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O CÉU
COMEÇA EM VOCÊ
A sabedoria dos padres dos deserto para hoje
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Grün, Anselm
O céu começa em você: A sabedoria dos padres do deserto
para hoje; tradução de Renato Kirchner. - Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
Título original alemão: Der Himmel beginnt in dir: Das
Wuissen der Wüstenväter für heute.
Bibliografia.
ISBN 85.326.2074-4
1.
Ascetismo 2. Espiritualidade - Aforismos e apotegmas
3. Padres do deserto 4. Vida Espiritual 5. Vida religiosa e
monástica I. Título.

98-3814
CDD-248.4
Índices para catalogação sistemático:
1. Espiritualidade: Padres do deserto: Ensinamentos:
Vida Cristã: Cristianismo 248.4

1.0 Introdução
Esta é mais uma obra do monge beneditino que mora na Alemanha e que faz
acompanhamento espiritual com várias pessoas. Ele consegue traduzir esta rica
experiência dos padres do deserto para a realidade de hoje, mostrando-nos que é
possível sermos ‘monges’, mesmos não conhecendo se quer um mosteiro. Vivendo
neste século atual, podemos conservar nossa espiritualidade, mantendo-se firmes no
propósito de conhecer a si mesmo e por consequência conhecer o mestre Jesus.
Mais uma vez nos salienta o autor que este manuscrito não deve servir
somente para uma leitura esporádica, mas sim termos o propósito de nos enxergarmos
como somos: humanos a caminho do divino, do eterno.
A provocação que nos faz Anselm é justamente para olhamos para o nosso
interior e descobrir nossa dignidade real, realidade esta que não pertence a este mundo,
pois é reino de Deus. Nas nossas buscas atuais devemos ir além daquilo que nos oferece
o mundo (provisoriedade), mas sim alçarmos voo para o além terrestre, ansiando aquilo
que é próprio do definitivo.
Podemos correr o risco ao degustarmos esta leitura, exatamente por
querermos mudar a dinâmica da espiritualidade dos padres do deserto ou tão somente
não aceitá-los na sua radicalidade ou com sua forma própria de si conhecerem e
buscarem a Deus.
A obra literária em questão só terá valor se houver a fusão de dois
horizontes. Primeiro aquilo que o livro apresenta como experiência de espiritualidade
que nasceu a 1500 anos atrás ou com a comparação da nossa realidade atual; portando-
nos a um conflito entre estas duas fases (texto e leitura). Caso contrário não acontecerá
mudanças, dado ao simples fato de contemplarmos aquilo que nos interessa, deixando
de lado a parte que nos questiona e nos incomoda. Se a palavra de Deus ainda não nos é
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compreensível, é porque de fato não nos compreendemos. Portanto está aí o desafio:


para chegar ao conhecimento do Criador a criatura precisa conhecer a si mesma.
A reflexão profunda deste escrito pode nos levar a uma experiência mística,
gerando sucessivamente a um saudável espaço para o autoconhecimento e a grande
oportunidade de mudar-se. Dois são os horizontes apontados por Grün; “o céu começa
onde a vida começa.” Para se obter um bom resultado ao ler esta obra precisamos estar
vivos; dando espaço para o desvendamento dos mistérios e rever as cicatrizes para nos
ajudar a descobrir quem somos de fato; aí sim teremos as condições de saber quem
Deus é e contemplá-lo face a face.
Antes de nos adentrarmos de vez neste texto, faz-se mister conhecermos o
significado das várias palavras, começando pela palavra patriarca (Pessoa mais velha
que se respeita, obedece e venera e que tem grande família // nome recebido por
fundadores de algumas ordens religiosas).

Cabe aqui citar alguns nomes de patriarcas e matriarcas, porque os


encontraremos presente durante todo este trabalho. Eis alguns nomes: Evágrio Pôntico,
Cassiano, Pacômio, Atanásio, Agostinho, Sinclética, Teodora, Macário o grande,
Agatão, Bento de Núrsia, Paládio, Amonas, Poimen, Paésio, Isaac de Nínive, Doróteo
de Gaza, Serapião, Basílio Magno, João Colobos, Teodoro de Ferme, Sara, Paulo de
Gálata, Pior, Anub, Pambo e Bessarião.
Vários são os profissionais que neste século vindouro se interessam pela
espiritualidade dos monges. Vai desde a área da administração até a chamada psicologia
moderna. Grün faz a seguinte afirmação:

[...] “Psicólogos interessam-se atualmente por aprender a lidar e a


observar as experiências dos primeiros monges, os seus métodos e os seus
pensamentos e sentimentos. O que eles conseguem perceber é que não se
fala aí meramente sobre os homens e sobre Deus, mas que suas palavras
provêm de um sincero autoconhecimento e de uma verdadeira e real
experiência de Deus.” P. 13

A espiritualidade destes padres do deserto nasceu por volta dos anos 300
a 600 d.C. (depois de Cristo) e trouxe à tona o conhecimento e seguimento da
austeridade do controle do corpo e do espírito na espiritualidade como forma de
autoconhecimento e de encontro com Deus. Pelo jeito eles entenderam que é impossível
compreender Deus sem antes compreender a nós mesmos. Ao nos adentrarmos neste
resumo veremos como os monges encontravam forças no conhecimento de si mesmos:
como controlava as paixões da alma, seus demônios, suas tentações, seus limites –
coisas própria de um ser humano, mas em busca profunda do divino.
Pelo ano de 270, um jovem de nome Antão, no auge dos seus vinte anos,
participando de uma missa, ouviu as seguintes palavras de Jesus. “Vai, vende tudo que
tens, distribui o dinheiro aos pobres e terás um tesouro duradouro no céu; então, vem e
segue-me!” Este é um trecho do evangelho de Marcos 10,21. Antão foi atingido
definitivamente por esta passagem da sagrada escritura, vendeu tudo e retirou-se para o
deserto; onde só existia ele e Deus. Mas, o mais rico nesta escolha radical foi que o
prêmio maior não se findou só no encontro com Deus, mas no encontro consigo
mesmo... quem eu sou para Deus e para mim mesmo?

Grün nos afirma o seguinte:


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[...] “Ali, está ele só com Deus. Todavia, não é somente a Deus que ele
encontra, pois ele encontra-se também consigo mesmo. É então que ele
sente o tumulto do seu interior e é confrontado com sua sombra.” Ele se
refugiou num castelo. O autor prossegue nos mostrando o que significa tal
sombra na vida de Antão: [...] “As pessoas que passam diante do castelo
ouvem uma luta barulhenta. Trata-se de uma luta demoníaca, a disputa
com as forças do inconsciente, as quais se comportam como animais
selvagens. Os demônios lançam-se sobre antão com ruidosa gritaria, mas
ele resiste.” p. 14 (grifo nosso)

Muitas são as vezes que desejamos identificar as pessoas que nos fazem
mal ou que nos perseguem, mas o verdadeiro campo de combate que temos que vencer é
no nosso próprio interior: “Orai e vigiai, porque o espírito é forte, mas a carne é fraca.”
Podemos trocar a palavra carne pela mente. “Orai e vigiai, porque o espírito é forte, mas
a mente é fraca” (grifo nosso). Já afirmava o mestre Jesus... “Tenhais medo de quem
tem poder para matar o espírito.” Tal afirmação nos leva a crer que a luta constante é no
campo do interior. É lá que mora todos os perigos: fornicações, invejas, adultérios,
rancor, ódio, inveja, as paixões da alma, as tentações, os demônios, etc.
Por tal motivo, os monges ansiavam buscar Deus na solidão e até
criavam uma cela; pois os mesmos se sentiam ‘prisioneiros’ de Cristo. Estes homens e
mulheres se aprofundavam no profundo mistério de paixão por este Deus invisível. A
princípio, essa regra monástica se instalou no deserto, mas lá pelo ano 300 foi que este
movimento ganhou expressão e ocupou vários outros lugares para o além deserto.
Entenderam que o deserto poderia ser vivido noutra realidade diversa, dado o fato que o
mesmo deveria se fazer presente mais uma vez no interior de cada monge.
Outra palavra que nos fala muito sobre a experiência dos padres no deserto é
a ascese (No cristianismo e em todas as grandes religiões, conjunto de práticas austeras,
comportamentos disciplinados e evitações morais prescritos aos fiéis, tendo em vista a
realização de desígnios divinos e leis sagradas).
Para que a busca constante de Deus seja frutuosa, o monge precisa no seu
exercício diário superar a sombra que lhe persegue o espírito. Assim, o conjunto de
práticas austeras de autocontrole do corpo e do espírito fortalecem o candidato a
santidade; sem fugir da regra implícita que é a de permanecer na sua tenra humanidade.
Os padres monásticos refugiam-se no deserto porque é lá que estes vivem
a mais tenra solidão, da qual eles observam rigorosamente seus pensamentos e
sentimentos. Eles reservam o domingo para se confrontarem com seus ‘abbas’ (pai
espiritual), exatamente para que na sua luta de purificação não perca o rumo certo. Por
incrível que pareça, tanto o pai espiritual (que é um monge idoso), quanto o mais jovem,
não conversam de outra coisa, senão dos pensamentos e dos sentimentos que tiveram
durante a semana, seja na vida laboral ou espiritual.
Outra palavra que nos vem à tona para uma maior compreensão é apotegma
(Dito ou palavra memorável, lapidar, proferida por personagem célebre; máxima,
aforismo// sentença).
No século IV os monges começaram a compartilhar as sentenças dos
patriarcas. O que se pode observar de antemão é que tais sentenças não são meros
tratados teóricos, mas sim relatos de experiências vividas por eles. As mesmas são
fontes de instrução, mas não devemos tomá-las como máximas universais válidas para a
vida espiritual. Poderemos assim dizer que são palavras de cunho terapêutico adequadas
para aqueles homens que se aprofundavam em conhecer a si mesmos, seus pensamentos
e sentimentos e depois chegarem até Deus.
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O próprio Anselm nos faz a seguinte afirmação a respeito do patriarca


Evágrio:
[...] “Seu intelecto tornou-se tão transparente e o seu conhecimento e o seu
discernimento eram de uma sabedoria tão grande que lhe era possível
diferenciar as diversas ações dos demônios. Ele era muito versado nas
sagradas escrituras e nos ensinamentos ortodoxos da Igreja Católica.” p.
20.

Podemos dizer que o patriarca acima referido foi um perito dos


pensamentos e dos sentimentos, tornando-se um grande conhecedor de suas limitações
e dos seus demônios. O mesmo descreve em sua sentença como se dava essa luta
espiritual. Seus escritos foram censurados pela Igreja, sendo então atribuídos a São
Nilo, tornando-se mais tarde a norma eficaz para a vida moral.

2.0 A espiritualidade a partir da base


Talvez já falamos disto no resumo da outra obra de Anselm (A
incompreensível justiça de Deus), mas cabe-nos ainda salientar que a teologia
moralizante da modernidade tem transmitido a espiritualidade como algo que vem de
cima: apresentando-nos assim grandes ideais a ser conquistados. Eis alguns dos ideais
listados por esta teologia:
1. Abnegação – desprendimento e altruísmo;
2. Autodomínio – controle de si mesmo, equilíbrio;
3. Amabilidade constante – ser extremamente amável;
4. Amor desinteressado – amor incondicional;
5. Liberdade diante da cólera – da ira e da raiva;
6. Domínio da sexualidade – como se a mesma fosse empecilho para se
conquistar o eterno.
Não é difícil de entender que uma casa se constrói da base para cima e
não ao contrário. Caso isso seja feito ao contrário, teremos graves problemas,
começando pela a lei da gravidade. Como dar sustentabilidade ao teto se não temos nem
alicerce e muito menos colunas? O mesmo acontece com a espiritualidade. Se sonha
tanto com o ideal (divino) que desprezamos o humano que é real. Assim, entramos
numa contramão e só teremos atropelos, por não assim dizer que nos tornamos infelizes,
medrosos, assustados e geradores de desgraças alheias. Tanto é que muitas vezes
vivemos só nas nuvens do que eu gostaria de ser e anulamos aquilo que de fato eu sou...
pura humanidade. Esse esforço de mantermos a casa em pé sem colunas e alicerces, nos
causa uma divisão e isto nos leva a sermos seres doentes. Grün nos mostra como isso
acontece:
[...] “Essa divisão muitas vezes se evidencia em nós na discrepância
existente entre o ideal e a realidade. E, por sermos capazes de reconhecer
que não correspondemos ao ideal, acabamos projetando nossas
incapacidades sobre os outros, sendo desse modo por demais rigorosos para
com eles.” p. 21

Essa rigidez toda imposta aos outros, ora até de maneira cruel, acontece
exatamente porque estamos nas alturas da copa da árvore sem raízes e muito menos
tronco. É tristonho ver que muitas vezes até as pessoas mais piedosas reagem de
maneira tão grossa e brutal, que se chega ao ponto de vê-las sentadas nas nuvens. O
recalque de nossas fraquezas, de nossos limites se dá exatamente porque somos ávidos
de desejos pelo o ideal e aí não se percebe que ao tocar a terra com os pés de barro,
poderemos empoeirá-los ou até mesmo molhá-los. Derrete-se, então os pés, criando em
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nós uma deficiência terrível e gerando a contra gosto uma série de pessoas sofridas e
muitas vezes inimigas. Este livro nos mostra que uma espiritualidade esculpida nas
nuvens não passa de uma argumentação feita da cintura para baixo. Ou seja: um sinal
visível de uma sexualidade absolutamente reprimida.
As experiências dos padres do deserto não são meros escritos teóricos,
mas conclusões feitas a partir da própria sexualidade e espiritualidade que eles
experimentaram enquanto caminhavam pelo seu deserto interior. Assim sendo, eles
viram que ignorar o humano e partir para o divino diretamente é um suicídio espiritual.
(grifo nosso). Segundo os relatos dos monges, o dilema do ser humano em relação ao
conhecer Deus, se estabelece exatamente no ponto do autoconhecimento. Afirma o
patriarca Evágrio Pôntico: “Se queres conhecer a Deus, aprende primeiramente a
conhecer a ti mesmo!” (Grifo nosso). Sem este autoconhecer-se, corre-se o risco de
nossos pensamentos a respeito de Deus serem mera projeção.
Os monges afirmam que certas pessoas se refugiam na sua piedade,
fugindo assim da sua própria realidade, aproveitando da mesma para se vangloriarem
dos outros e confirmarem o seu ser ‘infalível’. Certo teólogo viajou distâncias para
conversar com um dos patriarcas Poimen. Ele queria falar sobre coisas do céu e da
trindade de Deus (coisas espirituais). O venerável patriarca não o respondeu em
nenhuma de suas questões. Se sentindo ignorado, o teólogo foi embora irritado; tendo
então sido avisado Poimen que o teólogo estava indo embora e sendo questionado por
não tê-lo respondido, este disse: ‘Ele estava nas nuvens e fala de coisas espirituais. Eu
sou aqui de baixo e falo de coisas terrenas. Se ele me tivesse falado das paixões dá a
alma. Ter-lhes-ia respondido. Mas como fala sobre de coisas espirituais, não sou
capaz de compreendê-las” (apot 582) grifo nosso. Para este patriarca, o caminho da
espiritualidade começa nas paixões da nossa alma.
O exemplo anterior nos remete ao caso da casa construído a partir do
telhado ou da árvore constituída a partir da copa. Uma vez identificadas estas paixões,
temos condições de conhecê-las e combatê-las. Sem este reconhecimento torna-se difícil
saber em que terreno estamos pisando e como vamos dar os próximos passos em relação
ao nosso autoconhecimento.
O teólogo, depois de ter ouvido a resposta do monge questionou: “Que
devo fazer quando as paixões da alma se apoderarem de mim?” Ouçamos a resposta
do monge:

