Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
E Book Anlisedediscurso Estudosdeestadosdecorpora 140813173846 Phpapp01 PDF
E Book Anlisedediscurso Estudosdeestadosdecorpora 140813173846 Phpapp01 PDF
ANÁLISE DE DISCURSO:
ESTUDOS DE ESTADOS DE CORPORA
2014
TOLEDO - PARANÁ
© João Carlos Cattelan - Alex Sandro de Araujo Carmo [org.]
Coordenação Editorial
Osmar Antonio Conte
Organizadores
João Carlos Cattelan
Alex Sandro de Araujo Carmo
Projeto Gráfico
Alex Sandro de Araujo Carmo
Revisão
João Carlos Cattelan
274 p.
ISBN 978-85-89042-25-3
APRESENTAÇÃO [1]
CAPÍTULO 1 [3]
CAPÍTULO 2 [ 29 ]
CAPÍTULO 3 [ 42 ]
CAPÍTULO 4 [ 64 ]
COMENTÁRIOS DE LEITORES:
A VIOLÊNCIA NOTICIADA NA INTERNET
Luiz Carlos de Oliveira
CAPÍTULO 5 [ 86 ]
CAPÍTULO 7 [ 127 ]
CAPÍTULO 8 [ 155 ]
ZONA:
O ENTREMEIO COMO LUGAR DE CONTRADIÇÃO
Mirielly Ferraça
CAPÍTULO 9 [ 176 ]
CAPÍTULO 10 [ 208 ]
CAPÍTULO 11 [ 239 ]
AUTORES [ 269 ]
APRESENTAÇÃO
João Carlos Cattelan
______ [ 2 ]
CAPÍTULO 1
RECORTES E
APONTAMENTOS
SOBRE A TEORIA
DO DISCURSO
Esse texto1 não é uma apresentação da Análise de Discurso de orientação
francesa; constitui-se, mais, numa vontade de agrupar, em poucas páginas,
um mapa (que se sabe incompleto) da teoria que tem por objeto de estudo e
reflexão o discurso. No espaço teórico da Análise de Discurso, entende-se, que,
no lugar de respostas que apontem para certezas, o que há são possibilidades
de análises por meio de uma prática de leitura, que, a cada encontro com seu
objeto, pode ser res-significada, ou seja, trata-se de um “procedimento que
demanda um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise”
(ORLANDI, 2001a, p. 67). Não há respostas a serem perseguidas que
antecedam o processo de análise, porque não há, em definitivo, perguntas guias.
Obreiros em andaimes suspensos: talvez seja essa a definição para o trabalho
dos que trilham os caminhos da Análise de Discurso.
Segui-los significa transitar, de modo contemplativo, pelo objeto em
análise. Corpus sempre em movimento, seja porque se encontra em condições
de produção não estabilizadas, seja porque o olhar do analista é afetado pelas
suas próprias condições de produção, as quais não podem ser negadas, nem
apagadas, devido à presença silenciosa daquilo que move a todos enquanto
sujeitos de uma prática discursiva: os indivíduos estão, em última instância,
sempre sujeitos às ideologias:
Como construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por
meio de uma cenografia professoral, profética, amigável etc. A cenografia é
a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por
sua vez, deve validar através da sua própria enunciação: qualquer discurso,
por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação
que o torna pertinente. A cenografia não é pois um quadro, um ambiente,
como se o discurso ocorresse em um espaço já construído e independente
do discurso, mas aquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio
dispositivo de fala. (sem grifos no original).
______ [ 10 ]
Como se pode observar, nesse “jogo”, inscreve-se um conjunto
de formações imaginárias que leva o sujeito a fazer “escolhas” a partir dos
jogos de imagem que se travam entre os interlocutores. Os sujeitos estão
submetidos a determinadas condições de produção, conforme Pêcheux
(1969, In: GADET E HAK, 1993) expõe no quadro acima, na apresentação
da AAD-69.
O discurso, então, é tido “como um sistema de relações de substituição,
paráfrases, sinonímias e etc., que funcionam entre elementos lingüísticos –
‘significantes’ – em uma formação discursiva dada” (PÊCHEUX, 1997a,
p. 161), isto é, num “espaço de reformulação-paráfrase onde se constitui a
ilusão necessária de uma ‘intersubjetividade falante’ pela qual cada um sabe
de antemão o que o ‘outro’ vai pensar e dizer, e com razão, já que o discurso
de cada um reproduz o discurso do outro.” (PÊCHEUX, 1997a, p. 172),
conforme as relações de força (inconsciente) travada entre os interlocutores.
Os sujeitos assumem uma forma-sujeito, “de tal modo que cada um
seja conduzido, sem se dar conta, e tendo a impressão de estar exercendo
sua livre vontade, a ocupar o seu lugar” (PÊCHEUX e FUCHS, 1975, In
GATED E HAK, 1993, p. 166) numa dada situação: retoma-se, então, a
questão de assujeitamento ideológico, um dos problemas levados ao extremo
por Pêcheux, Althusser e Lacan.
Em relação à incorporação dos estudos de Lacan à Análise de Discurso,
deve-se lembrar que ele parte de uma releitura de Freud, revendo, sobretudo,
a relação do sujeito com o inconsciente. Para ele, segundo Pêcheux e Fuchs
(1975, p. 178), ”todo discurso é ocultação do inconsciente” ou “o inconsciente
é o discurso do Outro” (1997a, p. 133). A forma como isso afeta as relações
do sujeito com o discurso diz respeito ao fato de que, em todo discurso, seja
______ [ 11 ]
ele de que esfera for, há, de modo mais ou menos explícito, a presença do
Outro (com “o” maiúsculo), de modo que haveria sempre a voz do Outro
presente, cuja origem é exterior ao sujeito: ele encontraria raízes no discurso
dos pais, da igreja, da escola, da sociedade em geral, afetando o sujeito, que,
na perspectiva de Freud, é dividido entre consciente e inconsciente (“sujeito
clivado”). Pêcheux (1997c, p. 45), em referência a Althusser, cita:
Foi a partir de Freud que começamos a suspeitar do que escutar, logo do que
falar (e calar) quer dizer: que este ‘quer dizer’ do falar e do escutar descobre,
sob a inocência da fala e da escuta, a profundeza determinada de um fundo
duplo, o ‘querer dizer’ do discurso do inconsciente.
______ [ 13 ]
fazer, temer, esperar, etc.” (PÊCHEUX, 1997a, p. 161). E continua:
______ [ 14 ]
apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o
trabalho significativo de uma ‘outra’ formação discursiva, uma ‘outra’ região
de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas,
determinando consequentemente os limites do dizer. (ORLANDI, 2002, p.
76).
uma memória não poderia ser concebida como um esfera plana, cujas
bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido
homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um
espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos ou de retomadas,
de conflitos e regularização... Um espaço de desdobramento, réplicas,
polêmicas e contra-discursos. (PÊCHEUX, 1999, p. 56).
Essa seria, pois, uma via para a instauração dos sentidos. Ainda
sobre a problemática posta sobre o sentido e o processo de enunciação que
ilusoriamente faz o sujeito se ver como dono de seu dizer, Pêcheux apresenta
uma reflexão sobre o mesmo como processo metafórico de significação:
______ [ 17 ]
que são o empirismo logicista (subordinação ao objetivo do subjetivo) e o
realismo metafísico (subordinação ao subjetivo do objetivo).
Para o autor, que defende pressupostos de base materialista, “o
essencial consiste em colocar a independência do mundo exterior em relação
ao sujeito, colocando simultaneamente a dependência do sujeito com respeito ao
mundo exterior” (PÊCHEUX, 1997a, p. 76 – grifos do autor), o que faz
emergir, segundo o autor, a categoria filosófica do processo sem sujeito, conforme
afirma em sua obra.
Pêcheux contesta toda forma de obviedade que possa sustentar a
relação de sentido entre a coisa e o nome: “Em suma, a evidência diz: as
palavras têm um sentido porque têm um sentido, e os sujeitos são sujeitos
porque são sujeitos: mas, sob essa evidência, há o absurdo de um círculo
pelo qual a gente parece subir aos ares se puxando pelos próprios cabelos”
(PÊCHEUX, 1997a, p. 32). O que existe, para a Análise de Discurso, são,
em verdade, efeitos de sentido postos em “evidência”, quando entram em cena
as condições de produção do discurso, o efeito de assujeitamento sofrido
pelo sujeito e a condição de o sujeito enunciar a partir de uma formação
discursiva afetada pelas relações de força que silenciosamente estão presentes
nos discursos: “Ninguém compreende a proposição há pedaços de bolo da mesma
maneira que compreende a proposição há corpos regulares. No primeiro caso, o que se visa
não é que haja pedaços de bolo em geral e em absoluto, mas que aqui e agora – com café –
haja pedaços de bolo”. A citação que Pêcheux faz de Husserl, a qual ele chama de
“essencialmente ocasional”, vem ao encontro do modo de perceber que, em
nome de um sentido, o que há, fundamentalmente, são efeitos de.
O sujeito não é o portador da palavra, mas é experienciado por
ela. Os discursos são uma representação das sociedades: dos seus valores,
da sua cultura, da moral adquirida por meio das práticas difundidas pelas
religiões, pelo estado, pela escola, pelas relações familiares e etc. (como já
dito). Os estudos dos processos discursivos foram, durante muito tempo,
negligenciados pelas ciências da linguagem, já que, como se sabe, aquele que
falava não era ouvido, porque não interessava a reflexão sobre por que se diz
o que se diz da forma como o dito está sendo enunciado, ou de onde vêm os
discursos e como eles significam, ou quem são os sujeitos da interação e de
que forma as condições de enunciação os afetam.
Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, problematiza as
circunstâncias tensas em torno do signo linguístico, assumindo posição contra
as duas correntes teóricas que ele denominou de objetivismo abstrato e de
subjetivismo idealista. Aproximam-se nesse momento, esses dois teóricos,
Pêcheux e Bakhtin, que, incansavelmente, cada um a seu modo, buscaram
______ [ 18 ]
explicitar o fato de que nada escapa à ideologia. E, de fato:
Não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos
se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente
organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um
sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada
pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do
meio ideológico e social. A consciência individual é um fato sócio-ideológico.
(BAKHTIN, 1999, p. 35 – grifos do autor).
______ [ 20 ]
Discurso é o de Harris e o seu método denominado harrisiano. Precursor
das análises transfrásticas, teve seu estudo apropriado por Pêcheux para a
análise das superfícies discursivas. Porém, o método “mostrou-se insuficiente
para os propósitos da Análise de Discurso, que buscava reintegrar uma teoria
do sujeito e uma teoria da situação.” (MUSSALIM, 2001, p. 116). Ainda que
de forma breve, a menção aos dois autores que marcaram as reflexões de
Pêcheux ao elaborar o que viria a ser a disciplina de Análise de Discurso de
orientação francesa não poderia ser apagada.
Por meio dos constantes embates e debates que a marcaram, Pêcheux
foi aquele para quem o discurso significou “um verdadeiro nó. Não [sendo]
jamais um objeto primeiro ou empírico. [Mas] o lugar teórico em que se
intrincam literalmente todas suas grandes questões sobre a língua, a história,
o sujeito” (MALDIDIER, 2003, p. 15).
Pensada a partir do entremeio teórico de três grandes áreas do
conhecimento, a Análise de Discurso se articula por entre seus conhecimentos,
segundo texto de Pêcheux e Fuchs publicado em 1975 (In: GADET e HAK,
1993, p. 163-164). São elas:
Era sem dúvida preciso que a teoria fosse construída, para que sua
desconstrução produzisse iluminações, questionamentos. O percurso de
Michel Pêcheux deslocou alguma coisa. De uma ponta a outra, o que ele
teorizou sob o nome de ‘discurso’ é o apelo de algumas ideias tão simples
quanto insuportáveis: o sujeito não é a fonte do sentido; o sentido se forma
na história através do trabalho da memória, a incessante retomada do já-dito;
o sentido pode ser cercado, ele escapa sempre (p. 96).
No intuito de compreender relativamente os percursos de Michel
______ [ 22 ]
Pêcheux, tomar-se-á o caminho metodológico que apresenta a teoria a partir
das suas três fases, de onde os conceitos citados são retomados. As fases
são cronologicamente denominadas como AAD-69 (Análise Automática do
Discurso - AD-1), AD-75 e AD-83. Deve-se ressaltar que, no texto Análise de
Discurso: Três Épocas (1983), publicado pelo próprio Pêcheux (In: GADET
e HAK, 1993, p. 311-318), o autor revisita seus aportes teóricos e apresenta,
de forma sucinta, o que se pode considerar pontos que caracterizam cada uma
das três fases e aquilo que as marca de forma expressiva.
Recorrendo, portanto, ao texto, tem-se, na AD-1 (p. 312-313), o
momento conhecido como maquinaria discursiva, devido à “autonomia” com
que as análises se dariam sobre um corpus “fechado” a partir de “condições
de produção estáveis e homogêneas” e que suporiam “a neutralidade e a
independência discursiva da sintaxe”, com a finalidade de “construir sítios de
identidade parafrásticas interseqüenciais”. Nas palavras de Pêcheux (1993),
______ [ 25 ]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______ [ 26 ]
_____. Discurso e Texto: formação e circulação dos sentidos. São Paulo:
Pontes, 2001b.
_____. Discurso e Leitura. 5 ed. São Paulo: Cortes; São Paulo: Editora da
Universidade Estadual de Campinas, 2000.
_____. Papel da Memória. IN: ACHARD, Pierre (et. al.). Papel da Memória.
São Paulo: Pontes, 1999.
_____. Ler o arquivo hoje. IN: ORLANDI, Eni Pulcinelli (org.) [et al]. Gestos
de leitura: da história no discurso. Trad. Bethania Mariani [et al]. 2 ed. São
Paulo: Editora da UNICAMP, 1997b.
______ [ 27 ]
NOTAS
2) Aqui, o conceito de polifonia está sendo tomado da perspectiva de Ducrot (1987). Para o
autor, significa a presença, na enunciação, de uma “superposição de diversas vozes” (p. 172) e,
mais, significa “a existência, para certos enunciados, de uma pluralidade de responsáveis, dados
como distintos e irredutíveis” (p. 182).
______ [ 28 ]
CAPÍTULO 2
A OPACIDADE
DA LÍNGUA, DA
HISTÓRIA E DO
SUJEITO:
UMA REFLEXÃO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
Para a AD, a língua não pode ser vista como um sistema autônomo
que os falantes mobilizam para traduzir o que pensam e o que sentem. A
ideia de tradução de um pensamento pré-concebido é inaceitável para a
teoria, assim como a existência de uma estabilidade inabalável do sistema
linguístico. Rompendo com o corte saussureano da língua versus fala, a língua é
considerada, pela AD, como parcialmente autônoma. Isso porque, ao mesmo
tempo em que ela tem suas regras próprias de fonologia, morfologia e sintaxe,
elas são colocadas em funcionamento segundo um processo discursivo, numa
certa conjuntura (POSSENTI, 2005). A língua interessa à AD, portanto,
quando considerado o seu funcionamento, ou seja, à medida que instaura
relações discursivas entre sujeitos.
Segundo Orlandi (2001), a língua é condição de possibilidade
do discurso. É ela que permite que textos sejam materializados e, por sua
vez, materializem discursos – e é nesse processo que efeitos de sentido são
construídos. Deve-se destacar que não há a construção de um sentido, mas
de efeitos de sentido. Em outras palavras, não é possível atravessar o texto
ou a suposta transparência da língua para descobrir o sentido que está do
outro lado; a língua é marcada pela opacidade e dá margem ao equívoco, ao
deslizamento e à polissemia.
Diferentemente da análise de conteúdo, a AD não trabalha com
o levantamento de informação, mas se preocupa com o funcionamento
discursivo. E, diferentemente da Semântica Formal – duramente criticada
por Pêcheux (1997) –, a AD não se preocupa com a dimensão estrutural
da língua com uma intensidade que seja capaz de esvaziá-la de sentido. Ao
contrário: a AD concebe o que é dito a partir de seu caráter inseparável da
sociedade que utiliza a língua e a partir da qual é possível pensar na gênese
______ [ 31 ]
dos enunciados. Em outras palavras, forma e conteúdo não se separam, pois
a língua é estrutura e acontecimento.
Quando se fala em acontecimento, fala-se do ponto em que um
enunciado instaura um novo processo discursivo, inaugurando uma nova
forma de dizer (FERREIRA, 2001). Porém, isso não ocorre de maneira
controlada e consciente. A fronteira entre o novo e o repetível é sempre
instável e sem demarcações claras. A formulação do novo não é acessível ao
sujeito enquanto indivíduo, mesmo que tenha a ilusão de que tem o poder de
criar. Trata-se de um processo inscrito na história, que não é linear e sobre o
qual o sujeito não tem controle.
O que o sujeito enuncia não se origina nele, por mais que ele tenha
a impressão de ser a fonte do sentido (processo denominado “esquecimento
ideológico”). O que dizemos não nos pertence, pois nosso enunciado apenas
ecoa sentidos já-lá. Somos meros porta-vozes do que é colocado em cena
pela memória discursiva, ou seja, de vozes que falam por si. Assim, não há
um sentido correspondente a uma representação literal da realidade que
“atravessa” um indivíduo transparente. Eis a opacidade do sujeito: os sentidos
são mobilizados por sujeitos inscritos em posições sociais, afetados pela
ideologia, pela história e pelo inconsciente.
Não há discurso, nem língua, nem sujeitos “neutros”. O discurso
carrega história e ideologia. A língua revela como a comunidade que a utiliza
se relaciona com o mundo real e a maneira como ela o interpreta. O sujeito
diz o que diz de acordo com as posições-sujeito que ocupa, no interior das
FDs que determinam o que dizer e no interior de FIs que determinam o que
pensar. Em outras palavras, o sujeito só é sujeito (em oposição ao indivíduo
biológico), porque a ideologia o interpela e porque o assujeitamento o
caracteriza.
Outra suposta transparência que a AD põe em causa refere-se à
história. Para Orlandi (1994), a história não deve ser pensada como sucessão
de fatos com sentidos dados; sua materialidade não pode ser apreendida em
si, mas no discurso: “Não estamos pensando a história como evolução ou
cronologia, mas como filiação; não são as datas que interessam, mas os modos
como os sentidos são produzidos e circulam” (ORLANDI, 1994, p. 58).
Tanto a história quanto a ciência não são caracterizadas pela
objetividade, mas sofrem um processo de naturalização realizado pela
ideologia. A evidência da história e do(s) sentido(s), construído(s) a partir
de determinações históricas, é uma produção ideológica. A opacidade da
história, portanto, também deve ser considerada, quando se propõe a analisar
o discurso, em especial, o da mídia, porque é a mídia, “em grande medida,
______ [ 32 ]
que formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a
identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente” (GREGOLIN,
2008, p. 16).
A MULHER EM REVISTA:
REALIDADE, FICÇÃO E CONTRADIÇÃO
Considerando as discussões teóricas realizadas até aqui, propõe-se
uma análise de enunciados da revista Nova à luz da AD francesa. Pode-se
dizer que a publicação é um veículo que circula no interior da esfera midiática,
em uma zona fronteiriça do jornalismo, cujo foco oscila entre informação
e entretenimento. Ao lidar com o simbólico e mobilizar vozes advindas de
diferentes FDs, a revista vai além da exposição de conteúdo informativo,
colocando-se, muitas vezes, no papel de “conselheira”, oferecendo
direcionamentos sobre como agir e, consequentemente, construindo uma
ideia do que é ser homem, ser mulher, ser negro, ser professor etc. Constroem-
se, a partir do que ora se mostra explicitamente, ora se oculta nas entrelinhas,
representações dos papéis sociais em questão.
A revista Nova é direcionada ao público feminino solteiro e jovem,
com idade entre 20 e 35 anos. Ela é uma versão nacional da Cosmopolitan, a
revista feminina mais vendida no mundo, e trata de assuntos como moda,
sexo, relacionamentos, carreira e celebridades. Se comparada às revistas
femininas que circulavam anteriormente ao seu lançamento, Nova chama a
atenção por não ser pensada para a mulher financeiramente dependente do
marido, que cuida da casa e dos filhos:
______ [ 33 ]
alheias ao ambiente doméstico, como se nota nas seguintes chamadas de capa,
para citar dois exemplos: “Qual é o seu tipo sexual? Faça o teste e descubra”
(NOVA, ed. 453, jun. 2011); “De demitida a promovida: saia da lista negra do
seu chefe para a lista vip do mercado” (NOVA, ed. 452, mai. 2011). Porém,
a abordagem sobre temas antes ignorados e/ou o tratamento mais ousado
para falar sobre esses assuntos realmente reflete a emergência de uma “nova
mulher”, independente e equiparada ao homem? Até que ponto é possível
identificar que se trata de uma “nova mulher”? Por trás de uma aparente
ruptura, seria possível identificar pontos que reforçam a doxa dominante
sobre a imagem do feminino? Estes são alguns questionamentos que surgem
a partir desse objeto de estudo.
No presente texto, focaliza-se a edição 466 da revista, de julho de
2012. A capa traz a imagem de uma mulher bem maquiada, de cabelos longos
e esvoaçantes. Trata-se de uma atriz de novela em evidência no momento, que
é identificada por meio de uma declaração que acompanha a foto: “Débora
Nascimento: ‘Hoje sei por que sou desejada’”. O enquadramento da foto
valoriza o corpo feminino como objeto de desejo, deixando apenas as pernas
fora do quadro. A atriz veste apenas a parte de baixo de um biquíni e uma
jaqueta aberta, deixando os seios quase totalmente à mostra. A foto encobre,
parcialmente, o nome da revista – o que não compromete a sua identificação
pela leitora, já que se mantém uma identidade visual: a fonte utilizada em toda
a capa e a disposição do título na página são sempre as mesmas.
A revista segue esta fórmula há várias edições: traz uma mulher de
destaque no momento, geralmente uma atriz, valorizando as formas do corpo
(magro e bem torneado) e a sensualidade. Acompanhando a foto, apresenta
uma declaração da mulher fotografada, com o objetivo de instigar a leitora a
conferir, nas páginas internas, a entrevista realizada com ela. As declarações
geralmente tratam de beleza, amor, sexo e sucesso pessoal e profissional. Na
edição analisada, por exemplo, o destaque é dado à questão da sexualidade.
Juntamente com a foto, o texto aciona a imagem de uma mulher que toma
atitudes para ser desejada: cuida do corpo, da roupa, da pose. Assim, a revista
não só atende às leitoras que também querem ser desejadas – assim como
a atriz, que compartilhará seu “segredo do sucesso” – mas determina, via
discurso, que é importante ser desejada. Para Foucault (2000), o discurso é uma
violência que fazemos às coisas. Em face disso, vê-se que a relação entre o
discurso e as condições externas de possibilidade, a partir das quais ele se
origina, não é especular. O discurso não apenas reproduz, mas tem o poder
de dizer como o mundo material deve ser.
A importância da beleza também é reforçada em outras chamadas
______ [ 34 ]
de capa da edição. Na tabela abaixo, são listadas todas as chamadas da edição
analisada:
Estou cansada dos papéis que desempenho: dar atenção ao meu namorado,
à minha mãe, ao meu trabalho, aos meus estudos... Estou sufocada. Não saio
com amigas, não compro roupas para mim, não me mimo.
