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Revista da SBEnBio - Número 9 - 2016 VI Enebio e VIII Erebio Regional 3

EFEITOS DE COLONIALIDADE NO MANUAL DO ALUNO DE BIOLOGIA DO


ENSINO SECUNDÁRIO GERAL EM TIMOR-LESTE

Alessandro Tomaz Barbosa (Universidade Federal de Tocantins – UFT)


Suzani Cassiani (Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC)

Resumo
Esse trabalho tem como objetivo analisar os discursos sobre o tema degradação de recursos
naturais no manual do aluno do 10º ano da disciplina de Biologia do ESG em Timor-Leste. Neste
trabalho, adotamos como referencial teórico e metodológico a Análise de Discurso de linha
francesa, além de outros baseados nos estudos sociais da ciência e tecnologia. Os resultados
demonstram a descontextualização do tema “degradação de recursos naturais” no manual didático
da disciplina de Biologia e a proximidade da proposta curricular do ESG ao modelo de currículo
de Portugal. Assim, na busca de superar essa descontextualização, consideramos a importância de
aprofundar algumas questões sobre a transnacionalização de currículos e colonialidade do saber
e poder em cooperações educacionais internacionais.

Palavra-chave: Currículo do ESG; transnacionalização do currículo; antropofagia curricular.

Introdução
Este artigo começou a ser construído sobre reflexões produzidas num trabalho de
codocência1, junto ao Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa no
Timor-Leste (PQLP/CAPES)2. Durante esse trabalho em Timor-Leste, foram planejadas e
desenvolvidas aulas junto ao professor timorense de Biologia da Faculdade de Educação, Artes e
Humanidades (FEAH/UNTL), nas quais foram abordados temas controversos e de cunho social,
como: água, tratamento de lixo em Timor-Leste, degradação dos recursos naturais no país; lixo
urbano; desmatamento e queimada. Entre esses temas, nessa pesquisa focaremos o tema
degradação de recursos naturais nos manuais dos alunos do 10º ano do Ensino Secundário3 Geral
(ESG).
Para compreendermos o ensino do tema degradação de recursos naturais torna-se
necessário entender a reestruturação curricular do ESG realizada por instituições portuguesas. Em

1
Segundo o Projeto Político Pedagógico do PQLP (2014), a codocência não se restringe ao fato de dois professores
assumirem a regência da turma, mas também engloba a preparação, planejamento e escolha dos métodos e dinâmicas
adequados para o uso em sala de aula.
2
Projeto coordenado pelo Prof. Dr. Irlan Linsingen e pela Prof. Drª. Suzani Cassiani.
3
O termo “ensino secundário” é a nomenclatura utilizada pelos portugueses e adotada em Timor-Leste para se referir
ao que no Brasil é chamado de “ensino médio”.

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2010, o Ministério da Educação de Timor-Leste solicitou apoio da Fundação Calouste


Gulbenkian (FCG) para proceder a reestruturação curricular do ESG no país. Para efeito, a FCG e
o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), com o apoio técnico da
Universidade de Aveiro, prepararam e apresentaram conjuntamente a instituição Fundo da
Língua Portuguesa um projeto, que foi aprovado para financiamento (RAMOS; TELES, 2012).
Junto com essa reestruturação curricular, os portugueses estabeleceram algumas
condições essenciais para o seu sucesso. O Plano Curricular do ESG de 20114 ressaltava que o
governo (timorense) precisava dar a devida importância à elaboração de manuais escolares para
alunos e guias didáticos para os professores, mostrando empenho em procurar fontes de
financiamento para a sua publicação e meios adequados para a sua distribuição. Nessa direção,
para a efetiva reestruturação curricular, se tornou importante à produção de manuais escolares e a
sua distribuição nas escolas timorenses.
Conforme o plano do Ministério da Educação, que se iniciou em 2013 5, a produção dos
manuais dos alunos e a sua distribuição já foram realizadas. Os manuais do aluno referentes ao
10º, 11º e 12º ano de escolaridade podem ser consultados e estão disponíveis para
download6. Estes manuais do aluno são propriedades do Ministério da Educação da República
Democrática de Timor-Leste, estando proibida a sua utilização para fins comerciais.
O plano do ministério da Educação 2013 a 2017 destaca que no ano de 2015 teria início a
etapa de monitorização da implementação do Currículo do ESG. De acordo com Cabrita et al.
(2015), o projeto intitulado “Avaliação do impacto da reestruturação do ensino secundário em
Timor Leste” se propõe a realizar um estudo no contexto da cooperação internacional portuguesa,
que compreende duas fases: a monitorização e a avaliação. O projeto baseia-se em monitorar e
avaliar se o novo currículo está sendo implementado conforme o planejado e, se necessário,
ajustá-los para realidades a nível local.
A partir do exposto, percebemos que a construção curricular do ESG, assim como os
manuais dos alunos se deu principalmente pelos portugueses (colonizador de Timor-Leste do
início do século XVI até 1975) e teve pouca participação dos timorenses. Sendo assim,