[...] ‘Agora viste corretamente; abre tua boca para estas coisas e a encherei
de riquezas’. Ele muito edificado, disse então: ‘Este é o verdadeiro
caminho.” p. 23

Ou seja: não existe caminho diverso daquele de se tornar santo pela via
da humanidade. É aqui e agora que experimentamos o céu, o purgatório ou o inferno.
Nosso campo de batalha se faz no humano e é aqui e agora que conheceremos novo céu
e nova terra. Portanto, é da base que se constrói o nosso interior. Humanidade e
espiritualidade não se separam. Em momentos diversos se fazem base e telhado para o
indivíduo que quer se converter (voltar ao caminho de origem): a eternidade. Curando
as paixões de nossa alma, nós seremos capazes de reconhecermos Deus assim como Ele
É. Sensibilidade para o caminho percorrido ou a percorrer.
Pai Antão dá o seguinte conselho:

‘[...] “Quando vires um jovem monge que almeja o céu por sua própria
vontade, segura seus pés, puxa-o para baixo, porquanto isso não lhe serve
para nada” (Smolistch, Leben... 32) p. 24.
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Entretanto, cabe salientar que os ideais pode nos levar a muito pouco se
acaso estes não sejam alicerçados na nossa tenra humanidade. Pensar que podemos
trilhar o caminho ideal sem antes passar pela estrada penosa do autoconhecimento, é
pura ilusão; por não assim dizer da falência múltipla de todos os nossos órgãos. Abster-
se do nosso lado sombrio é abster-se de encarar nosso eu interior desconhecido. Anselm
nos relata que:

[...] “Um grande perigo está no fato de querermos fazer uso da meditação
para desviar dos problemas que nós mesmos deveríamos resolver. Problemas
tais como é o caso, por exemplo de nossa sexualidade recalcada, de nossas
agressões e angústias reprimidas. É por isso que, quando certas pessoas
jovens manifestam pensamentos por demais piedosos, eu sempre procuro
mostrar-lhes o outro polo que, concretamente falando, pode ser tanto o dia-a-
dia em sua concretude com o trabalho, a escola, o estudo.” p. 24

Essas pessoas demasiadamente piedosas, muitas vezes traduzem nos seus


atos uma grande e autêntica ansiedade. Contudo essa piedade precisa ser atacada ao
cotidiano da vida e do trabalho. Tantas são as vezes em que os piedosos religiosos
fazem afirmações que não condizem com aquilo que prega o mestre Jesus. Exemplo
disso é vermos uma pessoa que se diz seguidora de Cristo fazer afirmações como:
“Bandido precisa mesmo é morrer... Os direitos humanos só defendem quem não
presta.” Estas pessoas por sua vez esquecem que as pessoas que erraram, tem aos olhos
de Deus uma esperança diferente; como a do filho pródigo. Depois esquecem que esse
mesmo ‘bandido’ tem filhos, esposa, família, mãe, pai, etc. E se estes fossem nosso
parente, a nossa posição radical seria a mesma?
Nos séculos que nos precederam, a teologia ocidental via a sexualidade
como um ponto negativo na vida de quem almejava a santidade. Isto se quer sem pensar
nas necessidades afetivas do ser humano que restava oprimido. A mulher era vista como
uma tentação para tal homem seguir as suas escolhas de castidade e celibato. Afinal foi
Eva que comeu o fruto proibido e o passou para Adão. Esquecem aqui tais teólogos que
a historinha de Adão/Eva foi apenas metáfora para que o hagiógrafo tentasse explicar a
gênesis; mas, isto perdura até o século XXI, trazendo assim para as pessoas muito
sofrimento, pois ao contrário de contemplar o humano que se constitui em cada um de
nós, o massacra com rituais funestos a ponto de execrar o ser prazeroso que o próprio
Cristo viveu.
Tanto é que a maioria das religiões cristãs fazem propaganda de um Jesus
absolutamente divino e como de fato o é; mas, o Jesus humano/histórico precisa-se ser
revelado em nós e para nós, para que de fato valorizemos o humano que apesar de
passageiro nos leva ao definitivo. Não era atoa que todos se maravilhavam com as
palavras e os ensinamentos de Jesus: “Ele ensina com autoridade.” Jesus ia além da lei
de Moisés: “Eu não vim abolir a lei, mas eu vim fazer nova todas as coisas.” De fato,
Jesus curava no sábado não para escandalizar ou simplesmente criar atrito com os
judeus; mas porque ele mesmo afirmava: “O sábado foi feito para o homem e não o
homem para o sábado.” Jesus vivia toda essa coerência de fé, porque ele se conhecia,
sabia que era Deus, mas em momento algum ‘antepunha-se a vontade do Pai e assim se
tornou seu servo, escolhendo livremente aquilo que nós por natureza éramos obrigados
a carregar...’ afirma-nos São Paulo. Cristo fez opções claras. Ajudou as outras pessoas a
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escolherem que tipo de vida gostariam de levar: “Mulher, ninguém te condenou? Vá e


não peques mais, também eu não te condeno, tua fé te salvou.”
São Bento criou a regra monástica centrado em dois grandes pilares:
I. Humilitas = humildade e
II. Humus = humanidade.
Ele se baseia na palavra de Jesus, que diz que: “Quem se humilha a si
mesmo, será exaltado.” Lc 14,11; 18,14
Vejamos o que nos diz Grün, quando nos afirma que só através destes
dois pilares é que passamos a conhecer nosso lado sombrio e a transformar o nosso
interior. Ou seja: Jesus tinha razão quando ele afirmou que o que entra pela boca não é
pecado, mas é o que sai do nosso interior, este sim, se constitui pecado.

[..] “É descendo para dentro de nossa condição terrena (humus, humilitas)


que nós entramos em contato com o céu, com Deus. Pois, à medida que nós
temos a coragem de descer até nossas próprias paixões, elas nos elevam a
Deus. Por ser esta humildade o caminho mais vil e desprezível para se
chegar a Deus, isto é, por ser ela o caminho da própria realidade para se
alcançar o verdadeiro Deus, é que ela foi tão exaltada pelo padre monásticos.
Aquele, porém, que almeja o céu com facilidade, nada encontra além de sua
imagem pessoal a respeito de Deus e suas próprias projeções.” p. 25

Afirma outro patriarca, Isaac de Nínive ‘que a escada para o reino do


céu está escondida em nossa alma’. O autor desta obra acrescenta:

[...] “Mergulha para dentro dos pecados que estão em ti mesmo e, assim
encontrarás ali uma escada pela qual poderás ascender” (Isaac 302). O que
precisamos fazer é, através dos pecados, mergulhar dentro de nossa
profundidade mais abissal. Porque é a partir do mais baixo que poderemos
ascender até Deus.” p. 25

Podemos observar que esta ascensão para Deus é o anseio original da


criatura. É notório aos nossos olhos que antes de Jesus de ascender ao Pai, ele se
humilhou até a morte e uma morte de cruz. Mesmo sendo Deus, não quis se igualar a
ele. No entanto, por amor a Deus e a nós, tomou sua própria cruz e o seguiu. Essa
mesma proposta é feita para nós hoje. Mas, de que cruz Jesus está falando? Mesmo seu
reino não sendo deste mundo, precisa passar completamente por este mundo. “Eles
estão no mundo, mas não são do mundo.” Escapar desta máxima de não pertencermos
provisoriamente a este mundo é atirar no próprio pé. É aqui e agora que se encontra o
reino de Deus, mesmo não sendo deste mundo, o reino se faz presente no mundo. Ora,
se Cristo não fugiu desta realidade, porque nós devemos nos colocar acima de Cristo?
Nos relata Anselm:

[...] “Somente o humilde que está preparado a abraçar seu húmus, sua
humanidade, sua terrenidade, sua sombra, experimentará o Deus
verdadeiro. Por isso sempre de novo podemos ouvir o elogio da
humildade.” Vejamos o relato que o monge faz sobre mãe Teodora: [...]
“Nem a ascese nem as vigílias ou qualquer outra ação penosa
proporcionam a salvação, mas tão-somente a humildade sincera... Vês que
a humildade é um vencedor dos demônios!” (Miller, SabPad 6) p. 26 (grifo
nosso)
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Pai Acário não é vencido pelo diabo e é reconhecido pelo mesmo, onde
no seu relato o diabo alega que somente numa coisa Acário é superior a ele: na
humildade. Relata o anjo do mal: ‘E é por isso que eu não me ponho contra ti.” Já
Poimen confirma o seguinte: “O homem necessita da humildade e do temor de Deus
como necessita da respiração que lhe sai das narinas.” p. 26 (grifo nosso)

Tomemos aqui um certo cuidado para não mascararmos tal significado.


Parece que o melhor contexto para nós é este: virtude caracterizada pela consciência
das próprias limitações; modéstia, simplicidade // sentimento de fraqueza.
Todo e qualquer exercício espiritual feito pelos monges serve para a
busca da humilitas (humildade). Vejamos o que nos afirma Anselm:

[...] “Somente o humilde está preparado a abraçar seu húmus, sua


humanidade, sua terrenidade, sua sombra, experimentará o Deus
verdadeiro... A humildade é o caminho para Deus. Ela é a característica mais
manifesta de que um homem se transformou segundo a medida de Deus.” p.
26

Portanto, se quisermos experimentar esta presença concreta de Deus,


teremos que conhecer bem os caminhos de nossa vida; e a melhor indicação para tal
jornada é ser humilde. Sem essa atitude qualificada de santificadora, nós só seremos
ideal e estaremos bem longe do real. Humanidade e humildade caminham juntas de
mãos dadas, lado a lado em busca do aperfeiçoamento. “Sede perfeitos como o Pai do
céu é perfeito.” Este trajeto é sofrido e longo; o chamamos também de conversão, pois
não é um passo de mágica que brota simplesmente nas emoções e que se pode mudar. É
no concreto do autoconhecimento. É lá onde habita todo o orgulho em nós, que o risco
de se perder é grande.
De antemão pode-se entender que ser humilde é ser submisso. Depende
de que ponto de vista nós colocamos tal significado. Se a submissão vem da subjugação
da pessoa em relação a outra, aí é negativa; mas se a submissão vem da nossa atitude de
não prestar mais atenção nos defeitos, falhas alheias, mas sim, antes de tudo prestar
atenção em nós mesmos, neste caso é positivo. Aqui carece também fazer uma profunda
reflexão sobre a verdade: Perguntou Pilatos a Jesus... “O que é a verdade?” No nosso
caso em específico devemos nos questionar qual é a nossa verdade? Devemos vivê-la ou
ditá-la aos outros? A verdade não tem dono, mas a nossa falta de humildade nos faz
acreditar que nela nós nos fazemos humanos. Equívoco a parte... nasce aqui a
necessidade de vivê-la para si antes de proclamá-la para os outros.
Uma coisa impressionante é que Deus se revela, se faz gente e habita em
nós, não através de nossas capacidades, mas sim através de nossas fraquezas. “É quando
estou fraco é que sou forte”, nos afirma São Paulo. Grün nos faz a seguinte afirmação:

[...] “... Deus passa por minhas fraquezas e vai ao encontro da minha
fraqueza. Na minha fraqueza sou capaz de reconhecer o plano que Deus
tem para comigo e o que ele poderá fazer de mim quando ele realizar
totalmente sua graça em mim.” (Grifo nosso) p. 28

3.0 A espiritualidade da base e o sentimento de raiva


Soa estranho afirmar tal coisa, mas, Deus passa pelas nossas fraquezas e se
encontra com as mesmas para nos resgatar. Como nos diz Paulo: “É quando sou fraco é
que estou forte.” Na medida em que conhecemos e trabalhamos as nossas faltas, nos
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tornarmos mais próximos de Deus. Afinal ele tem um plano para cada um de nós, mas
engano nosso em pensar que poderemos dispensar o humano.
Anselm nos afirma o seguinte: [...] “A espiritualidade a partir de cima, por
exemplo, reage contra a raiva que surge em mim, reprimindo-a ou recalcando-a.

[...] “A raiva não deve existir. Como cristão, eu preciso ser sem amável e
equilibrado. Eu preciso dominar a minha raiva.” (grifo nosso) p. 28

Tal afirmação parece fácil, mas no entanto, cada história de vida traz
consigo uma carga de acontecimentos que que esse controle/equilíbrio torna-se quase
utópico. Mesmo traçando ferrenhas lutas contra a raiva na nossa existência, podemos
observar que grandes figuras proféticas ou reis na história bíblica, viveram grandes
dilemas com esse sentimento da raiva.
Já a espiritualidade a partir da base nos leva ao outro questionamento um
tanto quanto mais fértil. O que Deus gostaria de dizer-nos através deste nosso
sentimento de raiva. O próprio dicionário virtual, Houaiss, nos traduz tal palavra como
sentimento de irritação, agressividade, rancor e/ou frustação, aversão, horror, ojeriza ou
repulsão. Digamos que esse sentimento, outrora definido pelo dicionário e contemplado
no nosso viver cotidiano. É nada menos que um pedido de autoajuda/socorro, que brota
lá do nosso âmago. Cada um de nós preserva no mais íntimo do existir uma ferida e
várias cicatrizes. Podemos entender que tal raiva existente em nós, denota uma realidade
vivida na nossa infância, ou na nossa adolescência; porque não na nossa juventude e até
mesmo na fase adulta.
Para não correr em vão, vamos ser obedientes ao texto original para melhor
entendermos o que o autor deste livro nos propõe:

[...] “É possível que eu encontre, em minha raiva, a criança ferida que está
em mim e que, com raiva impotente, está reagindo diante dos pais e
professores por ter sido ferida. É provável ainda que minha raiva me
mostre que eu atribuí demasiado poder aos outros. Desse modo, a raiva
seria a força para livrar-me do poder dos outros, estando assim aberto
para a Deus.” Prossegue o autor: “A raiva não é algo mau de antemão,
mas pode apontar-me o caminho para o verdadeiro eu.” (Grifo nosso) p.
29

Mas o que isso tem a ver com espiritualidade? Se para chegar até Deus eu
preciso passar por mim mesmo, imagine querer chegar até o Criador, se eu não me
assumo como criatura? Muitos cristão fazem uso da fé, da oração e até da própria
religião para não se olhar no espelho da vida e não se enxergar como verdadeiramente é.
Isso é um perigo, pois chega um determinado momento que a dor mascarada através da
raiva fica escondida, camuflada, entupida nalguma parte do corpo; isso provoca uma
explosão que ao ser detonada machuca perigosamente a própria pessoa e por
consequência o seu próximo.
A raiva causa outras doenças, sendo que a pior delas é a depressão.
Podemos observar que nem sempre esta doença se perfaz nas pessoas deixando-as
inertes e paradas. Outras se acumulam de uma adrenalina que pode romper o mundo
com um soco. Quanto maior for o sofrimento pessoal daquela pessoa, maior será o
estrago interno e externo.
Como diz dom Darci José Nicioli: “Deus nos livre de uma conversão
emocional!” Ou seja: mascaramos nas nossas próprias emoções o sentimento de raiva
que nos assola impiedosamente. Temos casos de pessoas que por vinte anos cuidou da
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dor dos outros incansavelmente, isso para não cuidar da própria dor. Se machucou de tal
forma quando ao acordar depois deste ‘sonho/pesadelo’ que ao olhar para traz, para os
lados e para frente... passado, presente e futuro, o que tinha restado era apenas mais um
ser humano ferido, necessitado de ser acolhido por um bom samaritano. As vezes torna-
se mais fácil colocar óleo nas feridas dos outros, no entanto, doentio mesmo é admitir
que temos feridas e que as mesmas precisam de óleo e de um bom samaritano para curá-
las.
Conhecer a si mesmo para depois chegar-se até Deus. Se somos imagens
dele e até poderemos nos assemelhar a ele, como virar as costas para nós mesmos? “Por
que tiras o cisco no olho do teu irmão, enquanto o teu está atravessado por uma trave?”
talvez seria um exagero, mas, tudo começa e termina em nós mesmos. E quem sabe se
onde está o maior dos nosso problemas, ali não estará também a solução para os
mesmos? Basta conhecê-lo e trata-lo com amor e porque não também um bom
acompanhamento terapêutico e psiquiátrico. Como diz na bíblia: “Ali onde está o teu
coração, está o teu tesouro.” Mas, se nós não dermos um endereço certo ao nosso
coração, torna-se difícil encontrá-lo, ou as vezes ele simplesmente vagueia sem rumo. É
ali que eu entro em contato com o meu interior, minhas raízes; podendo até redescobrir
a vida e a vê-la desabrochar.
Nos afirma Grün:

