uma separação (PÊCHEUX, 2009, p. 199).
Deve-se notar, porém, que o interdiscurso, em relação a estas
modalidades, “continua a determinar a identificação ou a contraidentificação do sujeito
com uma formação discursiva, na qual a evidência do sentido lhe é fornecida, para que ele se
ligue a ela ou que a rejeite” (PÊCHEUX, 2009, p. 200 - itálicos do autor). Pode-se
perceber que, mesmo quando o sujeito se contraidentifica com uma FD dada,
ele ainda continua assujeitado. Ou seja, mesmo negando e se posicionando
contra o sujeito universal o sujeito do discurso não se torna menos assujeitado,
dado que assume outro posicionamento existente.
A essa luz, nas análises do estudo, acredita-se ser pertinente detalhar o
desdobramento do sujeito da enunciação dos anúncios que serão analisados,
pois o locutor, isto é, o sujeito da enunciação, conforme Ducrot (1987), não
é o ser a quem se deve imputar a responsabilidade do enunciado (eis aí algo
que se encontra apagado nos e pelos manuais de redação publicitária); esse
locutor é constituído por vozes de enunciadores (seres cujos pontos de vista
estão presentes na enunciação, mas que não são responsáveis pela ocorrência
de palavras precisas) e as perspectivas dos pontos de vista dos enunciadores
podem ser recuperadas por meio do interdiscurso, via pré-construído.
Nesse estudo, valendo-se da teoria polifônica da enunciação
desenvolvida por Ducrot (1987), procurar-se-á deslocar, minimamente a AD
para fora de seus domínios para dar conta do desdobramento constitutivo
do sujeito da enunciação, haja vista que, por se tratar de discurso, nem
sempre o sujeito da enunciação pode ser visto, embora o procure fazer, como
responsável pelos pontos de vista assumidos na discursividade do anúncio. Na
maioria dos casos, em se tratando de discurso publicitário, o sujeito do discurso
geralmente é um personagem e como personagem ele apenas representa; ele
______ [ 115 ]
não é um sujeito que acredita estar na origem do próprio discurso. Por isso,
acredita-se ser imprescindível recuperar, pelo desdobramento do sujeito da
enunciação, os pontos de vista que sustentam as tomadas de posição que
orientam o discurso.
Pêcheux (2009), trabalhando com o funcionamento das relativas
explicativas e determinativas, constituiu o pano de fundo de uma reflexão
filosófica, cuja intenção era abrir campos de questões por meio da relação
entre os objetos científicos da Linguística e os objetos científicos da Ciência
das Formações Sociais. Ou seja, o autor mostrou que a intervenção da
filosofia materialista na Linguística deveria levá-la para fora de seu domínio.
Desta forma, ao incorporar nesse estudo a teoria polifônica da enunciação,
está-se, em relação ao sujeito da enunciação que caracteriza o bom e o mau
sujeito, solicitando à AD que faça alguma parceria com algo de fora do
seu domínio. Acredita-se que o sujeito da enunciação (e neste caso, inclui-
se o redator publicitário) seja atravessado/constituído por vários pontos de
vista e por várias vozes sociais e é nesse sentido que esse estudo se vale da
teoria polifônica da enunciação. A polifonia será utilizada no estudo em uma
perspectiva discursiva. Portanto, ela será vista como um fenômeno social e
concreto ligado ao dizer dos sujeitos.
Ducrot (1987), ao também questionar o pressuposto de que o sujeito
da enunciação é único e de que cada enunciado só pode ser relacionado a uma
única voz, destaca a situação de polifonia (diferentemente da forma como o
fez Bakhtin que só empregava o termo nos estudos sobre literatura) em que
há dois tipos de personagens: locutores e enunciadores, sendo os primeiros
aqueles que são apresentados no enunciado como seus responsáveis; e os
segundos os seres cujas vozes estão presentes na enunciação, mas que não são
responsáveis pela ocorrência das palavras.
Segundo Ducrot (1987, p. 182), aos locutores se atribui a produção
dos enunciados. É importante compreender que, por definição, Ducrot
entende locutor como “um ser que é, no próprio sentido do enunciado,
apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve
imputar a responsabilidade deste enunciado”. Para o autor (1987, p. 187), há
dois locutores. Um, que é a ficção discursiva; e outro, que é o sujeito falante
(elemento da experiência). É, portanto, possível imputar a responsabilidade
do enunciado a diferentes autores. Porém, nos enunciados, não há apenas
locutores. Como já se mencionou, também existem os enunciadores. A noção
de enunciador apresenta uma segunda forma de polifonia. Os enunciadores
são seres cujas vozes estão presentes no enunciad, mas não são responsáveis
pela ocorrência de palavras, ou seja, não é atribuída aos enunciadores nenhuma
palavra:
______ [ 116 ]
Chamo ‘enunciadores’ estes seres que são considerados como se expressando
através da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam palavras precisas;
se eles ‘falam’ é somente no sentido em que a enunciação é vista como
expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido
material do termo, suas palavras. (1987, p. 192).

Tendo conhecimento acerca dos locutores e enunciadores, contempla-


se um dos pilares da obra de Ducrot sobre a teoria polifônica da enunciação.
Sobre a imbricação destes conceitos, Ducrot (1987, p. 193) ressalta: “o locutor,
responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a enunciadores de
quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes”. O enunciador é, portanto,
o ser cujo ponto de vista apresenta os acontecimentos aos locutores. Ducrot
(1987), fazendo uma analogia, afirma que o enunciador está para o locutor
assim como o autor está para a personagem. Desta maneira, tem-se como
locutor aquele ser que fala e, como enunciador, o ser que deve ser identificado,
na análise das vozes (dos pontos de vista), como a perspectiva que enuncia.
Assim, nas análises à frente, buscar-se-á observar os locutores e enunciadores
que se fazem presentes na elaboração do texto publicitário.

ANÁLISE DE PRÁTICAS DISCURSIVAS PUBLICITÁRIAS

Nas análises, serão investigados dois enunciados veiculados em peças


publicitárias televisivas do iogurte Activia:

I) “Muita gente não vai ao banheiro todos os dias e acha que é normal, mas
não é”;
II) “Você já sabe que Activia contém Dan Regularis que ajuda a regular o
trânsito intestinal, mas é preciso tomar regularmente”.

Nas análises, procurar-se-á observar a retomada de já-ditos e os


pontos de vista culturais (crenças e valores) que são (re)produzidos pelos
enunciados1 frente aos interlocutores, justamente para demonstrar e justificar
a tese de que a criatividade é um processo criativo não-subjetivo.
Desta forma, procura-se evidenciar que a criação destes enunciados
publicitários não depende da criatividade subjetiva de um sujeito/redator
frente a um problema de comunicação, mas que ela é determinada por
estruturas profundas, a saber: FDs, interdiscursos, coro de vozes, ou seja,

______ [ 117 ]
tudo que não é dito, mas é compreendido e que sustenta o caráter material
do sentido.
No enunciado (I), em nível de intradiscurso, observam-se três
enunciados. Os dois primeiros estão ligados pelo conectivo e com função
aditiva e o último é encabeçado pelo mas com função contrajuntiva. Tem-
se, assim: 1) Muita gente não vai ao banheiro todos os dias, que indica a existência
de pessoas que possuem problemas intestinais e que, por isso, não vão ao
banheiro todos os dias; 2) acha que é normal: neste enunciado, infere-se que
grande parcela das pessoas não sabe que a desregularidade intestinal é sinal
de problemas intestinais; 3) não é: este enunciado é encabeçado pelo mas,
produzindo um encadeamento que leva a uma conclusão contrassilogística,
em que se apresenta uma contraconclusão.
Ducrot (1987, p. 215) apresenta o mas como uma conjunção que
aparece em enunciados do tipo p mas q, sendo p um argumento para uma
conclusão r e q um argumento inverso, que orienta para uma conclusão não-r.
Para ele, os enunciados do tipo p mas q fazem intervir diferentes pontos de
vista de enunciadores. Segundo este autor (1987, p. 215),

Eles [enunciados do tipo p mas q] colocam em cena dois enunciadores


sucessivos, E1 e E2, que argumentam em sentido opostos, o locutor se
assimilando a E2, e assimilando seu alocutório a E1. Embora o locutor se
declare de acordo com o fato alegado por E1, ele se distancia, no entanto,
de E1.

Observam-se, então, dois enunciadores. E1: Muita gente não vai ao


banheiro todos os dias e acha que é normal e E2: não é. O locutor se assimila a
E2 e nega, neste caso em particular, E1. O enunciador E1 está amparado
no pré-construído de que se deve ir ao banheiro diariamente. O encadeamento
feito no enunciado conduz a uma conclusão não-r, na qual E2 se ampara para
afirmar que não se deve achar normal não ir ao banheiro diariamente. A perspectiva
de E2, que é a posição assumida pelo locutor e pode ser vista por meio do
uso contrajuntivo do operador argumentativo mas, orienta conclusivamente
contra E1, com o auxílio do pré-construído: não ir ao banheiro regularmente é sinal
de problema intestinal.
Em (I), como já dito, vê-se a negativa não é, encabeçada pelo mas, que
atua de forma opositiva. Esse fato denuncia uma transversalidade discursiva,
isto é: os enunciados anteriores ao mas levam a entender que há pessoas que
não vão ao banheiro todos os dias e que acham isso normal. Porém, a última
parte, sustentada pelo enunciador E2, permite afirmar que não é normal não ir ao
banheiro todos os dias. Assim, tem-se o aparecimento de um pré-construído que
______ [ 118 ]
é caracterizado por ativar a compreensão de um já-dito mais especializado,
que, neste caso, pode ser parafraseado pela explicativa: o intestino preguiçoso, que
não funciona regularmente, pode ser indício de problemas intestinais.
A transversalidade ativada por esse enunciado provém de um discurso
mais especializado (discurso científico) e que é, portanto, mais estabilizado e
pautado em uma voz de autoridade. Porém, o conhecimento estabilizado desse
pré-construído é trivializado pelo discurso da Danone, ou seja: o discurso da
empresa não é científico a rigor como pretenderia ser. Não é uma verdade
absoluta que o intestino das pessoas, para ter um funcionamento adequado
(regulado), deva funcionar todos os dias, como anuncia o enunciado.
Observa-se que o sujeito/redator (atendendo ao pedido de criação da
Danone) (re)produz o atravessamento e a generalização de efeitos de sentido
provenientes de uma FD ancorada no discurso científico que prega a não
regularidade do funcionamento intestinal como um indicador de problemas.
Isto é, o sujeito/redator desloca os efeitos de sentido dessa FD para dizer aos
interlocutores que é preciso ir ao banheiro diariamente.
Pode-se afirmar que o iogurte é anunciado como um alimento/
produto capaz de resolver problemas no funcionamento de intestinos lentos
e preguiçosos. Dito de outro modo: esse enunciado permite pressupor que,
para resolver problemas de mau funcionamento intestinal, basta consumir o
Activia. Essa pressuposição é sustentada não por uma mente genial e inventiva
de um redator publicitário, mas por uma série de posições discursivas que
denunciam um coro de vozes que já existiam antes do anúncio ser redigido.
O discurso publicitário do Activia, que fixa a não ida ao banheiro
como fator genérico para a existência ou aparecimento de transtornos
intestinais, não é, como tenta aparentar, um discurso publicitário articulado
sobre um discurso científico, pois o sujeito/redator, ao tentar dar um aspecto
científico aos dois primeiros enunciados de (I), na tentativa de fazer deles um
fato inquestionável e verificável como o discurso científico, apaga o aspecto
ideológico que ancora sua FD na rede do interdiscurso que a atravessa, para
dizer que a não ida ao banheiro diariamente é um sintoma de problemas
intestinais. Esse efeito de sustentação busca ser estabelecido no quadro de
crenças do sujeito, fazendo com que ele creia nessa “evidência” e acredite que
este efeito de sentido é do conhecimento de todos.
O sujeito/redator, ao dizer que não é normal não ir ao banheiro com
regularidade, ativa também um conhecimento especializado, pois não ir ao
banheiro com certa regularidade pode ser indício de algum problema no funcionamento
intestinal. Mas não é científico o dizer que é sustentado pelo pré-construído
que se deve ir ao banheiro diariamente. Essa afirmação nocional é utilizada para
______ [ 119 ]
atender aos interesses comerciais da Danone. Observa-se nesse deslizamento
do discurso publicitário do Activia a simulação de um discurso com aspecto
especializado e estabilizado. Esse deslizamento é possível, pois a língua
oferece lugar à interpretação. “A linguagem”, diz Orlandi (2001, p. 21),
“serve para comunicar e para não comunicar”. Orsatto (2009) aponta que é
justamente a não transparência da linguagem que impede ela [a linguagem] de
ser concebida com um puro instrumento de comunicação. Pode-se dizer que
a simulação científica (a não transparência da linguagem) do enunciado (I)
estabelece uma relação de proximidade entre o anúncio e os interlocutores.
O travestimento generalizador ativado pelo enunciado revela que
a peça publicitária reproduz (na solução do problema de comunicação da
Danone), nas relações interdiscursivas que constituem o anúncio, apenas os
já-ditos que podem sustentar a tomada de posição do bom sujeito em relação
aos cuidados com o corpo.
Em relação ao enunciado (II), por meio do dêitico exofórico você,
pode-se afirmar que o sujeito/redator (em nome da Danone) procura se
aproximar do consumidor do Activia, usando o termo para dar a sensação de
proximidade e pessoalidade entre empresa fabricante e interlocutor (possível
e/ou real consumidor), além de obter um efeito de generalização interlocutiva.
Ou seja, o enunciado é direcionado a todo interlocutor que o assiste.
O enunciado Você já sabe que Activia contém Dan Regularis reforça
a crença ou o imaginário corriqueiro que prega o corpo como o resultado
daquilo que se come. Santos (2006, p. 5) ressalta a importância de entender
que “a comida participa da construção do corpo não só do ponto de vista
da sua materialidade como também nos aspectos culturais e simbólicos”.
Para a autora (2006), a comida exerce, além da função biológica, uma função
social. Portanto, a comida, ou seja, a nutrição, ao mesmo tempo em que nutre,
também é responsável pela aparência social do corpo. As dietas milagrosas
que prometem a perda de muitos quilos em períodos curtos se tornam um
bom exemplo para ilustrar como a comida pode exercer tanto uma função
biológica quanto social.
Vê-se no caso do Activia que o sujeito/redator busca interpelar os
interlocutores do anúncio se valendo de afirmações/promessas que imbricam
o biológico e o social. A função biológica do Activia é relativa à nutrição do
organismo e à atuação fisiológica do bacilo Dan Regularis no trato intestinal.
Observe-se que a função social ativada é relativa ao fato de que, ao se alimentar
com o iogurte, segundo a proposta do enunciado, o consumidor regularizaria
o trânsito intestinal, fato que o ajudaria a diminuir, por exemplo, o diâmetro
da cintura, ocasionando um ajuste do corpo ao modelo corporal tido como
______ [ 120 ]
ideal que é o corpo magro. Observa-se por meio dessa asserção, no enunciado
(II), que não há nada que já não foi dito antes, em outro lugar e de forma
independente, fato incontestável de que a criatividade é um processo não-
subjetivo.
Ao analisar o discurso materializado no enunciado (II), podem-se
observar dois enunciadores que sustentam os efeitos de sentido ativados.
Vê-se a Danone, como o enunciador E2, sustentando, via conhecimento
nocional, o pré-construído de que as pessoas sabem que o Activia ajuda a regular
o trânsito intestinal, pois ele contém o Dan Regularis; e o enunciador do discurso
científico probiótico, EDCP, que ativa um conhecimento mais especializado e
estabilizado, responsável pelo ponto de vista que sustenta o pré-construído de
que o Dan Regularis, que é uma bactéria probiótica, ajuda a regular o trânsito intestinal.
Os pontos de vista atualizados pelos enunciadores, EDCP e E2,
via conhecimento nocional e conceptual, respectivamente, atuam para a
manutenção do discurso (re)produzido sobre as propriedades funcionais/
benéficas anunciadas do Activia e para a criação/reprodução de voz de
autoridade (discurso científico probiótico) frente à proposta de que, para um
bom funcionamento do intestino, deve-se consumir alimentos/produtos que
contenham bactérias que ajudam na regulação do trânsito intestinal.
Pode-se afirmar que esses enunciadores são os mesmos utilizados pelo
enunciado (I), para sustentar os efeitos de sentido que colocam o iogurte
como um alimento/produto capaz de regular o funcionamento de intestinos
lentos e preguiçosos.
O ponto de vista ativado pelo enunciador E2 pressupõe que as
pessoas, consumidoras ou não do Activia, possuem um conhecimento prévio
das propriedades funcionais/benéficas do iogurte. O enunciador EDCP se
marca como voz de autoridade; ele ativa conhecimentos científicos que foram
(ou estão sendo) assimilados por interlocutores não especializados. Observa-
se, por meio da atuação do enunciador EDCP, a articulação entre o discurso
científico (autorizado) e o discurso publicitário (reiteração trivial do discurso
científico). Vê-se que o discurso assumido na peça publicitária, ao mesmo
tempo em que simula certa cientificidade também incorpora, de forma trivial
e corriqueira, o discurso científico que fez intervir por meio do enunciador
EDCP.
Entretanto, no enunciado mas é preciso tomar regularmente, que é
encabeçado pelo conectivo mas, observa-se a introdução de uma informação
que é sustentada pela voz do enunciador E2, amparado pelo EDCP. Em (II),
observa-se o esquema do tipo p mas q, em que o mas levaria a uma conclusão
não-r. Antes do mas, é afirmado que as pessoas já sabem que o Activia
______ [ 121 ]
contém um bacilo que faz o intestino funcionar. O que não sabiam e foi
introduzido é que é preciso tomar o Activia diariamente para o trânsito intestinal
fluir regularmente. Assim, de acordo com a perspectiva de E2, vê-se a
advertência de que é preciso tomar o Activia regularmente, pois, de outra forma, não se
pode garantir a eficácia do produto.
Com essa advertência, o sujeito/redator (em nome da Danone)
procura antecipar que a responsabilidade pelo funcionamento ou não do
intestino, para aqueles que consomem o Activia, não é do produto, mas do
próprio consumidor. Ou seja, com essa advertência ativada pelo uso do mas,
buscam-se criar formas de isenção da culpa, caso o Activia não faça o intestino
funcionar da maneira como se apresenta no anúncio.
Segundo Silva (2003, p. 262), “Na ordem tecnocientífica empresarial,
o corpo é objeto de explorações comerciais, de diferentes manipulações
científicas e industriais e deve ser controlado diariamente para prolongar a
vida”. Sob a luz da citação, pode-se afirmar que o sujeito/redator procura
explorar os efeitos de sentido produzidos em relação ao corpo com o interesse
de aumentar as vendas do Activia.
Observa-se que o enunciado se vale do imaginário corriqueiro
que prega o corpo como o lugar do belo. Esse imaginário é amplamente
atravessado pela FD dominante da ordem tecnocientífica-empresarial que
filtra os efeitos de sentido que colocam o corpo como o lugar, em última
instância, do belo. Pode-se afirmar que, pelo filtro de leitura da FD dominante
que atravessa a FD que ancora o discurso do anúncio, o corpo, para se tornar
e/ou ficar belo, deve ser disciplinado e controlado fazendo crer que o corpo
não belo é resultado de indisciplina e relaxamento: pior para o “feio”.
A Danone, enquanto enunciador, ainda sustenta a voz que comporta
os efeitos de sentido que levam os interlocutores a inferir que quanto maior for
o consumo regular, maior (=melhor) será o funcionamento intestinal. Pode-se afirmar
que, com esse posicionamento enunciativo e discursivo, o sujeito/redator,
além de reforçar os interesses comerciais do produto, coloca-se na posição
de bom sujeito do discurso que prega o corpo como o lugar do belo, pois
essa voz que afirma/promete que quanto maior for o consumo do iogurte
maior será o benefício proporcionado por ele. Desta forma, vê-se que a peça
publicitária busca levar os interlocutores a entender que, com o consumo
regular do Activia, o intestino funcionará melhor e, por isso, poder-se-á ter
um corpo saudável e nutrido, sinônimo de corpo belo.
Ao considerar que um corpo saudável, para o discurso materializado
nos anúncios do Activia, representa/reproduz a tríade saúde, nutrição e beleza,
observa-se o sujeito/redator usa esta tríade para reforçar a crença que vem
______ [ 122 ]
sendo convencionada com as promessas feitas nos anúncios do Activia: isto
é, a afirmação/promessa que o iogurte faz o intestino funcionar.
Ainda sobre a questão da utilização do mas, pode-se dizer que ele atua
como um conectivo contrajuntivo e realiza um movimento adversativo em
relação à atitude relapsa dos consumidores. Assim, o enunciado (II) atua no
anúncio como forma de advertência, pois, segundo o discurso materializado
pelo sujeito/redator em nome da Danone, o iogurte só funcionará para quem
consumir regularmente. Esse movimento contrajuntivo do mas no enunciado
é denunciativo de que a Danone está incitando os interlocutores a investir no
cuidado de seus corpos, mas de uma forma específica e que lhe dá retorno
financeiro.
Pode-se ver que o discurso publicitário, ao anunciar o Activia, busca
interpelar os interlocutores no sentido de eles cuidarem de seus corpos
consumindo o produto. Para Souza (2004, p. 135), os discursos que buscam
impor um modelo corporal ideal formulam e reformulam que a beleza é
resultado de um trabalho do sujeito sobre seu corpo. Para a autora (2004),
esses discursos recomendam a atuação sobre a corporalidade de duas
maneiras: preventiva e regenerativa.
Pode-se apontar que o discurso em questão, no movimento
contrajuntivo, busca atuar de forma preventiva em relação aos cuidados com
o corpo. Neste sentido, a advertência feita pelo enunciado mas é preciso tomar
regularmente procura apagar os interesses comerciais da Danone frente à
injunção de os interlocutores a consumirem o iogurte com regularidade.
Desta forma, o sujeito/redator, ao indicar de modo velado no discurso
a forma de prevenção para os interlocutores ficarem ou permanecerem belos,
acaba por reforçar o caráter material do sentido do discurso publicitário com
o atravessamento, via interdiscurso, de efeitos de sentido que pregam que
a beleza é resultado do trabalho do sujeito em relação aos cuidados com o
corpo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz da análise de dois enunciados de peças publicitárias do iogurte


Activia, procurou-se demonstrar que a criação publicitária pode e (em última
instância) é determinada por um processo criativo não-subjetivo, haja vista
que a sua (re)produção independe da criatividade subjetiva de um sujeito/
redator que seria a fonte e a origem do efeito de sentido contido no dizer (no
caso do estudo, dizer publicitário).
______ [ 123 ]
Como hipótese, lança-se a proposta de analisar a criatividade
publicitária, não mais a partir das funções da publicidade (como fazem alguns
manuais de redação publicitária), mas por meio do funcionamento das práticas
discursivas publicitárias e de suas superficialidades discursivas determinadas
por processos criativos não-subjetivos da ordem das estruturas profundas que
determinam o que pode e o que deve ser dito.
Ainda, por meio da análise, pretendeu-se mostrar (de forma pontual),
no caso dos dois enunciados do corpus, que, quando eles falam sobre
propriedades benéficas, principalmente no sentido de qualidade de vida,
revelam sua relação com a tríade saúde, nutrição e beleza e que, por isso, revelam
não poder ser fruto da intuitividade criativa de um sujeito/redator capaz de
propiciar o aparecimento espontâneo de algo que não existia e que a partir
de um dado momento passa a existir por sua vontade e capacidade inventiva.
A criatividade, no caso dos enunciados (I) e (II), reside na questão de
que o processo criativo na publicidade deve ser entendido como solução de
problemas de comunicação (mercadológicos) e não como uma capacidade
individual que dependeria da intuitividade ou da genialidade de um sujeito/
redator. Assim, o problema de comunicação mercadológico materializa-
se na afirmação/promessa de que o Activia faz o intestino funcionar. Vê-
se que a imagem que a Danone procura construir através da afirmação/
promessa (a solução do problema de comunicação desenvolvida pelo sujeito/
redator) procura atender aos interesses comerciais da empresa, haja vista que,
enquanto ela se coloca como uma empresa competente e capacitada frente
aos interlocutores, silencia o fato de que produz e comercializa o Activia
para atender à demanda existente para esse tipo de produto e não porque
ela estaria preocupada com a qualidade de vida das pessoas que possuem
problemas intestinais. Pode-se afirmar que a Danone, na tessitura publicitária,
sustenta a imagem de empresa capacitada, valendo-se do imaginário ancorado
e sustentado pela tríade saúde, nutrição e beleza.
Aponta-se (como provocação, ao menos) que a incompletude deste
trabalho deve servir como um direcionamento para futuras pesquisas que
buscarão ver e mostrar outras questões que denunciem, ao se tratar de
discurso e, quem sabe, de criatividade, que algo fala sempre “antes, em outro
lugar e independentemente” (PÊCHEUX, 2009, p. 149).

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NOTA

1) Aponta-se que estes enunciados são sustentados por uma FD que prega a afirmação/
promessa de que o Activia faz o intestino funcionar. Sob essa luz, pretende-se mostrar que os
enunciados, ao menos, reproduzem discursivamente os efeitos de sentido provindos da tríade
união formada entre os termos saúde, nutrição e beleza que permeia e entrelaça os discursos
sobre o corpo e que gera motivações e condições propícias para sustentar o imaginário que
coloca o corpo como um objeto a ser moldado e transformado por técnicas de embelezamento.
Entende-se que essa tríplice aliança apaga as fronteiras existentes entre a saúde, a nutrição e a
beleza, haja vista que, hoje, um corpo saudável é sinônimo de corpo belo e nutrido, da mesma
forma que um corpo belo é sinal de saúde e de nutrição, sem esquecer que um corpo bem
nutrido sustenta um corpo saudável e belo.

______ [ 126 ]
CAPÍTULO 7

A AVALIAÇÃO
DA EDUCAÇÃO
SUPERIOR:
EFEITOS DE SENTIDO E
POLISSEMIA

Nelci Janete dos Santos Nardelli


Ao considerar a perspectiva de que os sentidos são regulados socialmente, por
mais que os discursos e as ações possam parecer os mesmos, eles produzem
efeitos distintos, conforme o lugar ou a posição que o sujeito ocupa, pois o
sentido não se depreende apenas da materialidade discursiva, mas de uma
série de relações estabelecidas entre o enunciado, o enunciador e as condições
de produção que envolvem a enunciação.
Tratando-se de discursos que emergem de ambientes educacionais
(ou políticos), essa perspectiva não poderia ser diferente, pois, como a
própria sociedade, esses ambientes não são constituídos por indivíduos
livres e únicos, já que eles devem aderir a uma ou outra posição que existe,
independentemente deles ou de suas vontades. E elas demarcam seu espaço e
determinam como devem agir e se portar diante de uma determinada situação,
fator que, no máximo, permite que a liberdade do indivíduo seja a escolha de
em que posição ele prefere estar e, então, defender ou se submeter aos ideais
propostos.
A educação superior é gerida por instituições e é, portanto, parte
intrínseca de uma sociedade que, por se dividir em interesses antagônicos de
diferentes grupos sociais, os quais produzem discursos contraditórios, adota
a prática de sancionar normas que visam, em teoria, primar pelo princípio da
isonomia e da igualdade, normatizando suas práticas como forma de controle
e de orientação de suas ações, conforme se observa na concepção de Berger
(2004, p.105), o qual considera que as instituições sociais “moldam nossas
ações e até mesmo nossas expectativas [...] a sociedade dispõe de um número
quase infinito de meios de controle e coerção”; assim, o comportamento
acaba sendo determinado pela sociedade.
As divergências de opiniões sobre as determinações de mecanismos
legais são comuns no cotidiano das instituições, sobretudo, das instituições
públicas, das quais se cobra, de diferentes formas, a prestação de contas
de todos os seus atos. As ambiguidades detectadas na construção de uma
legislação são frequentes, sendo, portanto, passíveis de contestação que, em
______ [ 128 ]
geral, definem-se sob uma liminar ou por meio de discussões promovidas
por grupos organizados nos diferentes movimentos sociais, os quais evocam
a responsabilidade de alertar a população sobre as armadilhas que podem se
constituir a partir de um simples ato que, presume-se, visa a regulamentar as
ações de uma dada sociedade.
Com base no viés teórico da Análise do Discurso, pleiteado por
Michel Pêcheux (1975), busca-se analisar, neste estudo, a formação discursiva
do movimento dos docentes representado pelo Sindicato Nacional dos
Docentes das Instituições de Ensino Superior - ANDES sobre a avaliação do
ensino superior e que alicerça um discurso de resistência ao caráter coercitivo
de uma determinação legal que, segundo o movimento, fere o princípio
da autonomia didático-científico da universidade, garantido por meio da
Constituição Federal, e que poderia reduzir o alcance dessa autonomia.
O discurso elaborado pelo Grupo de Trabalho de Política
Educacional do ANDES tece algumas considerações e críticas acerca das
políticas educacionais do Governo Federal, no que diz respeito à avaliação da
educação superior, pois considera a avaliação proposta pelo Sistema Nacional
de Avaliação da Educação Superior - SINAES1 - como contrária à concepção
de avaliação defendida pelo movimento. Intenta-se refletir sobre os efeitos
de sentido suscitados pelo discurso analisado, com vistas a compreender o
seu funcionamento a partir de sua materialidade, por meio da observação
dos componentes linguísticos escolhidos para a sua composição, buscando
perceber como tais recursos são fatores preponderantes para entender
quais são as crenças estabelecidas e compartilhadas entre os membros que
compõem o ANDES e que permitem constituir uma identidade própria a
partir da solidariedade dos indivíduos que partilham de seus conhecimentos
e seus ideais.
A temática da avaliação tem ocupado lugar de destaque no ambiente
acadêmico das últimas décadas, em que pese à necessidade de adotar critérios
que determinem o quê e como avaliar, com o intuito de não cair no simplismo
de conceituar a avaliação como um processo de busca da ‘qualidade total’,
mas sim com o propósito de abarcar toda a gama de desafios e complexidade
inerentes a uma instituição de educação superior, em especial, a universidade
que, de acordo com Chauí é

uma instituição social e como tal exprime de maneira determinada a estrutura


e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é assim que
vemos no interior da instituição universitária a presença de opiniões, atitudes
e projetos conflitantes que exprimem divisões e contradições da sociedade
como um todo. (CHAUÍ, 2003 [sp]).

______ [ 129 ]
Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional - LDB, fica acentuada a importância da temática, pois “consagra
o princípio da avaliação como parte central” (DEMO, 1997, p. 31) para
definir as diretrizes da organização do sistema educacional brasileiro, com o
propósito de determinar os procedimentos iniciais a serem adotados.
Ao eleger a perspectiva teórica da AD para sustentar as reflexões
acerca de um corpus definido, tem-se uma metodologia própria para engendrar
um trabalho científico e, dentre as teses que fundamentam a AD, no tocante
à compreensão dos efeitos de sentido do discurso, uma se refere a estar
atento à polissemia, que pode levar o leitor a interpretações distintas, o que
implica na necessidade de delimitar as possibilidades com procedimentos que
possam nortear a compreensão de um enunciado e minimizar as inevitáveis
ambiguidades que insistem em ocorrer no jogo das palavras.
Deve-se ter claro que os sujeitos, assim como os sentidos, constituem-
se no discurso, já que o seu “caráter dialógico constitutivo de seu sentido,
isto é, que o sentido de uma formação discursiva depende da relação que ela
estabelece com as formações discursivas no interior do espaço interdiscursivo”
(MUSSALIM & BENTES, 2001, p. 131).
Para Orlandi (2001, p. 36), a polissemia é o elemento responsável pelo
funcionamento do discurso, por meio de sua articulação com a língua, sendo
ela que propicia o rompimento dos limites estabelecidos pelas fronteiras entre
uma e outra formação discursiva e, assim, permite a pluralidade de efeitos, ao
contrário da paráfrase, que visa a fechar esses limites:

A paráfrase representa [...] o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-


se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado [...] na polissemia, o
que temos é o deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga
com o equívoco.

E é na confluência desses dois elementos que, segundo a autora,


surge a tensão constitutiva do discurso, provocando a movimentação entre
os sujeitos e as possibilidades de sentidos, o que possibilita a transformação
e caracteriza a incompletude de linguagem. Cabe ao analista, portanto,
compreender como a interrelação entre o ingrediente político e o linguístico
contribui para a constituição do sujeito e a formulação de sentidos que ora se
cristalizam e ora se apagam no jogo polissêmico.
Percebe-se, portanto, que a insistência de tentar, às vezes, significar
as palavras a partir de sua raiz etimológica está voltada para a tentativa de
aproximação do interlocutor das muitas facetas que um único termo pode
carregar, permitindo-lhe deslocar esse percurso para o contexto sócio-
______ [ 130 ]
histórico-ideológico por meio das condições de produção que fundamentam
o corpus de análise. Assim, etimologicamente, o vocábulo ‘avaliação’ derivaria
do verbo “avaliar” que, de acordo com os dicionários consultados, significaria:
“atribuir valor; mérito apreciar, estimar, aferir, aquilatar e, ainda, fazer ideia;
reconhecer a grandeza, a intensidade e a força; fazer a apreciação; ajuizar”.
Estes são conceitos distintos que apontam para diferentes possibilidades de
interpretação por parte do interlocutor de acordo com o lugar social em que
se inscreve e que determina sua formação discursiva.
De imediato, é possível distinguir dois efeitos de sentido: de um lado,
o aspecto objetivo, que identifica algo mensurável e aplica um valor a algum
objeto, como no caso de “aquilatar”, cujo verbo é destinado para a determinação
do quilate estimado, portanto, mais voltado para objetos palpáveis. Por outro
lado, como não poderia deixar de ser, o aspecto “subjetivo” de caráter social,
que efetivamente interessa para os fins de análise das práticas discursivas em
estudo e que possibilita definir a avaliação como mérito ou juízo de valor
sobre determinada atividade.
Atribuir um juízo de valor a algo requer que o avaliador desloque esse
conceito de sua origem filosófica para o universo a que ele pretende aplicar
a avaliação e, como frisa Chauí (2001, p.307), é importante diferenciá-lo dos
juízos de fato, que “são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por
que são [...]; diferentemente deles, os juízos de valor [...] são avaliações sobre
as coisas, pessoas, situações e são proferidos na moral, nas artes, na política,
na religião”. Portanto, eles têm como objetivo primeiro sedimentar as crenças
pré-estabelecidas do que uma sociedade compreende como bom e desejável,
ou seja: como as coisas devem ser, com base no que está dado como correto
ou incorreto2.
É importante, portanto, buscar amparo em intelectuais que
contribuíram com a construção e disseminação de conceitos de avaliação
no âmbito educacional, pois seus trabalhos transcendem o discurso e se
transformam em propostas concretas que, por vezes, são incorporadas
às legislações vigentes. Assim, conforme afirma Sobrinho (1999, p. 149),
as avaliações “têm inegavelmente um papel transformador e passam
necessariamente pela formulação de juízo de valor”, portanto, o próprio
processo avaliativo poderia pressupor as mudanças necessárias no que já está
cristalizado na sociedade.
De acordo com Barreyro & Rothen (2006, p. 957), as concepções que
permeiam a avaliação da educação superior

______ [ 131 ]
podem se sintetizar em duas vertentes: as que permitem identificar a
avaliação como controle, respondendo a uma lógica burocrática formal de
validade legal de diplomas e habilitações profissionais em âmbito nacional,
e as com função formativa/emancipatória, sob uma lógica acadêmica, com o
intuito de subsidiar a melhoria das instituições.

Em face desta dicotomia, busca-se verificar o que se diz nos textos


que tratam da temática, em que diferentes autores, de áreas distintas do
conhecimento, porém voltados para o aprofundamento de questões inerentes
às políticas para a educação superior, podem contribuir e esclarecer o viés
sobre qual o processo avaliativo vigente estaria voltado e quais as alternativas
que os agentes envolvidos teriam para construir uma cultura avaliativa que,
de acordo com eles, visaria, de fato, à melhoria da educação em todos os
aspectos.
Na concepção dialética de educação defendida por Gadotti (1983, p.
150), o desenvolvimento humano se daria “pela interação de determinantes
internos e externos”. Ele, portanto, parte do princípio de que, para educar,
é imprescindível oportunizar o diálogo e, com isso, conquistar uma nova
concepção de educação: a educação emancipatória. Neste viés, poder-se-ia
deslocar essa concepção dialética de educação para o processo de avaliação,
já que o mesmo é constituinte do campo educativo, cujo espaço é concebido
como um lugar de contradições e conflitos, o que levaria a compreender
que a avaliação emancipatória é aquela que se constitui num processo de
reciprocidade.
Conforme postulado por Freire (1979, p. 77), promover o diálogo
é respeitar “a essência da educação como prática da liberdade” e, embora o
foco de análise desses autores esteja mais voltado para o processo de ensino-
aprendizagem, em que pese o conceito de avaliação voltado para a relação
professor/aluno, observa-se que essa definição pode ser aplicada também
às Instituições Educacionais, haja vista o interesse por parte dos defensores
desse método avaliativo de privilegiar o lado formativo e transformador
que a avaliação pode propiciar, também no que diz respeito a questões
administrativas e gerenciais.
Voltando aos pensadores que lidam com a temática da educação
superior, os quais subsidiam esta investigação, destacam-se algumas posições
com as dos que compreendem a cultura da avaliação como “um conjunto
de valores acadêmicos, atitudes e formas coletivas de conduta que tornem
o ato avaliativo parte integrante do exercício diuturno de nossas funções”
(RISTOFF, 1999, p. 60).
Em uma das suas reflexões sobre a Universidade, Ristoff (1999,
p. 38) retoma a história da avaliação da educação, atribuindo a Sócrates o
papel de primeiro avaliador da academia. Dele, depreender-se-ia um processo
______ [ 132 ]
de compreensão da característica multifacetada da avaliação a partir das
afirmações de que “avaliar pode ser perigoso, tanto para quem avalia quanto
para quem é avaliado”, já que, inerentemente ao processo, culturalmente,
estabeleceu-se uma relação de dominação.
Neste viés, Ristoff (1999, p. 38) afirma: “avaliar a universidade é firmar
valores a partir de parâmetros pré-estabelecidos [...] uma forma de pregação
de um modelo subjacente de universidade que prezamos”. Daí, surgem
manifestações contrárias e apelos à resistência de aderir a qualquer forma de
controle imposta pelo Estado, sendo que a principal crítica está voltada para
a prática de adotar parâmetros de comparabilidade, pois há que se valorizar
o respeito às especificidades e à identidade institucional, minimizando, assim,
a possibilidade de interferência ou de juízo de valor a partir de comparações
entre instituições distintas.

É preciso renunciar ao hábito, ainda demasiado corrente, de avaliar uma


instituição, uma prática, uma máxima social ou moral, como se fossem
boas ou más entre si e por si, para todos os tipos sociais indistintamente [...]
Dado que o ponto de referência que permite avaliar o estado de saúde ou
de doença varia com as espécies, pode variar também para uma só e única
espécie, se esta se modificar (DURKHEIM, 2001, p. 75)3

Na tentativa de superação de um modelo limitado ao controle e


regulação, Dias Sobrinho (2000, p. 104) enfatiza o interesse e a importância de
conceber a avaliação como um processo salutar e imprescindível para quem
almeja um crescimento qualitativo no que tange às políticas educacionais. Para
ele,

a avaliação deve ser permanente e instalar-se como cultura, como ação


organizada e programática que pense constantemente e de modo integrado
a universidade e contribua para o cumprimento mais eficaz e com maior
qualidade de suas funções e de seus compromissos fundamentais.

Pautado no discurso que preza pelo caráter formativo que os processos


avaliativos deveriam proporcionar, percebe-se que a linha de interesse entre
os estudiosos das políticas avaliativas voltadas para educação superior
se concentra na luta contra a reação e rejeição arraigadas nas instituições,
colocando a avaliação como uma ferramenta que deveria se tornar uma
atividade permanente e abrangendo todas as esferas, com o objetivo de prática
de reflexão do que se quer enquanto instituição educacional, bem como para
o estabelecimento de caminhos que precisam ser percorridos para atingir os
objetivos propostos. Neste sentido,
______ [ 133 ]
um processo avaliativo dotado de qualidade formal e política alimenta-se
de todas as chances possíveis, também para cultivar todas as transparências
possíveis, como avaliação de dentro e de fora, feita pelos alunos e pela
comunidade, olhada de cima e de baixo, inter e extrapares, e assim por diante
[itálico do autor] (DEMO, 1997, p. 35)

Todas essas reflexões estão voltadas para o caráter definido como


formativo e emancipatório, porém, como é de se esperar, num ambiente em
que os confrontos de ideias são intrínsecos à existência, as convicções que
respaldam o discurso dos contrários ao processo avaliativo imposto pelo
governo versam sobre o fato de que a avaliação seria concebida como mero
instrumento regulador, com o discurso e a prática divergindo na hora da
aplicação dos dispositivos legais impostos pelo Governo.
Deve-se frisar que, do ponto de vista dos teóricos citados, a avaliação
e a qualidade são processos indissociáveis, o que pressupõe que aquela seja um
instrumento fundamental para construir e consolidar projetos voltados para
uma educação de qualidade, como é explicitado na tessitura das legislações
consultadas:

qualidade histórica é sempre um complexo de condições objetivas e


subjetivas, uma oportunidade humana que desabrocha conforme o nível da
competência humana implicada. Torna-se simplesmente impraticável cultivar
esse tipo de qualidade sem avaliação permanente, tanto como diagnóstico
para estarmos sempre a par dos problemas quanto como prognóstico para
deslindarmos caminhos futuros, sobretudo de renovação constante (DEMO,
1997, p. 36).

Frente à complexidade inerente às tentativas de atribuir uma


significação menos ambígua à avaliação, percebe-se que o fato de estar inserida
num campo, ao mesmo tempo, político e pedagógico, sendo, portanto, passível
de contestação, os confrontos e polêmicas que ocorrem e que acabam por
moldar uma forma de ver o mundo impedem o consenso acerca da temática
(consenso que, talvez, nem seja desejável ou possível), já que as instituições
educacionais podem ser consideradas como um espaço privilegiado do
debate, que gera concorrências entre os agentes. Com isso, o acontecimento
de embates político-ideológicos em que os sujeitos têm o direito de escolher
entre uma ou outra posição permite traçar uma nova possibilidade de percurso
ou seguir os mesmos passos, numa sucessão ininterrupta de acontecimentos,
como num círculo vicioso.
Neste contexto, há orisco concreto de os gestores se deixarem
embalar pelo modismo, pois, em alguns momentos, a tomada de decisão
______ [ 134 ]
terá que ser feita e, dentre as possibilidades de escolha, algumas instituições
optam por realizar a avaliação mais sob a pressão de seus mantenedores do
que para cumprir o papel social, o que se comprova com a metodologia de
avaliação que se restringe às coletas de dados e ao exaustivo preenchimento
de formulários que visam a qualificar a qualidade pretendida, culminando na
divulgação de rankings que predispõem as instituições a aderirem a um novo
perfil voltado à competição do mercado de trabalho, para ocuparem um lugar
de prestígio entre “as melhores4”, levando à “deterioração progressiva das
políticas sociais, que resultou da crise do Estado, fez com que ele passasse da
condição de produtor de bens e serviços para de comprador desses mesmos
bens e serviços do setor privado” (MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 172).
De acordo com Sobrinho (1999, p. 151), a exigência de racionalizar
e aplicar os recursos públicos com responsabilidade surge de todas as esferas
sociais, o que provoca uma crise conceitual nas instituições e, então, a
necessidade de implantar uma

avaliação que [...] corresponde mais à prestação de contas da gestão


universitária, da administração financeira, da eficiência da universidade em
apresentar os produtos requeridos, e a busca de comprovações da seriedade
institucional na utilização de recursos para a produção e o desenvolvimento
do capital intelectual, que passa a ser disputado como o mais importante
instrumento do desenvolvimento econômico.

Dessa prática, decorre a constituição de comissões e grupos de


trabalho para cumprir o protocolo instituído sob forma de lei e a adequação
aos prazos predeterminados, para evitar sanções que os instrumentos legais
possam aplicar. Esta prática é recorrente nas sociedades em que as instituições
de educação superior dependem de recursos financeiros externos para a
manutenção, o que cria um estado avaliador que, com o objetivo de regular
e controlar, tende a adotar políticas importadas que instigam o debate e a
polêmica, pois

A submissão da educação aos interesses imediatos do mercado é o principal


dispositivo dessa construção, podendo levar a universidade pública, no
país, a redefinições, de ordem objetiva e subjetiva, que se estendem desde
a privatização de interesses, propósitos e objetivos universitários, antes de
caráter público, definidos coletiva e socialmente, até a privatização da cultura
universitária acumulada na prática histórica do trabalho em conjunto dos
sujeitos universitários (MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 21).