4
ME-RDTL. Plano Curricular do Ensino Secundário Geral. Dili. Ministério da Educação - República Democrática
de Timor-Leste. 2011.
5
ME-RDTL. (2012). Plano do Ministério da Educação 2013-2017. Díli. Ministério da Educação - Republica
Democrática de Timor-Leste.
6
Esses manuais estão disponibilizados no site: https://www.ua.pt/esgtimor/PageText.aspx?id=16804

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questionamos nesse trabalho, quais os discursos sobre o tema degradação de recursos naturais no
manual do aluno do 10º ano da disciplina de Biologia do ESG em Timor-Leste?
Esse trabalho tem como objetivo analisar os discursos sobre o tema degradação de
recursos naturais no manual do aluno do 10º ano da disciplina de Biologia do ESG em Timor-
Leste.

Referencial teórico e metodológico


A construção do corpus de análise consistiu na coleta do manual do aluno do 10º ano do
ESG de Timor-Leste. Focamos nesse livro o tema “Degradação de recursos naturais”, mais
especificamente, “Intervenção humana e sustentabilidade”.
Neste trabalho, adotamos como referencial teórico e metodológico a Análise de Discurso
(AD) de linha francesa, que tem aportes na obra de Michel Pêcheux e desdobramentos no Brasil,
através dos trabalhos de Eni Orlandi.
Na perspectiva da AD, o discurso abrange condições de produção, que envolvem aspectos
estritos (contexto imediato e circunstâncias da enunciação) e amplos - contexto sócio-histórico e
ideológico (ORLANDI, 2012a). Em relação às condições de produção estrita, consideramos
nessa pesquisa o conjunto de enunciação sobre o tema “degradação dos recursos naturais”
presente no manual do aluno do 10º ano do ESG. Na perspectiva da AD, esses aspectos são
analisados e amparados pelo contexto sócio-histórico e ideológico, por exemplo: a história de
reestruturação curricular do país e as orientações dos programas internacionais para a Educação e
os documentos nacionais.

Resultados e Discussão
Os resultados demonstram evidências de aspectos descontextualizados no manual do 10º
ano do ESG, ou seja, exemplos e imagens que não refletem a realidade timorense. A
descontextualização é identificada nesse material no momento em que os autores citam as formas
de tratar os resíduos sólidos: “Um aterro sanitário (sic) é uma estrutura que permite a deposição
de resíduos sólidos de forma segura, evitando a poluição ambiental e riscos de saúde pública”
(MANUAL DO ALUNO 10º Ano – p. 48, grifo nosso).
Na busca de ilustrar o que é um aterro sanitário, os autores apresentam a figura a seguir:

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Figura 1: Representação de um aterro sanitário.


Fonte: Manual do aluno do 10º ano do ESG (p. 48).

No manual do aluno, os autores não citam as formas de tratamento do lixo em Timor-


Leste, além de não citarem a fonte da figura. Destacamos nesse trabalho a importância de
mencionar as fontes para que os educadores/educandos timorenses possam consultá-las, o que
possibilita a compreensão das ilustrações e de como funciona o aterro sanitário representado, pois
a figura, por si só, não é autoexplicativa.
Para promover um ensino mais contextualizado e que signifique para os
educadores/educandos timorenses, torna-se importante mostrar exemplos presentes na realidade
do povo timorense. Ressaltamos que o uso de imagens contextualizadas nesse manual, pode
contribuir para uma valorização da identidade cultural, social e ambiental do país. Desta forma,
torna-se necessário a articulação da linguagem imagética do livro com o contexto timorense.
A fim de saber se existe um aterro sanitário em Timor-Leste, realizamos uma busca de
forma assistemática em sites de notícia sobre o país, e encontramos uma imagem retratando um
centro de tratamento de lixo localizado em Tibar (município de Liquiça/TL).