Por meio das cartas das leitoras, emerge um discurso que contradiz o
que é sustentado pela FD da revista. Enquanto a FD assumida pela publicação
sustenta que é possível ser uma mulher linda e poderosa, que atende a todas as
expectativas, a FD das leitoras demonstra que isso não é possível. Porém,
apesar da contradição, não há uma relação conflituosa entre essas duas FDs.
Isso porque o que elas compartilham tem mais força do que os pontos
em que elas se diferenciam: ambas as FDs veem a mulher linda e poderosa
como o que deve ser buscado. Há, portanto, um interdiscurso que atravessa
essas duas FDs, que está presente “no próprio coração do intradiscurso”
(MAINGUENEAU, 2007, p. 38). Essa relação entre as FDs e sua exterioridade
é sempre dissimulada, como alerta Pêcheux (1997):
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______ [ 41 ]
CAPÍTULO 3
SOBRE O DISCURSO
JORNALÍSTICO QUE
RESSOA:
ESPAÇOS DE INSCRIÇÃO EM
OUTRAS MATERIALIDADES
DISCURSIVAS
______ [ 47 ]
CARTA 1: Parabéns pelo especial sobre as vinte metrópoles brasileiras
do futuro (Especial Cidades Médias, 1º de setembro). Percebi que os dados
sobre a elevação do PIB dos municípios se referem ao período de 2002 a
2007, e talvez por isso Três Lagoas (MS) não esteja relacionada entre as
cidades com maior crescimento industrial. Nos últimos dois anos, ela teve
um aumento do PIB de 300%, com o início da produção da Fibria (papel
e celulose) e de outras trinta fábricas de diversos setores. Além disso,
estão em fase de construção outra fábrica de celulose ainda maior e uma
siderúrgica. Também está projetada para 2014 a fábrica de fertilizantes
da Petrobras, que será a maior do país. Três Lagoas ocupa ainda a 56ª
posição entre os municípios exportadores do Brasil. Essa edição prova que
o futuro do Brasil está no interior. (Marco Garcia de Souza, Secretário de
Desenvolvimento Econômico; Três Lagoas/MS. Revista Veja, ed. 2181 de
08/09/2010, p. 51, grifos meus).
______ [ 48 ]
o especial:
a) “Parabéns pelo especial sobre as vinte metrópoles brasileiras do futuro” (Carta 1);
b) “Parabenizamos VEJA pela excelente reportagem” (Carta 2);
c) “Excelente reportagem” (Carta 4);
d) “Parabéns por mostrar ao Brasil pérolas não conhecidas por muitos” (Carta 7).
______ [ 49 ]
E, dessa forma, é possível notar como
Nos últimos dois anos, ela [Três Lagoas] teve um aumento do PIB de
300%, com o início da produção da Fibria (papel e celulose) e de outras
trinta fábricas de diversos setores. Além disso, estão em fase de construção
outra fábrica de celulose ainda maior e uma siderúrgica. Também está
projetada para 2014 a fábrica de fertilizantes da Petrobras, que será a
maior do país. Três Lagoas ocupa ainda a 56ª posição entre os municípios
exportadores do Brasil (Carta 1, grifos meus).
Aqui está situada a maior unidade têxtil do mundo em uma única planta
de produção, a Coteminas, com 160 000 metros quadrados totalmente
climatizados. Na cidade também se localiza a única fabricante das
sandálias Havaianas, a Alpargatas S.A., produzindo 650 000 pares por
dia e empregando mais de 8 000 trabalhadores. As duas empresas são
responsáveis por 75% das exportações da Paraíba (Carta 2).
______ [ 54 ]
faz com que se interprete a existência de uma espécie de colaboração entre o
sujeito-leitor-autor e o seu destinatário. A réplica, assim, não promove qualquer
deslocamento de sentidos: enquanto o lapso da localização da cidade produz
sentidos que vão de encontro com o imaginário constituído da instituição
jornalística e com o discurso da revista, este não é abalado, pelos mesmos motivos
que já foram enumerados logo acima. Ao elogiar a revista, a leitora efetiva seu
posicionamento na mesma formação discursiva. Seu lamento é apenas com
relação à localização errada; ela não lamenta, por exemplo, o fato de sua cidade
estar incluída no especial. Portanto, o efeito de sentido produzido a partir desta
carta é o de que estar entre as 20 “metrópoles do futuro” é algo positivo e a ser
valorizado, como se o dizer da revista refletisse uma única realidade. Só resta
queixar-se, então, que aquela “cidade do futuro”, por assim o ser, deva ser referida
‘corretamente’.
Na sequência, vejamos como os sentidos produzidos pelo especial de
Veja são reproduzidos também em outras materialidades discursivas de circulação
mais estrita: em veículos publicitários na cidade de Cascavel. A fim de investigar
como algumas empresas locais reproduzem o fato de Cascavel ser considerada
uma “metrópole do futuro”, ora mostrando a voz de Veja, ora a silenciando,
destaco três recortes de peças publicitárias veiculadas em uma revista de circulação
regional, em um panfleto de uma escola de idiomas e no site de um residencial
de uma empreendedora imobiliária. As peças circularam em Cascavel logo após a
publicação do especial de Veja, no final do ano de 2010.
O que chama a atenção nessas três peças publicitárias e as insere em
minha análise é o fato de elas trazerem o enunciado “metrópole do futuro”. Na
primeira, tem-se:
______ [ 55 ]
PEÇA 2: New York School (peça circulada em outubro/2010):
(ampliação)
______ [ 56 ]
PEÇA 3: Residencial Treviso (peça circulada no último
trimestre/2010)
______ [ 57 ]
os quais se poderia perceber uma repercussão dos sentidos já-lá no especial
de Veja; se se afirma que Cascavel ganhou um status, isso representa uma
conquista que, embora não se diga de que forma foi alcançada, supõe-se que seja
por algum tipo de merecimento, reconhecimento ou mesmo sorte. Não há,
todavia, uma preocupação da revista Diference com as formas de se alcançar
esse status. Dessa forma, seria possível considerar que, de acordo com o seu
dizer, basta que informem que Cascavel o ganhou e apenas isso. Quando se
emprega o termo receber, ainda outros efeitos de sentido se produzem. A
expressão receber um título efetiva, além de um ganho, o reconhecimento de
sua legitimidade.
Na peça 3, também se faz menção ao semanário da Editora Abril
ao trazer o logotipo da revista e ao referenciar o “anúncio” diretamente. Por
outro lado, na peça 2, não há qualquer referência explícita que recupere a
publicação do especial. A expressão “metrópole do futuro” comparece na
peça publicitária de modo natural, isto é, apagando o intertexto (o especial
de Veja).
Se nas peças 1 e 3 os efeitos de sentido derivam – e, de certa forma,
diria que eles dependem – dos sentidos que o semanário da Editora Abril
efetiva, reforçando os sentidos do discurso de Veja, na peça 2, além disso,
os sentidos dados por Veja são (re)tomados como evidência. Nesse viés,
pode-se compreender como o dizer do semanário emerge (embora apagado)
nesta peça como fonte de um dizer que estaria comprometido com a verdade;
não seria, pois, senão lógico assumi-lo e reverberá-lo. Dessa forma, ocorrem
relações também intertextuais nas peças 1 e 3, enquanto na peça 2 há uma
relação interdiscursiva.
É, sobretudo, com relação à última que se pode verificar como o
esquecimento é estruturante, como diz Orlandi (2010 [1999]). A partir da
publicação da peça 2, é possível considerar que, mais do que uma ressonância
de sentidos, há ali um desvelamento de como a ideologia afeta os sujeitos.
Se houve autorização, por parte dos interessados, para a veiculação de uma
propaganda como esta, podemos considerar que haja uma reverência ao que
Veja diz e, por conseguinte, que haja um reforço daquele dizer, como se o
que o semanário publicasse pudesse e devesse ser levado em consideração.
Considera-se, ademais, que isso ocorra porque, no discurso publicitário,
recuperar um dito de um veículo de comunicação tão difundido quanto Veja
seja fator contribuinte para os fins da publicidade, isto é, para a venda de um
produto (seja uma revista, seja uma matrícula numa escola de idiomas, seja uma
casa, etc.). Pode-se dizer, a partir das análises empreendidas, que os efeitos de
sentido produzidos pelas peças publicitárias vão ao encontro daqueles que
______ [ 58 ]
Veja efetiva, já que os sujeitos estão fadados a significar em sua dependência
a um (sempre) já-dito. Nesse caso, o enunciado emblemático de “metrópoles
do futuro” utilizado pelo semanário. O que importa esclarecer, enfim, é que as
peças publicitárias demonstram, por seus processos discursivos, uma inscrição
na história e na língua que produz determinados sentidos.
Na peça 2, vê-se ainda como a partir do enunciado “metrópoles do
futuro” ocorre um deslizamento de sentido para “a escola do futuro”, mais
uma vez reforçando e naturalizando os sentidos produzidos por Veja, como
se se dissesse que, por estar na “cidade do futuro”, é natural que haja uma
“escola do futuro”. É relevante, diante disso, notar a construção do enunciado,
que se vale de uma oração adjetiva restritiva12: “A New York School ensina
com qualidade desde 1991 e é a escola que mais cresceu em Cascavel, a
metrópole do futuro” (grifos meus). Os sentidos que se produzem aqui são
os de que não se trata de qualquer escola, mas da escola que mais cresceu numa
cidade que é considerada a metrópole do futuro. Efetiva-se, a partir disso, que,
por estar numa “metrópole do futuro”, a escola teria uma atenção direcionada
ao ensino de qualidade. Por esses motivos, não seria senão natural dar-lhe a
preferência.
Em geral, não se notam deslocamentos nas peças publicitárias
analisadas, ou seja, esses discursos não levam ao diferente. Eles vêm para
reforçar aquele dizer de Veja e contribuir não só para sua estabilização, mas
também para imobilizar os sentidos a partir de “comentários”, na acepção
foucaultiana discutida acima, já que parabenizar a cidade por ser uma
“metrópole do futuro”, concordar que Cascavel tenha ganhado este “status”
e inseri-lo nas instituições da cidade, como em “escola do futuro”, sejam
marcas de um assujeitamento a uma dada formação discursiva e, além disso,
de uma atualização de um dizer primeiro.
À guisa de conclusão, pode-se dizer que, a respeito das materialidades
que ressoaram após a publicação do especial, observou-se que ,se a seção
destinada às cartas do leitor supostamente poderia ser um espaço para exibir
uma opinião que não condissesse com a da revista, isto é, se pudesse, enfim,
ser um espaço de suporte de um contradiscurso, em Veja isso não ocorre.
A queixa, o lamento, o protesto das cartas não vêm para contra-argumentar o
dizer do semanário. Ao contrário, eles vêm para reforçar, (r)emendar o dizer
hegemônico que atravessa o especial.
As cartas são uma espécie de retificação da própria revista, haja
vista que o que dizem parte do âmbito do pré-construído, dos sentidos já
pré-estabelecidos (cf. SOUZA, 1997), mas escritas por sujeitos ausentes
no processo de produção do semanário. E, nesse processo, os efeitos de
______ [ 59 ]
sentido indesejados pela revista podem enfim ser estabilizados, de modo que os
sujeitos-leitores-autores fazem o trabalho intencionado pelo semanário: ao dar
visibilidade aos seus leitores, trabalha-se para uma naturalização dos sentidos
efetivados, como se eles fossem comuns a todos. De um modo ou de outro,
antes – na publicação do especial – ou depois – com as cartas do leitor –
tenta-se amarrar a significação. Veja, enquanto destinatário das cartas, coloca-
se em posição de cumplicidade com o leitor e este, provavelmente por isso, tem
sua carta publicada13. Produz-se aí o que Souza (1997) denomina de “pacto
confidencial” entre o sujeito-leitor-autor e o seu interlocutor. Se a carta é uma
“expressão do privado, do íntimo” (ibidem, p. 83) do autor-leitor, cria-se um
efeito de legitimidade, de verdade daquilo que é dito. E, em minha análise,
o espaço concedido ao dizer deste leitor, individual, reafirma o dizer de Veja
transpondo-se a um âmbito maior, público, pois é como se dissesse: se o
sujeito fala com sua própria voz, é natural que o que ele diz não seja senão a
verdade. Nesse sentido, vê-se como a ilusão de um sujeito fonte de seu dizer
e no controle de sua linguagem retorna, apagando a filiação a uma formação
discursiva.
A partir das peças publicitárias selecionadas, por sua vez, viu-se como
os sentidos ali inscritos também ocupam a mesma formação discursiva de Veja.
A expressão “metrópoles do futuro”, dada como se fosse lógica e facilmente
recuperável, porque produzida por uma revista de ampla circulação nacional,
(re)aparece para reiterar os mesmos sentidos que o semanário produz. Pode-
se dizer, a partir daí, que mais do que reverberar, os discursos das peças
publicitárias reproduzem o discurso de Veja como se fosse o discurso da
verdade e, nesse processo, trabalham para a estabilização dos sentidos que a
revista efetiva. Em outras palavras, a repetição da expressão, posto que se dá
em diferentes momentos (a enunciação é sempre outra), vem para reativar
e firmar os sentidos (já) efetivados por Veja. Como diz Mariani (1998), a
instituição jornalística necessita de leitores/consumidores a quem se dirija
para se manter dominante. Daí haver a necessidade de considerar que todo
produto midiático produz, interpretando os fatos e acontecimentos, para um
segmento da sociedade.
Vale dizer, enfim, que por meio dessas materialidades escolhidas foi
possível verificar como alguns sentidos se fixam e se repetem. Nas vozes dos
leitores-autores, nas dos sujeitos publicitários, outras vozes ecoam. Embora a
extensão da circulação do especial seja muito mais ampla e certamente ressoe
noutros meios, numa medição que seria, de fato, impraticável, considero que
a partir das análises sobre as quais me debrucei foi possível evidenciar de que
modo circulam os sentidos, sem pretender a exaustividade.
______ [ 60 ]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REVISTA VEJA, São Paulo: Abril, ed. 2180, 01 set. 2010. Brasil.
NOTAS
1) Para Pêcheux (2009 [1988]), os “[...] ‘objetos’ ideológicos são sempre fornecidos ao mesmo
tempo que a ‘maneira de se servir deles’ – seu ‘sentido’, isto é, sua orientação, ou seja, os
interesses de classe aos quais eles servem –, o que se pode comentar dizendo que as ideologias
práticas são práticas de classes (de luta de classes) na Ideologia”. (p. 132). Assim, os sentidos
mudam conforme as posições dos sujeitos, no embate ideológico.
2) Entende-se por formação discursiva “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a
partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,
determina o que pode e deve ser dito.” (p. 147, itálicos do autor).
______ [ 62 ]
4) A expressão é de Mariani (1998).
6) Queremos com isso dizer que o sujeito-leitor-autor das cartas, em seu processo de escritura,
está em outro momento enunciativo: o da emissão de uma opinião que é sua e que poderia
não corresponder necessariamente com o dizer da revista. Não obstante, o seu dizer parte do
já-dito por Veja. O que o leitor-autor diz está previamente definido pelo semanário e pelas
condições de produção de seu dizer.
7) A este respeito, sugiro a leitura do Anexo III de Semântica e discurso: uma crítica à afirmação
do óbvio (PÊCHEUX, 2009 [1988]).
8) Para Pêcheux e Fuchs (2010 [1990]), a articulação das três regiões do saber que constituem a
análise de discurso – a saber: o materialismo histórico, a linguística e a teoria do discurso – são
“atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica)” (p. 160).
O inconsciente, na teoria pêcheutiana do discurso, funciona como uma estrutura que produz
efeitos de evidência do sujeito, por “dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu
funcionamento” (PÊCHEUX, 2009 [1988], p. 139).
9) Embora minha seleção, nesta subseção, seja restrita a três peças publicitárias encontradas,
de certa maneira, fortuitamente, considero que, mais do que mostrar a quantidade de peças
que reverberam o dizer da revista, é relevante, aqui, investigar como e por que esse dizer
aparece noutros textos. Leal (2006), a este respeito, diz: “a AD não coloca a quantidade, em sua
extensão, como algo a ser considerado, mas uma “exaustividade vertical, em profundidade”,
em que os dados “[...] são ‘fatos’ de linguagem com sua memória, sua espessura semântica, sua
materialidade lingüístico-discursiva”. (Orlandi, 2000, p. 62). Não se trata, pois, de considerar
os textos em sua “completude”, como um dado a ser manipulado, mas “como exemplares do
discurso”. (Orlandi, 2003, p. 10).
10) A revista Diference é uma publicação da Editora Diference que se configura como uma
revista publicitária, tendo em vista que traz reportagens sobre empresas e personalidades de
cidades locais do Oeste paranaense. Seu design gráfico segue os moldes da revista Caras, da
Editora Abril.
11) Lide corresponde a “linha ou parágrafo que apresenta os principais tópicos da matéria
desenvolvida no texto jornalístico; cabeça” (HOUAISS, 2001).
12) Para uma discussão sobre o funcionamento das orações adjetivas e seu papel na constituição
da teoria do discurso pêcheutiana, sugiro a leitura da 2ª parte de Semântica e discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio, de Pêchex (2009 [1988]).
COMENTÁRIOS
DE LEITORES:
A VIOLÊNCIA
NOTICIADA NA INTERNET
Assim, essa constituição dos sentidos e dos sujeitos, que está sob a
marca da evidência, não é fruto da vontade de cada ser, mas resulta, como
efeito, da interpelação ideológica que constitui o sujeito através da linguagem.
______ [ 65 ]
É resultado do funcionamento do inconsciente que o afeta sem que tenha
controle sobre o modo como isso ocorre.
A linguagem antecede o sujeito. E sua inscrição na linguagem, desde o
nascimento, não é vazia, mas uma inscrição discursiva na qual os significantes
já estão conectados a determinados sentidos. Esses significantes permitem
também perceber o inconsciente operando sobre o sujeito2, através dos
lapsos, equívocos, chistes, etc.
Nesse sentido, sob o viés da AD, a ideologia sintetiza a relação
imaginária que os sujeitos mantêm com as suas condições materiais de
existência. “Na ideologia, o que é representado não é o sistema das relações
reais que governam a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária
destes indivíduos, com as relações reais em que vivem” (ALTHUSSER,
1974, p. 82, grifos meus).
Dessa forma, a ideologia constitui simultaneamente, através da
linguagem, os sujeitos e os sentidos em uma determinada conjuntura histórica
marcada pelas relações de força, pelos embates ideológicos característicos das
contradições de classe. É sobre uma base linguística que o processo discursivo
ocorre (PÊCHEUX, 2009, p. 147).
Segundo Pêcheux (2009, p. 141), isso ocorre porque a ideologia
dissimula o modo pelo qual funciona produzindo um “efeito retroativo”,
ou seja, ela interpela o indivíduo como sujeito autônomo (como sempre já
sujeito), como se os efeitos de sentidos que o constitui só pudessem ser aqueles
e não outros. À semelhança da ideologia, Pêcheux (2009, p. 162) aponta para
a forma como o sujeito é afetado pelo inconsciente. Mariani (2006), sobre o
modo como o inconsciente e a ideologia atuam na constituição do sujeito,
afirma:
______ [ 68 ]
AUTORIA NA REDE ELETRÔNICA
______ [ 69 ]
Essas “propriedades” influenciarão a constituição dos comentários
dos leitores que produzirão o seu dizer a partir de um discurso primeiro,
conforme Foucault (2009), ou seja, a matéria jornalística publicada no portal
de notícias que retrata a violência. Ao abordar os procedimentos internos de
controle do discurso, Foucault (2009) traça três procedimentos: o comentário,
a função de autoria e as disciplinas científicas. Para o autor,
______ [ 73 ]
O comentário que foi publicado trinta e cinco minutos após a
matéria se refere a um posicionamento de defesa dos direitos humanos. Por
ser o primeiro comentário publicado, esse posicionamento não pode estar
relacionado diretamente à resposta dos dizeres de outros leitores-autores
sobre o texto jornalístico, nem diretamente à matéria que não faz menção aos
direitos humanos ou a alguma “comemoração” sobre o fato noticiado (morte
de duas pessoas).
Assim, esse dizer pode estar ligado a outros discursos (memória
discursiva (já-ditos)) efetuados em outros momentos no mesmo espaço virtual
ou em outros e dos quais o leitor-autor discorda, como se percebe no final
do seu comentário, “hoje o povo comemora mortes”, focando a contradição
presente na naturalização da violência e a menção a um passado melhor
que o presente, no qual as pessoas não comemoravam mortes. Por outro
lado, mesmo que a matéria não se refira diretamente aos direitos humanos,
o posicionamento do leitor-autor está construído em relação à violência; ser
dos direitos humanos marca uma oposição à violência retratada na matéria,
ou seja, a morte de duas pessoas, envolvidas anteriormente, segundo o portal
de notícias, com práticas punidas pela lei.
Além do dizer ligado a uma FD dos direitos humanos, há na SD1 a
FD que formula um discurso religioso e que permite pensar em outro dizer
não presente, mas que sustenta os efeitos de sentidos do comentário, ou
seja, o interdiscurso que retoma a passagem bíblica da destruição de Sodoma
e Gomorra (“só deus para salvar nossa cidade e seu povo da total
calamidade que nós assola”, grifos meus).
Para Pêcheux (2009), no funcionamento do interdiscurso, a FD
absorve elementos pré-construídos alhures e os reformula através da
associação com elementos que são encadeados no enunciado (discurso
transverso8), produzindo os sentidos (evidentes) em que são fornecidos os
fundamentos da identificação do sujeito com as FDs, de acordo com as
condições ideológicas nas quais elas estão inseridas. Sobrevém “um ‘trabalho’
de unificação do pensamento, em que as subordinações se realizam ao se
apagarem na extensão sinonímica da paráfrase-reformulação” (PÊCHEUX,
2009, p. 245).
Destarte, na SD1, a FD religiosa produz efeitos de sentidos da ajuda
divina (“só deus para salvar”) contra o individualismo e a naturalização da
violência (“é um salve se quem puder”) que leva “o povo” a “comemorar
mortes”. O pré-construído do poder de “deus” (que pode castigar/
destruir/salvar) sustenta o dizer e permite a formulação dos termos “nossa
______ [ 74 ]
cidade” (Sodoma e Gomorra/Cascavel), “seu povo” (pecadores bíblicos/
Cascavelenses), “calamidade” e “assola” (pecado/violência). Além do mais,
pode-se pensar na substituição destruir/“salvar”. Assim, o pré-construído
fornece o efeito do “sempre-já-aí” e o “mundo das coisas” como universalidade.
Esse efeito “consistiria numa discrepância pela qual um elemento irrompe
no enunciado como se tivesse sido pensado ‘antes, em outro lugar,
independentemente’” (PÊCHEUX, 2009, p. 142, grifos meus).
Assim, pode-se destacar o discurso religioso predominante no
comentário e realçar o discurso transverso que associa “deus” à valorização
da vida (que “salva”), porém não totalmente estabilizado, pois a menção aos
direitos humanos faz ecoar efeitos de sentidos de outra FD, sobre os aspectos
legais e jurídicos da preservação da vida, sobre o papel do Estado de garantir
a segurança pública e dos excessos cometidos pelos agentes do estado.