Assim as recentes tentativas e implantação de um sistema de


avaliação bem como os estudos que respaldam a discussão têm marcas de
______ [ 135 ]
uma proposta embasada num modelo sócio-econômico neoliberal5, que
prima pela privatização e pela competição entre as instituições e que gera uma
diferenciação entre as universidades com distinção das demais instituições de
educação superior e outros níveis educacionais:

No que se refere ao financiamento da educação, podemos dizer que a política


para o setor nos anos FHC teve como pressuposto básico o postulado
de que os recursos existentes para a educação no Brasil são suficientes,
cabendo apenas otimizar a sua utilização, por meio de uma maior focagem
nos investimentos e uma maior ‘participação’ da sociedade. Dentro desta
lógica, aliás, em fina coerência com o pensamento neoliberal, prioriza-se, por
exemplo, o ensino fundamental em detrimento do ensino superior (PINTO,
2002, p. 17).

Este viés foi impulsionado pelos relatórios divulgados pelo Banco


Mundial, que se vale de um discurso que reafirma o valor econômico da
educação, sendo que “as universidades [...] não estariam promovendo a
equidade social”, argumento que respalda o discurso de que “os governos
devem restringir os gastos públicos com o ensino superior e aumentar os
investimentos na educação básica, a qual ofereceria maior taxa social de
retorno” (SOBRINHO, 1999, p. 153).
Seguindo este raciocínio, nota-se que as diretrizes seguidas pelo
Banco Mundial no que tange às reformas para o sistema educacional, partem
de uma análise estritamente econômica e priorizam a educação voltada para
o mercado:

no processo de ajuste às tendências prevalentes da economia mundial, muitos


países já procederam às reformas ditadas por tais organismos mundiais e
sintetizados no Consenso de Washington: equilíbrio orçamentário, redução
do déficit público e dos gastos nos setores sociais; abertura comercial;
liberalização financeira; a desregulamentação dos mercados domésticos;
privatização de empresas e serviços públicos de energia, telecomunicações,
saúde e educação (SGUISSARDI, 2000, p. 12).

Portanto, a avaliação do ponto de vista do Banco Mundial está


estritamente ligada ao viés quantitativo e serve como parâmetro para justificar
os cortes orçamentários, com base num critério de comparabilidade entre
sistemas completamente distintos. Eis, portanto, a necessidade de propiciar
o acontecimento de debates entre os membros da sociedade civil, com o
intuito de disseminar as informações e elaborar planos educacionais que
possam estreitar os laços entre o sistema educacional superior e a sociedade
organizada já que

______ [ 136 ]
as preocupações em localizar o Brasil no processo de universalização do
capitalismo, por meio de mudanças no complexo espaço social da educação
superior, surgem por meio de mudanças no complexo espaço social da
educação superior, surgem por meio de uma análise comparativa das
políticas para a educação superior na América Latina, como um instrumento
para legitimar a normatização em curso para esse nível de ensino (SILVA JR.,
In: MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 59-60).

Uma das características que denotam a tendência voltada para a


mercantilização do sistema educacional estaria inscrita no texto da própria
LDB, como um dos pontos negativos apontados pelos estudiosos, pois, para
eles, com

a destinação de recursos públicos para escolas particulares [...] dada a estrutura


privatista adotada pelo Estado brasileiro, agravada pela influência das ideias
neoliberais, esses recursos vêm sendo plenamente aplicados (CHAVES,
MEDEIROS & VASCONCELOS In: MANCEBO & FÁVERO, 2004, p.
218-219).

Neste sentido, cabe aos indivíduos inseridos no cenário da educação


superior escolher o viés de avaliação mais pertinente, dentro da ótica
universitária, para escrever os próximos episódios que as instituições deverão
seguir, buscando o lado profícuo, que visa à emancipação e à busca constante
pela melhoria e consolidação do que está dando certo e, consequentemente,
a superação de limitações, tendo como base uma avaliação diagnóstica, ou
encará-la como um instrumento cerceador, cuja utilidade é voltada para o
caráter punitivo e regulador e tem como objetivo final a prestação de contas
do aspecto quantitativo e a ratificação de uma política voltada para o mercado,
já que, ao atribuir ao Estado uma característica de ente avaliador, poder-se-ia
afirmar que

é no sistema de educação superior que se verifica o maior impacto, pois


a globalização privilegia o conhecimento e as competências advindas
da educação formal e de sua certificação continuada (MOROSINI, In:
MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 145).

Frente a esse argumento, não raramente emergem diferentes


discursos como reação às propostas apresentadas pela ala governista, sendo
que o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
dos Docentes (ANDES), por meio do Grupo de Trabalho voltado às
políticas educacionais, participa das discussões que precedem e transcendem

______ [ 137 ]
a publicação de regulamentações, com propostas que visam superar os
entraves diagnosticados por seus membros e, posteriormente à promulgação
da legislação, tecem críticas, apontando, em especial, pontos que destoam de
suas propostas, com base em defesas como as de Chauí (2001), que alerta para
os riscos dos processos de reforma do Estado, uma vez que

A Reforma encolhe o espaço público dos direitos e amplia o espaço privado


não só ali onde isso seria previsível – nas atividades ligadas à produção
econômica –, mas também onde não é admissível – no campo dos direitos
sociais conquistados [...] ao colocar a educação no campo de serviços, deixa
de considerá-la um direito dos cidadãos e passa a tratá-la como qualquer
outro serviço público, que pode ser terceirizado ou privatizado (CHAUÍ,
2001, p. 177).

De qualquer forma, a avaliação pode ser utilizada tanto para a


confirmação quanto para a negação de uma dada realidade; portanto, ela não
precisa ser concebida como a razão principal de ser de qualquer instituição ou
indivíduo, mas um recurso para delinear os caminhos que podem ser seguidos
e os que precisam ser evitados de acordo com o objetivo que se pretende
atingir.

A AVALIAÇÃO NA PERSPECTIVA DO ANDES

Buscar compreender as práticas discursivas que emergem dos grupos


impõe, antes, historicizar a posição desses sujeitos frente ao objeto de análise.
Neste caso, interessa entender como é concebida a avaliação da educação
superior no corpus de análise deste trabalho e identificar, nas propostas do
ANDES, que conceito de avaliação constitui a sua formação discursiva. Deve-
se ouvir as palavras de Schwartzman6 (1987, [S/P]), para quem

a história está cheia de exemplos de sistemas de dominação estabelecidos


que se vêm desafiados por novos grupos que trazem consigo ideias,
conhecimentos e interpretações do mundo, das coisas e dos homens que se
confrontam com aqueles do poder. Seria simplista, evidentemente, interpretar
estes movimentos somente como disputas por ideias, já que, junto a elas,
vêm geralmente todo um conjunto de atividades de tipo econômico, militar
e social que buscam sua legitimação.

De acordo com Saviani (1984, p. 77), por mais que se propague que
as instituições educacionais estão em crise, especialmente as universidades, o

______ [ 138 ]
que ocorre é um momento de dinamismo que perpassa essas esferas, sendo
que “o que está em crise não é a Universidade mas [...] um certo modelo de
Universidade [...] implantado a partir da Reforma de 1968”. A asserção do
autor ultrapassa duas décadas, mas a celeuma estabelecida sobre o modelo
de instituição educacional que se quer permanece, o que ratifica a ideia de
dinamismo, não como um processo momentâneo, mas como constituinte da
identidade dessas instituições, conforme se observa nas práticas discursivas.
Nos diversos discursos elaborados pelos docentes que compõem o
grupo de trabalho sobre as políticas para a educação superior, constata-se
que a temática acerca da avaliação, seja ela voltada para as instituições, seja ela
voltada às práticas docentes, coincide com o surgimento da associação. Na
primeira proposta apresentada para a constituição das políticas voltadas para
o corpo docente, estava definido que as atividades seriam avaliadas, tomando
como parâmetro as atribuições dadas pela tríade ensino/pesquisa/extensão.
Essas propostas são difundidas e discutidas ao longo da existência do
sindicado, por meio de seminários, encontros e congressos, como “Trabalho
Intelectual e Avaliação Acadêmica” (Curitiba/PR, 1986, Rio de Janeiro/RJ,
1987) e “Avaliação e Autonomia” (Londrina/PR, 1990), ambos realizados
pelo próprio movimento, que culminou na primeira versão da “Proposta do
ANDES/SN para a universidade brasileira”.
Desde sua primeira publicação, em 1986, as discussões promovidas,
principalmente, pelo Conselho Nacional de Associações Docentes –
CONAD, têm culminado na revisão e ampliação das propostas e diretrizes
a serem seguidas, sendo que a versão aprovada em 1996 o denominou de
Caderno ANDES N 2, aprovado no XXXII CONAD, ocorrido na cidade de
Guaratinguetá/SP, em julho de 1996.
A cada nova edição do documento, o sindicato tem procurado
ratificar os pressupostos defendidos para a educação superior, com uma
visível ampliação da abordagem acerca de sua concepção de avaliação, mais
precisamente, com o intuito de diferenciar seu posicionamento do que julga
ser o posicionamento do governo. Para ele,

Enquanto as propostas de avaliação de sucessivos governos têm-se


caracterizado pela lógica empresarial, visando à rentabilidade imediata do
investimento em educação e salientando a quantificação, o Movimento
Docente vem construindo uma concepção de avaliação que tem como foco
a qualidade do trabalho universitário, visando ao estabelecimento de um
padrão unitário de qualidade para o ensino, a pesquisa e a extensão que deve
ser cultural e cientificamente significativo e socialmente comprometido com
a maioria da população. [grifo nosso] (ANDES/SN, 2003, p. 85).

______ [ 139 ]
O discurso que predomina entre as entidades que se organizam
em prol de um ‘padrão unitário’ para a educação tem respaldo nas críticas
dos estudiosos de que a universidade estaria servindo aos interesses de uma
minoria, contrariando os princípios defendidos pela constituição brasileira e,
também, pelo movimento, com base na crença de que

a escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje
estão a cargo da família [...] a inteira função da educação e formação das
novas gerações, torna-se, ao invés de privada, pública, pois somente assim
pode ela envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas
(GADOTTI, 1983, p. 69).

Neste viés, o Movimento Docente insiste numa prática discursiva


em defesa da universidade como um ambiente que permite a ampliação dos
debates acerca dos rumos pretendidos para a educação superior, com isso,
contribuindo par a construção dos projetos elaborados a diversas mãos, o
que caracterizaria um processo democrático, sob o ponto de vista de seus
membros. Com base nesses pressupostos

as propostas sobre avaliação que vêm sendo formuladas em CONAD e


Congressos Nacionais buscam resgatar a universidade como espaço público
produtor e divulgador do saber, entendendo-se como um dos instrumentos
de construção da educação pública, gratuita, laica, democrática e de qualidade
e socialmente comprometida com a maioria da população (ANDES/SN,
2003, p. 86)

Face ao crescente debate acerca das imposições legais que levam


à adoção de métodos avaliativos que mensurem a qualidade da educação
superior, ampliaram-se, também, as propostas advindas do sindicato sobre
a forma com que o processo avaliativo deve ser concretizado no ambiente
universitário. A concepção geral é a de que

a avaliação não se dá em abstrato. Ela se estabelece em relação a um


modelo tomado como padrão de referência. O processo avaliativo conduz à
institucionalização do padrão de desempenho compatível com o padrão de
instituição almejado. Assim, a avaliação da universidade transforma-se em
mecanismo de implantação ou fortalecimento de um dado projeto de IES ou
de política educacional. (ANDES/SN, 2003, p. 86).

O caráter coercitivo empregado nos textos de lei são práticas comuns


nas legislações brasileiras, o que reforça a tese de que “situar-se na sociedade
significa situar-se em relação a muitas forças repressoras e coercitivas”

______ [ 140 ]
(BERGER, 2002, p. 90). Assim, a proposta do sindicato não segue a lógica
tecnoburocrática de imposição de um modelo a ser seguido, mas defende uma
avaliação que combine todas as dimensões que perpassam o processo avaliativo,
rechaçando qualquer proposta que redesenhe os moldes empregados por
governos neoliberais, em especial, os fatores que têm características apenas
quantitativas.
A compreensão que o movimento tem do processo de avaliação
interna das instituições é que o mesmo deve partir dos princípios referendados
pela constituição, independentemente de sua natureza (pública ou privada).
Ambas deveriam primar pela educação pública e democrática, devendo
englobar a participação de todos os agentes em prol da construção de um
projeto comum. No quesito de avaliação externa, o movimento propõe
diferenciação no ato avaliativo, uma vez que

A avaliação externa das IES tem concepções diferenciadas no que se


refere ao caráter público ou privado das instituições. Para as IES públicas,
o elemento preponderante, num processo de avaliação externa, é seu
compromisso com a sociedade que as mantém. Desse modo, prevê-se a
instalação, em cada estado, de conselhos sociais que, na sua composição,
representem os diferentes segmentos da sociedade na qual a instituição se
insere [...] Nas IES privadas, uma vez que todas são concessionárias de um
serviço público, a avaliação externa deverá ser concebida como um controle
sobre o exercício da concessão. Para tanto, o processo de avaliação externa
deverá ser coordenado pelo Ministério da Educação, tendo em vista os fins
da educação nacional (ANDES/SN, 2003, p. 88).

Neste contexto, a diferença básica estaria no fato de que, na esfera


pública, importa dar retorno à sociedade, sem a interferência direta do
Estado, e com ampla participação da sociedade organizada. Não se daria
abertura para a possibilidade de punição, premiação ou ranking, em face do
resultado obtido. O objetivo específico seria delinear os próximos passos
que cada instituição deveria compreender, enquanto que, na iniciativa
privada, efetivamente, estabelecer-se-ia um controle estatal que, segundo os
proponentes, garantiria o almejado “padrão unitário de qualidade” aplicado
ao serviço público. Nesses casos, pressupõe-se a existência, senão de algum
tipo de premiação, da possibilidade de punir, pois

É no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção,


que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética
se torna inevitável e a sua transgressão é um desvalor, jamais uma virtude
(FREIRE, 2000, p.112).

______ [ 141 ]
Com base em convicções como essas, o movimento ancora sua
luta pela construção de uma proposta de avaliação enquanto instrumento
de democracia, pautado na participação dos envolvidos no processo, o
que pressuporia um caráter emancipatório, que se daria a partir da análise
do trabalho concreto realizado por cada instituição, respeitadas suas
especificidades:

Qualquer processo de avaliação que se estabeleça será referenciado em um


modelo geral de universidade e em um projeto local específico. O que se
quer saber com a avaliação é se os objetivos previamente definidos estão
sendo, ou não, alcançados e quais são as causas dos sucessos e fracassos, para
que as correções dos insucessos possam ser feitas e, com isso, melhorada a
qualidade do fazer acadêmico (ANDES/SN, 2003, p.90).

Berger & Luckmann (2004, p.40) valem-se de uma proposição que


exemplifica as nuances em volta da dificuldade de definir um modelo para o
processo de avaliação da educação superior, pois, comparada às “comunidades
da vida em que se torna grande demais a discrepância entre a comunidade
esperada e realizada de sentido”, um dos caminhos para administrar os
conflitos inerentes à complexidade das instituições de educação superior
é a “relação dialética de perda de sentido e uma nova criação de sentido”,
ou seja: as instituições de educação superior carecem de movimentos que
resistam a uma dominação puramente burocrática e controladora, porém
com embasamentos e proposições alternativas que possam contribuir para a
construção de um novo cenário.
Note-se que o discurso adotado pelo movimento dos docentes
apresenta como traço recorrente a comparação entre duas concepções
distintas do que se quer com o processo de avaliação, enfatizando que, ao
adotar a visão proposta pela legislação, haverá um assujeitamento ao processo
regulatório e controlador que interessa mais aos investidores externos do que
aos cidadãos brasileiros e não condiz com o proposto pelo movimento, já que
o mesmo defende uma avaliação emancipatória.
Poder-se-ia dizer que esses discursos partem da hipótese de que
há outro modelo de avaliação, adequado aos agentes envolvidos. Mas, ao
considerar o processo sócio-histórico da civilização, nota-se que a educação,
assim como a humanidade em geral, varia com o tempo, com o lugar e com o
meio social, fator que inviabiliza uma tomada de decisão por meio de processos
de comparabilidade entre uma época e outra ou entre uma sociedade e outra:

O postulado tão contestável de uma educação ideal conduz a erro [...] se

______ [ 142 ]
se começa por indagar qual deva ser a educação ideal, abstração feita das
condições de tempo e lugar, é porque se admite, implicitamente, que os
sistemas educativos nada têm de real em si mesmos. Não se vê neles um
conjunto de atividades e de instituições, lentamente organizadas no tempo,
solidárias as outras instituições sociais, que a educação exprime ou reflete,
instituições essas, por consequência, que não podem ser mudadas à vontade,
mas só com a estrutura mesma da sociedade (DURKHEIM 1967, p.36).

O paradigma que sustenta o discurso do MD, no que tange à concepção


de avaliação, está pautado na avaliação que promova a emancipação; ela
se garantiria por meio da tomada de decisão democrática (entenda-se por
“democracia” propiciar a participação de todos os agentes envolvidos,
seja nas assembleias, nos congressos ou nos conselhos constituídos com
representantes de diferentes segmentos da sociedade civil organizada), o
que, de acordo com Vale (2002, p. 182), tem forte influência das ideias de
Paulo Freire, especialmente no que diz respeito o fato de que “o exercício do
diálogo parece ter sido indispensável para o estabelecimento das relações com
outros setores sociais [...], especificamente na relação do sindicalismo com o
Estado”, levando em conta que

A universalidade das instituições universitárias se explica, em parte pelo


menos, pelo fato de que elas desempenham papéis similares em todas as
sociedades, relacionados com a existência de instituições e pessoas dedicadas
à criação, manutenção e transmissão da cultura escrita e sistematizada.
Por esta razão, é possível, e na realidade indispensável, examinarmos os
problemas relativos ao ensino superior a partir de uma perspectiva histórica
e comparada (SCHWARTZMAN, 1987, [S/P]).

A partir dessa perspectiva é que interessa analisar que efeitos de sentido


atravessam o discurso do corpus de análise no que concerne ao processo
obrigatório de avaliação imposto por meio de um dispositivo legal e em que
medida o posicionamento do ANDES desestabiliza (ou não) a legitimidade
construída em torno da concepção de avaliação que está subjacente à
proposto do governo, pois a crítica a movimentos como o do sindicato é que
suas ações fundamentais ficam focadas na luta pela manutenção de interesses
corporativos, com uma

estranha peculiaridade de atuar exclusivamente na área das instituições


públicas, abandonando quase integralmente o setor privado, no qual sua
atuação seria certamente mais necessária na defesa das condições de trabalho
dos assalariados. O movimento se caracteriza pelo recurso constante às
greves como ‘instrumento de luta’ para a obtenção de aumentos salariais e
vantagens corporativas (DURHAM, [S/D], p. 39).

______ [ 143 ]
A autora é uma das estudiosas que desenvolve pesquisas sobre a
educação superior e atua no Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da
Universidade de São Paulo, sendo que parte de suas críticas está fundamentada
na crença de que o modelo democrático defendido pelo movimento sindical
é uma utopia, pois tudo deveria ser decidido em assembleias ou formação de
conselhos. Para ela,

há diversas formas possíveis de gestão democrática: direta, representativa,


presidencialista, parlamentarista. No mito, o ideal é o de uma democracia
direta, onde tudo se resolve em grandes assembleias. O mínimo aceitável
para as universidades é o de um sistema presidencialista, com eleição direta
para os cargos dirigentes e para os colegiados, com participação igualitária de
professores, alunos e funcionários (DURHAM, [S/D], p. 5)

A questão é que a partir do momento que se elabora um modelo


(ou proposta) de avaliação, inevitavelmente, ele está sujeito a regras e, assim,
há regulação, independentemente do viés político que foi adotado para sua
elaboração.

ANÁLISE DO CORPUS:
A LEGITIMIDADE DO SINAES SOB O OLHAR DO ANDES

Na perspectiva teórica adotada neste trabalho, enfatiza-se a


necessidade de articulação entre a língua e a história, processos indissociáveis
para aqueles que tencionam efetuar a análise de um determinado discurso.
Desta forma, não é possível priorizar um desses aspectos que constituem o
discurso, em detrimento do outro, pois,

se o jogo das restrições que definem a “língua”, a de Saussure e dos linguistas,


supõe que não se pode dizer tudo, o discurso, em outro nível, supõe, pois,
que, no interior de um idioma particular, para uma sociedade, para um lugar,
um momento definidos, só uma parte do dizível é acessível, que esse dizível
constitui um sistema e delimita uma identidade (MAINGUENEAU, 2007,
p. 16).

Para o autor (p. 16), “as unidades do discurso constituem [...] sistemas
significantes” e esses sistemas estão relacionados tanto com a “semiótica
textual” quanto “com a história”, sendo esta responsável por especificar os
efeitos de sentido que as unidades exprimem, fator que ressalta a característica
heterogênea do discurso.
Ao afirmar que a Formação Discursiva está associada a uma memória
discursiva, Maingueneau (1997, p. 115) explica que não se trata de uma memoria
______ [ 144 ]
psicológica, mas, antes, de uma memória que permite resgatar e articular
as relações entre o enunciado e a sua história, por meio da materialidade
discursiva. Assim, parte-se do pressuposto de que o interlocutor partilha
dos saberes que precedem a prática discursiva, sendo esse background que lhe
permite interpretar o enunciado em consonância ou proximamente ao que é
esperado por quem o elaborou.
Sob essa perspectiva teórica, a análise proposta está pautada na relação
entre a interdiscursividade e o ethos7 construído pelo ANDES ao se referir
ao SINAES, em que pese analisar, na materialidade deste discurso, o modo
como aquele sistema é representado nos diferentes instrumentos propostos
para a efetivação do processo avaliativo. Ou seja: busca-se perceber como os
semas8 refletem o posicionamento do ANDES diante do sistema e remetem
a uma memória discursiva que visa a corroborar as asserções efetuadas pelo
sindicato a partir da desacreditação do discurso do SINAES.
No percurso de análise, busca-se articular os referenciais que
constituem a disciplina da AD a conceitos extraídos de outras teorias,
como a da argumentação, por exemplo, teorias auxiliares, pelo fato de que,
acompanhando o raciocínio de Maingueneau (1997, p. 160), “são linguísticas,
porque liberam estratégias tão discretas e sutis quanto eficazes, porque
questionam o enunciador e o co-enunciador”.
Nesta perspectiva, a análise está voltada para a materialidade discursiva
do artigo As Políticas Educacionais do Governo Lula: O Sistema de Avaliação,
elaborado pelo Grupo de Trabalho de Política Educacional, publicado em
agosto de 2004, no Livreto do ANDES, que se constitui de diversos capítulos,
sob a temática “A Contra-Reforma da Educação Superior: Uma análise do
ANDES-SN das principais iniciativas do Governo Lula da Silva”. Este
discurso traz, ainda, uma breve contextualização das políticas da educação
superior que se ancoram no projeto denominado de Reforma Universitária,
elencando alguns pontos focais da Portaria que regulamenta a Lei do SINAES.
A análise aqui apresentada é do primeiro parágrafo do texto, ressaltando
que esses se constituem em temas e aspectos distintos que o processo de
avaliação do SINAES alcançaria. Persegue-se, com isso, a compreensão de
como se constrói o discurso polêmico e se, de fato, o discurso analisado pode
ser considerado de resistência, partindo do pressuposto da inexistência de
sentido para enunciados em si mesmos, pois eles estão submetidos a como e
a por que são expressos, dadas as formações discursivas e ideológicas que os
indivíduos ocupam.
Paralelamente à análise dos marcadores argumentativos e aos seus
efeitos de sentido, aplicou-se a relação do ethos com a formação discursiva
______ [ 145 ]
em que se inscreve o enunciador, objetivando chamar a atenção para as
marcas materiais que podem ser consideradas como traços definidores de um
ethos positivo, por meio do qual o ANDES se apresenta. Eis o trecho que será
analisado:

“Apesar das intenções expressas no art. 1 da portaria em relação


às finalidades do SINAES, percebe-se que o sistema de avaliação
irá credenciar o funcionamento das instituições: ‘o processo de
credenciamento e renovação de credenciamento de instituições, e
a autorização, o reconhecimento e a renovação do reconhecimento
de cursos de graduação’ (art. 32). Como, conforme o PROUNI, o
Estado irá selecionar as instituições privadas que farão jus a verbas
públicas, a questão do credenciamento assume um lugar proeminente
na ‘reforma’ da educação superior”.

O enunciador se vale do uso do operador argumentativo de concessão


apesar das para demonstrar a existência de uma contradição presente no
SINAES, ao afirmar explicitamente que ele irá credenciar as instituições, mas
negando que pretenda fazê-lo como uma de suas finalidades. Isto provoca
um contraste no enunciado e uma suposta contradição na lei, pois as intenções
expressas no art. 1 da portaria, que regulamenta como será feita a avaliação
proposta no SINAES, não foram citadas no discurso do ANDES; elas foram
apenas referenciadas e dadas como afirmadas.
Para ratificar o que afirma, o enunciador se vale de aspas para destacar
o artigo 32 do documento do SINAES, o que é uma estratégia para legitimar
seu discurso, buscando confirmar que o ANDES só denuncia uma manobra
na tessitura da lei, porque ela pode ser demonstrada. Trata-se da utilização
de argumento técnico que objetiva apresentar evidências que podem ser
comprovadas por dados factuais que são marcados por recursos linguísticos
que visam a ratificar a asserção posta no enunciado da lei.
Assim, caso o leitor não compartilhe do conhecimento que o
enunciador imagina que ele tenha a respeito das finalidades do SINAES, a
inserção do conectivo e das aspas conduzirá a uma evidencia que há uma
contradição no que o sistema estaria propondo. Se há, pois, afirmação de que
o SINAES será o responsável por “credenciar o funcionamento das instituições”9,
essa finalidade não ficou expressa, mas, ao contrário, induziu à compreensão
de que o sistema não teria o objetivo de “controlar” as instituições por meio
do credenciamento ou descredenciamento, o que poderia ser uma estratégia
na articulação da lei para induzir à crença de que os objetivos do sistema estão
voltados para o interesse da comunidade acadêmica (incluindo o Movimento
dos Docentes-MD), sendo, por isso, digno de crédito.
______ [ 146 ]
A utilização desse recurso estaria, pois, buscando demonstrar
o reconhecimento de que o instrumento instituído pelo SINAES teria na
essência uma intencionalidade que condiz com a FD do sindicato no tocante
ao que se espera do processo de avaliação. Observe-se:

O SINAES tem por finalidade a melhoria da qualidade da educação


superior, a orientação da expansão da sua oferta, o aumento permanente da
sua eficácia institucional e a efetividade acadêmica e social, e especialmente
a promoção do aprofundamento dos compromissos e responsabilidades
sociais das instituições de educação superior, por meio da valorização de
sua missão pública, da promoção dos valores democráticos, do respeito
à diferença e à diversidade, da afirmação da autonomia e da identidade
institucional [negritos nossos] (Portaria MEC n 2.051, de 09 de julho de
2004).

Estas afirmações parecem surgir da FD do ANDES, o que levaria a


pressupor que os discursos são oriundos de uma mesma Formação Ideológica
(FI), em que pese lutar não somente pela melhoria da qualidade da educação
superior, mas dar ênfase aos princípios democráticos que permitem o alcance
da autonomia e do respeito às especificidades institucionais, conforme
proposto e defendido pelo movimento. Logo, se há uma polêmica instaurada
sobre a promulgação da lei, pode-se afirmar que o discurso do SINAES não
tem a mesma significação na FD do ANDES, mesmo que, a partir da sua
semântica global, o discurso do ANDES diga as mesmas coisas e profira os
mesmos enunciados.
Assim, os efeitos de sentido distintos que os enunciados carregam,
dependendo da FD que os pronuncia, confirmam que “o sentido é um efeito
da substituibilidade das expressões, sendo que o conjunto delas produz (pode
produzir) um efeito de referência, ou seja, de identificar objetos do mundo
a partir de uma visão entre outras, que pode ser tudo, menos ‘objetiva’”
(POSSENTI, In: MUSSALIM & BENTES, 2005, p. 371-372).
No que tange à citação do art. 32, entre aspas, ela demonstra a
heterogeneidade dos discursos e, em se tratando de polêmica discursiva,
é possível detectar dois discursos no mesmo espaço discursivo, sendo a
polêmica revelada por meio da heterogeneidade mostrada, que acontece, quando o
autor se vale da citação explícita para demonstrar que o dizer não é seu, mas se
legitima por meio de outra voz que pode ser recuperável, caso o interlocutor
julgue necessário. Esta estratégia confere credibilidade ao discurso, criando,
neste caso, um simulacro do SINAES, detectável na superfície discursiva:
simulação que mostra o SINAES como tentando falsear seus reais objetivos.
Nesta perspectiva, a contradição apontada no SINAES implica uma
______ [ 147 ]
relação interdiscursiva entre posicionamentos distintos, caracterizada pela
interincompreensão, ou seja: a polêmica se estabelece na gênese, provocando uma
relação indissociável entre a memoria discursiva de um posicionamento que
se opõe ao seu Outro.
Na sequência do enunciado, há, novamente, o recurso às aspas
no vocábulo reforma. Neste caso, porém, elas foram inseridas sob outra
perspectiva. Conforme é postulado por Maingueneau (1997, p. 75), elas podem
ser tomadas como uma estratégia de o autor se distanciar criticamente de
seu dizer, gerando possibilidades críticas de sentido, que podem se constituir
a partir dessa pista. Nesta forma de heterogeneidade mostrada, o autor procura
articular, na construção do discurso, interpretações possíveis e esperadas,
sendo que as hipóteses levantadas pelo interlocutor são indicadas por meio
do interdiscurso, deixando marcas explícitas por meio de recursos formais.
Como frisa Maingueneau (1997, p. 90), “o valor semântico das aspas e o
interesse que representam para a AD estão ligados precisamente a este caráter
imprevisível bem como à sua relação com o implícito”.
No enunciado em análise, questiona-se o sentido pretendido pelo
governo de pretender reformar a educação superior (o termo é citado em
outros momentos no texto sem as aspas), colocando a “reforma” sob suspeita,
o que leva a pressupor que ela estaria centrada num foco, o credenciamento
de IES, desvirtuando o propósito avaliativo presente nas diferentes práticas
discursivas que a entendem como uma transformação do processo educacional
sob todos os aspectos e de maneira integrada. Assim,

O sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que disto não esteja
consciente, a realizar uma certa representação de seu leitor e, simetricamente,
oferecer a este último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição
de locutor que assume através destas aspas (MAINGUENEAU, 1997, p. 91).

Portanto, além de dar destaque ao termo usado no enunciado, as


aspas constroem uma forma de questionamento ou um tom de ironia sobre
a palavra em destaque, pretendendo que a resposta do interlocutor seja a
esperada pelo enunciador. No tocante ao suposto tom irônico em ‘reforma’,
deve-se ressaltar que, se o objetivo fosse o de reformar a educação superior,
no sentido amplo da Reforma Universitária, ao mostrar que o credenciamento
tem maior relevância no sistema proposto pelo governo e que os demais
aspectos poderiam ser negligenciados, o ANDES busca chamar a atenção
para o fato de que as finalidades do sistema não seriam alcançadas. Cabe frisar
que a origem da reforma, dentro deste contexto, deve-se à criação de um
instrumento para a avaliação fazer parte da Reforma da Educação Superior,
______ [ 148 ]
projeto que, de acordo com o ANDES, é uma forma de continuísmo dos
governos passados sob uma nova roupagem.
Maingueneau (1997, p. 77) chama de ironia o processo em que
o enunciado “faz ouvir uma voz diferente da do ‘locutor’, a voz de um
‘enunciador’ que expressa um ponto de vista insustentável. O ‘locutor’ assume
as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam”. Desta forma,
afirma-se que, por meio da heterogeneidade, o discurso vai se constituindo
por inúmeras vozes que são percebidas ou escolhidas de acordo com o
ocupado pelo sujeito do discurso e pela sua FD:

Se o discurso indireto institui o jogo na fronteira entre discurso citado e


discurso que cita, a ironia subverte a fronteira entre o que é assumido e o que não é
pelo locutor. Enquanto a negação pura e simplesmente rejeita um enunciado,
utilizando um operador explícito, a ironia possui a propriedade de poder
rejeitar, sem passar por um operador desta natureza [itálico do autor]
(MAINGUENEAU, 1997, p. 98).

Neste aspecto, o autor enfatiza que a ironia é um recurso eficaz, haja


vista o distanciamento provocado que transfere a responsabilidade pelo efeito
de sentido para o interlocutor. Assim, o enunciador abre um espaço dentro de
seu discurso para que seja preenchido pelo outro, contando com a conivência
dos interlocutores discursivos, pautado na crença de que compartilham de
um universo de valores. Portanto, o êxito no processo de interpretação ficaria
garantido, uma vez que o interlocutor possuiria competência discursiva para
interpretá-lo, ou seja: “o leitor encontra-se, pois, imerso em um interdiscurso,
certamente vago, mas situado” (MAINGUENEAU, 1997, p. 98).
A polêmica analisada sobre o debate do tema avaliação da educação
superior ratifica a postura adotada pelos estudiosos da AD, em que pese a
interdiscursividade evidenciada na materialidade do discurso, fator que
demonstra que os confrontos não só existem, mas também se repetem, o
que é identificável à medida que o ANDES se coloca como possuidor de
uma proposta que compreende o “verdadeiro” papel e a função essencial da
educação superior (em especial da universidade), pressupondo que o SINAES
não os tem e, por isso, não é digno de crédito e precisa ser desqualificado.
Desse modo, dever-se-ia perceber que, se, de um lado, o enunciador diz ter
uma proposta para o papel social e para as funções acadêmicas da universidade,
de outro, a base governista não o teria e a própria materialidade da lei poderia
comprovar essa tese. Portanto, “a polêmica é necessária porque, sem essa
relação com o Outro, sem essa falta que torna possível sua própria completude,
a identidade do discurso correria o risco de desfazer-se” (MAINGUENEAU,
2007, p. 118).

______ [ 149 ]
A desconstrução do ethos do outro é condição básica para que o
enunciador possa construir seu ethos positivo, pois, ao afirmar que apenas sua
proposta preza pelos direitos dos sujeitos, direitos esses que não só fazem
parte do imaginário social, mas, acima de tudo, estão exarados no principal
documento jurídico que rege o país, a credibilidade do SINAES é afetada por
se tratar de um instrumento legal.
Há, também, que se admitir a incompletude do SINAES (assim
como da própria linguagem). Portanto, toda reflexão, debate e confronto em
torno de sistemas avaliativos adotados numa dada época são salutares para o
desenvolvimento e superação dos limites. Ao questionar a metodologia e a
finalidade de tais sistemas, o enunciador provoca uma inquietude que tende a
estimular a autocrítica dos agentes envolvidos no processo, fator que propicia
a execução das tarefas de uma forma menos alienada. Como enfatiza Santos
(2006, p.8), “é preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com
os contextos em que são produzidos”, o que reforça a tese de que os sujeitos
são responsáveis pela forma de pensar e de agir dos grupos sociais, já que
isso se dá por meio de práticas compartilhadas social e culturalmente e pelas
crenças estabelecidas, alimentadas e constitutivas da sociedade em que estão
inseridos, mesmo que isso se dê de forma inconsciente.

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VALE, Ana Maria do. Diálogo e Conflito: a presença do pensamento de


Paulo Freire na formação do sindicalismo docente. São Paulo: Cortez, 2002.

NOTAS

1) Lei Federal nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Superior e dá outras providências.

2) Definições extraídas dos dicionários: BUENO, Silveira. Minidicionário da língua portuguesa


e FERREIRA, A. B. DE H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.

3) Durkheim (2001) faz uma analogia entre as regras não contestadas na biologia, no que tange
às diferentes espécies que merecem tratamento diferenciado, que podem e devem ser pensadas
também na sociologia, ou seja: o respeito às especificidades em todas as esferas sociais, que
passa despercebido na maioria das vezes.

4) Matéria da Revista Veja, de 1 de Outubro de 2008 (p. 148), publicou um guia para pais e
alunos quanto à escolha da melhor instituição, sob o ponto de vista dos índices aferidos nos
sistemas vigentes e, como parâmetro, a inserção da Harvard considerada no topo da pirâmide,
como primeira colocada em todos os rankings.

______ [ 153 ]
5) Segundo Chauí (2003, p. 401), neoliberalismo é uma teoria econômico-política, de 1947, em
oposição ao Estado de Bem-Estar Social e socialdemocrata que, dentre outras propostas, prima
pela competição entre os cidadãos com vistas ao progresso e a propagação de programas de
privatização, desresponsabilizando o Estado dos encargos advindos dos órgãos estatais.

6) Artigo apresentado no Seminário Internacional sobre Educação Superior, Criatividade e


Legitimação e Transformações dos Sistemas, disponível no site: http://www.schwartzman.org.
br/simon/permanen.htm

7) O conceito de ethos aqui utilizado é o defendido por Maingueneau (2006, p. 60),


compreendido como um processo interativo de influência sobre o outro. É uma noção
fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que
não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, ela própria integrada a
uma conjuntura sócio-histórica determinada.

8) De acordo com Maingueneau (2007, p. 49), o sistema de restrições semânticas é proposto


para definir “operadores de individuação”: os semas, então, funcionam como uma espécie
de filtro que vai estabelecer critérios para distinguir um “conjunto de textos possíveis como
pertencendo a uma FD determinada”.

9) Artigo 1 da Portaria que regulamenta o SINAES (portaria 2051/04).

______ [ 154 ]
CAPÍTULO 8

ZONA:
O ENTREMEIO COMO
LUGAR DE CONTRADIÇÃO

Mirielly Ferraça
Uma pesquisa científica1 que vise a discutir sexualidade, sexo e prostituição,
na maioria das vezes, causa certo estranhamento (curiosidade? espanto?). E
a pergunta que sempre ecoou nesse meio acadêmico foi a motivação para
tal estudo. Às vezes, não se escolhe o objeto a ser estudado; é ele, por vezes,
que escolhe. Mas nem sempre se sabe por quê. O fato é que a prostituição
sempre exerceu certo fascínio sobre mim, isso por conta do imaginário que
existe sobre a imagem da prostituta. Ir a um bordel, ainda que sob a desculpa
de fazer entrevistas, era conhecer um “mundo” de luxúria e prazer destinado
somente aos homens. Eis um espaço restrito, inacessível, apagado, silenciado
das reuniões de família e do convívio familiar. Não que se quer defender
ou realçar a imagem de “boa” moça, mas a prostituição parece mesmo ser
impedida de adentrar o âmbito familiar e se é falado sobre o assunto é sempre
com aquele tom de estigma, condenando a prática acima de qualquer coisa.
O imaginário coletivo acerca das casas de prostituição constrói um
cenário luxuoso, envolvente e fascinante. Era o que eu pensava antes de visitar
o Porto das Sereias2. Imaginava, a partir da memória discursiva, que as casas
noturnas transbordavam cenários decorados com tons de vermelho, muitas
luzes, muita alegria, pessoas animadas em todas as mesas e dançarinas no
palco convidando os clientes a participarem da festa. O que se encontrou foi
uma casa apagada, com luzes fracas, em meio a muita penumbra. De fato, é
uma casa grande e bonita, mas exibia em sua arquitetura uma estrutura bem
antiga, apagada pelo tempo. As entrevistas ocorreram pouco antes de a casa
começar a funcionar, mas, mesmo assim, não se via muita “vida” por ali.
Além do ambiente, outros sentidos antes não pensados adentraram
a pesquisa sem pedir licença e, quando dei por mim, estava observando um
universo que, claramente, desconhecia. Primeiro, porque imaginava colher
histórias diferentes, mas a Análise de Discurso mostrou se tratarem de ecos
que vêm de longe e que, ainda assim, reverberam até hoje. Saber que as
garotas de programa vendem sexo porque precisam de dinheiro e porque
devem sustentar os filhos é bem sabido, mas não se atentava para o fato de
______ [ 156 ]
que, no fio do discurso, elas queriam justificar as escolhas, redimir-se e passar
a imagem de “boa” moça, “organizando” um discurso contraditório que ora
reafirma, ora se desfaz. O que não se imaginava era que elas, as garotas de
programa, são divididas entre o “certo” e o “errado”, não estão somente
à margem, mas também não fazem parte da trama social plenamente. Elas
vivem no entremeio e, de repente, viver na zona é mais do que vender o corpo
por dinheiro; é estar no meio do caminho, entre um lugar e outro.
Não felicidade clandestina, mas sexo clandestino. Tal assunto, em
outras épocas, quem sabe não percorreria os bancos das universidades com
tanta facilidade, mas, se parece que avançamos, percebe-se que ainda há muito
a descobrir e muito a ser descortinado sobre o tema (dito e repetido) mais
antigo do mundo.

...
Histórias que se repetem. Memória que se perpetua. Retratadas de
inúmeras formas, por diversos escritores, em diferentes épocas, a Literatura e
o cinema não se cansam de trazer fortes personagens femininos que mostram
a difícil e estigmatizada vida de meretrizes. Literatura que conta, cinema que
mostra, vida real que imita e se deixa imitar. Tratar da “profissão mais antiga
do mundo” (frase dita e repetida pelo senso comum) é contar mais uma
das muitas histórias sobre as mulheres que vendem o corpo por dinheiro;
demasiadamente comum, se não existissem sentidos que se repetem, ditos
que ecoam pelos séculos.
Vende-se sexo no Porto das Sereias e também se doam histórias. Quatro
são as protagonistas desta pesquisa e a partir de seus enredos a análise é
tecida. Lembranças de amor, sofrimentos, sacrifícios, renúncias, justificativas
e, por vezes, alguns silenciamentos marcam a história dessas garotas. Embora
pareçam relatos singulares, vê-se que se trata, na verdade, de uma memória
(ins)(cons)tituída.
Distante do perímetro urbano, mas propositalmente bem localizado
para quem entra e sai da cidade e propositalmente bem localizado para quem
deseja sexo clandestino, localiza-se o Porto das Sereias. Como em vários lugares
e em diferentes épocas, as casas de prostituição precisaram esquivar-se do
movimentado centro-citadino e passaram a erguer seus quartos em bairros
afastados ou mesmo no espaço que compreende o entorno da cidade, como
contextualiza Roberts (1998, p. 94):
______ [ 157 ]
Inicialmente, as autoridades tentaram desencorajar a prostituição, recusando-
se a deixar as prostitutas trabalhar na cidade; as mulheres simplesmente
estabeleceram suas casas e bordéis à beira dos portões da cidade –
bastante próximos para os clientes urbanos que desejassem ‘saciar
sua sede’ sem ter de sair muito do seu caminho (Grifos meus).