[...] “O caminho para Deus passa pelo encontro comigo mesmo, pelo
rebaixamento para dentro de minha realidade.” p. 29

De fato, precisamos irmos ao fundo do fosso da nossa própria humanidade


para compreendermos e aceitarmos Deus como ele é em nós. Sabendo que para ele:
“Tudo é possível”, mas que depende estritamente de nós, nossas atitudes e de nossas
opções.
O que mais interessa neste ponto do livre arbítrio é saber realmente escolher
bem, pois de fato somos responsáveis por aquilo que plantamos. Tem atitudes que
nascem bem na consciência e outras que vem do ‘submundo’ da nossa mente que está
ligado as experiências do nosso passado, as vezes nem sempre tão positivas assim. E é
nessa parte que cada ser humano precisa trabalhar. O próprio Doróteo de Gaza disse
certa vez: “Teu entulho, diz o profeta (Jr 2,19), seja teu pedagogo.”
O autor nos afirma que, que Doróteo acredita na importância de nossas
quedas, a ponto de afirmar: “Nada acontece sem Deus. (...) Deus sabia que isso seria
saudável para minha alma, e foi por esta razão que aconteceu como tinha de
acontecer. Pois de tudo o que Deus deixa acontecer não há nada que seja inoportuno;
ao contrário, tudo totalmente conveniente e oportuno.” (grifo nosso) Aqui não se
expressa comodismo algum, no sentido em afirmar que tudo que nos acontece de ruim,
é culpa de Deus. Deus quis assim... Não é o caso. A expressão neste caso traduz outro
dito popular que: “ou aprendemos pela dor ou pelo amor.” Assim sendo, Deus poderá
permitir que mesmo sofrendo poderemos aprender algo de bom; dependendo da forma
que este sofrer nos apreende. É uma das formas disciplinares que temos para nos
relacionar com o Todo Poderoso que se tornou um de nós, para saber exatamente o que
sentíamos enquanto face humana.
Já vimos anteriormente que a inexplicável justiça divina, não se entende
através do outro, mas do próximo mais perto de mim mesmo. Eu... portanto, essa
espiritualidade a partir da base não calcula a distância somente ente eu e Deus, mas
entre: eu/eu; eu/outro (a) e depois entre eu/Deus. O que nos interessa na verdade é que
ele nos conduz para o grande encontro conosco mesmo. Como afirma Papa Francisco:
11

“Devemos dar graças por sermos pecadores, porque assim temos a oportunidade de
experimentar a misericórdia do Pai eterno.” Só que falando assim parece
demasiadamente fácil... mas não o é: aqui precisa ser revisado com coerência a
capacidade de vivermos e não tão somente falarmos a verdade, quem somos e o que
queremos rumo a ‘terra prometida’.
Podemos até encontrar Deus nos momentos de glória e vitória, tanto é que
nem o saudamos, quando assim o encontramos. É quase que uma obrigação da parte
dele tratar-nos bem, providenciar o nosso bem estar; mas, quando somos afetados por
qualquer situação desconfortável (crise), aí, duas são as estradas: ou se aproxima de
Deus e faz dele nosso viver cotidiano, buscando entender onde foi que desvirtuamos no
caminho, ou nos jogamos de vez no fundo do poço. Ou convergimos para o nosso
próprio bem, ou tão somente nos trancafiamos dentro de nós mesmos e perdemos de vez
a cabeça. Daí vem as variadas doenças, transtornos mentais.
Alguém já no auge dos seus cinquenta anos de vida relata: ‘tenho meio
século de vida e estou percebendo que nada sei, nada sou. Apenas: pequenez,
fragilidade, delicadeza, vulnerabilidade e... humanidade.’ Tal relato nos leva a crer que
a vida pode passar despercebida ou escondida na ilusão; mas a dor que sentimos quando
batemos com a cabeça na dura realidade, esta sim, é concreta, real. Já dizia Tomás de
Kempi: “Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade. Exceto amar a Deus e somente a ele
servir.” Podemos até nos refugiar nos nossos ideais. Nos interessar profundamente pela
dor alheia e com uma certa ilusão até tentar curá-la; mas nessa atitude simplesmente
estamos escondendo as nossas dores.
Debruçar-se na janela do tempo e ficar esperando não resolve. Torna-se uma
gestação nua e crua. Olhar para si mesmo com clareza e perceber o nosso entulho
jogado no canto da vida, é se olhar no espelho e percebermos tanto a imagem de Deus,
como a nossa própria imagem. Resta perguntar: queremos ou não encontrar com quem e
o que somos de verdade? Verdade? Mentira? Assim, o caminho que nos é proposto, não
passa se não de querer voltar para as origens. “Tu és pó e ao pó voltarás...”
Portanto, impulsionados a mudança, temos que partir nos lapidando dia-a-
dia, sofrendo ou não; para que um dia possamos nos ver: ‘face a face’ como nós somos:
um grande diamante a brilhar. Este brilho pode ser classificado como: felicidade ou
salvação.

4.0 A permanência no eu
‘Stabilitas’ – estabilidade. Se encontra no significado das palavras o
resultado daquilo que elas de fato representam. Entretanto, devemos buscar o verdadeiro
significado na vida cotidiana. Análise da palavra em tela é justo para que entendamos o
que o autor pretende nos afirmar quanto a estabilidade do nosso interior.

Anselm afirma o seguinte:

[...] “A cela é sinal da morada do monge, um pequeno espaço que o


monge construiu para si mesmo e em que geralmente ele permanece a
maior parte do seu tempo. É nela que ele permanece em oração e
meditação. É também nela que ele trabalha, ocupando seu tempo com
confecção de cestos que ele irá vender no mercado uma vez por mês.” p.
33 (ora et labora - Orar e trabalhar). Grifo nosso

Podemos até citar parte de uma música que diz: “... Este silêncio todo me
atordoa/ atordoado permaneço atento. Na arquibancada pra qualquer momento. Ver
emergir o monstro da lagoa...” Hoje na atual conjuntura sócio política que vivemos;
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era do virtual e da imagem, sociedade do barulho... fazer silêncio é quase um crime.


Não nos importamos mais com os decibéis suportáveis a nossa audição. O que
importa é que não nos importemos com o silêncio. Mas, porque tanto pavor do
mesmo? Cá para nós, o silêncio nos faz ver quem somos lá... no fundinho de nossa
existência. De fato é nele e com ele que vimos emergir o nosso monstro da nossa
lagoa interior. Somos da geração do fone de ouvido.
Já para a espiritualidade nascida e crescida na base, o silêncio é a única
forma de permanecermos na presença de Deus. Silêncio + oração + meditação +
trabalho é = permanecer na presença do Criador, é nos conhecer assim como o somos:
pura imagem e até possível semelhança do Pai eterno. O pior que na maioria do tempo
nós queremos e carecemos mesmo é parecer conosco mesmo. É o que podemos
classificar como o amor pela nossa própria imagem, ou tão somente de narcisismo.
Somos seres humanos, até que somos; mas, o somos pela parte de fora, externa e ocos
por dentro, pois o interior... o lá dentro fica no esquecimento do nada. Como fazer
silêncio num mundo feito de guerras e barulhos? Como escutar alguém que nós não
tocamos e nem vemos e nós não escutamos a nós mesmos, muito menos ainda o vizinho
que habita debaixo do nosso nariz? É partir do silêncio que buscaremos as resposta para
tamanhas questões como a Ascese (No cristianismo e em todas as grandes religiões,
conjunto de práticas austeras, comportamentos disciplinados e evitações morais
prescritos aos fiéis, tendo em vista a realização de desígnios divinos e leis sagradas).
Na vida do padres do deserto, a cela servia exatamente para o exercício da
busca da perfeição: “Sede perfeitos como o vosso Pai Celeste é Perfeito.” Analisemos
bem a frase – perfeitos, porque o Pai é a própria perfeição. Como nos fez ver o
dicionário, a ascese é nada menos que a ‘dedicação ao exercício das mais altas virtudes’.
Isso quer dizer que somos imperfeitos por natureza. Mas trazemos dentro de nós a
imagem/semelhança da perfeição (O Pai). Não poderemos jamais sermos como o Pai;
mas, podemos nos assemelhar a ele. É na estabilidade cotidiana que vivemos a cela e
nesta exercitamos a oração/meditação, trabalhando em busca de construirmos o ‘reino
que também é nosso’.
Os padres do deserto já afirmavam que em nós existem certos sentimentos
que nos deteriora. Para isto devemos conhecê-los bem, para dominá-los e para isto
carece de autoconhecimento, controle e muita paciência. O remédio para tal descoberta
é o silêncio. Já afirmava o profeta que esperou Deus chegar. Houve tempestade,
ventania, rumores, trovões e muito barulho; mas, ao final houve um brisa leve e suave
do tempo. Assim como os monges, nós estamos aptos a viver uma profunda dispersão
espiritual, pois só motivados por pensamentos não chegaremos nunca a Deus. O
permanecer no silêncio nos faz ver quem somos e o que somos de verdade. Isso dói,
machuca e cria cicatrizes; mas, somente assim poderemos nos ver face a face,
contemplar-nos como somos, mas vermos também a riqueza da graça de Deus que
habita em nós, até mesmo na nossa parte negativa. Lá onde somente Deus chega
(dignidade real).
Já falava os patriarcas que o monge não pode fugir de si mesmo. Ele pode e
deve fazer de tudo, menos abster-se de exercitar o seu autoconhecimento. Já falamos
disto anteriormente, mas não nos custa reafirmar com o escrito de Grün que nos diz o
seguinte:

[...] “Não se condena aqui o amor ao próximo. Mostra-se antes, o perigo


que pode esconder-se no querer ajudar o outro. Pensamos que podemos
ajudar todo mundo. Entretanto, por trás disto esconde-se frequentemente
um sentimento de onipotência.” (Grifo nosso) p. 36
13

E é neste ato de sermos o maior é que demonstramos o quanto nós devemos


nos calar, fazer silêncio e nos recolher na nossa cela interior. Suportar a si mesmo, tendo
como alvo ser o menor. “Aquele que quer ser o maior entre vós, seja o menor.”
Outro ponto em que o monges se dedicavam é ao amadurecimento
espiritual, sendo que para isto carecemos da serenidade. Tanto um quanto o outro se
encontra no nosso recolher interior. O que se percebe nesta geração atual é que muitas
pessoas piedosas usam da religiosidade para se esquivar da própria verdade. “Amar ao
próximo a ti mesmo.” É uma verdade. Mas, qual é o próximo mais próximo de ti
mesmo? Sou eu mesmo? Ou será aquele caído a beira do caminho, deposto e maltratado
pelos ladrões? Seria pois, o bom samaritano? “Façam aos outros aquilo que vocês
querem que façam as vocês”. Nosso interior é a cela que tanto precisamos para nos
interagir com o verdadeiro Deus (‘Caminho, verdade e vida’), libertando-nos do nosso
condicionamento de querermos ser quem não somos. Somente humanos. O autor do
livro, nos mostra como somos as vezes incoerentes entre aquilo que pregamos e
vivemos.
[..] “Eu posso até falar e escrever muito bem sobre o meu
relacionamento com Deus mas, quando tudo me é tirado das mãos e
permaneço realmente a sós diante dele, então surge o sentimento de
que tudo é maçante ou a suspeita de que tudo o que eu digo sobre
Deus não tem sentido. No entanto, quando eu sou capaz de suportar
este sentimento, quando não procuro imediatamente refletir sobre isso
para poder escrever algo, mas simplesmente suporto tal situação, é aí
que alguma coisa se põe em movimento que a verdade me atinge. Esta
verdade pode até ser cruel num primeiro momento, mas é ela que
liberta.” p. 39

Podemos afirmar mediante experiência concreta dos padres do deserto que é


a ‘cela se torna uma enfermaria onde nós nos curamos’ de nossas chagas da alma.
Inveja, fantasias, raiva, mentiras, guerras, ódio, violências, desequilíbrios, transtornos,
misérias, fome, descaso, corrupção, politicagem, roubos, sexo, álcool e drogas. É na
cela que o silêncio nos faz descobrir tudo isso em nós, mas sobretudo poderemos
descobrir no além interior a graça de Deus superabundante; ou tão somente descobrimos
quem nós somos: húmus. Para isto temos que enfrentar as paixões que nos dilacera a
alma, a ponto de nos colocar frente a frente com o criador.
Quando permanecemos na nossa cela, sem nos ocupar com a mão-de-obra,
sem oração... nos tornamos quem nós não deveríamos ser: orgulho, desumanidade,
idealidade e nada mais. Na cela podemos encontrar a cura para nossos males e
experimentar o céu que começa em nós mesmos.

4.0 Deserto e tentação

O deserto é considerado como a morada dos demônios. Portanto, ir ao


deserto; viver essa ausência total de alguma coisa (nós mesmos + Deus). É um grande
desafio para os monges viver o deserto. A sequidão que brota dentro de nós quando nos
tornamos apenas húmus... Viramos esterco quando viramos às costas para nós mesmos e
sucessivamente para nossa existência. É como olhar no espelho, porém de costas para
este. É neste espaço de aridez que lutamos contra os nossos d e m ô n i o s. “Orai e
vigiai, porque o espírito é forte, mas a carne é fraca...” lutar contra os nossos demônios
serve também para o benefício do mundo. No entanto, o eu se tornando melhor, se
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conhecendo mais, amando mais, sorrindo mais, etc.; faz com que o mundo ao nosso
redor seja de fato melhor. Aqui surge a f e l i c i d a d e.
A vida é um campo de batalha e não podemos jamais parar de lutar. Sendo
assim, cada um de nós vivemos os nossos conflitos, as nossas batalhas e neste caso em
que Grün faz a seguinte afirmação:

[...] “A vida humana é marcada por conflitos constantes. Nós não podemos
simplesmente vegetar. Devemos enfrentar os ataques que a vida
eventualmente nos apresentar. E nunca haverá um momento em que
possamos descansar sobre os louros da vitória. As tentações, ao contrário,
haverão de nos acompanhar até o fim da vida. Ainda num outro lugar diz o
patriarca Antão: “Quem não tiver sido tentado não poderá entrar no reino
dos céus. Se suprimires a tentação, ninguém se salvará” (Apot 5).”
“...sem tentação o homem estaria no perigo de apoderar-se de Deus e torná-
lo inofensivo e inócuo. Pela tentação, porém, o homem experimenta
existencialmente a sua distância de Deus, sente a diferença entre o homem e
Deus. O homem permanece em luta constante, enquanto Deus repousa em si
mesmo. Deus é amor absoluto, enquanto o homem é continuamente tentado
pelo maligno.” p. 43