O comentário da SD1 recebeu avaliação negativa de 47 pessoas e
positiva de outras 159. Essa avaliação deve ser levada em conta, pois reforça a
produção dos efeitos de sentidos de uma maioria/minoria que concorda ou
discorda de um determinado posicionamento. A avaliação dos comentários
deve ser analisada sob o prisma do processo de constituição ideológica dos
dizeres, porém deslocado das restrições e das cláusulas cominadas, pois, ao
avaliar os comentários dos outros leitores-autores, o internauta não necessita
aceitar os termos impostos pela página do portal de notícias. Podendo “se
expressar” apenas com um clique, o seu dizer não é explicitado no site, mas
seu posicionamento, sim. O leitor-autor, nesse caso, é apenas um número
na quantificação das avaliações dos comentários já postados, porém, mesmo
enquanto número, não deixa de produzir efeitos de sentidos sobre o tema.
Essa é uma das distinções que podem ser elencadas em relação às
opiniões dos leitores-autores publicadas nos periódicos impressos, pois, nas
cartas de leitores publicadas nesses periódicos, não há a possibilidade de a
avaliação ocorrer quase simultaneamente aos comentários e estar presente na
constituição dos efeitos de sentidos.
No comentário posterior (SD2), publicado vinte e dois minutos após
o primeiro, o leitor-autor que se identifica como “DEGRINGOLADO”,
refere-se aos direitos humanos citados na SD1 e se distancia desse discurso,
fixando-se no fato de que “FALTA DEUS”:
______ [ 75 ]
O termo “DEGRINGOLADO” está aliado à perspectiva de que “a
vida predeu o valor” e “FALTA DEUS”, produzindo o efeito de sentido de
um passado positivo no qual a vida era valorizada, respaldada possivelmente
pela presença de “DEUS”. Assim, o leitor-autor está orientado por uma FD
de cunho religioso como na SD1, porém se afasta da FD dos direitos humanos
(“Não precisa ser dos Direitos humanos”). Ao focar sua opinião no amor à
morte (falta de Deus) e falta de valor à vida, a FD religiosa segue um trajeto
próximo ao da SD1, que reforça a necessidade de uma força sobre-humana
para conter a violência.
Ao se referir ao primeiro comentário, a SD2 permite destacar o
mecanismo do simulacro discursivo, no qual o leitor-autor imaginariamente
se coloca no lugar do primeiro comentador e aponta que, apesar de não
concordar com o posicionamento dele sobre os direitos humanos (como se
soubesse realmente que posicionamento é esse), aproxima-se no que toca à
falta de valor à vida e à necessidade da presença de uma força extra-humana.
Essa simulação, conforme Pêcheux (2009), remete à identificação que produz
imaginariamente o sujeito inteirado capaz de pensar-se, pensar o outro e se
colocar no lugar do outro:
Não há, de um lado, a categoria dada uma vez por todas, dos discursos
fundamentais ou criadores; e, de outro, a massa daqueles que repetem,
glosam, comentam. Muitos textos maiores se confundem e desaparecem,
e, por vezes, comentários vêm tomar o primeiro lugar. Mas embora
seus pontos de aplicação possam mudar, a função permanece; [...]
Mas quem não vê que se trata, cada vez, de anular um dos termos
da relação, e não de suprimir a relação ela mesma? Relação que não
cessa de se modificar através do tempo; relação que toma em uma
época dada formas múltiplas e divergentes. (FOUCAULT, 2009, p. 23-
24, grifos meus).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Internet: http://cgn.uol.com.br/noticia/63837/mortos-em-confronto-
eram-perigosos-segundo-pm. Acesso em: 15 set. 2013.
NOTAS
1) Cada sujeito a seu modo, mas não desconectados do processo que os constitui.
3) “Ao falarmos em aparelhos ideológicos do Estado e de suas práticas, dissemos que cada um
deles era a realização de uma ideologia [...]. Retomamos esta tese: uma ideologia existe sempre
em um aparelho e em sua prática ou práticas. Esta existência é material” (ALTHUSSER, 1974,
p. 84).
4) “Elas [as FDs] são constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas e suas
fronteiras são fluidas, configurando-se e reconfigurando-se continuamente em suas relações”.
(ORLANDI, 2007, p. 44).
______ [ 84 ]
5) O recalque do inconsciente não é perfeito e nem a interpelação ideológica. Assim, “os
traços inconscientes do significante não são jamais ‘apagados’ ou ‘esquecidos’, mas trabalham,
sem se deslocar, na pulsação sentido/non-sens do sujeito dividido [...]. Apreender até seu
limite máximo a interpelação como ritual supõe reconhecer que não há ritual sem falhas”
(PÊCHEUX, 2009, p. 277, itálicos do autor, grifos meus).
9) Cada internauta só pode clicar uma vez em cada contador da avaliação, tendo a possibilidade
de avaliar o mesmo comentário de forma positiva e negativa. Porém, ele não consegue corrigir
o seu voto.
10) Mariani (2006, p. 40) usa o termo amálgama (leitor-missivista + editor) para se referir à
edição das cartas de leitores em jornais, especificamente, nas colunas escritas por psicanalistas.
Uso o termo em outra acepção.
______ [ 85 ]
CAPÍTULO 5
O DISCURSO
PUBLICITÁRIO
NOS ANÚNCIOS
DE OPERADORAS
DE TELEFONES
CELULARES
______ [ 94 ]
Constrói-se, então, a idealização de uma nação perfeita, tanto com
relação à sua natureza, quanto aos seus habitantes, na busca de constituir uma
identidade nacional coesa. De acordo com Hall (2002, p. 47), “no mundo
moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma
das principais fontes de identidade cultural” e, para isso, os discursos que se
produzem em relação a uma nação são de suma importância. Estes discursos
constroem sentidos que se pautam em símbolos e representações que passam
a influenciar as concepções e as ações dos indivíduos que compõem uma
nação.
De maneira geral, o tema de fundo dos anúncios veiculados pela
operadora revela um forte apelo às questões relacionadas à nação como
uma instituição coesa, à qual seus componentes deveriam se identificar e
demonstrar amor e lealdade. Este caráter nacionalista revela-se nos anúncios,
principalmente, pelo nome da operadora, pelas cores que os constituem e
pelo slogan da empresa.
A Brasil Telecom surgiu após a privatização dos serviços de telefonia,
no ano de 1998. A privatização da empresa estatal responsável pela telefonia
desagradou a muitos brasileiros. Assim, o nome buscou amenizar os possíveis
impactos causados pela privatização, mantendo a representação de que,
embora não pertença mais ao Estado, a operadora comunga dos valores
nacionais.
As cores dos anúncios, verde, amarelo, azul e branco, reforçam o apelo
ao nacionalismo, à medida que remetem à Bandeira Nacional e ativam o saber
enciclopédico sobre o que é costume associar a ela. As cores fazem lembrar
as representações da bandeira e também o seu inverso, ou seja, ao mesmo
tempo em que o amarelo faz lembrar ouro e riqueza, ativa também a ausência
deles. Então, assim como a bandeira integra a nação, apesar das diferenças,
a operadora destina seus serviços a toda a população brasileira, tenha acesso
ou não à riqueza (amarelo), esteja no campo ou na cidade (verde), no céu ou
na terra (azul), em lugares pacíficos ou agitados (branco). Então, o anúncio,
por meio de suas cores, tece seu discurso baseado numa identidade nacional
em que
Não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe,
gênero, ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade
cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande
família nacional (HALL, 2002, p. 59).
______ [ 98 ]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
______ [ 99 ]
Por vezes, as imagens são de pessoas que, aparentemente, estão
satisfeitas por utilizarem os serviços da empresa. Assim, elas conferem uma
corporalidade ao fiador do discurso, que assume uma dinâmica corporal
compatível com o espaço social que ocupa. Ao ler o anúncio, o consumidor
é convidado a ultrapassar a decodificação e participar do microuniverso do
discurso, a partir de uma identificação com o corpo apresentado.
Desse modo, o fiador do discurso incorpora determinados valores,
busca persuadir o cofiador a também incorporá-los e, assim, participar da
comunidade imaginária dos que aderem ao mesmo discurso.
Portanto, o discurso publicitário congrega linguagens verbais e não-
verbais, com ênfase, na maior parte dos casos, a esta última. Por seu objetivo
de levar ao consumo, ele associa os produtos que busca vender aos desejos
e às possíveis necessidades daqueles a quem pretende persuadir. Para isso,
as imagens apresentadas são investidas de materialidades que associam o
produto vendido ao alcance de um estado pleno de felicidade. De acordo
com Baudrillard (1995, p. 47), “todo o discurso sobre as necessidades assenta
numa antropologia ingênua: a da propensão para a felicidade”. Por isso, além
de vender produtos, o discurso publicitário busca alimentar no consumidor a
esperança de satisfação a partir da compra.
É comum que os anúncios busquem constituir, por meio do discurso,
uma representação positiva da empresa, na tentativa de apagar a relação
comercial que se estabelece entre ela e o cliente e fazer sobressair uma suposta
relação afetiva, mostrando uma empresa que se preocupa com o cliente,
mesmo que seja necessário renunciar ao lucro.
É possível destacar que o discurso publicitário utiliza-se de enunciados
de outras FDs para contribuir com a representação de uma empresa que
coloca as necessidades e os desejos do consumidor acima de seu objetivo
de obter lucro, sendo ele, aparentemente, o único ou maior beneficiado da
relação comercial.
Nessa tentativa, o discurso publicitário recorre a enunciados de
outras FDs, mas não foge às regras impostas pela FD comercial. Dessa
forma, embora parafraseie, acaba por dizer exatamente o que sua formação
discursiva determina e obriga.
Ao mesmo tempo em que organiza o discurso de modo a reforçar
esta representação, a empresa procura desvalorizar as outras operadoras,
colocando-as como inferiores. Nota-se, então, que os anúncios assumem
uma dupla função: fazer propaganda da empresa e contrapropaganda da
concorrência. A análise dos anúncios revela, ainda, que as promoções lançadas
e as vantagens oferecidas procuram superar as empresas concorrentes.
______ [ 100 ]
Portanto, nos anúncios, divulgar um produto significa adotar constantes
estratégias de diferenciação e de singularidade em relação aos discursos
concorrentes.
A ênfase que os anúncios dão à suposta preocupação da empresa com
o bem estar dos consumidores se materializa, principalmente, nas diversas
vezes em que aparecem promoções de serviços prestados gratuitamente.
Dessa forma, os anúncios procuram proporcionar bem-estar e satisfação aos
consumidores, que podem se sentir valorizados e beneficiados pela empresa,
à medida que utilizam de seus serviços sem pagar por isso.
Para auxiliar na constituição de uma imagem positiva da empresa,
ou para reforçá-la, os anúncios apresentam argumentos que conduzem à
conclusão de que ela oferece planos amplos, que envolvem telefonia móvel
e fixa e que, no decorrer do tempo, é capaz de superar seus próprios planos
e vantagens oferecidas. Dessa forma, revela-se a tentativa dos anúncios de
manter os clientes da empresa e reforçar a marca.
Destaca-se que os anúncios utilizam de outras vozes para falarem
bem da empresa, retirando dela a responsabilidade pelos enunciados que
produz. Para isso, às vezes, eles apresentam testemunhos de clientes satisfeitos
e, outras vezes, recorrem a pessoas públicas que podem afiançar o discurso.
Pode-se concluir que, de maneira geral, os anúncios procuram
divulgar suas promoções e vender seus serviços de forma implícita, fazendo
parecer ao leitor que a proposta não é autoritária. Pode-se afirmar, então, que
a maior carga persuasiva dos anúncios está nessa forma implícita de inserir
planos e serviços.
Embora a tentativa de agir sobre os leitores, por vezes, torne-se
explícita devido ao uso de verbos no modo imperativo, é possível perceber
que os anúncios buscam fazê-lo, em geral, de forma velada. Dessa forma, eles
apresentam indícios que podem levar o leitor à ação desejada. De acordo com
Carrascoza (2004, p.30),
Desse modo, quer seja por motivos emocionais ou por razões lógicas,
o consumidor vê-se chantageado pelo anúncio, pois a recusa ao apelo implica
em consequências que ultrapassam a não aquisição dos produtos ou a não
utilização de serviços, que podem representar desvantagem econômica e
prejuízos que se estendem a outros aspectos da vida.
Segundo Carrascoza (2004, p. 16), “o texto publicitário constitui o
______ [ 102 ]
tecido que reveste a alma da marca e pode permitir, por meio de elementos de
persuasão, que ela seja percebida como algo positivo para o público.” Pode-se
afirmar, então, que os anúncios são como uma roupagem que materializa o
discurso de cada uma das operadoras.
Ainda segundo Carrascoza (2004, p.16),
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______ [ 103 ]
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. (Trad. Artur Morão). Rio de
Janeiro: Elfos, 1995.
______ [ 104 ]
NOTAS
______ [ 105 ]
CAPÍTULO 6
DISCURSO,
POLIFONIA E
CRIATIVIDADE
NO TEXTO
PUBLICITÁRIO
REDAÇÃO PUBLICITÁRIA:
(OU O DISCURSO NA PUBLICIDADE)
______ [ 113 ]
X, determina que a relação de implicação seja feita de uma forma ou de outra,
alterando-se o modo de encadeamento, pode ser: “A passagem de uma corrente
elétrica determina a deflexão do galvanômetro” ou “A deflexão do galvanômetro
indica a passagem de uma corrente elétrica”. Esse atravessamento indica que a
sequência Y é o discurso-transverso da sequência X, pois determina o modelo
de encadeamento entre os substituíveis a/b da sequência X.
Nesse viés, o sentido, definido pelo processo discursivo que lhe cabe,
ocorre em termos de efeitos de sentido que se reproduzem a partir de relações
de substituição e de paráfrase de palavras e/ou expressões de uma mesma FD.
Para Pêcheux (2009, p. 146), é “a ideologia que fornece as evidências pelas
quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, um patrão, uma
fábrica, uma greve, etc.”. A ideologia simula a transparência da linguagem;
portanto, o caráter material do sentido de um enunciado é dependente do
interdiscurso:
I) “Muita gente não vai ao banheiro todos os dias e acha que é normal, mas
não é”;
II) “Você já sabe que Activia contém Dan Regularis que ajuda a regular o
trânsito intestinal, mas é preciso tomar regularmente”.
______ [ 117 ]
tudo que não é dito, mas é compreendido e que sustenta o caráter material
do sentido.
No enunciado (I), em nível de intradiscurso, observam-se três
enunciados. Os dois primeiros estão ligados pelo conectivo e com função
aditiva e o último é encabeçado pelo mas com função contrajuntiva. Tem-
se, assim: 1) Muita gente não vai ao banheiro todos os dias, que indica a existência
de pessoas que possuem problemas intestinais e que, por isso, não vão ao
banheiro todos os dias; 2) acha que é normal: neste enunciado, infere-se que
grande parcela das pessoas não sabe que a desregularidade intestinal é sinal
de problemas intestinais; 3) não é: este enunciado é encabeçado pelo mas,
produzindo um encadeamento que leva a uma conclusão contrassilogística,
em que se apresenta uma contraconclusão.
Ducrot (1987, p. 215) apresenta o mas como uma conjunção que
aparece em enunciados do tipo p mas q, sendo p um argumento para uma
conclusão r e q um argumento inverso, que orienta para uma conclusão não-r.
Para ele, os enunciados do tipo p mas q fazem intervir diferentes pontos de
vista de enunciadores. Segundo este autor (1987, p. 215),
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRETO, Roberto M. Criatividade em propaganda. São Paulo: Summus,
2004.
______ [ 124 ]
CARRASCOZA, João A. Razão e Sensibilidade no Texto Publicitário: como
são feitos os anúncios que contam histórias. São Paulo: Futura, 2004.
______ [ 125 ]
São Paulo: 2006. 338 p. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, 2006.
NOTA
1) Aponta-se que estes enunciados são sustentados por uma FD que prega a afirmação/
promessa de que o Activia faz o intestino funcionar. Sob essa luz, pretende-se mostrar que os
enunciados, ao menos, reproduzem discursivamente os efeitos de sentido provindos da tríade
união formada entre os termos saúde, nutrição e beleza que permeia e entrelaça os discursos
sobre o corpo e que gera motivações e condições propícias para sustentar o imaginário que
coloca o corpo como um objeto a ser moldado e transformado por técnicas de embelezamento.
Entende-se que essa tríplice aliança apaga as fronteiras existentes entre a saúde, a nutrição e a
beleza, haja vista que, hoje, um corpo saudável é sinônimo de corpo belo e nutrido, da mesma
forma que um corpo belo é sinal de saúde e de nutrição, sem esquecer que um corpo bem
nutrido sustenta um corpo saudável e belo.
______ [ 126 ]
CAPÍTULO 7
A AVALIAÇÃO
DA EDUCAÇÃO
SUPERIOR:
EFEITOS DE SENTIDO E
POLISSEMIA
______ [ 129 ]
Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional - LDB, fica acentuada a importância da temática, pois “consagra
o princípio da avaliação como parte central” (DEMO, 1997, p. 31) para
definir as diretrizes da organização do sistema educacional brasileiro, com o
propósito de determinar os procedimentos iniciais a serem adotados.
Ao eleger a perspectiva teórica da AD para sustentar as reflexões
acerca de um corpus definido, tem-se uma metodologia própria para engendrar
um trabalho científico e, dentre as teses que fundamentam a AD, no tocante
à compreensão dos efeitos de sentido do discurso, uma se refere a estar
atento à polissemia, que pode levar o leitor a interpretações distintas, o que
implica na necessidade de delimitar as possibilidades com procedimentos que
possam nortear a compreensão de um enunciado e minimizar as inevitáveis
ambiguidades que insistem em ocorrer no jogo das palavras.
Deve-se ter claro que os sujeitos, assim como os sentidos, constituem-
se no discurso, já que o seu “caráter dialógico constitutivo de seu sentido,
isto é, que o sentido de uma formação discursiva depende da relação que ela
estabelece com as formações discursivas no interior do espaço interdiscursivo”
(MUSSALIM & BENTES, 2001, p. 131).
Para Orlandi (2001, p. 36), a polissemia é o elemento responsável pelo
funcionamento do discurso, por meio de sua articulação com a língua, sendo
ela que propicia o rompimento dos limites estabelecidos pelas fronteiras entre
uma e outra formação discursiva e, assim, permite a pluralidade de efeitos, ao
contrário da paráfrase, que visa a fechar esses limites:
______ [ 131 ]
podem se sintetizar em duas vertentes: as que permitem identificar a
avaliação como controle, respondendo a uma lógica burocrática formal de
validade legal de diplomas e habilitações profissionais em âmbito nacional,
e as com função formativa/emancipatória, sob uma lógica acadêmica, com o
intuito de subsidiar a melhoria das instituições.
______ [ 136 ]
as preocupações em localizar o Brasil no processo de universalização do
capitalismo, por meio de mudanças no complexo espaço social da educação
superior, surgem por meio de mudanças no complexo espaço social da
educação superior, surgem por meio de uma análise comparativa das
políticas para a educação superior na América Latina, como um instrumento
para legitimar a normatização em curso para esse nível de ensino (SILVA JR.,
In: MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 59-60).
______ [ 137 ]
a publicação de regulamentações, com propostas que visam superar os
entraves diagnosticados por seus membros e, posteriormente à promulgação
da legislação, tecem críticas, apontando, em especial, pontos que destoam de
suas propostas, com base em defesas como as de Chauí (2001), que alerta para
os riscos dos processos de reforma do Estado, uma vez que
De acordo com Saviani (1984, p. 77), por mais que se propague que
as instituições educacionais estão em crise, especialmente as universidades, o
______ [ 138 ]
que ocorre é um momento de dinamismo que perpassa essas esferas, sendo
que “o que está em crise não é a Universidade mas [...] um certo modelo de
Universidade [...] implantado a partir da Reforma de 1968”. A asserção do
autor ultrapassa duas décadas, mas a celeuma estabelecida sobre o modelo
de instituição educacional que se quer permanece, o que ratifica a ideia de
dinamismo, não como um processo momentâneo, mas como constituinte da
identidade dessas instituições, conforme se observa nas práticas discursivas.
Nos diversos discursos elaborados pelos docentes que compõem o
grupo de trabalho sobre as políticas para a educação superior, constata-se
que a temática acerca da avaliação, seja ela voltada para as instituições, seja ela
voltada às práticas docentes, coincide com o surgimento da associação. Na
primeira proposta apresentada para a constituição das políticas voltadas para
o corpo docente, estava definido que as atividades seriam avaliadas, tomando
como parâmetro as atribuições dadas pela tríade ensino/pesquisa/extensão.
Essas propostas são difundidas e discutidas ao longo da existência do
sindicado, por meio de seminários, encontros e congressos, como “Trabalho
Intelectual e Avaliação Acadêmica” (Curitiba/PR, 1986, Rio de Janeiro/RJ,
1987) e “Avaliação e Autonomia” (Londrina/PR, 1990), ambos realizados
pelo próprio movimento, que culminou na primeira versão da “Proposta do
ANDES/SN para a universidade brasileira”.
Desde sua primeira publicação, em 1986, as discussões promovidas,
principalmente, pelo Conselho Nacional de Associações Docentes –
CONAD, têm culminado na revisão e ampliação das propostas e diretrizes
a serem seguidas, sendo que a versão aprovada em 1996 o denominou de
Caderno ANDES N 2, aprovado no XXXII CONAD, ocorrido na cidade de
Guaratinguetá/SP, em julho de 1996.
A cada nova edição do documento, o sindicato tem procurado
ratificar os pressupostos defendidos para a educação superior, com uma
visível ampliação da abordagem acerca de sua concepção de avaliação, mais
precisamente, com o intuito de diferenciar seu posicionamento do que julga
ser o posicionamento do governo. Para ele,
______ [ 139 ]
O discurso que predomina entre as entidades que se organizam
em prol de um ‘padrão unitário’ para a educação tem respaldo nas críticas
dos estudiosos de que a universidade estaria servindo aos interesses de uma
minoria, contrariando os princípios defendidos pela constituição brasileira e,
também, pelo movimento, com base na crença de que
a escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje
estão a cargo da família [...] a inteira função da educação e formação das
novas gerações, torna-se, ao invés de privada, pública, pois somente assim
pode ela envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas
(GADOTTI, 1983, p. 69).
______ [ 140 ]
(BERGER, 2002, p. 90). Assim, a proposta do sindicato não segue a lógica
tecnoburocrática de imposição de um modelo a ser seguido, mas defende uma
avaliação que combine todas as dimensões que perpassam o processo avaliativo,
rechaçando qualquer proposta que redesenhe os moldes empregados por
governos neoliberais, em especial, os fatores que têm características apenas
quantitativas.
A compreensão que o movimento tem do processo de avaliação
interna das instituições é que o mesmo deve partir dos princípios referendados
pela constituição, independentemente de sua natureza (pública ou privada).
Ambas deveriam primar pela educação pública e democrática, devendo
englobar a participação de todos os agentes em prol da construção de um
projeto comum. No quesito de avaliação externa, o movimento propõe
diferenciação no ato avaliativo, uma vez que
______ [ 141 ]
Com base em convicções como essas, o movimento ancora sua
luta pela construção de uma proposta de avaliação enquanto instrumento
de democracia, pautado na participação dos envolvidos no processo, o
que pressuporia um caráter emancipatório, que se daria a partir da análise
do trabalho concreto realizado por cada instituição, respeitadas suas
especificidades:
______ [ 142 ]
se começa por indagar qual deva ser a educação ideal, abstração feita das
condições de tempo e lugar, é porque se admite, implicitamente, que os
sistemas educativos nada têm de real em si mesmos. Não se vê neles um
conjunto de atividades e de instituições, lentamente organizadas no tempo,
solidárias as outras instituições sociais, que a educação exprime ou reflete,
instituições essas, por consequência, que não podem ser mudadas à vontade,
mas só com a estrutura mesma da sociedade (DURKHEIM 1967, p.36).