Muda-se de lugar, mas não de hábitos. Precisando afastar-se das ruas


movimentadas pelas quais caminhavam senhoras, senhoritas e senhores tidos
como “respeitáveis” e pela necessária “limpeza” citadina, a venda do corpo não
deixa de existir: “tornou-se mais complicado a presença das prostitutas nestas
mesmas vias; principalmente a partir do momento em que os setores públicos
passaram a empenhar-se mais em realizar um maior esquadrinhamento
geográfico-social das ruas, para que ‘damas’ e ‘vagabundas’ não se misturassem”
(PEREIRA, 2004, p. 117). Ainda assim, as casas de prostituição se tornaram
peças constitutivas de qualquer lugar, sendo quase elementos constituintes
do espaço e da atmosfera urbana, mesmo que por vezes, paradoxalmente,
fora de seu espaço físico. Assim, fazem parte do imaginário citadino, mesmo
quando sua localização física encontra-se afastada: “Na geografia das cidades,
o bordel é tão indispensável quanto a igreja, o cemitério, a cadeia e a escola,
integrando-se à paisagem, ainda que significativamente localizado na fronteira
da cidade, quase seu exterior” (CHAUÍ, 1984, p. 80). As casas de prostituição
funcionavam, em outras épocas, com mais força e intensidade, como válvula
de escape da sociedade, pois, como disserta Richards (1993), a prostituição
foi um meio prático de permitir que os jovens rapazes se iniciassem e
reafirmassem sua masculinidade, que homens aliviassem suas necessidades
sexuais e que fosse possível evitar que elas se aproximassem das esposas e
filhas respeitadas, o que contribuía para a manutenção da instituição familiar.
Assim como outras boates que se ergueram fora dos muros citadinos,
o Porto das Sereias, que iniciou suas atividades em 1983, permanece até hoje
(2014) no mesmo endereço: às margens da cidade de Cascavel, no Paraná.
Investir no empreendimento na época, segundo um dos sócios, era receber
“retorno monetário mais rápido”. Percebe-se que dinheiro “fácil” não se
restringe, portanto, às garotas que vendem sexo, mas também a quem está
nos bastidores e se vale delas.
Mônica, Ana Paula, Carol e Duda são nomes fictícios que relatam
histórias “reais”3. Tal quais as sereias, seres híbridos de mulher e peixe,
caracterizadas pelo cantar sublime que fascina e envolve os navegantes, as
garotas que vendem sexo no Porto das Sereias também esperam e enlaçam os
marinheiros que ali desembarcam em busca de um Porto seguro e acalentador,
______ [ 158 ]
desejosos e carentes, à procura da satisfação de seus desejos. São navegantes
submetidos aos (en)cantos de mulheres divididas.
O que reverbera nas sequências colhidas é a contradição em que
vivem e as justificativas que apresentam para fugir do meio termo e buscarem
a inserção nos moldes sociais. O tempo todo elas procuram desculpar-se
por estarem na “vida”, justificando que foram “obrigadas”, direcionando a
“culpa” para o outro. Além disso, as saídas possíveis que elencam para a vida
que levam estão ligadas ao sonho de deixar o “limbo” e adentrar, de vez,
um lugar pleno, em que consigam ser sujeitos reconhecidos (sem o teor do
estigma) como pertencentes à trama social.
A imagem ambígua da sereia, escolhida para fazer referência ao nome
criado para a boate, relaciona-se à da mulher sedutora, em certa medida
tentadora, cujo diálogo com a figura da prostituta foi trabalhado por Moacyr
Scliar em seu romance “O ciclo das águas” (2010), de 1975. Nessa obra, a
personagem Esther é traficada da Polônia ao Brasil para servir nas casas de
prostituição, mas sai de seu lar enganada com um casamento de fachada. A
Pequena Sereia é a figura que acompanha a vida de Esther e está relacionada
ao florescimento de sua sexualidade: aos 13 anos, quando um capitão polonês
convida a garota para conhecer sua casa, senta-a sedutoramente em seus
joelhos e conta-lhe a história da Pequena Sereia, passando a mão em seu
corpo; após o casamento, quando é levada a Paris, onde perde a virgindade e
é iniciada nas artes sexuais, Esther encontra a segunda referência da pequena
sereia, uma estatueta em um abajur que carregará até os últimos dias de sua
vida, como uma espécie de amuleto; e por fim, na vida adulta a personagem
abre uma casa de prostituição chamada “Casa das Sereias”, relacionando a
figura mitológica da sereia não só a si mesma, mas também às garotas que
moram na boate.
Se a sereia é marcada pela contradição e pela divisão, Esther também é.
A personagem de “O ciclo das águas” (2010) é divida entre a cultura religiosa
judaica, com a qual cresceu e pela qual constituiu seu modo de ver a vida,
e a prostituição. Se, de um lado, Esther sabe que seu pai nunca a perdoará
por ter confrontado os ensinamentos religiosos do judaísmo, de outro, ela
também sabe que a venda de sexo lhe trouxe liberdade, uma forma de prover
os seus gastos e os de seu filho. Assim, tanto Esther (personagem literária)
como as entrevistadas (personagens reais) vivem no entrelugar, buscando
constantemente se encaixar onde não há encaixe. Se permanecerem sereias,
serão divididas. Mas as garotas do Porto das Sereias afirmam que desejam deixar
a prostituição e ocupar lugares reconhecidos pela moral social (como esposa,
enfermeira, policial). Desejam, como a Pequena Sereia, personagem do conto
______ [ 159 ]
de mesmo nome de Hans Christian Andersen, tornarem-se “humanas” por
completo, deixar a ambiguidade da vida que levam e adentrar o espaço social
sem o estigma de pertencer ao “submundo” (marinho).
Incompletude das sereias, de Esther, das garotas de programa.
Incompletude da linguagem: o que se quer com esta reflexão é justamente
discutir o que está à margem, o que não se encaixa, o ambíguo, aquilo que não
é nem uma coisa nem outra; o que está na zona, no entremeio, no não-lugar.
É analisar o que é a prostituição sob a ótica de quem a vivencia e também
buscar que efeitos de sentidos ecoam no implícito, o que está apagado.
Outras Esther virão e, sob o apagamento discursivo, dirão ser únicas; mas
se sabe que, assim como a água jorra em ciclo, a memória e o interdiscurso
existentes tendem a ecoar: continuamente. É o ciclo das águas, em que o
fim é o recomeço. Apesar de cada uma passar por situações diversas até se
tornarem garotas de programa, de possuírem ex-relações conjugais distintas,
de terem relações familiares diferentes, os laços de suas vidas se cruzam em
nós comuns, constituem os pontos de encontro de histórias que se repetem
sobre a venda do corpo.

CONTRADIÇÃO QUE IMPERA,


CONTRADIÇÃO QUE SE DESFAZ

A inquietação enquanto analista foi perceber como o discurso das


entrevistadas se constituía em uma linha de tensão tal que o contraditório,
como algo ilógico, imperava. Na ordem do consciente e da moral vigente,
que analista e entrevistadas compartilhavam(am), “estranhava-se” esse
lugar contraditório ocupado por elas, já que faziam parte da dinâmica social
enquanto mães, filhas, ex-esposas, mas adentravam o limbo da estigmatizada
venda de sexo. A garota de programa, então, parece ocupar o entremeio:

Mas nossos espaços nem sempre são marcados pela eternidade. Há também
espaços transitórios e problemáticos que recebem um tratamento muito
diferente. Assim, tudo o que está relacionado ao paradoxo, ao conflito
ou à contradição – como as regiões pobres ou de meretrício – fica num
espaço singular. Geralmente são regiões periféricas ou escondidas
por tapumes. Jamais são concebidas como espaços permanentes ou
estruturalmente complementares às áreas mais nobres da mesma cidade,
mas são sempre vistos como locais de transição: ‘zonas’, ‘brejos’,
‘mangues’ e ‘alagados’. Locais liminares, onde a presença conjunta
da terra e da água marca um espaço físico confuso e necessariamente
ambíguo (DAMATTA, 1997, p. 45 – grifos meus).

______ [ 160 ]
Fazer parte desses dois lugares constitui uma contradição, isso a
partir dos valores sociais tidos como aceitáveis e louváveis, afinal, para a
moral vigente (cristã, contemporânea e ocidental) não é tido como “correto”
uma mãe (de família – diriam os sujeitos imersos nessa formação discursiva –
digna e honrada) sair de sua casa para vender sexo para “qualquer um” na rua.
A casa e a rua são espaços bem delimitados no e pelo imaginário social (talvez
antes com maior intensidade, mas ainda hoje se constituem na oposição
entre a honra e a desonra), principalmente quando se fala da mulher. Mas,
no fio do discurso, a tensão e a contradição se desfazem quando apresentam
justificativas para o fato de estarem na vida noturna:

(SD 01) Minha filha tem 14 anos, né? E meu filho tem 12. E... é o meu foco,
na verdade, né? Meu e de todas daqui. Assim, trabalho assim nessa vida
pra dar o melhor pros meus filhos (Duda – grifos meus)4.

(SD 02) Então, eles são alguma coisa pra pode alegrá nóis por dentro, pior
nóis seria se nóis tivesse abandonado nossos filhos, tivesse jogado na
rua, alguma coisa assim. Não. Nóis tamo aqui por eles. Por eles que
nóis tamo aqui. Então, ninguém tem que fala nada. Só que é feio minha
filha sabê, minha filha com 12 anos, que eu tô na zona (Carol – grifos meus).

Constrói-se socialmente uma relação contraditória entre os dois


lugares ocupados pelas entrevistadas: ser mãe e prostituta ao mesmo tempo.
Ser mãe e ocupar o lugar que essa posição representa socialmente, reforçada
pela memória discursiva, o interdiscurso e o pré-construído, instaura uma
imagem de mulher imaculada, respeitada, associada ao amor divino, ao dom
da vida, ser cujo amor incondicional é capaz de realizar sacrifícios em prol
dos filhos; sentidos naturalizados, ditos e repetidos pelo senso comum.
Em oposição ao lugar positivo que se tem da maternidade, a imagem
condenada é ocupada pela posição da prostituta, tida como mulher de vida
fácil, promiscua, imoral, ocupando o outro lado do pêndulo. Em oposição à
posição “boa” da “mãe de família”, existe a posição “ruim” e “má” da garota
de programa: “O bom e o mau se encontram numa relação recíproca e
constituem um par de conceitos axiológicos inseparáveis e opostos.
Toda concepção do bom acarreta necessariamente, de um modo explícito ou
implícito, uma concepção do mau” (VAZQUEZ, 1993, p. 184 – grifos meus).
Tais contradições chocam-se e confrontam-se em duas faces distintas, mas
inseparáveis: de um lado o bom, o certo, o virtuoso; de outro o mau, o errado,
o vício. Dessa forma, para as leis que regem a moral a ser seguida, haverá dois
lados, em que posições e condutas são delineadas uma por oposição a outra,

______ [ 161 ]
já que o conjunto de valores estabelecidos socialmente supõe, desde o seu
início, a transgressão: “A norma, ao mesmo tempo, multiplica a norma e a
indica. Ela requer, portanto, fora de si, ao seu lado, tudo aquilo que ainda lhe
escapa” (CHAUÍ, 1984, p. 24). Tal dualidade impõe-se de modo a exigir que
ambos os lados (co)existam, mas, sob a pena da coerção social, não podem
ocupar o mesmo lado da moeda; caso ocupem, a contradição se fixa.
Essa dualidade contraditória existe pela ordem da moral, mas o que
se questiona é que tal antítese discursiva parece não ocorrer para as garotas de
programa, já que estar ali, na prostituição, é justificado pelo fato de venderem
sexo pelos filhos sob a defesa de que eles poderiam ser “abandonados”,
“jogados na rua”, como se perceber nas SDs 01 e 02. Essas e outras
justificativas, apesar de não resolverem a condição estigmatizada de prostituta
em que vivem e de não as redimirem socialmente, ainda assim desfazem, no
discurso, a possível contradição que existe para o analista. Inclusive, porque
três delas estão na prostituição há mais de dez anos e não há contradição
nenhuma nisso para elas.
Lagazzi (1988), na obra O desafio de dizer não, ao analisar uma
SD, afirma que a posição ocupada pelo sujeito, inscrito em diferentes
formações discursivas, determina de que maneira os efeitos de sentido do
processo interlocutório significarão, podendo ser diferentes para ambos os
interlocutores: “Essas diferentes posições, que correspondem a diferentes
formações discursivas, fazem com que professores e alunos privilegiem
diferentes sentidos na interlocução, ou seja, cada qual se relaciona, com o
discurso, marcado pela posição em que se encontra” (LAGAZZI, 1988,
p. 67). Na sequência analítica, Lagazzi (1988) reafirma: “Percebemos, pela
leitura, que elas se colocam de maneira diferente com relação aos sentidos
atribuídos a ‘estudo’. S estranha o fato de que N receba uma remuneração
para estudar, enquanto que N não aceita esse estranhamento” (p. 86). Assim,
ser mãe e se prostituir não necessariamente tem o mesmo sentido para
analista e entrevistado, visto que as formações discursivas permitem que se
aceitem determinados sentidos e não outros, mesmo com o agir da ideologia
em ambas formações. O entrelaçar de fios discursivos amarram-se aos nós da
ideologia, mas perante a formação discursiva de outros sujeitos, esses fios se
desfazem e as contradições se desmancham, esvaem-se.
Charolles (1997) tece algumas considerações sobre as contradições
textuais apontadas em produções de estudantes por professores de séries
iniciais, tratando que o que pode ser contradição para o professor pode não
ser para o aluno, para quem produziu tal efeito. Apesar dessas tessituras irem
minimamente ao encontro do proposto por este projeto, mesmo se tratando
______ [ 162 ]
de um texto que propõe outro tipo de trabalho com a linguagem, é a epígrafe
que Charolles (1997) utiliza que se encontra no âmago da discussão aqui
proposta:

Andávamos e escapavam-lhe frases quase incoerentes. Apesar dos meus


esforços, mal acompanhava as suas palavras, limitando-me, enfim, em fixá-
las. A incoerência do discurso depende de quem ouve. O espírito
parece-me feito de tal forma que ele não pode ser incoerente para
si mesmo. Por isso não me atrevi a classificar Teste como louco. Aliás,
percebia vagamente a ligação de suas ideias, não observava nelas nenhuma
contradição; além do mais, eu teria temido uma solução simples demais (Paul
Valery, Senhor Teste apud CHAROLLES, 1997).

A defesa levantada é a de que o espírito (ou o sujeito) não poderia


ser contraditório a si mesmo, visto que sua formação discursiva minimiza o
efeito contraditório que existe para o outro, dissolvendo no discurso aquilo
que poderia instaurar problemas para o sujeito que vive nesse entremeio e
nessa trama “paradoxal”.
Mas há de se atentar também para o fato de o discurso ser constituído
por esse embate existente entre as formações discursivas e, por consequência,
as ideológicas. Dessa forma, os sentidos não são objetivos e transparentes e aí
é que o apagamento (de ser prostituta e todo o estigma que há nessa posição)
que antes se desfez se instaura, quando o assunto é os filhos e a prostituição.
Na SD 02, Carol finaliza dizendo: “Por eles que nóis tamo aqui. Então,
ninguém tem que fala nada. Só que é feio minha filha sabê, minha filha com
12 anos, que eu tô na zona”. Se existe um “sacrifício” em estar “ali”, ninguém
poderia questionar ou mesmo julgá-lo como contraditório, pois, para Carol,
não há contradição em ser mãe e fazer tudo pelos filhos, mesmo que esse
tudo seja exercer uma prática moralmente condenada. Apesar de não existir
contradição no fio discursivo entre ser mãe e ser prostituta, Carol não deseja
que o estereótipo de “filha da puta” recaia sobre a filha, o que possibilita
pensar que o desmanchar do que poderia ser contraditório na formação
discursiva da qual a entrevistada comunga não ocorre de um modo exato, mas
numa linha de tensão tênue, isso porque diversas formações discursivas se
cruzam, chocam-se, hibridizam-se e, apesar de uma contradição se desfazer,
outras se instauram. Assim, parece não existir contradição entre ser mãe e ser
prostituta para elas, mas há problemas de a filha ser reconhecida como “filha
da puta”.
Do mesmo modo, a contradição se esvai quando são mães que se
prostituem pelos filhos, mesmo que ocupem lugares tidos como inabitáveis.

______ [ 163 ]
Ser esposa e garota de programa não parece ser, em seus depoimentos, lugares
simultaneamente habitáveis. Parece haver um limite na própria aceitação das
entrevistadas, quando ocupam o lugar da garota de programa: pode, quando
há a justificativa para estarem “ali” pelo outro; não pode, quando ocorre a
interferência no “sagrado matrimônio” ou na configuração da “sagrada
família”. Questionada se já se prostituía enquanto estava casada, Mônica
responde:

(SD 03) Não, só depois que eu separei (Mônica – grifos meus).

Enquanto estão unidas pelo laço matrimonial, seja ele firmado por meio
da religião, da justiça ou apenas formalizado entre o casal, as entrevistadas não
se prostituíam, pelo menos assim afirmam, como modo de tentar estabelecer
limites fixos entre a condição de mulher “pura” e “honrada” que ocupavam
durante o casamento e a condição de prostituta, mantendo sempre em vista a
possibilidade de ser uma mulher “honrada” em certas condições e podendo
retomar a situação, como apontam nas saídas para a “vida” que levam. Ou
seja, separe-se a “boa” (aquela que ocupa o lugar de esposa (e por estar nessa
posição atribui-se a imagem de honrada e respeitosa)) da “má” (aquela que
vende o corpo por dinheiro). A análise do corpus revela, portanto, que, para
elas, ser casada e se prostituir são ações que pertencem a duas formações
discursivas distintas, lugares que não podem habitar o mesmo espaço. Sabe-
se da existência de práticas dessa natureza, mas, no caso das entrevistadas,
ter relações sexuais com vários homens por dinheiro e, ao mesmo tempo,
“pertencer” a um homem só não é possível, o que é explicável, dado que elas
estão inseridas numa sociedade monogâmica, que, supostamente, não aceita
sexo fora do casamento e que, além disso, condena a prostituta por oposição
à boa mulher, aquela destinada ao sagrado casamento.
Dentre elas, Duda talvez seja a que transite com maior frequência
entre as duas esferas, pois ela namora há dois anos, mas o namorado
desconhece sua forma de ganhar a vida. Entretanto, essa relação só existirá
enquanto forem namorados, pois, segundo Duda, a partir do momento em
que se casarem, ela terá que deixar a prostituição.
Constituir família e continuar com a prostituição não é uma atitude
bem vista pela sociedade e pela instituição religiosa. As ideologias cristã e
burguesa (no mínimo estas) interpelam Duda e a fazem assumir que essa
antítese discursiva não pode ocorrer: seria contraditório. Por isso, ela deixa a
casa de prostituição para namorar e a abandonaria depois de se casar, como
mandam os preceitos religiosos, reforçando, em suas atitudes, os já-ditos pela
______ [ 164 ]
ideologia. Como assevera Orlandi (1987), a partir Reboul (1980):

Em relação à coerção, não é necessário dizer que não se trata de força ou


coerção física, pois a ideologia determina o espaço de sua racionalidade
pela linguagem: o funcionamento da ideologia transforma a força em
direito e a obediência em dever (O. Reboul, 1980). A religião constitui
um domínio privilegiado para se observar esse funcionamento
da ideologia dado, entre outras coisas, o lugar atribuído à Palavra
(ORLANDI, 1987, p. 242).

(SD 04) Eu fui casada seis anos com o pai da minha primeira filha... (Carol)
Mas antes de vim pra noite, né? (Ana Paula)
É... fiquei casada, sem nada, trabalhava de diarista, trabalhava de
empregada doméstica, aí foi onde que não deu certo, era um cara muito
vagabundo, chave de cadeia. Separei dele, voltei pra noite, fiquei muito
tempo. Aí casei de novo, fiquei dois meses... (Risos) e separei, que eu
tenho minha última filha (Carol – grifos meus).

Na SD 04, é possível perceber a preocupação de Ana Paula em ressaltar


que Carol era casada antes de ir para a “noite”, reafirmando que a colega não
se prostituía enquanto era casada e que essa prática só passou a ocorrer após a
separação. As afirmações evidenciam que Carol e Ana Paula se inscrevem em
uma formação discursiva que não admite vender-se sexualmente enquanto
estão vivendo relações matrimoniais.
Enquanto esposa digna de respeito, seguindo o modelo tradicional
de família, era necessário que Carol trabalhasse em uma profissão “digna” e
reconhecida como atividade jurídica e socialmente aceita, mesmo sendo uma
profissão que, comparada a outras, não seja tão valorizada financeiramente,
quando diz: “É... fiquei casada, sem nada, trabalhava de diarista,
trabalhava de empregada doméstica”. Na sequência, Carol diz: “Separei
dele, voltei pra noite, fiquei muito tempo. Aí casei de novo, fiquei dois
meses... (Risos) e separei”, o que demonstra que a venda do corpo ocorria
entre um casamento e outro, mas cessava com o enlace matrimonial.
Abre-se a possibilidade, assim, de tecer uma relação de oposição entre
a casa e a rua. A esposa, mãe e dona de casa ocupam o espaço reservado a
elas: o lar e, diante desse espaço pré-definido, há também o delineamento de
seus papéis, que define os deveres e valores de quem ocupa esse espaço. A
rua, por outro lado, destina-se à prostituição; ela é o local da liberdade e da
libertinagem; é onde as mulheres podem sair de seus lares e comercializar sexo,
opondo-se ao papel desempenhado no seio familiar; desse modo, elas passam
a ser “mulher pública”: “Vale ainda lembrar que a valorização das mulheres
casadas passava pela existência das ‘mais fáceis’, que não apenas ajudavam a

______ [ 165 ]
reconhecer a boa esposa e mãe, mas também o lar contra a rua, contra a estrada
e o caminho” (PRIORE, 1995, p. 101). A divisão dos espaços, como se vê, é
resultado de convenções sociais que delimitam o papel a ser desempenhado,
que é inseparável de uma formação discursiva contornada e controlada por
uma ótica social. Tais sentidos se repetem, estão cristalizados na memória
social, por isso há contradição para elas em esposa e ser prostituta5.
(SD 05) Então, eu me separei, né? Foi uma separação assim, bem dura...
Tanto é que assim, às vezes a gente lembra e fica emocionado, né? Mas, foi
uma separação difícil, tanto é que meu ex-marido não queria mais
ajudá com pensão. Meu pai, com o pouco que ele podia me ajudá, ele me
ajudava (Duda – grifos nossos).

A separação é apresentada pelas entrevistadas como porta de entrada


para a venda de sexo. Ser esposa é ser respeitada socialmente, pois a mulher
casada possui o status de digna, fiel e “direita”. Ao deixar essa condição,
parece tornar-se possível ir ao encontro do oposto: corromper-se, aviltar-
se, pois, como divorciadas, não há mais amarras (jurídicas ou imaginárias)
que as faça seguir o modelo. Antes comprometida com o casamento, a
partir da separação, ela passa a ser descomprometida, sem compromissos,
sem obrigações; a mulher passa a estar “livre” desse enlace. Não se está
dizendo que exista uma relação “lógica” entre separar-se e prostituir-se, mas
casamento e prostituição para a mulher são, socialmente, incompatíveis. Estar
unidos por laços matrimoniais firmados pela Igreja e pelo discurso jurídico,
aceitos socialmente, requer comportamentos aceitáveis para essas formações
discursivas; neste sentido, não se poderia jurar ser fiel, amar e respeitar um
homem e se vender numa boate (ou em qualquer outro lugar) a outros.
As entrevistadas afirmam e reafirmam o que é delineado pela sociedade
como aceitável, apresentando-se como sujeitos que, apesar de transgredirem
o que se considera uma boa conduta e estarem à margem, seguem os valores
sociais dados como morais. Ratificar os preceitos morais e considerá-los
como fundamentais as auxilia na busca de mostrar o quanto elas são “boas”.
Se ser bom é seguir os preceitos aceitos socialmente, a defesa desses valores,
ainda que, de determinada maneira, sob a tutela de um falso moralismo, tem
como objetivo fazer com que a imagem das garotas entrevistadas passe a ser
vista como positiva, já que elas compartilhariam do que se considera “bons”
costumes. Duda, ao contar que ganhou de presente de aniversário um carro
de um dos clientes, como evidenciado na SD 06, afirma que ele até queria se
casar com ela, mas, por já ser casado, ela recusou o pedido:

______ [ 166 ]
(SD 06) Ah, ele era muito assíduo, queria até casá comigo.
Pesquisador: E você não quis?
Ah não, porque eu penso assim, igual que eu dizia pra ele, esse cliente era...
nossa, ele gastava horrores na noite comigo, aí quando chegou o momento
em que ele falou assim: Olha Duda, eu quero que tu saia da noite, eu
vou dá uma quantidade em dinheiro pra você e você fica em casa ou você
monta um negócio pra você mesmo, aí a gente vai morá junto. Ai eu sei
que ele era casado e tudo, né? Daí eu falei: mas eu não quero a minha
felicidade na tristeza de outra pessoa. O dinheiro é importante nas
nossas vidas? é, mas às vezes querê dinheiro, o meu bem-estar nas
costas de outra pessoa, vendo outra pessoa sofrê, eu acho que também
já não é justo (Duda – grifos meus).

Prostituir-se em benefício dos filhos é enfatizado e enaltecido


como se fosse quase um “sacrifício”, já que é isso que existe no imaginário
sobre a figura materna, aquela que deve sacrificar-se pelos filhos, o que visa
(consciente e inconscientemente) à demonstração de quão “boas” mães elas
são, justificando ocupar o inabitável. Mas, para Duda, o seu “bem-estar” “nas
costas de outra pessoa” seria uma agressão “injusta” e, sendo ela uma pessoa
“boa”, não admitiria “interferir” (embora interfira ao oferecer sexo pago a
homens e a mulheres comprometidos, outra contradição) no casamento de
alguém, principalmente pelo fato de essa relação não estar atrelada apenas
a preceitos jurídicos e sociais, mas também, e principalmente, a ditames
religiosos. Dessa forma, enquanto seguidora da moral vigente, ela não poderia
separar o que Deus uniu. Duda não quer ser vista como uma “destruidora
de lares”, mas como uma mulher sensata e bondosa, que não deseja a sua
“felicidade”, se o preço for o “sofrimento” de outra pessoa. A atitude de Duda
mostra a sacralização do matrimônio como uma prática não só perpetuada,
mas também “intocada”, que não pode/deve ser quebrada, sob pena de sofrer
consequências religiosas e as mazelas sociais que se impõem sobre aqueles
que o fazem. Tal pensamento é fomentado (também) pelo discurso religioso,
o qual dota o matrimônio de um caráter transcendental e espiritual já que “o
que Deus uniu, homem algum separa”.
Voltando-se para o sujeito, é possível perceber que o discurso de Duda
e das garotas entrevistadas se move num terreno conflituoso e contraditório,
pois exercem uma atividade tida como imoral. Elas reconhecem e assumem
que estão dentro de um terreno não adequado e, inclusive, sancionam a si e aos
outros por meio destes princípios. Sobre elas se abate o peso da interpelação
ideológica, que define o que pode e deve ser dito, mas, contraditoriamente,
elas se valem de estratégias variadas para justificar o que fazem e tentam burlar
a moral que o seu discurso avaliza. A prática discursiva das garotas mostra

______ [ 167 ]
que, em alguma medida, elas vivem no fio do conflito e da teia que as enreda,
buscando, mesmo que de forma frágil e ineficaz, alguma maneira de pôr em
suspensão momentânea os ditames sociais que se abatem sobre elas e sobre a
atividade que exercem, mesmo que não lhes faltem fregueses.
No fundo, entre levar a vida à margem daquilo que é sancionado de
forma positiva pela sociedade e sobreviver pelos meios “legais” postos à sua
disposição para fazê-lo, a opção se faz pela primeira via e o que efetivamente
move as garotas de programa é a busca pelo retorno financeiro, sendo este
o fator decisivo tanto para a entrada quanto para a permanência na vida de
meretriz. Entretanto, a SD 06 parece mostrar que, apesar de elas estarem ali
por dinheiro, ele não seria digno se viesse “nas costas de outra pessoa”, o que
implica em deduzir que, se outra pessoa não for prejudicada, o dinheiro ganho
se torna aceitável. Como isso é possível, se elas próprias afirmam que o que
fazem é inadequado e o fazem sem a restrição de ocasionar prejuízo ou não
a alguém? Percebe-se o contorcionismo que acontece num terreno complexo
e que, neste caso, busca justificar o injustificável, num contraponto perene
entre a vida material (a sobrevivência) e a vida ideológica: uma coisa é o que
se diz, outra é o que se faz e de que forma se tenta justificá-lo para não ferir
a moral vigente (embora ela seja ferida no seu núcleo). O que sobra, no fim,
é uma vida “imoral” tentando se mostrar adaptada ao que seria confirmado
pela moral sancionada, sem obter êxito na empreitada.
A SD 06 é organizada, em termos do esquecimento número 2, da
ordem da enunciação, no sentido de que Duda é honrada, digna e uma “boa
mulher”. No entanto, este mesmo esquecimento esconde o de número 1, que,
por fim, acaba fazendo com que a própria Duda se julgue disforme, devendo
justificar-se por isso. Casar-se com o cliente exigiria que Duda deixasse a
prostituição. Mas a questão que acaba sobressaindo é: ela recusa o pedido por
não querer “destruir” um casamento firmado diante de Deus ou a recusa está
associada ao desinteresse de deixar a “vida fácil”, usando como estratégia a
máscara de boa moça? Ou ainda, no nível do inconsciente, a prostituição pode
ser a manifestação do desejo e do prazer, não reveladas ou que não podem
irromper na ordem da moral. Todas afirmam que não querem permanecer
no meretrício, mas elas não deixam e não tomam qualquer atitude para que
isso ocorra, tanto que Duda, Ana Paula e Carol vendem sexo há mais de 10
anos. O que se percebe é que a afirmação de que esta será uma prática breve
e passageira acaba sendo outra (das muitas) justificativa apresentada por elas
para amenizar a imagem negativa que pesa sobre a atividade, sendo o “sonho”
de abandonar a prostituição contado e recontado para amenizar o passar dos
anos e a crítica que vem de um lugar que as tenha sob vigilância.
______ [ 168 ]
Viver na zona é muito mais que viver da prostituição; viver na zona
é experienciar o entremeio, o não-lugar ou “a terceira margem do rio”, como
quer Guimarães Rosa, que, nas suas Primeiras estórias (1962), (re)cria esse
espaço intermediário situando seu personagem em um contínuo suspenso,
alienando-se da rotina para viver da “invenção de [...] permanecer naqueles
espaços do rio de meio a meio”, numa canoa que jamais “pojava em nenhuma
das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio”, não mais tocando “em chão
nem capim” (ROSA, 1978, p. 28-30). Ser garota de programa é experienciar
os dois lados do rio e também o não-lugar do entremeio, que constitui, para
quem observa da margem, a contradição, mas, para quem habita a terceira
margem, é que um incessante navegar por águas (des)(re)conhecidas. Mesmo
se achando nesse entremeio, as formações discursivas que se cruzam e se
confrontam no discurso produzem, para as garotas de programa, a ideia de
completude, por isso não há contradição em ser mãe e ser prostituta, por
exemplo, até porque se os sujeitos não se sentirem plenos e completos
(interpelação), eles “desmoronam” discursivamente.
Caberia ainda (re)pensar a contradição considerando o inconsciente.
Pêcheux (1997), a partir dos estudos de Freud via Lacan, afirma que “só há
causa daquilo que falha”. Ideologia e inconsciente têm como caráter comum
dissimular a própria existência no interior mesmo de seu funcionamento,
“produzindo um tecido de evidências subjetivas” (PÊCHEUX, 1997, p. 153).
Tanto na SD 01 como na SD 02, as justificativas das entrevistadas se encontram
na ordem da moral, do consciente, mas se questiona também a ordem do
inconsciente, pois a entrada e a permanência na prostituição pode se dar pela
ordem do desejo e do prazer e não apenas para suprir as necessidades dos
filhos, como é posto pelas entrevistadas.
Parafraseia-se nos depoimentos colhidos a iminente saída como busca
pela redenção, isso posto pela ordem do consciente, mas o perdurar e o passar
dos anos instauram na não saída um possível desejo de estar ali:

(SD 07) Pesquisador: Vocês pensam, assim, algum dia parar?


Sim (Ana Paula).
Se Deus quisé... metade desse ano. Antes ainda (Carol).
Pesquisador: Mas dai você pensa em fazê o quê?
Trabalhá (Carol).
Pesquisador: É? Procurá outra coisa?
Já tamo procurando já (Ana Paula e Carol – grifos meus).

A prostituição é o lugar que permite romper com o espaço de


circulação de uma ordem do desejo, que não combina com a ordem moral.

______ [ 169 ]
Trata-se do prazer justificado por inúmeras razões. Entretanto, em nenhum
momento da entrevista é dito ou afirmado que o motivo de estarem ali é para
satisfazer desejos; os motivos são sempre justificados e a “culpa” recai sobre
o outro, já que o abandono do marido, o desemprego, os filhos, a influência
de amigas e o fatídico destino colocaram-nas no lugar que estão agora. Elas
não dizem e nem poderiam dizer/assumir que se prostituem porque querem,
mas, de uma forma ou outra, o inconsciente pode estar afetando as escolhas.
Sabe-se que há várias formas de repressão sexual instauradas no meio social,
como assevera Chauí (1984) e, por isso, afirmar que se vende sexo porque
gosta dificilmente seria dito de maneira tranquila, sem que existisse uma
condenação moral:

De modo geral, entende-se por repressão sexual o sistema de normas,


regras, leis e valores explícitos que uma sociedade estabelece no
tocante a permissões e proibições nas práticas sexuais genitais
(mesmo porque um dos aspectos profundos da repressão está justamente em
não admitir a sexualidade infantil e não genital). Essas regras, normas, leis
e valores são definidos explicitamente pela religião, pela moral, pelo
direito e, no caso de nossa sociedade, pela ciência também (CHAUÍ,
1984, p. 77 – grifos meus).

O desejo tenta o tempo todo escapar, mas a moral está o tempo todo
cerceando. Os valores morais agem de maneira a suprimir, inibir e reprimir
desejos sexuais do sujeito a tal ponto que sentir prazer, muitas vezes, relaciona-
se à culpa. Pensando no inconsciente, nota-se no corpus que nenhuma delas,
em nenhum momento, afirma ser garota de programa ou prostituta; elas estão
sempre se colocando em outro lugar: são mães, são ex-esposas, são filhas, são
desempregadas ou são futuras-estudantes, mas não garotas de programa:

(SD 08) Eu sempre digo assim, oh: Eu não sou puta, eu sou menina de
família com pobremas financeiros: SPC, Procon, Serasa (Carol – grifos
meus).

(SD 09) Somos, pra muitos ali fora, somos garotas de programa, mas
não é, somos garotas de família com problemas financeiros... que é
um método, curto, rápido e preciso de ganhar dinheiro. Como assim,
como é que tu vai trabalhá pra ganha um salário por mês, né? Não tem
nem como, né? (Duda – grifos meus).

Na psicanálise, Freud apresenta o conceito de denegação, considerado


a operação que permite uma representação recalcada ascender ao consciente,
desde que ela ocorra por meio da negação. Indursky (1990), ao definir
a denegação discursiva, afirma que o sujeito apresenta-se dividido entre o
______ [ 170 ]
desejo de dizer e a necessidade de recalcar; ele se diz, sem necessariamente
dizer-se. Negar que são prostitutas, instaura, por meio da denegação, a (re)
afirmação desse recalque.
As entrevistadas negam que são garotas de programa, ou mesmo
“puta” como aparece na SD 08. Elas se colocam em outro lugar, para que
sejam vistas em posições louváveis (como a materna) ou mesmo respeitáveis
(como a esposa), valores defendidos pelos preceitos morais. Entretanto, na
ordem do inconsciente, o que não pode ser dito vem à tona por meio da (de)
negação. Esses efeitos irrompem, porque a linguagem não é só lugar de poder,
mas lugar do possível, é o lugar de luta do sujeito (LAGAZZI, 1998). Nesse
sentido, a contradição é pensada de outra forma, pois não há contradição
quando se trata da manifestação do inconsciente, em que os sujeitos são
tomados pelo prazer e pelo desejo que não se apagam:

O fato é que o non-sens do inconsciente nunca é inteiramente recoberto


nem obstruído pela evidência do sujeito-centro-sentido que é seu produto,
sendo inscritos na simultaneidade de um batimento em que inconsciente não
para de voltar no sujeito. O inconsciente do significante não se apaga
jamais, ele se manifesta pelas várias formas da falha (PÊCHEUX, 1997,
p. 300 – grifos meus).

Ser prostituta, defender a prostituição ou desejar permanecer na


vida “fácil” não é o que elas mostram desejar (ainda que o discurso falhe
e mostre o contrário). Sob a ilusão de dominarem o discurso, crentes que
a língua é objetiva e que os ditos não dizem mais do que é pronunciado, as
entrevistadas buscam razões (algumas até comoventes) para justificar porque
estão na vida “fácil” e não em outro lugar. Mas sendo o discurso opaco e
heterogêneo, percebe-se que as desculpas apresentadas não as redime, pois, se
as desculpasse do “fardo” que carregam, não precisariam esconder dos filhos,
amigos e familiares o que fazem, não precisariam viver na “noite”. Porém, em
contrapartida, a prostituição permite a circulação das garotas na ordem do
desejo e, talvez, por isso mesmo, ela se reafirme na história.

ALGUMAS PALAVRAS (FINAIS)

A entrevista mostra um discurso contraditório, truncado, dividido e,


por vezes, difícil de ser compreendido. Lidar com a sexualidade não é fácil e
mais difícil ainda é lidar com o discurso sobre o sexo marginal: “as regiões
onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as

______ [ 171 ]
regiões da sexualidade e as da política” (FOUCAULT, 2008, p. 9). As garotas
de programa não só evidenciam um discurso contraditório, como também
se mostram mulheres divididas, que ocupam lugares opostos na sociedade e,
para lidar com a contradição em que vivem, precisam justificar-se, desculpar-
se e isentar-se da “culpa” que sentem por serem mães e venderem o corpo
para sustentarem os filhos, por serem ex-esposas que passaram do “sexo
civil” para a venda de sexo. Ora estão à margem, ora fazem parte da dinâmica
social, ainda que não plenamente. O que as garotas do Porto das Sereias vivem
é tão contraditório que mesmo elas se confundem:

(SD 10) Eu acho que eu não to fazendo nada errado, to vendendo meu
corpo, mas tipo não é certo, mas também não to fazendo nada errado
(Mônica – grifos nossos).

A ideologia, o interdiscurso, a memória discursiva e as condições de


produção são tão imperativas que os sujeitos se dizem a partir do que é dito
sobre eles. As entrevistadas reproduzem a moral vigente, condenando as suas
próprias práticas e repetindo o que é dito sobre elas e sobre a prostituição.
No começo da pesquisa, buscava-se levantar diferentes histórias sobre
a prostituição, com o intuito de descortinar um pouquinho sobre um assunto
que não circula livremente em qualquer rodinha de diálogo. Assim, o que
pareceu ser no início relatos distintos, no fio do discurso, mostrou-se repetitivo;
o mais do mesmo ecoou nos discursos coletados; vê-se a memória sobre a
prostituição dita em outro lugar se perpetuando. As mesmas justificativas para
a entrada na vida “fácil”, o mesmo encobrimento (consciente e inconsciente)
de afirmarem quem elas são e as mesmas alternativas para deixar a venda de
sexo permeiam as SDs, reafirmando o discurso cristalizado sobre a prática.
Além disso, a prostituição é defendida pelas entrevistadas como uma
forma passageira de ganhar a vida. Como mostrado, a venda do corpo não
é encarada por elas como uma prática louvável, é “errada”, e elas mostram
estar pensando em alternativas consideradas moralmente “corretas” para
deixar a vida que levam; são saídas que as levarão para a redenção de seus
pecados. Uma vez fora da prostituição, elas passariam a ocupar outros lugares,
idealizados e defendidos: mãe, esposa, filha “digna”, “estudante”, profissional
em uma função aceitável socialmente. Reverbera a repetição do discurso
moralmente aceito; elas desejam (re)(in)gressar em uma vida que consideram
ideal. O contrário não poderia ser dito. Dizer que pretendem continuar na
prostituição (mesmo que essa talvez seja a vontade delas, embora poderia
até ser uma vontade do inconsciente) seria arcar com as consequências desse
enunciado, pois a prostituta, como se viu no início do trabalho, até é aceitável
______ [ 172 ]
pela sociedade que precisa dela para o equilíbrio social, mas desde que elas
continuem à margem. Assumir que gosta do que faz, que acha “certo”, que
sente prazer e que deseja vender sexo para o resto da vida é fazer repercutir
efeitos contrários ao que espera a moral estabelecida.
Escolher (embora afirmem serem obrigadas) permanecer no
meretrício (embora digam ser uma condição temporária) e afirmar que não
sentem prazer (embora não seja algo que se possa controlar) talvez sejam
formas de esconder o que realmente querem dizer, mas que não podem e
não dever se afirmado. Elas não podem admitir que gostam do que fazem
e que querem fazer o que fazem (talvez, então, o recalque do inconsciente).
Na posição de entrevistadas, elas se colocam no lugar de quem deve buscar
razões que justifiquem a entrada, a permanência e que adiem a saída de onde
estão. Mônica, Carol, Ana Paula e Duda tecem teias contraditórias sobre
a prática, encontram-se nos nós formados por esses fios e se enredam no
discurso milenar dito e repetido.
Para finalizar, tem-se claro que esta discussão é apenas um recorte, um
olhar sobre as SDs que tanto dizem e que a partir delas tantos outros sentidos
ecoam. O que se deixa são algumas considerações sobre esse discurso de
entremeio, que suscita tantos sentidos, por vezes, quase imagináveis.

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______ [ 174 ]
NOTAS

1) O corpus desta pesquisa é composto por entrevistas realizadas com garotas de programa,
em agosto de 2012, consentidas e aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, trabalho inscrito também na Plataforma Brasil,
base nacional unificada de registro de pesquisas. A coleta do material foi realizada em uma
boate de Cascavel-PR, local selecionado por meio de uma amostragem não probabilística
por acessibilidade, e quatro garotas de programa concordaram em participar das entrevistas,
cedendo suas histórias para a realização da pesquisa.

2) Porto das Sereias foi o nome criado para nomear a boate em que as garotas de programa
foram entrevistadas, visto que o CEP prima pelo anonimato das fontes e, neste caso, do local da
pesquisa. Relaciona-se porto com o lugar de passagem de homens e mulheres que buscam sexo
e local igualmente de passagem para as sereias que desembarcam para vender sexo. Formada
por uma imagem híbrida, a sereia é, em sua completude, a soma da incompletude das partes de
que é feita: metade mulher, metade peixe. Assim é a prostituta, dividida entre mulher idealizada
e garota de programa (re)negada, em que cada metade experiencia um lugar diferenciado, mas
cada lugar não pode ser ocupado em sua plenitude.

3) Utiliza-se a palavra “reais” para caracterizar que se trata, efetivamente, de relatos de mulheres
de nosso cotidiano que vivem da venda de sexo, apesar de entender que as histórias relatadas
se constituem por um imaginário ideológico e social, não podendo ser caracterizadas como
“histórias reais”.

4) Vale ressaltar que as próprias entrevistadas sugeriram um nome para serem nomeadas
durante a entrevista e a composição da pesquisa. Além disso, cabe dizer que as entrevistas
foram transcritas sem correções gramaticais ou inserção livre de complementos.

5) O que realmente causa estranheza, ou no mínimo curiosidade, é o desmanchar da contradição


em alguns momentos do discurso e em outros a contradição se reinstaurar, como comentado
anteriormente. Quer dizer, é de fato um lugar contraditório ocupado por elas, tão contraditório
que o próprio discurso acaba sendo entrecortado.