Reafirmando a frase do Papa Francisco: “Temos que dar graças a Deus por
sermos pecadores. Porque somente assim experimentaremos a graça dele.” Os monges
veêm as tentações como um fator positivo. Pois a maior obra dos homens é esta: ser
capaz de manter seus pecados diante de Deus. A questão em jogo é suportar as
tentações. Lutar com provações as tentações é essencialmente uma necessidade do ser
humano. Tendo para isto que conhecermos as nossas íntimas paixões. Já afirmava o
apóstolo Paulo: “Deixo de fazer o bem que tanto amo, para fazer o mal que tanto
odeio.”
Na oração do Pai Nosso, temos a parte que diz: “... não nos deixeis cair em
tentação, mas livrai-nos dos males. Amém.” Na oração contém o pedido para livrar-nos
do mal, mas, nas tentações é não nos deixeis cair em tentação. E já que caímos, dá-nos
tua mão para levantarmos e continuarmos nossa batalha. (Grifo nosso)
As tentações não podem ser percebidas apenas como parte negativa na nossa
breve passagem por esta terra, mas como prova de demonstrar quem somos e o que
somos: apenas humanos... e é através desta humanidade que poderei viver o divino que
habita em nós. Poderemos refletir que humano e divino se misturam. É quase uma
simbiose entre criatura e criador. Tal criador desejou compreender a sua obra que ‘se
tornou carne e habitou entre nós’. Podemos fazer um esforço de criar uma metáfora e
nos esforçar para entendê-la.
Deus criou tudo e viu que era bom, mas ao criar o ser humano/divino,
percebeu que era muito bom, dado o fato de tê-lo tornado sua imagem e semelhança... aí
então soprou vida nestes. Determinou que o humano/divino era perfeito, porque o Todo
Poderoso não podia de forma alguma criar algo imperfeito; afinal ele é a própria
perfeição em ‘pessoa’. Só que o tempo passou e o que era perfeito foi corrompido na
natureza da criatura. O limite tomou conta do paraíso e os mesmos perceberam a nudez.
Deus então os deixou viver aquela escolha da imperfeição, no entanto disse: “Quero que
um dia voltes a ser imortais, perfeitos, como eu sou perfeito”. Só que a situação só se
agravou e não querendo destruir sua obra prima, mas não aceitando tal imperfeição
disse: “Vou ver como vivem essas criaturas que eu tanto amo”.
A partir desta decisão, o Criador se ‘multiplicou’. Criou o seu filho e disse-
lhe: vá lá e viva como vive aquelas criaturas ingratas, para eu poder
15

entender/compartilhar com eles tal situação. Portanto, continue sendo a perfeição. Cristo
deu sua própria vida a todos nós. Ofereceu seu corpo e sangue para nos alimentar.
Deixou seu espirito para nos sustentar e nos defender e deixou expressar o verdadeiro
amor do Criador, dando assim as criaturas o sagrado direito de se tornarem filhos e
filhas. Sendo assim, nos tornamos o que somos hoje. Imperfeitos em busca da perfeição
(humano/divino), graças a Deus.
Os monges afirmam que nossas tentações nos conduzem para a nossa
humanidade. Esse conflito interior entre o bem e o mal, se perfazem dentro de cada
pessoa, sendo absolutamente normal, revelando pois, o grande ser humano que somos.
Anselm faz a seguinte afirmação:

[...] “Elas nos fazem entrar em contato com as raízes que sustentam o tronco.
Colocar-se diante das tentações significa: confrontar-se com a verdade. Um
dos patriarcas expressa-se a este respeito da seguinte maneira: “sem as
tentações ninguém será santo, pois aquele que foge do proveito da
tentação também foge da vida eterna. Com efeito, tentações há que
preparam os santos as suas coroas” (N 595).” P. 45 (grifo nosso)

Nas orações dos padres do deserto, eles não pedem que sejam perfeitos e
sem defeitos, mas buscam se familiarizar com seus próprios demônios, encontrando
através deles a verdade da alma, descobrindo assim os abismos de seus inconscientes e
demais sentimentos como: pensamentos homicidas, representações sádicas e as
fantasias imorais. Ele buscam conhecerem bem seus inimigos (que não estão no
externo), mas sim dentro, para depois combatê-los com oração e meditação. A tentação
nos aproxima de Deus e nos faz compreendermos melhor.
Bom saber que ao longo de nossa existência o que não nos faltará será a
tentação. O próprio Jesus foi tentado pelo ter, poder e pelo prazer. No entanto, ele
respondeu com eficácia. “Afaste-se de mim satanás...” Logo depois Deus enviou anjos
para servi-lo. A vigilância é a regra para não cairmos em tentação. Para isto precisamos
nos conhecer bem, pois assim saberemos o momento exato de repudiá-las. Sem as
tentações nós humanos, não sentiríamos o grande afeto que Deus tem por nós. Mais que
afeição é um profundo amor e uma grande misericórdia da parte dele para conosco.
Como ficamos depois que resistimos a tentação? Vejamos o que nos relata Anselm:

[...] “Antes das tentações a pessoa reza a Deus como uma pessoa
estranha. Porém, após ter suportado a tentação por amor a ele sem se
deixar transtornar por ela, logo Deus a considera como alguém que lhe
fez um empréstimo e tem o direito a dele receber juros, e como um
amigo que por causa dele bateu contra o inimigo.” (Isaac 329). P 46

É necessário que reflitamos um momento sobre o escrito do autor.


‘Suportar as tentações’, no entanto, não esqueçamos que deve ser ‘por amor’.
Poderemos questionar: amor a quem? A nós mesmos e sucessivamente a Deus e ao
irmão. Mas, tudo deve partir de nós mesmos. As afirmações acima citadas por Grün nos
mostra que:
[...] “Tais palavras mostram que os monges não tinham medo algum diante
das tentações como também não o tinham diante dos pecados. Antes, o
monge que cai em tentação conquista também um novo tipo de
familiaridade com Deus. Pois, pela tentação, ele experimenta
simultaneamente uma presença de Deus muito mais profunda do que
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costumava experimentar anteriormente. A tentação mantém o monge


vigilante e possibilita que continue a crescer interiormente.” P. 46 (grifo
nosso)

O que carece aqui de se entender é que essa visão positiva da tentação


continua a ajudar-nos ou não. Isso nos ajudaria a vencer a tentação do idealismo.

[...] “A tentação obriga-nos a lutar. Porque sem luta não há vitória. Vencer,
porém, jamais é mérito nosso. Nós precisamos fazer a experiência de que,
através da luta. Cristo age em nós e, de repente, nos liberta da luta
constante e nos dá uma profunda paz.
A questão hoje é se esta visão positiva da tentação continua a ajudar-nos.
Essa visão positivas poderia livrar-nos de uma falsa aspiração à
perfeição... idealismo.” P. 47 (grifo nosso)

Resta-nos questionar-nos: manteremos a casa das nossas vida fundadas


sobre a areia, ou mesmo no auge da meia idade, estaremos dispostos migrar do ideal
para o real? ‘A decisão é tua... a decisão é tua...” Há outro risco iminente que
poderemos correr. O de não vivermos bem com medo de cometermos alguma falha
grave ou leve. Isso é viver com uma deficiência a ponto de nos tornarmos o ‘cego que
não quer ver’. Somos furtados pelo nosso orgulho, dissipando assim qualquer tipo de
humildade, impedindo de vez que Deus haja em nós... Humanos. É assim que
deveremos ser e termos a coragem de assumir, vencendo as nossas tentações; pois só
assim é que veremos ‘a glória de Deus brilhar’. Quem nunca foi tentado, humano não é.
Podemos até colecionarmos um orgulho pessoal de que: nunca mentimos,
nunca traímos ninguém; jamais maltratei alguém... nunca senti raiva ou ódio. E quando
menos se espera, este castelo se desmorona e a realidade nos bate na face nos
convidando para recomeçarmos do marco zero. De fazermos a nossa topografia
espiritual e perguntarmos. Em que ponto estamos? Se o Cristo, sendo Deus feito carne,
presente entre nós, experimentou na pele tal luta; porque então estaríamos isentos de tal
batalha? Devemos pagar para ver? Ou para crer? O tradicional ditado popular nos
afirma: “Ou se aprende pelo amor ou pela dor.”

5.0 Exercitar as mais altas virtudes (nossas qualidades)


Na vida existem dois caminhos: o bem e o mal. “Diga sim quando for
sim, ou não quando for não, porque o morno eu vomito.” Podemos nos enredar pelos
caminhos do somente ‘húmus’, ou podemos acreditar e investir no divino. Tanto um
quanto outro exige escolhas e quando estas são feitas, existem reações. “Para toda ação,
uma reação.” Não devemos nos apegar ao mal que brota a cada dia em nós, mas
exercitarmos a virtude que nos são doadas pela graça divina e edificante do bom Deus.
Isso carece de muito trabalho e luta. Nosso campo de batalha é aqui e agora, pois se
ficarmos esperando uma nova vida para vivermos céu ou inferno... nos tornaremos
mornos e seremos literalmente vomitados.
A vida no deserto, afirma os monges, é uma luta constante contra os
demônios e isto nos exige um trabalho, uma vigilância constante. O verdadeiro monge
não pede nunca a Deus nas suas preces que retire dele as suas tentações, mas sim que o
ajude a vencê-las. ‘Não nos deixeis cair em tentação’, é essa a oração que Jesus nos
ensinou. Pedir que as retire de nós é como dizer: estou pronto, não preciso crescer e nem
amadurecer mais; claro que um dia veremos Deus ‘face a face’, mas enquanto
estivermos neste plano terra, deveremos nos sustentar com a espiritualidade da
humanidade em busca da imortalidade.
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Já ouvimos essa frase antes: “Não existe salvação sem calvário,


crucificação e morte.” Uma vez que o próprio Deus feito filho experimentou essa
realidade, nós então não podemos nos furtar de tal experiência. A princípio nos parece
que seria impossível vencer os limites da nossa própria natureza. Mas, há prova
contrária disto. Os próprios monge nos traduz na prática tal possibilidade. Não podemos
e nem devemos nos entregar as nossas aptidões pecaminosas, porque como origem
fomos criados para a imortalidade. Deus é imortal, nós assim poderemos gozar de tal
virtude, imitando-o em tudo que vivermos aqui na terra (real) e não no terreno do ideal.
Os padres do deserto buscavam nos seus exercícios diários na cela
(oração + trabalho + meditação) o seu próprio estado de espírito interior. Ou seja: o
resultado de todo este esforço de se auto conhecerem, era para experimentar
mentalmente a paz interior; aquele prêmio oferecido por Deus que ao conhecer a si
mesmo, finalizaria no próprio conhecimento de Deus. É um estado de paz interior em
que estamos abertos para Deus. Assim sendo, toda prática do jejum, das vigílias
noturnas, no recolhimento, na meditação das sagradas escrituras; é para se chegar ao tão
sonhado prémio. Paz ao interior... silêncio para escutar Deus passar na brisa suave do
tempo.
Grün nos orienta a vivenciar a seguinte receita para alcançar tal paz:

[...] “Segundo Evágrio, porém, só podemos suportar a luta contra as paixões,


se “nós lutarmos como homens e soldados robustos de rei vitorioso, Jesus
Cristo. (...) Nesta luta, no entanto, é necessário – como arma espiritual – uma
fé firme e uma doutrina segura, quer dizer, é necessário o jejum perfeito, as
ações vigorosas, a humildade, um silêncio que seja pouco perturbado ou
totalmente imperturbado, e a oração continuada...” P. 52 (grifo nosso)

Parece fácil? Como podemos perceber não é bem assim. Vejamos o que
nos continua dizendo o autor desta obra:

[...] “... O que eu gostaria de saber, porém, é se alguém é capaz de continuar


a luta em sua alma e de ser coroado com a coroa da justiça quando sacia sua
alma com pão e água, quando atiça a cólera com rapidez, quando
despreza e descuida da oração e quando se reúne com os heréticos.
Presta pois atenção ao que diz São Paulo: ‘Os atletas se abstêm de tudo’
(1Cor 9,25), (...) Por conseguinte, ao empreendermos esta campanha, não há
dúvida que é importante empregarmos a armadura espiritual e mostrarmos
aos pagãos que nós lutaremos contra os pecados mesmo que tenhamos que
derramar sangue” (Evágrio, Anti 2).” P. 52 (grifo nosso)

Retomando o que disse Paulo: ‘Os atletas se abstêm de tudo’ ... de fato
para se chegar a uma premiação alta, este esportista tem que se sacrificar com muitas
horas de treino e mesmo assim corre o risco de perder por milésimo de segundos. Esse é
um risco e um preço a pagar. Nós como ‘atletas de Cristo’ seguir os conselhos de
Cassiano:
[...] “Também nós podemos ser elevados à categoria de oficial espiritual, se
formos capazes de combater virilmente os vícios, se formos capazes de
nos manter em meio às turbulências de nossos pensamentos, se formos
capazes de colocar nossos pensamentos em ordem através do dom do
discernimento (discretio) se formos capazes de submeter a multidão
inconstante dos pensamentos ao domínio da nossa razão e se, sob a
bandeira salutar da cruz de Nosso Senhor, formos capazes de expulsar
todos os inimigos cruéis de dentro do nosso interior... Quando tivermos
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atingido a categoria de oficial, possuiremos uma força de ordem tal que os


pensamentos não mais nos desviarão do caminho e poderemos demorar-
nos naqueles que nos alegram o espírito”. P. 53 (grifo nosso)

A ascese serve exatamente para nos subjugarmos as nossas próprias


vontades, para sobrar espaço para fazer a vontade de Deus. Só que num mundo onde o
prazer fala mais alto do que o ser, isto torna-se quase impossível. Sem dizer que o
espaço do silêncio para meditar e se olhar no espelho da vida está cada dia mais raro.
Temos que nos tornar um dia senhor dos nossos instintos e comandá-los com tanta
liberdade a ponto da moderação ser a nossa única bandeira. No entanto, seria impossível
conseguir isso tudo pelos nossos próprios méritos. Temos que ter o apoio incondicional
do nosso Deus e para isto precisa nos deixar ser tocado por ele. Vejamos o que nos fala
o evangelho de Marcos:

“...Um leproso chegou perto de Jesus e, de joelhos, pediu: “Se queres, tens
o poder de curar-me”. Jesus cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou
nele e disse: “Eu quero: fica curado!” No mesmo instante, a lepra
desapareceu e ele ficou curado!” grifo nosso

Aqui neste texto temos que nos ater para duas coisas:
I. Naquela época nenhum portador de lepra podia se quer entrar na
cidade ou se aproximar de outras pessoas. Tanto é, que a lei os obrigava viverem
fora da cidade e quando passavam perto de alguma pessoa, deveria gritar para
que a mesma desviasse do caminho;
II. Era proibido por lei tocar no leproso. Este era impuro. Mais do
que contágio, se resguardava a obrigação legal de não tocar no doente.
No entanto existe uma ruptura nas regras, onde tanto o doente quanto Jesus
desobedecem o sistema legal em vigor. Isso para mostrar que as regras de Deus partem
da compaixão e não do legalismo. Tantas são as vezes que usufruímos das lei falsas para
justificar e explicar nossa atitude sórdida. O importante para a consciência coletiva é
que tudo estava dentro da lei.
O que temos para atentar é outro risco da ascese se tornar um ataque de
cólera contra nós mesmos, tendo em vista que neste caso estaremos nos auto
prejudicando. Transformando o exercício em algo absolutamente negativo para a nossa
caminhada, a nossa abertura para o encontro com Deus.

6.0 Virtude x defeito (Calar e não julgar) – Arte do silêncio


Os monges avaliam se a ascese está os conduzindo até Deus, quando eles
aprendem a não mais julgar. Como diz o preceito bíblico:

“Não julgueis para não seres julgados e não condeneis para não seres
condenados...”

