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2 A Hora da Estrela: adaptação e linguagem

cinematrográfica no filme de Suzana Amaral


Afonso Manoel da Silva Barbosa1
Luiz Antonio Mousinho2

n27 l 2012/2
ano XVII l n28 2012/1
Resumo: Abstract:
O presente artigo tem como objetivo analisar o filme A hora da This article aims to analize the film A hora da estrela, directed by
estrela, dirigido por Suzana Amaral, investigando os procedimen- Suzana Amaral, investigating the adaptation procedures used by
tos de adaptação utilizados pela diretora na construção do texto the director in the construction of the filmic text in correlation with
fílmico em correlação com a obra homônima de Clarice Lispector. the homonym work by Clarice Lispector. Furthermore, we will ob-
Além disso, observaremos os recursos narrativos empreendidos serve the narrative resources made by the filmmaker in the repre-
pela cineasta na representação de categorias como personagem e sentation of categories such as character and in the composition of
na composição do enredo do longa-metragem. the feature film plot.

Palavras Chave: Keywords:


Cinema; Adaptação; Suzana Amaral Cinema; Adaptation; Suzana Amaral

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1. A hora da estrela reformatado relação que se estabelece com o texto base é tão como parâmetro dispositivos de análise como “fi-
Por meio deste artigo, faremos uma análi- complexa, pois desenvolve-se a partir de desdo- delidade”. De acordo com Robert Stam, é neces-
se do filme A hora da estrela, de Suzana Amaral, bramentos que podem acarretar trocas, diálogos, sário, para a estruturação de um processo crítico
observando o processo de adaptação relacionado jogos intertextuais, mas que não estão necessa- e interpretativo, que o alicerce seja construído a
à obra homônima de Clarice Lispector. Interessa- riamente acorrentados a um modo de produzir partir de uma atenção voltada:
-nos investigar os elementos estéticos da lingua- sentido já estabelecido anteriormente. Assim, a
gem cinematográfica a partir de procedimentos adaptação pode criar ressignificações, de certa
à ‘transferência de energia criativa’, ou às res-
de transcodificação, tomando por base os estudos forma, distanciando-se até do texto adaptado por
postas dialógicas específicas, a ‘leituras’ e ‘crí-
de autores como Robert Stam e Linda Hutcheon, meio de uma “(re-)interpretação”, de uma “(re-) ticas’ e ‘interpretações’ e ‘re-elaboração’ do
além de examinar a pertinência artística do texto criação” (Hutcheon, 2011, p.29). romance original, em análises que sempre le-
fílmico e os métodos e peculiaridades empregados A partir de uma concepção de adaptação vam em consideração a lacuna entre meios e
pela diretora na produção do longa-metragem. No como um processo que pode implicar alto grau materiais de expressão bem diferentes (Stam,
nosso horizonte de interesse, abrimos espaço tam- de complexidade, que possui ramificações apre- 2006, p.51) .
bém ao estudo de categorias como personagem e sentadas com potenciais artísticos distintos e des-
enredo a partir da análise de algumas cenas de A locamentos entres linguagens e meios diferentes,
podemos compreender que esse terreno de fron- “A adaptação é uma derivação que não é
hora da estrela.
teira possui, talvez justamente por essas razões, derivativa, uma segunda obra que não é secundá-
O filme, de 1985, é o primeiro longa-me-
condições de prover o pleno desenvolvimento de ria” (Hutcheon, 2011, p.30). Ela pode sustentar-
tragem dirigido por Suzana Amaral, que também
uma produção artística. Desse modo, a nova obra -se ou não enquanto produção artística a partir da
roteiriza a obra ao lado de Alfredo Oroz, e é ba-
passa a depender do gênio criativo do artista que, criatividade e dos recursos estéticos empregados
seado na novela de Clarice Lispector que data de
consubstanciando-se, pode, com seu trabalho, re- em sua construção. Esses, sim, são fatores que têm
1977. Vale destacar que o processo de adaptação
velar independência e pertinência estética em re- de ser levados em conta quando de uma análise
pode ser tomado como um empreendimento artís-
lação à obra adaptada. que procure apurar a pertinência de determinada
tico, e o escritor Vladimir Nabokov é um dos que
Ao falar do universo literário, Nabokov su- obra; e não se ela orbita em torno do texto base.
reforça esse pensamento a respeito das produções
blinha: “se começarmos a leitura com uma ideia Entretanto, é importante detectar se ela desenvol-
no campo da arte, quando ele assinala que “o tra-
preestabelecida então começamos pela extremi- ve uma trajetória própria e quais dados fazem seu
balho artístico é, invariavelmente, a criação de um
dade errada e nos afastamos, cada vez mais, do vigor artístico permanecer. Por isso, “talvez devês-
novo mundo” (1981, p. 99). No caminho trilhado
livro, antes mesmo de começar a entendê-lo” (Na- semos pensar o fracasso de certas adaptações não
pelo filme, as escolhas operadas, que podem ser
bokov, 1981, p.99). Podemos estender essa com- em termos de fidelidade a um texto anterior, mas
também sintetizadas por meio de releituras, acrés-
preensão à adaptação fílmica e somá-la ao que de falta de criatividade e habilidade para tornar
cimos e acondicionamentos, configuram-se como
Linda Hutcheon observa quando assinala que as o texto adaptado algo que pertence ao seu adap-
dispositivos de atuação sobre o objeto adaptado,
adaptações são assombradas pelos textos adapta- tador e que é, portanto, autônomo” (Hutcheon,
fazendo valer o critério de liberdade artística ine-
dos. Ela aponta ainda que, “se conhecemos esse 2011, p. 45). A adaptação é um trabalho que se
rente não apenas na produção de obras que não
texto anterior, sentimos constantemente sua pre- utiliza de uma produção preexistente e constitui-
se relacionam abertamente com outras, como di-
sença pairando sobre aquele que estamos expe- -se como um construto subsequente. No entanto,
ria, Linda Hutcheon, mas também naquelas que
rienciando diretamente” (Hutcheon, 2011, p. 27). como diria Hutcheon, sem se submeter, dialogan-
o fazem.
Essa trajetória articulada por um retorno ao texto do com o objeto artístico que o precede e pos-
Hutcheon avalia esse processo de adapta-
base é o tipo de acesso mais realizado, muitas ve- suindo ainda concepções próprias que emanam
ção como “uma transposição anunciada e extensi-
zes de maneira inadequada quando são utilizados das peculiaridades do tipo de veículo escolhido e
va de uma ou mais obras em particular”. Por isso a