______ [ 175 ]
CAPÍTULO 9

BRASIL E
BRASILEIROS EM
PORTUGAL:
CONSTITUIÇÃO DE
SUJEITOS E SENTIDOS

Alexandre Sebastião Ferrari Soares


Isabel Maria Ferin da Cunha
Como na célebre abertura de Burnt Norton, tece-se aqui uma trama onde se
constata que o presente e o passado estão presentes no futuro, assim como
o futuro está contido no passado – e se pergunta se esses tempos
conseguirão em alguma medida liberar-se uns dos outros, o passado
deixando de condenar o futuro a uma eterna repetição, o futuro
escolhendo de qual dos seus passados servir-se para reinventar-se.
Essa é a pergunta presente que o Brasil se faz.
(fragmentos do prefácio escrito por Francisco Bosco, do livro Vai Brasil, da
escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, itálicos do autor, grifos meus)
Para falar do Brasil em Portugal, hoje, não se pode se limitar exclusivamente a
um recorte no tempo: nem passado, nem presente e nem futuro, separadamente.
Esses três momentos do discurso se confundem e se completam. Afastam-se
e se aproximam numa luta por um espaço que vai muito além do geográfico,
do linguístico ou do cultural. Falar do Brasil é também falar de Portugal,
porque, de certa forma, encontramo-nos em algum ponto desse Atlântico que
nos une e nos separa.
Neste artigo, analiso as Formações Imaginárias (doravante, FI) sobre
o Brasil/brasileiro em quatro artigos e uma nota publicados pelo jornal
português Correio da Manhã, durante os primeiros dias do mês de janeiro de
2011. Nos artigos do jornal, a saber, “Venho consolidar a obra de Lula, do dia
02 de janeiro; Sócrates e Dilma discutem crise da dívida soberana e Privilégios
de Lula abrem polêmica, do dia 07 de janeiro; Dilma choca religiosos, do
dia 10 de janeiro; e, finalmente, na nota, Presidente brasileira já tem boneca
personalizada – artista cria Barbie Dilma, do dia 09 de janeiro de 2011”, o
Brasil é retratado, sobretudo, a partir da posse da presidenta eleita Dilma
Rousseff e da saída do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Também fazem parte desse corpus de análise, cinco artigos publicados
pelo jornal Expresso, todos de janeiro de 2011: “Brasileiros trazem bom ano a
Lisboa”, “Galp conta com Petrobras no carnaval”, “Sócrates e Dilma juntos”,
“Reviver o passado no presídio Tiradentes”, todos do dia 08 e “Quanto vale
a língua portuguesa?”, do dia 29.
Sobre a teoria que me dá suporte para as análises, a Análise de
Discurso de orientação francesa, é importante destacar o que Pêcheux (2001,
p. 87) afirma sobre o lugar que os interlocutores ocupa na estrutura de uma
formação social ser evidenciado a partir das supostas Formações Imaginárias
colocadas em jogo no discurso. Além disso, encontra-se também em evidência
a compreensão das condições de produção desse processo discursivo. O que
significa dizer que o locutor, a partir do lugar que ocupa, tem a habilidade de
prever onde o seu interlocutor o espera. Consequentemente, a antecipação do
______ [ 177 ]
que o outro vai pensar é constitutiva de qualquer discurso.
A FI, entretanto, não diz respeito apenas à imagem que os
interlocutores atribuem a si (e ao outro), ela diz respeito também à imagem
que eles atribuem ao referente, ou seja, o ponto de vista dos interlocutores
sobre o imaginário. Segundo Pêcheux (2001), todo processo discursivo supõe
a existência das seguintes FIs:

IA(A): Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em A - Quem sou eu


para lhe falar assim?
IA(B): Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A - Quem é ele
para que eu lhe fale assim?
IB(B): Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em B - Quem sou eu
para que ele me fale assim?
IB(A): Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B - Quem é ele
para que me fale assim? (PÊCHEUX, 2001, p. 83, grifos meus)

Existiriam regras de projeção responsáveis por estabelecer as relações


entre as situações discursivas e as posições dos interlocutores. As relações
imaginárias podem ser consideradas como um modo pelo qual a posição dos
participantes do discurso intervém nas condições de produção do discurso.
Podemos concluir, portanto, que no processo discursivo há, por parte
dos interlocutores, uma antecipação das representações de um e de outro,
sobre a qual se funda a estratégia do discurso. Como se trata de antecipações,
o que é dito precede as eventuais respostas de B, que vão sancionar ou não
as decisões antecipadas de A. Essas antecipações são, entretanto, sempre
atravessadas pelo já dito, que constituem a substância das FIs.
Esse artigo faz parte das primeiras conclusões a que chego como
resultado das minhas pesquisas realizadas durante o meu estágio de pós-
doutorado1.
Os recortes da pesquisa foram/são organizados a partir de textos,
charges, fotografias e cartas de leitores publicados nos jornais impressos,
de grande circulação em Portugal (o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, o
Expresso, o Jornal de Notícias e o Público) no ano de 2011. A escolha do jornal
Correio da Manhã, em detrimento de outros jornais, como corpus desse artigo,
se deu por conta do número de exemplares vendidos.
Segundo dados da Associação Portuguesa para o Controle de Tiragem
e Circulação (APCT), O Correio da Manhã (doravante, CM) é o jornal mais
vendido em Portugal. Entre janeiro e dezembro de 2013, foram vendidas uma
média de 112.606 exemplares por dia, revela o relatório da APCT. Este jornal,
de longe, é o mais lido em Portugal. Segundo dados do mesmo instituto,
em segundo lugar, em quantidade de tiragem, encontra-se o semanário (sic)
______ [ 178 ]
Expresso, com uma média de 77.544 exemplares vendidos.
O CM e o Expresso, portanto, ocupam uma posição de destaque
entre os portugueses e os dados da APCT contribuem como um reforço
para a percepção disso. As notícias veiculadas pelo jornal estão, dessa forma,
circulando, sendo difundidas e, certamente, construindo e cristalizando
imaginários sobre variados assuntos.
É preciso ainda esclarecer que sendo o meu ponto de vista teórico o
da análise de discurso de orientação francesa, os princípios que regem este
ponto de vista são:

a) Não tratamos de indivíduos compreendidos como seres que têm


uma existência particular no mundo. Quero dizer que o sujeito, nessa
perspectiva, não é um ser humano individualizado, mas que deve ser
considerado como um ser social. Ele deve ser compreendido a partir
de um espaço coletivo. Para um analista de discurso o histórico e o
simbólico não se separam. (ORLANDI, 2010).
b) Sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo. O sujeito se
significar ao dar sentido, os lugares ocupados pelos sujeitos são, portanto,
definidos a partir do que ele diz, a partir do que se materializa no seu
discurso.
c) Para que as palavras façam sentido é necessário que elas já façam
sentido (ORLANDI, 1996), estejam inscritas na história, pois cada
tempo tem a sua maneira de nomear e interpretar o mundo. Esse é
um complexo processo da memória. Há dizeres já ditos e esquecidos
que estão em nós e que fazem com que ao ouvirmos uma palavra,
uma proposição, ela apareça como fazendo um determinado sentido.
A memória discursiva é constituída pelo esquecimento. Esquecemos
quando os sentidos se constituíram em nós, eles nos aparecem como
evidentes, como um sempre já-lá.
d) Vivemos em uma sociedade estruturada pela divisão e por relações
de poder, portanto, os sentidos não são os mesmos para todos, ainda
que pareçam ser. Nós, analistas do discurso, tratamos do político que se
inscreve na língua.

A mídia tem papel fundamental na construção de sentido sobre o


Brasil/brasileiro, pois difunde uma pretensa ilusão de veracidade e objetividade
sobre o que é significado. Além disso, compreender a forma como circulam,
em Portugal, os sentidos sobre os brasileiros e sobre o Brasil é compreender de
que maneira Portugal redesenha o Brasil no cenário internacional.
______ [ 179 ]
Parto do pressuposto produzido pelas teorias do discurso, pelas
teorias da comunicação e da psicanálise lacaniana, segundo as quais o
outro nos constitui assim como também constitui o nosso discurso. Diante
disso, é possível afirmar que as representações que o outro faz de nós e as
representações que fazemos do estrangeiro atravessam, de modo constitutivo,
o sentido de identidade subjetiva. (CORACINI, 2007).
Com base nesse quadro e reconhecendo a força que a mídia tem
para a construção (circulação) do imaginário, responsável pelo sentimento
de identidade que nos dá a medida da nossa singularidade, conferindo-nos
a ilusão da unidade e da totalidade do discurso, serão analisadas sequências
discursivas2 de textos jornalísticos, para compreender de que forma o Brasil
e o brasileiro são apresentados, são denominados, são construídos em suas
páginas.
A escolha da imprensa escrita e impressa (e em versões eletrônicas)
se deve à expansão de sua circulação, nos dias de hoje, sobretudo, quando
os textos jornalísticos ganham mais espaços em sala de aula (em todos os
níveis de escolarização), o que lhe confere um poder de constituição desse
sentimento de identidade, ao qual se refere Coracini (2007), e ainda porque,
presentes em sala de aula, auxiliam na educação e na divulgação dos sentidos
que são construídos através da veiculação de textos.
Sobre o aspecto pedagógico dos textos midiáticos, Beacco & Moirand
(1995) atribuem um certo didatismo aos discursos das mídias (sem mencionar
diretamente o discurso jornalístico), já que, para veicular informações, eles
se valem de desenhos (mapas, figuras etc.), esquemas, além de definições,
explicações, estatísticas, questionamentos e citações de autoridades
(MARIANI, 1998, p. 61), enfocando, dessa forma, um acontecimento
singular através de generalizações feitas a partir de um campo de saberes já
estabelecido.
Os jornais falam sobre, portanto, explicam o mundo como se
estivessem fora dele, como se a função do jornal fosse relatar os fatos como
se apresentam, efeito de literalidade, e, assim, reforçam-se os mitos em torno
do discurso jornalístico, de veracidade, de objetividade, de neutralidade e de
imparcialidade. Sobre esses mitos, Mariani (2005) afirma que

Trata-se de uma prática discursiva que atua na construção e reprodução


de sentidos, prática essa realizada a partir de um efeito ilusório da função
do jornal como responsável apenas por uma transmissão objetiva de
informações. O discurso jornalístico constrói-se, dessa forma, com
base em um pretenso domínio da referencialidade, pois baseia-
se em uma concepção de linguagem que considera a língua como

______ [ 180 ]
instrumento de comunicação de informações. Decorrem daí vários
efeitos constitutivos dos sentidos veiculados como informações jornalísticas:
objetividade, neutralidade, imparcialidade e veracidade. (MARIANI,
2005, p. 8, grifos meus).

A linguagem, portanto, passa a ser concebida apenas como


um instrumento de comunicação3 de significações que são definidas
independentemente do funcionamento da linguagem, isto é, “informações”
que mascaram a sua ligação estreita com a prática política ou obscurecem esta
ligação.
Ao introduzir o meio de comunicação, como jornais e revistas para
atividades pedagógicas, não se pode esquecer as próprias condições de
produção das notícias e os efeitos de sentido decorrentes dessas condições.
Nesse sentido, deve-se buscar compreender como objetos simbólicos, por
definição não-transparentes, produzem sentidos e como acontecem os gestos
de interpretação realizados pelos sujeitos (ORLANDI, 2002).
Na constituição da memória social, da qual a mídia é parte fundamental,
o processo histórico-discursivo resultante de uma disputa de interpretações
dos acontecimentos presentes e passados (e futuros) leva à predominância de
uma interpretação. Naturalizam-se, assim, sentidos, que passam a ser comuns e
hegemônicos. Isso não significa, porém, que os sentidos “esquecidos” deixem
de atuar, seja como oposição, seja como resíduo no interior do discurso
predominante. Estas interpretações aparecem como conteúdos que seriam
colocados em circulação em sentidos já estabilizados, divididos politicamente.
Lisboa (2010), a partir de pesquisa empírica com portugueses
sobre o imaginário deles em relação ao Brasil e aos brasileiros, observou
que a ênfase na sensualidade, na alegria e na cordialidade aparece como sendo
típicas da Identidade brasileira em Portugal (uso identidade em maiúscula
apenas para chamar atenção do que cola nessa formação imaginária sobre
o brasileiro, em terras lusitanas). Segundo o autor, essas estereotipias identitárias
– reproduzidas, inclusive, pelo próprio Estado brasileiro (em discursos
nacionais e internacionais de legitimação de uma suposta “brasilidade” e de
posicionamento turístico deste país no mundo) – compõem o fundamento
principal do universo de referências atribuídas ao Brasil em Portugal:

A alegria e o gosto pelo sexo são as características que representam os


brasileiros. Estão sempre a fazer festa, a dançar aquelas músicas que mexem
todo o corpo. E as brasileiras, então, são as mais quentes do mundo!
Deixam qualquer homem português (...) qualquer homem perturbado (...)
Cá, em Lisboa, é impossível não admirar as brasileiras, com suas ‘curvas’, a
baloiçar os seus belos corpos (LISBOA, 2010, p. 60, grifos meus).

______ [ 181 ]
O Brasil é um país alegre. Os brasileiros estão sempre a rir, a dançar,
a falar alto. (...) Os portugueses são mais fechados, mais europeus,
embora sejam um povo hospitaleiro. Se calhar, somos mais sérios, mais
racionais, e os brasileiros, mais festivos, mais emotivos, por assim dizer (...)
Não vês os brasileiros que estão cá a trabalhar, como costumam chamar a
atenção! (LISBOA, 2010, p. 60, grifos meus)4.

Alegria, sensualidade, sexualidade são, pois, denominações5 que


acompanham de forma constitutiva o imaginário português em relação ao
Brasil e aos brasileiros, segundo a pesquisa realizada por Lisboa (2010). Nessas
denominações, as mulheres brasileiras são as mais quentes e deixam “qualquer
homem português ou qualquer homem perturbado”: elas figuram, assim, como
uma marca natural de erotização da brasileira em Portugal.
Lisboa (2010) nos mostra que a sensualidade e a erotização estão
relacionadas diretamente à mulher. No entanto, as festas, as danças, a alegria
colam ao brasileiro de uma forma generalizada, independe do gênero, isto
é, naturalizam a relação entre ser brasileiro e ser um povo feliz: Os brasileiros estão
sempre a rir, a dançar, a falar alto, como se isso fosse a nossa marca registrada,
afinal o Brasil ainda é, nesse imaginário, o éden.
Cunha (2002), também a respeito do imaginário sobre o Brasil,
mostra que em relação à erotização do corpo feminino, a Carta de Caminha6
já fundava este sentido:

Desde a primeira referência aos homens vistos em terra, para além da


precisa e minuciosa descrição física que já levou alguns analistas a verem em
Caminha o ‘nosso primeiro etnógrafo’, importam aqui dois traços plasmados
do gentio que retornam, nuançados, inúmeras vezes: a nudez, referida
como geral – “pardos, todos, nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse
as vergonhas” -, mas apreciada repetidamente nas mulheres, e ainda
a receptividade, formada pela docilidade, alegria e ‘inocência’, daqueles que
encontrou. (CUNHA, 2002, p. 1, grifos meus)

Mas não é apenas a sensualidade e suas variações que habitam o


imaginário Português sobre o brasileiro e o Brasil. Na pesquisa realizada por
Lisboa (2008), a violência ocupa um lugar de destaque nessa naturalização de
sentidos próprios do Brasil e de sua gente:

O Brasil é bonito, mas perigoso. Vocês lá matam as pessoas como


matam animais. Todos os dias há notícias de que morreram não sei
quantos. Desculpe lá, mas parece que vocês têm, no sangue, a tradição
de vingança, a tradição de matar. Em qualquer coisa, até no futebol,
aproveitam para se vingar com crimes. Por isso que evito muito contato
com esses brasileiros daqui de Lisboa. Não, não! Não dá para confiar.
(LISBOA, 2010, p. 62, grifos meus).
______ [ 182 ]
Até gosto do Brasil. Gosto das praias, do Carnaval, da alegria, das
telenovelas. Mas a violência é demais, assusta-nos. Aquilo lá já não tem
limites. É muito crime! Imagino que as pessoas não podem andar sossegadas
na rua, pois os ladrões, os bandidos (...) esses tipos atacam a toda hora.
Os brasileiros são mesmo muito violentos, se bem que até há raças
piores, como os ciganos, os pretos e esses do Leste. (LISBOA, 2010, p. 62,
grifos meus).

A relação entre haver “todos os dias notícias” e o brasileiro parecer


ter “no sangue a tradição da vingança, a tradição de matar” é reproduzida de
forma a constituir o sujeito e o sentido, naturalizando um imaginário sobre o
brasileiro e sobre o Brasil.
É histórico esse misto de paraíso e terra perigosa nos relatos dos
europeus. O Brasil sempre apareceu como essa mistura, onde a selva (e a
selvageria) se sobrepõe à realidade urbana; onde praias paradisíacas e
animais estranhos convivem em uma paisagem marcada pela abundância e
pela fertilidade. Antes eram os relatos misturando o ficcional e a narrativa
documental e os livros de viagem ilustrados com imagens (muitas vezes irreais)
de animais bizarros, florestas infindas e estranhos habitantes nus. Hoje, são
os panfletos turísticos, as imagens televisivas, as reportagens e fotografias
que difundem cenas de uma mistura de paraíso e “terra incógnita”, cheia de
emboscadas e perigos:

Desde os primórdios, a concepção europeia do novo continente teve


duas facetas, completamente opostas: por um lado, a terra era vista quase
sempre como um éden; por outro, o homem aparecia demonizado. São,
pois, intermináveis os exemplos de exaltação da abundância de vegetação, da
quantidade de espécies – seja da fauna ou da flora – da exuberância e até
da longevidade (relatos mencionam que os índios chegavam a 180 anos!)
proporcionada pelo clima esplêndido do Brasil. Com o mesmo peso,
registrava-se o espanto diante dos ritos canibalescos do selvagem.
(CORRÊIA, 2011, p. 1, grifos meus).

Holanda (1996, p. 375) afirma que a percepção europeia sobre a


América estava ligada à interpretação quase literal feita dos textos bíblicos
na época dos descobrimentos. O Velho Mundo acreditava na existência de
uma Idade de Ouro perdida, crença que marcou o espírito europeu desde a
Antiguidade. O novo território ressurgia como éden reencontrado:

E como, em um e outro caso [bíblico e tradição greco-latina], o paraíso


perdido fosse fabricado para responder a desejos e frustrações
dos homens, não é de admirar que ele aparecesse, em vez de realidade
morta, como um ideal eterno e, naturalmente, uma remota esperança.
(HOLANDA, 1996, p. 375, grifos meus).
______ [ 183 ]
A nossa história, portanto, se faz em torno desse imaginário. O
papel do Brasil para os europeus, com suas imagens cristalizadas, ainda
está atrelado à ideia da terra prometida. Daí o escritor austríaco Stefan Zweig
deslizar este sentido para o de país do futuro. Destino para aqueles que desejam
mudar radicalmente de clima; território adequado para investidores e para
turismo exótico (e por que não erótico?); mas um lugar perigoso: todos esses
aspectos da visão do Brasil na Europa descendem do imaginário construído
pelos antigos viajantes e continua vivo, produzindo efeitos no pensamento
contemporâneo.
Ou, como afirma Souza Santos (2003), sobre a forma como a América
foi representada pelos europeus nos relatos da descoberta do novo continente
ou nas narrativas de viagens:

A maioria dos relatos da descoberta do novo continente e das narrativas


de viagens reflete uma peculiar fusão de imagens idílicas, utópicas e
paradisíacas com as de práticas cruéis e canibalísticas dos nativos. De
um lado, a natureza luxuriante e benevolente; do outro, a antropofagia
repulsiva. (SOUZA SANTOS, 2003, p. 30, grifos meus)

Segundo, ainda o autor, a forma de representação desse continente,


produzida pelos portugueses, era um reflexo da forma como Portugal também
havia sido discursivizado pelos europeus do norte:

As características com que os portugueses foram construindo, a partir


do século XV, a imagem dos povos de suas colónias são muito
semelhantes às que eram atribuídas a eles próprios, a partir da mesma
altura, por viajantes, comerciantes e religiosos vindos da Europa do
Norte: do subdesenvolvimento à precariedade das condições de vida,
da indolência à sensualidade, da violência à afabilidade, da falta de
higiene à ignorância, da superstição à irracionalidade. O contraste entre
Europa do Norte e Portugal está bem patente no relato do frade Claude de
Bronseval, secretário do abade de Clairvaux, sobre a viagem que fizeram
a Portugal e Espanha entre 1531 e 1533. Queixam-se recorrentemente
das péssimas estradas, do caráter rústico das pessoas, do alojamento e
tratamento paupérrimos, bem “à maneira do país”, do hábito dos nobres
ou homens honrados de reservarem para albergar os estrangeiros as casas
mais miseráveis a fim de não serem vistos como estalajadeiros. Quanto à
educação dos frades, dizem, “são poucos os que nestes reinos hispânicos
gostam de latim. Eles não gostam senão da sua língua vulgar”. (SOUZA
SANTOS, 2003, p. 31, grifos meus)

Pêcheux (2001) define que as FIs sempre resultam de processos


discursivos anteriores (Europa do Norte sobre Portugal, este sobre a África,
______ [ 184 ]
a Ásia, e o Brasil, e este sobre outros países periféricos do mundo etc., como
um reflexo no espelho). Quero dizer, com essa retomada de Pêcheux, que os
discursos sobre o Brasil e o brasileiro funcionam, portanto, atravessados por
esses processos discursivos que constroem os referentes Brasil e brasileiros.
As FDs, enquanto mecanismos de funcionamento discursivo, não
dizem respeito a sujeitos físicos ou lugares empíricos, mas, como disse
acima, às imagens resultantes de suas projeções. Assim, segundo ORLANDI
(2000), são mecanismos que fazem com que os discursos funcionem nesse
jogo de imagens. Desse modo, o que está presente, não são os sujeitos físicos
(a brasileira cobiçada pelo português) nem os lugares empíricos (Brasil)
que funcionam no discurso, mas as imagens (mulher/homem/Estado) que
resultam de projeções sustentadas pela história, pelo social e pela ideologia.
A ideologia, compreendida como elemento determinante do sentido,
está presente no interior do discurso e , ao mesmo tempo, reflete-se na
exterioridade. Ela não é exterior ao discurso, mas o constitui. Dessa forma,
a ideologia é entendida como efeito da relação entre o sujeito e a linguagem,
não sendo consciente e se colocando presente em toda a manifestação do
sujeito, permitindo, assim, sua identificação com a FD que o domina. Tanto a
crença do sujeito de que possui o domínio de seu discurso, quanto a ilusão de
que o sentido já existe como tal, são, pois, efeitos ideológicos.
Algumas perguntas foram elaboradas a partir do trabalho sobre o
Brasil e o brasileiro realizado por Lisboa (2010): Quais violências seriam essas
noticiadas todos os dias? Noticiadas por quem? Praticadas em que situação?
Quem são os brasileiros violentos que trazem no sangue a tradição da vingança?
Se é tradição, ela parte de onde? Por que os brasileiros são mesmo muito
violentos? Quais sentidos de violência aqui são (re)produzidos pelos meios
de comunicação e são relacionadas e colados aos brasileiros para que esses
sentidos nos constituam? No entanto, essas questões que não são respondidas
em virtude do objetivo da pesquisa de Lisboa (2010) comparecem nas FIs
sobre o brasileiro, na pesquisa realizada por ele.
Dizemos uma palavra para não dizermos outra. Essa escolha da
ordem do consciente produz, em cada um de nós, a sensação de estar no
controle. No entanto, já fazemos escolhas a partir de um lugar específico que
ocupamos na ordem do discurso. Os efeitos dessas escolhas, por outro lado,
estão colados apenas em nós. Para falar do Brasil e do brasileiro, dizemos A
no lugar de B. A e/ou B precisam ter história pra produzir sentido.
As denominações (palavras, expressões ou locuções), assim,
compõem um grande bloco de produção de sentidos em relação ao que se
referem. Denominar não é escolher aleatoriamente designações; é discurso
______ [ 185 ]
e, como tal, tem história, determinações que permitem tais nomes e/ou
impedem outros. As denominações criam sítios de significância (ORLANDI,
1996, p. 15), ou melhor, constroem regiões discursivas que produzem efeito
de sentido sobre o denominado. O ato de denominar, portanto, relaciona
linguagem e memória, construindo e desconstruindo efeitos discursivos de
referencialidade (SOARES & MEDEIROS, 2012).
A linguagem, no processo de denominação, é capaz de estabelecer
uma referência e uma designação, de forma a tornar visível aquilo a que se
refere, de forma a dar existência àquilo que se nomeia. Em contrapartida,
sentidos se colam como se houvesse uma relação sempre já-lá estabelecida
entre a palavra e a coisa. Conforme Mariani (1998),

Denominar não é apenas um aspecto do caráter de designação das línguas.


Denominar é significar, ou melhor, representa uma vertente do processo
social de produção de sentidos. O processo de denominação não está na
ordem da língua ou das coisas, mas organiza-se na ordem do discurso,
o qual, relembrando mais uma vez, consiste na relação entre o linguístico e
o histórico-social, ou entre linguagem e exterioridade. (MARIANI, 1998, p.
118, grifos meus).

E, na ordem do discurso, as denominações fazem emergir posições-


sujeito dos enunciadores, evidenciando, assim, FDs às quais estão vinculadas.
A linguagem e a exterioridade linguageira representam uma posição em
relação ao que se denomina; estão na confluência da língua e da história e
produzem sentidos.
Para a Análise de Discurso de orientação francesa (doravante, AD), não
se trata, então, de analisar a referência, o referente ou o significado, até porque, neste
domínio teórico, eles são compreendidos como “relações instáveis produzidas
pelo cruzamento de diferentes posições de sujeito” (GUIMARÃES, 1995),
mas trata-se de analisar o processo de construção discursiva, ou seja, o modo
como os discursos em relação podem produzir a ilusão de objetividade e
evidência para uma realidade, como se o sentido já estivesse lá.
Portanto, a inscrição de sujeitos ao formularem, na concepção de
Orlandi (1998, p. 50), dá-se a partir de posições determinadas, “sob efeito
da ilusão subjetiva, afetado pela vontade de verdade, pelas intenções,
pelas evidências dos sentidos e pela ilusão referencial”. Por essa razão, são
construídos gestos interpretativos que possibilitam injunção para o sujeito
que necessita conferir sentidos diante de objetos simbólicos. Nesta formação
de discursos proposta pelos jornais, cristaliza-se uma memória como legítima
para a interpretação da história, num lugar de formulações que se determina

______ [ 186 ]
como autorizado, promovendo uma intervenção no real do sentido tomado
como estável e natural.
Temos, assim, a mídia como um lugar de interpretação legitimada
para a administração dos sentidos que lhe torna possível a existência. Ela,
como gestora da informação, fixa direções interpretativas, observáveis nos
pontos em que se busca controlar o sentido para que ele se torne único, na
tentativa de contenção de seu movimento constitutivo. Este processo, pois,
homogeneiza os sentidos para os fatos cobertos pela imprensa, criando uma
interpretação num efeito de leitura que visa instaurar uma memória.
No funcionamento social, os jornais estão autorizados a produzir
leituras da realidade que possam ser consideradas legítimas e produtoras de
um universo de crenças constituidoras do discurso social. Instituem-se, assim,
modelos de compreensão da realidade que visam explicar e desambiguizar
o mundo (MARIANI, 1999, p. 112). É, portanto, neste imaginário de
credibilidade construído pelos jornais que interpretações de acontecimentos
podem ser tomados como verdade e se naturalizarem no efeito de leitura.
No entanto, este imaginário se faz necessário para a manutenção da
própria imprensa. Bucci (2004, p. 51) afirma que a imprensa deve oferecer
confiabilidade necessária para a confirmação deste imaginário e também para
a validação dos jornais na relação com seus leitores.
Compreender a forma como a imprensa escrita portuguesa produz
efeitos de sentido sobre o brasileiro e o Brasil é compreender a maneira pela
qual Portugal redesenha o Brasil no panorama mundial. Nessa compreensão
em momentos de tensão, como é o caso da crise econômica na Zona do
Euro, pode-se percorrer a forma como a língua é ressignificada e como
novos-outros-sentidos se fixam. Gadet & Pêcheux (2004) afirmam que toda
desordem social é acompanhada de uma espécie de “dispersão anagramática”
(aspas do autor):

O equívoco aparece exatamente como o ponto em que o impossível


(lingüístico) vem aliar-se à contradição (histórica); o ponto em que a língua
atinge a história. A irrupção do equívoco afeta o real da história, o que
se manifesta pelo fato de que todo processo revolucionário atinge
também o espaço da língua [...] As massas ‘tomam a palavra’ e uma
profusão de neologismos e de transcategorizações sintáticas induzem
na língua uma gigantesca ‘mexida’, comparável, em menor proporção,
àquela que os poetas realizam. (GADET & PÊCHEUX, 2004, p. 64, grifos
nossos).

Há, pois, nesses processos de crise, revolução etc., as massas que


passam a falar, ao mesmo tempo em que passam a “fazer reviver em uma
______ [ 187 ]
mesma palavra seus diferentes sentidos vizinhos, esquecidos durante muito
tempo [e a] tornar próximas [algumas] palavras afastadas umas das outras”
(GADET & PÊCHEUX, 2004, p. 66). Essa investigação permite, além da
possibilidade de compreensão da língua que se inscreve na história e de
compreender de que forma a língua se desloca, estabelecer de que maneira
uma nova forma-sujeito se desenha em momentos de crise. Segundo Payer
(2005), esta nova forma-sujeito tem relação direta com o Texto da Mídia:

Os discursos, materializados em textos, desempenham papel fundamental


na constituição social. Se o discurso religioso fundamentou a forma-
sujeito na Idade Média e o jurídico estruturou a forma-sujeito cidadão,
base do funcionamento do Estado Moderno, o Texto Bíblico e o Jurídico
(Foucault, 1987; Haroche, 1984) forneceram sustentação a estas formações
sociais, fundamentando-as simbolicamente, fazendo circular enunciados
capazes de constituir indivíduos em sujeitos. Dos textos fundamentais,
determinados enunciados condensam a interpelação como enunciados-
máxima, eu diria: a obediência às leis divinas, no religioso, a obediência civil,
no jurídico. Vou aqui correlacionar, no domínio do discurso, o estatuto
do Texto Bíblico e do Texto Jurídico ao texto da Mídia, em sua relação
direta com as novas tecnologias de linguagem, considerando-o como o texto
fundamental que condensa a discursividade de um novo Sujeito histórico
que passa a interpelar ideologicamente os indivíduos em nossa época:
o chamado ‘Mercado’ - mercado neoliberal em sua forma atual globalizada
– ao qual é preferível nomear, concordando com Guattari e Rolnik (2006),
‘capitalismo mundial integrado’. (PAYER, 2005, p. 4, grifos nossos).

Interessa-nos estudar os processos discursivos decorrentes das


transformações (o fortalecimento do poder do Mercado diante da diluição
do poder do Estado, ou identificar modos de subjetivação vigentes) e o
modo como se articulam a língua/linguagem, os sujeitos e a ideologia. O
Texto da Mídia, sobretudo o que faz uso da imagem, opera com especial
força pragmática sobre os indivíduos. A introdução da imagem tem estatuto
semelhante ou mais forte do que a invenção da imprensa (PAYER, 2005). As
formas de interpelação da imagem são específicas.
Se todo discurso tem a propriedade de produzir evidências de real,
esta capacidade é potencializada no discurso com base da imagem. Além
disso, as imagens da mídia, como texto fundamental do Sujeito Mercado
(PAYER, 2005), são investidas de dimensões gigantescas, a exemplo de
outdoors, constituindo-se em verdadeiros espetáculos textuais. Quais efeitos
essas imagens operam na subjetividade humana?
Mais do que descrever a interpelação da Mídia e da imagem, queremos
enfatizar que esta interpelação não se dá simplesmente pelas possibilidades
empíricas das diversas materialidades dos textos, que por si já são enormes.
______ [ 188 ]
Esse poder de interpelação se exerce não apenas porque opera a partir da FD
Mercantil, mas, sobretudo, porque opera na base de nova formação ideológica,
a exemplo da ideologia religiosa e da ideologia jurídica (PAYER, 2005). Sob
a égide do Capitalismo Mundial e Integrado é que vemos configurar-se uma
nova forma-sujeito.
Um dos atributos fundamentais desta formação social constitui-se
pela exagerada oferta de sentidos, que produz em sua discursividade efeitos
de dispersão, com base na “língua de vento da propaganda” (GADET &
PÊCHEUX, 2004), com seus sentidos polissêmicos, equívocos, ambíguos,
incompletos – insinuando liberdade de escolhas ao sujeito, sem que estes possam
notar os jogos sinuosos com que as formações discursivas instaladas nessa
formação ideológica determinam o sujeito, tomando-o na injunção à
dispersão, ao desvanecimento das memórias coletivas. Quanto ao enunciado-
máxima dessa formação ideológica, com poder de imprimir a evidência do
sentido e de fazer crer nos enunciados até o ponto de o indivíduo se conduzir
segundo essa crença, disperso e onipresente na mídia, o discurso se imprime
através de inúmeros textos (PAYER, 2005).
É possível, então, a partir do que propomos aqui, adensar os
conhecimentos em termos de funcionamento do discurso jornalístico, da
forma como ele se materializa através da imagem e de textos, hiperlinks (nas
mídias online) etc. e produz novos outros sentidos sobre o Brasil e o brasileiro
na contemporaneidade.
Para tanto, destacamos, então, cinco sequências discursivas (SD), uma
de cada matéria citada acima, para pensar a forma como o jornal Correio da
Manhã, em janeiro de 2011, significa o Brasil e o brasileiro em suas páginas.
O critério usado para selecionar essas SDs foi o uso, no texto, de alguma
palavra que fizesse referência ao Brasil/brasileiro como forma de recuperar
esse significante, ainda que as palavras Brasil/brasileiro não aparecessem,
necessariamente, no texto. Quero dizer, quando, por exemplo, ao invés de
Brasil, pudesse aparecer, por exemplo, como na SD1, Rio de Janeiro.
Antes de apresentar o funcionamento dessas SDs, é importante
mencionar que todos os jornais (o Correio da manhã, o Diário de Notícias, o
Expresso, o Jornal de Notícias e o Público) que compõem o corpus desse projeto de
pesquisa, do qual resulta este artigo, sem exceção, nos primeiro dias de janeiro
de 2011, trouxeram em suas páginas, notícias da posse da nova presidenta
do Brasil. E isso já nos dá a dimensão e a importância da circulação dessas
informações em terras portuguesas, os laços que unem o Brasil e o Portugal e,
sobretudo, em tempos de crise, o que representa o Brasil para Portugal nesses
novos tempos.
______ [ 189 ]
APRESENTAÇÃO E ANÁLISES
DAS SEQUÊNCIAS DISCURSIVAS

1. Jornal Correio da Manhã

(SD1) Apesar de ser avessa à fama, a presidente brasileira Dilma Rousseff


já tem até uma boneca personalizada. Criada pelo artista plástico Marcus
Baby, do Rio de Janeiro, a ‘Barbie Dilma’ é baixinha e um pouco anafada,
e enverga um vistoso vestido vermelho, a cor preferida da presidente.
(CORREIO DA MANHÃ, MUNDO, - nota - “Mundo Louco, Artista cria
‘Barbie Dilma’”, dia 09 de janeiro de 2011, p.36).

O fortalecimento do poder d’O Mercado mencionado por Payer (2005)


sobre um novo sujeito histórico que interpela ideologicamente os indivíduos
em nossa época identifica o Brasil e, consequentemente os brasileiros, com
o funcionamento do Capitalismo Mundial: somos uma economia que cresce,
consumimos, produzimos. Tão logo a presidenta toma posse já existe uma
boneca pronta para ser consumida, a Barbie Dilma, assim como existem
bonecos do presidente dos Estados Unidos Barack Obama. Uns diriam que
se trata de uma homenagem; outros, que o Mercado não perde tempo quando
a ordem é consumir.
O Brasil, assim como a Rússia, a Índia e a China, o chamado BRIC, se
destacam no cenário mundial como países em desenvolvimento. A hipótese
formulada por Jim O’Neill, chefe de pesquisa em economia global do grupo
financeiro Goldman Sachs, é a de que o potencial econômico desses países
é tão grande que eles podem se tornar as quatro economias dominantes do
mundo até o ano 2050. Sob a égide do Capitalismo Mundial e Integrado é
que vemos configurar-se essa nova forma-sujeito. O poder de interpelação se
exerce não apenas porque opera a partir da Formação Discursiva Mercantil,
mas, principalmente, porque opera na base de nova formação ideológica,
a exemplo da ideologia religiosa e da ideologia jurídica, como afirma Payer
(2005).
O modo como se articulam a língua, os sujeitos e a ideologia são
decorrentes das transformações dos processos discursivos de subjetivação
vigente: o fortalecimento do poder do Mercado diante da diluição do poder
do Estado significando o sujeito. Esses sujeitos, na contemporaneidade, são
um efeito da onipotência do Mercado como instância máxima de poder. As
relações sociais são, portanto, marcadas, em sua maioria, pela submissão à
circulação da Mercadoria.

______ [ 190 ]
Ainda sobre o aspecto mercadológico, a próxima SD, do dia 03
de janeiro, torna evidente o novo lugar ocupado pelo Brasil na ordem da
economia mundial.

(SD2) Um dia depois de ter assumido funções como a primeira mulher


na Presidência do Brasil, Dilma Rousseff recebeu o primeiro-ministro
português, José Sócrates, num encontro em que a questão da crise da
dívida soberana, que afecta os países periféricos da Europa – Portugal
incluído – foi tema de debate. (...) Apesar de ter garantido que não foi
ao Brasil para aliciar o governo de Dilma a comprar a dívida pública
portuguesa, o primeiro-ministro admitiu que ‘deu conta daquele que está a
ser o esforço do Governo português para superar este momento’. E deixou
o recado: ‘A dívida soberana portuguesa está no mercado e é, aliás, um
bom investimento, que vale a pena ser feito. Isto dependerá daquilo que
forem as condições das autoridades brasileiras’. (...) José Sócrates fez ainda
questão de garantir a Dilma apoio total no caso de uma candidatura do
Brasil ao conselho de segurança das Nações Unidas. ‘Tive ocasião de dizer
à Presidente do Brasil que pode contar com Portugal como o mais fiel
e mais próximo aliado naquela que vai ser a caminhada do Brasil para
ocupar o espaço no concerto das Nações’, acrescentou Sócrates no final
do encontro. (CORREIO DA MANHÃ, ATUALIDADE, p. 5, “Sócrates
e Dilma discutem crise da dívida soberana”, dia 03 de janeiro de 2011,
grifos nossos).

Dívida soberana é uma dívida assumida/garantida por ou pelo


Estado ou o seu banco central. Ela pode ser interna, quando os credores
são residentes no país, e externa, quando resultante de empréstimos e
financiamentos contraídos no exterior. Se for externa, a dívida soberana
pode ser bilateral (de um país para outro), multilateral (de um país para com
uma organização multilateral) ou privada. Ela pode se constituir de créditos
bancários, de empréstimos de outros Estados ou instituições oficiais, ou
de títulos emitidos pelo Tesouro do país devedor. Esses títulos podem ser
negociados no mercado internacional desde que sejam emitidos em uma ou
mais divisas conversíveis em unidades de conta universalmente reconhecidas
(ATAÍDES, 2002).
A crise da dívida pública europeia, muitas vezes referida como crise
da Zona do Euro, é uma crise financeira em curso que, para alguns países
da Zona do Euro ( entre os mais atingidos estão Portugal, Irlanda, Itália,
Grécia e Espanha), tornou difícil ou mesmo impossível o pagamento ou o
refinanciamento da sua dívida pública.
Os títulos portugueses emitidos pelo Tesouro estão à disposição e,
segundo o primeiro-ministro (e não poderia ser diferente, já que do lugar que
ele ocupa só é permite que ele diga isso), é um bom investimento e, por isso,

______ [ 191 ]
vale a pena ser feito.
O Brasil, como é possível perceber na fala do primeiro-ministro,
é, sobretudo, nesses tempos de crise, um aliado que pode contribuir
financeiramente para amenizar a crise portuguesa. É um país emergente com
divisas e mantém, com Portugal, relações econômicas. O Brasil é o quarto
maior destino dos investimentos diretos portugueses no exterior, segundo
o Itamaraty. A troca comercial entre os dois países, em 2013, foi de US$ 2,6
bilhões. Em outro momento, o primeiro-ministro declarou que a economia
do Brasil está num processo de internacionalização e espera que as empresas
brasileiras, a exemplo da Embraer, Votorantim e Camargo Correa, vejam Portugal
como uma oportunidade para este fenômeno.
Ainda que o primeiro-ministro tenha dado garantias de que não foi
ao Brasil para aliciar o governo, a dívida soberana portuguesa seria um bom
investimento. É interessante perceber o funcionamento de aliciar para o Brasil
e para Portugal. Lá (nos encontramos, neste momento, em Portugal), aliciar
tem um sentido, pelo menos o mais corente, de atrair com falsas promessas;
aqui, o efeito de sedução, mas, não necessariamente, com um sentido negativo.
De qualquer forma, o primeiro-ministro admitiu que “deu conta
daquele que está a ser o esforço do Governo português.” O jornal português
produz, assim, sentido de que, financeiramente, o Brasil está em condições de
contribuir com Portugal, por se tratar de um bom negócio que beneficiaria
também Portugal. Portugal, segundo o primeiro-ministro, é o mais fiel e o
mais próximo aliado e, por isso, apoia totalmente o Brasil nessa caminhada de
ocupação do espaço no concerto das Nações.
Na SD abaixo, a construção de um discurso político sobre o Brasil
ser um país do futuro e um país de esperanças continua produzindo efeitos no
discurso do governo brasileiro, segundo o jornal, e colaborando para com o
imaginário, também português, que reforçando a ideia contida em Holanda
(1996) sobre o Brasil.

(SD3) Dilma Rousseff, de 63 anos, deu uma clara indicação do rumo que
pretende seguir no seu governo, e reforçou: ‘Sob a liderança dele, o povo
brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história, e a minha
missão é consolidar essa passagem e avançar no caminho de uma nação
das mais geradoras de oportunidades’. Dilma repetiu a promessa, feita
na campanha e no dia da eleição, de ter como sua principal meta erradicar
a pobreza extrema no Brasil, criar avanços em áreas críticas como saúde
e a segurança. Não esqueceu também, e realçou em vários momentos do
discurso, o facto de ser a primeira mulher presidente e enalteceu as mulheres.
(CORREIO DA MANHÃ, MUNDO, p. 32, “Tomada de Posse do 40.º
Presidente da República – ‘Venho consolidar a obra de Lula’”, 02 de
janeiro de 2011, grifos nossos).
______ [ 192 ]
A história do Brasil, produzida pelo próprio país, é ainda em torno
do imaginário do país do futuro presentes nas denominações: rumo que pretende
seguir, avançar no caminho, principal meta, erradicar a pobreza, criar avanços etc. Ou
seja, o papel do Brasil para os europeus está atrelado à ideia da terra prometida.
E para um político recém-chegado ao cargo, não existe um lugar pronto, ele
deve estar sempre em construção. O lugar, pelo menos na política brasileira,
deve precisar de muitas melhorias essenciais para que assim se justifique a
sua presença. Essas representações nos atravessem de modo constitutivo:
sujeito e sentido se constituindo ao mesmo tempo. São os objetos simbólicos,
descritos por Orlandi (2002), que são por definição não-transparentes, que
produzem sentidos, e os gestos de interpretação realizados pelos sujeitos.
No entanto, não apenas a ideia de país do futuro, da esperança, parece
produzir efeitos nos jornais portugueses, sobre o imaginário em torno do
que seja ser brasileiro. Tirar proveito de tudo, a velha e eficaz Lei de Gerson7
parece aqui também nos constituir: o malandro no bom sentido, mas também
o mal intencionado, aquele que quer levar vantagem em tudo circula entre as
matérias jornalísticas sobre o que nos constitui.
O imaginário sobre o brasileiro contaminado pelo estilo de vida
fácil, na SD4, parece encontrar eco no comportamento também cristalizado,
nos meios de comunicação, no imaginário do próprio brasileiro sobre si e,
naturalmente, também em relação à classe política: aqueles que desrespeitam
constantemente as fronteiras entre espaço público e privado, os que
não conseguem discernir entre os interesses coletivos e particulares, que
corrompem e são corrompidos, que superfaturam ou subfaturam contratos
de acordo com a conveniência, que são coniventes com desvios de verbas,
essa prática, inclusive, faz parte de “suas atribuições” como parlamentares.
Pode-se até discutir o caráter legal desse comportamento, no entanto, em se
tratando de valores morais como a decência, a honestidade, a civilidade, a
democracia, todas elas são deploráveis e condenáveis na mesma medida.
Uma semana depois de deixar a presidência, Lula continua a manter
privilégios ilegais em sua nova condição, à custa dos contribuintes, continua a ser favorecido,
tratamento privilegiado, continua a gozar de benefícios estatais são algumas das
denominações que constituem o caráter do ex-presidente e, por deslizamento,
reforçam o imaginário sobre ser brasileiro.
(SD4) Uma semana depois de ter deixado de ser presidente do Brasil,
Lula da Silva continua a manter os privilégios a que tinha direito no
cargo, mas que são ilegais na sua nova condição civil. Um dos casos
que estão a suscitar particular polémica é o facto de Lula e a família terem

______ [ 193 ]
ido passar férias numa base do Exército no Litoral de São Paulo, à custa
dos contribuintes. (...) outra denúncia confirma que Lula continua a
ser favorecido pelo actual governo. Os passaportes diplomáticos dos dois
filhos, Cláudio Luís, 25 anos, e Marcos Cláudio, de 39, foram renovados,
garantindo-lhes tratamento privilegiado nas viagens internacionais.
Segundo a lei do país, a concessão de passaporte diplomático de filhos de
presidentes está apenas prevista enquanto estes ocupam o cargo e desde
que os filhos tenham menos de 21 anos, o que não é o caso. (CORREIO
DA MANHÃ, MUNDO, p. 30, “Ex-Presidente continua a gozar de
benefícios estatais – Privilégios de Lula abrem polémica”, de 07 de
janeiro de 2011, grifos nossos).

A SD5, diz respeito, também ao caráter do brasileiro por deslizamento


de sentido em relação ao que o CM põe em circulação, agora, sobre o
comportamento da atual Presidenta da República. É importante dizer que
esta matéria é ilustrada por uma fotografia da presidenta fazendo o sinal da
cruz, com a seguinte legenda: “Dilma passou grande parte da campanha a
afirmar a sua fé em Deus”. Sobre o papel da fotografia na imprensa, Soares &
Zanella (2011) afirmam que

Há de se levar em consideração que a fotografia também é produção,


principalmente quando falamos de fotografia jornalística. Os sujeitos
(na acepção da AD) envolvidos, atravessados pelo ideológico e pelo
inconsciente, não o deixam de ser – e nem poderiam – na fotografia.
Assim sendo, os sentidos que ela produz estão relacionados com o meio
de comunicação social que a comporta e veicula e, de forma mais geral,
com as condições de produção da “situação jornalística”. Em resumo, lemos
a fotografia a partir daquilo que a FD a que ela se vincula permita que
seja lido. Os sentidos que se levantam a partir da imagem são determinados
por outros sentidos que já significam. (SOARES & ZANELLA, 2011, p.3,
grifos nossos).

Não vou, neste artigo, discorrer sobre a fotografia na mídia. A citação


acima ilustra apenas o nosso ponto de vista em relação ao seu funcionamento
no discurso jornalístico. A fotografia, portanto, não vale mais do que mil
palavras, como tantas vezes ouvimos/reproduzimos sobre as imagens; ela é
um discurso e produz determinados sentidos a partir do lugar que ocupa. A
fotografia está a serviço de uma FD.