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Figura 2. Centro de tratamento de lixo em Tibar – Liquiça/TL.


Fonte: http://www.jndiario.com/2015/05/25/pm-lansa-fabrika-lixu-tibar/

Ao comparar a figura 1, que representa a imagem utilizada no manual do aluno, e a figura


2, que demonstra o centro de tratamento de lixo em Tibar, percebe-se que o exemplo de aterro
sanitário presente no manual do aluno se distancia daquele existente no território timorense, o que
dificulta a compreensão do tema “degradação de recursos naturais”.
Os textos (imagéticos e escritos) descontextualizados presentes no manual do aluno do
10º ano do ESG resultam numa atribuição de sentidos que varia amplamente, desde o que
denominamos leitura parafrástica, caracterizada pelo reconhecimento (reprodução) de um sentido
que se supõe ser o do texto (dado pelo autor), ao que denominamos leitura polissêmica, que se
define pela atribuição de múltiplos sentidos ao texto (ORLANDI, 2012a).
Conforme Orlandi (2012b), um texto ao ser escrito constrói um leitor virtual, um leitor
que é constituído no próprio ato da escrita. Em termos do que denominamos “formações
imaginárias”, trata-se aqui do leitor imaginário, aquele que o autor imagina (destina) para seu
texto e para quem ele se dirige. A questão, nesse caso, é que existe o leitor virtual (imaginado
pelo autor) e um leitor real. No conflito entre esses leitores, resulta uma leitura parafrástica ou
uma leitura polissêmica.
Nessa direção, ao pensar os professores e os alunos timorenses fazendo parte dos sujeitos-
leitores, as formulações descontextualizadas podem resultar em leituras polissêmicas, pois o
cerne da produção de sentidos está no modo de relação leitor-texto-autor. As leituras realizadas
por esses sujeitos-leitores sobre o tema poluição podem ser um processo bastante complexo, que
envolve muito mais que habilidades, que se resolvem no imediatismo da ação de ler, ou seja, o

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leitor não interage apenas com o texto (relação mecânica e direta entre sujeito/objeto), mas com
outras histórias, outro(s) sujeito(s) (leitor virtual, autor) outros textos.
Durante a interação aluno-imagem são produzidos sentidos que caminham em várias
direções. Segundo Silva et al. (2006), a partir de diferentes formações discursivas, uma mesma
imagem pode significar de diferentes modos. Assim, o sujeito não é o centro ou a origem do
processo de produção de sentidos, mas parte de um processo que se iniciou antes.
Sendo assim, a compreensão das imagens não é imediata, e seu uso no contexto
pedagógico de sala de aula exige que o professor ofereça em sala de aula espaços que discutam o
processo de textualização, ou seja, como os discursos se materializaram na imagem em questão.
A importância de apresentar uma linguagem imagética no ensino de Biologia, mais
sintonizada com o contexto timorense, pode ser observada nas ideias de Freire (2011), no livro
“pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa”, esse autor relata que certa vez
numa escola da rede municipal de São Paulo, visitou uma sala na qual se realizava uma exposição
de fotografias das redondezas da escola. Durante essa visita, escutou dois professores
conversarem,

Há dez anos ensino nesta escola. Jamais conheci nada de sua redondeza além das
ruas que lhe dão acesso. Agora ao ver esta exposição de fotografias que nos
revelam um pouco de seu contexto, me convenço e quão precária deve ter sido a
minha tarefa formadora durante todos esses anos. Como ensinar, como formar,
sem estar aberto ao contorno geográfico, social dos educandos? (FREIRE, 2011,
p. 51).