Digamos que dois defeitos são imprescindíveis à natureza humana:


julgamento e preconceito. Por mais que o monge jejue com rigor ou exercite suas
virtudes com ardor; o julgar o outro fere profundamente a imagem/semelhança que
somos do Criador e nos tornamos desmerecedores da graça de sermos chamados filhos
de Deus. Não fazer juízo alheio é permanecer em si mesmo. Vejamos o conselho que
um patriarca Poimen deu ao patriarca José:
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[...] ‘Dize-me como poderei tornar-me monge’. E ele respondeu: ‘Se queres
encontrar serenidade onde quer que estejas, então, em tudo que fizeres,
deves dizer: Quem sou eu? E não julgues a ninguém!” (Apot 385)

Esse é um desafio de gigante. Podemos até fugir do outro, mas devemos


ter grandeza de não desprezá-lo. “Por que procuras tirar o cisco do olho do teu irmão,
enquanto o teu está atravancado pelo um tronco?” Mais uma vez podemos notar que
fugir de si mesmo e se esconder nos outros é uma fraqueza humana desnecessária. No
entanto, isso é uma atitude quase ‘nobre do ser humano’. E é lá no calar, no silenciar da
nossa cela interior que praticamos o exercício de conhecer as nossas próprias falhas,
deixando as dos outros de lado. O julgamento não nos proporciona serenidade alguma.
A própria psicologia afirma que quando xingamos os outros, revelamos aquilo que está
em nós mesmos. Anselm nos mostra o seguinte:

[...] “Nós projetamos nossos próprios lados sombrios, nossos desejos e


necessidades recalcadas sobre os outros e os xingamos, ao invés de
mantermos a nossa própria verdade perante os olhos.” p. 59 (grifo nosso)

Devemos dar testemunho daquilo que nós vimos e mesmo assim, melhor
seria que mesmo podendo tocar com a mão a fraqueza do outro, não deveis tocar com as
mãos. Certo monge estava orando e de repente percebeu que um casal estava ao seu
lado. De repente viu que os dois estavam fazendo algo de errado. Então disse: ‘parem,
não veem que estão errando?’ Mesmo assim eles continuaram. Não suportando tal
situação, o monge resolveu cutuca-los com o pé. Ao tomar esta atitude, percebeu que o
casal era nada menos que dois feixes de trigo postos ao seu lado.
Tal exemplo nos remete então a pensarmos mil vezes antes de falarmos
ou pensarmos algo de alguém ou a alguém. Na verdade o monge estava carente e para
não assumir tal carência, mesmo sozinho a refletiu nos feixes de trigo. Como poderia
ser um casal se ele estava no mosteiro? Na verdade aquele monge tocou nas suas
próprias fantasias.
Quantas vezes nós nas nossas fantasias não prejudicamos outras pessoas,
refletindo nelas aquilo que nós gostaríamos de ter ou de fazer? É aqui que surge o
demônio da dúvida e da certeza de falar para os outros aquilo que resta em nós. O
fuxico, a calúnia, a difamação e injúria s encaixa realmente neste caso. Quando estamos
com raiva, talvez de nós mesmos, remetemos para os outros esta nossa ira e além de
pecarmos, cometemos até o crime de dizer que o outro fez aquilo que eu gostaria de
fazer e não tive tanta coragem para fazê-lo. Corremos o risco de remetermos nossas
própria fantasias até para a natureza. É o caso dos feixes de trigo. Anselm nos remete ao
seguinte:
[...] O julgamento dos outros nos torna cegos para as nossas própria falhas.
Calar em relação aos outros nos proporciona uma autoconhecimento
mais lúcido e faz com que paremos de projetar as nossas falhas sobre
eles... Em vez de julgarmos os outros, deveríamos, por meio da caridade,
buscar conquistá-lo para Deus” P. 61 e 62 (grifo nosso)

Dois ditados nos ajuda a refletir o que nos disse o monge:


I. “A língua é o castigo do corpo” e
II. “Quem conversa muito dá bom dia ao cavalo”.
Os monge exalta sempre a capacidade de calar (fazer cessar ou cessar de
produzir qualquer som; silenciar).
Anselm mais uma vez nos mostra que os monges exaltam a arte do calar.
Vejamos tal citação:
20

[...] “O calar é, para eles, o caminho para encontrar-se consigo mesmo, o


caminho para descobrir a verdade do próprio coração. Todavia, o calar é
também o caminho para libertar-se do perigo de constantemente critica e
julgar o outro. Corremos sempre o risco de avalaiar, apreciar e criticar a
todo ser humano que encontramos. E, não raro, nos desobrimos novamente a
criticá-lo e a jlgá-lo. O calar impede de julgar e nos leva a confrontar-nos
sempre de novo conosco mesmos. Ele cria uma barreira e inibe que
projetemos nossos lados sombrios sobre o outro. Os antigos sabiam do
perigo de constantemente tendermos a girar em torno do outro com nosso
pensamentos e boatos. Conta-se que por três anos pai Agatão teria levado
uma pedra em sua boca até conseguir ficar calado (Apot 97); até
conseguir não mais julgar o irmão, nem mesmo com o coração.” P. 61 (grifo
nosso)

Calar-se, significa: Atingir o âmago, a essência de (algo) ou o íntimo de


(alguém), produzindo impressão profunda. Desafio que cada um de nós devemos
exercitar para se chegar a um bom resultado, nem que para isso tenhamos que carregar
uma pedra na boca. Se não sossegamos a língua, não conseguiremos serenidade para o
nosso coração. Muitas vezes perdemos a oportunidade de nos calarmos, uma vez que
escutar seria a necessidade básica. Isto demonstra que como afirma Anselm: “Pois quem
julga os outros ainda não aprendeu a conhecer-se realmente.”
Aqui não se trata somente de um calar exterior, mas de um exercício
interior; mas, para que isto de fato aconteça, temos que crescer no nosso
autoconhecimento. Neste caso é saudável encontrar a pedra certa para tapar a nossa
boca e o nosso coração no tempo certo com a pessoa certa. Através do calar, afirma-nos
Anselm, que é possível aquietarem as nossas agitações interiores.
De fato os monges cumpriam categoricamente a lei do silêncio
(interior/exterior), para se desprenderem dos seus pensamentos e desejos, ou de tudo
aquilo que influencia a vivermos experiências obsessivas. Lá onde o homem não pode
ruir, Deus constrói. Exatamente no silenciar do interior é que descobrimos a nossa
essência e nesta revelamos os rosto de Deus. É por isso que o material nos furta a cor do
espiritual. Necessariamente temos as nossas carências materiais (o humus) é latente,
mas quando a materialidade nos rouba ou tão somente ofusca a riqueza de sermos feitos
para a eternidade. Grün afirma que:

[...] “Então, eu já não me definharei mais a partir da simpatia que ou outros


têm para comigo; então, toda a minha identidade já não dependerá mais do
fato de ser bem-sucedido ou ainda das minhas riquezas.” P.63

Os monges evitam a acídia (melancolia profunda), porque a mesma nos


leva:
I. À lamentação;
II. À caça por culpados;
III. Ao rancor;
IV. À insatisfação constante e à
V. Cegueira espiritual (depressão).
Diante de tal risco, a lição que poderemos aprender destes artistas do
silêncio nos deixar inebriar com o presente, tomando como exemplo o passado e não
nos tronarmos donos do futuro. Através do calar-se, estes monges elevam pensamentos
e sentimentos ao Deus que tudo sabe, mesmo antes que tais sentimentos/pensamentos
nasçam na vida desta pessoa.
21

Portanto, silenciar, não quer dizer apenas ausência de barulho; mas sim
presença de si mesmo e de Deus que preenche a essência do ser humano/divino. Esta
fonte onde cada um de nós devemos beber, está ao nosso dispor, bastando apenas nos
abrir para tal acontecimentos no dia-a-dia. “Crescei-vos e multiplicai-vos.”

5.1 A análise dos nossos pensamentos e sentimentos


Evágrio é especialista no tratamento dos pensamentos e sentimentos (as
paixões). Já afirma o mesmo: “O pensamento é a besta raivosa do corpo.” Vejamos o
que escreveram a respeito deste patriarca:

“Se queres chegar a conhecer todas as tentações que ele experimentou da


parte dos demônios, deves ler o livro que ele compôs contra as objeções dos
demônios. Ali verás toda a sua força e todas as tentações pelas quais passou.
Foi por essa razão que ele as expôs por escrito de modo que, aqueles que
viessem a lê-las, pudessem ser fortificadas e vissem que não somente eles
serem tentadas dessa maneira. Evágrio é aquele que nos ensinou a maneira
adequada de vencer todo e qualquer tipo de pensamento” (Evágrio, OitPens
52). P. 65

Podemos afirmar que uma grande vivência do nosso caminho espiritual,


está no exercício implícito de conhecer as nossas paixões. Precisamos alcançar um
estado de paz e serenidade interior profundo (Apatheia), para atingirmos de fato nosso
auge espiritual. Quando atingimos essa apatheia, observamos que as paixões que outrora
se combatiam entre si, passa-se a se harmonizar entre elas. O próprio patriarca Evágrio
classifica isso como a saúde da alma. Anselm nos mostra que, isso não acontece como
num passe de mágica, mas precisa haver uma harmonia consigo mesmo. Notemos:

[...] “Segundo Evágrio, a alma é saudável quando ela entra em harmonia


consigo mesma, quando está preparada para o amor. Pois somente o homem
que alcança a apatheia é capaz de amar realmente, sim. Sim, porque, na
realidade, a apatheia é o amor.” P. 66

E aqui não se trata do amor da poesia, ou tão somente do amor eros, mas
sim do ágape (amor incondicional), isto até afirmado por psicólogos que seguem a
corrente humanista.
Evágrio é grego, portanto ele traça três âmbitos do ser humano,
inspirados na filosofia grega. Vejamos com detalhe como se dá estes três âmbitos
segundo o patriarca.
a) A parte cobiçosa (epithymia);
b) A parte emotiva (thymos) e parte
c) Espiritual (nous).
Esses três âmbitos são reconhecidos pelo o eneagrama (sistema de
autoconhecimento que tem sua origem no sufismo).
É necessário que se diga que Evágrio associa estes três âmbitos citados
anteriormente a três logismoi (pensamentos sensitivos que podem dominar o homem –
paixões). O patriarca afirma ainda que esses logismoi são vícios que consomem a
pessoa e incita também os nossos demônios, os quais são patrocinadores nato destes
vícios humanos. Ele ainda nos diz que os demônios não têm uma conotação somente
negativa em nossa vida, mas que os mesmos podem se transformar em forças para a
nossa vida. Basta somente que o conheçamos e saibamos lidar com os mesmos de forma
consciente e sensata.
22

O patriarca nos adverte que temos que estar atentos aos nossos pensamentos
e sentimentos. Devemos observar a intensidade deles, quando se acalmam, quando
aparecem ou desaparecem novamente. Se observarmos a regularidades deles, podemos
descobrir quais são os demônios que se tornam responsáveis por eles. Tendo este
conhecimento, afugentamos os demônios, pois os mesmos se tornam raivosos quando
conseguimos com a graça de Deus e nosso autodomínio afugentá-los. Já citamos
anteriormente que podemos até tirar proveito destes, quando sabemos quando e onde
eles nos atacam.
Neste mundo atual, onde a stress nos complementa e a frenesia do cotidiano
nos absorve torna-se difícil entender os nossos pensamentos e sentimentos. Para nós é
importante saber a chegada e a saída dos nossos demônios. Para tanto a auto-observação
se faz necessária para chegarmos a um domínio daquilo que nos embriaga no desenrolar
da nossa existência. Sabendo quais são os demônios que nos atacam diretamente,
poderíamos lutar contra ele, portanto, afirma Anselm:

[...] “É essencialmente importante estarmos informados disso, para que,


quando os mais diversos pensamentos maus começarem a agir cada qual a
seu modo, nós lhe oponhamos palavras eficazes, quer dizer, palavras que
caracterizem adequadamente o respectivo pensamento que estiver em ação.
Precisamos fazer isto antes que eles nos afastem do nosso estado habitual.”
P. 67

Para tanto temos que nos valer de alguns instrumentos de defesa para
chegarmos a este caminho de autoconhecimento. Sendo que o mais importante deles é a
oração. Não aquela encomendada ou prosperamente negocia da com o Criador. Orar,
nada menos é que construir a ponte de diálogo entre criador e criatura. Se nos
apegarmos somente aos nossos instintos, não servirá de consolo quando nós
atravessarmos a tempestade, cujo barco está afundando e Ele simplesmente está
humanamente: dormindo. Ter consciência não é somente o necessário para ganhar a
batalha entre o eu/eu. Aqui precisa tornar-se simplesmente humano; recordando que o
próprio mestre Jesus sabia de sua divindade, mas se fazia servo diante de seu Pai.
As nossas paixões nos joga nos vícios, estes que iremos tratar agora. Nossa
experiência deve servir para aprendermos como controlá-los e como superá-los. Vamos
aqui tratar de três grande vícios: a cobiça, a gula e a luxúria.
Antes de avaliarmos estes vícios, precisamos entender os nossos instintos
básicos, exatamente porque os mesmos nos estimulam a viver. O conhecimento destes
nos leva a cortá-los e ignorá-los, buscando assim em última análise um estímulo em
direção a Deus.
1. Gula – está ligada somente ao comer ou ao apetite
da boca. Não tanto comer em excesso, mas tapar através da boca os
sentimentos negativos. Comer é necessariamente uma necessidade
básica de uma pessoa e serve também para nos estimular o prazer. O
devoramento desatinado das pessoas demonstram que as mesmas
não capazes de saborear o pão nosso de cada dia. O verdadeiro
controle desta gula serve para saborearmos a comida, assim como
outros momentos da vida. A gula nos impede de sentir o sabor da
vida que passa também pela necessidade de alimentar-se. Esse ato
demonstra também que pessoas que passaram fome ou que não
foram bem nutridos, sofrem desta ansiedade e não degustam o
próprio alimento. Pode-se afirmar de antemão que a finalidade de se
23

alimentar é unir-se a Deus... Tanto é que em todas as religiões


existem as refeições sagradas. Nos afirma Anselm que: “o comer é,
portanto, ação fundamental pela qual podemos saborear a Deus;
2. Luxúria – este segundo vício trata-se da cobiça do
corpo. Quem vive uma vida de abstinência fica ainda mais exposto a
este demônio. A sexualidade é uma força determinante no ser
humano. Nela se tem ânsia tanto por: vitalidade, auto superação ou
êxtase. É de suma importância afirmar que a sexualidade é uma das
fontes mais importantes para a espiritualidade. O perigo de tudo isso
é o refúgio da pessoa para dentro de um mundo de aparências; pois a
sexualidade tem muito a ver com a frustação. Assim sendo, a
sexualidade deixa de ser o lugar onde se vive a intimidade do amor e
do êxtase, nem a possibilidade de se unir a pessoa amada, mas
apenas um modo para entrar nas aparentes fantasias que é o da
autossatisfação sexual, ou seja a masturbação. Evágrio não cita
diretamente a união da mulher e do homem através do ato sexual,
mas da fuga para dentro da fantasia sexual. Tornando neste caso a
sexualidade numa ilusão. Diz Grün: “Em vez de me encontrar uma
pessoa real e deixar-me envolver completamente por ela, utilizo a
sexualidade para representar fantasiosamente meu próprio mundo,
um mundo de aparências onde tudo é maravilhoso, onde eu não
preciso levar ninguém em consideração, mas fico tão somente a
minha sexualidade.” Neste caso explícito a sexualidade não é
vivenciada verdadeiramente, e acaba-se fugindo dos esforço de
entrar em contato com os outros e de unir-se a eles com cuidado.
Neste espaço acontece a transformação da pessoa em coisa
(coisificação), onde fere os outros em sua dignidade. Isto leva a
rebaixamento da pessoa humana ao nível de mercadoria. Evágrio
mostra que a sexualidade é absolutamente positiva, ao contrário de
algumas pessoas que a rejeita – bem administrada pode nos levar ao
reencontro com Deus, mas se for mal usada pode ser um mau
instrumento, assim como a gula da comida para se fugir da
realidade; como a ira e a desilusão muitas vezes é tapada pela
comida. Muito momentos são marcados pela falta de encontro e de
amor, sendo apenas compensadas pela sexualidade. Isso tudo na
verdade faz mal para a pessoa, retardando seu processo de
humanização, transformando a sexualidade num bloqueio em
direção a Deus, ao passo que nos deveriam leva-lo até ele. Somente
quando há uma integração da humanidade com a sexualidade,
através de uma via religiosa é que a espiritualidade se torna viva.
3. Cobiça – sabemos que a ambição de possuir é
essencial ao ser humano. Nesta aspiração surge a ânsia por
tranquilidade. Mas, ao contrário do que se pode pensar... “as posses
podem também nos possuir...” Anselm nos faz ver que: “O homem
que não possui bens é comparável como a águia altaneira voando
livremente pelo céu, sem qualquer preocupação. Mas o rico
certamente se pode dizer: “Aquele que tem muitas posses está preso
e amarrado à corrente como um cachorro.” Nossa cobiça pelas
posses, jamais poderá ser satisfeita. Pois quanto mais posses
possuirmos, mais ainda a ansiedade nos levará a busca da
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tranquilidade, acumulando mais ainda. Temos que voltar o nosso


olhar para a nossa riqueza interior. Para o tesouro onde traça, nem
ferrugem alcança. Tendo em vista que esse tesouro não é visível aos
olhos humanos, fica do segundo plano; pois na atual realidade o ser
humano vale pelo o que possui a nível de bens materiais. “Somente
quando nos voltarmos para essa riqueza interior é que descobriremos
Deus em toda a sua potencialidade existente em cada um de nós, e
assim nos tornaremos tesouros. “O tesouro está onde estar o teu
coração.” A pergunta que não cala é: onde está o teu coração?
Corremos o risco nos dias atuais de criar uma demonização das
posses e uma ideologia da pobreza. Isto não nos ajuda absolutamente
em nada. Muitas são as vezes que a pobreza é confundida com a
falta de cultura ou às vezes como a negação da vida. A verdadeira
pobreza é saber lhe dar com a aspiração das posses e não deixar-se
escravizar-se por elas. O valor interior é o pilar para conseguirmos
galgar o desprendimento do querer possuir, libertando-nos da cobiça
de querer mais e mais.