(SD5) Uma das primeiras decisões da recém-empossada presidente


brasileira Dilma Rousseff foi mandar retirar do gabinete presidencial a
Bíblia e o crucifixo que há décadas ocupavam lugar de destaque na sala
onde trabalham os presidentes. Uma decisão estranha, para quem
passou grande parte da campanha eleitoral a afirmar insistentemente
a sua fé. (...) Recorde-se que durante a primeira parte da campanha para

______ [ 194 ]
as presidências de Outubro Dilma foi acusada de não ter religião e de
defender o aborto. Depois de analistas terem dito que ela não foi eleita
logo à primeira volta por esse motivo, Dilma passou a ir diariamente à
missa, fez-se deixar fotografar ao lado de pastores e bispos e, naquela
que foi considerada a cartada decisiva para atrair milhões de eleitores
mais religiosos, chegou mesmo a afirmar, durante uma visita ao
Santuário de Nossa Aparecida, padroeira do Brasil, que o cancro que
enfrentou há dois anos a aproximou de Deus. Agora, pelo visto, a religião
deixou de lhe interessar. (CORREIO DA MANHÃ, MUNDO, BRASIL
– “Reviravolta – Dilma choca religiosos”, do dia 10 de janeiro de 2011,
grifos nossos).

Da SD5, é possível depreender alguns sentidos. Primeiro, é importante


destacar que ela fala de dois momentos, que se completam, para cristalizar e
fazer circular o caráter da presidenta do Brasil: um antes e um depois das
eleições, mas também um antes e um depois referindo-se, respectivamente,
ao primeiro e ao segundo turno das eleições.
De acordo com esta SD, o comportamento de Dilma, depois de
eleita, é, no mínimo, incoerente com a imagem veiculada pela notícia na
qual ela é fotografada fazendo o sinal da cruz, que circulou, segundo o CM,
durante as eleições ocorridas em 2010 para a Presidência da República. Essa
incoerência está inscrita na denominação “uma decisão estranha” (retirar do
gabinete presidencial a Bíblia e o crucifixo que há décadas ocupavam lugar de destaque
na sala onde trabalham os presidentes).
Para o jornal, no entanto, não há estranheza alguma em, num governo,
por natureza, laico, existir há décadas uma bíblia e um crucifixo na sala de
trabalho da presidência da república. O CM continua didatizando a notícia
com o uso do antes e do depois, durante as eleições: antes das eleições,
referindo-se ao primeiro turno, Dilma foi acusada de não ter religião e de defender
o aborto. Comportamento, segundo o CM, de quem não é religioso, porque,
para defender o aborto, somente não professando uma religião. Depois, agora
durante o segundo turno, de analistas terem dito que ela não foi eleita logo à primeira
volta por esse motivo, Dilma passou a ir diariamente à missa, fez-se deixar fotografar ao
lado de pastores e bispos e, naquela que foi considerada cartada decisiva, para
atrair milhões de eleitores mais religiosos. Cartada decisiva é como o CM
denomina a estratégia usada pela presidenta para atrair s votos de milhões de
religiosos, como se esses votos fossem os decisivos para que ela fosse eleita.
Além disso, o CM não considera, por exemplo, a posição e o desempenho
do outro candidato, o responsável pela acusação, em relação aos assuntos
religiosos.
A SD1, por exemplo, fala da cor vermelha como sendo a cor favorita

______ [ 195 ]
da presidenta. Vermelho também é a cor que representa o comunismo. E,
frequentemente, é dito que a ideologia comunista defende explicitamente o
Estado ateu e a supressão da religião. As relações que podem ser feitas seriam
Dilma é comunista, Dilma nega a religião, Dilma defende o aborto e, pelas
evidências apresentadas pelo CM, ela decidiu retirar a bíblia e o crucifixo da
sala de trabalho da presidência.
O caráter leviano cola-se ao comportamento, segundo o CM, da
presidenta, já que antes e depois, nas eleições, e depois de eleita ela muda de
convicções. Inclusive, essa mudança apenas reforça a veracidade das acusações
de defender o aborto e de não ter religião. Agora, pelo visto, a religião deixou de lhe
interessar. De duas uma, ou vale tudo durante o processo eleitoral, no Brasil,
ou aquelas acusações têm algum fundamento.
Esses sentidos produzem também outros que não são ditos, mas que
são passíveis de serem depreendidos a partir dessas SDs analisadas: uma certa
ingenuidade significando o brasileiro, porque não percebe o jogo político. Há
também alguma dissimulação no nosso comportamento, já que queremos
tirar proveito de certas situações. Há, sobretudo, alguns comportamentos que
o CM consegue fazer circular sobre o Brasil e o brasileiro que o próprio
brasileiro não consegue alcançar.

2. Jornal Expresso

(SD6) Duas militantes clandestinas estiveram na mesma cela em 1970.


Uma delas viria a tornar-se na primeira Presidente do Brasil e tomou
posse há poucos dias (ver caixa). A outra, Maria Aparecida dos Santos (foto
maior) depois de sair da prisão, levou uma vida longe da ribalta, embora
mantendo os seus ideias. O retrato de Dilma, enquanto jovem presa
política (imagem a preto e branco), feito por Cidinha revela uma jovem
que gesticulava muito e que passava literatura marxista e manuais de
economia às suas vizinhas. Que partilhava as tarefas do dia a dia e, ao
contrário do que seus inimigos políticos têm dito, “não era nada que
parecesse com uma generala”. (EXPRESSO, BRASIL, “Reviver o passado
no presídio Tiradentes”, 8 de janeiro de 2011, grifos meus).

A SD6, descreve, principalmente, o lugar que a nova presidenta do


Brasil pode/deve ocupar em virtude do seu passado como militante clandestina/
leitora de Marx. É importante perceber os efeitos de sentido das denominações
produzidas pelo jornal para a presidenta Dilma Rousseff: militante clandestina;
vive próxima da ribalta; presa política; jovem que gesticulava muito; leitora de Marx;
leitora de manuais de economia; solidária com as companheiras de cela; generala para seus

______ [ 196 ]
inimigos políticos, construindo um lugar para esse governo a partir dos sentidos
já-la8 sobre um (ex)militante de esquerda.
Como afirmamos acima, as denominações fazem emergir as posições-
sujeito dos enunciadores, vinculando tanto o locutor quanto o referente às
FDs específicas, criando, em torno de si (o sujeito se significa ao significar) e
do seu referente, no caso Dilma Rousseff, um imaginário sobre o seu modo
de governar a partir de um já-dito sobre ela, a partir de um já dito sobre o que
seja um militante clandestino, um leitor de Marx, um leitor de manuais de economia etc.
Para a AD, trata-se de analisar o processo de construção discursiva,
ou seja, o modo como os discursos produzem a ilusão de objetividade e a
evidência para uma realidade, como se O sentido já estivesse lá. (GUIMARÃES,
1995). Esses sentidos são reforçados também pelo imaginário em torno do
discurso jornalístico, responsável por fazer circular o mundo, a partir de um
lugar de neutralidade, objetividade, imparcialidade.
O lugar de uma militante clandestina com ideias marxistas (que gesticula
muito) pode produzir, como efeito de sentido, determinadas convicções as
quais servem para destacar e reforçar sua forma de ser e, por deslizamento,
sua forma de governar.
A denominação generala parece estar associada a essa ideia de
radicalismo presente no interdiscurso9 sobre o militante com ideias marxistas.
A SD6 parece ser atravessada pelas SDs 1 e 5 (elas se complementam
e reforçam o imaginário), nessas SDs, Dilma Rousseff aparenta ser uma
provável comunista (o vermelho como sendo a sua cor predileta, na SD1, e
o fato de retirar o crucifixo e a bíblia de sua sala de trabalho, na SD5) porque
renega a religião assim que toma posse, aqui, na SD6, ser Leitora de Marx,
reforça aquele imaginário que faz/fez circular sobre ela.

(SD7) José Sócrates esteve na abertura do ano no Brasil, para assistir tomada
de posse de Dilma Rousseff como sucessora de Lula da Silva. E logo no
primeiro dia em função da nova Presidente, o primeiro-ministro reuniu-
se com Dilma. Sócrates garantiu que a ajuda brasileira a Portugal
para compra da dívida nacional não esteve em cima da mesa. Mas
sabe-se que a entrada da Petrobrás no capital da Galp foi um assunto
debatido (sobre isso pode ler-se mais noticiário esta semana no caderno
de Economia do Expresso). “Reafirmei que uma das prioridades mais
altas da política externa portuguesa é a relação com o Brasil, disse a
Dilma que pode contar com Portugal como o mais fiel e mais próximo
aliado”, afirmou José Sócrates. No final da semana, Dilma (que já parece
ter um novo estilo, mais reservado e com menos exposição pública)
anunciou publicamente o primeiro combate do seu mantado: a erradicação
da pobreza. (EXPRESSO, A SEMANA, “Sócrates e Dilma juntos”, 8 de
janeiro de 2011, grifos meus).

______ [ 197 ]
As SD2 e SD7 também dialogam, nelas o Brasil é produzido como a
alternativa para ajudar Portugal a superar a crise econômica. Logo no primeiro dia,
pode, dentre outros sentidos, produzir efeitos de que Portugal, representado
pelo primeiro-ministro, se aproveita da situação, tão logo a presidenta toma
possa, para pedir ajuda ao Brasil, mas também produz efeito de proximidade,
de parceria, reforçado pelo discurso direto de Sócrates quando diz a Dilma
que pode contar com Portugal como o mais fiel e mais próximo aliado.
Além disso, a construção da imagem da presidenta, recém empossada,
cria, em torno dela, um imaginário mais discreto de se governar (em oposição
a Lula) introduzido pelo adjetivo novo: novo em oposição ao velho estilo. E
acrescenta-se a isso, o fato de parecer convicta de seus ideias já que anunciou
publicamente o primeiro combate do seu mantado: a erradicação da pobreza, ideia presente
também na SD6, a partir de denominação leitora de manuais de economia.
Tanto no CM quanto no Expresso circularam a ideia contida no que
PAYER (2005) afirma sobre a FD Mercantil colocada em circulação sobre
o Brasil: a interpelando dos sujeitos e dos sentidos como suporte para as
relações econômicas globais.

(SD8) Lisboa teve um bom ano turístico em 2010, traduzido num


aumento de 9,5% nas dormidas, que totalizaram 5,7 milhões só na cidade e
7,6 milhões em toda a região, que também inclui Estoril, Sintra ou Fátima.
Os brasileiros foram os turistas que evidenciaram o crescimento mais
expressivo, de 46%. Este aumento foi muito empurrado pela iniciativa de
promoção contratada entre o Turismo de Lisboa e a rede Globo, que
levou a filmar na capital portuguesa cenas finais da telenovela “Viver a
Vida”, emitida no Brasil em horário nobre. Os atores Bárbara Paz e Rodrigo
Hilbert protagonizaram cenas românticas em vários pontos da cidade, como
Belém, castelo de São Jorge e Parque das Nações, e participaram no evento
“Moda Lisboa”. As gravações em Lisboa decorreram em abril, e a telenovela
“Viver a Vida” acabou em maio. “A partir de então, a subida de turistas
brasileiros acentuou-se em Lisboa”, garante Vítor Costa, diretor-geral do
Turismo de Lisboa. O principal objetivo desta iniciativa foi projetar uma
Lisboa “moderna e cosmopolita”, alterando a perceção dos brasileiros
da imagem de “cidade atrasada e provinciana, onde vive o Manuel
padeiro e pessoas de bigode”. (EXPRESSO, ECONOMIA, TURISMO,
“Brasileiros trazem bom ano a Lisboa”, 8 de janeiro de 2011, grifos
meus).

A SD8 outra vez produz efeitos de que o Brasil pode contribuir


financeiramente para socorrer Portugal em tempos de a crise. Até aqui, aparecia
apenas o governo como o agente dessa contribuição, mas os brasileiros, por
conta da nova política econômica, da erradicação da pobreza, da distribuição de renda

______ [ 198 ]
mais justa etc., contribuíram para alimentar o turismo e consequentemente para
o consumo em Portugal: são 46% de aumento de brasileiros em Lisboa (até
novembro de 2010 – totalizando 467 mil dormidas); € 969 gastos, em média,
por brasileiro em 3 noites; 5 noites é a permanência média dos brasileiros em
Lisboa. Esse turismo desliza para outras regiões: Estoril, Sintra ou Fátima.
É importante destacar que agora os brasileiros que chegam em
Portugal não são mais aqueles que vinham na década de 1990, a procura de
trabalho, principalmente para atuar na construção civil, por conta dos bons
ventos na economia dos países da Zona do Euro. Esse novo brasileiro é
reflexo da economia em crescimento do Brasil que aumenta o poder aquisitivo
da população e, por deslizamento, permite que outras necessidades possam
ser acrescidas, o turismo, por exemplo.
Outro ponto importante, não destacado para análise, seria o fato de
que a ideia de gravar as últimas cenas de uma novela brasileira em Lisboa,
para divulgar a cidade, para ser exibida no horário nobre no Brasil, partiu do
presidente da Câmara, António Costa, conjuntamente com a empresária
Roberta Medina: o efeito propaganda é apagado enquanto as cenas românticas
contribuem para divulgar uma Lisboa “moderna e cosmopolita”, alterando a percepção
dos brasileiros da imagem de “cidade atrasada e provinciana, onde vive o Manuel padeiro
e pessoas de bigode”.
O jornal supõe também um imaginário do brasileiro sobre Portugal
e também sobre o português: alterando a percepção dos brasileiros sobre uma
cidade atrasada/provinciana e sobre o português (Manuel da padaria e
pessoas de bigode). São as regras, descritas acima, de projeção responsáveis
por estabelecer as relações entre as situações discursivas e as posições dos
interlocutores, de acordo com Pêcheux (2001).

(SD9) Pouco tempo depois de o primeiro-ministro, José Sócrates, ter


mantido uma audiência com a nova Presidente brasileira, Dilma Rousseff,
no Palácio do Planalto, em Brasília, o negócio da entrada da petrolífera
brasileira na Galp recebeu luz verde. O encontro entre os políticos
ocorreu no domingo, 2 de janeiro, e logo a seguir a Petrobrás admitiu, no
seu sítio na Internet, as negociações em curso para entrar no capital
da Galp. Embora a Petrobrás não adiante detalhes sobre o assunto,
fontes conhecedoras do dossiê garantem que dentro de quatro a cinco
semanas tudo estará negociado. Mais: dizem que o assunto não será
levado à Assembleia Geral da Petrobrás. Será decidido em conselho de
administração. (EXPRESSO, ECONOMIA, NEGÓCIOS, “Galp conta com
Petrobrás no carnaval”, 8 de janeiro de 2011, grifos meus).

Também na SD9 a questão Mercantil é evidente. O encontro entre o


primeiro-ministro e a presidenta, ainda que aquele diga, SD2, que não estava
______ [ 199 ]
ali para aliciar o governo brasileiro, produz, como efeito de sentido, que o
encontro foi para tratar da dívida pública portuguesa e da parceria entre a
Galp e a Petrobrás. Momentos depois desse encontro entre os governantes,
o negócio entre os dois países é fechado. Em seguida, a Petrobrás admite as
negociações em curso: materializados através dos marcadores de tempo pouco
tempo depois e logo a seguir.
Galp (Energia) é um grupo de empresas portuguesas no setor de
energia. É detentora da Petrogal e da Gás de Portugal, com atividades que se
estendem desde a exploração e produção de petróleo e gás natural, à refinação
e distribuição de produtos petrolíferos, à distribuição e venda de gás natural
e à geração de energia elétrica. Está entre as maiores empresas de Portugal,
controlando cerca de 50% do comércio de combustíveis neste país e a
totalidade da capacidade refinadora de Portugal. Recentemente adotou uma
estratégia agressiva de expansão no mercado de retalho espanhol e prossegue
as suas atividades de exploração de hidrocarbonetos no Brasil em parceria
com a Petrobras e a Partex e em Angola no consócio com a Sonangol.
A FD Mercantil parece dá o tom dos sentidos que circulam nessas
SD selecionadas aqui para análise: o Brasil como um parceiro próximo de
Portugal pode/deve contribuir financeiramente para socorrer em momentos
de crise.

(SD10) Numa ocasião em que tanto se fala sobre problemas de nossa


economia, é um erro esquecer que o conhecimento e o uso do português
constituem uma mais-valia no campo das interações económicas e um
dos mais importantes investimentos que cabem à iniciativa governamental
e coletiva. Discutir um negócio ou argumentar sobre uma posição
política, ou um projeto científico e cultural, usando o português com
a facilidade de ser a língua materna (e nos países da CPLP, a língua de
escolarização) tem valor económico e social. Se o Brasil criou há pouco
uma universidade, a UNILAB, que se destina a reforçar os laços com os
países lusófonos, é porque acredita na importância de enriquecer a
língua portuguesa no campo da ciência atual e das tecnologias, e do uso
quotidiano nos países-membros da CPLP. A formação de professores, uma
das suas valências, é também uma forma de difusão da língua, assim
como é a Universidade Aberta de Moçambique, criada durante a recente
ida de Lula da Silva a esse país. (EXPRESSO, EDITORIAL & OPINIÃO,
“Quanto vale a língua portuguesa”, 29 de janeiro de 2011, grifos meus).

A língua é um bem cultural e deve, portanto ser preservada tanto pelo


governo quanto pela coletividade, no entanto, o seu valor de mercantil não
deixa dúvida sobre a necessidade da sua valorização.
Na SD10, parece haver um “nosso” (ou aqui) em oposição a um “lá”.

______ [ 200 ]
O “aqui”, ou nosso, parece falar de um momento de crise, da Crise da Zona
do Euro, e certamente da língua portuguesa que pode/deve ser um veículo
de negociação, uma ferramenta para se poder argumentar com os países
membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): seria
“um erro esquecer que o conhecimento e o uso do português constituem
uma mais-valia no campo das interações económicas” (grifos meus).
A língua seria também um instrumento para “argumentar sobre
uma posição política, ou um projeto científico e cultural” (grifos meus),
mas, certamente, que “Discutir um negócio” ganha, na SD10, uma força
maior e um peso considerável para se pensar em um projeto de preservação
da língua materna.
O efeito de sentido que se produz passa efetivamente pela crise
pela qual Portugal, neste caso, atravessa e também pelos efeitos de sentido
de que alguns dos outros países, membros da CPLP, poderiam contribuir
economicamente com Portugal já que se poderia usar “o português com a
facilidade de ser a língua materna”.
A Mais-valia, grosso modo, corresponde a um benefício ou a uma
vantagem em relação a algo ou alguém: os problemas econômicos são os
“nossos” problemas, i.e., problemas de Portugal e os benefícios, nas condições
de produção desse discurso, certamente seriam revertidos aos governantes e
a coletividade se compreendessem o valor da língua portuguesa. Quanto vale
para Portugal, nesse momento, a “nossa” língua materna?
Por outro lado, há um “lá” que não é Portugal e que não atravessa,
nesse imaginário de valorização mercantil da língua como instrumento de
negociação, um momento de crise financeira. O Brasil criou uma universidade,
a UNILAB, com o propósito, segundo a SD acima, de “reforçar os laços com
os países lusófonos” (grifos meus), porque “acredita na importância de
enriquecer a língua portuguesa no campo da ciência atual e das tecnologias,
e do uso quotidiano nos países-membros da CPLP” (grifos meus).
E ainda há um “lá” que não se refere ao Brasil, mas que desliza para
“lá” em virtude da “recente ida de Lula da Silva a esse país” (Moçambique).
A constituição do Sujeito de Mercado, Payer (2005), seria uma
consequência de sua interpelação pela necessidade de negociação, algo que
se opera pela identificação à “formação discursiva mercantil” e sob a égide da
formação ideológica do “Capitalismo Mundial Integrado”.
Às Línguas de escolarização, à social, à que se destina a reforçar os
laços com os países lusófonos, agrega-se à econômica, a que, nesse momento
de crise, parece ganhar uma dimensão gigantesca, quase que em detrimento
dos demais valores.
______ [ 201 ]
E se nos propusemos a pensar como Portugal reinscreve o Brasil no
cenário internacional, não há dúvida de que esse lugar é o da Economia, o
lugar da inscrição dessa FD como valor máximo a ser difundido em tempos
de crise e, principalmente, acima de qualquer outro valor. Parece-me que o
discurso pronto contra a mercantilização do Estado, o acirramento de forças
contra as perdas salariais, contra os cortes do governo a partir do que o FMI
(Fundo Monetário Internacional) determina como meta para se colocar as
contas novamente em equilíbrio acima dos valores sociais aqui perde a sua
força ou, pelo menos, é neutralizado. Quero dizer, consiste na troca do valor
da esfera da política para, exclusivamente, a esfera do mercado.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Os indivíduos, na medida em que introjetam o valor mercantil e as


relações mercantis, como padrão dominante de interpretação dos mundos
possíveis, aceitam – e confiam – no mercado como o âmbito em que,
naturalmente, podem – e devem – desenvolver-se como pessoas humanas
(GENTILI, 1995, p.228).
O sujeito contemporâneo é interpelado ideologicamente pelo o que
Payer (2005) denomina de FD Mercadológica. O Brasil, na visão dos jornais
portugueses, não se encontra fora dessa outra forma de interpelação, tendo
em vista, inclusive, que cada vez mais, o sistema econômico é global. O Brasil
apresenta-se de tal forma no cenário econômico internacional que muito
provavelmente se tornará uma das quatro maiores economias dominantes do
mundo, em um futuro próximo, são alguns dos efeitos de sentido produzidos
sobre a economia do Brasil.
O poder Mercantil de interpelação opera na base de nova formação
ideológica, a exemplo da ideologia religiosa e da ideologia jurídica. Isso fica
evidente a partir do modo como se articulam a língua, os sujeitos e a ideologia,
decorrentes das transformações dos processos discursivos de subjetivação
vigente: o fortalecimento do poder do Mercado diante da diluição do poder
do Estado significando o sujeito. Esses sujeitos, na contemporaneidade, são
um efeito da onipotência do Mercado como instância máxima de poder. As
relação sociais são, portanto, marcadas, em sua maioria, pela submissão à
circulação da Mercadoria.
A crise da dívida pública europeia evidencia esse novo lugar ocupado
pelo Brasil e nos coloca, nesses tempos de crise, como um aliado que pode
______ [ 202 ]
contribuir financeiramente para amenizar a crise portuguesa. O Brasil passa
a ser um referência, principalmente para Portugal em virtude das relações de
proximidade que mantém com o país europeu.
O Brasil continua sendo, no imaginário europeu, o país do futuro, um
país de esperanças e esse imaginário também continua produzindo efeitos no
discurso do governo brasileiro, segundo o CM, reforçando a ideia contida em
HOLANDA (1996) sobre o Brasil.
A história do Brasil, produzida pelo próprio país, continua sendo
produzida em torno desse imaginário de país do futuro, presente das
denominações rumo que pretende seguir, avançar no caminho, principal meta, erradicar
a pobreza, criar avanços etc. Essa representações nos atravessem de modo
constitutivo: sujeito e sentido se constituindo ao mesmo tempo. Os verbos,
quase todos, conjugados no futuro, reforçando esse lugar adiante que nos
significou também dentro do Brasil: Um país que vai pra frente, Um país do futuro,
Um país em desenvolvimento etc.
Todavia, não apenas a ideia de país do futuro, da esperança e do
Mercado parece produzir efeitos nos jornais portugueses sobre o imaginário
em torno do que é ser brasileiro. A velha mas ainda eficaz Lei de Gerson, aquela
que afirma que o brasileiro quer tirar proveito de tudo parece também nos
constituir, a exemplo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da atual
presidenta durante a sua campanha eleitoral em 2010 e nos desdobramentos
de sua posse em 2011.
A classe política não compreende o limite entre as fronteiras que há
entre o espaço público e o privado, e não consegue discernir entre os interesses
coletivos e particulares. Isso nos significa como país e constrói, cristaliza, põe
em circulação um singularidade do brasileiro. Através de deslizamentos de
sentido nos encontramos significados em sequências discursivas que tratam
do sujeito político: somos, portanto, um reflexo do que é dito sobre o outro
porque significamos desse mesmo lugar no discurso do CM. Não há de um
lado o político e do outro o brasileiro, há brasileiro sendo construído nas
páginas dos jornais.
Não podemos nos esquecer, entretanto, de que tanto o CM quanto o
Expresso falam de um lugar e de que somos o Outro em seu discurso também o
significando, porque o sujeito também se significa ao dizer: somos, nas páginas
desses jornais, um pouco ingênuos porque não percebemos o jogo político, mas
também somos dissimulados quando essa dissimulação nos vai produzir alguma
vantagem. São esses alguns sentidos que circulam sobre o Brasil e o brasileiro na
contemporaneidade em Portugal, mas não são todos nem definitivos.

______ [ 203 ]
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NOTAS

1) Setembro de 2013/agosto de 2014, na Universidade de Coimbra, Portugal.

2) A noção de Sequência Discursiva, definida por Courtine (1981, p. 25) como sequências orais
ou escritas de dimensão superior à frase, é fluida o suficiente para viabilizar a depreensão das
formulações discursivas (FDs), ou seja, de sequências linguísticas nucleares, cujas realizações
representam, no fio do discurso (ou intradiscurso), o retorno da memória (a repetibilidade que
sustenta o interdiscurso) (MARIANI, 1988, p.53).

3) É bastante comum jornais, também em Portugal, venderem-se como se estivessem


reproduzindo verdades.

4) Dados da pesquisa de Lisboa (2010).

5) Sobre as Denominações, ver Soares & Medeiros (2012).

______ [ 206 ]
6) Segundo Orlandi (1993, p. 18), “a noção de discurso fundador, (...), é capaz, em si, de muitos
sentidos. Um deles, [...], é o que liga a formação do país à formação de uma ordem de discurso
que lhe dá uma identidade”.

7) Para quem não lembra, o meio-campista Gérson ficou célebre não apenas por ter sido uma das
maiores estrelas do tricampeonato brasileiro em 1970, mas por ter formulado, na propaganda
do cigarro Vila Rica veiculada anos depois, aquela que viria a ser conhecida como lei de
Gérson: “O importante é levar vantagem em tudo, certo?” – frase dita num carregado sotaque
carioca, forçando os erres até o palato ficar encharcado. Gérson tentou por muito tempo se
desvencilhar da fama de patrocinador dos espertalhões, patrono dos corruptos e propagandista
dos canalhas, mas não teve jeito. A lei de Gérson pegou. Sociólogos, antropólogos e a nata da
intelectualidade brasileira já gastaram horas e mais horas, tinta e mais tinta, neurônios e mais
neurônios para condenar nossa brasileira condição gersoniana. Somos mesmo uma nação de
egoístas, corruptos e sacanas, que só pensam em si e só querem saber levar vantagem. Certo?
(Helio Gurovitz, revista Superinteressante, fevereiro de 2004.)

8) A ideia é a de que o que se diz/ou o que se escuta, é sempre atravessado por algo que já foi
dito, atravessado por um dito anterior.

9) Há uma ordem do discurso que controla aquilo que se pode/se deve dizer, em certo
momento histórico; há também um diálogo intertextual entre os enunciados.

______ [ 207 ]
CAPÍTULO 10

QUANDO
A ESMOLA É
DEMAIS, O SANTO
DESCONFIA?!

João Carlos Cattelan


Este estudo resulta de um projeto de pesquisa1 motivado por afirmações
de Roberto Pompeu de Toledo, em texto para Veja, intitulado Nos hinos
nacionais, raiva e ameaças. Na primeira parte do estudo, abordei a
defesa do autor de que os hinos nacionais em geral (e os sul-americanos,
por consequência) seriam um incitamento à violência e espero ter mostrado
que o fio que costura os hinos estudados (os sul-americanos) é a exigência
intransigente da mantença da liberdade, já que foi alcançada por meio de
sacrifícios e de vidas ceifadas. Defendi que os demais eixos temáticos
(parafrásticos ou axiológicos, se assim se desejar), como a defesa do uso
da violência, a relembrança do tempo de cativeiro, o enaltecimento dos
combatentes, a imposição do compromisso de manter a pátria livre, a criação
de um dever-ser dos libertados, o uso de fórmulas “vazias” e “abstratas”
(o non sens do significante a ser saturado), a celebração de uma era de bem-
aventurança, a ênfase na conquista belicosa, trágica e sangrenta para a
superação da opressão, a afirmação performática de um revide à afronta, o
enaltecimento da paisagem geográfica do país, a assunção de que a opressão
é ocasionada, sobretudo, por forças externas e o entendimento de que os
herdeiros da conquista têm um compromisso perene com a pátria, a família e
a propriedade (independentemente do efeito de sentido desses elementos) são
sobredeterminados e subsumidos pela percepção elogiosa e grandiloquente
da liberdade: crucialmente, os hinos fazem a sua apologia e a apresentam
como devendo ser incondicionalmente defendida: inclusive, com a vida.
Na segunda parte, por meio de polêmica com o autor, defendi que
os hinos não pecam por falta de criatividade. Assumi que os sul-americanos
possuem uma idiossincrasia peculiar e, portanto, originalidade, com marcas
indeléveis de atividade autoral, quando não se aplica o que denominei de
assepsia do pensamento, concebendo esse fenômeno como o apagamento
das diferenças, para, por generalizações, evidenciar o recorrente e repetitivo,
à custa da transformação das diferenças em sítios de identidade parafrástica.
Defendi que a reiteração é obtida pelos apagamentos do engendramento do
______ [ 209 ]
texto, da enunciação no/do enunciado, do gênero discursivo e das marcas
de autoria. Cheguei à conclusão, apoiado em Schneider (1990, p. 138), que
a “originalidade não está no fato de não ter uma origem, mas de fundar, de
certo modo, sua própria origem”, o que equivale a afirmar que, apesar de
haver trajetos de sentido que se “repetem” nos hinos em estudo, eles são
construídos de forma diferenciada. A suposta mesmice é obtida, pois, a partir
da mutilação do objeto analisado e da ansiedade de estabelecer uma lógica
generalizante e simplificadora do mundo caótico que nos cerca: ainda somos
guiados pela busca do raciocínio sintético, em vez do pensar analítico.
Nesta parte do estudo, debruço-me sobre um terceiro tema aberto
pelo autor com que me defronto. Para ele, as letras dos hinos nacionais
deveriam ser mudadas, pois “Um deles fala nos ‘truques miseráveis’ do
inimigo. Outro alerta os cidadãos contra os ‘ferozes soldados’ que vêm
degolar seus filhos e suas companheiras’. Um terceiro proclama: ‘Estejamos
prontos para a morte”. Já que “contêm ameaças terríveis, quando não insultos
aos estrangeiros, exibem uma ultra-sensibilidade a sentimentos como a honra,
supervalorizam valores como a glória, e convocam os nacionais a uma espécie
de estado de guerra permanente”, a alteração das letras se justificaria. E mais:
“belicosos como são os hinos, não é de estranhar a violência no futebol”.
Além do que o autor se vale de uma campanha da “senhora Mitterrand” para
a mudança da letra do hino francês, justificada pela “dissincronia entre os
hinos, elaborados quase sempre em situações de guerra, em tempos em que
tripudiar sobre o inimigo e xingar o estrangeiro era virtude, e um presente que
se quer politicamente correto e consciente da impropriedade da violência”. É
em relação à procedência da defesa de alteração das letras dos hinos, portanto,
que esta parte do estudo se organiza.

A CONSTATAÇÃO DE UM PRESENTE PERFEITO

Como canto de louvação que enaltece o tempo alcançado após a


luta e os sofrimentos que precederam a conquista da independência, os hinos
sul-americanos fazem a apologia do presente a que chegaram e o celebram
com cores grandiloquentes, fazendo crer que tudo se organiza em harmonia
perfeita e sem mais metas e objetivos a serem perseguidos. A história
alcançou o fim para que tendia e nenhuma outra necessidade se impõe. Com
a independência, não há mais fantasmas que pesem sobre o presente da
nação e sobre o povo que o constitui. Por meio de uma matriz de sentido que
______ [ 210 ]
açambarca as composições, os hinos em estudo são unânimes na celebração
do início de um tempo vivido em equilíbrio e harmonia. A profusão que
os constitui permite afirmar que são hiperbólicos no que refere à felicidade
alcançada.
Em coro à primeira parte do primeiro capítulo deste estudo, que
mostra que os hinos celebram, nas letras, a vida vivida em tempo de bem-
aventurança, esta primeira parte tem como objetivo atentar para um ponto
específico da escritura dos hinos sul-americanos: o de que a sua matriz
discursiva cria o efeito de sentido de que o presente pode/deve ser vivido
em igualdade de condições por todos e que não há mais diferenças entre os
cidadãos do país. E mais do que isso: eles criam um efeito de constatação
descritiva, como se o tempo alcançado albergasse a todos e lhes desse as
mesmas condições de vida. Valendo-se de uma modalização indicativa
abrangente e generosa, construída no diapasão da certeza e da necessidade,
os hinos não abrem espaço para dúvida ou questionamento. Está-se em
presença de tudo aquilo que se deseja e as diferenças que existiram se acham
suprimidas. Laços de fraternidade, liberdade e igualdade imperam em todos
os lugares e a vida pode ser sorvida em regozijo.
Esta seção tem, pois, como objetivo a demonstração da presença
teimosa e renitente de um presente vivido em igualdade ubíqua e que esse
efeito ou matriz de sentido é apresentado como inquestionável e sem
necessidade de modalizações que o coloquem como relativo a um grupo
social, constituindo-se numa generalização generosa que alcança a todos e
contempla a cada um com sua opulência de mãe prodigiosa. Isto significa
dizer que os hinos consideram o presente resolvido e o fazem de uma
forma taxativa e indubitável: uma pura constatação; mas é exatamente dessa
exorbitância de prazeres e harmonia que se deve desconfiar.
No hino argentino, a superabundância enunciativa pode ser observada
em “Ved en trono a la noble Igualdad. Ya su trono dignísimo abrieron las
provincias unidas del Sud!”. Contrariamente ao trono que antes era ocupado
pelo representante do império espanhol, agora a gerência da vida pública é
exercida não por pessoas, mas por uma matriz de comportamento da gestão
do bem comunitário: a Igualdade, que não aparece grafada com inicial
maiúscula casualmente. Essa escrita lhe impõe efeitos de grandiosidade e de
presença substancial, além do que a alça à condição de entidade personificada,
dada a sua parecença com a grafia de um nome próprio. Não bastassem esses
traços meritórios (a grandeza e a substancialidade), vem qualificada como
“noble” e seu trono é “dignísimo”. Não há, portanto, como negar a pujança
do momento vivido em face da “Igualdad” maiúscula alcançada. E chamo a
______ [ 211 ]
atenção, neste sentido, para o fio da meada que tento alinhavar nesta seção:
só se pode falar de uma relação de igualdade, quando está pressuposto que
ela alcança a todos: não há igualdade entre pessoas que são mais iguais do
que outras. O hino permite inferir que, dentre os traços meritórios que a
independência obteve, um sobressai, a igualdade, que se espraia alcançando
a todos, não mais hierarquizando os cidadãos entre os pertencentes ao
poder imperial e os que, submetidos ao tacão real, deviam-lhe submissão e
vassalagem. Com a igualdade, os argentinos estão ao abrigo da indistinção e
da isonomia de tratamento: eis a celebração de um tempo vivido como nos
mais profundos sonhos da existência comunista.
No hino boliviano, o presente romantizado e idealizado é cantado
nos versos “siguen hoy, en contraste harmonioso, dulces himnos de paz y de
unión – Aquí alzó la justicia su trono – es la patria feliz donde el hombre goza
el bien de la dicha y la paz”. Como se pode perceber, não são versos de pouca
monta ou que não exalem deleite e encantamento frente à cena que parecem
contemplar. A chegada da independência, contra a desarmonia, a opressão e
a exploração provocadas pela submissão ao império espanhol, “hoy”, teria
colocado o país em “contraste harmonioso” e, nele, hinos “dulces” (com
tudo que “doce” produza de efeitos elogiosos) seriam ouvidos em todos os
lugares. Além disso, o presente seria caracterizado pela presença abrangente
da paz, da união e da justiça. Neste caso, quem chegou ao trono foi a justiça
e, contrariamente à injustiça que se pode pressupor que existia antes, agora,
todos são tratados de forma igualitária e digna, a partir de ditames pautados
na legalidade e não na voz ilegítima de um poder totalitário. Por outro lado,
parece não haver desejo maior da parte de cada homem do que viver em
paz e união e ver a todos sendo tratado com justiça (embora se deva ter em
mente que esses termos são preenchíveis por cada formação discursiva da
forma que mais lhe parece plausível). Não bastasse isso, a pátria é “feliz” e,
por isso, oportuniza que cada um goze de “la dicha y la paz”. A somatória
dos traços paz, união, felicidade, doçura, harmonia e justiça açambarcam
num só movimento o que parece remeter à terra onde correm o leite e o
mel e ao eldorado mítico da existência tecida no diapasão da realização plena
e absoluta dos desejos humanos. Esta é a Bolívia desenhada pelo hino nos
versos destacados. E eles não dizem respeito a um ou outro cidadão: nada
há de restritivo em sua aplicação, já que as matrizes destacadas são possíveis
apenas quando vividas por todos e em plenitude.
No hino brasileiro, vários versos apontam a existência idílica após a
proclamação da independência do país. Dentre eles, pode-se destacar: “E o
sol da Liberdade em raios fúlgidos brilhou no ceu da pátria neste instante -
______ [ 212 ]
Se o penhor dessa igualdade conseguimos conquistar com braço forte - Dos
filhos deste solo és mãe gentil, - Teus risonhos lindos campos têm mais flores,
‘Nossos bosques têm mais vida’, ‘Nossa vida’ no teu seio ‘mais amores’”.
Como nos demais hinos, com a supressão do jugo (no caso, português),
pressupõe-se que o cotidiano dos conterrâneos teria passado, um tanto
quanto miraculosamente, a se pautar na Liberdade, que, como no caso do hino
argentino, também não é grafada com maiúscula fortuitamente, dado que,
além de imprimir traços de grandeza e substancialidade, ela sobredetermina o
objeto discursivo com efeitos de personificação, em face da sua constituição
de nome próprio. E a Liberdade, em sua magnitude, não teria chegado, ainda,
de uma maneira modesta ou incipiente, mas de uma forma contundente,
como raios solares que brilharam no ceu da pátria, alcançando a todos que,
doravante, estariam sob a salvaguarda dessa proteção benfazeja. Por outro
lado, junto à Igualdade, teria chegado a liberdade, o que não poderia deixar de
ser, pois ser livre, de certo modo, equivale a ser igual e vice-versa. Além disso,
o país, tendo alcançado a liberdade buscada, teria se tornado a “mãe gentil”
(e não qualquer mãe) que acolhe a todos os filhos e os supre com o amor e
a resposta para as necessidades que tenham. E, por fim, com o desenho de
uma paisagem majestosa, constituída pela flora exuberante e pela fauna ímpar,
cria-se a imagética de um espaço físico capaz de acolher a todos e suprir o que
se imponha para a sobrevivência; outra vez, percebe-se o anúncio triunfante
do alcance da terra mítica em que jorram leite e mel e do eldorado onipotente.
De novo, pode-se perceber a grandiloquência da afirmação que promete a
todos o tratamento isonômico e igualitário.
No hino chileno, pode-se ouvir a entoação enfática da exuberância
da pátria, que, por onde quer que seja observada, promete deleites e prazeres
aos cidadãos. Nada escapa ao olhar que açambarca a natureza física do
país e a considera como a impressão em alto relevo da realização perfeita
de um território. Vejam-se os versos que, de modo ufanista, imprimem
sobre a paisagem, sobre o país e sobre os cidadãos efeitos de sentido todos
construídos sobre um prisma de avaliação positivo e meritório: “Puro, Chile,
es tu cielo azulado, puras brisas te cruzan también, y tu campo de flores
bordado es la copia feliz del eden. Majestuosa es la blanca montaña que te
dio por baluarte el Señor, y ese mar que tranquilo te baña te promete futuro
esplendor”. Composto por elementos heteróclitos, um projeto totalizante de
unificação se acha posto em mira e dos elementos pátrios (ceu, ar, campo,
montanha, mar) se afirma que perfazem uma totalidade, cuja somatória são
“la copia feliz del eden”. Eis a chegada à terra prometida e o alcance da vida
vivida em perfeita harmonia, propiciada pela abundância da terra natal. De
______ [ 213 ]
onde quer que seja olhado, o Chile é o paraíso terrestre, em face do ceu
azul, das brisas puras, dos campos floridos, da montanha majestosa e do mar
tranquilo e promissor. Atente-se que o efeito de sentido de cada um desses
elementos entrelaça o mundo físico e o mundo social, colocando-os numa
relação de sobredeterminação. Se os campos são a cópia do paraíso, a vida é
paradisíaca; se as brisas são puras, puras são as relações sociais que se vivem
cotidianamente; se a montanha foi dada pelo “Señor” como baluarte do país,
estão protegidos os que habitam esse espaço; se o mar é tranquilo, tranquila
é a vida dos chilenos; e, por fim, se o mar promete futuro esplendor, essa
riqueza pertence a todos. Por meio dessa ubiquidade perfeita, constata-se que
cada um terá seu quinhão nesse espaço ideologizado.
No caso do hino colombiano, ao lado da descrição pungente e
dolorosa da batalha pela conquista da independência do país e do sofrimento
que afligiu o povo enquanto esteve sob os ditames do regime imperial, a
composição constata, com efeitos generalizantes, a presença de uma liberdade
profusa e generosa que atinge a todos indistintamente. Por meio dos versos “la
libertad sublime derrama las auroras de su invencible luz”, “En su expansivo
empuje la libertad se estrena” e “Del hombre los derechos Nariño predicando,
el alma de la lucha profético enseñó”, a liberdade, qualificada como “sublime”,
não apenas teria chegado para os colombianos, mas ela “derrama” a sua luz
de forma exorbitante e excessiva sobre todos. A aurora e o renascimento
que a liberdade traz consigo projetaria sobre cada um a sua “invencible luz”,
tornando o mundo ameno, calmo e tranquilo e permitindo a existência plena e
harmoniosa entre os conterrâneos. Por outro lado, em face dos ensinamentos
de uma das figuras míticas da revolução (Nariño), a luta empreendida pelo
povo não teria se dado por alguma causa pouco “convencional” ou restritiva,
mas em busca “Del hombre los derechos”. Tendo alcançado o objetivo
sustentado por essa perspectiva, a luta teria indicado o caminho a ser trilhado
pós-independência e posto os direitos do homem (a paz, a justiça, a liberdade,
a educação, a igualdade, a união) acima de outra busca que não o ponha como
fator preferencial do gerenciamento público. Dada a liberdade e os direitos
humanos conquistados, a existência teria se tornado perfeita pela concessão
de uma vida harmoniosa e igualitária.
No hino nacional equatoriano, embora ele não aborde os temas da
liberdade, igualdade e fraternidade, a exemplo dos outros, essas matrizes
podem ser recuperadas nos sentimentos que despertam naqueles que as
usufruem: e os equatorianos fazem parte desse grupo. Para o hino, o presente
do país permite perceber que “Ya tu pecho, tu pecho, rebosa gozo y más
que el sol contemplamos lucir, y tu frente, tu frente radiosa más que el sol
______ [ 214 ]
contemplamos lucir”. Constata-se, nos versos, a alegria entusiasta que alcança,
concomitantemente, o país e o povo, fazendo que o seu peito transborde de
“gozo” e o olhar e o rosto estejam radiantes. E não há exceção para esse
estado de espírito: todos estão felizes e satisfeitos. Em face do presente, não
mais se contempla apenas a luz do sol, o que produz dois efeitos de sentido: a
luz que se mira é outra, que se agrega à luz solar e não havia antes: a liberdade;
ou a luz que se observa é mais contundente e relevante do que a própria
luz do astro celeste. De toda sorte, iluminados por essa luz resplendente, os
equatorianos vivenciam uma experiência grandiosa de felicidade e, por isso,
transbordam de gozo e estão radiantes.
No hino nacional paraguaio, são inúmeros os recortes em que se
podem perceber ecos de exaltação triunfante do país, que aparece adjetivado
e associado a sentimentos do mais alto grau na escala de valor positivo. A
independência teria permitido que ele realçasse “su gloria y virtude”; afirma-se
que, “de heroísmo, [é] baluarte invencible” e, “de riquezas, magnífico Edén”;
além disso, seu “suelo sagrado con sus alas un ángel cubrió”; da luta pela
liberdade, “De la tumba del vil feudalismo se alza libre la Patria deidade”; e,
por fim, afirma-se que “Libertad y justicia defende nuestra Patria”. A recolha
rápida do léxico utilizado e dos efeitos de sentido que o acompanha permite
afirmar que o Paraguai seria glorioso, virtuoso, heroico, rico, sagrado, divinal,
livre e justo. O diapasão que conduz a composição do hino pinta um quadro
cujos elementos são todos meritórios e elogiosos. Todos os cidadãos seriam,
neste sentido, agraciados pelas características atribuídas ao país, pois se ele é
livre, justo e virtuoso, dentre outros ingredientes de constituição, também o
são os conterrâneos, que são alcançados pelas graças profusas e generosas
de um país coberto pelas “alas de un ángel” e tocada pela sacralidade de “la
Patria deidade”. Os paraguaios estariam postos sob a salvaguarda divina e de
posse do “magnífico Eden” que constitui o seu solo pátrio. Nenhum percalço
se denuncia nessa existência paradisíaca. E, de novo, não se aborda qualquer
alcance restritivo em relação aos bens disponíveis para todos: o solo divinal é
comum e partilhado.
No hino nacional peruano, alguns versos em especial apontam para o
período de bem-aventurança vivido pós-independência. Destacam-se “Somos
libres seámoslo siempre”, “Que en concurso de grandes naciones nuestra
patria entrará em parangón”, “En la lista que de estas se forme llenaremos
primero el reglón” e “A su sombra, vivamos tranquilos”. O hino começa pelo
primeiro verso destacado e por uma constatação indicativa e modalizada na
forma da certeza: “somos libres”. O primeiro aspecto a se destacar se refere
à afirmação impávida da certeza da liberdade, embora apareça matizada pelo
______ [ 215 ]
slogan convocatório: “seámoslo siempre”. De toda forma, há a afirmação
de uma liberdade retumbante que caracteriza o tempo presente e o dá como
plenamente resolvido. O segundo aspecto se refere ao fato de a flexão verbal
se valer da pronominalização “nós”, que, em virtude de seu caráter inclusivo,
gera o efeito de sentido de que os peruanos, sem exceção, seriam livres e
agraciados pelo estilo de vida que a presença meritória permite. Por outro
lado, nos outros versos citados, destacam-se a louvação e a exaltação, pois
o país poderia ser comparado às grandes nações, se alguma comparação for
estabelecida; e, não bastasse, na lista que se forme no ranking efetuado, o
país seria o primeiro no “reglón”. Por um processo de sobredeterminação,
se o país será o primeiro na comparação efetuada por meio de concursos
entre nações, isto se deveria ao fato de o povo sobressair, quando comparado
a outros povos. Mescla de um povo ímpar e de uma nação grandiosa, além
do mais caracterizada pela liberdade, desenha-se em alto relevo um quadro
otimista e ufanista em relação à nação, ao povo e ao tempo vivido: que,
destaque-se, alcança a todos.
No hino nacional uruguaio, efusivo sobre a temporalidade presente
e grandiloquente na forma de decantar a pátria que acaba de se tornar
independente, várias passagens, explícita ou implicitamente, indiciam
a magnitude da vida vivida no diapasão da bem-aventurança e da história
equacionada sem percalços: se existiram, estão ultrapassados e perdidos no
passado. Destacam-se “La justicia, por último, vence”, “Libertad, libertad
adorada, mucho cuestas tesoro sín par! Pero valen tus goces divinos esa sangre
que riega tu altar”, “De laureles ornada brillando La Amazona soberbia del
Sud, En su escudo de bronce reflejan Fortaleza, justicia y virtud. Ni enemigos
le humillan la frente, ni opresores le imponen el pie”. É possível dar destaque
a, pelo menos, três aspectos no tocante a estes versos. O primeiro remete
aos traços dados como matrizes da existência vivida após a independência:
eles remetem ao estado de liberdade (enfatizada pela repetição, caracterizada
como “tesoro sín par”, tida como produtora de “goces divinos”), de força,
de justiça e de virtude distribuídos aos uruguaios. O segundo diz respeito à
perífrase que “denomina” o país cantado pelo hino: o Uruguai é “La Amazona
soberbia del Sud”. A perífrase logra, com a dêixis de lugar ideologizada,
afirmar o potencial guerreiro, bravo e lutador do Uruguai, além de considerá-
lo soberbo (grandioso, imponente, brilhante, promissor, dentre outros efeitos)
e, pela relação com “el Sud”, criar uma relação superlativa do país em relação
às outras nações do hemisfério. E, não custa lembrar: se a pátria é forte,
justa, virtuosa e livre, também seriam os que a habitam. O terceiro se refere
à constatação de que o país não admite qualquer intrusão ilegítima de poder,
______ [ 216 ]
seja oriunda de “enemigos” ou de “opresores”, o que gera o efeito de que, sob
a guarida da pátria e do povo, não existe ameaça que tolde a existência idílica.
Do Uruguai é dito que “brilla (sob) laureles” e que “esa sangre que riega el
altar” da liberdade se justificam, pois os dividendos positivos que as vidas
ceifadas concederam açambarcariam a todos.
No caso do hino venezuelano, por meio do verso “Gloria al bravo
Pueblo”, enaltece-se o povo, por ele ter superado o jugo opressivo do poder
ditatorial, e se celebra o presente, pois, nele, respeitar-se-ia “la ley” e as relações
seriam tecidas com “virtud y honor”. Ao invés dos ditames do autoritarismo e
da ditadura do poder imperial, agora as decisões ocorreriam sob os auspícios
da lei, que toma como elemento prevalecente a honra e a virtude. Uma vida
legal (ambiguamente), virtuosa e honrada caracterizaria a temporalidade do
povo venezuelano e a sua existência se daria sob a presença da liberdade para
todos, pois, como afirma o hino, “se el despotismo levanta la voz seguid el
ejemplo que Caracas dió”. Aqui, pode-se perceber que, se houve um tempo
em que o despotismo fazia ouvir sua voz e impunha o seu regime, ele se acha
ultrapassado e o seu jugo não mais determina o cotidiano.
Parece plausível concluir que os hinos sul-americanos pintam um
quadro idealizado, idílico, ufanista, romantizado e, de certa forma, alienado
em relação ao presente histórico que sucedeu às independências. Como se
pode perceber, de acordo com as composições, cada país alcançou um tempo
de bem-aventurança e uma existência histórica que se encontra a salvo de
qualquer problemática concreta que traga vicissitudes e sobressaltos para os
conterrâneos.
O objetivo desta seção era mostrar que a matriz discursiva dos hinos
em estudo se tece sobre o fio de que o presente posterior à eliminação do
império espanhol (e do português, no caso do Brasil) foi vivido de forma
harmônica por todos e que não houve maiores problemas que alcançasse os
cidadãos, em virtude da superação do jugo. Eles, como anunciei, trabalham sob
um efeito de constatação descritiva, como se a plenitude atingida albergasse a
todos sob as mesmas condições de vida. Por meio da modalização indicativa
grandiloquente, construída no diapasão da certeza e da necessidade, os hinos
não admitem sobressalto ou incômodo na vida. O povo tem o que deseja,
as diferenças se acham suprimidas e nenhum resquício de irrealizado existe.
Como dito antes, laços de fraternidade, liberdade e igualdade imperam em
todos os lugares e a vida pode ser sorvida em regozijo.
Transcrevo, termo a termo, a hipótese que fixei no começo da seção,
pois não encontro forma melhor de fechá-la. A observação dos hinos em
estudo demonstra “a presença teimosa e renitente de um presente vivido em
______ [ 217 ]
igualdade ubíqua e esse efeito de sentido é apresentado como inquestionável
e sem modalizações que o coloquem como relativo a um grupo social,
constituindo-se numa generalização generosa que alcança a todos e contempla
a cada um com sua opulência de mãe prodigiosa. Isto significa dizer que os
hinos sul-americanos consideram o presente resolvido e o fazem de uma
forma taxativa e indubitável: pura constatação; mas é exatamente dessa
exorbitância de prazeres e harmonia que se deve desconfiar”.
Feita a demonstração que eu pretendia como passo inicial para o que
realmente desejo discutir, avanço a hipótese que deve alicerçar as reflexões
feitas a seguir. Até se pode admitir que, dada a presença viva do imperialismo na
América Latina por séculos, os hinos sejam grandiloquentes na comemoração
e na celebração efusiva e inebriante da liberdade almejada. Mas a história não
contemplou a todos com igual generosidade e nem transformou o presente
canhestro de uma hora para outra (se é que o fez alguma vez, haja vista os
golpes militares, a tortura, as perseguições políticas, as diferenças materiais
de vida existentes ainda hoje), como se todos fossem dormir oprimidos e, ao
alvorecer, a existência tivesse se tornado paradisíaca.
Os hinos são cantados com efeitos de constatação, como se
a teleologia histórica do país estivesse realizada. Entretanto, contra a
superabundância enunciativa genérica e generosa que parece modalizar a vida
sul-americana com a certeza de uma vida idílica, os hinos podem ser pensados
(talvez prioritariamente) mais como memória de futuro e como manifestação
do irrealizado. A força descritiva os habita, na verdade, aponta para a falta
do que ainda não foi obtido: eles ocorrem mais como atos falhos, que, não
afirmam o que existe, mas apontam para o que gostariam que existisse. Há
que se suspeitar da superabundância que os habita e colocá-la sob o diapasão
da negação de que a vida esteja servida vivida plenamente e com fartura.