______ [ 143 ]
A autora é uma das estudiosas que desenvolve pesquisas sobre a
educação superior e atua no Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da
Universidade de São Paulo, sendo que parte de suas críticas está fundamentada
na crença de que o modelo democrático defendido pelo movimento sindical
é uma utopia, pois tudo deveria ser decidido em assembleias ou formação de
conselhos. Para ela,
ANÁLISE DO CORPUS:
A LEGITIMIDADE DO SINAES SOB O OLHAR DO ANDES
Para o autor (p. 16), “as unidades do discurso constituem [...] sistemas
significantes” e esses sistemas estão relacionados tanto com a “semiótica
textual” quanto “com a história”, sendo esta responsável por especificar os
efeitos de sentido que as unidades exprimem, fator que ressalta a característica
heterogênea do discurso.
Ao afirmar que a Formação Discursiva está associada a uma memória
discursiva, Maingueneau (1997, p. 115) explica que não se trata de uma memoria
______ [ 144 ]
psicológica, mas, antes, de uma memória que permite resgatar e articular
as relações entre o enunciado e a sua história, por meio da materialidade
discursiva. Assim, parte-se do pressuposto de que o interlocutor partilha
dos saberes que precedem a prática discursiva, sendo esse background que lhe
permite interpretar o enunciado em consonância ou proximamente ao que é
esperado por quem o elaborou.
Sob essa perspectiva teórica, a análise proposta está pautada na relação
entre a interdiscursividade e o ethos7 construído pelo ANDES ao se referir
ao SINAES, em que pese analisar, na materialidade deste discurso, o modo
como aquele sistema é representado nos diferentes instrumentos propostos
para a efetivação do processo avaliativo. Ou seja: busca-se perceber como os
semas8 refletem o posicionamento do ANDES diante do sistema e remetem
a uma memória discursiva que visa a corroborar as asserções efetuadas pelo
sindicato a partir da desacreditação do discurso do SINAES.
No percurso de análise, busca-se articular os referenciais que
constituem a disciplina da AD a conceitos extraídos de outras teorias,
como a da argumentação, por exemplo, teorias auxiliares, pelo fato de que,
acompanhando o raciocínio de Maingueneau (1997, p. 160), “são linguísticas,
porque liberam estratégias tão discretas e sutis quanto eficazes, porque
questionam o enunciador e o co-enunciador”.
Nesta perspectiva, a análise está voltada para a materialidade discursiva
do artigo As Políticas Educacionais do Governo Lula: O Sistema de Avaliação,
elaborado pelo Grupo de Trabalho de Política Educacional, publicado em
agosto de 2004, no Livreto do ANDES, que se constitui de diversos capítulos,
sob a temática “A Contra-Reforma da Educação Superior: Uma análise do
ANDES-SN das principais iniciativas do Governo Lula da Silva”. Este
discurso traz, ainda, uma breve contextualização das políticas da educação
superior que se ancoram no projeto denominado de Reforma Universitária,
elencando alguns pontos focais da Portaria que regulamenta a Lei do SINAES.
A análise aqui apresentada é do primeiro parágrafo do texto, ressaltando
que esses se constituem em temas e aspectos distintos que o processo de
avaliação do SINAES alcançaria. Persegue-se, com isso, a compreensão de
como se constrói o discurso polêmico e se, de fato, o discurso analisado pode
ser considerado de resistência, partindo do pressuposto da inexistência de
sentido para enunciados em si mesmos, pois eles estão submetidos a como e
a por que são expressos, dadas as formações discursivas e ideológicas que os
indivíduos ocupam.
Paralelamente à análise dos marcadores argumentativos e aos seus
efeitos de sentido, aplicou-se a relação do ethos com a formação discursiva
______ [ 145 ]
em que se inscreve o enunciador, objetivando chamar a atenção para as
marcas materiais que podem ser consideradas como traços definidores de um
ethos positivo, por meio do qual o ANDES se apresenta. Eis o trecho que será
analisado:
O sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que disto não esteja
consciente, a realizar uma certa representação de seu leitor e, simetricamente,
oferecer a este último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição
de locutor que assume através destas aspas (MAINGUENEAU, 1997, p. 91).
______ [ 149 ]
A desconstrução do ethos do outro é condição básica para que o
enunciador possa construir seu ethos positivo, pois, ao afirmar que apenas sua
proposta preza pelos direitos dos sujeitos, direitos esses que não só fazem
parte do imaginário social, mas, acima de tudo, estão exarados no principal
documento jurídico que rege o país, a credibilidade do SINAES é afetada por
se tratar de um instrumento legal.
Há, também, que se admitir a incompletude do SINAES (assim
como da própria linguagem). Portanto, toda reflexão, debate e confronto em
torno de sistemas avaliativos adotados numa dada época são salutares para o
desenvolvimento e superação dos limites. Ao questionar a metodologia e a
finalidade de tais sistemas, o enunciador provoca uma inquietude que tende a
estimular a autocrítica dos agentes envolvidos no processo, fator que propicia
a execução das tarefas de uma forma menos alienada. Como enfatiza Santos
(2006, p.8), “é preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com
os contextos em que são produzidos”, o que reforça a tese de que os sujeitos
são responsáveis pela forma de pensar e de agir dos grupos sociais, já que
isso se dá por meio de práticas compartilhadas social e culturalmente e pelas
crenças estabelecidas, alimentadas e constitutivas da sociedade em que estão
inseridos, mesmo que isso se dê de forma inconsciente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DEMO, Pedro. A Nova LDB: Ranços e Avanços. Campinas, SP: 18. Ed.
Papirus, 1997.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.
______ [ 152 ]
SAVIANI, Dermeval. Ensino Público e algumas falas sobre a
universidade. São Paulo, Cortez, Autores Associados, 1984.
NOTAS
1) Lei Federal nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Superior e dá outras providências.
3) Durkheim (2001) faz uma analogia entre as regras não contestadas na biologia, no que tange
às diferentes espécies que merecem tratamento diferenciado, que podem e devem ser pensadas
também na sociologia, ou seja: o respeito às especificidades em todas as esferas sociais, que
passa despercebido na maioria das vezes.
4) Matéria da Revista Veja, de 1 de Outubro de 2008 (p. 148), publicou um guia para pais e
alunos quanto à escolha da melhor instituição, sob o ponto de vista dos índices aferidos nos
sistemas vigentes e, como parâmetro, a inserção da Harvard considerada no topo da pirâmide,
como primeira colocada em todos os rankings.
______ [ 153 ]
5) Segundo Chauí (2003, p. 401), neoliberalismo é uma teoria econômico-política, de 1947, em
oposição ao Estado de Bem-Estar Social e socialdemocrata que, dentre outras propostas, prima
pela competição entre os cidadãos com vistas ao progresso e a propagação de programas de
privatização, desresponsabilizando o Estado dos encargos advindos dos órgãos estatais.
______ [ 154 ]
CAPÍTULO 8
ZONA:
O ENTREMEIO COMO
LUGAR DE CONTRADIÇÃO
Mirielly Ferraça
Uma pesquisa científica1 que vise a discutir sexualidade, sexo e prostituição,
na maioria das vezes, causa certo estranhamento (curiosidade? espanto?). E
a pergunta que sempre ecoou nesse meio acadêmico foi a motivação para
tal estudo. Às vezes, não se escolhe o objeto a ser estudado; é ele, por vezes,
que escolhe. Mas nem sempre se sabe por quê. O fato é que a prostituição
sempre exerceu certo fascínio sobre mim, isso por conta do imaginário que
existe sobre a imagem da prostituta. Ir a um bordel, ainda que sob a desculpa
de fazer entrevistas, era conhecer um “mundo” de luxúria e prazer destinado
somente aos homens. Eis um espaço restrito, inacessível, apagado, silenciado
das reuniões de família e do convívio familiar. Não que se quer defender
ou realçar a imagem de “boa” moça, mas a prostituição parece mesmo ser
impedida de adentrar o âmbito familiar e se é falado sobre o assunto é sempre
com aquele tom de estigma, condenando a prática acima de qualquer coisa.
O imaginário coletivo acerca das casas de prostituição constrói um
cenário luxuoso, envolvente e fascinante. Era o que eu pensava antes de visitar
o Porto das Sereias2. Imaginava, a partir da memória discursiva, que as casas
noturnas transbordavam cenários decorados com tons de vermelho, muitas
luzes, muita alegria, pessoas animadas em todas as mesas e dançarinas no
palco convidando os clientes a participarem da festa. O que se encontrou foi
uma casa apagada, com luzes fracas, em meio a muita penumbra. De fato, é
uma casa grande e bonita, mas exibia em sua arquitetura uma estrutura bem
antiga, apagada pelo tempo. As entrevistas ocorreram pouco antes de a casa
começar a funcionar, mas, mesmo assim, não se via muita “vida” por ali.
Além do ambiente, outros sentidos antes não pensados adentraram
a pesquisa sem pedir licença e, quando dei por mim, estava observando um
universo que, claramente, desconhecia. Primeiro, porque imaginava colher
histórias diferentes, mas a Análise de Discurso mostrou se tratarem de ecos
que vêm de longe e que, ainda assim, reverberam até hoje. Saber que as
garotas de programa vendem sexo porque precisam de dinheiro e porque
devem sustentar os filhos é bem sabido, mas não se atentava para o fato de
______ [ 156 ]
que, no fio do discurso, elas queriam justificar as escolhas, redimir-se e passar
a imagem de “boa” moça, “organizando” um discurso contraditório que ora
reafirma, ora se desfaz. O que não se imaginava era que elas, as garotas de
programa, são divididas entre o “certo” e o “errado”, não estão somente
à margem, mas também não fazem parte da trama social plenamente. Elas
vivem no entremeio e, de repente, viver na zona é mais do que vender o corpo
por dinheiro; é estar no meio do caminho, entre um lugar e outro.
Não felicidade clandestina, mas sexo clandestino. Tal assunto, em
outras épocas, quem sabe não percorreria os bancos das universidades com
tanta facilidade, mas, se parece que avançamos, percebe-se que ainda há muito
a descobrir e muito a ser descortinado sobre o tema (dito e repetido) mais
antigo do mundo.
...
Histórias que se repetem. Memória que se perpetua. Retratadas de
inúmeras formas, por diversos escritores, em diferentes épocas, a Literatura e
o cinema não se cansam de trazer fortes personagens femininos que mostram
a difícil e estigmatizada vida de meretrizes. Literatura que conta, cinema que
mostra, vida real que imita e se deixa imitar. Tratar da “profissão mais antiga
do mundo” (frase dita e repetida pelo senso comum) é contar mais uma
das muitas histórias sobre as mulheres que vendem o corpo por dinheiro;
demasiadamente comum, se não existissem sentidos que se repetem, ditos
que ecoam pelos séculos.
Vende-se sexo no Porto das Sereias e também se doam histórias. Quatro
são as protagonistas desta pesquisa e a partir de seus enredos a análise é
tecida. Lembranças de amor, sofrimentos, sacrifícios, renúncias, justificativas
e, por vezes, alguns silenciamentos marcam a história dessas garotas. Embora
pareçam relatos singulares, vê-se que se trata, na verdade, de uma memória
(ins)(cons)tituída.
Distante do perímetro urbano, mas propositalmente bem localizado
para quem entra e sai da cidade e propositalmente bem localizado para quem
deseja sexo clandestino, localiza-se o Porto das Sereias. Como em vários lugares
e em diferentes épocas, as casas de prostituição precisaram esquivar-se do
movimentado centro-citadino e passaram a erguer seus quartos em bairros
afastados ou mesmo no espaço que compreende o entorno da cidade, como
contextualiza Roberts (1998, p. 94):
______ [ 157 ]
Inicialmente, as autoridades tentaram desencorajar a prostituição, recusando-
se a deixar as prostitutas trabalhar na cidade; as mulheres simplesmente
estabeleceram suas casas e bordéis à beira dos portões da cidade –
bastante próximos para os clientes urbanos que desejassem ‘saciar
sua sede’ sem ter de sair muito do seu caminho (Grifos meus).
Mas nossos espaços nem sempre são marcados pela eternidade. Há também
espaços transitórios e problemáticos que recebem um tratamento muito
diferente. Assim, tudo o que está relacionado ao paradoxo, ao conflito
ou à contradição – como as regiões pobres ou de meretrício – fica num
espaço singular. Geralmente são regiões periféricas ou escondidas
por tapumes. Jamais são concebidas como espaços permanentes ou
estruturalmente complementares às áreas mais nobres da mesma cidade,
mas são sempre vistos como locais de transição: ‘zonas’, ‘brejos’,
‘mangues’ e ‘alagados’. Locais liminares, onde a presença conjunta
da terra e da água marca um espaço físico confuso e necessariamente
ambíguo (DAMATTA, 1997, p. 45 – grifos meus).
______ [ 160 ]
Fazer parte desses dois lugares constitui uma contradição, isso a
partir dos valores sociais tidos como aceitáveis e louváveis, afinal, para a
moral vigente (cristã, contemporânea e ocidental) não é tido como “correto”
uma mãe (de família – diriam os sujeitos imersos nessa formação discursiva –
digna e honrada) sair de sua casa para vender sexo para “qualquer um” na rua.
A casa e a rua são espaços bem delimitados no e pelo imaginário social (talvez
antes com maior intensidade, mas ainda hoje se constituem na oposição
entre a honra e a desonra), principalmente quando se fala da mulher. Mas,
no fio do discurso, a tensão e a contradição se desfazem quando apresentam
justificativas para o fato de estarem na vida noturna:
(SD 01) Minha filha tem 14 anos, né? E meu filho tem 12. E... é o meu foco,
na verdade, né? Meu e de todas daqui. Assim, trabalho assim nessa vida
pra dar o melhor pros meus filhos (Duda – grifos meus)4.
(SD 02) Então, eles são alguma coisa pra pode alegrá nóis por dentro, pior
nóis seria se nóis tivesse abandonado nossos filhos, tivesse jogado na
rua, alguma coisa assim. Não. Nóis tamo aqui por eles. Por eles que
nóis tamo aqui. Então, ninguém tem que fala nada. Só que é feio minha
filha sabê, minha filha com 12 anos, que eu tô na zona (Carol – grifos meus).
______ [ 161 ]
já que o conjunto de valores estabelecidos socialmente supõe, desde o seu
início, a transgressão: “A norma, ao mesmo tempo, multiplica a norma e a
indica. Ela requer, portanto, fora de si, ao seu lado, tudo aquilo que ainda lhe
escapa” (CHAUÍ, 1984, p. 24). Tal dualidade impõe-se de modo a exigir que
ambos os lados (co)existam, mas, sob a pena da coerção social, não podem
ocupar o mesmo lado da moeda; caso ocupem, a contradição se fixa.
Essa dualidade contraditória existe pela ordem da moral, mas o que
se questiona é que tal antítese discursiva parece não ocorrer para as garotas de
programa, já que estar ali, na prostituição, é justificado pelo fato de venderem
sexo pelos filhos sob a defesa de que eles poderiam ser “abandonados”,
“jogados na rua”, como se perceber nas SDs 01 e 02. Essas e outras
justificativas, apesar de não resolverem a condição estigmatizada de prostituta
em que vivem e de não as redimirem socialmente, ainda assim desfazem, no
discurso, a possível contradição que existe para o analista. Inclusive, porque
três delas estão na prostituição há mais de dez anos e não há contradição
nenhuma nisso para elas.
Lagazzi (1988), na obra O desafio de dizer não, ao analisar uma
SD, afirma que a posição ocupada pelo sujeito, inscrito em diferentes
formações discursivas, determina de que maneira os efeitos de sentido do
processo interlocutório significarão, podendo ser diferentes para ambos os
interlocutores: “Essas diferentes posições, que correspondem a diferentes
formações discursivas, fazem com que professores e alunos privilegiem
diferentes sentidos na interlocução, ou seja, cada qual se relaciona, com o
discurso, marcado pela posição em que se encontra” (LAGAZZI, 1988,
p. 67). Na sequência analítica, Lagazzi (1988) reafirma: “Percebemos, pela
leitura, que elas se colocam de maneira diferente com relação aos sentidos
atribuídos a ‘estudo’. S estranha o fato de que N receba uma remuneração
para estudar, enquanto que N não aceita esse estranhamento” (p. 86). Assim,
ser mãe e se prostituir não necessariamente tem o mesmo sentido para
analista e entrevistado, visto que as formações discursivas permitem que se
aceitem determinados sentidos e não outros, mesmo com o agir da ideologia
em ambas formações. O entrelaçar de fios discursivos amarram-se aos nós da
ideologia, mas perante a formação discursiva de outros sujeitos, esses fios se
desfazem e as contradições se desmancham, esvaem-se.
Charolles (1997) tece algumas considerações sobre as contradições
textuais apontadas em produções de estudantes por professores de séries
iniciais, tratando que o que pode ser contradição para o professor pode não
ser para o aluno, para quem produziu tal efeito. Apesar dessas tessituras irem
minimamente ao encontro do proposto por este projeto, mesmo se tratando
______ [ 162 ]
de um texto que propõe outro tipo de trabalho com a linguagem, é a epígrafe
que Charolles (1997) utiliza que se encontra no âmago da discussão aqui
proposta:
______ [ 163 ]
Ser esposa e garota de programa não parece ser, em seus depoimentos, lugares
simultaneamente habitáveis. Parece haver um limite na própria aceitação das
entrevistadas, quando ocupam o lugar da garota de programa: pode, quando
há a justificativa para estarem “ali” pelo outro; não pode, quando ocorre a
interferência no “sagrado matrimônio” ou na configuração da “sagrada
família”. Questionada se já se prostituía enquanto estava casada, Mônica
responde:
Enquanto estão unidas pelo laço matrimonial, seja ele firmado por meio
da religião, da justiça ou apenas formalizado entre o casal, as entrevistadas não
se prostituíam, pelo menos assim afirmam, como modo de tentar estabelecer
limites fixos entre a condição de mulher “pura” e “honrada” que ocupavam
durante o casamento e a condição de prostituta, mantendo sempre em vista a
possibilidade de ser uma mulher “honrada” em certas condições e podendo
retomar a situação, como apontam nas saídas para a “vida” que levam. Ou
seja, separe-se a “boa” (aquela que ocupa o lugar de esposa (e por estar nessa
posição atribui-se a imagem de honrada e respeitosa)) da “má” (aquela que
vende o corpo por dinheiro). A análise do corpus revela, portanto, que, para
elas, ser casada e se prostituir são ações que pertencem a duas formações
discursivas distintas, lugares que não podem habitar o mesmo espaço. Sabe-
se da existência de práticas dessa natureza, mas, no caso das entrevistadas,
ter relações sexuais com vários homens por dinheiro e, ao mesmo tempo,
“pertencer” a um homem só não é possível, o que é explicável, dado que elas
estão inseridas numa sociedade monogâmica, que, supostamente, não aceita
sexo fora do casamento e que, além disso, condena a prostituta por oposição
à boa mulher, aquela destinada ao sagrado casamento.
Dentre elas, Duda talvez seja a que transite com maior frequência
entre as duas esferas, pois ela namora há dois anos, mas o namorado
desconhece sua forma de ganhar a vida. Entretanto, essa relação só existirá
enquanto forem namorados, pois, segundo Duda, a partir do momento em
que se casarem, ela terá que deixar a prostituição.
Constituir família e continuar com a prostituição não é uma atitude
bem vista pela sociedade e pela instituição religiosa. As ideologias cristã e
burguesa (no mínimo estas) interpelam Duda e a fazem assumir que essa
antítese discursiva não pode ocorrer: seria contraditório. Por isso, ela deixa a
casa de prostituição para namorar e a abandonaria depois de se casar, como
mandam os preceitos religiosos, reforçando, em suas atitudes, os já-ditos pela
______ [ 164 ]
ideologia. Como assevera Orlandi (1987), a partir Reboul (1980):
(SD 04) Eu fui casada seis anos com o pai da minha primeira filha... (Carol)
Mas antes de vim pra noite, né? (Ana Paula)
É... fiquei casada, sem nada, trabalhava de diarista, trabalhava de
empregada doméstica, aí foi onde que não deu certo, era um cara muito
vagabundo, chave de cadeia. Separei dele, voltei pra noite, fiquei muito
tempo. Aí casei de novo, fiquei dois meses... (Risos) e separei, que eu
tenho minha última filha (Carol – grifos meus).
______ [ 165 ]
reconhecer a boa esposa e mãe, mas também o lar contra a rua, contra a estrada
e o caminho” (PRIORE, 1995, p. 101). A divisão dos espaços, como se vê, é
resultado de convenções sociais que delimitam o papel a ser desempenhado,
que é inseparável de uma formação discursiva contornada e controlada por
uma ótica social. Tais sentidos se repetem, estão cristalizados na memória
social, por isso há contradição para elas em esposa e ser prostituta5.
(SD 05) Então, eu me separei, né? Foi uma separação assim, bem dura...
Tanto é que assim, às vezes a gente lembra e fica emocionado, né? Mas, foi
uma separação difícil, tanto é que meu ex-marido não queria mais
ajudá com pensão. Meu pai, com o pouco que ele podia me ajudá, ele me
ajudava (Duda – grifos nossos).
______ [ 166 ]
(SD 06) Ah, ele era muito assíduo, queria até casá comigo.
Pesquisador: E você não quis?
Ah não, porque eu penso assim, igual que eu dizia pra ele, esse cliente era...
nossa, ele gastava horrores na noite comigo, aí quando chegou o momento
em que ele falou assim: Olha Duda, eu quero que tu saia da noite, eu
vou dá uma quantidade em dinheiro pra você e você fica em casa ou você
monta um negócio pra você mesmo, aí a gente vai morá junto. Ai eu sei
que ele era casado e tudo, né? Daí eu falei: mas eu não quero a minha
felicidade na tristeza de outra pessoa. O dinheiro é importante nas
nossas vidas? é, mas às vezes querê dinheiro, o meu bem-estar nas
costas de outra pessoa, vendo outra pessoa sofrê, eu acho que também
já não é justo (Duda – grifos meus).
______ [ 167 ]
que, em alguma medida, elas vivem no fio do conflito e da teia que as enreda,
buscando, mesmo que de forma frágil e ineficaz, alguma maneira de pôr em
suspensão momentânea os ditames sociais que se abatem sobre elas e sobre a
atividade que exercem, mesmo que não lhes faltem fregueses.