A partir da análise das condições de produção ampla, podemos perceber que o


apagamento do contexto sociocultural de Timor-Leste nas formulações do manual do aluno, pode
estar relacionado ao desconhecimento dos autores portugueses do contexto desse país. Conforme
Ramos e Teles (2012), o ministro da educação de Timor-Leste tinha considerado que a
estruturação do plano curricular, assim como a elaboração dos programas das disciplinas, dos
manuais para os alunos e dos guias para os professores deveriam ser em articulação com
professores timorenses. Estes grupos formados por professores timorenses passariam a ser
denominados de equipes homólogas. No entanto, fatores como a carência de meio de
comunicação, a falta de conhecimento na área específica e de Língua Portuguesa e a dificuldade
do ministério timorense em efetivar a constituição das equipes homólogas, fizeram com que essas
equipes não fossem constituídas.

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Com a não participação dos timorenses, consideramos que o manual do aluno se configura
como uma adaptação do modelo de currículo de Portugal, composto por aspectos usados em
sociedades ocidentalizadas e, principalmente, industrializadas que na maioria das vezes não
refletem a realidade timorense.
Outro enunciado que nos chamou atenção na análise do manual do aluno de Biologia em
Timor-Leste, foi o exemplo de florestas de eucaliptos como monocultura:

Um outro risco de desequilíbrio dos ecossistemas florestais deve-se ao recente


aparecimento de florestas monocultura, ou seja uma floresta formada por
apenas uma espécie de árvore, com interesse económico e que foi
intencionalmente plantada pelo homem. As florestas de eucaliptos são um
exemplo muito frequente, pois a sua madeira é usada pelas fábricas de papel
(MANUAL DO ALUNO 10º Ano – p. 45, grifo nosso).

Ao analisarmos outro capítulo desse manual, denominado de “Biodiversidade e dinâmica


de vida”, observamos a plantação de café se configurando como monocultura: “muitos desses
terrenos (regiões de montanha) têm sido usados para cultivar café” (MANUAL DO ALUNO
10º Ano – p. 14, grifo nosso).
Consideramos que um exemplo de monocultura mais significativo para o ensino de
Biologia em Timor-Leste seria as plantações de café no seu território, como por exemplo, a zona
de monocultura de café localizado em Lasaun, no distrito de Ermera. De acordo com Henriques e
Carvalho (2011), o café é o principal produto de exportação no setor agrícola, representando mais
de 90% dos produtos vendidos ao exterior.
O café como exemplo de monocultura poderia proporcionar a aproximação entre a
linguagem no livro de Biologia e a linguagem visual dos alunos. Ao analisar os documentos
nacionais timorenses, percebemos que o café também é de interesse econômico e foi
intencionalmente plantado pelo homem, podendo se caracterizar como um exemplo de
monocultura, isso pode ser verificado no Plano estratégico 2011 – 2030 (p. 143): “Timor-Leste já
está a exportar, com sucesso, café orgânico, podendo este modelo ser alargado, já que a maior
parte das nossas culturas de subsistência são orgânicas por omissão”. Esse documento acrescenta
ainda que, “A agricultura de subsistência será substituída por agricultura empresarial, praticada
por pequenos proprietários” (p. 110). Diante disso, questionamos: por que o café não é citado
como exemplo de floresta de monocultura no manual do aluno do 10º ano do ESG?

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A descontextualização presente na análise do manual do aluno do 10º ano do ESG pode


ser reflexo dos efeitos de colonialidade. Ressaltamos que colonialidade não significa o mesmo
que colonialismo. Enquanto o colonialismo surge em um contexto sócio-histórico, por exemplo, a
“descoberta” e conquista das Américas, a colonialidade se refere ao padrão de poder hoje
hegemônico - colonialidade do poder -, assim como o papel da epistemologia geral de produção
de conhecimento sendo reproduzida no pensamento colonial - colonialidade do saber (CASTRO-
GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
Santos (2007), buscando superar as linhas abissais, marcada pela colonialidade do
saber/poder, destaca o pensamento pós-abissal, que pode ser sintetizado como um aprender com o
Sul usando uma epistemologia do Sul. O pensamento pós-abissal busca confrontar a monocultura
da ciência moderna com uma ecologia de saberes, na medida em que se funda no reconhecimento
da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em
interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua autonomia.
Os resultados sinalizam que para compreender os efeitos de colonialidade, torna-se
necessário que outros dizeres como a história de reestruturação curricular do país, as orientações
dos programas internacionais para a Educação e os documentos nacionais sejam representados
como o não dito, se configurando como as margens e/ou os contornos do dito significante no
manual escolar.