O INVISÍVEL/VISÍVEL IRREALIZADO

Preciso reconhecer imediatamente a paternidade dos dois princípios de que


me valho para organizar esta seção e para defender o fio sobre o qual alinhavo
as reflexões realizadas. O primeiro deve ser tributado a Michel Pêcheux
(1990), que, em Delimitações, Inversões, Deslocamentos, afirma que as
revoluções são a emergência violenta do irrealizado invisível que deseja se
tornar ouvido. No texto, o autor passa pela discussão da Revolução Francesa,
da Revolução Socialista a partir do Século XIX e das Revoluções do Século
______ [ 218 ]
XX. Para ele, o ensinamento que subjaz a elas se refere ao fato de que são
o apogeu pungente de uma ebulição de vontades e desejos que, por serem
recalcados e se tornarem inaudíveis (e, por isso, ficarem irrealizados), acabaram
culminando em momentos críticos de violência, dada a incompetência da
política instituída de fazer frente às demandas que se colocam. Para Pêcheux,
as revoluções se forjam nas minúcias cotidianas, nos momentos de discórdia,
nas negações passageiras, nos erros cometidos frente ao posto, dentre outras
irrupções de que algo não vai bem. Para ele,

É através destas quebras de rituais, destas transgressões de fronteiras: o


frágil questionamento de uma ordem, a partir do qual o lapso pode tornar-
se discurso de rebelião, o ato falho, de motim e de insurreição: o momento
imprevisível em que uma série heterogênea de efeitos individuais entra em
ressonância e produz um acontecimento histórico, rompendo com o círculo da
repetição (1990, p.17 – grifos do autor).

O segundo fio que utilizo, um tanto quanto livremente, para a


organização desta parte da discussão, pertence a Freud (1966). No livro
Psicopatologia da Vida Cotidiana, o pai da psicanálise postula, de forma
bastante ilustrativa, que os erros e lapsos cometidos na vida de vigília (se bem
que ela exista também nos sonhos) se baseiam em alguma causa inconsciente.
Os esquecimentos, as falhas, os equívocos, os lapsos, os chistes, os trocadilhos,
dentre outros “erros” cometidos, seriam acertos explicáveis pelo diapasão da
vida inconsciente e fora do controle de um ego central e princípio de unidade
(se é que o “eu” do ego cogito existe em algum tempo). No bojo da discussão,
um destes equívocos ou erro se localizaria, para Freud, no que ele denomina
como denegação, conceituando-a como o fato de a negação linguística
superficial dever ser lida como afirmação e não como negação. Dito de outro
modo: quando o paciente recusa um “conteúdo”, o analista deve fixar o seu
efeito de sentido exatamente pela leitura contrária. Ao dizer “não”, o paciente
quer efetivamente dizer “sim”; pelo fato de a admissão ser indesejável, ele a
nega. É pelo fato de negar que ele afirma e admite. Seja o caso de o paciente
afirmar “ele não é meu pai”: o efeito seria o de afirmar que “ele é seu pai”.
Eis a denegação, ou a negação da negação. Um tanto livremente, coloco este
conceito sob outra mirada, para poder pensar que, em outro polo, quando o
“paciente” diz sim, ele quer dizer não. Um exemplo para pensar, mas que já
vi ocorrer em inúmeras situações: quando se afirma reiterada e abusivamente
“eu te amo”, o enunciado parece indicar justamente a ausência do afeto em
questão. Se, ao negar, o “paciente” afirma, parece que, ao afirmar, ele nega
(não que seja ubíquo e se aplique peremptoriamente, mas, às vezes, o pleito se

______ [ 219 ]
aplica). Valendo-me do insight de Freud, denomino, à falta de termo melhor,
esse processo de desafirmação.
O leitor deve estar perguntando como isso se relaciona com os hinos
sul-americanos: como o invisível irrealizado das revoluções e a desafirmação
da superabundância enunciativa são relativos à sua composição. O fio da
navalha reside na hipótese que pretendo defender: contra o deslumbramento
e o êxtase efusivo da pátria paradisíaca, dado o transbordamento e a
manifestação hiperbólica de uma existência idílica e idealizada, os hinos, como
um ato falho insidioso, revelam a ausência, indicam o desejo de realização do
irrealizado e apontam uma memória de futuro. Contra a enunciação indicativa
e certeira demonstrada, que coloca a história como plenamente resolvida,
os hinos, como lapsos excessivamente abusivos, revelam exatamente o
que falta: a liberdade, a justiça, a honra, a virtude, a paz, a união, ou seja, a
falta do que todos querem e do que os hinos levantam as bandeiras. Neste
sentido, o que os hinos afirmam como uma concretude visível, voluntária
ou inconscientemente, não é mais do que a revelação de uma falta. O que
celebram como parte da vida concreta é o que ainda não foi conquistado e
não a pura constatação objetiva e referencial do existente.
Para defender a hipótese que acabo de assumir e demonstrar que,
ao lado do êxtase grandiloquente da existência bem-aventurada, o irrealizado
se manifesta e, como lapso, revela o outro lado da moeda (não o que se tem,
mas o que se deseja ter), atento para alguns recortes que, por meio da esquiva
ao controle do ego unitário, indiciam a irrealização e o desejo de que ela se
concretize (ou perdure, se é que já foi alcançada). Penso poder afirmar que
a profusão enunciativa e o exagero de louvação mostram o invisível que se
torna visível num momento em que os ventos do acontecimento permitem
que ele se manifeste (o que não significa que ele estivesse realizado ou já
dado).
Como assumi, ao lado de enunciados que indicam a existência objetiva
e vivida de um presente repleto de abundâncias e prazeres, movimentando o
pêndulo no sentido de afirmar indicativamente a bem-aventurança, outros
versos (em número menor e, por isso, permitindo a hipótese de que ocorrem
como atos “indesejados”) instigam para a necessidade de lutar pela manutenção
do estado alcançado, para a não realização plena do que parece realizado e
para a obrigação de evitar que alguma fratura quebre a paz e a união. Se
os hinos fossem tomados de um ponto de vista estritamente textual, eles
teriam uma contradição lógica, pois, se os laços de fraternidade “constatados”
existissem, não haveria por que tentar evitar a possibilidade real de sua perda.
Isto quer dizer que os hinos sul-americanos oscilam entre a percepção um
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tanto incrédula do que parece constituir a história e a ameaça eminente de que
venha a evanescer como fumaça. No limite, percebe-se que os hinos afirmam,
de modo inseguro, a existência de um conjunto de elementos que ainda são
sonho e não objetividade realizada.
Para a confecção desta seção, não sigo o caminho “lógico” da seção
anterior, passando por cada hino. Detenho-me em recortes de algumas
composições que revelam o ponto de vista assumido, o que não significa
que, nas demais, as reflexões não possam ser ratificadas. Quero relembrar que
eles são trazidos para mostrar que, contra o deslumbramento efusivo com
uma realidade já dada a ver (ele açambarca meio que o todo das letras dos
hinos), determinadas passagens apontam para a dúvida sobre essa evidência e
a necessidade de conquistá-la.
No hino boliviano, há os versos “las glorias que empieza hoy Bolivia
feliz a gozar”. Este recorte permite diversas entradas para a demonstração
do irrealizado contra o realizado indicativo que caracteriza outras passagens.
Uma delas se refere a “las glorias”. A expressão funciona como uma fórmula
vazia e genérica, um invólucro sem sentido, que pode significar qualquer coisa.
Ela é o nada que é tudo e é o tudo que é nada. Se não é possível falar sobre as
glórias presentes, deve-se admitir que não existem. Elas poderiam ser apenas
a independência conquistada, mas isso não transformaria o presente numa
época de bem-aventurança. Outra janela remete à flexão verbal “empieza”
que, como marcador de pressuposição, permite a detecção de vários efeitos
de sentido. O mais evidente diz respeito ao fato de que, se começa a gozar,
as glórias ainda não existiam em face da opressão do imperialismo. Nesse
caso, não há como falar de um instante pleno, se ele ainda é incipiente. Outro
mostra que, se a vida em gloria está no seu início, ela não é gloriosa, dado que
um estado de vida de bem-aventurança não nasce armado e resoluto em toda
a plenitude, mas é conquistado cotidianamente e com a resposta imediata a
cada quebra dos rituais previstos. Outro, ainda, indicia que as glórias estão no
início e, por isso, elas não estão atingidas plenamente, devendo ser buscadas
e ampliadas a cada demanda. Parece inquestionável que, uma vez conquistada
a independência, nem todos (ou ninguém) foram agraciados de imediato pela
vida em glória. E, com certeza, não foram todos. É evidente que a grande
maioria da população acordou nos dias, semanas, meses e anos seguintes à
proclamação da independência do mesmo modo que antes de ela acontecer.
Outro, por fim, aponta que, se as glórias estão no início, elas ainda são tênues
e podem se desfazer a um ruflar de asas. Contra a ameaça presente das
dores vividas, a celebração não pode ser mais do que a comemoração ainda
contida da vida que parece começar a se concretizar. O medo do retorno ao
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jugo vivido parece pairar sobre a enunciação de louvação, dando-lhe tons
menos efusivos do que ela gostaria de colocar em sua prosódia. A terceira
entrada se refere ao dêitico temporal “hoy” que, fazendo eco ao marcador
de pressuposição “empieza”, aponta para dois efeitos distintos. Se, olhando
para o passado, revela que, antes do presente, o estado glorioso não existia,
também permite inferir que, após o dia vivido, no futuro, não se pode ter
certeza do que virá. Se “hoy” o país, feliz, começa a viver as glórias, isto não
ocorria antes e também não se tem certeza do futuro: parece que, se, sobre
o passado, pode-se efetuar uma enunciação positiva, o mesmo não ocorre
com relação ao devir, pois, sobre ele, certeza alguma pode ser enunciada. No
advérbio “hoy”, revelam-se a certeza de um sentido e a incerteza (talvez, um
pouco de medo) do outro. Por fim, creio dever dar atenção para a metonímia2
efetuada na composição da letra, por meio do nome do país “Bolivia”. Ao
afirmar que a Bolívia está feliz e começa a gozar as glórias da independência,
pretende-se afirmar que os bolivianos estejam felizes e vivendo em glória.
Mas o descolamento constituído parece abrir brechas para que se perceba
que, mais do que o povo que constitui a nação, ela é que precisa estar em
ordem, em detrimento do seu povo. Assim, se o país vai bem, mesmo que as
pessoas estejam passando por contratempos, tudo está dentro da normalidade.
Esse discurso não é estranho às paragens brasileiras, por exemplo. O recorte,
como um lapso inesperado ou equívoco “indesejado”, permite a descrença na
superabundância e na prodigalidade em que, aparentemente, a Bolívia (e o seu
povo) teria imergido após o acontecimento da independência.
No caso do hino brasileiro, dentre outras, a percepção de não
existência do mundo paradisíaco celebrado em outros momentos pode ocorrer
na passagem “Brasil, de amor eterno seja símbolo”, em que alguns efeitos de
sentido são detectados em “contradição” com a bem-aventurança louvada.
Antes, perceba-se que, como no hino boliviano, a metonímia constituída pelo
uso de “Brasil” ao invés de “brasileiros”, ou seja, do todo pela parte, permite
inferir que, ao afirmar que ele deve ser símbolo de amor eterno, assume-
se que é o país que tem primazia, em detrimento do povo, mesmo que se
queira efetuar a imbricação lógica de que, se o país é amoroso, os beneficiários
são as pessoas que o habitam. O descolamento entre as pessoas e o país,
por meio da metonímia, coloca em preponderância a pátria e não o povo,
devendo este cooperar para a grandeza daquele, mesmo que tenha que abdicar
de determinados direitos. Por outro lado, a flexão verbal “seja”, no modo
imperativo, parece impor a injunção de um modo de ser que não existe. Se o
país já fosse um símbolo de amor eterno, não se justificaria pedir que “seja”.
Ou, sob outro prisma, mesmo que já fosse, a imposição indicia a descrença ou
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a insegurança frente à promessa de estado que se anuncia com a conquista da
libertação. Ainda: se a injunção é feita em termos de dever vir a ser símbolo de
amor eterno, isso é plausível sob a âncora de que o amor decantado não é uma
realidade que alcança a todos como se defende em vários recortes e, pois, o
país não é o espaço benfazejo que alguns versos constroem. Portanto, mais do
que a constatação de um estado de felicidade para todos, o verso, como um
equívoco que rompe o ritual e provoca abalos nos cristais sedimentados das
significações “desejadas”, interroga a certeza do gozo feliz de um presente
que se ressente da concretização daquilo que a proclamação da independência
prometia. No hino, manifesta-se, assim, a cota de irrealizado invisível que tem
ansiedade de se materializar.
No hino colombiano, o invisível irrealizado, ou seja, a contraface da
superabundância prodigiosa pode ser detectado no recorte “La independencia
sola al gran clamor no acalla; si el sol alumbra a todos, justicia es libertad”.
Já à primeira vista, há o choque provocado pelo verso que afirma que a
independência, por si só, não silencia e nem acalma o grande clamor que
se ouve, o que impõe que se perceba que, se a independência era desejada,
mais do que ela, desejava-se o que se supunha que viria. Responsabilizado
pelas mazelas sociais do povo, o império espanhol, uma vez sendo eliminado,
permitia promessa de realização do que era desejado por quem passava fome
e vivia ao relento. Embora, portanto, o hino da Colômbia faça a apologia da
liberdade, o tema fulcral da sua conquista está ligado às realizações da vida
concreta de quem lutava para que a supressão do jugo ocorresse e tivesse as
vontades levadas em conta. E o hino alerta: o limite de busca dos combatentes
não coincide com a possibilidade de autonomia do próprio país, mas com
a realização do que, “invisivelmente”, empurrava os combatentes. Pode-se
inferir que há um efeito de sentido presente no verso que soa, à guisa de aviso,
para o que competia alcançar, assim que superasse o jugo imperial. No outro
verso, é contundente o alerta de que, apenas sob a condição de o sol (e os
efeitos de sentido que se associam a ele) iluminar a todos e de as condições
concretas de vida plena estarem satisfeitas, a liberdade se torna tangível e
real, pois é presenciada na contraparte visível e material que a constitui: na
justiça que se torna palpável na vida cotidiana e nas necessidades materiais
e sociais de que todos devem usufruir, sem que uns sejam mais iguais do
que outros. Essa é uma práxis social e ordinária que não distingue e nem
hierarquiza os homens. Como se vê, apesar de o encantamento da liberdade
ser um fio temático do hino em pauta, a passagem destacada quebra a apologia
grandiloquente e coloca no terreno da objetividade positiva o que cumpre
realizar para que a liberdade efetivamente se torne uma presença nobre e
digna.
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No caso do hino paraguaio, um primeiro recorte atende bem aos
objetivos desta seção. Ele se refere à passagem “ni opressores, ni siervos
alientan donde reina unión e igualdad”. É possível seguir duas vias para a
leitura, sem que uma seja excludente em relação à outra. Elas se sustentam
em dois movimentos pendulares, que oscilam entre a percepção positiva da
existência já concretizada e verificável e a chamada para uma atitude que
atende à injunção de uma ordem pautada num slogan. O recorte flutua entre a
afirmação modal da certeza de que já não há opressores e servos no Paraguai,
pois, a união e a igualdade são constitutivas do vivido e a injunção orientadora
de que, num país que se deseja unido e igualitário, a opressão e a servidão não
devem existir. Dado que o hino foi composto perto do instante da conquista
da independência do país, talvez, possa-se afirmar que a segunda via parece
mais plausível. De toda sorte, no limite, a polissemia dá o tom da passagem
e, como voz sob a voz, o ato falho, o equívoco e a quebra do ritual revelam
o irrealizado e a vontade popular de que o mundo seja de outro modo. O
recorte seguinte, escolhido para a composição da defesa de um invisível que
deseja se tornar real, pode ser lido no mesmo fio do anterior: “Oh! cuán
pura, de lauro ceñida, dulce Patria te ostentas así”. Se, por um lado, pode-se
entender que o hino assume que a pátria é pura, doce e cingida por louros,
ostentando esses traços por defender a união e a igualdade, também há efeito
condicionante de que a pátria só pode ser pura, doce e coberta de louros, se
atender à inescapável exigência de fazer com que todos sejam tratados de
modo isonômico, sem opressores ou servos. Se, num diapasão, a pátria já é o
que diz que “é”, por outro, há a chamada de atenção para que os dirigentes
do país ouçam o clamor popular e atendam ao irrealizado que se manifesta
nas vozes que pretendem se tornar audíveis. De novo, ao lado (ou sobreposto,
talvez) da voz que celebra e enaltece o presente vivido, construindo-o de
forma meritória, ouve-se o alerta que impõe uma atitude frente ao futuro de
atentar para os clamores invisíveis. Na ode, revelam-se fragmentos de espelho
que estilhaçam a unidade do discurso unitário e fraturam a vontade de uma
celebração hegemônica, efusiva e grandiloquente.
No hino peruano, pelo menos, dois recortes tornam saliente uma
vontade de futuro e a injunção de uma busca permanente. Por meio da visita
à zona do silêncio, eles fazem perceber que o presente não satisfaz a todos
os anseios como desejaria sustentar. O primeiro recorte é “para siempre
jurémosla libre manteniendo su próprio esplendor”. Ao lado da celebração
do encantamento com a pátria esplendorosa, ocorre o juramento de que se
deve mantê-la livre, o que implica na pressuposição de que, se o povo ainda
não está realmente liberto em face do tempo decorrido entre a proclamação
______ [ 224 ]
da independência e a composição da canção, é possível inferir que não se
tem total certeza de que o estado de liberto seja mantido naturalmente,
devendo haver a luta constante da pátria para que as pessoas sejam livres,
obviamente, com o que a liberdade traz como bem para a população. Assim,
ao juramento de manutenção do esplendor da pátria, estão atreladas a
opulência e a autonomia do povo peruano. Se, por um lado, não se deixa de
exaltar o presente vivido, por outro, atenta-se para o que a luta para ser livre
significou e que objetivos possuía. O irrealizado e o invisível irrompem no
tecido da celebração extasiada. No segundo recorte, “que a los siglos anuncie
el esfuerzo que ser libres por sempre nos dio”, ouve-se a voz imperativa que
determina que o esforço dispendido para a obtenção da liberdade atual deve
ser aclamado e exaltado e, por isso, contemplado em relação aos sonhos
buscados por quem, inclusive, deu a vida para que o presente fosse portador
de determinados traços. Neste sentido, se a liberdade é um fato tangível e
objetivo, mas não está conquistada para sempre e se deve buscar mantê-la
ao custo que se imponha. Além disso, ao celebrar e cobrar a rememoração
do gesto dos que deram a vida pela conquista, cobra-se o atendimento aos
desejos e sonhos dos combatentes, transferindo-os para os seus descendentes.
Se a luta pela independência estava pautada no irrealizado e no invisível que se
queria visível e se a superabundância que o hino revela é mais o que se deseja
do que o que se tem, o hino é uma peça performática de reivindicação e não
puro dado objetivo constatável.
O hino uruguaio é abundante na chamada de atenção para o fato de
que o gozo que os outros hinos admitem existir em profusão ainda ocorre
de forma tímida e começa a acontecer. Mais do que presença concreta, as
possibilidades de realização estão prenunciadas e não realizadas em definitivo.
Contra a constatação da abundância superlativa decantada por outros hinos, o
uruguaio é construído como slogan injuntivo e imposição de comportamento
futuro sobre os cidadãos do país. Um exemplo pode ser observado no recorte
“de los fueros civiles el goce sostengamos; y el código fiel veneremos inmune
y glorioso”. Como se observa, ao invés de enaltecer um estado resolvido de
forma perene, o hino convoca para a manutenção dos direitos civis e das
premissas da lei. “Los fueros civiles” e “el código fiel” não são dados como
fatos assegurados, mas como metas a serem concretizadas no decorrer dos
dias. As flexões verbais “sotengamos” e “veneremos”, se, por um lado,
permitem pressupor que já se está de posse de algum elemento, por outro,
denuncia a insegurança sobre a certeza da sua manutenção, não havendo
outra razão para que a demanda injuntiva de luta pelas conquistas obtidas seja
reiterada a cada nova entoação da canção pátria. Uma mescla de entusiasmo
______ [ 225 ]
e temor se vislumbra no recorte que flutua entre a certeza efusiva e o medo
ameaçador. Outro recorte que revela esse misto de contentamento e de
ameaça se mostra em “y los libres adoren triunfante de las leyes el rico joyel”.
Se é possível pressupor que não se poderia convocar para a adoração do “rico
joyel de las leyes”, se já não existisse, também parece necessário perceber que,
se ele fosse fato consumado sobre o qual não pairasse nenhum temor, não
haveria razão para convocar “los libres” para que o “adoren”. Paralelamente,
portanto, à constatação de um fato presente (mas ainda nebuloso), produz-
se o efeito de sentido de que ele deve ser mantido e posto à disposição de
todos; o invisível que se tornou visível com a independência se revela como
ainda irrealizado em sua plenitude, devendo haver aqueles que não foram
contemplados com as promessas que a libertação trazia materializadas. Mas o
recorte que mostra de modo mais contundente que o embevecimento com a
liberdade da pátria é ameaçado por nuvens que pairam no horizonte pode ser
observado no recorte “de las leyes el Numen juremos igualdad, patriotismo
y unión, inmolando en sus aras divinas ciegos odios, y negra ambición”. Se,
mesmo estando sob o primado da lei, é preciso convocar os cidadãos para que
“jurem” lutar pela união e pela igualdade e é preciso afirmar que essa é a forma
de atuação patriótica, no conjunto de pressuposições que circulam, podem-se
detectar a desigualdade, a desunião e a falta de patriotismo que ameaçam a
frágil existência do direito legal alcançado. Não há certeza de que os direitos
obtidos estejam livres de ameaças. O recentemente realizado pode evanescer
em segundos. A revelação de que o presente não está equacionado e que há
uma meta a ser alcançada é perceptível na comanda de que os “ciegos odios”
e a “negra ambición” sejam imolados em altares sagrados. Só se faria essa
afirmação frente a dissensões internas e, se sobre a independência conquistada,
houvesse interesses em conflito, conferindo privilégios a uns em detrimento
de outros. Ou seja: o invisível de alguns discursos ainda está invisível e o
irrealizado de algumas vontades continua à espera. Contra a superabundância
enaltecedora do presente vivido, que, de um lado, parece constatar a vida
idílica e paradisíaca de um momento perfeito, os recortes destacados indiciam
a ausência de atenção para vontades de futuro que participaram da luta e se
acham silenciadas e recalcadas.
No caso do hino venezuelano, por fim, dois versos em especial chamam
a atenção, pois indicam a irrealização do desejado e a permanência do invisível
sem visibilidade, bem como produzem o efeito de que a superabundância
exaltada ao longo da composição pertence mais ao terreno do ambicionado
do que à existência objetiva. O primeiro verso é “Gritemos con brío muera
la opresión!”. Parece evidente que, mais do que constatar a presença positiva
______ [ 226 ]
da liberdade, o hino conclama para o posicionamento contrário à opressão,
incitando para que, com coragem, o povo lute contra o jugo tirânico, se ele se
fizer presente. O verso atua como um slogan ou palavra de ordem, que carrega
a injunção de combater o autoritarismo e evitar que a opressão aconteça, seja
no presente vivido ou no futuro buscado, donde se pode inferir a sua alocação
no terreno do irrealizado. Como equívoco que provoca fraturas no ritual, o
hino, que deveria ser apenas um gesto de enaltecimento do momento vivido
pela pátria e pelo povo, em momentos cruciais, em que o controle enunciativo
enfraquece, revela a incerteza sobre a presença do estado glorioso e sobre
a necessidade de conquistá-lo a cada instante. O segundo verso se refere a
“compatriotas fieles, la fuerza es la unión”. Como antes, os versos começam
por um vocativo instigador, dirigindo-se aos conterrâneos e os chamando
para partilharem de uma busca e de uma concretização ainda não realizada,
sobretudo, por meio da união, mas pela força, se necessário. É evidente que, se
a união e a força fossem constitutivas da história vivida e se tivesse certeza da
sua perpetuação no futuro, não haveria necessidade de efetuar a conclamação
e transformar versos do hino em palavras de ordem. Ambiguamente, o verso
mostra como é a união de todos que dá a força necessária para alcançar os
objetivos buscados, mas também como é a força que, em face do seu poder
de enfretamento, permite que a união aconteça: neste caso, defende-se, até,
que ela seja usada contra os próprios conterrâneos, se forem uma ameaça à
liberdade e se tornarem uma ameaça opressiva. Seja com palavras de ordem,
com ditames de como agir e a quem combater ou com a ambiguidade que
aponta para a necessidade de conter ânimos mais exaltados por meio da força,
o hino, nos versos citados, revela que a louvação de uma pátria abundante
e vivida em regozijo está situada no terreno do desejado não alcançado e
não no universo da vida positiva e concreta. Mais uma vez, pode-se pleitear
que os hinos nacionais em estudo, nos lapsos, atos falhos e equívocos que
possuem, indiciam o país que se deseja e não que a plenitude de realização
das vontades invisíveis. Eles são fragmentos de orientação de como um país
deve ser e não a revelação inconteste do que ele já é. Eles se apresentam como
peças políticas reveladoras de vontades que, dado que se situam na zona do
irrealizado, esburacam o ritual e mostram onde o sujeito não sabe que está,
pelo menos, conscientemente. Também neste caso, a grandiloquência efusiva
e elogiosa sobre o momento presente não deixa de apontar para o exagero
afirmativo que deve ser lido no diapasão da negatividade ou da desafirmação,
como postulei no início da sessão.
Estabeleci como meta a demonstração de que os hinos sul-americanos
são, na maior parte da sua tessitura, constituídos por uma trama que exalta
______ [ 227 ]
a pátria e produz o efeito de sentido de que ela destina a cada um uma vida
paradisíaca, por meio da incidência teimosa e renitente de um presente vivido
em perfeição. A prática discursiva dos hinos em estudo, portanto, é sustentada
por uma defesa persistente de que o país bafeja a todos com sopros de
felicidade, realização e vida farta. O ritual impõe sobre as composições
a superabundância, a profusão e a prodigalidade. A generosidade altruísta
e interessada no bem coletivo atravessa de alto a baixo o fio do tecido e
predispõe a imagem de um país para todos.
Mas a “constatação” renitente da superabundância profusa, difusa e
grandiloquente da magnitude generosa da pátria, pelo exagero que cria, faz
com que se desconfie da felicidade hiperbólica e do eldorado. Há elementos
meritórios demais para ingredientes positivos de menos, que são vividos pelos
povos desses países (a história passada não deixa de trazê-los à baila) e que,
aqui ou acolá, em momentos desiguais, emergem, mostrando que o irrealizado
continua invisível para muitos e que a magnanimidade da pátria é só um efeito
de sentido provocado pela superabundância afirmada, que nada mais é do que
o desejo de que assim fosse, quando efetivamente não é: eis a desafirmação. A
generosidade ubíqua da pátria para todos é, pois, um efeito do discurso e não
a concretude histórica: ou o real da história.
E, apesar de se saber que os hinos nacionais não são feitos por
qualquer um, que eles passam pelo crivo político de quem está no poder, que
são confeccionados por diversas mãos e que são promulgados como hinos
à força de lei e de ditames legais, mesmo assim, sob todo o processo de
rarefação que os vigia e os cerca de cuidados zelosos, eles falham, eles fraturam
o ritual, como espero ter mostrado na segunda seção, com a hipótese de que a
constatação positiva da realização dos desejos e vontades faz com que o olhar
se dirija para o outro extremo do pêndulo e veja que muito do que se afirma
é só o produto de um discurso otimista, ufanista e desejante, que aponta para
a ausência, a falta e a surdez para as demandas sociais.
Para reiterar meu ponto de vista, os próprios hinos, em versos
“perdidos” no meio de suas teias de fios, como atos falhos, equívocos, erros
ou lapsos, provocam brechas e frestas no ritual previsto, exigindo outros
olhares. Estes versos “indesejados” aparecem como se fossem “mensagens”
subliminares, que se quis que ali estivessem como modo de romper a
censura preocupada com o atacado e não com o varejo ou como irrupção
do inconsciente que produz efeitos cifrados como se fizessem parte de um
código secreto a ser desvendado. Por um lado, um “ensinamento” para a
posteridade e, por outro, a revelação de um presente irresoluto.
Neste sentido, talvez se deva considerar os hinos nacionais como
______ [ 228 ]
peças de proposição política e, por isso, “atos” performativos de injunção de
uma atividade a ser perseguida, e não constatação de um estado de mundo
que corresponde às condições de verdade dos enunciados que são proferidos.
Em face da realidade vivida, sentida e doída, já distante há alguns séculos do
acontecimento das independências, a superabundância exultante da situação
dos países é a desafirmação (a negação da afirmação hiperbólica) do que prega
e a revelação, ao inverso, do que falta trilhar para que o invisível se torne,
antes, visível, para, depois, quem sabe, vir a ser tenuemente realizado. Mas,
como afirma Pêcheux (1990, p. 19), as “línguas de vento” se especializaram
em dar respostas às demandas, distorcendo os efeitos e direcionando-as para
outros objetivos: para que tudo continue como antes.
Contra os efeitos de superabundância efusiva de bens, riquezas
e distribuição idêntica de atendimento aos prazeres e às vontades, ou seja,
contra a constatação positiva de uma era paradisíaca de bem-aventurança (o
que, em geral, afeta a maior parte dos versos dos hinos), em alguns segmentos
das composições, efeitos de sentido corrosivos fazem perceber que o êxtase
e o embevecimento com o solo pátrio não está tão seguro quanto gostaria de
poder aparentar e, oscilante, faz o pêndulo se dirigir para outro polo, em que
o estado de graça que parece ubíquo, às vezes, torna-se apenas um efeito de
sentido: e não um sentido.
Contra a defesa rasteira de que as letras dos hinos em estudo deveriam
ser alteradas em face dos aspectos “negativos” que apresentam, cumpre
entoá-los até não mais poder, para que se tenha a oportunidade de ouvi-los do
que dizem e percebê-los nas falhas que provocam no ritual que tentou cercá-
los e fazê-los servir a uma vontade e a um senhor. Creio que se deve escutá-
los, para que se perceba que o entusiasmo ufanista que os constitui deve ser
lido no seu diapasão negativo e que o irrealizado continua invisível ou tão
mais invisível agora, em face de que, obtida a “liberdade” almejada, afirma-
se que ela contempla a todos e, portanto, não há mais razões para perseguir
objetivos que se acham plenamente equacionados. Não há estratégia melhor
para silenciar um problema do que afirmar que ele não existe.
Como modo de fechar a sessão, gostaria de reiterar a ideia de que, na
superabundância efusiva que é recorrente nas letras dos hinos estudados, a falta,
a ausência e a negação devem ser tidas como o fio organizador das composições
e que se deve dar atenção aos versos que produzem a equivocidade do ritual,
até porque o sujeito autor das letras parece estar, neste sentido, exatamente
onde não sabe que está e a sua vontade não corresponde efetivamente àquela
que transborda do exagero e da grandiloquência com que circunscreve a pátria.