No fundo, entre levar a vida à margem daquilo que é sancionado de
forma positiva pela sociedade e sobreviver pelos meios “legais” postos à sua
disposição para fazê-lo, a opção se faz pela primeira via e o que efetivamente
move as garotas de programa é a busca pelo retorno financeiro, sendo este
o fator decisivo tanto para a entrada quanto para a permanência na vida de
meretriz. Entretanto, a SD 06 parece mostrar que, apesar de elas estarem ali
por dinheiro, ele não seria digno se viesse “nas costas de outra pessoa”, o que
implica em deduzir que, se outra pessoa não for prejudicada, o dinheiro ganho
se torna aceitável. Como isso é possível, se elas próprias afirmam que o que
fazem é inadequado e o fazem sem a restrição de ocasionar prejuízo ou não
a alguém? Percebe-se o contorcionismo que acontece num terreno complexo
e que, neste caso, busca justificar o injustificável, num contraponto perene
entre a vida material (a sobrevivência) e a vida ideológica: uma coisa é o que
se diz, outra é o que se faz e de que forma se tenta justificá-lo para não ferir
a moral vigente (embora ela seja ferida no seu núcleo). O que sobra, no fim,
é uma vida “imoral” tentando se mostrar adaptada ao que seria confirmado
pela moral sancionada, sem obter êxito na empreitada.
A SD 06 é organizada, em termos do esquecimento número 2, da
ordem da enunciação, no sentido de que Duda é honrada, digna e uma “boa
mulher”. No entanto, este mesmo esquecimento esconde o de número 1, que,
por fim, acaba fazendo com que a própria Duda se julgue disforme, devendo
justificar-se por isso. Casar-se com o cliente exigiria que Duda deixasse a
prostituição. Mas a questão que acaba sobressaindo é: ela recusa o pedido por
não querer “destruir” um casamento firmado diante de Deus ou a recusa está
associada ao desinteresse de deixar a “vida fácil”, usando como estratégia a
máscara de boa moça? Ou ainda, no nível do inconsciente, a prostituição pode
ser a manifestação do desejo e do prazer, não reveladas ou que não podem
irromper na ordem da moral. Todas afirmam que não querem permanecer
no meretrício, mas elas não deixam e não tomam qualquer atitude para que
isso ocorra, tanto que Duda, Ana Paula e Carol vendem sexo há mais de 10
anos. O que se percebe é que a afirmação de que esta será uma prática breve
e passageira acaba sendo outra (das muitas) justificativa apresentada por elas
para amenizar a imagem negativa que pesa sobre a atividade, sendo o “sonho”
de abandonar a prostituição contado e recontado para amenizar o passar dos
anos e a crítica que vem de um lugar que as tenha sob vigilância.
______ [ 168 ]
Viver na zona é muito mais que viver da prostituição; viver na zona
é experienciar o entremeio, o não-lugar ou “a terceira margem do rio”, como
quer Guimarães Rosa, que, nas suas Primeiras estórias (1962), (re)cria esse
espaço intermediário situando seu personagem em um contínuo suspenso,
alienando-se da rotina para viver da “invenção de [...] permanecer naqueles
espaços do rio de meio a meio”, numa canoa que jamais “pojava em nenhuma
das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio”, não mais tocando “em chão
nem capim” (ROSA, 1978, p. 28-30). Ser garota de programa é experienciar
os dois lados do rio e também o não-lugar do entremeio, que constitui, para
quem observa da margem, a contradição, mas, para quem habita a terceira
margem, é que um incessante navegar por águas (des)(re)conhecidas. Mesmo
se achando nesse entremeio, as formações discursivas que se cruzam e se
confrontam no discurso produzem, para as garotas de programa, a ideia de
completude, por isso não há contradição em ser mãe e ser prostituta, por
exemplo, até porque se os sujeitos não se sentirem plenos e completos
(interpelação), eles “desmoronam” discursivamente.
Caberia ainda (re)pensar a contradição considerando o inconsciente.
Pêcheux (1997), a partir dos estudos de Freud via Lacan, afirma que “só há
causa daquilo que falha”. Ideologia e inconsciente têm como caráter comum
dissimular a própria existência no interior mesmo de seu funcionamento,
“produzindo um tecido de evidências subjetivas” (PÊCHEUX, 1997, p. 153).
Tanto na SD 01 como na SD 02, as justificativas das entrevistadas se encontram
na ordem da moral, do consciente, mas se questiona também a ordem do
inconsciente, pois a entrada e a permanência na prostituição pode se dar pela
ordem do desejo e do prazer e não apenas para suprir as necessidades dos
filhos, como é posto pelas entrevistadas.
Parafraseia-se nos depoimentos colhidos a iminente saída como busca
pela redenção, isso posto pela ordem do consciente, mas o perdurar e o passar
dos anos instauram na não saída um possível desejo de estar ali:
______ [ 169 ]
Trata-se do prazer justificado por inúmeras razões. Entretanto, em nenhum
momento da entrevista é dito ou afirmado que o motivo de estarem ali é para
satisfazer desejos; os motivos são sempre justificados e a “culpa” recai sobre
o outro, já que o abandono do marido, o desemprego, os filhos, a influência
de amigas e o fatídico destino colocaram-nas no lugar que estão agora. Elas
não dizem e nem poderiam dizer/assumir que se prostituem porque querem,
mas, de uma forma ou outra, o inconsciente pode estar afetando as escolhas.
Sabe-se que há várias formas de repressão sexual instauradas no meio social,
como assevera Chauí (1984) e, por isso, afirmar que se vende sexo porque
gosta dificilmente seria dito de maneira tranquila, sem que existisse uma
condenação moral:
O desejo tenta o tempo todo escapar, mas a moral está o tempo todo
cerceando. Os valores morais agem de maneira a suprimir, inibir e reprimir
desejos sexuais do sujeito a tal ponto que sentir prazer, muitas vezes, relaciona-
se à culpa. Pensando no inconsciente, nota-se no corpus que nenhuma delas,
em nenhum momento, afirma ser garota de programa ou prostituta; elas estão
sempre se colocando em outro lugar: são mães, são ex-esposas, são filhas, são
desempregadas ou são futuras-estudantes, mas não garotas de programa:
(SD 08) Eu sempre digo assim, oh: Eu não sou puta, eu sou menina de
família com pobremas financeiros: SPC, Procon, Serasa (Carol – grifos
meus).
(SD 09) Somos, pra muitos ali fora, somos garotas de programa, mas
não é, somos garotas de família com problemas financeiros... que é
um método, curto, rápido e preciso de ganhar dinheiro. Como assim,
como é que tu vai trabalhá pra ganha um salário por mês, né? Não tem
nem como, né? (Duda – grifos meus).
______ [ 171 ]
regiões da sexualidade e as da política” (FOUCAULT, 2008, p. 9). As garotas
de programa não só evidenciam um discurso contraditório, como também
se mostram mulheres divididas, que ocupam lugares opostos na sociedade e,
para lidar com a contradição em que vivem, precisam justificar-se, desculpar-
se e isentar-se da “culpa” que sentem por serem mães e venderem o corpo
para sustentarem os filhos, por serem ex-esposas que passaram do “sexo
civil” para a venda de sexo. Ora estão à margem, ora fazem parte da dinâmica
social, ainda que não plenamente. O que as garotas do Porto das Sereias vivem
é tão contraditório que mesmo elas se confundem:
(SD 10) Eu acho que eu não to fazendo nada errado, to vendendo meu
corpo, mas tipo não é certo, mas também não to fazendo nada errado
(Mônica – grifos nossos).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
VAZQUEZ, Adonfo Sanchez. Ética. 14. ed.. trad. João Dell’Anna. Civilização
Brasileira: Rio de Janeiro, 1993.
______ [ 174 ]
NOTAS
1) O corpus desta pesquisa é composto por entrevistas realizadas com garotas de programa,
em agosto de 2012, consentidas e aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, trabalho inscrito também na Plataforma Brasil,
base nacional unificada de registro de pesquisas. A coleta do material foi realizada em uma
boate de Cascavel-PR, local selecionado por meio de uma amostragem não probabilística
por acessibilidade, e quatro garotas de programa concordaram em participar das entrevistas,
cedendo suas histórias para a realização da pesquisa.
2) Porto das Sereias foi o nome criado para nomear a boate em que as garotas de programa
foram entrevistadas, visto que o CEP prima pelo anonimato das fontes e, neste caso, do local da
pesquisa. Relaciona-se porto com o lugar de passagem de homens e mulheres que buscam sexo
e local igualmente de passagem para as sereias que desembarcam para vender sexo. Formada
por uma imagem híbrida, a sereia é, em sua completude, a soma da incompletude das partes de
que é feita: metade mulher, metade peixe. Assim é a prostituta, dividida entre mulher idealizada
e garota de programa (re)negada, em que cada metade experiencia um lugar diferenciado, mas
cada lugar não pode ser ocupado em sua plenitude.
3) Utiliza-se a palavra “reais” para caracterizar que se trata, efetivamente, de relatos de mulheres
de nosso cotidiano que vivem da venda de sexo, apesar de entender que as histórias relatadas
se constituem por um imaginário ideológico e social, não podendo ser caracterizadas como
“histórias reais”.
4) Vale ressaltar que as próprias entrevistadas sugeriram um nome para serem nomeadas
durante a entrevista e a composição da pesquisa. Além disso, cabe dizer que as entrevistas
foram transcritas sem correções gramaticais ou inserção livre de complementos.
______ [ 175 ]
CAPÍTULO 9
BRASIL E
BRASILEIROS EM
PORTUGAL:
CONSTITUIÇÃO DE
SUJEITOS E SENTIDOS
______ [ 180 ]
instrumento de comunicação de informações. Decorrem daí vários
efeitos constitutivos dos sentidos veiculados como informações jornalísticas:
objetividade, neutralidade, imparcialidade e veracidade. (MARIANI,
2005, p. 8, grifos meus).
______ [ 181 ]
O Brasil é um país alegre. Os brasileiros estão sempre a rir, a dançar,
a falar alto. (...) Os portugueses são mais fechados, mais europeus,
embora sejam um povo hospitaleiro. Se calhar, somos mais sérios, mais
racionais, e os brasileiros, mais festivos, mais emotivos, por assim dizer (...)
Não vês os brasileiros que estão cá a trabalhar, como costumam chamar a
atenção! (LISBOA, 2010, p. 60, grifos meus)4.
______ [ 186 ]
como autorizado, promovendo uma intervenção no real do sentido tomado
como estável e natural.
Temos, assim, a mídia como um lugar de interpretação legitimada
para a administração dos sentidos que lhe torna possível a existência. Ela,
como gestora da informação, fixa direções interpretativas, observáveis nos
pontos em que se busca controlar o sentido para que ele se torne único, na
tentativa de contenção de seu movimento constitutivo. Este processo, pois,
homogeneiza os sentidos para os fatos cobertos pela imprensa, criando uma
interpretação num efeito de leitura que visa instaurar uma memória.
No funcionamento social, os jornais estão autorizados a produzir
leituras da realidade que possam ser consideradas legítimas e produtoras de
um universo de crenças constituidoras do discurso social. Instituem-se, assim,
modelos de compreensão da realidade que visam explicar e desambiguizar
o mundo (MARIANI, 1999, p. 112). É, portanto, neste imaginário de
credibilidade construído pelos jornais que interpretações de acontecimentos
podem ser tomados como verdade e se naturalizarem no efeito de leitura.
No entanto, este imaginário se faz necessário para a manutenção da
própria imprensa. Bucci (2004, p. 51) afirma que a imprensa deve oferecer
confiabilidade necessária para a confirmação deste imaginário e também para
a validação dos jornais na relação com seus leitores.
Compreender a forma como a imprensa escrita portuguesa produz
efeitos de sentido sobre o brasileiro e o Brasil é compreender a maneira pela
qual Portugal redesenha o Brasil no panorama mundial. Nessa compreensão
em momentos de tensão, como é o caso da crise econômica na Zona do
Euro, pode-se percorrer a forma como a língua é ressignificada e como
novos-outros-sentidos se fixam. Gadet & Pêcheux (2004) afirmam que toda
desordem social é acompanhada de uma espécie de “dispersão anagramática”
(aspas do autor):
______ [ 190 ]
Ainda sobre o aspecto mercadológico, a próxima SD, do dia 03
de janeiro, torna evidente o novo lugar ocupado pelo Brasil na ordem da
economia mundial.
______ [ 191 ]
vale a pena ser feito.
O Brasil, como é possível perceber na fala do primeiro-ministro,
é, sobretudo, nesses tempos de crise, um aliado que pode contribuir
financeiramente para amenizar a crise portuguesa. É um país emergente com
divisas e mantém, com Portugal, relações econômicas. O Brasil é o quarto
maior destino dos investimentos diretos portugueses no exterior, segundo
o Itamaraty. A troca comercial entre os dois países, em 2013, foi de US$ 2,6
bilhões. Em outro momento, o primeiro-ministro declarou que a economia
do Brasil está num processo de internacionalização e espera que as empresas
brasileiras, a exemplo da Embraer, Votorantim e Camargo Correa, vejam Portugal
como uma oportunidade para este fenômeno.
Ainda que o primeiro-ministro tenha dado garantias de que não foi
ao Brasil para aliciar o governo, a dívida soberana portuguesa seria um bom
investimento. É interessante perceber o funcionamento de aliciar para o Brasil
e para Portugal. Lá (nos encontramos, neste momento, em Portugal), aliciar
tem um sentido, pelo menos o mais corente, de atrair com falsas promessas;
aqui, o efeito de sedução, mas, não necessariamente, com um sentido negativo.
De qualquer forma, o primeiro-ministro admitiu que “deu conta
daquele que está a ser o esforço do Governo português.” O jornal português
produz, assim, sentido de que, financeiramente, o Brasil está em condições de
contribuir com Portugal, por se tratar de um bom negócio que beneficiaria
também Portugal. Portugal, segundo o primeiro-ministro, é o mais fiel e o
mais próximo aliado e, por isso, apoia totalmente o Brasil nessa caminhada de
ocupação do espaço no concerto das Nações.
Na SD abaixo, a construção de um discurso político sobre o Brasil
ser um país do futuro e um país de esperanças continua produzindo efeitos no
discurso do governo brasileiro, segundo o jornal, e colaborando para com o
imaginário, também português, que reforçando a ideia contida em Holanda
(1996) sobre o Brasil.
(SD3) Dilma Rousseff, de 63 anos, deu uma clara indicação do rumo que
pretende seguir no seu governo, e reforçou: ‘Sob a liderança dele, o povo
brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história, e a minha
missão é consolidar essa passagem e avançar no caminho de uma nação
das mais geradoras de oportunidades’. Dilma repetiu a promessa, feita
na campanha e no dia da eleição, de ter como sua principal meta erradicar
a pobreza extrema no Brasil, criar avanços em áreas críticas como saúde
e a segurança. Não esqueceu também, e realçou em vários momentos do
discurso, o facto de ser a primeira mulher presidente e enalteceu as mulheres.
(CORREIO DA MANHÃ, MUNDO, p. 32, “Tomada de Posse do 40.º
Presidente da República – ‘Venho consolidar a obra de Lula’”, 02 de
janeiro de 2011, grifos nossos).
______ [ 192 ]
A história do Brasil, produzida pelo próprio país, é ainda em torno
do imaginário do país do futuro presentes nas denominações: rumo que pretende
seguir, avançar no caminho, principal meta, erradicar a pobreza, criar avanços etc. Ou
seja, o papel do Brasil para os europeus está atrelado à ideia da terra prometida.
E para um político recém-chegado ao cargo, não existe um lugar pronto, ele
deve estar sempre em construção. O lugar, pelo menos na política brasileira,
deve precisar de muitas melhorias essenciais para que assim se justifique a
sua presença. Essas representações nos atravessem de modo constitutivo:
sujeito e sentido se constituindo ao mesmo tempo. São os objetos simbólicos,
descritos por Orlandi (2002), que são por definição não-transparentes, que
produzem sentidos, e os gestos de interpretação realizados pelos sujeitos.
No entanto, não apenas a ideia de país do futuro, da esperança, parece
produzir efeitos nos jornais portugueses, sobre o imaginário em torno do
que seja ser brasileiro. Tirar proveito de tudo, a velha e eficaz Lei de Gerson7
parece aqui também nos constituir: o malandro no bom sentido, mas também
o mal intencionado, aquele que quer levar vantagem em tudo circula entre as
matérias jornalísticas sobre o que nos constitui.
O imaginário sobre o brasileiro contaminado pelo estilo de vida
fácil, na SD4, parece encontrar eco no comportamento também cristalizado,
nos meios de comunicação, no imaginário do próprio brasileiro sobre si e,
naturalmente, também em relação à classe política: aqueles que desrespeitam
constantemente as fronteiras entre espaço público e privado, os que
não conseguem discernir entre os interesses coletivos e particulares, que
corrompem e são corrompidos, que superfaturam ou subfaturam contratos
de acordo com a conveniência, que são coniventes com desvios de verbas,
essa prática, inclusive, faz parte de “suas atribuições” como parlamentares.
Pode-se até discutir o caráter legal desse comportamento, no entanto, em se
tratando de valores morais como a decência, a honestidade, a civilidade, a
democracia, todas elas são deploráveis e condenáveis na mesma medida.
Uma semana depois de deixar a presidência, Lula continua a manter
privilégios ilegais em sua nova condição, à custa dos contribuintes, continua a ser favorecido,
tratamento privilegiado, continua a gozar de benefícios estatais são algumas das
denominações que constituem o caráter do ex-presidente e, por deslizamento,
reforçam o imaginário sobre ser brasileiro.
(SD4) Uma semana depois de ter deixado de ser presidente do Brasil,
Lula da Silva continua a manter os privilégios a que tinha direito no
cargo, mas que são ilegais na sua nova condição civil. Um dos casos
que estão a suscitar particular polémica é o facto de Lula e a família terem
______ [ 193 ]
ido passar férias numa base do Exército no Litoral de São Paulo, à custa
dos contribuintes. (...) outra denúncia confirma que Lula continua a
ser favorecido pelo actual governo. Os passaportes diplomáticos dos dois
filhos, Cláudio Luís, 25 anos, e Marcos Cláudio, de 39, foram renovados,
garantindo-lhes tratamento privilegiado nas viagens internacionais.
Segundo a lei do país, a concessão de passaporte diplomático de filhos de
presidentes está apenas prevista enquanto estes ocupam o cargo e desde
que os filhos tenham menos de 21 anos, o que não é o caso. (CORREIO
DA MANHÃ, MUNDO, p. 30, “Ex-Presidente continua a gozar de
benefícios estatais – Privilégios de Lula abrem polémica”, de 07 de
janeiro de 2011, grifos nossos).
______ [ 194 ]
as presidências de Outubro Dilma foi acusada de não ter religião e de
defender o aborto. Depois de analistas terem dito que ela não foi eleita
logo à primeira volta por esse motivo, Dilma passou a ir diariamente à
missa, fez-se deixar fotografar ao lado de pastores e bispos e, naquela
que foi considerada a cartada decisiva para atrair milhões de eleitores
mais religiosos, chegou mesmo a afirmar, durante uma visita ao
Santuário de Nossa Aparecida, padroeira do Brasil, que o cancro que
enfrentou há dois anos a aproximou de Deus. Agora, pelo visto, a religião
deixou de lhe interessar. (CORREIO DA MANHÃ, MUNDO, BRASIL
– “Reviravolta – Dilma choca religiosos”, do dia 10 de janeiro de 2011,
grifos nossos).
______ [ 195 ]
da presidenta. Vermelho também é a cor que representa o comunismo. E,
frequentemente, é dito que a ideologia comunista defende explicitamente o
Estado ateu e a supressão da religião. As relações que podem ser feitas seriam
Dilma é comunista, Dilma nega a religião, Dilma defende o aborto e, pelas
evidências apresentadas pelo CM, ela decidiu retirar a bíblia e o crucifixo da
sala de trabalho da presidência.
O caráter leviano cola-se ao comportamento, segundo o CM, da
presidenta, já que antes e depois, nas eleições, e depois de eleita ela muda de
convicções. Inclusive, essa mudança apenas reforça a veracidade das acusações
de defender o aborto e de não ter religião. Agora, pelo visto, a religião deixou de lhe
interessar. De duas uma, ou vale tudo durante o processo eleitoral, no Brasil,
ou aquelas acusações têm algum fundamento.
Esses sentidos produzem também outros que não são ditos, mas que
são passíveis de serem depreendidos a partir dessas SDs analisadas: uma certa
ingenuidade significando o brasileiro, porque não percebe o jogo político. Há
também alguma dissimulação no nosso comportamento, já que queremos
tirar proveito de certas situações. Há, sobretudo, alguns comportamentos que
o CM consegue fazer circular sobre o Brasil e o brasileiro que o próprio
brasileiro não consegue alcançar.
2. Jornal Expresso
______ [ 196 ]
inimigos políticos, construindo um lugar para esse governo a partir dos sentidos
já-la8 sobre um (ex)militante de esquerda.
Como afirmamos acima, as denominações fazem emergir as posições-
sujeito dos enunciadores, vinculando tanto o locutor quanto o referente às
FDs específicas, criando, em torno de si (o sujeito se significa ao significar) e
do seu referente, no caso Dilma Rousseff, um imaginário sobre o seu modo
de governar a partir de um já-dito sobre ela, a partir de um já dito sobre o que
seja um militante clandestino, um leitor de Marx, um leitor de manuais de economia etc.
Para a AD, trata-se de analisar o processo de construção discursiva,
ou seja, o modo como os discursos produzem a ilusão de objetividade e a
evidência para uma realidade, como se O sentido já estivesse lá. (GUIMARÃES,
1995). Esses sentidos são reforçados também pelo imaginário em torno do
discurso jornalístico, responsável por fazer circular o mundo, a partir de um
lugar de neutralidade, objetividade, imparcialidade.
O lugar de uma militante clandestina com ideias marxistas (que gesticula
muito) pode produzir, como efeito de sentido, determinadas convicções as
quais servem para destacar e reforçar sua forma de ser e, por deslizamento,
sua forma de governar.
A denominação generala parece estar associada a essa ideia de
radicalismo presente no interdiscurso9 sobre o militante com ideias marxistas.
A SD6 parece ser atravessada pelas SDs 1 e 5 (elas se complementam
e reforçam o imaginário), nessas SDs, Dilma Rousseff aparenta ser uma
provável comunista (o vermelho como sendo a sua cor predileta, na SD1, e
o fato de retirar o crucifixo e a bíblia de sua sala de trabalho, na SD5) porque
renega a religião assim que toma posse, aqui, na SD6, ser Leitora de Marx,
reforça aquele imaginário que faz/fez circular sobre ela.
(SD7) José Sócrates esteve na abertura do ano no Brasil, para assistir tomada
de posse de Dilma Rousseff como sucessora de Lula da Silva. E logo no
primeiro dia em função da nova Presidente, o primeiro-ministro reuniu-
se com Dilma. Sócrates garantiu que a ajuda brasileira a Portugal
para compra da dívida nacional não esteve em cima da mesa. Mas
sabe-se que a entrada da Petrobrás no capital da Galp foi um assunto
debatido (sobre isso pode ler-se mais noticiário esta semana no caderno
de Economia do Expresso). “Reafirmei que uma das prioridades mais
altas da política externa portuguesa é a relação com o Brasil, disse a
Dilma que pode contar com Portugal como o mais fiel e mais próximo
aliado”, afirmou José Sócrates. No final da semana, Dilma (que já parece
ter um novo estilo, mais reservado e com menos exposição pública)
anunciou publicamente o primeiro combate do seu mantado: a erradicação
da pobreza. (EXPRESSO, A SEMANA, “Sócrates e Dilma juntos”, 8 de
janeiro de 2011, grifos meus).