Considerações finais
A partir dos resultados, concluímos que o manual do aluno se configurou como uma
adaptação do modelo de currículo português, composto por aspectos usados em sociedades
ocidentalizadas e, principalmente, industrializadas que na maioria das vezes não reflete a
realidade timorense, configurando-se dessa forma, como uma transnacionalização curricular.
Consideramos fundamental romper com esse movimento de transnacionalização do
currículo, que consiste na transferência de conhecimentos de um povo para outra cultura,
imprimindo conhecimentos ditos “universais” que parecem neutros e ahistóricos.
Nesse trabalho, baseado na AD – francesa, abrimos espaço para novas maneiras de ler o
tema “degradação de recursos naturais”, colocando o dito em relação ao não dito, ao dito em
outro lugar, expondo o olhar do leitor à opacidade do texto.

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Buscando superar essa descontextualização, sugerimos propostas de ensino pautadas na


educação CTS e nos estudos pós-coloniais. Segundo Linsingen (2007), a renovação educativa
proposta pela educação CTS pode ser favorecida por uma mudança de olhar, de educadores e de
educandos. Assim, o ensino de ciências e tecnologia deixa de ser enfocados em conteúdos
distantes e fragmentados, baseados em conhecimentos científicos supostamente neutros e
autônomos, e passa a ser enfocado em situações vividas pelos educandos em seu cotidiano. Para
Cassiani e Linsingen (2009), a proposta de ensino pautada nessa perspectiva envolve discussões
sobre a forma como esses temas podem ser trabalhados (fugindo da educação bancária, no
sentido freiriano).
Com base nos resultados e discussão desse trabalho, ressaltamos que não temos o objetivo
de negar a importância dos saberes ocidentais hegemônicos, mas sim regionalizar e provincializar
as diferentes histórias locais e os diferentes projetos globais (colonialismo moderno).
Consideramos que discutir a ideia de epistemologia de fronteira (pensamento liminar ou
pensamento de fronteira) proposta por Mignolo (2003), pode ser um caminho para o
reconhecimento da diferença colonial, para a emergência de vozes, línguas, culturas, significados
e histórias.
Consideramos importante estabelecer uma perspectiva de antropofagia curricular, para
problematizar o ensino de episteme de países estrangeiros por sistemas de ensino em países
emergentes, como o caso do Timor-Leste.
O termo antropofagia foi amplamente discutido nas obras de Oswald de Andrade (1928),
juntamente com Mário de Andrade. Oswald de Andrade no manifesto antropófago, publicado em
1928, desenvolve e explicita a metáfora da devoração. Segundo esse autor, nós, brasileiros, não
deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de onde viesse.
Oswald desenvolve essa metáfora, baseado no ritual antropofágico dos indígenas
(brasileiros). O ato antropofágico desenvolvido pelos indígenas consistia em comer partes do
corpo do inimigo admirado, para adquirir-lhe a bravura, a destreza e as virtudes morais.
Ao pensarmos o caso da implementação do plano curricular do Ensino Secundário Geral
(ESG) e o ensino de Biologia baseado nos manuais dos alunos em Timor-Leste, a ideia da
antropofagia curricular consiste no educando e educador timorense se apropriarem dos saberes
ocidentais hegemônicos apresentados nesses documentos e reinventá-los em termos locais.

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O ato de se apropriar de saberes ocidentais e reinventá-los em termos locais se


fundamenta numa perspectiva freiriana. De acordo com Freire (2005), a superação da contradição
educador-educando se instaura como situação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu ato
cognoscente sobre o objeto cognoscível que os mediatiza.
De acordo com esse autor (2005), não podemos chegar aos operários, urbanos ou
camponeses, à maneira da concepção bancária, entrega-lhes conhecimento contido no programa
curricular, cujo conteúdo nós mesmos organizamos. A educação autêntica não se faz de A para B
ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo.
Dessa forma, destacamos a importância dos estudos pós-coloniais e a necessária discussão
sobre a descolonização do saber, para buscar romper com a rigidez de fronteiras epistêmicas
estabelecidas e controladas pela colonialidade do poder.

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