______ [ 229 ]
MUDEMOS, ENTÃO, AS LETRAS DOS HINOS?

Com a hipótese assumida anteriormente (e sem negar que ela seja válida), de
que há um desequilíbrio entre a esfera constatativa e a performativa, com o
exagero hiperbólico da primeira e a ruptura com o ritual da segunda, pode-
se assumir também que, no momento em que os hinos eram compostos,
dado o êxtase da supressão do imperialismo, os hinos fossem mais uma ode
à grandeza conquistada e uma palavra de ordem para a vida futura e não a
pura constatação de um estado de vida que aparecia armado de um dia para
o outro. Tratava-se mais da defesa de uma meta alcançada e outras a serem
atingidas, do que a constatação de um estado de bem-aventurança miraculoso,
que se constituiu de repente. E esse estado de vida em deleite não está, nem
sequer minimamente, realizado atualmente.
Talvez seja necessário perceber que o deslocamento e o descolamento
do eixo dêitico de produção de cada um dos hinos sul-americanos para outro
momento temporal provoca um deslizamento do que era mais, tal qual
ato falho, equívoco ou lapso, a defesa de uma memória de futuro do que a
pura constatação, que acontece, quando eles são entoados mecanicamente,
hoje, quando se vê o hino nacional do próprio país ser executado. O que,
então, era a vibração de uma nota entusiasta e proponente de uma vida em
clima de justiça, harmonia, paz, união e legalidade, aqui, torna-se a asserção
declarativa de que tudo está resolvido e cada um é bafejado pela igualdade,
pela liberdade e pela fraternidade, que alcança a todos, tornando-os iguais
legal e materialmente: o que está longe de ser verdade.
Mudar a letra dos hinos, porque determinados ingredientes lexicais
mais contundentes podem melindrar os sentimentos de um ou de outro nem
sequer tangencia o que efetivamente um hino é para o povo que o toma como
principio identificador; ainda que ele fosse apenas a melodia que, entoada, faz
pulsar mais forte o coração dos que o ouvem, sem saber por que isso ocorre, a
“reviravolta” significaria a criação de uma ferida narcísica que quebra um dos
lugares de encontro dos que tiveram a sorte (ou o azar) de nascer num mesmo
espaço.
O hino nacional, enquanto apenas melodia musical, é o encontro do
ouvido com o que situa, localiza, distribui, aloca e organiza pessoas de uma
comunidade social: a emoção que cerca a sua execução é o encontro de cada
um consigo mesmo e com os outros que são partícipes dos mesmos laços
culturais, ainda que sejam flutuantes, tênues e pouco descritíveis: no limite,
eles podem ser apenas estar no mundo num canto do planeta. Mas há, pelo
menos, quatro razões para defender que a mudança proposta não é de bom
alvitre.
______ [ 230 ]
A primeira se refere a uma questão que diz respeito à constituição
da identidade e da completude subjetiva de cada um, embora a completude,
como se sabe, seja sempre transitória e indefinida. Como tantos ingredientes
que compõem o mosaico, a colcha de retalhos ou o trabalho do colecionador
que constitui a transitividade do sujeito rumo a uma história de vida, sempre
plástica e flutuante, um hino é um dos elementos que contribuem para dar
a aparência de finitude e de pertença a uma centralidade que aloca o sujeito
num espaço definido e lhe garante uma identidade toda particular. Juntamente
com a família, a escola, a igreja, o partido político, os amigos, os vizinhos e a
infinidade de coisas que trafega pela existência histórica de cada um, um hino
é mais um “detalhe” (talvez, o mais importante em termos de espaço) que
imprime sobre o indivíduo uma subjetividade que lhe garante uma pertença
e um modo de ser, mesmo que ele não saiba qual. Ser brasileiro, chileno,
argentino sempre produz um efeito de sentido que aloca e coloca a cada um
numa parte da terra e lhe causa a impressão de que estar ali é viver a vida de
um determinado modo. Ao invés de ser uma fórmula vazia ou um elemento
não saturável, por não ser mais do que uma metáfora vazia (a partir de um
ponto de vista), um gentílico faz com que o sujeito partilhe de um imaginário
que lhe diz o que ele é: que o seja não importa. Alterar, mudar ou “limpar” a
letra de um hino é contribuir para a fratura dos espelhos em que os sujeitos
se reconhecem e fragmentar ainda mais uma vida que, em face do “caos”
da pós-modernidade, tem poucos pontos de reunião e de unificação de um
ego já bastante disperso e rarefeito. Um hino é um ponto de ancoragem que
contribui para que a “insanidade” e a “neurose” não se tornem ainda mais
contundentes. A fratura provocada por meio da mudança na letra de um hino
é a fratura infligida sobre o espelho narcísico que permite a cada um a ilusão
necessária de ser “eu” e não um conjunto disperso de alinhavos difusos sem
nenhum princípio de unificação. Não se trata de afirmar que o ego seja uma
unidade ou de que a consciência daquilo que se é e se quer seja plena, mas a
ilusão de que ele existe e é uno é vital para o ser humano. Alterar a letra de um
hino é, também, fragilizar, ainda mais, uma identidade já fragilizada.
A segunda diz respeito ao fato de que um hino, mesmo que não
o deseje e pareça um slogan injuntivo somente ou uma ode de louvação à
pátria “amada e idolatrada” apenas, constitui-se em peça histórica, porque
está na história e rememora a constituição de fronteiras de pertença a uma
formação social. Acontecimento que se amarra a um momento histórico
específico e que se pronuncia sobre ele, um hino é um gesto de memória do
que aconteceu e do que se deseja, além de circunscrever um presente que,
por mais idealizado que pareça, permite que se entreveja a teleologia buscada.
______ [ 231 ]
Os hinos em estudo são históricos, portanto, de uma forma multifacetada,
pois abordam um passado que aconteceu de um modo trágico, um presente
que se desenha entusiasta (embora se deva desconfiar desse otimismo) e um
futuro que deseja a vida em plenitude para todos, apesar de não estarem
seguros dessa concretização. A alteração das letras faria este delineamento se
perder e, com isso, a revelação dos limites do irrealizado que se fez visível por
momentos (e, às vezes, torna-se distante e recalcado).
Além disso, os hinos sul-americanos, às vezes, de modo tênue e frágil,
mas, às vezes, de maneira contundente, revelam que a geometrização das
fronteiras geográficas, culturais e sociais de cada país (ou seja, das margens
que forjam identidades e sensações de pertença a um modo de estar no
mundo) foi obtida por meio de sacrifícios ocasionados pela luta, pela morte,
pelo sangue, pelo sofrimento e pela dor, o que lhes permite, inclusive, impor
sobre as gerações futuras a dívida de sangue criticada. A reflexão sobre este
ponto não só permite a compreensão de um pouco do que foi a história
de constituição de cada nação, como também que se perceba, criticamente,
a quem beneficiaram as vidas ceifadas e a quem o pagamento da dívida
privilegia, pois o distanciamento histórico de alguns séculos permite ver
que a grande maioria das pessoas se encontra alijada das promessas dos
movimentos libertacionários e das riquezas abundantes que os hinos afirmam
existir dentro das fronteiras geográficas dos países. E, se for necessário doar a
vida para que a abundância (de que alguns usufruem) seja mantida, nem todos
deverão fazê-lo, já que existem os destinados a estar na linha de frente e os
que “devem” conduzir a vida em atividade contemplativa e “estratégica”.
Um hino (e os sul-americanos de modo especial) é, pois, uma peça
(ambiguamente) histórica que constitui um gesto de memória e é imprescindível
que se saiba de onde se veio para se saber para onde se vai. Um povo sem
história (sem memória) pode cometer as maiores atrocidades, julgando estar
realizando um ato absolutamente inocente. Um historiador poderia fazer uma
boa reflexão sobre as condições históricas das independências dos países em
estudo e, talvez, chegar à conclusão que os hinos são uma forma de denegar
a liberdade inexistente. O que as independências latino-americanas obtiveram
foi a liberdade excessiva de uns em detrimento da liberdade de outros, livres
para se submeter a um poder crucialmente mais livre (nas mãos de poucos),
centrado quase que exclusivamente na existência econômica.
Parafraseio, neste momento, uma passagem já discursivizada em outro
ponto. Os hinos em estudo alertam, de modo mais ou menos contundente,
que a intrusão e a “ilegitimidade” de comando sofrerão o revide pronto e
genocida. Entretanto, pode-se ter certeza que o combate caberá a uma massa
______ [ 232 ]
eleita (que nunca será a dos pertencentes às “melhores” castas), a quem se
afirma que a violência só será exercida à guisa de defesa do bem alcançado
e do qual não se pode abrir mão. Mas não se mostra ou se assume que esse
bem não está ao alcance de todos. E, ainda, parece crucial notar que tirania,
despotismo, opressão, escravidão, submissão, jugo e sujeição são assumidos
como se fossem oriundos de fontes externas e não internas (internamente,
parece reinar uma fraternidade universal): o que é sabido que não procede. Em
alguns casos, nos países sul-americanos, as maiores violências e atrocidades
foram cometidas por “compatriotas” e por pessoas de uma mesma nação aos
seus “camaradas”. Um pouco de ambição e de sonhos de poder e riqueza
fixam moradia também na margem esquerda do rio. Não faltam exemplos
atuais de violências que se fazem contra o bem comum, que não tiram vidas
em campos de batalha, mas por meio de aparências nobres e grandes metas.
Acredito que haja imbricações históricas em profusão atreladas
inextricavelmente aos hinos em estudo, para que se alterem as suas letras
sem obliterar os efeitos de sentido que eles possuem e sem que se perca a
possibilidade de reflexão sobre um modo de existência que, às vezes, tem
sido tão exploratória e predadora. Mutilar uma composição da magnitude
de um hino nacional é produzir um apagamento da memória histórica, além
de silenciar e recalcar as vontades de realização que se acham imiscuídas nas
letras, quando se está disposto a ouvir. Defendo, portanto, que os hinos, ao
invés de serem alterados, sejam mantidos intactos e sejam ouvidos a não
mais poder, recebendo atenção efetiva ao que afirmam: muitos teriam muito
a aprender com o que os autores profetizaram e tornaram visível sobre o
irrealizado.
No que toca ao irrealizado (e aí está a terceira razão), como peças
históricas, os hinos dão concretude material ao que se desejava com a
independência, ao preço que foi pago para obtê-la e ao que se ambicionava
ao se tornar livre. A liberdade é mais do que a pura meta de libertação em
face do jugo imperialista: ela é a profecia e o desejo de realização de uma
vida cotidiana pautada na supressão das carências vitais e no atendimento
às necessidades de cada um; as mais triviais: alimento, casa, emprego, saúde,
segurança, lazer; coisas que o povo, infelizmente, para desespero de alguns
administradores públicos, continua a requisitar.
Tendo como fio de reflexão que os hinos são também o irrealizado
que retorna e se deseja ouvido e que a superabundância propalada é mais
o desejo de usufruir da fartura que se presencia do que a constatação de
que a prodigalidade existe, a descrição de um luta sangrenta e de mortes que
compraram a liberdade pode ser tida como a cobrança de que o troco deve
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ser dado à altura, no sentido de indenização das vidas ceifadas para que a
independência viesse e as riquezas enaltecidas fossem postas sob o usufruto
comunitário.
Alguns hinos tocam de modo frontal na violência sofrida por ser livre,
enquanto outros são mais assépticos, denegando-a ou a relegando ao silêncio:
mas ela está nas entrelinhas. Pode-se afirmar que a maior ou menor abundância
enunciativa sobre a belicosidade se faz por relação à maior ou menor luta
pela independência ou ao desejo de fazê-la ser esquecida. Porém, embora
alguns hinos sejam mais amenos no que tange à temática, todos os países sul-
americanos foram assolados pelo genocídio para se tornar livre. Talvez se deva
problematizar a opção pelo silêncio e a tentativa de apagamento da existência
de mártires da liberdade, o que pode, já no momento de produção (coletiva
e censurada, é bom lembrar), ser a tentativa de obliterar um débito histórico
inalienável e que deve ser trazido à tona. O irrealizado deve se tornar audível:
em ruidoso barulho e não sob a denegação dos discursos de palanques.
O que todos os hinos sul-americanos, de um modo ou de outro, não
cessam de repetir se refere ao legado sangrento recebido para que alguns
(naquele momento e parece cada vez mais verdade que é apenas por alguns)
pudessem usufruir de uma vida plena e pacífica à custa das “diez mil tumbas”
que os libertaram (penso que o irrealizado coletivo, no final das contas,
tornou-se o realizado de poucos, com muitos sendo alijados das conquistas
obtidas). Se, em alguns hinos, o derramamento de sangue é uma cobrança
exacerbada de uma dívida perene para com todos os que lutaram para que
os seus tivessem um lugar ao sol e, se, em outros, esta matriz é quase um
sussurro, ela não pode ser apagada: não é porque não seja abundantemente
tematizada que ela não esteja presente e ambicione vir à luz.
De todo modo, há que se perguntar por que alguns hinos enfatizam
a luta, a guerra, a dor e o sofrimento, enquanto outros (como o brasileiro)
preferem pôr o acento na exuberância da paisagem: há que se desconfiar
que alguma forma de controle da memória se acha em jogo. Frente a alguns
hinos, bucólicos por excelência, podem-se fechar os olhos e desenhar a beleza
ímpar que se pretende criar da paisagem: mescla de beleza, arte e majestade.
Reafirmo que há dois pontos de vista que cruzam esses discursos, de uma
forma um tanto paradoxal: enquanto uns cantam as belezas naturais e quase
não falam de luta ou de conquista, em outros, ocorre o contrário: a luta é
enfatizada e a beleza da casa pátria fica recalcada. Mas beleza há em cada
um e luta pela liberdade e pela supressão do jugo ditatorial aconteceu em
todos os países em foco. Penso que seja inegável que os hinos, por causa
da confecção a diversas mãos e da participação de várias forças de censura,
______ [ 234 ]
indicam, não a verdade objetiva e concreta de um mundo descrito de forma
isenta e desapaixonada, mas o resultado de um processo de seleção entre o
que dizer ou não, entre o que silenciar ou alardear: há que se perguntar por
que estes enunciados apareceram e não outros. A superabundância afirmada
é a prodigalidade desejada e a falta e o recalque revelam o que ainda inexiste:
os dois caminhos são a concretização do irrealizado e a afirmação do que
permanece (ainda) invisível.
A quarta razão para a defesa de que não se devem provocar mudanças
nas letras dos hinos volta a tocar na questão da superabundância afirmada,
que, mais do que o concreto já existente é a manifestação do que se quer
e ainda não se tem. A prodigalidade é menos o que já se possui e mais a
manifestação do que se deseja para, supostamente, a vida se tornar plena e
poder ser vivida de modo prazeroso.
Sob a forma de dois eixos (um negativo e outro positivo), os hinos
são hiperbólicos na explicitação do que não se quer e do que se quer: nos
termos assumidos, eles são o indesejado nomeado e o irrealizado colocado
em termos práticos. Temas nucleares das composições dos hinos, tais
como tirania, opressão, submissão, jugo e escravidão, são invólucros que
podem conter qualquer significação: eles perfazem um terreno plástico
que pode ser ideologizado quase que de forma irrestrita, fazendo fundir
e confundir democracia e tirania. Se é necessário extirpar x, como x deve
ser compreendido? Como distinguir tirania de democracia? Como diferenciar
república de totalitarismo? Nas execuções dos hinos atualmente, já na mecânica
da reprodução irrefletida, esses núcleos parecem possuir um sentido evidente
e como se jugo e submissão e liberdade e autonomia possuíssem sentidos
transparentes. Mas são significantes opacos e camaleônicos: eles circulam como
non sense absoluto, como recipientes que podem ser significados de acordo
com a historicidade de uma formação social. Não é óbvio como, superado
o momento de libertação de cada país, eles podem vir a se tornar inteligíveis
na voz de um governante ou partido político, que podem definir um mesmo
gesto interpretativo como tirânico ou democrático. A grandiloquência que
cerca esses ingredientes deveria ser traduzida por referência aos processos
discursivos dos que se encontram à margem e que possuem uma relação
estreita com movimentos libertacionários e não pelos que se fartam de
prazeres. A figura do porta-voz que fala por e no lugar de não pode ser útil para
a tradução.
O mesmo vale, mutatis mutandis, para abstrações (ou “ficções
demagógicas”, como diria Frege) como brio, bravura, coragem, valor, honra,
virtude, altivez, glória e heroísmo e, principalmente, para liberdade, igualdade,
______ [ 235 ]
fraternidade e justiça, dentre outros. A igualdade desejada pelo grande capital
não é exatamente a desejada por aquele que não se acha de posse de condições
de vida material satisfatória e depende da caridade alheia ou de programas
aviltantes de distribuição de renda. É provável que esse não seja o efeito de
sentido de bem comum para todos aqueles que se encontram alijados da
possibilidade de arbitrar sobre a sua vida e decidir o que parece mais plausível.
E, de novo, a arrogância dos porta-vozes que sabem tudo que é bom para os
outros, porque eles, ingênuos, não têm condições de discernir o que lhes serve
e o que lhes faz o bem entra em cena. O que conseguem ver não ultrapassa o
limite dos ditames do direito abstrato e lógico, que age por ignorância plena
da história.
Quem decide o que painel lexicológico significa? Quem diz o que
é ser igual, fraterno, justo e livre? Parece absolutamente defensável que, quando
se trata de preencher esses termos com um sentido (ou efeito de sentido), as
vozes autorizadas pelos meandros da democracia (e a quem elas servem) se
apressam em “dicionarizar” a leitura e empedernir o que poderia ser espaço
de embate e confronto: o resultado é a esclerose do sentido e a cristalização
mineral de algo plástico e legível de diferentes modos em diferentes lugares e
momentos.
Trata-se, portanto, de retirar esses termos de sua impávida arrogância
e de quebrar as cadeias de resistência à mudança de que são cercados.
É necessário que a plurivocidade que os constitui e a plasticidade de que
são feitos seja ouvida, com audição respeitosa, pois eles são saturados de
vozes sociais e a polissemia os habita. Há que se eliminar o porta-voz que se
especializou em produzir línguas de vento e dar ao público o sentido, que é
tão somente o seu efeito de sentido: nada há de audição verdadeira e dialógica
em situações desse tipo, porque aquele que efetivamente deve falar é a voz
recalcada e silenciada: o irrealizado inaudível.
Seja pela via do eixo negativo ou do eixo positivo, os termos que
habitam os hinos em estudo em profusa generosidade devem ser referidos aos
processos discursivos dos que se encontram à mercê das intempéries, porque
ali se encontra um sentido que diz respeito à vida cotidiana e às necessidades
básicas: esta é a voz desvalorizada e que clama por traduzir, para os seus
termos, o que é ser tratado com dignidade e justiça. Há que se desacreditar no
suposto direito universal e abstrato, porque a ótica sob a qual ele foi erigido é
a daqueles que podem fazer a lei pender a seu favor. Esta não é a leitura que
efetivamente diz respeito à vida plena que os hinos desejam, porque a vida
que ela promete está reservada para alguns privilegiados que, efetivamente,
gozam da abundância e prodigalidade: em detrimento de outros. Siga-se,
______ [ 236 ]
pois, o diapasão negativo ou positivo do pêndulo que os hinos constroem,
há que se entender que os ingredientes linguísticos não ocorrem como sinais
transparentes e imutáveis, mas são refeitos historicamente a cada momento,
por diferentes vozes e desejos.
Os hinos em estudo podem (se não devem) ser lidos como a denegação
de uma falta e a superabundância de que tratam é mais a ausência desejada
e cantada aos quatro ventos: a vida que se deseja fazer. Não perceber isso
por meio da negação de problemas que pulsam sob contenções que podem
desmoronar a qualquer momento é negar a manifestação de um desejo, é
coibir a constituição de uma identidade, é recusar a historicidade de um estar-
no-mundo produzido no calor da batalha, é obliterar um gesto fundador de
discursividade, é suprimir a memória que cerca o contorno de uma nação, é
recalcar no esquecimento os sacrifícios pagos para que um povo tivesse uma
fronteira geográfica discernível e sua. A mudança dos hinos não traria nem
a paz aos estádios e nem coibiria a misoginia e a xenofobia existentes. Estes
traços da cultura global atual são resultado mais da exploração de uns sobre
outros e da apropriação exorbitante de uns com o alijamento de outros, do
que da entoação de hinos que pregam a busca do irrealizado e o atendimento
ao desejo recalcado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ephraim Ferreira Alves). Petrópolis: Vozes, 1994.

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psicanálise e o pensamento. (Trad. Luiz Fernando P. N. de Franco). Campinas:
Edunicamp, 1990.

TOLEDO, Roberto Pompeu de. Nos hinos nacionais, raiva e ameaças. Veja,
São Paulo, Editora Abril, 24/06/1998, disponível em: http://veja.abril.com.
br/240698/p_142.html. Acesso em: 25/10/2007.

NOTAS

1) Estudo financiado com recursos de Bolsa de Produtividade em Pesquisa, concedida pela


Fundação Araucária, instituição de Apoio ao Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico do
Paraná.

2) Sobre a questão da metonímia em termos de discurso, cabe o alerta de que ela não é tomada
aqui como uma figura de linguagem, que joga com a parte e com o todo, mas como a parte
valendo pelo todo ou o todo valendo pela parte como o delimita e concebe uma formação
discursiva.

______ [ 238 ]
CAPÍTULO 11

“CASCAVEL,
QUEBRADA SOFRIDA”:
AS VOZES IDEOLÓGICAS NA
MÚSICA DO GRUPO DE RAP
“FACE HUMANA DO GUETTO”

Silvana Carolina Trevizan


INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objetivo analisar a prática discursiva da música


“Cascavel, quebrada sofrida”, do grupo de Rap cascavelense “Face Humana
do Guetto”, a partir dos pressupostos dialógicos do circulo bakhtiniano.
Como aporte teórico para o estudo, nos pautaremos em estudiosos
da área da filosofia da linguagem, sendo eles Bakhtin (1999, 2000), Barros
(1999), Brait (1999), Dahlet (1997), Camargo (2009), Brandão (1997), Faita
(1997) e GEG (2009). Fundamentar-nos-emos, também, em estudiosos da
esfera da Cultura Popular e do estilo musical Rap, referenciando Pinto (2004),
Shusterman (2006), Silva (1999) e Trevizan (2012).
Buscaremos identificar as vozes ideológicas presentes na música, que
é uma expressão de sujeitos, moradores da periferia cascavelense, que, apesar
de não exercerem a carreira de cantores profissionais, encontraram no Rap,
música genuinamente engajada social e politicamente, uma maneira de serem
notados pela sociedade, fazendo com que esta ouça suas ânsias por meio da
expressão artística.
Cascavel, município situado na região oeste do Paraná, com cerca de
286.205 (duzentos e oitenta e seis mil, duzentos e cinco) habitantes, segundo
os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de (2012),
classificada como uma cidade de médio porte, vive o inevitável contato com
a cultura de outros municípios, recebe e adapta influências das metrópoles,
principalmente, de São Paulo e Rio de Janeiro, uma vez que as mesmas
são polos midiáticos e transmitem a todo território brasileiro, por meio de
programas de televisão, novelas e telejornais, seus costumes e cultura. Uma
demonstração disso é a repercussão do Rap (Rhythm and Poetry – a tradução do
inglês é “Ritmo e Poesia”) junto à população cascavelense.
O Rap é uma música eletrônica feita por um operador de discos, que
produz bases e colagens rítmicas sobre as quais, às vezes, articulam-se outros
______ [ 240 ]
elementos, como solos de instrumentos e mixagens. Essa base rítmica é
executada por um DJ (Disc-Jockey, do inglês, que significa discotecário), servindo
de “fundo” durante a música ao MC (abreviação de “Mestre de Cerimônia”:
vinculado ao Rap, refere-se àquele que conduz a festa) ou rapper, que faz soar,
então, o chamado “canto falado”. Segundo Pinto,

Desenvolvidas pelos DJs, cortar e mixar um disco no outro igualando o


tempo para uma transição suave, toma elementos acústicos concretos e
performances pré-gravadas de padrões musicais. Assim, diferentemente do
Jazz, essas apropriações e transformações não requerem habilidade para
compor ou tocar instrumentos musicais, mas para manipular equipamentos
de gravação. (PINTO, 2004, p. 4)

Sendo assim, o Rap caracteriza-se como um estilo contemporâneo,


que nasceu e cresceu com a tecnologia e fez dessa o meio para a sua forma
artística. A melodia, por sua vez, é um elemento secundário neste estilo
musical e o principal componente é a “mensagem”.
Ele começa a despontar na cidade de Cascavel por volta do ano 2000,
com a apreciação e interpretação de músicas de grupos, como Racionais
MC’s, que alcançavam grande notoriedade no cenário da música nacional e
agradavam a jovens, principalmente, de bairros periféricos da Zona Norte
da cidade, como Morumbi, Periollo, Interlagos e Floresta. Os jovens
cascavelenses, empolgados com esse estilo, também se propõem a compor
suas próprias canções (TREVIZAN, 2012).
Este estilo musical que, no Brasil, teve seu berço na cidade de São
Paulo hoje tem uma grande aceitação, notadamente, dentre os jovens do
referido município, nas diversas classes sociais. Ele ganhou a juventude dos
subúrbios de cidades do mundo todo, pois tem em sua origem o intuito
de retratar a realidade das periferias e, em alguns casos, tem a pretensão de
abordar situações geradas por um sistema social injusto, suas instituições
e o consentimento das classes economicamente favorecidas que gozam de
regalias permitidas pela exploração dos marginalizados. De acordo com
Contier (2005),

O rap caracteriza-se pela re-invenção do cotidiano através da oralidade


de pessoas comuns que denunciam em suas canções problemas graves
vivenciados nas situações sociais extremamente adversas e totalmente
negligenciadas pelos Donos do Poder.

O estilo musical Rap traz em sua natureza o inconformismo perante as


situações díspares que assolam a população economicamente desfavorecida.
______ [ 241 ]
Trata-se de uma arte de cunho político-ideológico desenvolvida pelos sujeitos
da periferia, que tem como base a ótica ideológica adotada pelo Hip Hop,
um movimento originário nos Estados Unidos, que tem como pilares e
ferramentas de ação para a reforma social o Rap, o Grafite e o Break.
Parafraseando a música do rapper Edy Rock do grupo Racionais MCs,
“Periferia é periferia em qualquer lugar”, temos que ela existe, assumindo
suas configurações próprias em qualquer cidade, porém possui sempre a
característica da marginalização de seus moradores e, consequentemente,
a predisposição para a indignação e o desejo de equidade social. Nestas
circunstâncias, o Rap encontra espaço na periferia de Cascavel, repercute
nos bairros de moradores de maior poder aquisitivo e assume para estes
sujeitos significados distintos, fazendo soar distintas vozes sociais, que estarão
presentes no discurso desses sujeitos. Sobre a presença de vozes sócio-
ideológicas no discurso, Bakhtin esclarece que

os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são autossuficientes;
conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. [...] o enunciado está
repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado
no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. (BAKHTIN, 1997,
p. 316)

Nossos enunciados são produtos de discursos outros, que penetram


no psiquismo individual e são avaliados, aceitos, repudiados, combinados,
remodulados, resultando em um enunciado que é único e novo, mas, de
maneira alguma, genuíno e independente de outros discursos e vozes que
circulam no espaço e na história. Eles também serão assimilados por outros
sujeitos, sendo um elo no complexo e infinito processo dialógico da linguagem.
Segundo os estudos do círculo bakhtiniano, as vozes sócio-ideológicas
só podem ser estudadas a partir de sua materialidade (BAKHTIN, 1997), que se
concretiza na enunciação, ou seja, no momento da expressão verbal.
Ao partirmos dessa constatação, neste estudo, temos o objetivo de
identificar e compreender as vozes sócio-ideológicas presentes no discurso
da música “Cascavel, quebrada sofrida” do grupo de Rap “Face Humana do
Guetto”. O grupo foi formado em 2006, pelos rappers André, Fifo, e Pedro,
todos com idade entre 20 e 27 anos e moradores do bairro Morumbi, bairro
periférico, situado na Zona Norte do município.
Assim como os demais grupos de Rap existentes na cidade de Cascavel,
o “Face Humana do Guetto” não possui sites próprios e ainda não conta com
a comercializaçao de seus CD’s. Suas músicas também não são executadas nos
setores de radiodifusão, a não ser pelo programa “Conexão Periferia”, que
______ [ 242 ]
retornou ao ar, neste ano, pela Rádio Colméia, aos domingos. Suas produções
são independendes, organizadas por eles próprios, geralmente, utilizando
estúdios caseiros ou outros de baixo custo e câmeras caseiras para elaborarem
seus videoclipes; dessa forma, não exercerem, profissionalmente, a atividade
de cantores.

O DIALOGISMO

O dialogismo é o eixo de toda a obra bakhtiniana. O termo pode


ser compreendido em um sentido amplo ou em um sentido restrito. No
primeiro caso, trata-se da maneira dialógica de se compreender não apenas
o funcionamento da linguagem, como todos os acontecimentos do mundo.
Pela amplitude desse conceito, ele é a grande contribuição de Bakhtin e de
seu círculo de estudos para a Ciência da Linguagem: “O dialogismo funciona
assim como pivô de interrogações capitais para a linguística (e não só para
ela)” (DAHLET, 1997, p. 69). O dialogismo é uma forma de compreender
a interação entre o sujeito e o discurso. Diante da arte plástica ou de uma
árvore que seja, mediado por outros discursos, o sujeito interpreta, critica,
reformula e cria sentidos por meio da linguagem, pois todos os sentidos que
há em nossa consciência são constituídos pela linguagem. Por meio dela, de
maneira dialógica (considerando a carga de sentidos que já existe no objeto a
ser interpretado e a assimilação que ocorre, por meio de um processo interior
do sujeito), o sujeito constrói sentidos para o mundo discursivizado que o
cerca.

O conceito de linguagem que emana dos trabalhos desse pensador russo está
comprometido não com uma tendência linguística de uma teoria literária,
mas com uma visão de mundo que, justamente na busca de formas de
construção e instauração do sentido, resvala pela abordagem linguístico/
discursiva, pela teoria de literatura, pela filosofia, pela teologia, por uma
semiótica da cultura, por um conjunto de dimensões entretecidas e ainda não
inteiramente decifradas. A natureza dialógica da linguagem é um conceito que
desempenha papel fundamental no conjunto das obras de Mikhail Bakhtin,
funcionando como célula geradora dos diversos aspectos que singularizam e
mantêm vivo o pensamento desse produtivo teórico. (BRAIT, 1997, p. 92).

O dialogismo, como se pode observar, estará presente na discussão


de todas as esferas sobre as quais o círculo bakhtiniano possa se debruçar para
compreender. Mais do que a tentativa de explicar fatores linguísticos, é uma
______ [ 243 ]
maneira de compreensão do mundo, o qual só existe a partir da significação que
o sujeito projeta no momento da interpretação. A linguagem, ainda que seja
também fundamentalmente dialógica e se explique também dialogicamente,
é, nesse sentido amplo (compreensão de todas as coisas do mundo), o meio
pelo qual o dialogismo acontece. O que se tem é uma infinita ação dialógica,
a grosso modo, entre objetividade versus subjetividade, infraestrutura versus
superestrutura1, natural versus social. Por isso, Bakhtin é considerado, antes de
tudo, um filósofo. Suas reflexões vão além do estudo da linguagem, ainda que,
necessariamente, em todos os seus estudos, as reflexões sobre a linguagem
estejam presentes.
Conforme os estudiosos do círculo bakhtiniano, o dialogismo é a
“força que se mantém constante em todos os planos da interação social”
(FARACO, 2009, p. 61). Dessa maneira, o sujeito, o discurso, a ideologia, o
signo, todos esses conceitos, são explicados como resultado sempre inacabado
do dialogismo. O termo “dialogismo”, portanto, não significa, nessa teoria,
apenas o ato de conversação entre interlocutores, como o nome pode levar
a crer, já que é originário da palavra “diálogo”, mas é algo mais amplo e
fundamental para a existência da linguagem e da construção de sentidos.
Ele se refere a um diálogo interdependente, contínuo e complexo
entre vários “atores”. Por exemplo, tratando-se de uma perspectiva mais
ampla, teremos o diálogo já mencionado entre infraestrutura e superestrutura,
pensando-se em uma sociedade; se formos afunilando, teremos o diálogo
interior de cada sujeito, entre o “eu” e o “outro”, que existe na consciência
individual (segundo o filósofo, nas reflexões solitárias dos sujeitos, há ainda
“um horizonte social”, um “outro” para quem modulamos o discurso
interior, o qual também é dialógico, sendo afetado por várias vozes sociais,
transformando-se em um “nós”). Sendo assim, teremos o diálogo entre o
mundo interior e o mundo exterior de um único sujeito.
Aclara Brait (1997, p. 98) que

Por um lado, o dialogismo diz respeito ao permanente diálogo, nem


sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos
que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. É
nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que
instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem. Por outro lado,
o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o
outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos,
que, por sua vez, instauram-se e são instaurados por esses discursos. (grifos
nossos).

Assim sendo, se podemos pensar no dialogismo em sentido amplo,


______ [ 244 ]
da forma como o apresentamos aqui, quando o concebemos em sentido
restrito, estamos nos reportando ao processo que ocorre na e pela linguagem,
durante a construção de sentidos pelos sujeitos em um momento de interação
verbal. Nesses termos, Bakhtin explica que o diálogo é a relação de alteridade
existente entre duas consciências socialmente organizadas. Sobre a alteridade,
explica Dahlet (1997, p. 59):

Vindo com a enunciação, a alteridade faz parte da unidade. Essa incorporação


do exterior no interior através da enunciação equivale a colocar em crise a
unidade do sujeito: para Bakhtin trata-se de atribuir ao sujeito um estatuto
que não coincide com o de um só autor.

É na relação de alteridade que os indivíduos se constituem, ou seja,


o ser, assim como o signo não apenas se reflete no outro, mas também se
refrata. Ocorre um constituir-se e alterar-se constante do sujeito durante a
interação verbal, por meio da enunciação, que só é possível pela presença do
outro, não dependendo unicamente de sua própria consciência e compondo-
se em algo social.
O sujeito se constitui e se transforma sempre por meio de e para o
outro, sendo que do outro, que é o interlocutor, a quem o sujeito irá direcionar
o discurso, conforme o concebe e segundo entende que este mesmo o
concebe, sempre espera um ato responsivo. Sobre o ato responsivo, Camargo
(2009, p. 302) esclarece que “o ato responsivo deve ser entendido como
aquele realizado por um sujeito social em interação com um ou mais sujeitos”.
Quer dizer, da interação entre os sujeitos, será sempre gerada a réplica, quer
concordando, discordando, criticando o discurso; de qualquer forma, ele
espera sempre uma atitude do interlocutor. E há ainda o outro, ou os outros
que habitam o seu mundo interior e interferem na construção do discurso.
Afirma Bakhtin ([1941] 1993, p. 147) que “aquele que apreende a enunciação
de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser
cheio de palavras interiores”. A palavra alheia está sempre presente nos atos
de interpretação, sendo um dos fatores determinantes para a construção dos
sentidos pelo mesmo. Segundo Camargo (2009),

A palavra não pertence ao falante unicamente, é necessário considerar o papel


do “outro”. Neste raciocínio, o falante não é o “Adão bíblico que nomeia o
mundo pela primeira vez”. O homem encontra um mundo já articulado,
elucidado, avaliado de muitos modos diferentes. (CAMARGO, 2009, p. 301).

Essa interação é um processo de recepção/compreensão ativa, que


envolve tanto o locutor quanto o interlocutor. Esse processo é o que o círculo
______ [ 245 ]
bakhtiniano irá chamar de diálogo ou dialogismo em sentido restrito. E esse
mesmo processo ocorre com o signo e com a língua. Reportando-nos a
Bakhtin ([1979] 2000, p. 410), temos que

Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limites para o
contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimitado e para um futuro
ilimitado). [...] Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo,
existem quantidades imensas, ilimitadas de sentidos contextuais esquecidos,
mas em determinados momentos do desenrolar posterior do diálogo eles são
relembrados e receberão vigor numa forma renovada (num contexto novo).

O dialogismo é um fator presente, independente da temporalidade,


mas só é possível nela. Discursos passados são retomados, remodelados pela
possibilidade da refração dos signos e dos sujeitos, pelas posições axiológicas
com as quais os sujeitos, por meio de sua criatividade (também sócio-
ideológica), participam da construção dos mesmos signos. Isso quer dizer
que o Rap, enquanto signo, e os rappers, enquanto sujeitos de um mesmo
horizonte social, são dialógicos e as ideologias presentes neles são inúmeras.
Afirma Barros (1999, p. 2), que, para os estudiosos do Círculo de
Bakhtin, o dialogismo é a “característica essencial da linguagem e princípio
constitutivo, muitas vezes mascarado, de todo discurso”. O dialogismo, então,
é um fator constitutivo da linguagem, funcionando como a maneira pela qual
esta se organiza e, muitas vezes, é mascarado, pois não está manifesto no
discurso. Observemos os versos da canção “O mano de estilo”, do grupo
“Sai da Reta”: “Aqui na minha city eu sou considerado / Meu estilo de vida
é bem diferente / Tá mais louco agora que eu virei repente”. As vozes que
constroem esse discurso estão mascaradas: percebemos a vinculação da
conquista de status social do sujeito com o fato de ele começar as atividades
de rapper. As vozes sociais que ecoam, então, são o direcionamento ideológico
que consolidou o Hip Hop nos Estados Unidos e teve continuidade no Brasil,
por meio das posses que os elementos dessa cultura trazem, como forma de
ascensão social ou, pelo menos, de desenvolver autoestima pela arte e pelo
pertencimento a um grupo.
Quando concordamos que o discurso é mascarado, não estamos
afirmando que o sujeito não tem conhecimento dessas vozes (ao menos,
não necessariamente), não estamos nos reportando ao “inconsciente”, um
dos fundamentos da Análise do Discurso de orientação Francesa. Queremos
dizer que o discurso é heterogêneo, ou seja, ele é construído por várias vozes
sociais, pelo “já-dito” e as mesmas vozes podem estar evidentes no discurso,
quando são expostas por meio da marcação de aspas, no discurso direto,

______ [ 246 ]
ou com a contextualização, quando se utiliza o discurso indireto, mas que
também podem não estar visíveis, como é o caso da letra da música. Essas
vozes ideológicas que identificamos não aparecem nem em discurso direto,
tampouco em discurso indireto. Elas estão nas entrelinhas, escondidas e são
apreendidas pela memória discursiva. Essa enunciação interessa aos estudos
bakhtinianos.
Em suma, o dialogismo é o resultado do entrecruzamento e do
trabalho de todos os elementos que pretendemos explanar aqui: sujeito,
discurso e ideologia, ao mesmo tempo em que é o meio para o trabalho e
a existência desses fatores e pode ser entendido em sentido amplo, quando
pensamos no diálogo que há entre o sujeito e o mundo, ou em sentido restrito,
considerando o diálogo, enquanto interação verbal, entre o sujeito e o seu
interlocutor.

AS RIMAS ENQUANTO GÊNEROS DO DISCURSO

Os discursos, sendo ao mesmo tempo o confronto e o resultado


do processo dialógico, encontram sua materialidade no cotidiano a partir
de formas mais ou menos estáveis, as quais são denominadas por Bakhtin
(2000) de gêneros do discurso. Certifica o filósofo que “apenas o contato entre a
significação linguística e a realidade concreta, apenas o contato entre a língua e
a realidade – que se dá no enunciado – provoca o lampejo da expressividade”
(BAKHTIN, [1979] 2000, p. 311). Isso quer dizer que a interação verbal surge
da necessidade humana e da realidade concreta de uma atividade que é social.
Conforme o autor, “um trabalho de pesquisa acerca de um material
linguístico concreto (...) lida inevitavelmente com enunciados concretos
(escritos e orais), que se relacionam com as diferentes esferas da atividade
e da comunicação” (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 282). Dessa forma, se para
analisar um dado discurso, é impossível não considerá-lo enquanto material
linguístico concreto e se a materialidade se dá nos gêneros, para qualquer
estudo de processos discursivos é necessária a delimitação do material a ser
estudado dentro de um gênero do discurso.
A análise baseada na concepção de gênero permite ser apropriada
para os estudos do discurso pela completude que o termo engloba. Quando
se fala em gênero de discurso, está-se levando em conta que os enunciados
são concretos e únicos. Quer dizer, são concretos porque possuem uma
historicidade, não surgiram do nada, ideal ou abstratamente, mas foram
______ [ 247 ]
construídos pelos sujeitos: “São o retrato dos usos já feitos anteriormente,
em várias atividades humanas e são a memória e o acúmulo da história de suas
utilizações.” (GEG, 2009, p.50). Quando o indivíduo aprende uma língua,
ele aprenderá e será condicionado por modelos mais ou menos prontos e já
existentes. Dessa maneira, seus discursos irão se enquadrar nesses padrões
pré-construídos, os quais nada mais são que os gêneros. Entretanto, os
enunciados são, também, únicos, pois este enquadramento não é passivo.
O sujeito que se utilizará do discurso o fará em um determinado
contexto de produção, considerará seu interlocutor, evidenciará seu estilo próprio,
haverá, portanto, uma ação dialética, uma interação. Parafraseando Bakhtin/
Voloshinov ([1929], 1999, p. 176),

Não importam quais sejam as intenções que o falante pretenda transmitir,


quais erros ele cometa, como ele analise as formas, misture-as ou combine-
as, ele nunca criará um novo esquema linguístico nem uma nova tendência
na comunicação sócio-verbal. As suas intenções subjetivas terão um caráter
criativo apenas quando houver alguma coisa que coincida com tendências
na comunicação sócio-verbal dos falantes em processo de formação, de
evolução; e essas tendências dependem de fatores sócio-econômicos.

A autonomia, a criatividade e a liberdade do sujeito para a elaboração


de novas formas discursivas, então, está também, condicionada a fatores
sócio-econômicos. Assim, evidencia-se o selo do social na individualidade,
porém o novo e o criativo tomam seus espaços quando há a evolução nas
formas discursivas, fato que, desde o século XX, com a modernidade, vem
ocorrendo mais aceleradamente. São incontáveis os gêneros discursivos que
hoje habitam a vida discursiva dos falantes; dentre tantos, podemos citar o
poema, a canção, a fábula, a carta, o relatório, a ata, os artigos científicos,
dissertações, teses, a reportagem, a notícia, a tira, etc..
Esses gêneros do discurso estão vinculados a uma esfera social, ou seja,
a um espaço social e discursivo, correspondente a esferas de atividade humana
e a domínios discursivos: o jornalístico, o literário, o jurídico, o religioso, o
científico, o familiar, entre outros.
No caso de nosso material linguístico, trata-se de um discurso
que faz parte da esfera social literária, uma vez que, apesar da maioria dos
Rap`s apresentarem uma linguagem mais objetiva do que poética, existe
a preocupação com a rima, com a métrica e com o ritmo, características
semelhantes a de um poema.
A esfera social determina que gênero será usado, pois, dependendo
de onde o sujeito se encontra para proferir o discurso, este será de uma
determinada forma. Desse modo, dentro da esfera literária, consideramos
______ [ 248 ]
o Rap enquanto pertencente ao gênero música, por suas características
constitutivas: por possuir melodia e ritmo.
Vinculado ao gênero, determinando-o e vice-versa, está o conteúdo
temático (o assunto e seu contexto de produção: Quem o produziu? Para
quem? Quando? Onde? Qual é o veículo de circulação? Qual é o suporte?).
Além do conteúdo temático, a enunciação também está atrelada à
construção composicional (que corresponde à forma com que um discurso é
construído, à estrutura em si, ao formato do texto) e ao estilo (que são as marcas
linguísticas que cada indivíduo deixa transparecer no texto: recursos lexicais,
fraseológicos, etc.). Segundo Bakhtin, “esses três elementos se fundem no
todo do enunciado” (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 279).
Nos pressupostos bakhtinianos, é preciso considerar, ainda, que
a diversidade e heterogeneidade dos gêneros existentes não prejudicam a
delimitação do estudo, mas, ao contrário, constituem uma riqueza a ser
explorada. Para melhor definir e delimitar os gêneros, é possível classificá-los
em Gêneros Primários e Gêneros Secundários. Os primários são aqueles simples,
frutos de uma comunicação imediata, espontânea, como uma conversa entre
amigos ou familiares, sem preocupação com a construção do discurso. Os
secundários são os de natureza mais complexa, elaborada, produzidos em
uma interação organizada e desenvolvida, como uma carta comercial, uma
narrativa literária, uma notícia, entre outros. (BAKHTIN, [1979] 2000, p.
280-281). Assim, o Rap é delimitado como gênero secundário, porque, no
momento de sua expressão, há a preocupação com a sua elaboração: é preciso
rimar, ter um campo léxico que atraia o ouvinte, ter ritmo, melodia.

A IDEOLOGIA E AS VOZES SOCIAIS

Pode-se falar em duas formas de sistemas ideológicos existentes:


os sistemas ideológicos constituídos e os sistemas ideológicos do cotidiano.
Segundo Bakhtin/Voloshinov ([1929], 1999, p. 118), “os sistemas ideológicos
constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a
partir da ideologia do cotidiano”. Assim sendo, é das relações das consciências
individuais, dos discursos que, ideologicamente, formulam-se no cotidiano
que se formam os discursos dos sistemas constituídos. Assim, assegura-se
que os signos não são constituídos por meio de imposições dos sistemas,
mas deles são também formadores. Por meio dos sistemas ideológicos do
cotidiano, mais flexíveis e sensíveis que os constituídos, é que se podem
______ [ 249 ]
desencadear as mudanças tanto nas superestruturas, quanto na infraestrutura
socioeconômica (Ibidem, p. 120).
Ao concordar com o parágrafo acima, admitimos, então, que
o discurso que se desenvolve no Rap não é apenas reflexo do sistema
constituído, mas, por ser originário da realidade social da periferia e estar
presente cotidianamente na vida dos sujeitos, caracteriza-se como parte do
sistema ideológico do cotidiano, sendo, assim, flexível e possível de promover
mudanças nas superestruturas.
Já que ‘ideologia’ é tratada de diversas maneiras pelas variadas teorias,
é importante ressaltar que, para o círculo bakhtiniano, ela é utilizada para
designar o todo da vida não material de uma sociedade, que, por alguns, é
chamado de produção espiritual. O termo é usado para designar o campo
que envolve a ciência, a filosofia, a religião, a ética, o direito, a arte, enfim, a
superestrutura. Ocorre, também, a referenciação do termo com um caráter
axiológico (avaliativo). Sendo assim, uma vez que todo enunciado ocorre
na esfera de uma das ideologias (no sentido das produções não materiais da
sociedade), esse próprio discurso apresentará uma posição avaliativa, a qual
depende das ideologias que convivem no universo do sujeito (FARACO,
2009, p. 46).
Compreendendo que o signo é tido como o local mais propenso para
a identificação das ações ideológicas e, assim, das lutas de classes, entende-se
que a consciência é repleta dos confrontos ideológicos que habitam os signos.
Assegura Bakhtin (1998, p. 82) que “é possível dar uma análise concreta e
detalhada de qualquer enunciação, entendendo-a como unidade contraditória
e tensa de duas tendências opostas da vida verbal”. Essas forças contraditórias
são as forças centrípetas e centrífugas: aquela tenta impedir o plurilinguismo
(existências de várias vozes socioideológicas), tentando manter a forma
ideologicamente homogênea da língua/signo; esta age de forma dinâmica e
promove a mudança, favorecendo a estratificação dos signos, transformando-
os em elementos sócio-ideológicos. As forças centrípetas tendem à unificação
e centralização dos signos e à canonização de certos sistemas ideológicos.
As forças centrífugas tendem à descentralização, à desunificação e ao
plurilinguismo.
O que desencadeia as forças centrífugas e torna o signo algo instável
e mutável, por sua vez, é o embate dos distintos índices de valor (provindos da
situação socioeconômica diferenciada de cada grupo). Em outras palavras, o
signo é plurivalente: refrata e reflete. Para aclarar o processo de reflexo e de
refração, recorremos à citação a seguir:

______ [ 250 ]
Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também
reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe
fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. todo signo está
sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso,
correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o
domínio dos signos: eles são mutuamente correspondentes. (BAKHTIN/
VOLOSHINOV, [1929] 1999, p. 32).

O reflexo, portanto, é a concepção do objeto/signo em sua forma


imediata. Podemos utilizar o exemplo citado pelo próprio filósofo: o pão e
o vinho não têm, em sua natureza, necessariamente, a associação com algo
sagrado. Tomam esse aspecto no momento do ritual da comunhão cristã
(Idem, p. 32). E isso só foi possível, porque há, por trás dessa significação,
uma história e uma ideologia, que foram construídas dialogicamente por meio
da interação entre os sujeitos em seu espaço e circunstâncias. No processo de
significação, uma dada realidade (reflexo) é atravessada por índices de valor e
é neste momento que a refração ocorre. Quer dizer, os sujeitos, ao interpretar,
ao assimilar, ao participar de um diálogo (seja verbal, com interlocutor visível,
ou não), não detêm pacificamente o sentido do signo, mas o atravessam com
toda a sua vivência ideológica (de onde se originam os índices de valor),
modificando sua realidade primeira.
Os índices de valor dependem de cada grupo social com o qual os
sujeitos têm contato e das várias vozes sociais que neles se evidenciam, as
quais:

não coexistem pacificamente com outros elementos da existência a ela


previamente integrados, mas entram em luta com eles, submetem-nos à
reavaliação, e deslocam sua posição no interior da unidade do horizonte
avaliativo. Este processo gerativo dialético se reflete na geração de
propriedades semânticas na língua. Uma nova significação emana de uma
velha e por meio dela, mas isso acontece de tal modo que a nova significação
pode entrar em contradição com a velha e reestruturá-la (BAKHTIN/
VOLOSHINOV [1929] 1999, p. 106).