______ [ 197 ]
As SD2 e SD7 também dialogam, nelas o Brasil é produzido como a
alternativa para ajudar Portugal a superar a crise econômica. Logo no primeiro dia,
pode, dentre outros sentidos, produzir efeitos de que Portugal, representado
pelo primeiro-ministro, se aproveita da situação, tão logo a presidenta toma
possa, para pedir ajuda ao Brasil, mas também produz efeito de proximidade,
de parceria, reforçado pelo discurso direto de Sócrates quando diz a Dilma
que pode contar com Portugal como o mais fiel e mais próximo aliado.
Além disso, a construção da imagem da presidenta, recém empossada,
cria, em torno dela, um imaginário mais discreto de se governar (em oposição
a Lula) introduzido pelo adjetivo novo: novo em oposição ao velho estilo. E
acrescenta-se a isso, o fato de parecer convicta de seus ideias já que anunciou
publicamente o primeiro combate do seu mantado: a erradicação da pobreza, ideia presente
também na SD6, a partir de denominação leitora de manuais de economia.
Tanto no CM quanto no Expresso circularam a ideia contida no que
PAYER (2005) afirma sobre a FD Mercantil colocada em circulação sobre
o Brasil: a interpelando dos sujeitos e dos sentidos como suporte para as
relações econômicas globais.
______ [ 198 ]
mais justa etc., contribuíram para alimentar o turismo e consequentemente para
o consumo em Portugal: são 46% de aumento de brasileiros em Lisboa (até
novembro de 2010 – totalizando 467 mil dormidas); € 969 gastos, em média,
por brasileiro em 3 noites; 5 noites é a permanência média dos brasileiros em
Lisboa. Esse turismo desliza para outras regiões: Estoril, Sintra ou Fátima.
É importante destacar que agora os brasileiros que chegam em
Portugal não são mais aqueles que vinham na década de 1990, a procura de
trabalho, principalmente para atuar na construção civil, por conta dos bons
ventos na economia dos países da Zona do Euro. Esse novo brasileiro é
reflexo da economia em crescimento do Brasil que aumenta o poder aquisitivo
da população e, por deslizamento, permite que outras necessidades possam
ser acrescidas, o turismo, por exemplo.
Outro ponto importante, não destacado para análise, seria o fato de
que a ideia de gravar as últimas cenas de uma novela brasileira em Lisboa,
para divulgar a cidade, para ser exibida no horário nobre no Brasil, partiu do
presidente da Câmara, António Costa, conjuntamente com a empresária
Roberta Medina: o efeito propaganda é apagado enquanto as cenas românticas
contribuem para divulgar uma Lisboa “moderna e cosmopolita”, alterando a percepção
dos brasileiros da imagem de “cidade atrasada e provinciana, onde vive o Manuel padeiro
e pessoas de bigode”.
O jornal supõe também um imaginário do brasileiro sobre Portugal
e também sobre o português: alterando a percepção dos brasileiros sobre uma
cidade atrasada/provinciana e sobre o português (Manuel da padaria e
pessoas de bigode). São as regras, descritas acima, de projeção responsáveis
por estabelecer as relações entre as situações discursivas e as posições dos
interlocutores, de acordo com Pêcheux (2001).
______ [ 200 ]
O “aqui”, ou nosso, parece falar de um momento de crise, da Crise da Zona
do Euro, e certamente da língua portuguesa que pode/deve ser um veículo
de negociação, uma ferramenta para se poder argumentar com os países
membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): seria
“um erro esquecer que o conhecimento e o uso do português constituem
uma mais-valia no campo das interações económicas” (grifos meus).
A língua seria também um instrumento para “argumentar sobre
uma posição política, ou um projeto científico e cultural” (grifos meus),
mas, certamente, que “Discutir um negócio” ganha, na SD10, uma força
maior e um peso considerável para se pensar em um projeto de preservação
da língua materna.
O efeito de sentido que se produz passa efetivamente pela crise
pela qual Portugal, neste caso, atravessa e também pelos efeitos de sentido
de que alguns dos outros países, membros da CPLP, poderiam contribuir
economicamente com Portugal já que se poderia usar “o português com a
facilidade de ser a língua materna”.
A Mais-valia, grosso modo, corresponde a um benefício ou a uma
vantagem em relação a algo ou alguém: os problemas econômicos são os
“nossos” problemas, i.e., problemas de Portugal e os benefícios, nas condições
de produção desse discurso, certamente seriam revertidos aos governantes e
a coletividade se compreendessem o valor da língua portuguesa. Quanto vale
para Portugal, nesse momento, a “nossa” língua materna?
Por outro lado, há um “lá” que não é Portugal e que não atravessa,
nesse imaginário de valorização mercantil da língua como instrumento de
negociação, um momento de crise financeira. O Brasil criou uma universidade,
a UNILAB, com o propósito, segundo a SD acima, de “reforçar os laços com
os países lusófonos” (grifos meus), porque “acredita na importância de
enriquecer a língua portuguesa no campo da ciência atual e das tecnologias,
e do uso quotidiano nos países-membros da CPLP” (grifos meus).
E ainda há um “lá” que não se refere ao Brasil, mas que desliza para
“lá” em virtude da “recente ida de Lula da Silva a esse país” (Moçambique).
A constituição do Sujeito de Mercado, Payer (2005), seria uma
consequência de sua interpelação pela necessidade de negociação, algo que
se opera pela identificação à “formação discursiva mercantil” e sob a égide da
formação ideológica do “Capitalismo Mundial Integrado”.
Às Línguas de escolarização, à social, à que se destina a reforçar os
laços com os países lusófonos, agrega-se à econômica, a que, nesse momento
de crise, parece ganhar uma dimensão gigantesca, quase que em detrimento
dos demais valores.
______ [ 201 ]
E se nos propusemos a pensar como Portugal reinscreve o Brasil no
cenário internacional, não há dúvida de que esse lugar é o da Economia, o
lugar da inscrição dessa FD como valor máximo a ser difundido em tempos
de crise e, principalmente, acima de qualquer outro valor. Parece-me que o
discurso pronto contra a mercantilização do Estado, o acirramento de forças
contra as perdas salariais, contra os cortes do governo a partir do que o FMI
(Fundo Monetário Internacional) determina como meta para se colocar as
contas novamente em equilíbrio acima dos valores sociais aqui perde a sua
força ou, pelo menos, é neutralizado. Quero dizer, consiste na troca do valor
da esfera da política para, exclusivamente, a esfera do mercado.
À GUISA DE CONCLUSÃO
______ [ 203 ]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
______ [ 204 ]
GUROVITZ, Helio. Viva a lei de Gérson! Somos mesmo uma nação de
egoístas, corruptos e sacanas, que só pensam em si e só querem saber de levar
vantagem. Certo? Revista Superinteressante, nº 197, fevereiro de 2004.
NOTAS
2) A noção de Sequência Discursiva, definida por Courtine (1981, p. 25) como sequências orais
ou escritas de dimensão superior à frase, é fluida o suficiente para viabilizar a depreensão das
formulações discursivas (FDs), ou seja, de sequências linguísticas nucleares, cujas realizações
representam, no fio do discurso (ou intradiscurso), o retorno da memória (a repetibilidade que
sustenta o interdiscurso) (MARIANI, 1988, p.53).
______ [ 206 ]
6) Segundo Orlandi (1993, p. 18), “a noção de discurso fundador, (...), é capaz, em si, de muitos
sentidos. Um deles, [...], é o que liga a formação do país à formação de uma ordem de discurso
que lhe dá uma identidade”.
7) Para quem não lembra, o meio-campista Gérson ficou célebre não apenas por ter sido uma das
maiores estrelas do tricampeonato brasileiro em 1970, mas por ter formulado, na propaganda
do cigarro Vila Rica veiculada anos depois, aquela que viria a ser conhecida como lei de
Gérson: “O importante é levar vantagem em tudo, certo?” – frase dita num carregado sotaque
carioca, forçando os erres até o palato ficar encharcado. Gérson tentou por muito tempo se
desvencilhar da fama de patrocinador dos espertalhões, patrono dos corruptos e propagandista
dos canalhas, mas não teve jeito. A lei de Gérson pegou. Sociólogos, antropólogos e a nata da
intelectualidade brasileira já gastaram horas e mais horas, tinta e mais tinta, neurônios e mais
neurônios para condenar nossa brasileira condição gersoniana. Somos mesmo uma nação de
egoístas, corruptos e sacanas, que só pensam em si e só querem saber levar vantagem. Certo?
(Helio Gurovitz, revista Superinteressante, fevereiro de 2004.)
8) A ideia é a de que o que se diz/ou o que se escuta, é sempre atravessado por algo que já foi
dito, atravessado por um dito anterior.
9) Há uma ordem do discurso que controla aquilo que se pode/se deve dizer, em certo
momento histórico; há também um diálogo intertextual entre os enunciados.
______ [ 207 ]
CAPÍTULO 10
QUANDO
A ESMOLA É
DEMAIS, O SANTO
DESCONFIA?!
O INVISÍVEL/VISÍVEL IRREALIZADO
______ [ 219 ]
aplica). Valendo-me do insight de Freud, denomino, à falta de termo melhor,
esse processo de desafirmação.
O leitor deve estar perguntando como isso se relaciona com os hinos
sul-americanos: como o invisível irrealizado das revoluções e a desafirmação
da superabundância enunciativa são relativos à sua composição. O fio da
navalha reside na hipótese que pretendo defender: contra o deslumbramento
e o êxtase efusivo da pátria paradisíaca, dado o transbordamento e a
manifestação hiperbólica de uma existência idílica e idealizada, os hinos, como
um ato falho insidioso, revelam a ausência, indicam o desejo de realização do
irrealizado e apontam uma memória de futuro. Contra a enunciação indicativa
e certeira demonstrada, que coloca a história como plenamente resolvida,
os hinos, como lapsos excessivamente abusivos, revelam exatamente o
que falta: a liberdade, a justiça, a honra, a virtude, a paz, a união, ou seja, a
falta do que todos querem e do que os hinos levantam as bandeiras. Neste
sentido, o que os hinos afirmam como uma concretude visível, voluntária
ou inconscientemente, não é mais do que a revelação de uma falta. O que
celebram como parte da vida concreta é o que ainda não foi conquistado e
não a pura constatação objetiva e referencial do existente.
Para defender a hipótese que acabo de assumir e demonstrar que,
ao lado do êxtase grandiloquente da existência bem-aventurada, o irrealizado
se manifesta e, como lapso, revela o outro lado da moeda (não o que se tem,
mas o que se deseja ter), atento para alguns recortes que, por meio da esquiva
ao controle do ego unitário, indiciam a irrealização e o desejo de que ela se
concretize (ou perdure, se é que já foi alcançada). Penso poder afirmar que
a profusão enunciativa e o exagero de louvação mostram o invisível que se
torna visível num momento em que os ventos do acontecimento permitem
que ele se manifeste (o que não significa que ele estivesse realizado ou já
dado).
Como assumi, ao lado de enunciados que indicam a existência objetiva
e vivida de um presente repleto de abundâncias e prazeres, movimentando o
pêndulo no sentido de afirmar indicativamente a bem-aventurança, outros
versos (em número menor e, por isso, permitindo a hipótese de que ocorrem
como atos “indesejados”) instigam para a necessidade de lutar pela manutenção
do estado alcançado, para a não realização plena do que parece realizado e
para a obrigação de evitar que alguma fratura quebre a paz e a união. Se
os hinos fossem tomados de um ponto de vista estritamente textual, eles
teriam uma contradição lógica, pois, se os laços de fraternidade “constatados”
existissem, não haveria por que tentar evitar a possibilidade real de sua perda.
Isto quer dizer que os hinos sul-americanos oscilam entre a percepção um
______ [ 220 ]
tanto incrédula do que parece constituir a história e a ameaça eminente de que
venha a evanescer como fumaça. No limite, percebe-se que os hinos afirmam,
de modo inseguro, a existência de um conjunto de elementos que ainda são
sonho e não objetividade realizada.
Para a confecção desta seção, não sigo o caminho “lógico” da seção
anterior, passando por cada hino. Detenho-me em recortes de algumas
composições que revelam o ponto de vista assumido, o que não significa
que, nas demais, as reflexões não possam ser ratificadas. Quero relembrar que
eles são trazidos para mostrar que, contra o deslumbramento efusivo com
uma realidade já dada a ver (ele açambarca meio que o todo das letras dos
hinos), determinadas passagens apontam para a dúvida sobre essa evidência e
a necessidade de conquistá-la.
No hino boliviano, há os versos “las glorias que empieza hoy Bolivia
feliz a gozar”. Este recorte permite diversas entradas para a demonstração
do irrealizado contra o realizado indicativo que caracteriza outras passagens.
Uma delas se refere a “las glorias”. A expressão funciona como uma fórmula
vazia e genérica, um invólucro sem sentido, que pode significar qualquer coisa.
Ela é o nada que é tudo e é o tudo que é nada. Se não é possível falar sobre as
glórias presentes, deve-se admitir que não existem. Elas poderiam ser apenas
a independência conquistada, mas isso não transformaria o presente numa
época de bem-aventurança. Outra janela remete à flexão verbal “empieza”
que, como marcador de pressuposição, permite a detecção de vários efeitos
de sentido. O mais evidente diz respeito ao fato de que, se começa a gozar,
as glórias ainda não existiam em face da opressão do imperialismo. Nesse
caso, não há como falar de um instante pleno, se ele ainda é incipiente. Outro
mostra que, se a vida em gloria está no seu início, ela não é gloriosa, dado que
um estado de vida de bem-aventurança não nasce armado e resoluto em toda
a plenitude, mas é conquistado cotidianamente e com a resposta imediata a
cada quebra dos rituais previstos. Outro, ainda, indicia que as glórias estão no
início e, por isso, elas não estão atingidas plenamente, devendo ser buscadas
e ampliadas a cada demanda. Parece inquestionável que, uma vez conquistada
a independência, nem todos (ou ninguém) foram agraciados de imediato pela
vida em glória. E, com certeza, não foram todos. É evidente que a grande
maioria da população acordou nos dias, semanas, meses e anos seguintes à
proclamação da independência do mesmo modo que antes de ela acontecer.
Outro, por fim, aponta que, se as glórias estão no início, elas ainda são tênues
e podem se desfazer a um ruflar de asas. Contra a ameaça presente das
dores vividas, a celebração não pode ser mais do que a comemoração ainda
contida da vida que parece começar a se concretizar. O medo do retorno ao
______ [ 221 ]
jugo vivido parece pairar sobre a enunciação de louvação, dando-lhe tons
menos efusivos do que ela gostaria de colocar em sua prosódia. A terceira
entrada se refere ao dêitico temporal “hoy” que, fazendo eco ao marcador
de pressuposição “empieza”, aponta para dois efeitos distintos. Se, olhando
para o passado, revela que, antes do presente, o estado glorioso não existia,
também permite inferir que, após o dia vivido, no futuro, não se pode ter
certeza do que virá. Se “hoy” o país, feliz, começa a viver as glórias, isto não
ocorria antes e também não se tem certeza do futuro: parece que, se, sobre
o passado, pode-se efetuar uma enunciação positiva, o mesmo não ocorre
com relação ao devir, pois, sobre ele, certeza alguma pode ser enunciada. No
advérbio “hoy”, revelam-se a certeza de um sentido e a incerteza (talvez, um
pouco de medo) do outro. Por fim, creio dever dar atenção para a metonímia2
efetuada na composição da letra, por meio do nome do país “Bolivia”. Ao
afirmar que a Bolívia está feliz e começa a gozar as glórias da independência,
pretende-se afirmar que os bolivianos estejam felizes e vivendo em glória.
Mas o descolamento constituído parece abrir brechas para que se perceba
que, mais do que o povo que constitui a nação, ela é que precisa estar em
ordem, em detrimento do seu povo. Assim, se o país vai bem, mesmo que as
pessoas estejam passando por contratempos, tudo está dentro da normalidade.
Esse discurso não é estranho às paragens brasileiras, por exemplo. O recorte,
como um lapso inesperado ou equívoco “indesejado”, permite a descrença na
superabundância e na prodigalidade em que, aparentemente, a Bolívia (e o seu
povo) teria imergido após o acontecimento da independência.
No caso do hino brasileiro, dentre outras, a percepção de não
existência do mundo paradisíaco celebrado em outros momentos pode ocorrer
na passagem “Brasil, de amor eterno seja símbolo”, em que alguns efeitos de
sentido são detectados em “contradição” com a bem-aventurança louvada.
Antes, perceba-se que, como no hino boliviano, a metonímia constituída pelo
uso de “Brasil” ao invés de “brasileiros”, ou seja, do todo pela parte, permite
inferir que, ao afirmar que ele deve ser símbolo de amor eterno, assume-
se que é o país que tem primazia, em detrimento do povo, mesmo que se
queira efetuar a imbricação lógica de que, se o país é amoroso, os beneficiários
são as pessoas que o habitam. O descolamento entre as pessoas e o país,
por meio da metonímia, coloca em preponderância a pátria e não o povo,
devendo este cooperar para a grandeza daquele, mesmo que tenha que abdicar
de determinados direitos. Por outro lado, a flexão verbal “seja”, no modo
imperativo, parece impor a injunção de um modo de ser que não existe. Se o
país já fosse um símbolo de amor eterno, não se justificaria pedir que “seja”.
Ou, sob outro prisma, mesmo que já fosse, a imposição indicia a descrença ou
______ [ 222 ]
a insegurança frente à promessa de estado que se anuncia com a conquista da
libertação. Ainda: se a injunção é feita em termos de dever vir a ser símbolo de
amor eterno, isso é plausível sob a âncora de que o amor decantado não é uma
realidade que alcança a todos como se defende em vários recortes e, pois, o
país não é o espaço benfazejo que alguns versos constroem. Portanto, mais do
que a constatação de um estado de felicidade para todos, o verso, como um
equívoco que rompe o ritual e provoca abalos nos cristais sedimentados das
significações “desejadas”, interroga a certeza do gozo feliz de um presente
que se ressente da concretização daquilo que a proclamação da independência
prometia. No hino, manifesta-se, assim, a cota de irrealizado invisível que tem
ansiedade de se materializar.
No hino colombiano, o invisível irrealizado, ou seja, a contraface da
superabundância prodigiosa pode ser detectado no recorte “La independencia
sola al gran clamor no acalla; si el sol alumbra a todos, justicia es libertad”.
Já à primeira vista, há o choque provocado pelo verso que afirma que a
independência, por si só, não silencia e nem acalma o grande clamor que
se ouve, o que impõe que se perceba que, se a independência era desejada,
mais do que ela, desejava-se o que se supunha que viria. Responsabilizado
pelas mazelas sociais do povo, o império espanhol, uma vez sendo eliminado,
permitia promessa de realização do que era desejado por quem passava fome
e vivia ao relento. Embora, portanto, o hino da Colômbia faça a apologia da
liberdade, o tema fulcral da sua conquista está ligado às realizações da vida
concreta de quem lutava para que a supressão do jugo ocorresse e tivesse as
vontades levadas em conta. E o hino alerta: o limite de busca dos combatentes
não coincide com a possibilidade de autonomia do próprio país, mas com
a realização do que, “invisivelmente”, empurrava os combatentes. Pode-se
inferir que há um efeito de sentido presente no verso que soa, à guisa de aviso,
para o que competia alcançar, assim que superasse o jugo imperial. No outro
verso, é contundente o alerta de que, apenas sob a condição de o sol (e os
efeitos de sentido que se associam a ele) iluminar a todos e de as condições
concretas de vida plena estarem satisfeitas, a liberdade se torna tangível e
real, pois é presenciada na contraparte visível e material que a constitui: na
justiça que se torna palpável na vida cotidiana e nas necessidades materiais
e sociais de que todos devem usufruir, sem que uns sejam mais iguais do
que outros. Essa é uma práxis social e ordinária que não distingue e nem
hierarquiza os homens. Como se vê, apesar de o encantamento da liberdade
ser um fio temático do hino em pauta, a passagem destacada quebra a apologia
grandiloquente e coloca no terreno da objetividade positiva o que cumpre
realizar para que a liberdade efetivamente se torne uma presença nobre e
digna.
______ [ 223 ]
No caso do hino paraguaio, um primeiro recorte atende bem aos
objetivos desta seção. Ele se refere à passagem “ni opressores, ni siervos
alientan donde reina unión e igualdad”. É possível seguir duas vias para a
leitura, sem que uma seja excludente em relação à outra. Elas se sustentam
em dois movimentos pendulares, que oscilam entre a percepção positiva da
existência já concretizada e verificável e a chamada para uma atitude que
atende à injunção de uma ordem pautada num slogan. O recorte flutua entre a
afirmação modal da certeza de que já não há opressores e servos no Paraguai,
pois, a união e a igualdade são constitutivas do vivido e a injunção orientadora
de que, num país que se deseja unido e igualitário, a opressão e a servidão não
devem existir. Dado que o hino foi composto perto do instante da conquista
da independência do país, talvez, possa-se afirmar que a segunda via parece
mais plausível. De toda sorte, no limite, a polissemia dá o tom da passagem
e, como voz sob a voz, o ato falho, o equívoco e a quebra do ritual revelam
o irrealizado e a vontade popular de que o mundo seja de outro modo. O
recorte seguinte, escolhido para a composição da defesa de um invisível que
deseja se tornar real, pode ser lido no mesmo fio do anterior: “Oh! cuán
pura, de lauro ceñida, dulce Patria te ostentas así”. Se, por um lado, pode-se
entender que o hino assume que a pátria é pura, doce e cingida por louros,
ostentando esses traços por defender a união e a igualdade, também há efeito
condicionante de que a pátria só pode ser pura, doce e coberta de louros, se
atender à inescapável exigência de fazer com que todos sejam tratados de
modo isonômico, sem opressores ou servos. Se, num diapasão, a pátria já é o
que diz que “é”, por outro, há a chamada de atenção para que os dirigentes
do país ouçam o clamor popular e atendam ao irrealizado que se manifesta
nas vozes que pretendem se tornar audíveis. De novo, ao lado (ou sobreposto,
talvez) da voz que celebra e enaltece o presente vivido, construindo-o de
forma meritória, ouve-se o alerta que impõe uma atitude frente ao futuro de
atentar para os clamores invisíveis. Na ode, revelam-se fragmentos de espelho
que estilhaçam a unidade do discurso unitário e fraturam a vontade de uma
celebração hegemônica, efusiva e grandiloquente.
No hino peruano, pelo menos, dois recortes tornam saliente uma
vontade de futuro e a injunção de uma busca permanente. Por meio da visita
à zona do silêncio, eles fazem perceber que o presente não satisfaz a todos
os anseios como desejaria sustentar. O primeiro recorte é “para siempre
jurémosla libre manteniendo su próprio esplendor”. Ao lado da celebração
do encantamento com a pátria esplendorosa, ocorre o juramento de que se
deve mantê-la livre, o que implica na pressuposição de que, se o povo ainda
não está realmente liberto em face do tempo decorrido entre a proclamação
______ [ 224 ]
da independência e a composição da canção, é possível inferir que não se
tem total certeza de que o estado de liberto seja mantido naturalmente,
devendo haver a luta constante da pátria para que as pessoas sejam livres,
obviamente, com o que a liberdade traz como bem para a população. Assim,
ao juramento de manutenção do esplendor da pátria, estão atreladas a
opulência e a autonomia do povo peruano. Se, por um lado, não se deixa de
exaltar o presente vivido, por outro, atenta-se para o que a luta para ser livre
significou e que objetivos possuía. O irrealizado e o invisível irrompem no
tecido da celebração extasiada. No segundo recorte, “que a los siglos anuncie
el esfuerzo que ser libres por sempre nos dio”, ouve-se a voz imperativa que
determina que o esforço dispendido para a obtenção da liberdade atual deve
ser aclamado e exaltado e, por isso, contemplado em relação aos sonhos
buscados por quem, inclusive, deu a vida para que o presente fosse portador
de determinados traços. Neste sentido, se a liberdade é um fato tangível e
objetivo, mas não está conquistada para sempre e se deve buscar mantê-la
ao custo que se imponha. Além disso, ao celebrar e cobrar a rememoração
do gesto dos que deram a vida pela conquista, cobra-se o atendimento aos
desejos e sonhos dos combatentes, transferindo-os para os seus descendentes.