Vimos como estes três vícios podem nos paralisar, ou: tão somente podemos
tomar consciência dos mesmos e aproveitá-los ao nosso favor. Tudo depende de como
administramos nossos pensamentos e sentimentos.
Agora passaremos ao âmbito emocional do ser humano, onde o patriarca
Evágrio cita três logismoi (pensamentos sensitivos que podem dominar o homem; as
paixões e vícios que podem dominar a pessoa). São eles:
1. Tristeza – esta aparece sempre quando não
realizamos os nossos desejos. Muitas vezes ela vem acompanhada de
sua amiga cólera. Muitas vezes este sentimento vem de lembranças
angariados no passado. Quando a pessoa não resiste a estes
pensamentos e os deixa ser levados categoricamente por eles,
mesmo embora na imaginação, este se apoderam da pessoa e o
mergulha numa tristeza profunda. Como este passado não pode se
tornar mais presente, a pobre pessoa se escraviza, tornando-se cada
vez mais abatida. Grün nos relata que: “Se por um lado a aflição
pertence essencialmente ao amadurecimento humano – como o luto
e como a assimilação de experiências de perda -, por outro lado a
tristeza como autocompaixão é estéril. O ser humano se refugia na
autocompaixão quando ele não consegue realizar os seus desejos”.
Para o patriarca Evágrio a tristeza consiste sobretudo na dependência
infrutífera do passado. É uma remoer-se desnecessário, pois não
recuperaremos aquilo que perdemos ou nunca tivemos. É um grande
perigo refugiar-se no passado diante da realidade presente, uma vez
que este passado jamais voltará a ser realidade. “A vida só pode ser
entendida para trás; mas precisa ser vivida para frente.” Diz Soren
Kierkegaard. Enquanto passivamente vivemos a tristeza, ao
contrário, a cólera é uma reação ativa. Esta por sua vez é considerada
como um demônio.
2. Cólera – na cólera, nós seres humanos podemos
ser dominado completamente por uma outra força. Evágrio
considera a cólera a mais forte das paixões... “é uma ebulição da
parte irascível da alma e uma indignação contra quem lhe fez algum
25

ultraje ou contra quem se presume que o tenha feito. Ela deixa a


alma furiosa o dia inteiro, mas sobretudo na hora da oração que ela
domina a mente, como a imagem do rosto que a contristou.” Este
sentimento pode literalmente se transformar em ressentimento,
provocando assim durante a noite, as piores experiências. Até
mesmo o corpo fica debilitado por ela. Traz consequências na
alimentação, no estado físico debilitado e até mesmo terríveis
imagens durante o sono. A cólera não é meramente uma agressão,
pois as agressões têm um significado absolutamente positivo. Elas
têm a capacidade de regular a relação de proximidade e distância.
Afirma Anselm: “A cólera é agressão incontrolada: a pessoa sendo
incapaz de pensar com clareza, passa a ser dominada por ela. A
cólera atrapalha-o em sua oração.” Grifo nosso. É uma espécie de
possessão. Isso cria uma dificuldade enorme da pessoa se distanciar
daquilo que a feriu. Este demônio devora a alma humana. Esta
cólera, segundo nos afirma a psicologia pode até nos levar a um
câncer; pois engolimos tanta raiva que nosso organismo não
consegue expeli-la a ponto de sermos carcomidos.
3. Acídia (enfraquecimento da vontade, inércia,
preguiça, melancolia profunda) - os monges consideram a acídia
como os piores dos demônios. Este tem a capacidade de corromper
o monge interiormente. Ele é considerado “o demônio do meio dia”,
tornando-se assim o mais pesado de todos. O monge sente na
acídia que o dia não é feito somente de 24 horas, mas sim de 50
horas. Tornar-se longe e pesado o dia, levando assim o monge a
querer fugir, sair de sua cela; tendo em vista que o demônio faz com
que o monge sente aversão de sua cela, ao seu estado de vida; vindo
logo a seguir a necessidade do padre olhar para fora da janela e
desejar o mundo exterior. Foge do trabalho manual, da caridade
outrora praticada aos irmãos e acredita piamente que ninguém mais
o poderá consolá-lo. Leva-o a desejar outros lugares e outro tipo de
vida. Deseja uma vida mais branda e menos penosa, assim como o
próprio trabalho manual. Vencendo este demônio, os demais se
torna mais fácil superá-los. Não sobreviverá a luta e o monge
encontrará novamente uma estado de paz e inefável alegria.
Compete ainda afirmar, segundo Anselm o estrago realizado em nossa vida
é grande. Analisemos tal relato:

[...] “A acídia é a incapacidade de fazer-se presente no momento atual. Não


se tem apetite nem para o trabalho nem para a oração. Nem mesmo saborear
o não fazer nada. Pois sempre se está com os pensamentos num outro lugar.
A inquietação interior, a incapacidade de aproveitar o momento atual
corrompe a pessoa interiormente. A acídia é uma expressão da fuga da
realidade. Por isso é necessário estar com os pensamentos constantemente
num outro lugar ou então ou então estar fazendo algo diferente. Todavia, a
pessoa torna-se incapaz de realmente deixar-se envolver com algo ou com
uma pessoa.” P. 77

Necessita ainda citar que este demônio é considerado o do ‘meio dia’, que
simbolicamente poderemos compará-lo com o da meia idade (50 anos). Nesta fase
perde-se o prazer pelas coisas e atitudes costumeiras, então surge uma grande demanda,
26

que é a de se perguntar: para que tudo isso? Tudo quanto foi produzido e vivido parece
aborrecê-lo. Não sabe ao certo com o que ocupar-se, ficando tão somente ao léu;
tornando assim uma pessoa cínica e se sente no direito de criticar tudo e todos, não
tendo prazer para mais nada. Essa experiência da meia idade deve levar a pessoa a
orientar-se de maneira absolutamente nova, fazendo um movimento de crescimento ao
contrário do que vivera antes – ou seja: agora do exterior para o interior, descobrindo
novos valores em sua alma para que estes possam dar um novo sentido a sua nova etapa
de vida.
É necessário apontar ainda que a acídia também afeta os jovens, levando-os
ao marasmo do fazer nada, se perdendo ao longo do tempo na ociosidade e terminando
findando nos vícios das drogas, do álcool, do sexo e da violência.
A acídia nos leva a:
1. À lamentação;
2. À caça por culpados;
3. Ao rancor;
4. À insatisfação constante e
5. À cegueira espiritual (culminando assim na depressão).
Devemos agora averiguar com esmero os três logismoi que nos afetam na
esfera espiritual; já que anteriormente avaliamos os logismoi na esfera emocional.
São eles:
1. Ambição – é um contínuo e profundo desejo de se
vangloriar-se diante dos outros. Não faz nada para si, senão para ser
aplaudido, reconhecido pelos demais. Tudo é feito para se mostrar
para o público no geral. Este pensamento é um companheiro deveras
difícil. Ele aparece em pessoas que gostariam viver de fato
virtuosamente; despertando o desejo de compartilhar com os demais
suas lutas, suas dificuldades, para os demais possam de comprazer
delas. Aqui o pensamento não parte de si próprio, mas do desejo de
ouvir continuamente as opiniões dos outros, tornando-me um
escravo assíduo do juízo das demais. Assim, esta pessoa busca a
dignidade de estar sendo sempre aplaudido. Grün nos mostra que: “a
busca do reconhecimento se introduz em tudo que fazemos, até
mesmo em nossa ação mais piedosa.” P. 79 O importante neste caso
é se livrar desta escravidão do que pensam os outros da gente. Tal é
que pessoas com sessenta ou até setenta anos ainda estão presas: ao
que pensam ou esperam de nós. Isso não é viver, mas ser vivido.
2. Inveja – aqui a pessoa se torna dependente de um
pensamento: não sou capaz de encontrar outra pessoa sem
comparar-me com ela, é a contínua comparação com os outros.
Aqui procura-se a desvalorização do outro para promover a minha
auto valorização; a partir disto cria-se um bloqueio doentio em torno
de: sua aparência, inteligência e até mesmo a fraqueza. Pode suceder
ao contrário, quando a pessoa não está sendo bem sucedida, começa-
se a autodesvalorização de si mesmo, restante apenas o êxito aos
outros. Isso dissipa-se o fato do eu não conseguir restar comigo
próprio, vivendo uma insatisfação com ele mesmo e deixo morrer
assim qualquer sentimento de dignidade... levando-nos a dois
caminhos: ou a uma concorrência ferrenha contra o outro, ou a uma
depressão profunda.
27

3. Soberba (hybris) – tornam as pessoas cegas. A


pessoa soberba é tão dona de si, a ponto de criar sua imagem ideal,
recusando assim encarrar a própria realidade. Assim se refere
Anselm quanto ao sentimento da soberba: “O demônio da soberba é
aquele que provoca na alma as piores quedas. Ele seduz o monge a
não procurar em Deus a razão de suas ações virtuosas mas apenas
em si mesmo; e a considerar a si mesmo como a causa de todo bem
que se faz e a si inchar de orgulho diante dos irmãos, considerando-
os tolos por não o terem em tão alta estima.” P. 79 Esta atitude toda
vai acompanhada de uma profunda tristeza (considerada a última dos
males), levando-o sucessivamente a perturbação mental e até a
loucura; que joga no ar uma legião de demônios.
Anselm nos ajuda a entender com mais afinco como é o comportamento do
ser humano que se esvai no demônio da soberba. Apreciemos:
[...] “Pela hybris o ser humano ingressa no mundo aparente de seus ideais, a
ponto de chegar a perder o contato com a própria realidade. E isso o torna
alienado. C. G. Jung chama esta atitude de inflação: A pessoa se envaidece
de ideais e representações que, de fato, não lhe pertencem. A inflação
sempre acontece quando nos identificamos com imagens arquetípicas, por
exemplo, com a imagem dos profetas, e acabamos proclamando: “Eu sou o
único que consegue perceber e que se atreve a dizer a verdade”. Ou, então,
identificamo-nos com a imagem do mártir: “Eu não sou compreendido e
preciso afinal sofrer, porque como Jesus sou tão diferente, porque respondo
pela verdade sozinho”. Tais palavras, em geral, podem até soar como
piedosas, mas por detrás delas está a hybris de querer ser como Deus ou
como as pessoas a quem Deus chamou de uma maneira especial.”
Sim, uma tal hybris provoca cegueira. Como profeta, eu sou cego para minha
própria realidade. Digo ao mundo o que é correto e, entretanto, não me
conheço a mim mesmo. Eu me recuso a encarar-me a mim mesmo. Jesus
cura o cedo de nascença cuspindo no chão e esfregando-lhe a lama
carinhosamente nos olhos, como querendo dizer-lhe: “Tu também foste
tirado da terra. Reconcilia-te também com a sujeira que está em ti e em teus
lados sombrios. Sê humano, pois então poderás ver novamente. Porque
enquanto negares tua condição terrena, também não serás capaz de ver”. P.
80

Portanto, numa escala categórica podemos demonstrar como a pessoa pode


se apresentar:

Ambição Inveja Soberba (hybris)


A A T
pessoa não vive, apenas é pessoa não vive para si. Se orna-se cego para o próprio
vivida. Não é o si que torna escrava do que eu real, vivendo tão
interessa, mas é o acham e do pensam os somente o seu eu ideal.
reconhecimento do outro outros diante de suas
que determina sua atitudes.
existência.