As vozes sociais, por assim dizer, chocam-se com conceitos e signos


ideológicos que constituem os sujeitos. Esse choque acarreta a reformulação
desses signos, transformando-os, remodelando-os. No caso do Rap, as várias
vozes que ecoam e constituem os sujeitos cascavelenses se confrontam com
aquelas que compõem o Rap que chega e desse confronto resultará outro
signo. Em suma, o Rap cascavelense, por conta do contexto socioideológico
em que se encontra, terá sentidos diferentes daqueles das grandes metrópoles.
Afiança Dahlet (1997, p. 60) que o ganho teórico do dialogismo
______ [ 251 ]
bakhtiniano “tem consequências imediatas na maneira de conceber o
discurso, como sendo uma ‘construção híbrida’, (in)acabada por vozes em
concorrência e sentidos em conflito”. Os estudos do Círculo de Bakhtin, ao
ponderarem sobre o dialogismo, inevitavelmente encontraram a ideologia que
se apresenta nas vozes, que são os elementos presentes no dialogismo e que
compõem o sujeito, num processo conflituoso e permeável, em que as vozes
ideológicas se chocam, se relacionam, sendo determinante na construção do
discurso. E, se interferem no discurso, por conseguinte intervêm no sujeito.
De acordo com Brandão (1997, p. 284),

o sujeito pode assumir diferentes estatutos no interior do discurso, porque


não é marcado pela unidade, mas sim pela sua dispersão, dispersão que
reflete a descontinuidade dos planos de onde fala, em decorrência as várias
posições possíveis de serem assumidas pelo falante.

Posto que o sujeito é permeado por várias vozes sociais, ele não é
marcado pela unidade, podendo assumir várias posições, de acordo com a voz
social/ideológica que “soar mais alto”. Isso quer dizer que a ideologia exerce
um papel fundamental e determinante na ação dialógica de constituição do
discurso e do sujeito, porém essas vozes estão mascaradas por um discurso
que se demonstra monológico, genuíno e sem história. Não obstante, a
ideologia está presente no discurso, como parte presumida do enunciado. A
esse respeito, Brait (1999, p. 19-20, grifo nosso) assegura que,

para Bakhtin, o enunciado concreto, como um todo significativo, compreende


duas partes: a parte percebida e realizada em palavras e a parte presumida.
[...] Se a palavra presumido pode levar a pensar na situação com uma coisa
na mente do falante, como um ato subjetivo, ele demonstra que não é
nesse sentido que o conceito está sendo usado. Segundo Bakhtin, é preciso
considerar que, no processo de interação entre falantes, o individual e o
subjetivo têm por trás o social e o objetivo.

O enunciado, portanto, compõe-se de uma parte percebida, a parte


exteriorizada em palavras pelo sujeito, a parte verbal. Da mesma forma,
constitui-se por uma parte presumida, que não está evidente no discurso e
apenas é possível de ser suposta. Essa suposição, no entanto, não está situada
em território insólito. Há uma base material, um contexto extraverbal, o qual é
alcançado pela memória discursiva. Sendo assim, perceber a parte presumida
do discurso não quer dizer fazer interpretações infundadas, baseadas em
constatações e julgamentos subjetivos. Como assegura a estudiosa, há, por
trás do individual e do subjetivo, um contexto social e objetivo.

______ [ 252 ]
AS VOZES IDEOLÓGICAS E O TERCEIRO DESTINATÁRIO

As vozes que formam o mundo ideológico do sujeito são a base


para que ele eleja as suas verdades e discurse aos seus interlocutores a partir
delas e para elas. Em outras palavras, quando estamos em diálogo (ainda que
estejamos a sós, escrevendo um texto, por exemplo), é como se existisse um
terceiro avaliando nossas posturas e o nosso discurso. Um terceiro a quem
queremos agradar, convencer, nos justificar, enfim, de quem desejamos
aprovação. Um terceiro superior ao meu interlocutor imediato, que participa
do diálogo e é superior a mim, conhecedor de tudo e guardador da verdade:
um superdestinatário. Bakhtin esclarece que

O enunciado sempre tem um destinatário (com características variáveis,


ele pode ser mais ou menos próximo, concreto, percebido com maior ou
menor consciência) de quem o autor da produção verbal espera e presume
uma compreensão responsiva. Este destinatário é o segundo (mais uma vez,
não no sentido aritmético). Porém, afora esse destinatário (o segundo), o
autor do enunciado, de modo mais ou menos consciente, pressupõe
um superdestinatário superior, o terceiro, cuja compreensão responsiva
absolutamente exata é pressuposta seja num espaço metafísico, seja num
tempo histórico afastado. (O destinatário de emergência). Em diferentes
épocas, graças a uma percepção variada do mundo, o superdestinatário,
com sua compreensão responsiva, idealmente correta, adquire uma
identidade concreta variável (Deus, a verdade absoluta, o julgamento
da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a
ciência, etc.). (BAKHTIN, 1997, p. 356).

O terceiro destinatário, também chamado de superdestinatário pelo


filósofo russo, é, então, um destinatário de ordem superior, como um juiz
que observa e julga o sujeito, para monitorar se o mesmo está se portando
de acordo com a verdade. Esse superdestinatário é, por assim dizer, a própria
consciência do indivíduo, constituída pelas vozes sócio-ideológicas que
ele assimilou e a partir das quais configurou seus julgamentos de valor. O
superdestinatário é a voz que predomina, mas que é afetada pelas demais
vozes que se chocam e concorrem pela vontade de homogeneização da
consciência individual do sujeito. Segundo observou Bakhtin, pode ser Deus,
a ciência, o povo, ou qualquer outro discurso que predomine na consciência
individual do sujeito e que, provavelmente, predomina na comunidade deste
sujeito, sendo uma crença coletiva, social e enraizada no sujeito. Referir-se ao
terceiro destinatário ou superdestinatário é referir-se ao discurso ideológico
ou às vozes sociais que constituem o sujeito e a partir dos quais e para quem

______ [ 253 ]
este formula e direciona o seu enunciado.
Segundo Bakhtin (1997, p. 356), o homem busca sempre uma
responsividade que não se detenha ao imediato, ou seja, ao seu parceiro de
diálogo (o segundo destinatário). Ele quer ser ouvido por uma ordem superior,
por um ser maior do que ele e seu destinatário imediato, quer que sua palavra
ultrapasse o imediato de modo ilimitado. O estudioso adverte que

O terceiro em questão não tem nada de místico ou de metafísico (ainda


que possa assumir tal expressão em certas percepções do mundo). Ele é
momento constitutivo do todo do enunciado e, numa análise mais profunda,
pode ser descoberto. (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 356).

O terceiro destinatário, assim, não se limita a uma crença religiosa.


Não está situado fora do sujeito (não apenas fora), independente dele, ainda
que o mesmo acredite que esteja. São valores construídos socialmente com o
passar do tempo, em que há a participação da sociedade e da individualidade
do sujeito. O processo que ocorre, portanto, é um processo de objetivação
do próprio sujeito. Nas palavras do estudioso, “Ao objetivar-me (ao situar-
me fora), adquiro a possibilidade de uma relação dialógica comigo mesmo”
(BAKHTIN, [1979] 2000, p. 350). Quer dizer, apresentar o meu discurso para
o julgamento do terceiro destinatário é situar-me fora de mim e julgar meu
próprio discurso, segundo meus próprios princípios (que foram construídos
socialmente). É agir conforme minha consciência. O que é importante
ressaltar e que não podemos perder de vista é que essa consciência individual
faz parte de uma consciência coletiva; os estudos bakhtinianos afirmam
que organizamos nosso discurso para o outro (o nós), a comunidade e,
paradoxalmente, para o nosso julgamento. Elegemos vozes e damos a elas
prioridades para nos constituirmos enquanto sujeitos e elegemos palavras,
construções sintáticas, entonações, gestos, de acordo com nossos propósitos
e nosso interlocutor para nos constituirmos enquanto autores de nossos
discursos.
Em conformidade com Faraco (2009, p. 87),

Autorar, nesta perspectiva, é orientar-se na atmosfera heteroglóssica;


é assumir uma posição estratégica no contexto da circulação e da guerra
das vozes sociais; é explorar o potencial da tensão criativa da heteroglossia
dialógica; é trabalhar nas fronteiras.

Autorar, portanto, não é ser o dono de um discurso que se formulou


dentro de mim, por meio da minha criatividade, mas é utilizar dessa criatividade
para assumir uma posição dentre a guerra dessas vozes que ecoam dentro de
______ [ 254 ]
mim e reformulá-las em uma nova voz, um novo signo, fruto do alheio e do
individual.
Se autorar significa reformular, quando pensamos no Rap, parece
que se acentua ainda mais a concepção de que os signos têm modificada sua
natureza primeira, quando entram em contato com outros grupos sociais.
Isso porque ele tem a intenção de abordar características da realidade local:

As letras longas, permeadas por expressões locais, exprimem o universo da


periferia. No rap a mensagem é sempre pessoal, por isso os rappers recusam-
se a cantar músicas de outros rappers, mesmo que tenham alcançado
destaque na indústria fonográfica (SILVA, 1999, p.31)

Isso faz com que o elemento cultural, o signo Rap, seja ainda mais
afetado pelos valores sociais locais. O superdestinatário aqui, quer dizer,
a ideologia Hip Hop, é misturado com questões da realidade local, com a
memória discursiva e com a individualidade dos sujeitos, pois, necessariamente,
o Rap tem essa característica da interferência da realidade local que se choca
com uma ideologia universal da cultura.

COMO AS VOZES PODEM SER “OUVIDAS”


Uma análise a partir dos gêneros buscará o querer-dizer do texto/


discurso perante seu contexto e a significação dele no mundo. Esclarece Faraco
(2009, p. 130): “E qual seria o ‘significado real do gênero’? Precisamente a
correlação entre formas e atividades. O gênero não deve ser abstraído da
atividade, de suas coordenadas de tempo-espaço, das relações entre os
interlocutores”. É preciso considerar, portanto, a interação dos envolvidos
no discurso (quem discursa, para quem discursa, o contexto em que discursa,
sobre o que discursa, como discursa, como este discurso é recebido pelo
interlocutor e como este atua responsivamente, sendo determinante para o
processo discursivo).
De acordo com Barros (1999, p. 08),

As classes sociais utilizam a língua de acordo com seus valores e


antagonismos. Da língua, complexa e viva, surgem os discursos ideológicos
que, na maioria das vezes, escolhem um pólo, um dos valores e procuram
mascarar o dialogismo constitutivo da língua ou suas contradições internas.

______ [ 255 ]
Dessa forma, os sujeitos fazem uso da linguagem segundo suas
necessidades e seus valores e estes, muitas vezes, estão mascarados no discurso
e só são perceptíveis se levarmos em conta a memória discursiva. Assevera
Brait (1999, p. 19) que “Bakhtin se pergunta como se relaciona a extensão
extraverbal com a extensão verbal, ou seja, como o dito se relaciona com o
não-dito”. Assim, a análise a partir dos pressupostos do círculo bakhtiniano
buscará perceber o extraverbal, ou seja, as vozes ideológicas presentes no
corpo verbal, ou seja, no material linguístico selecionado.
Segundo Bakhtin (2000, p. 48), “O psiquismo subjetivo é o objeto
de uma análise ideológica, de onde se depreende uma interpretação sócio-
ideológica”. Em outras palavras, estudar o superdestinatário e as vozes
ideológicas que formam o sujeito é fazer suposições sobre seu psiquismo
subjetivo, sempre, é claro, baseando-se na concretude das situações e da
memória social; a interpretação do pesquisador é de natureza sócio-ideológica.
A análise que nos propomos a realizar, portanto, buscará perceber o “outro”
(nós) que se esconde atrás do mascaramento do dialogismo, que é constitutivo
da linguagem, o superdestinatário, o terceiro destinatário, ou, por assim dizer,
as vozes sócioideológicas presentes no discurso.
É importante ressaltar que o próprio olhar do pesquisador sobre o
discurso a ser analisado é um acontecimento dialógico e interfere no resultado,
sendo parte dele. O estudioso da linguagem adverte que

A compreensão do todo do enunciado e da relação dialógica que se


estabelece é necessariamente dialógica (é também o caso do pesquisador nas
ciências humanas); aquele que pratica ato de compreensão (também no caso
do pesquisador) passa a ser participante do diálogo, ainda que seja num nível
específico (que depende da orientação da compreensão ou da pesquisa).
(BAKHTIN, [1979] 2000, p. 355).

Durante a análise das canções, portanto, nós estaremos fazendo parte


do diálogo desses discursos e a nossa condição de sujeitos, constituídos por
vozes sócio-ideológicas e por ações axiológicas, irá envolver-se no complexo
sistema dialógico.

CASCAVEL, QUEBRADA SOFRIDA


FACE HUMANA DO GUETTO

1. Sobrevivendo em meio à guerra vou cantando a realidade


2. Meu microfonte é minha arma pra derrubar os covardes
3. Seria bem pior se eu estivesse de oitão na mão
______ [ 256 ]
4. Eu encontrei no Rap a minha salvação
5. Me desculpe se minhas rimas são agressivas
6. É porque eu não vejo felicidade pra periferia
7. Porque eu vejo a maldade, desigualdade
8. Famílias de luto no nosso dia-a-dia
9. É raro o dia de alegria pra periferia
10. Mas, tudo isso poderia ser diferente
11. Tipo, se o povo da favela fosse tratado como gente
12. Se o moleque de rua não fosse chamado de delinquente
13. A paz tá tentando viver, mas tá difícil
14. Porque tem muita polícia matando
15. Porque tem muito político roubando
16. Porque tem muito rico, o meu povo humilhando
17. O HU está lotado: vinte pessoas pra uma vaga
18. Tá ficando complicado
19. Se sair vivo, você já é um santo
20. Aqui em Cascavel pra se dar bem
21. Tem que ter dinheiro em banco
22. Hospital particular tem bastante, um montão
23. Público, fora! O citado é PAC1, PAC2
24. Dez horas na fila com pneumonia
25. Um abraço, já se foi!

Refrão:
26. Cascavel, quebrada sofrida do Oeste do Paraná
27. Aqui o filho chora e a mãe não vê
28. Truta, pode acreditar!

29. Medalha de honra ao mérito no peito de cuzão


30. Cambé ganha prêmio atira em ladrão
31. Periferia, cenário ideal pro Batatinha ganhar ibope em rede nacional
32. Mostrando um favelado no chão, esticado
33. Família de luto, é dia de finados
34. Enquanto isso, do outro lado,
35. PM folgado anda de carro importado
36. Se acha o gatinho no rol de BMW
37. Puxa-saco do governo, está pronto pra ação
38. Pra eles, tirar a vida é a única solução
39. Mas, muito cuidado, o jogo vira, a história pode mudar
40. Periferia é a união! Nós só queremos melhores condições
41. Condições de sobreviver
42. Porque no mundo em que vivemos, a lei é matar ou morrer
43. Choque por que? De tanta revolta no peito, tanto preconceito
44. Liberdade de expressão é meu único direito
45. Pra sociedade eu não passo de um favelado
46. De chinelo de dedo, de calção rasgado
47. Sou seu pesadelo acordado

______ [ 257 ]
48. Com um microfone na mão
49. Me torno perigoso pra político ladrão
50. Não quero caixão lacrado
51. Só quero que o meu povo seja respeitado

Refrão:
52. Cascavel, quebrada sofrida do Oeste do Paraná
53. Aqui o filho chora e a mãe não vê
54. Truta, pode acreditar!

55. Com ódio no coração ,


56. A polícia brasileira está fazendo justiça com as próprias mãos
57. O meu povo não aguenta tanta humilhação
58. Cinco cabeças pra rachar um pão
59. Seu João trabalha no dia-a-dia
60. Quinhentos e dez no final do mês pra sustentar a família
61. Aluguel, luz e água pra pagar
62. Situação crítica. Pode acreditar!
63. E rico ainda fala que o povo da favela tá errado
64. Aí, playboy folgado,
65. Deixe de lado sua Mercedes, sua casa equipada
66. Vem pra favela pra viver de papelão e catar lata
67. Acho que não passaria da primeira quadra
68. Pra sobreviver aqui é necessário mais que proceder
69. É preciso ter atitude, respeito
70. Respeitar cada cara do seu jeito.
71. Aí, sociedade rica, pode vir nos processar
72. To com o microfone na mão
73. E só a morte é quem pode nos parar

Refrão:
74. Cascavel, quebrada sofrida do Oeste do Paraná
75. Aqui o filho chora e a mãe não vê
76. Truta, pode acreditar!

77. Obrigado, Deus, pelo dom de seguir cantando


78. Face Humana do Gueto, expressão do que acontece na periferia
79. Nós chegamos, agora pra derrubar vai ser uma guerra!
80. Mano Fifo, aliado Pedro e André
81. Assim que é!

O CONTEÚDO TEMÁTICO

Falando dos locais mais periféricos da cidade de Cascavel, o grupo


“Face Humana do Guetto” na música “Cascavel, quebrada sofrida”, em
______ [ 258 ]
alguns momentos, parece dirigir-se a um interlocutor que faz parte do seu
círculo de convivência, o que percebemos nos versos: “Se sair vivo, você já
é um santo”, “Aqui o filho chora e a mãe não vê, truta, pode acreditar”;
em outros, entretanto, muda a direção do discurso, falando diretamente à
classe alta e ao governo cascavelenses: “Mas muito cuidado, o jogo vira, a
história pode mudar”. Aqui, o interlocutor é a polícia, que, conforme o relato
do sujeito, tira a vida dos moradores da periferia por motivos banais e sem
pesar na consciência. Mais adiante, o discurso é direcionado à burguesia
cascavelense: “Sou seu pesadelo acordado”, “Aí, playboy folgado, deixe de
lado sua Mercedes e sua casa equipada” e “Aí, sociedade rica, pode vir nos
processar”.
Está presente neste Rap uma revolta magoada, pela desigualdade
social da população da periferia: “A paz tá tentando viver, mas tá difícil /
Porque tem muita polícia matando / Porque tem muito político roubando /
Porque tem muito rico o meu povo humilhando”, “O HU está lotado: vinte
pessoas para uma vaga”, “Aqui em Cascavel pra se dar bem / Tem que ter
dinheiro em banco” e “Cinco cabeças pra rachar um pão / Seu João trabalha
no dia-a-dia / Quinhentos e dez no final do mês pra sustentar a família”. O
sujeito menciona a realidade do cotidiano das pessoas que moram nos bairros
de classe econômica desprivilegiada, narrando as dificuldades e o padecimento
por conta da precariedade do sistema de saúde, da baixa remuneração e da
desigualdade que, segundo relata a música, é advinda das ações de políticos
corruptos e da força policial que coage os cidadãos da periferia, sem ter
motivos para tanto.
O sujeito reclama do preconceito que a população da periferia tem
de aturar por não ter as mesmas condições financeiras, sociais, culturais e
educacionais que as classes de maior poder aquisitivo têm: “Mas, tudo isso
poderia ser diferente / Tipo, se o povo da periferia fosse tratado como gente
/ Se o moleque de rua não fosse chamado de delinquente”, “Só quero que o
meu povo seja respeitado” e “Meu povo tá cansado de ser humilhado”.
Além de as classes detentoras do poder e os sistemas constituídos
serem, também, responsáveis pela desigualdade social, essa mesma classe
subjuga os moradores da periferia e os coloca em um patamar inferior pela
sua condição, taxando, não raras vezes, os moradores de regiões pobres da
cidade, de marginais e delinquentes, como “favelado de chinelo de dedo e
calção rasgado”. Os momentos da enunciação em que podemos notar maior
exaltação são os que constroem sentenças concessivas. Em outras palavras,
ainda que o sujeito exponha toda a realidade dificultosa que o envolve, não
convence a elite e os funcionários do governo da legitimidade da sua causa
______ [ 259 ]
e dos motivos que o levam a criticar o sistema. Essa percepção se evidencia
do verso trigésimo terceiro ao trigésimo oitavo da canção e do sexagésimo
segundo ao sexagésimo sexto. Eis alguns exemplos: “Puxa-saco do governo,
está pronto pra ação / Pra eles tirar a vida é a única solução” (referindo-se ao
policiamento) e “Situação crítica. Pode acreditar / E o rico ainda fala que o
povo da favela tá errado”.
Estar em uma condição desfavorável pela convenção entre governo
e elite e ainda por este motivo ser alvo de preconceito é o que causa mais
indignação e leva o sujeito a se dirigir agressivamente a estes atores sociais:
“Medalha de honra ao mérito no peito de cuzão”, “Família de luto, é dia
de finados / Enquanto isso, do outro lado / PM folgado anda de carro
importado” e “Aí, playboy folgado / Deixe de lado sua Mercedes e sua casa
equipada / Vem pra favela pra viver de papelão e de catar lata”.
Há, além disso, um ataque à mídia, caracterizada como sensacionalista,
que se compraz com a violência contra os marginalizados para atingir ibope
para sua rede de TV: veja-se: “Periferia, cenário ideal pro Batatinha ganhar
ibope em rede nacional / Mostrando um favelado no chão, esticado”.
Do primeiro ao sétimo verso, o sujeito assinala o Rap como forma
de protesto contra a conjuntura em que se insere. Sendo assim, o signo Rap
muda de significação: de arte passa a ser uma arma pela defesa dos direitos
dos moradores da periferia. O mesmo ocorre do verso quadragésimo sétimo
ao quadragésimo nono e nos versos septuagésimo segundo e terceiro. Em
se tratando do suporte, ou seja, a melodia, o ritmo, a musicalidade em si, é
composta também de forma a colaborar com o seu objetivo:

Há muito ligado à violência das ruas, o rap também exibe uma violência
estética. A força rápida e intensa de seu ritmo, seus métodos de samplear
e arranhar discos, seu estilo agressivamente alto e confrontante dão ao rap
o vigor estético que aumenta a energia e a consciência de seus ouvintes.
(SHUSTERMAN, 2006, p. 70).

Para o querer dizer do Rap, ou seja, para retratar a violência (todos


os tipos de violência possíveis) que existem na periferia e o descaso do
sistema, ele é esteticamente elaborado de maneira a expressar e a traduzir
essas situações. O suporte corresponde, ainda, aos locais e modos em que o
gênero é veiculado: nesse caso, as músicas estão expostas na internet, em sites
como Youtube, redes de relacionamento como Facebook e Orkut, em pen
drives e CD`s (Compact Disc) criados pelos próprios rappers, o que demonstra
o caráter alternativo e popular das produções, já que não são veiculadas pela
mídia institucionalizada.
______ [ 260 ]
A canção está composta por uma introdução que parece querer
causar a sensação de estresse e de tensão, que se repete como plano de fundo
da música do início ao fim. Na introdução, foi colocado o som que imita uma
arma sendo engatilhada, que intensifica o clima tenso e produz um efeito de
agressividade. Esse recurso é utilizado em vários momentos. O suporte deste
Rap é essencial para a mensagem que o discurso quer transmitir: um discurso
revoltado e agressivo, mas uma agressividade canalizada e executada por meio
da música.
Esta composição circula em shows de que o grupo participa em
Cascavel e na região e no site palcomp3.com.br, bem como em CD`s, Pen
drives, celulares e sites de redes sociais. De acordo com a essência popular
e alternativa do Rap, essas músicas são reproduzidas e circulam em meios
populares e de livre postagem e acesso.
Quanto à construção composicional, ela se apresenta em versos, às vezes,
com refrão e uma letra longa. As mensagens são explícitas, claras e de fácil
entendimento. Os rappers empregam gírias e construções fraseológicas típicas
do dia-a-dia da periferia, o que aproxima ainda mais as músicas dos sujeitos
ouvintes/interlocutores dos subúrbios.

O ESTILO

Nesta canção, não diferente das demais músicas de Rap, o estilo é o


retrato do cotidiano, sem idealização ou adorno poético. Conforme Contier,
os sujeitos que fazem o Rap

São aqueles que vivem em favelas, barracos, bairros (sem eletricidade, sem
saneamento básico, sem asfalto, sem transporte coletivo...) que apresentam
em suas canções uma fraseologia específica, com sotaque próprio, seco e
anasalado. A criatividade dos rappers fundamenta-se na linguagem comum,
em diálogos marcados basicamente pela oralidade. (CONTIER, 2005)

Dessa maneira, a linguagem dessas canções é “nua e crua”. Em


“Cascavel, quebrada sofrida”, percebemos um estilo ferrenho e um tanto
agressivo. Esse estilo combativo foi alcançado, principalmente, pela seleção
semântica e sintática que o sujeito selecionou no momento da enunciação.
Essa seleção ocorre de acordo com a situação real da enunciação e de acordo
com vários fatores que determinam o discurso: o interlocutor, a quem o
discurso é direcionado, o assunto e o contexto de produção, ou seja, quem
______ [ 261 ]
é o sujeito locutor e de onde ele discursa. Este último fator que evidencia os
fatores a que o sujeito que discursa está condicionado, que são as vozes sociais
assimiladas e reorganizadas por ele no decorrer de sua vivência. Em outras
palavras, tudo irá depender da classe social e do grupo cultural, quer dizer,
do meio social em que o sujeito se constituiu e da ação da individualidade e
criatividade dele, que irá assimilar e organizar essas informações.
A esse respeito, (FAITA, 1997, p. 170) assevera que “Os indivíduos
não se inscrevem numa mesma ordem de coisas. A normatividade se exprime
nas combinações que o enunciado realiza, enquanto sua individualidade
resulta da livre concepção, pelo locutor, de seu projeto discursivo”. Sendo
assim, se há uma normatividade que depende dos fatores expostos para a
escolha sintática e lexical no momento do projeto discursivo do sujeito, há
também a reconfiguração desta normatividade pelo mesmo.
O espaço social, portanto, é categórico para o estilo verbal. Podemos
compreender que a revolta presente na canção é reflexo do meio em que o
sujeito se encontra, a periferia, onde presencia a injustiça, o preconceito e a
coerção a que os moradores são submetidos. Nos versos “Me desculpe se
minhas rimas são agressivas / É porque não vejo felicidade pra periferia /
Porque eu vejo a maldade, desigualdade”, o sujeito tem consciência da escolha
vocabular que faz e a justifica, argumentando, inclusive, que não há como ser
diferente porque a maneira que ele assimila o meio em que vive propicia uma
linguagem violenta.
Dentre os vocábulos e sentenças selecionados pelo sujeito que
conotam agressividade, há “guerra”, “arma”, “derrubar”, “oitão”, “maldade”,
“desigualdade”, “luto”, “delinquente”, “roubando”, “humilhando”,
“cuzão”, “gambé”, “puxa-saco do governo” “atira”, “ladrão”, “favelado
no chão, esticado”, “finados”, “tirar a vida”, “matar ou morrer”, “revolta”,
“preconceito”, “sou seu pesadelo”, “me torno perigoso”, “caixão lacrado”
e “morte”. Então, notamos um vocabulário pesado, carregado de ira, que
faz do Rap, além de um desabafo, uma mensagem que quer ser ouvida e
compreendida, tal como se mostra a realidade vivida pelo sujeito no espaço
em que vive.
Essa relação que há entre Rap e protesto e/ou salvação do mundo
do crime faz com que as músicas tenham vocabulários em comum, os quais,
na realidade, são utilizados não apenas pelos rappers, como por todos os
simpatizantes da cultura Hip Hop. Portanto, é interessante destacar aqui,
também, vocábulos e sentenças selecionados pelo sujeito que o identificam
como conhecedor das gírias utilizadas pelo Hip Hop e enquanto sujeito
que concebe o Rap como ferramenta de protesto: “cantando a realidade”,
______ [ 262 ]
“microfone”, “rimas”, “Rap”, “salvação”, “perifeira”, “povo”, “favela”,
“moleque de rua”, “truta”, “liberdade de expressão”, “playboy” e “atitude”.
A raiva e a mágoa que o sujeito sente pelo sistema social são canalizadas e ele
faz do Rap a sua munição. As armas são trocadas por palavras que, igualmente
às primeiras, também querem assustar e ferir.

AS VOZES DO TERCEIRO: IDEOLOGIAS

Atualmente, o cidadão tem noção de sua situação de classe e, baseado


nos respingos que o atingem dos estudos e mobilizações marxinianos iniciados
no século XIX, ele sabe que o sistema atual não funciona como previsto no
direito que o sustenta, gerando desigualdade social e prejudicando a maior
parte dos cidadãos. O Rap, na maioria dos casos, assume a posição de meio
de expressão e de protesto contra essa conjuntura.
O refrão da música analisada retrata bem esta situação de incapacidade
e inércia do governo: “Cascavel, cidade sofrida do Oeste do Paraná / Aqui o
filho chora e a mãe não vê / Truta, pode acreditar”. Quer dizer, o sofrimento
e a insatisfação popular existem, porém o governo ignora. É interessante
ressaltar que o município de Cascavel tem o status de ser um dos mais
desenvolvidos e de melhores condições de vida para a população, em geral,
do oeste paranaense. É referência como polo industrial, universitário, médico
e cultural de um estado que, por si, também é tido como referência. Dessa
maneira, a música quer quebrar essa imagem com esse refrão, mencionando,
inclusive, o nome da cidade.
Em suma, há o suposto ideal de um sistema menos desigual e injusto.
Essa forma possível, anticapitalista, é aqui o superdestinatário do sujeito. O
discurso se dirige a um ente politicamente correto que é capaz de compreendê-
lo em sua indignação. Em outras palavras, as vozes ideológicas presumidas
em “Cascavel, quebrada sofrida” são aquelas herdadas pelo que o sujeito
assimilou de como deve ser um governo que promova a equidade social.
No verso “Me desculpe se minhas rimas são agressivas”, o sujeito prevê
as concepções de seu superdestinatário, como dizendo: “sei que o caminho
para a mudança não é a agressão” e também já entendendo que muitos dos
Rap`s com um conteúdo pesado como o dele é considerado pela população,
inclusive, por muitos dos que compartilham do ideário de sociedade do sujeito,
como música de apologia ao crime. Sendo assim, no momento da enunciação,
ele se antecipa a uma réplica que supõe de seu superdestinatário. O mesmo
______ [ 263 ]
ocorre em “Seria bem pior se eu estivesse de oitão na mão”. O objetivo é
justificar o uso do linguajar agressivo, apresentando a prática criminosa que é
comum entre membros da comunidade.
Outro superdestinatário presente, que até se confunde com a ideologia
anticapitalista, são os pressupostos ideológicos do Hip Hip, isso porque o
próprio Hip Hop assimilou vozes do discurso anticapitalista mobilizado no
século XX. É perceptível que o sujeito discursa conforme vozes ressonadas do
discurso Hip Hop: “Eu encontrei no Rap a minha salvação”, “Meu microfone
é minha arma pra derrubar os covardes”, “Liberdade de expressão é meu
único direito”, “com um microfone na mão / Me torno perigoso pra político
ladrão” e “To com o microfone na mão / E só a morte pode nos parar”.
Embora, as vozes do politicamente correto, conforme uma ideologia
anticapitalista que prevê uma reforma sistêmica por via da cultura, da educação
e da arte seja as que dominam o discurso, aparecem, em vários momentos,
vozes ideológicas que preconizam a mudança por meio da força bruta e da
guerra. Quando o sujeito enuncia que poderia ter um oitão na mão, deixa
claro que conhece outro meio.
Recordando Barros (1999, p. 06), “Para reconstruir o diálogo
desaparecido são, nesse caso, necessários outros textos que, externamente,
recuperem a polêmica escondida, os choques sociais, o confronto, a luta.”
Assim, há a luta entre vozes que constituem o sujeito do discurso em análise.
Nos versos “A paz tá tentando viver, mas tá difícil” e “O HU está lotado:
vinte pessoas pra uma vaga / Tá ficando complicado”, notamos um tom
de ultimato, uma advertência de que não está mais sendo possível suportar
e esperar pela mudança que demonstra ser tão lenta por meio de meios
pacíficos. Portanto, há resquícios dessas vozes que autenticam a revolta brutal.
Porém os versos “Mas, tudo isso poderia ser diferente / Tipo, se o povo da
favela fosse tratado como gente”, “Nós só queremos melhores condições /
Condições de sobreviver” e “Não quero caixão lacrado / Só quero que o meu
povo seja respeitado” deixam transparecer que o discurso clama por mudança
por meio da ação pacífica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendendo o Rap enquanto texto pertencente ao gênero do


discurso musical, logo, como a realidade imediata em que se apresentam as
crenças e os julgamentos dos rappers, foi possível identificar as vozes sócio-
______ [ 264 ]
ideológicas que estruturam as maneiras de pensar e de se expressar por meio
da própria expressão verbal, ou seja, da enunciação.
Brait (1999, p. 21) nos assegura que

Segundo Bakhtin, são os julgamentos de valor que determinam a seleção


das palavras feitas pelo falante e a recepção dessa seleção (a co-seleçao)
feita pelo ouvinte. E esclarece que o falante seleciona as palavras não no
dicionário, mas no contexto de vida onde as palavras foram embebidas e se
impregnaram de julgamentos de valor.

As palavras e os recursos fraseológicos usados em um discurso,


portanto, são resultado de uma busca não em um sistema linguístico abstrato,
mas em um contexto de vida, um contexto social, em que as palavras já
possuem um efeito de sentido e que, ao adentrar no universo subjetivo do
sujeito, sofrerá outros julgamentos de valor e possuirá, então, uma nova
significação. Por isso, elas são o meio para estudar a ideologia e o subjetivismo
e, no caso em análise, foi possível adentrar no universo da periferia de Cascavel
e perceber a indignação e a revolta de sujeitos que se percebem marginalizados
pelo capitalismo e suas instituições fracassadas, como o governo e o direito.
A partir da explanação introduzida sobre os estudos de Bakhtin
acerca da linguagem e da aplicação de alguns dos conceitos para a análise da
música escolhida, foi possível percebê-la enquanto acontecimento, enquanto
interação socioverbal, prenhe de vozes socioideológicas e de um querer-dizer.
De acordo com Bakhtin ([1979] 2000, p. 313),

A época, o meio social, o micromundo – o da família, dos amigos e


conhecidos, dos colegas – que vê o homem crescer e viver, sempre possui
seus enunciados que servem de norma, dão o tom; são obras científicas,
literárias, ideológicas, nas quais as pessoas se apoiam e às quais se referem,
que são citadas, imitadas, servem de inspiração. [...] Há sempre certo número
de ideias diretrizes que emanam dos ‘iluminares’ da época.

O micromundo do sujeito, quer dizer, todas as influências que o


alcançam: a família, a comunidade, a época, a filosofia mais difundida que
se destaca e está em voga, em suma, o contexto histórico-social ditam um
número de ideias. Em outras palavras, essas ideias que influenciam o sujeito
são as vozes sócio-ideológicas que ele assimila. Assim, percebemos que a voz
que ecoa no discurso analisado é um pensamento anticapitalista.
Os séculos XX e XXI tiveram um grande avanço no que tange à
informação sobre os mais variados assuntos. O advento do rádio, da televisão,
e, principalmente, da internet, além dos tradicionais meios impressos,

______ [ 265 ]
propiciaram às pessoas de diferentes classes sociais a oportunidade de saber,
de conhecer, de estarem informadas. Cremos ser esse o motor que impulsiona
o complexo sistema no qual hoje estamos inseridos: o acesso à legislação, que
hoje pode ser obtida na internet, por exemplo, possibilita que os cidadãos
saibam de seus direitos, como a garantia da educação básica e reclamem pela
sua concretização.
Consequentemente, com o acesso à educação, embora as políticas
públicas voltadas a ela sejam, ainda, precárias, o cidadão alcança o mínimo de
condições que possibilitarão a ele compreender a situação do sistema social em
que está inserido. Atualmente, é muito mais fácil perceber a realidade social e
questioná-la do que há um tempo mais remoto. Isso se deve, principalmente,
ao surgimento da burguesia no século XVIII e XIX e às reformas políticas
desencadeadas no iluminismo, bem como aos avanços científicos e filosóficos
desse período.
O cidadão conquistou o direito da liberdade de expressão e,
conquanto, muitas vezes, as informações e as filosofias que estão em voga
não sejam plenamente assimiladas e compreendidas, há a percepção genérica
de que o sistema capitalista não consegue satisfazer a todos, sequer à maioria.
O anticapitalismo, portanto, é um dos superdestinatários do texto.
Outra voz que se percebe está muito baseada nos pressupostos do
socialismo. Há uma voz que entende que a equidade social é um direito e a
única solução para os problemas é a luta entre as classes. Essa voz é percebida
em todas as canções e se confunde com o próprio discurso do Hip Hop, uma
vez que, certamente, o Hip Hop já aproveita as ideologias de esquerda, como
o socialismo, para se fundamentar ideologicamente. A arte, assim, seria uma
maneira alternativa de a periferia se fazer notar e conquistar a igualdade. Há
uma consciência da desigualdade social e a ideia de uma reforma que pode se
concretizar por meio da arte e não da força bruta.
Em suma, as vozes identificadas foram o anticapitalismo, o socialismo,
a cultura popular e o Hip Hop enquanto arte doe protesto. De acordo com
Bakhtin, essas vozes ditam as verdades que regem o discurso e a conduta dos
sujeitos, tanto que o próprio discurso, direciona-se ao terceiro destinatário e
espera dele a aprovação do discurso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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In: DARBY, Derrick & SHELBY, Tommie (Org). Hip Hop e a Filosofia.
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TREVIZAN, Silvana Carolina. As vozes do Rap nas quebras de Cascavel:


um estudo dos pressupostos dialógicos. 2012. 186 f. Dissertação (Mestrado
em Letras), Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2012.

NOTA

1) Utilizamos esses termos a partir do pensamento marxista, sendo que, resumidamente, a


infraestrutura diz respeito à vida de uma sociedade, suas classes e meios de produção, e a
superestrutura abrange a vida não material: a cultura, a economia, a religião, a arte, o direito, a
moral, enfim, instituições ideológicas.

______ [ 268 ]
AUTORES

Luciane Thomé Schröder


Possui Graduação em Letras pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (1999), Mestrado
em Letras - Linguagem e Sociedade pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(2006) e Doutorado em Estudos da Linguagem
pela Universidade Estadual de Londrina
(2012). Atualmente é professora Adjunto
B da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon.
Tem experiência na área de Linguística, com
ênfase em Análise de Discurso, atuando
principalmente nos seguintes temas: discurso;
mulher; maternidade; grupos de apoio; práticas
discursivas para o ensino da leitura e produção
escrita na língua materna.
E-mail: ltschroder@gmail.com

Franciele Luzia de Oliveira Orsatto


Professora do curso de Letras Português/
Inglês/Espanhol/Italiano da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste),
campus Cascavel, desde 2010. Aluna regular
do doutorado em Letras, mestre e graduada
em Letras Português/Inglês pela mesma
universidade. Graduada em Comunicação
Social – Jornalismo pela Faculdade Assis
Gurgacz (FAG), onde atuou como professora
de 2009 a 2013.
E-mail: francieleluzia@yahoo.com.br
Alexandre da Silva Zanella
Doutorando em Estudos de Linguagem pela
Universidade Federal Fluminense (UFF) (2013-
2017). Mestre em Letras pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste),
campus de Cascavel (2012), com trabalho
intitulado “Metrópoles do futuro: o barulho
por trás do ranking de Veja”, vinculado à linha
de pesquisa “Interdiscurso: práticas culturais
e ideologias”. Possui graduação em Letras
Português/Inglês e respectivas Literaturas
pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (UNIOESTE), campus de Cascavel
(2009). Cadastrado nos grupos de pesquisa
“Confluências da Ficção, História e Memória
na Literatura” e “Discursividade, língua e
sociedade”. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Análise do Discurso.
E-mail: aleszanella@gmail.com

Luiz Carlos de Oliveira


Graduado em História pela Universidade
Paranaense - Unipar (2005). Especialista
em História Regional pela Universidade
Paranaense - Unipar (2007). Especialista
em Ensino da Arte, Cultura e História
Afroindígena pela Universidade Estadual
do Oeste do Paraná - Unioeste (2010).
Mestre em Letras (concentração em
linguagem e sociedade) pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste
(2012), com a temática: “O discurso sobre
as cotas para negros na revista Veja”.
E-mail: naosoueumesmo@gmail.com

______ [ 270 ]
Paula Fabiane de Souza Queiroz
Graduada em Letras Português/Espanhol pelo
CTESOP, em 2006. Graduada pela mesma
instituição em Pedagogia, no ano de 2009.
Especialista em Educação Especial, pelo ESAP,
em 2007. Mestre em Letras pela UNIOESTE,
2009. Atualmente é Agente Educacional na
SEED/PR e docente no curso de Pedagogia
do CTESOP.
E-mail: paulafabisouza@hotmail.com

Alex Sandro de Araujo Carmo


Graduado em Comunicação Social -
Publicidade e Propaganda pela Faculdade
Assis Gurgacz (2007) e Mestre em Letras pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(2011). Atua como docente na Faculdade Sul
Brasil e Faculdade Assis Gurgacz, nos cursos
de Publicidade e Propaganda e Jornalismo.
Tem publicado artigos científicos nas áreas da
Comunicação (estudos semióticos e estudos da
recepção) e da Linguagem (análises discursivas
de práticas publicitárias). Editor responsável da
Revista científica Advérbio (FAG) e da Revista
Midiação (FASUL).
E-mail: alexaramo@yahoo.com.br

______ [ 271 ]
Nelci Janete dos Santos Nardelli
Possui graduação em Pedagogia pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(1997), Especialização em Gestão Pública e
Mestrado em Letras-Linguagem e Sociedade
pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (2009). É Agente Universitário da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
- UNIOESTE. Tem experiência na área de
Políticas e legislações da e para a Educação
Superior, de Desenvolvimento Humano, de
Avaliação Institucional e Planejamento.
E-mail: nelci.nardelli@unioeste.br

Mirielly Ferraça
Formada em Letras Português/Italiano
pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná - UNIOESTE e Mestre em Letras pela
mesma Universidade. Também graduada em
Comunicação Social com ênfase em Jornalismo
pela Universidade Paranaense - UNIPAR.
Possui pós-graduação em Língua Portuguesa
e Literatura Brasileira pela Faculdade Assis
Gurgacz - FAG. Leciona Língua Portuguesa e
Linguística na Universidade Estadual do Norte
do Paraná - UENP, campus Jacarezinho. Desde
a graduação, realiza pesquisas pautando-se
sempre no viés francês da Análise do Discurso,
principalmente com os temas sexualidade e
prostituição.
E-mail: miriellyferraca@gmail.com

______ [ 272 ]
Alexandre Sebastião Ferrari Soares
Possui graduação em Letras pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1989), mestrado em
Letras pela Universidade Federal do Paraná
(1999) e doutorado em Letras pela Universidade
Federal Fluminense (2006). Atualmente
é pós-doutorando pela Universidade de
Coimbra, Portugal. Bolsista da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino
Superior – CAPES. Professor adjunto da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Em
Análise do Discurso, trabalha principalmente
com os seguintes temas: discurso midiático,
político e imagético, focando as relações entre
sujeito, memória, práticas culturais, diversidade
e gênero.
E-mail: asferraris@globo.com

Maria Isabel Ribeiro Ferin Cunha


Licenciada em História pela Faculdade de Letras
de Lisboa (1974), Mestra (1984) e Doutora
(1987) em Ciências da Comunicação pela
Universidade de São Paulo, Pós-Doutorada em
França (CNRS, 1991). Atualmente é Professora
Associada, com agregação, da Universidade
de Coimbra. É vice-presidente do Centro de
Investigação Media e Jornalismo (2011-2013)
e tem coordenado alguns projetos aprovados
pela Fundação Ciência e Tecnologia/Portugal,
tais como Televisão e Imagens da Diferença
e Jornalismo e Actos de Democracia e no
momento Cobertura Jornalística da Corrupção
Política: uma perspetiva comparada Brasil,
Moçambique e Portugal. As suas áreas de
interesse são: Análise dos Media (Imprensa e
Televisão); Media e Migrações; Ficção seriada
televisiva e Comunicação Política.

______ [ 273 ]
João Carlos Cattelan
Docente graduado em Letras/Português,
com mestrado e doutorado em Linguística e
Língua Portuguesa, pela UFPR e pela UNESP,
respectivamente. Tem 8 anos de experiência
no ensino fundamental e médio e 28 anos de
docência no ensino superior. Foi professor
e diretor de escola de ensino fundamental
e coordenador de estágio supervisionado,
coordenador de curso, chefe de departamento,
diretor de centro e diretor geral de concursos
da universidade a que está vinculado. Atua no
programa de pós-graduação em Letras (níveis
de Mestrado e Doutorado) da instituição há 11
anos. Possui 2 livros, 5 capítulos de livros e 65
artigos publicados.
E-mail: jcc.cattelan@gmail.com

Silvana Carolina Trevizan


Graduada em Letras pela UDC, especialista
em “Linguagem, Cultura e Ensino” pela
Unioeste, mestre em Letras - Linguagem
e Sociedade, pela mesma Universidade.
Atualmente, é professora no Colégio
Estadual Presidente Castelo Branco, em
Toledo, na modalidade de Ensino Médio.
Leciona no Ensino Superior, na Faculdade
Sul Brasil (Fasul). Seus estudos enfocam o
sujeito, a ideologia e o discurso presentes
nas letras de músicas.
E-mail: silcarolina_t@hotmail.com

______ [ 274 ]

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