Se a luta pela independência estava pautada no irrealizado e no invisível que se
queria visível e se a superabundância que o hino revela é mais o que se deseja
do que o que se tem, o hino é uma peça performática de reivindicação e não
puro dado objetivo constatável.
O hino uruguaio é abundante na chamada de atenção para o fato de
que o gozo que os outros hinos admitem existir em profusão ainda ocorre
de forma tímida e começa a acontecer. Mais do que presença concreta, as
possibilidades de realização estão prenunciadas e não realizadas em definitivo.
Contra a constatação da abundância superlativa decantada por outros hinos, o
uruguaio é construído como slogan injuntivo e imposição de comportamento
futuro sobre os cidadãos do país. Um exemplo pode ser observado no recorte
“de los fueros civiles el goce sostengamos; y el código fiel veneremos inmune
y glorioso”. Como se observa, ao invés de enaltecer um estado resolvido de
forma perene, o hino convoca para a manutenção dos direitos civis e das
premissas da lei. “Los fueros civiles” e “el código fiel” não são dados como
fatos assegurados, mas como metas a serem concretizadas no decorrer dos
dias. As flexões verbais “sotengamos” e “veneremos”, se, por um lado,
permitem pressupor que já se está de posse de algum elemento, por outro,
denuncia a insegurança sobre a certeza da sua manutenção, não havendo
outra razão para que a demanda injuntiva de luta pelas conquistas obtidas seja
reiterada a cada nova entoação da canção pátria. Uma mescla de entusiasmo
______ [ 225 ]
e temor se vislumbra no recorte que flutua entre a certeza efusiva e o medo
ameaçador. Outro recorte que revela esse misto de contentamento e de
ameaça se mostra em “y los libres adoren triunfante de las leyes el rico joyel”.
Se é possível pressupor que não se poderia convocar para a adoração do “rico
joyel de las leyes”, se já não existisse, também parece necessário perceber que,
se ele fosse fato consumado sobre o qual não pairasse nenhum temor, não
haveria razão para convocar “los libres” para que o “adoren”. Paralelamente,
portanto, à constatação de um fato presente (mas ainda nebuloso), produz-
se o efeito de sentido de que ele deve ser mantido e posto à disposição de
todos; o invisível que se tornou visível com a independência se revela como
ainda irrealizado em sua plenitude, devendo haver aqueles que não foram
contemplados com as promessas que a libertação trazia materializadas. Mas o
recorte que mostra de modo mais contundente que o embevecimento com a
liberdade da pátria é ameaçado por nuvens que pairam no horizonte pode ser
observado no recorte “de las leyes el Numen juremos igualdad, patriotismo
y unión, inmolando en sus aras divinas ciegos odios, y negra ambición”. Se,
mesmo estando sob o primado da lei, é preciso convocar os cidadãos para que
“jurem” lutar pela união e pela igualdade e é preciso afirmar que essa é a forma
de atuação patriótica, no conjunto de pressuposições que circulam, podem-se
detectar a desigualdade, a desunião e a falta de patriotismo que ameaçam a
frágil existência do direito legal alcançado. Não há certeza de que os direitos
obtidos estejam livres de ameaças. O recentemente realizado pode evanescer
em segundos. A revelação de que o presente não está equacionado e que há
uma meta a ser alcançada é perceptível na comanda de que os “ciegos odios”
e a “negra ambición” sejam imolados em altares sagrados. Só se faria essa
afirmação frente a dissensões internas e, se sobre a independência conquistada,
houvesse interesses em conflito, conferindo privilégios a uns em detrimento
de outros. Ou seja: o invisível de alguns discursos ainda está invisível e o
irrealizado de algumas vontades continua à espera. Contra a superabundância
enaltecedora do presente vivido, que, de um lado, parece constatar a vida
idílica e paradisíaca de um momento perfeito, os recortes destacados indiciam
a ausência de atenção para vontades de futuro que participaram da luta e se
acham silenciadas e recalcadas.
No caso do hino venezuelano, por fim, dois versos em especial chamam
a atenção, pois indicam a irrealização do desejado e a permanência do invisível
sem visibilidade, bem como produzem o efeito de que a superabundância
exaltada ao longo da composição pertence mais ao terreno do ambicionado
do que à existência objetiva. O primeiro verso é “Gritemos con brío muera
la opresión!”. Parece evidente que, mais do que constatar a presença positiva
______ [ 226 ]
da liberdade, o hino conclama para o posicionamento contrário à opressão,
incitando para que, com coragem, o povo lute contra o jugo tirânico, se ele se
fizer presente. O verso atua como um slogan ou palavra de ordem, que carrega
a injunção de combater o autoritarismo e evitar que a opressão aconteça, seja
no presente vivido ou no futuro buscado, donde se pode inferir a sua alocação
no terreno do irrealizado. Como equívoco que provoca fraturas no ritual, o
hino, que deveria ser apenas um gesto de enaltecimento do momento vivido
pela pátria e pelo povo, em momentos cruciais, em que o controle enunciativo
enfraquece, revela a incerteza sobre a presença do estado glorioso e sobre
a necessidade de conquistá-lo a cada instante. O segundo verso se refere a
“compatriotas fieles, la fuerza es la unión”. Como antes, os versos começam
por um vocativo instigador, dirigindo-se aos conterrâneos e os chamando
para partilharem de uma busca e de uma concretização ainda não realizada,
sobretudo, por meio da união, mas pela força, se necessário. É evidente que, se
a união e a força fossem constitutivas da história vivida e se tivesse certeza da
sua perpetuação no futuro, não haveria necessidade de efetuar a conclamação
e transformar versos do hino em palavras de ordem. Ambiguamente, o verso
mostra como é a união de todos que dá a força necessária para alcançar os
objetivos buscados, mas também como é a força que, em face do seu poder
de enfretamento, permite que a união aconteça: neste caso, defende-se, até,
que ela seja usada contra os próprios conterrâneos, se forem uma ameaça à
liberdade e se tornarem uma ameaça opressiva. Seja com palavras de ordem,
com ditames de como agir e a quem combater ou com a ambiguidade que
aponta para a necessidade de conter ânimos mais exaltados por meio da força,
o hino, nos versos citados, revela que a louvação de uma pátria abundante
e vivida em regozijo está situada no terreno do desejado não alcançado e
não no universo da vida positiva e concreta. Mais uma vez, pode-se pleitear
que os hinos nacionais em estudo, nos lapsos, atos falhos e equívocos que
possuem, indiciam o país que se deseja e não que a plenitude de realização
das vontades invisíveis. Eles são fragmentos de orientação de como um país
deve ser e não a revelação inconteste do que ele já é. Eles se apresentam como
peças políticas reveladoras de vontades que, dado que se situam na zona do
irrealizado, esburacam o ritual e mostram onde o sujeito não sabe que está,
pelo menos, conscientemente. Também neste caso, a grandiloquência efusiva
e elogiosa sobre o momento presente não deixa de apontar para o exagero
afirmativo que deve ser lido no diapasão da negatividade ou da desafirmação,
como postulei no início da sessão.
Estabeleci como meta a demonstração de que os hinos sul-americanos
são, na maior parte da sua tessitura, constituídos por uma trama que exalta
______ [ 227 ]
a pátria e produz o efeito de sentido de que ela destina a cada um uma vida
paradisíaca, por meio da incidência teimosa e renitente de um presente vivido
em perfeição. A prática discursiva dos hinos em estudo, portanto, é sustentada
por uma defesa persistente de que o país bafeja a todos com sopros de
felicidade, realização e vida farta. O ritual impõe sobre as composições
a superabundância, a profusão e a prodigalidade. A generosidade altruísta
e interessada no bem coletivo atravessa de alto a baixo o fio do tecido e
predispõe a imagem de um país para todos.
Mas a “constatação” renitente da superabundância profusa, difusa e
grandiloquente da magnitude generosa da pátria, pelo exagero que cria, faz
com que se desconfie da felicidade hiperbólica e do eldorado. Há elementos
meritórios demais para ingredientes positivos de menos, que são vividos pelos
povos desses países (a história passada não deixa de trazê-los à baila) e que,
aqui ou acolá, em momentos desiguais, emergem, mostrando que o irrealizado
continua invisível para muitos e que a magnanimidade da pátria é só um efeito
de sentido provocado pela superabundância afirmada, que nada mais é do que
o desejo de que assim fosse, quando efetivamente não é: eis a desafirmação. A
generosidade ubíqua da pátria para todos é, pois, um efeito do discurso e não
a concretude histórica: ou o real da história.
E, apesar de se saber que os hinos nacionais não são feitos por
qualquer um, que eles passam pelo crivo político de quem está no poder, que
são confeccionados por diversas mãos e que são promulgados como hinos
à força de lei e de ditames legais, mesmo assim, sob todo o processo de
rarefação que os vigia e os cerca de cuidados zelosos, eles falham, eles fraturam
o ritual, como espero ter mostrado na segunda seção, com a hipótese de que a
constatação positiva da realização dos desejos e vontades faz com que o olhar
se dirija para o outro extremo do pêndulo e veja que muito do que se afirma
é só o produto de um discurso otimista, ufanista e desejante, que aponta para
a ausência, a falta e a surdez para as demandas sociais.
Para reiterar meu ponto de vista, os próprios hinos, em versos
“perdidos” no meio de suas teias de fios, como atos falhos, equívocos, erros
ou lapsos, provocam brechas e frestas no ritual previsto, exigindo outros
olhares. Estes versos “indesejados” aparecem como se fossem “mensagens”
subliminares, que se quis que ali estivessem como modo de romper a
censura preocupada com o atacado e não com o varejo ou como irrupção
do inconsciente que produz efeitos cifrados como se fizessem parte de um
código secreto a ser desvendado. Por um lado, um “ensinamento” para a
posteridade e, por outro, a revelação de um presente irresoluto.
Neste sentido, talvez se deva considerar os hinos nacionais como
______ [ 228 ]
peças de proposição política e, por isso, “atos” performativos de injunção de
uma atividade a ser perseguida, e não constatação de um estado de mundo
que corresponde às condições de verdade dos enunciados que são proferidos.
Em face da realidade vivida, sentida e doída, já distante há alguns séculos do
acontecimento das independências, a superabundância exultante da situação
dos países é a desafirmação (a negação da afirmação hiperbólica) do que prega
e a revelação, ao inverso, do que falta trilhar para que o invisível se torne,
antes, visível, para, depois, quem sabe, vir a ser tenuemente realizado. Mas,
como afirma Pêcheux (1990, p. 19), as “línguas de vento” se especializaram
em dar respostas às demandas, distorcendo os efeitos e direcionando-as para
outros objetivos: para que tudo continue como antes.
Contra os efeitos de superabundância efusiva de bens, riquezas
e distribuição idêntica de atendimento aos prazeres e às vontades, ou seja,
contra a constatação positiva de uma era paradisíaca de bem-aventurança (o
que, em geral, afeta a maior parte dos versos dos hinos), em alguns segmentos
das composições, efeitos de sentido corrosivos fazem perceber que o êxtase
e o embevecimento com o solo pátrio não está tão seguro quanto gostaria de
poder aparentar e, oscilante, faz o pêndulo se dirigir para outro polo, em que
o estado de graça que parece ubíquo, às vezes, torna-se apenas um efeito de
sentido: e não um sentido.
Contra a defesa rasteira de que as letras dos hinos em estudo deveriam
ser alteradas em face dos aspectos “negativos” que apresentam, cumpre
entoá-los até não mais poder, para que se tenha a oportunidade de ouvi-los do
que dizem e percebê-los nas falhas que provocam no ritual que tentou cercá-
los e fazê-los servir a uma vontade e a um senhor. Creio que se deve escutá-
los, para que se perceba que o entusiasmo ufanista que os constitui deve ser
lido no seu diapasão negativo e que o irrealizado continua invisível ou tão
mais invisível agora, em face de que, obtida a “liberdade” almejada, afirma-
se que ela contempla a todos e, portanto, não há mais razões para perseguir
objetivos que se acham plenamente equacionados. Não há estratégia melhor
para silenciar um problema do que afirmar que ele não existe.
Como modo de fechar a sessão, gostaria de reiterar a ideia de que, na
superabundância efusiva que é recorrente nas letras dos hinos estudados, a falta,
a ausência e a negação devem ser tidas como o fio organizador das composições
e que se deve dar atenção aos versos que produzem a equivocidade do ritual,
até porque o sujeito autor das letras parece estar, neste sentido, exatamente
onde não sabe que está e a sua vontade não corresponde efetivamente àquela
que transborda do exagero e da grandiloquência com que circunscreve a pátria.
______ [ 229 ]
MUDEMOS, ENTÃO, AS LETRAS DOS HINOS?
Com a hipótese assumida anteriormente (e sem negar que ela seja válida), de
que há um desequilíbrio entre a esfera constatativa e a performativa, com o
exagero hiperbólico da primeira e a ruptura com o ritual da segunda, pode-
se assumir também que, no momento em que os hinos eram compostos,
dado o êxtase da supressão do imperialismo, os hinos fossem mais uma ode
à grandeza conquistada e uma palavra de ordem para a vida futura e não a
pura constatação de um estado de vida que aparecia armado de um dia para
o outro. Tratava-se mais da defesa de uma meta alcançada e outras a serem
atingidas, do que a constatação de um estado de bem-aventurança miraculoso,
que se constituiu de repente. E esse estado de vida em deleite não está, nem
sequer minimamente, realizado atualmente.
Talvez seja necessário perceber que o deslocamento e o descolamento
do eixo dêitico de produção de cada um dos hinos sul-americanos para outro
momento temporal provoca um deslizamento do que era mais, tal qual
ato falho, equívoco ou lapso, a defesa de uma memória de futuro do que a
pura constatação, que acontece, quando eles são entoados mecanicamente,
hoje, quando se vê o hino nacional do próprio país ser executado. O que,
então, era a vibração de uma nota entusiasta e proponente de uma vida em
clima de justiça, harmonia, paz, união e legalidade, aqui, torna-se a asserção
declarativa de que tudo está resolvido e cada um é bafejado pela igualdade,
pela liberdade e pela fraternidade, que alcança a todos, tornando-os iguais
legal e materialmente: o que está longe de ser verdade.
Mudar a letra dos hinos, porque determinados ingredientes lexicais
mais contundentes podem melindrar os sentimentos de um ou de outro nem
sequer tangencia o que efetivamente um hino é para o povo que o toma como
principio identificador; ainda que ele fosse apenas a melodia que, entoada, faz
pulsar mais forte o coração dos que o ouvem, sem saber por que isso ocorre, a
“reviravolta” significaria a criação de uma ferida narcísica que quebra um dos
lugares de encontro dos que tiveram a sorte (ou o azar) de nascer num mesmo
espaço.
O hino nacional, enquanto apenas melodia musical, é o encontro do
ouvido com o que situa, localiza, distribui, aloca e organiza pessoas de uma
comunidade social: a emoção que cerca a sua execução é o encontro de cada
um consigo mesmo e com os outros que são partícipes dos mesmos laços
culturais, ainda que sejam flutuantes, tênues e pouco descritíveis: no limite,
eles podem ser apenas estar no mundo num canto do planeta. Mas há, pelo
menos, quatro razões para defender que a mudança proposta não é de bom
alvitre.
______ [ 230 ]
A primeira se refere a uma questão que diz respeito à constituição
da identidade e da completude subjetiva de cada um, embora a completude,
como se sabe, seja sempre transitória e indefinida. Como tantos ingredientes
que compõem o mosaico, a colcha de retalhos ou o trabalho do colecionador
que constitui a transitividade do sujeito rumo a uma história de vida, sempre
plástica e flutuante, um hino é um dos elementos que contribuem para dar
a aparência de finitude e de pertença a uma centralidade que aloca o sujeito
num espaço definido e lhe garante uma identidade toda particular. Juntamente
com a família, a escola, a igreja, o partido político, os amigos, os vizinhos e a
infinidade de coisas que trafega pela existência histórica de cada um, um hino
é mais um “detalhe” (talvez, o mais importante em termos de espaço) que
imprime sobre o indivíduo uma subjetividade que lhe garante uma pertença
e um modo de ser, mesmo que ele não saiba qual. Ser brasileiro, chileno,
argentino sempre produz um efeito de sentido que aloca e coloca a cada um
numa parte da terra e lhe causa a impressão de que estar ali é viver a vida de
um determinado modo. Ao invés de ser uma fórmula vazia ou um elemento
não saturável, por não ser mais do que uma metáfora vazia (a partir de um
ponto de vista), um gentílico faz com que o sujeito partilhe de um imaginário
que lhe diz o que ele é: que o seja não importa. Alterar, mudar ou “limpar” a
letra de um hino é contribuir para a fratura dos espelhos em que os sujeitos
se reconhecem e fragmentar ainda mais uma vida que, em face do “caos”
da pós-modernidade, tem poucos pontos de reunião e de unificação de um
ego já bastante disperso e rarefeito. Um hino é um ponto de ancoragem que
contribui para que a “insanidade” e a “neurose” não se tornem ainda mais
contundentes. A fratura provocada por meio da mudança na letra de um hino
é a fratura infligida sobre o espelho narcísico que permite a cada um a ilusão
necessária de ser “eu” e não um conjunto disperso de alinhavos difusos sem
nenhum princípio de unificação. Não se trata de afirmar que o ego seja uma
unidade ou de que a consciência daquilo que se é e se quer seja plena, mas a
ilusão de que ele existe e é uno é vital para o ser humano. Alterar a letra de um
hino é, também, fragilizar, ainda mais, uma identidade já fragilizada.
A segunda diz respeito ao fato de que um hino, mesmo que não
o deseje e pareça um slogan injuntivo somente ou uma ode de louvação à
pátria “amada e idolatrada” apenas, constitui-se em peça histórica, porque
está na história e rememora a constituição de fronteiras de pertença a uma
formação social. Acontecimento que se amarra a um momento histórico
específico e que se pronuncia sobre ele, um hino é um gesto de memória do
que aconteceu e do que se deseja, além de circunscrever um presente que,
por mais idealizado que pareça, permite que se entreveja a teleologia buscada.
______ [ 231 ]
Os hinos em estudo são históricos, portanto, de uma forma multifacetada,
pois abordam um passado que aconteceu de um modo trágico, um presente
que se desenha entusiasta (embora se deva desconfiar desse otimismo) e um
futuro que deseja a vida em plenitude para todos, apesar de não estarem
seguros dessa concretização. A alteração das letras faria este delineamento se
perder e, com isso, a revelação dos limites do irrealizado que se fez visível por
momentos (e, às vezes, torna-se distante e recalcado).
Além disso, os hinos sul-americanos, às vezes, de modo tênue e frágil,
mas, às vezes, de maneira contundente, revelam que a geometrização das
fronteiras geográficas, culturais e sociais de cada país (ou seja, das margens
que forjam identidades e sensações de pertença a um modo de estar no
mundo) foi obtida por meio de sacrifícios ocasionados pela luta, pela morte,
pelo sangue, pelo sofrimento e pela dor, o que lhes permite, inclusive, impor
sobre as gerações futuras a dívida de sangue criticada. A reflexão sobre este
ponto não só permite a compreensão de um pouco do que foi a história
de constituição de cada nação, como também que se perceba, criticamente,
a quem beneficiaram as vidas ceifadas e a quem o pagamento da dívida
privilegia, pois o distanciamento histórico de alguns séculos permite ver
que a grande maioria das pessoas se encontra alijada das promessas dos
movimentos libertacionários e das riquezas abundantes que os hinos afirmam
existir dentro das fronteiras geográficas dos países. E, se for necessário doar a
vida para que a abundância (de que alguns usufruem) seja mantida, nem todos
deverão fazê-lo, já que existem os destinados a estar na linha de frente e os
que “devem” conduzir a vida em atividade contemplativa e “estratégica”.
Um hino (e os sul-americanos de modo especial) é, pois, uma peça
(ambiguamente) histórica que constitui um gesto de memória e é imprescindível
que se saiba de onde se veio para se saber para onde se vai. Um povo sem
história (sem memória) pode cometer as maiores atrocidades, julgando estar
realizando um ato absolutamente inocente. Um historiador poderia fazer uma
boa reflexão sobre as condições históricas das independências dos países em
estudo e, talvez, chegar à conclusão que os hinos são uma forma de denegar
a liberdade inexistente. O que as independências latino-americanas obtiveram
foi a liberdade excessiva de uns em detrimento da liberdade de outros, livres
para se submeter a um poder crucialmente mais livre (nas mãos de poucos),
centrado quase que exclusivamente na existência econômica.
Parafraseio, neste momento, uma passagem já discursivizada em outro
ponto. Os hinos em estudo alertam, de modo mais ou menos contundente,
que a intrusão e a “ilegitimidade” de comando sofrerão o revide pronto e
genocida. Entretanto, pode-se ter certeza que o combate caberá a uma massa
______ [ 232 ]
eleita (que nunca será a dos pertencentes às “melhores” castas), a quem se
afirma que a violência só será exercida à guisa de defesa do bem alcançado
e do qual não se pode abrir mão. Mas não se mostra ou se assume que esse
bem não está ao alcance de todos. E, ainda, parece crucial notar que tirania,
despotismo, opressão, escravidão, submissão, jugo e sujeição são assumidos
como se fossem oriundos de fontes externas e não internas (internamente,
parece reinar uma fraternidade universal): o que é sabido que não procede. Em
alguns casos, nos países sul-americanos, as maiores violências e atrocidades
foram cometidas por “compatriotas” e por pessoas de uma mesma nação aos
seus “camaradas”. Um pouco de ambição e de sonhos de poder e riqueza
fixam moradia também na margem esquerda do rio. Não faltam exemplos
atuais de violências que se fazem contra o bem comum, que não tiram vidas
em campos de batalha, mas por meio de aparências nobres e grandes metas.
Acredito que haja imbricações históricas em profusão atreladas
inextricavelmente aos hinos em estudo, para que se alterem as suas letras
sem obliterar os efeitos de sentido que eles possuem e sem que se perca a
possibilidade de reflexão sobre um modo de existência que, às vezes, tem
sido tão exploratória e predadora. Mutilar uma composição da magnitude
de um hino nacional é produzir um apagamento da memória histórica, além
de silenciar e recalcar as vontades de realização que se acham imiscuídas nas
letras, quando se está disposto a ouvir. Defendo, portanto, que os hinos, ao
invés de serem alterados, sejam mantidos intactos e sejam ouvidos a não
mais poder, recebendo atenção efetiva ao que afirmam: muitos teriam muito
a aprender com o que os autores profetizaram e tornaram visível sobre o
irrealizado.