5.2 O Tratamento de nossas Paixões


28

Depois de estudarmos sobre os noves logismoi, devemos agora nos ater ao


tratamento dos nossos sentimentos & pensamentos. Para cada tipo de
pensamento/sentimento tem um tipo de tratamento. Aqui nós iremos falar de três
instintos básicos e suas respectivas curas:
a. O comer;
b. A sexualidade;
c. E a cobiça.
Ambos são transformados através:
a. Ascese (conjunto de práticas austeras e disciplinadas);
b. Jejum (abstinência ou privação física);
c. Cobiça (desejo ardente e imoderado de conseguir alguma coisa).
Neste caso específico, reprimi-los (pensamentos e sentimentos) não nos
ajuda em nada, antes nos atrapalha e muito. O melhor caminho para encará-los é a
disciplina (conduta que assegura o bem-estar dos indivíduos). Nesta linha disciplinar,
podemos até formar os nossos instintos, para que eles possam estar à nossa disposição
como força em potencial. Superamos as tristezas quando nos afastamos da
dependência do mundo, quando nos libertamos das correntes que nos aprisiona, quando
de fato vivemos na prática a liberdade interior.
Nosso dia-a-dia é preenchido de ira, cólera e rancor, portanto, temos que
ter nossas armas para lutar e transformá-los em aliados cotidianos. Para isto temos que
antes de irmos para o repouso noturno, nos livrarmos de tais sentimentos; para que os
mesmo não venham atrapalhar o nosso sono e permanecer para o dia seguinte como
insatisfação difusa. Evágrio, o patriarca nos diz que:

[...] “Não deixe o sol se pôr sobre a cólera, senão os demônios virão durante
teu descanso noturno, irão atormentar-te e, desse modo, haverão de tornar-te
ainda mais covarde para o a luta do dia seguinte. Pois as alucinações
noturnas surgem comumente através da influência agitada da cólera. E não
há nada que torne o homem mais apto a abandonar a sua luta do que quando
ele é incapaz de controlar suas emoções” (Evágrio, TratPrat 21) p. 82

Os monges nas suas pequenas experiências nos mostram que sentir raiva é
uma forma de se manter longe de quem nos fez mal e saber separar o joio do trigo, ou
seja: o que é meu (sentimento/pensamento) e o que é dos outros, que por ventura pode
ser colocado sobre os nossos ombros. Devemos valer da cólera de forma positiva, pois
há exemplos de pessoas que foram violentadas e no lugar de sentir raiva o agressor,
sentia culpa por tal ato ter acontecido. Na medida que essa raiva surgiu, tal pessoa se
libertou distanciando do ofensor e separou os seus próprios problemas, ao invés de se
melancolizar na culpa. A raiva neste caso é o melhor remédio para curar a ferida
causada por tal ato.
Aqui vão três conselhos que o patriarca Evágrio nos dá para vencer tais
demônios que nos atormentam e nos separa de nós mesmos e de Deus.
O primeiro é que devemos ser constantes (perseverantes) para vencer a
acídia. Devemos permanecer em nossa cela e suportar o que acontece em nosso interior.
O patriarca afirma que: devemos aceitar o que a tentação nos oferece, pois ela é a maior
de todas. Mas a mesma é o resultado de uma maior purificação da alma. Fugir diante
de tais conflitos torna o espírito acanhado, covarde e medroso. P. 83
Na medida que eu suporto a minha inquietação interior e passo a conhecê-la
bem, observo qual é a sua agitação, observando então que ela tem o seu sentido. Aqui
posso usar a disciplina, assumindo a mim mesmo como ‘dono’ da situação. A
inquietação deve existir, mas a mesma deve me levar até Deus e não me afastar dele.
29

Me reconciliando com ela, a mesma purifica a minha alma e me dá uma nova clareza
interior.
O segundo conselho é a ORAÇÃO. Evágrio nos adverte que:
“Quando a acídia nos tenta é bom que, entre lágrimas, dividamos
nossa alma em duas partes iguais: uma que anima e outra que é
animada. Nós semeamos sementes de uma esperança inabalável em
nós quando cantamos com rei Davi: ‘Ó minha alma, por que estás
aflita e tão inquieta dentro de mim? Espera, pois eu ainda haverei de
agradecer-lhe, meu Deus e Salvador, a quem eu contemplo!’ (Sl
42,6)” (Evágrio, TratPrat 27). P. 84

O patriarca acima citado criou também o método antirrético, não somente


para o caso da acídia, para as demais situações. No método citado, a pessoa escolhe uma
palavra da bíblia contra cada pensamento/sentimento que possa nos adoecer,
embaraçando-nos diante da nossa liberdade, do amor e da vida, contrapondo a todas
estas situações. Portanto, todo aquele (a) que se apega aos seus pecados do passado, se
tornando uma pessoa baixa e confusa, deve usar o preceito bíblico que diz: “Quem está
em Cristo é uma nova criatura. O velho passou e um novo mundo se fez”. A palavra
bíblica vai transformando pouco a pouco a nossa tristeza e a autocompaixão. Assim
sendo, a palavra de Deus nos coloca em contato com uma força positiva que está
contida em nós, através do Espírito Santo que atua em cada um de nós, nos dando um
novo ânimo.
Para superarmos o sentimento da ambição, o remédio citado é o da
recordação. Lembrando de onde viemos e quais são as paixões que temos que lutar;
atribuindo o mérito a Cristo que nos amparou nesta luta. Recordando-nos sempre do que
vivemos, teremos a certeza que não temos garantia alguma se enfrentarmos a batalha
sozinhos, mas, apoiando na Graça divina, termos êxito. O demônio da ambição e da
soberba estará sempre presente em nós; neste caso devemos vigiar e recordar da nossa
condição humana, buscando a misericórdia divina.
No entanto, o remédio mais eficaz para vencer nossos demônios juntamente
com a oração é a CONTEMPLAÇÃO. Ela nos une a Deus, ajudando-nos não
afirmarmos em nossas própria forças, mas se apoiando na base fundamental que se faz
presente em Deus
Os patriarcas nos mostram que quanto mais nos familiarizarmos com nossas
paixões e reagirmos diante dela, mais êxito haveremos de obter. Até mesmo um diálogo
com estas paixões é possível, uma vez que possamos fazer uma integração positiva em
nossa vida. Os monges citam duas sentenças, as quais avaliaremos agora:

Primeira sentença:
[...] “Um irmão aproximou-se de pai Poimen e lhe disse: ‘Pai, tenho
inúmeros pensamentos e eles me põem em perigo’. O patriarca conduzi-o
para fora e lhe disse: ‘Estufa o peito e para os ventos!’ Ele porém respondeu:
‘Eu não consigo fazer isso!’ Então o ancião lhe disse: ‘Se tu não consegue
fazer isso, também não és capaz de impedir que o pensamentos se
aproximem de ti. Resistir a eles, porém, é tarefa tua”’ (Apot602) p.86

Nesta sentença dá para observar que não somos responsáveis para parar
nossos pensamentos. Assim, não somos ruins quando eles nos sobressaltam de
improviso. O que nos cabe portanto, é discernir como reagir diante destes. O ódio e o
ciúme chegam e nada podemos fazer, senão controlá-los para não ferir a nós mesmos e
aos demais. Temos que reagir diante da presença inesperada deles.
30

Segunda sentença:
“Certa ocasião, pai Poimen perguntou ao patriarca José: ‘Que devo fazer
quando as paixões se aproximam de mim? Resistir a elas ou deixá-las
entrar?’ E o ancião lhe respondeu: ‘deixa que entrem e luta com elas’. Tendo
regressado a Scete, permaneceu em sua cela. Mas eis que veio para Scete um
tebano e disse aos irmãos: ‘Perguntei a pai José: Quando as paixões se
aproximam de mim, devo resistir ou devo deixá-las entrar? E ele me
respondeu Não deixes absolutamente, que entrem, mas apaga-as
imediatamente! ‘Ouvindo pai Poimen que pai José havia falado desta
maneira ao tebano, levantou-se e foi ao encontro dele, em Panefo, e lhe
disse: ‘Pai, eu te confiei meus pensamentos e a mim respondeste de um
modo e ao tebano de outro modo’. E o ancião lhe respondeu: ‘Não sabes que
eu te amo?’ Ele disse: ‘Sim!’ E o ancião lhe disse: ‘Não me disseste: fala a
mim como se falasse a ti mesmo?’ Ele respondeu: ‘Sim, é verdade! ‘Então o
ancião lhe disse: ‘Quando as paixões entrarem e lutares contra elas, dando a
elas e delas recebendo, tornar-te-ão mais provado. Porque eu falei a ti como
se falasse a mim mesmo! Outros há, porém, aos quais não convém que as
paixões se aproximem deles. Eles precisam afastá-las imediatamente!”’ p. 86

No caso das paixões existem dois caminhos diferenciados de tratá-las. Um é


se familiarizar com elas e deixar que entrem para serem melhor observadas, assim sendo
poderemos descobrir a força que ela tem sobre nós. Talvez ela até me diga qual é o tipo
de ansiedade que reside e para onde gostaria de nos levar especificamente. Neste caso o
diálogo com a paixão nos mostra que nós não devemos ser sua morada. A raiva é um
bom exemplo disto. Ao sentir raiva, não devemos reprimi-la, mas tentar descobrir se
não estamos dando demasiado poder a pessoa que nos fez possui-la. Esta, neste caso
específico nos ajudaria a nos livrar da pessoa que semeou tal sentimento em nós.
Os monges aceita que o pensamento em si não é ruim. Eles são mais
misericordiosos consigo mesmos. Para eles cada pensamento tem um sentido. O que
precisa fazer é descobrir a força que se esconde em cada um deles e usufruir desta força
para não ficarmos mais subjugados a eles. O sentimento de ódio em si não é mal, mas se
o reprimimos, perdemos então a única oportunidade de me livrar da pessoa que me fez
ter tal sentimento. Se não libertarmos dele, este termina nos destruindo. Não somos
realmente responsáveis pelos nossos pensamentos, mas sim pelo tratamento
(importância) que damos a eles.
Mas existem outros pensamentos/sentimentos negativos, os quais nos alerta
pai José; que devemos cortá-los pela raiz... Exatamente para que estes não se instalem e
nem se quer se aproximem de nós. Devemos estarmos alertas para quando nos vermos
pensando naquelas pessoas que nos fizeram sofrer (a razão da minha raiva); será de
grande valia reprimi-los, proibindo-os que se instalem em nós. Ou então, deverei ter a
certeza de como enfrentá-los, reagindo conta estes demônios. Se ao contrário, nós o
mantemos, eles vão se apoderando de nós e vai crescendo a ponto de nos destruir;
necessitando assim afastá-los ou destruí-los.
Somos nós que devemos aprender qual método usar para enfrentar nossos
demônios, de maneira especial o da acídia. Podemos até meditar sobre nossos
sentimentos, mas neste caso aconselha-se que tenha uma outra pessoa para nos escutar.
Uma coisa é certa: reprimir e recalcar nossos sentimentos e pensamentos negativos, só
nos fazem escravos deles.
O diálogo com nossos pensamentos é necessário sobretudo no caso do
MEDO. Ele sempre tem seu sentido próprio e quer nos dizer algo. Pois, o medo nos dá a
medida exata do que devemos ou podemos fazer. O medo geralmente nos bloqueia,
31

sendo que neste caso nós devemos conversar com ele. Muitas vezes o medo nasce de
um ideal de perfeição.
Em última instância, o sentimento que nos provoca tal medo é o sentimento
da soberba (comportamento excessivamente orgulhoso; arrogância, presunção) ... Neste
caso em explícito, o diálogo com este sentimento, nos ajudaria a conduzir-nos ao
sentimento de humildade (humilitas); dando vazão a reconciliação conosco mesmo, com
nossos limites, fraquezas e falhas... Até mesmo afirmando que: podemos até cometer
erros, mas não temos a obrigação de poder tudo.
No entanto, existe o sentimento do medo que não está ligado à falsas
atitudes da vida, mas sim, a uma ligação com o ser humano; que o caso do medo:
1. Da solidão;
2. E da perda em relação à morte (em cada pessoa existe uma parcela
considerável ao medo da morte).
Quando conseguimos examinar este tipo de medo a fundo, ao admitimos
porquê de fato ele existe; em meio ao nosso medo podemos experimentar uma paz
profunda; transformando-o também em serenidade, liberdade e paz. Também temos a
faculdade de olharmos para a nossa vida, nosso casamento, nossa profissão, nossa
doença e perguntaremos: Será que dou conta de tudo? Esse tipo de medo hoje está
muito presente na vida dos jovens, sobretudo de assumirem compromissos como
casamento e até mesmo a profissão.
Há momentos em que poderemos até brincar com o nosso medo. Algumas
pessoas tem medo o definitivo, chegando assim a ter medo do futuro. Deverei
permanecer para sempre neste convento? Neste casamento? Imaginá-los até as últimas
consequências nos permite representar as paixões. Assim, tiraremos a força que elas se
perfazem em nós. A mesma coisa acontece com as fantasias sexuais que representam
que existe ansiedade de viver, de abandonar-se, de entregar-se. Se eu luto contra elas, ou
as reprimo, estas me perseguiram, mas se formos capazes se senti-las até o fim, elas
poderão transformar num impulso de vida, nos impulsionando em direção a Deus. O
exemplo de pai Olímpio nos faz ver como funciona tal exercício.

[...] Conta-se que pai Olímpio não fugiu da ideia de se casar e tudo pensou
em seus mínimos detalhes. E mais: “fez uma mulher de barro, olhou para ela
e disse a si mesmo: ‘Vê, esta é tua esposa. De ora em diante precisarás
trabalhar muito, a fim de sustentá-la’. E trabalhou muito. No dia seguinte,
preparou novamente uma porção de barro e de forma a uma filha, e disse
para si mesmo: “Tua mulher deu a luz! Agora é necessário que trabalhes
ainda mais para conseguires sustentar e vestir tua filha’. Fazia isto a ponto de
extenuar-se e, então, disse a si mesmo: ‘Não posso mais suportar o trabalho’.
E disse ainda a si mesmo: ‘Se já não podes suportar o trabalho, então
também não queiras uma esposa’. E, vendo Deus seu esforço, tirou-lhe a sua
luta e ele alcançou tranquilidade” (Apot 572). P. 92

Na medida que conseguimos fantasiar nossa sexualidade, mas a fazemos


não somente pelo lado do prazer, mas também do lado da realidade nua e crua (que ele
deveria trabalhar para sustentar mulher e filha); esta mesma fantasia deixa de ser
ameaçadora e partir de tal experiência podemos tratar nossos desejos de maneira sóbria.
Isto nos faz entender que o casamento não se esvai somente em ‘lua de mel’, mas que o
mesmo possui uma parte de realidade em que precisa ser vivida e enfrentada.
O próprio rei Davi teve o seu método para superar seus próprios demônios.
Ele dividiu sua alma em duas partes: a tristeza e a alegria; a doença e a saúde. Nestas
duas esferas da alma precisam dialogar uma com a outra. E a energia vital para que este
32

diálogo venha à tona; devemos buscar nas escrituras palavras que nos fortifiquem, que
nos faça ‘guerreiros’ contra os inimigos que nos destrói por dentro e por fora. Assim
seremos vitoriosos por Cristo, com Cristo e em Cristo.
O dito bíblico: “Orai e vigiai, porque o espírito é forte, mas a carne é fraca”
... Nos demostra que temos que montar guarda, vigiar o nossos pensamentos,
exatamente para saber se os mesmos nos leva para a vida ou para morte; se nos torna
saudáveis ou doentes. Ao fazer esta triagem podemos enveredar pelos caminhos do
Senhor, gozando assim de sua presença em nós. Esta prática nos serve no entanto para
aqueles pensamentos que nos aparecem constantemente, nos tirando a paz e a
serenidade.
A própria psicologia nos mostra que vivemos sempre estes dois lados: medo
e confiança, amor e agressão, tristeza e paz, força e fraqueza e muitas vezes se nos
fixamos em um pólo, como o medo, por exemplo, podemos chegar a tal ponto de não
nos sentirmos dignos de nós mesmos; torando difícil analisar quaisquer um dos
sentimentos acima referidos. Tudo ao final se resume nisto:
1. Não sou capaz;
2. Tenho medo;
3. O que os outros pensam de mim ou
4. Vou cometer uma gafe.

Já citamos anteriormente que outro método funcional é ter outra pessoa para
falarmos sobre os nossos pensamentos e sentimentos. Se assim não o fizermos,
colocamos tudo em uma panela de pressão; os reprimimos, chegando ao ponto de uma
explosão e tudo vai para os ares. Vejamos o conselho de um dos patriarcas para
sabermos realmente lidar com tal situação:

[...] “Quando estiveres sendo importunado pelos pensamentos impuros não


os encubras, mas manifesta-os imediatamente ao teu pai espiritual e aniquila-
os. Pois à medida que encobrimos nossos pensamentos, eles se multiplicam e
tornam-se ainda mais fortes. Assim como uma serpente ao sair do seu
esconderijo logo sai correndo, assim o pensamento logo se esvai quando é
manifestado. E assim como um caruncho destrói a madeira, assim também o
pensamento mau destrói o coração. Aquele que manifesta seus pensamentos
fica curado imediatamente; mas aquele que os esconde, fica doente da
soberba” (Grün, Eireden... 61,23)”.

5.3 A formação espiritual da vida

Para os monges, suas vidas devem ser preenchidas por regras e exercícios,
pois uma espiritualidade sadia necessita também de um corpo sadio. Portanto, são três
os exercícios dos patriarcas:
1. Jejuar durante o dia todo até a noite;
2. Calar-se;
3. Muito trabalho manual.
Quando permanecemos livres no curso de nossos pensamentos e
sentimentos, sem procurar um confronto com os mesmos, poderemos ser contagiados
interiormente por eles e assim, sem que o percebemos, somos governados pelos nossos
impulsos inconscientes e perdemos toda a nossa liberdade.
Anselm Grün mostra-nos uma realidade que devemos apreciá-la, pois pode
nos servir como um bom exercício espiritual. Nos diz ele:
33

[...] “Todas as tardes repetem-se numerosos dramas quando os maridos


retornam para a casa, trazendo consigo todo o caos de sentimentos negativos
do local de trabalho. As mulheres se alegram-se com seus maridos que
voltam para o lar. Eles, porém, estão cheios dos pensamentos do trabalho. E,
assim, não há encontro, falam sem se entender, descarregam seus problemas
que trazem de outros lugares. Neste momento em que se está a caminho do
lar, seria um bom exercício não precipitar as coisas, a fim de libertar-se
cuidados e conscientemente das emoções do mundo do trabalho. Aí, então,
poder-se-ia encontrar a família que está à espera em casa, de uma maneira
realmente aberta. Então, estar-se-ia presente e desperto para aquilo que de
fato move as pessoas no lar”. P.103

Os três acima especificados, nos mostra que devemos buscar nos exercícios
sugeridos a perfeição para os nossos sentimentos e pensamentos. O jejum não está
ligado somente a abstinência de comida, mas também de prazeres que nos acompanha e
nos consome durante todo o dia. Para algumas pessoas ficar sem comer é tão fácil, há
indivíduos que consegue até se privar de um certo excesso de líquido. Mas na verdade o
que nos falta é a capacidade de jejuar aquele sentimento que nos conforta o ego e nos
joga na soberba. Desde o mais pequeninos deles até os pensamentos ou sentimentos
gigantescos. Já o calar-se, não somente com a voz exterior, mas também interior. Para
os monges o calar deve estar acompanhado da renúncia. Chegando a perfeição dos dois,
será o necessário para o crescimento espiritual do monge. Para tanto, só chegaremos a
perfeição ao calarmos com renúncia, será através da humildade. Outra luta que temos
que traçar para sermos bondosos como o Pai do céu é bondoso. Já trabalho manual,
nos remete a uma frase de Lutero que disse: “Cabeça vazia, casa do diabo”. É no
trabalho manual que o monge se exercita contra seus demônios. Se a narração do
Gênese diz que Deus trabalhou, nada mais nobre que com nosso suor possamos
construir o reino através do labor de nossas mãos.
No entanto, há uma recomendação por parte dos padres do deserto que nos é
plausível. Recomenda-se prestar muita atenção na contrição exagerada. Claro que temos
que nos arrependermos de nossos pecados, mas o que não podemos fazer é não
prestarmos atenção demasiadamente em nossas faltas e sim mais em Deus. Lamentar-se
do passado nos leva a uma tristeza que nos excluem da magnífica presença de nosso
Criador... Podendo jogar-nos de vez na acídia.
A humildade mais uma vez é nossa chave mestra para conseguirmos
conquistar o lugar perdido junto a Deus. Sem ela podemos correr o risco de fazermos
cobranças a Deus o então submetê-lo aos nossos pensamentos e vontades. Outro
exercício que nos é oferecido é a despreocupação. O monge se exercita dizendo a si
próprio: eu não tenho preocupação. Esta constitui na essência primordial do ser
humano. Fazendo este exercício nós chegaremos a acreditar piamente na bondade
misericordiosa de Deus, que se preocupa conosco. “Olhai os lírios dos campos e os
pássaros do céu... eles não d´ceifam e nem colhem, mas não morrem de fome”.
Esvaziando a nossa mente das preocupações, abriremos espaço para Deus se fazer
presente em nós. Não existe estilo de espiritualidade saudável se não existe vida
saudável.
No monastério existe uma regra de vida alternado em trabalho e oração.
Essa regra atinge por exemplo:
1. A divisão do tempo;
2. A alimentação;
3. O trabalho;
4. A moradia e o
34

5. Relacionamento transparente com um patriarca.


Quando nos damos o prazer de organizar a nossa vida, não necessária na
vida dos monges com essa radicalidade, poderemos encontrar um certo equilíbrio que
nos leva a uma espiritualidade e a uma saúde reais. Nossos rituais marcam como o
nosso dia foi vivido: com ou sem proveito. Rituais saudáveis colocam-nos em ordem e
nos dão uma certa satisfação a ponto de darmos forma à nossa própria vida.

5.4 Mantendo a morte diariamente diante dos olhos

Morrer é fácil... O desafio maior mesmo é viver e bem. Termos consciência


de nossa morte nos torna interiormente mais vivos e mais presentes. Nos afirma Anselm
que: “O pensar na morte também nos possibilita viver e experimentar conscientemente
cada momento como dádiva da vida e saboreá-la dia a dia”.
Na vida monástica, o desejo ardente pela morte, os levam a estarem mais
próximos do Senhor, lhe conferem até uma certa jovialidade, levando-os a uma tenra
alegria, superando facilmente tristezas e estreiteza da alma.
O morrer para o mundo nos identifica plenamente com a tarefa que devemos
executar, fazendo com que a nossa autoestima dependa de nós sermos ou não capazes
de realizá-la, não podendo dominá-la. Nós perdemos nossa liberdade de ser, quando nos
fixamos na tarefa que nos bloqueia. Morrer significa abandonar a identificação com
determinada tarefa. Isto demostra que já não dependemos da forma como tal tarefa seja
executada. A psicologia transpessoal considera esta técnica atualmente como o processo
de desidentificação. Isto é: observamos nossos pensamentos e sentimentos, mas não
nos identificamos com eles. Assim como sentir raiva, mas não ser a própria raiva.
Roberto Assagioli desenvolveu o método da des-identificação. Vejamos:

[...] “Observo meus pensamentos e sentimentos; meu medo, por exemplo.


Sinto o medo, mas nesta hora coloco-me, por detrás dele como uma
testemunha imóvel e como um si-mesmo intocável e inatingível. Esse núcleo
interior, o si-mesmo espiritual – como o chama Assagioli -, não é atingido
pelo medo e pelos sentimentos que se imprimiram no meu domínio pessoal.
A des-identificação me liberta da obrigação de ter de realizar a tarefa com
perfeição. A des-identificação é, segundo a psicologia transpessoal, a
verdadeira terapia. Enquanto nós nos identificarmos com algum problema,
ele será o nosso problema constante. Não só nos tornaremos realmente
livres do problema quando pararmos de nos identificar com ele. “A
des-identificação do ego, pela qual o ser humano reconhece sua
verdadeira essência, é, segundo a psicoterapia transpessoal, o primeiro
e mais importante pressuposto para sua libertação” (Walsh e Vaughan,
Psychologie... 187)”. P.111

Tornar-se como os mortos, não significa sermos desprovidos de sentimentos


ou pensamentos. Mas como afirmamos no batismo: ‘morremos para o mundo’ ... que
quer dizer, findamos para nossas expectativas e pretensões. Um dia deixaremos de
depender dos elogios e as repreensões, ai sim encontraremos uma vida bem sucedida.
Isso depende exclusivamente de vivermos uma espiritualidade onde o mundo não
possuirá mais poder algum sobre nós. Temos que buscar uma via onde nós seremos
livres do elogio e da repreensão; tendo em vista uma dignidade divina. Que não
significa conquistarmos isso a duras penas, mas que brote naturalmente da nossa
experiência interior... Nos afirma Anselm, p. 113.
35

Morrer, não tão simplesmente fisicamente, mas interiormente; traduz-se em


renunciarmos para tantas coisas, mas uma delas em essencial é não ter mais o direito de
julgar os outros. Nos distanciarmos dos outros, não significa que não nos importaremos
mais com o próximo. É distanciar tão somente do problema alheio aponto de não nos
misturarmos com eles, tornando-se não patrões ou mandões da vida alheia. O próprio
Jesus afirmou: “Se o grão de trigo, caindo na terra, e não morrer, fica só; mas, se
morrer, produz fruto. Quem ama sua vida, acabará perdendo-a; mas quem odiar sua vida
neste mundo, vai guardá-la para a vida eterna”. (Jo, 12,24s)
De fato, cada um de nós temos que nos desprendermos de nós mesmos, ou
de coisas, sentimentos, que nos ocupam por dentro e por fora; isto para deixarmos
espaço o suficiente para Cristo nos preencher totalmente.

5.5 A Contemplação como caminho de cura


Nós seres humanos não conseguiremos a cura da nossa alma através
somente de um boa disciplina. Para lidarmos com nossos pensamentos e sentimentos,
um bom auxílio para entendermos e superarmos nossas paixões e para tornar nossa
alma saudável, precisamos de... Meditação (profunda aplicação da mente em
abstrações; meditação, reflexão).
Para os monges a prática da meditação é a oração pura, continuada, aquela
acima dos nossos sentimentos e pensamentos. É de fato a união com Deus. Essa
oração contemplativa é aquela em que nós nos abstraímos por completo. Nada nos
separa de Deus. É a ascensão do espírito para Deus. Parece ser algo escatológico; mas
não é: entrar nessa harmonia intensa com Deus, depende da necessidade e do esforço
que cada um de nós fazemos para obtê-lo. Temos que nos purificarmos de todo
pensamento e sentimento; sobretudo o da ira e o da preocupação... deixando para trás
pensamentos piedosos, pensando não somente em Deus, mas, unindo-nos a ele.
Contemplar-se, quer dizer: desprendermos do nosso ego e mesmo na nossa
tenra humanidade nos abrirmos ao divino que se perfaz em cada um de nós. É um
profundo sentimento de confiança. Cala-te profundamente para que no teu silêncio
interior, saibamos e tenhamos a graça de apreciarmos a voz de Deus; que como afirma
Elias vem sempre numa ‘brisa leve e suave do tempo’.
Esta deve ser uma luta e um constante exercício, pois é só no calar que
contemplaremos Deus que é... Já afirma Anselm que:

“Rezar tranquilamente e sem dispersão constitui o máximo que um


homem pode realizar.” P. 119

O desaparecer de todos os nossos sentimentos e pensamentos, nos liberta de


nossas paixões interiores, levando-nos a um mergulho profundo de Deus, polindo-nos
de qualquer opinião e preconceito existente no nosso âmago.
Grün nos mostra como se pode alcançar tamanha meta, que a princípio nos
parece impossível, mas lembremos: “Nosso Deus é Senhor também do impossível”.

[...] “A meta do caminho espiritual, segundo os monges, é unir-se ao Deus


trino. Evágrio chama isso de contemplação do Deus trino. O caminho para
chegar a esta contemplação vai do êxodo no Egisto – sair da dependência
dos pecados -, passado pela permanência no deserto – em que o monge luta
com as paixões -, até a Terra Prometida. É aí que o monge experimenta a
contemplação das coisas, isto é, ele vê as coisas desde seu fundamento e
reconhece Deus em todas as coisas. É aí também que ele se eleva a
Jerusalém que, segundo Evágrio, é símbolo da contemplação da essência
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imaterial e espiritual. A meta do caminho espiritual é Sião, imagem da


contemplação da Trindade. No Deus trino o homem encontra a si mesmo, e
nele reconhece sua essência verdadeira”. P. 120 (grifo nosso)

Pode-se afirmar que além dos monges, a psicologia transpessoal reconhece


na oração e na contemplação podemos des-identificarmos; suspendendo assim nossa
dependência dos nossos sentimentos e pensamentos. Pois enquanto nos mantermos
presos a eles e do nosso bem-estar; estaremos presos aos nossos medos, nossos ciúmes,
nossas iras, nossas depressões, sendo assim um problema constante para nós, problema
do qual jamais nos libertaremos. O conselho do patriarca Evágrio nos faz ver como é a
oração:

[...] “Se queres rezar de maneira perfeita, deixa de lado tudo o que tem a ver
com a carne, de modo que, enquanto estiveres rezando, tua visão não se
turve. (Evágrio, Sobre-Ora 128) E ainda: “Se te entregares à oração, deves
deixar para trás tudo quanto te causa alegria, pois somente então alcançarás a
oração pura” (Evágrio, SobreOra 153)

[...] “Segundo a psicologia transpessoal, o caminho da mística é também o


caminho no qual todas as terapias devem desembocar. Pois não basta só
saber lidar melhor com nossos problemas. Nós só seremos verdadeiramente
curados quando tivermos experimentado, em nossos corações, que não
somos determinados por nossas relações, problemas e angústias, mas que
cada um de nós está em contato com seu eu espiritual, com a sua imagem
inviolável que Deus tem de cada qual. Mais: sobre este eu espiritual os
relacionamentos, as paixões não tem poder algum”.

É através da oração que podemos mergulhar no espaço do verdadeiro


silêncio; silêncio em que tudo está salvo, curado e integrado; silêncio no qual nos é
dado sentir uma profunda paz, apesar de todas as feridas e humilhações”. P. 121 (grifo
nosso)

5.5 A Mansidão como sinal do homem espiritual

Mediante todas as sugestões, práticas e exercícios que os monges fazem;


eles ainda afirmam que o caminho espiritual é alcançado com o espírito da mansidão. A
cólera nos afasta de toda e qualquer tentativa de se aproximar de nós mesmos e de Deus.
No entanto, em contrapartida a mansidão é a mulher forma de conseguirmos tal
propósito. Esta mansidão da qual falamos é tão necessária para se conseguir um bom
caminho espiritual que esta é decisiva para nos transformar o nosso coração e depois
deixá-lo aberto para Deus. Evágrio nos afirma que a “abstinência reprime somente o
corpo, mas a mansidão transforma o intelecto em vidente”. P 123 “Aprendei de mim
que sou manso e humilde de coração”. Disse Jesus.
O que leva os monges a um certo sucesso, não é o rigorosismo, nem tão
pouco a moralização; muito menos ainda o medo, mas sim a coragem para se conseguir
a MANSIDÃO. Misericórdia e mansidão nos leva a uma espiritualidade autêntica.

5.6 Conclusão

Ao avaliarmos esta obra, pareceu-nos que estamos lidando diretamente


com a vida monástica. Parece algo propriamente para religiosos. Mas, ao adentrarmos
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no conteúdo em si, entendemos que tudo que foi dissertado nesta obra serve também
para nós meros mortais leigos.
O sucesso do trabalho de Anselm Grün é exatamente trazer para o
cotidiano dos seus pares a realidade vivida a tanto tempo. Claro que como seres
humanos estamos abertos para vida externa e interna. Temos nossas emoções,
sentimentos e pensamentos. Sem dizer que no mundo atribulado que vivemos, muitas
vezes não nos sobra espaço para conhecermos a nossa própria realidade, quanto mais,
nosso próprio eu.
O céu não se encontra de fato acima das nuvens e nem tão pouco o inferno
abaixo da terra. Este conflito bem/mal é companheiro nosso cotidiano; trazendo-nos
muitas vezes sofrimentos que pode até ferir alma e corpo. Para chegarmos ao ponto de
sermos ‘perfeitos’ como o Pai do céu é perfeito, necessitamos de trilhar uma longa
estrada, ora de espinhos e tempestades, para chegarmos a nós mesmos e assim
sucessivamente a Deus. Bom lembrar também que o próximo mais próximo de nós
mesmos, está no EU. Para tanto temos que ter coragem de nos olharmos no espelho da
vida e assumirmos o que somos e quem somos... enfrentando nossos demônios que
habitam essencialmente nas nossas paixões cotidianas.
Porta estreita, caminho difícil, palavras pesadas; mas a promessa é:
“Estarei convosco até o final dos tempos”. Cabe escolher e para isso precisamos nos
conhecermos, se quisermos nos tornarmos imagens (já o somos) e semelhança (algo a
galgar) de Deus, nosso criador.
Portanto, aqui está a chave para o autoconhecimento, quem quiser, venha e
beba da água da fonte. Escolher implica reações e compromissos. Ficar na tenda
somente olhando para o transfigurado não nos basta. Temos que descer o monte e pisar
na terra de onde somos: pó e ao pó tornaremos. O que queremos de fato mudar em
nossa existência?

João Pessoa, 12 de Julho de 2016


Eugênio Costa Mimoso
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