No que toca ao irrealizado (e aí está a terceira razão), como peças
históricas, os hinos dão concretude material ao que se desejava com a
independência, ao preço que foi pago para obtê-la e ao que se ambicionava
ao se tornar livre. A liberdade é mais do que a pura meta de libertação em
face do jugo imperialista: ela é a profecia e o desejo de realização de uma
vida cotidiana pautada na supressão das carências vitais e no atendimento
às necessidades de cada um; as mais triviais: alimento, casa, emprego, saúde,
segurança, lazer; coisas que o povo, infelizmente, para desespero de alguns
administradores públicos, continua a requisitar.
Tendo como fio de reflexão que os hinos são também o irrealizado
que retorna e se deseja ouvido e que a superabundância propalada é mais
o desejo de usufruir da fartura que se presencia do que a constatação de
que a prodigalidade existe, a descrição de um luta sangrenta e de mortes que
compraram a liberdade pode ser tida como a cobrança de que o troco deve
______ [ 233 ]
ser dado à altura, no sentido de indenização das vidas ceifadas para que a
independência viesse e as riquezas enaltecidas fossem postas sob o usufruto
comunitário.
Alguns hinos tocam de modo frontal na violência sofrida por ser livre,
enquanto outros são mais assépticos, denegando-a ou a relegando ao silêncio:
mas ela está nas entrelinhas. Pode-se afirmar que a maior ou menor abundância
enunciativa sobre a belicosidade se faz por relação à maior ou menor luta
pela independência ou ao desejo de fazê-la ser esquecida. Porém, embora
alguns hinos sejam mais amenos no que tange à temática, todos os países sul-
americanos foram assolados pelo genocídio para se tornar livre. Talvez se deva
problematizar a opção pelo silêncio e a tentativa de apagamento da existência
de mártires da liberdade, o que pode, já no momento de produção (coletiva
e censurada, é bom lembrar), ser a tentativa de obliterar um débito histórico
inalienável e que deve ser trazido à tona. O irrealizado deve se tornar audível:
em ruidoso barulho e não sob a denegação dos discursos de palanques.
O que todos os hinos sul-americanos, de um modo ou de outro, não
cessam de repetir se refere ao legado sangrento recebido para que alguns
(naquele momento e parece cada vez mais verdade que é apenas por alguns)
pudessem usufruir de uma vida plena e pacífica à custa das “diez mil tumbas”
que os libertaram (penso que o irrealizado coletivo, no final das contas,
tornou-se o realizado de poucos, com muitos sendo alijados das conquistas
obtidas). Se, em alguns hinos, o derramamento de sangue é uma cobrança
exacerbada de uma dívida perene para com todos os que lutaram para que
os seus tivessem um lugar ao sol e, se, em outros, esta matriz é quase um
sussurro, ela não pode ser apagada: não é porque não seja abundantemente
tematizada que ela não esteja presente e ambicione vir à luz.
De todo modo, há que se perguntar por que alguns hinos enfatizam
a luta, a guerra, a dor e o sofrimento, enquanto outros (como o brasileiro)
preferem pôr o acento na exuberância da paisagem: há que se desconfiar
que alguma forma de controle da memória se acha em jogo. Frente a alguns
hinos, bucólicos por excelência, podem-se fechar os olhos e desenhar a beleza
ímpar que se pretende criar da paisagem: mescla de beleza, arte e majestade.
Reafirmo que há dois pontos de vista que cruzam esses discursos, de uma
forma um tanto paradoxal: enquanto uns cantam as belezas naturais e quase
não falam de luta ou de conquista, em outros, ocorre o contrário: a luta é
enfatizada e a beleza da casa pátria fica recalcada. Mas beleza há em cada
um e luta pela liberdade e pela supressão do jugo ditatorial aconteceu em
todos os países em foco. Penso que seja inegável que os hinos, por causa
da confecção a diversas mãos e da participação de várias forças de censura,
______ [ 234 ]
indicam, não a verdade objetiva e concreta de um mundo descrito de forma
isenta e desapaixonada, mas o resultado de um processo de seleção entre o
que dizer ou não, entre o que silenciar ou alardear: há que se perguntar por
que estes enunciados apareceram e não outros. A superabundância afirmada
é a prodigalidade desejada e a falta e o recalque revelam o que ainda inexiste:
os dois caminhos são a concretização do irrealizado e a afirmação do que
permanece (ainda) invisível.
A quarta razão para a defesa de que não se devem provocar mudanças
nas letras dos hinos volta a tocar na questão da superabundância afirmada,
que, mais do que o concreto já existente é a manifestação do que se quer
e ainda não se tem. A prodigalidade é menos o que já se possui e mais a
manifestação do que se deseja para, supostamente, a vida se tornar plena e
poder ser vivida de modo prazeroso.
Sob a forma de dois eixos (um negativo e outro positivo), os hinos
são hiperbólicos na explicitação do que não se quer e do que se quer: nos
termos assumidos, eles são o indesejado nomeado e o irrealizado colocado
em termos práticos. Temas nucleares das composições dos hinos, tais
como tirania, opressão, submissão, jugo e escravidão, são invólucros que
podem conter qualquer significação: eles perfazem um terreno plástico
que pode ser ideologizado quase que de forma irrestrita, fazendo fundir
e confundir democracia e tirania. Se é necessário extirpar x, como x deve
ser compreendido? Como distinguir tirania de democracia? Como diferenciar
república de totalitarismo? Nas execuções dos hinos atualmente, já na mecânica
da reprodução irrefletida, esses núcleos parecem possuir um sentido evidente
e como se jugo e submissão e liberdade e autonomia possuíssem sentidos
transparentes. Mas são significantes opacos e camaleônicos: eles circulam como
non sense absoluto, como recipientes que podem ser significados de acordo
com a historicidade de uma formação social. Não é óbvio como, superado
o momento de libertação de cada país, eles podem vir a se tornar inteligíveis
na voz de um governante ou partido político, que podem definir um mesmo
gesto interpretativo como tirânico ou democrático. A grandiloquência que
cerca esses ingredientes deveria ser traduzida por referência aos processos
discursivos dos que se encontram à margem e que possuem uma relação
estreita com movimentos libertacionários e não pelos que se fartam de
prazeres. A figura do porta-voz que fala por e no lugar de não pode ser útil para
a tradução.
O mesmo vale, mutatis mutandis, para abstrações (ou “ficções
demagógicas”, como diria Frege) como brio, bravura, coragem, valor, honra,
virtude, altivez, glória e heroísmo e, principalmente, para liberdade, igualdade,
______ [ 235 ]
fraternidade e justiça, dentre outros. A igualdade desejada pelo grande capital
não é exatamente a desejada por aquele que não se acha de posse de condições
de vida material satisfatória e depende da caridade alheia ou de programas
aviltantes de distribuição de renda. É provável que esse não seja o efeito de
sentido de bem comum para todos aqueles que se encontram alijados da
possibilidade de arbitrar sobre a sua vida e decidir o que parece mais plausível.
E, de novo, a arrogância dos porta-vozes que sabem tudo que é bom para os
outros, porque eles, ingênuos, não têm condições de discernir o que lhes serve
e o que lhes faz o bem entra em cena. O que conseguem ver não ultrapassa o
limite dos ditames do direito abstrato e lógico, que age por ignorância plena
da história.
Quem decide o que painel lexicológico significa? Quem diz o que
é ser igual, fraterno, justo e livre? Parece absolutamente defensável que, quando
se trata de preencher esses termos com um sentido (ou efeito de sentido), as
vozes autorizadas pelos meandros da democracia (e a quem elas servem) se
apressam em “dicionarizar” a leitura e empedernir o que poderia ser espaço
de embate e confronto: o resultado é a esclerose do sentido e a cristalização
mineral de algo plástico e legível de diferentes modos em diferentes lugares e
momentos.
Trata-se, portanto, de retirar esses termos de sua impávida arrogância
e de quebrar as cadeias de resistência à mudança de que são cercados.
É necessário que a plurivocidade que os constitui e a plasticidade de que
são feitos seja ouvida, com audição respeitosa, pois eles são saturados de
vozes sociais e a polissemia os habita. Há que se eliminar o porta-voz que se
especializou em produzir línguas de vento e dar ao público o sentido, que é
tão somente o seu efeito de sentido: nada há de audição verdadeira e dialógica
em situações desse tipo, porque aquele que efetivamente deve falar é a voz
recalcada e silenciada: o irrealizado inaudível.
Seja pela via do eixo negativo ou do eixo positivo, os termos que
habitam os hinos em estudo em profusa generosidade devem ser referidos aos
processos discursivos dos que se encontram à mercê das intempéries, porque
ali se encontra um sentido que diz respeito à vida cotidiana e às necessidades
básicas: esta é a voz desvalorizada e que clama por traduzir, para os seus
termos, o que é ser tratado com dignidade e justiça. Há que se desacreditar no
suposto direito universal e abstrato, porque a ótica sob a qual ele foi erigido é
a daqueles que podem fazer a lei pender a seu favor. Esta não é a leitura que
efetivamente diz respeito à vida plena que os hinos desejam, porque a vida
que ela promete está reservada para alguns privilegiados que, efetivamente,
gozam da abundância e prodigalidade: em detrimento de outros. Siga-se,
______ [ 236 ]
pois, o diapasão negativo ou positivo do pêndulo que os hinos constroem,
há que se entender que os ingredientes linguísticos não ocorrem como sinais
transparentes e imutáveis, mas são refeitos historicamente a cada momento,
por diferentes vozes e desejos.
Os hinos em estudo podem (se não devem) ser lidos como a denegação
de uma falta e a superabundância de que tratam é mais a ausência desejada
e cantada aos quatro ventos: a vida que se deseja fazer. Não perceber isso
por meio da negação de problemas que pulsam sob contenções que podem
desmoronar a qualquer momento é negar a manifestação de um desejo, é
coibir a constituição de uma identidade, é recusar a historicidade de um estar-
no-mundo produzido no calor da batalha, é obliterar um gesto fundador de
discursividade, é suprimir a memória que cerca o contorno de uma nação, é
recalcar no esquecimento os sacrifícios pagos para que um povo tivesse uma
fronteira geográfica discernível e sua. A mudança dos hinos não traria nem
a paz aos estádios e nem coibiria a misoginia e a xenofobia existentes. Estes
traços da cultura global atual são resultado mais da exploração de uns sobre
outros e da apropriação exorbitante de uns com o alijamento de outros, do
que da entoação de hinos que pregam a busca do irrealizado e o atendimento
ao desejo recalcado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
_____. Ler o arquivo hoje. (Trad. Maria das Graças Lopes Morin do Amaral).
In: Gestos de leitura. Campinas: Editora da Unicamp, p. 55 a 66, 1997.
TOLEDO, Roberto Pompeu de. Nos hinos nacionais, raiva e ameaças. Veja,
São Paulo, Editora Abril, 24/06/1998, disponível em: http://veja.abril.com.
br/240698/p_142.html. Acesso em: 25/10/2007.
NOTAS
2) Sobre a questão da metonímia em termos de discurso, cabe o alerta de que ela não é tomada
aqui como uma figura de linguagem, que joga com a parte e com o todo, mas como a parte
valendo pelo todo ou o todo valendo pela parte como o delimita e concebe uma formação
discursiva.
______ [ 238 ]
CAPÍTULO 11
“CASCAVEL,
QUEBRADA SOFRIDA”:
AS VOZES IDEOLÓGICAS NA
MÚSICA DO GRUPO DE RAP
“FACE HUMANA DO GUETTO”
os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são autossuficientes;
conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. [...] o enunciado está
repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado
no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. (BAKHTIN, 1997,
p. 316)
O DIALOGISMO
O conceito de linguagem que emana dos trabalhos desse pensador russo está
comprometido não com uma tendência linguística de uma teoria literária,
mas com uma visão de mundo que, justamente na busca de formas de
construção e instauração do sentido, resvala pela abordagem linguístico/
discursiva, pela teoria de literatura, pela filosofia, pela teologia, por uma
semiótica da cultura, por um conjunto de dimensões entretecidas e ainda não
inteiramente decifradas. A natureza dialógica da linguagem é um conceito que
desempenha papel fundamental no conjunto das obras de Mikhail Bakhtin,
funcionando como célula geradora dos diversos aspectos que singularizam e
mantêm vivo o pensamento desse produtivo teórico. (BRAIT, 1997, p. 92).
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limites para o
contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimitado e para um futuro
ilimitado). [...] Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo,
existem quantidades imensas, ilimitadas de sentidos contextuais esquecidos,
mas em determinados momentos do desenrolar posterior do diálogo eles são
relembrados e receberão vigor numa forma renovada (num contexto novo).
______ [ 246 ]
ou com a contextualização, quando se utiliza o discurso indireto, mas que
também podem não estar visíveis, como é o caso da letra da música. Essas
vozes ideológicas que identificamos não aparecem nem em discurso direto,
tampouco em discurso indireto. Elas estão nas entrelinhas, escondidas e são
apreendidas pela memória discursiva. Essa enunciação interessa aos estudos
bakhtinianos.
Em suma, o dialogismo é o resultado do entrecruzamento e do
trabalho de todos os elementos que pretendemos explanar aqui: sujeito,
discurso e ideologia, ao mesmo tempo em que é o meio para o trabalho e
a existência desses fatores e pode ser entendido em sentido amplo, quando
pensamos no diálogo que há entre o sujeito e o mundo, ou em sentido restrito,
considerando o diálogo, enquanto interação verbal, entre o sujeito e o seu
interlocutor.
______ [ 250 ]
Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também
reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe
fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. todo signo está
sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso,
correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o
domínio dos signos: eles são mutuamente correspondentes. (BAKHTIN/
VOLOSHINOV, [1929] 1999, p. 32).
Posto que o sujeito é permeado por várias vozes sociais, ele não é
marcado pela unidade, podendo assumir várias posições, de acordo com a voz
social/ideológica que “soar mais alto”. Isso quer dizer que a ideologia exerce
um papel fundamental e determinante na ação dialógica de constituição do
discurso e do sujeito, porém essas vozes estão mascaradas por um discurso
que se demonstra monológico, genuíno e sem história. Não obstante, a
ideologia está presente no discurso, como parte presumida do enunciado. A
esse respeito, Brait (1999, p. 19-20, grifo nosso) assegura que,
______ [ 252 ]
AS VOZES IDEOLÓGICAS E O TERCEIRO DESTINATÁRIO
______ [ 253 ]
este formula e direciona o seu enunciado.
Segundo Bakhtin (1997, p. 356), o homem busca sempre uma
responsividade que não se detenha ao imediato, ou seja, ao seu parceiro de
diálogo (o segundo destinatário). Ele quer ser ouvido por uma ordem superior,
por um ser maior do que ele e seu destinatário imediato, quer que sua palavra
ultrapasse o imediato de modo ilimitado. O estudioso adverte que
Isso faz com que o elemento cultural, o signo Rap, seja ainda mais
afetado pelos valores sociais locais. O superdestinatário aqui, quer dizer,
a ideologia Hip Hop, é misturado com questões da realidade local, com a
memória discursiva e com a individualidade dos sujeitos, pois, necessariamente,
o Rap tem essa característica da interferência da realidade local que se choca
com uma ideologia universal da cultura.
______ [ 255 ]
Dessa forma, os sujeitos fazem uso da linguagem segundo suas
necessidades e seus valores e estes, muitas vezes, estão mascarados no discurso
e só são perceptíveis se levarmos em conta a memória discursiva. Assevera
Brait (1999, p. 19) que “Bakhtin se pergunta como se relaciona a extensão
extraverbal com a extensão verbal, ou seja, como o dito se relaciona com o
não-dito”. Assim, a análise a partir dos pressupostos do círculo bakhtiniano
buscará perceber o extraverbal, ou seja, as vozes ideológicas presentes no
corpo verbal, ou seja, no material linguístico selecionado.
Segundo Bakhtin (2000, p. 48), “O psiquismo subjetivo é o objeto
de uma análise ideológica, de onde se depreende uma interpretação sócio-
ideológica”. Em outras palavras, estudar o superdestinatário e as vozes
ideológicas que formam o sujeito é fazer suposições sobre seu psiquismo
subjetivo, sempre, é claro, baseando-se na concretude das situações e da
memória social; a interpretação do pesquisador é de natureza sócio-ideológica.
A análise que nos propomos a realizar, portanto, buscará perceber o “outro”
(nós) que se esconde atrás do mascaramento do dialogismo, que é constitutivo
da linguagem, o superdestinatário, o terceiro destinatário, ou, por assim dizer,
as vozes sócioideológicas presentes no discurso.
É importante ressaltar que o próprio olhar do pesquisador sobre o
discurso a ser analisado é um acontecimento dialógico e interfere no resultado,
sendo parte dele. O estudioso da linguagem adverte que
Refrão:
26. Cascavel, quebrada sofrida do Oeste do Paraná
27. Aqui o filho chora e a mãe não vê
28. Truta, pode acreditar!
______ [ 257 ]
48. Com um microfone na mão
49. Me torno perigoso pra político ladrão
50. Não quero caixão lacrado
51. Só quero que o meu povo seja respeitado
Refrão:
52. Cascavel, quebrada sofrida do Oeste do Paraná
53. Aqui o filho chora e a mãe não vê
54. Truta, pode acreditar!
Refrão:
74. Cascavel, quebrada sofrida do Oeste do Paraná
75. Aqui o filho chora e a mãe não vê
76. Truta, pode acreditar!
O CONTEÚDO TEMÁTICO
Há muito ligado à violência das ruas, o rap também exibe uma violência
estética. A força rápida e intensa de seu ritmo, seus métodos de samplear
e arranhar discos, seu estilo agressivamente alto e confrontante dão ao rap
o vigor estético que aumenta a energia e a consciência de seus ouvintes.
(SHUSTERMAN, 2006, p. 70).
O ESTILO
São aqueles que vivem em favelas, barracos, bairros (sem eletricidade, sem
saneamento básico, sem asfalto, sem transporte coletivo...) que apresentam
em suas canções uma fraseologia específica, com sotaque próprio, seco e
anasalado. A criatividade dos rappers fundamenta-se na linguagem comum,
em diálogos marcados basicamente pela oralidade. (CONTIER, 2005)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
______ [ 265 ]
propiciaram às pessoas de diferentes classes sociais a oportunidade de saber,
de conhecer, de estarem informadas. Cremos ser esse o motor que impulsiona
o complexo sistema no qual hoje estamos inseridos: o acesso à legislação, que
hoje pode ser obtida na internet, por exemplo, possibilita que os cidadãos
saibam de seus direitos, como a garantia da educação básica e reclamem pela
sua concretização.
Consequentemente, com o acesso à educação, embora as políticas
públicas voltadas a ela sejam, ainda, precárias, o cidadão alcança o mínimo de
condições que possibilitarão a ele compreender a situação do sistema social em
que está inserido. Atualmente, é muito mais fácil perceber a realidade social e
questioná-la do que há um tempo mais remoto. Isso se deve, principalmente,
ao surgimento da burguesia no século XVIII e XIX e às reformas políticas
desencadeadas no iluminismo, bem como aos avanços científicos e filosóficos
desse período.
O cidadão conquistou o direito da liberdade de expressão e,
conquanto, muitas vezes, as informações e as filosofias que estão em voga
não sejam plenamente assimiladas e compreendidas, há a percepção genérica
de que o sistema capitalista não consegue satisfazer a todos, sequer à maioria.
O anticapitalismo, portanto, é um dos superdestinatários do texto.
Outra voz que se percebe está muito baseada nos pressupostos do
socialismo. Há uma voz que entende que a equidade social é um direito e a
única solução para os problemas é a luta entre as classes. Essa voz é percebida
em todas as canções e se confunde com o próprio discurso do Hip Hop, uma
vez que, certamente, o Hip Hop já aproveita as ideologias de esquerda, como
o socialismo, para se fundamentar ideologicamente. A arte, assim, seria uma
maneira alternativa de a periferia se fazer notar e conquistar a igualdade. Há
uma consciência da desigualdade social e a ideia de uma reforma que pode se
concretizar por meio da arte e não da força bruta.
Em suma, as vozes identificadas foram o anticapitalismo, o socialismo,
a cultura popular e o Hip Hop enquanto arte doe protesto. De acordo com
Bakhtin, essas vozes ditam as verdades que regem o discurso e a conduta dos
sujeitos, tanto que o próprio discurso, direciona-se ao terceiro destinatário e
espera dele a aprovação do discurso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NOTA
______ [ 268 ]
AUTORES
______ [ 270 ]
Paula Fabiane de Souza Queiroz
Graduada em Letras Português/Espanhol pelo
CTESOP, em 2006. Graduada pela mesma
instituição em Pedagogia, no ano de 2009.
Especialista em Educação Especial, pelo ESAP,
em 2007. Mestre em Letras pela UNIOESTE,
2009. Atualmente é Agente Educacional na
SEED/PR e docente no curso de Pedagogia
do CTESOP.
E-mail: paulafabisouza@hotmail.com
______ [ 271 ]
Nelci Janete dos Santos Nardelli
Possui graduação em Pedagogia pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(1997), Especialização em Gestão Pública e
Mestrado em Letras-Linguagem e Sociedade
pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (2009). É Agente Universitário da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
- UNIOESTE. Tem experiência na área de
Políticas e legislações da e para a Educação
Superior, de Desenvolvimento Humano, de
Avaliação Institucional e Planejamento.
E-mail: nelci.nardelli@unioeste.br
Mirielly Ferraça
Formada em Letras Português/Italiano
pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná - UNIOESTE e Mestre em Letras pela
mesma Universidade. Também graduada em
Comunicação Social com ênfase em Jornalismo
pela Universidade Paranaense - UNIPAR.
Possui pós-graduação em Língua Portuguesa
e Literatura Brasileira pela Faculdade Assis
Gurgacz - FAG. Leciona Língua Portuguesa e
Linguística na Universidade Estadual do Norte
do Paraná - UENP, campus Jacarezinho. Desde
a graduação, realiza pesquisas pautando-se
sempre no viés francês da Análise do Discurso,
principalmente com os temas sexualidade e
prostituição.
E-mail: miriellyferraca@gmail.com
______ [ 272 ]
Alexandre Sebastião Ferrari Soares
Possui graduação em Letras pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1989), mestrado em
Letras pela Universidade Federal do Paraná
(1999) e doutorado em Letras pela Universidade
Federal Fluminense (2006). Atualmente
é pós-doutorando pela Universidade de
Coimbra, Portugal. Bolsista da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino
Superior – CAPES. Professor adjunto da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Em
Análise do Discurso, trabalha principalmente
com os seguintes temas: discurso midiático,
político e imagético, focando as relações entre
sujeito, memória, práticas culturais, diversidade
e gênero.
E-mail: asferraris@globo.com
______ [ 273 ]
João Carlos Cattelan
Docente graduado em Letras/Português,
com mestrado e doutorado em Linguística e
Língua Portuguesa, pela UFPR e pela UNESP,
respectivamente. Tem 8 anos de experiência
no ensino fundamental e médio e 28 anos de
docência no ensino superior. Foi professor
e diretor de escola de ensino fundamental
e coordenador de estágio supervisionado,
coordenador de curso, chefe de departamento,
diretor de centro e diretor geral de concursos
da universidade a que está vinculado. Atua no
programa de pós-graduação em Letras (níveis
de Mestrado e Doutorado) da instituição há 11
anos. Possui 2 livros, 5 capítulos de livros e 65
artigos publicados.
E-mail: jcc.cattelan@gmail.com
______ [ 274 ]