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do ofício de se adaptar. 2. Adaptar: um processo de transcodificação à sua disposição diferentes meios de expressão –
Linda Hutcheon destaca que “em vários Robert Stam ao trazer à tona o termo mídias e gêneros – e, portanto, pode mirar e con-
casos, por envolver diferentes mídias, as adapta- transcodificar, assinala que “o filme enquanto ‘có- quistar certas coisas mais facilmente que outras”
ções são recodificações, ou seja, traduções em pia’ (...) pode ser o ‘original’ para ‘cópias’ subse- (Hutcheon, 2011, p.49). A literatura dispõe de
forma de transposições intersemióticas de um sis- quentes” (Stam, 2006, p.22). A obra de arte é procedimentos que divergem e outros que conver-
tema de signos (palavras, por exemplo) para outro proveniente de um ato intertextual, as produções gem com alguns dos utilizados pelo cinema, por
(imagens, por exemplo)” (Hutcheon, 2011, p.40). que surgem em seguida, sem necessariamente se- exemplo. É importante destacar que cada modali-
A adaptação do texto literário A hora da estrela rem seguidoras ortodoxas dos textos fontes, tam- dade artística possui elementos e particularidades
se dá pelo viés cinematográfico, onde a utilização bém podem se configurar como um farol para os que, por vezes, os artistas subvertem, imbricam e/
do audiovisual, enquanto instrumento comunica- trabalhos posteriormente realizados, já que “a ex- ou renegam, podendo ser utilizados de maneira
tivo, é o meio de deslocamento que abarca toda pressão artística da arte sempre mistura as pala- mais expressiva em um filme e menos convincente
complexidade de elementos, técnicas e procedi- vras do próprio artista com as palavras de outrem” num texto literário, e vice-versa.
mentos inerentes a uma linguagem artística. Isso (Stam, 2006, p.23). Ao manter um diálogo entre o O processo de adaptação que, nos dize-
acarreta, consequentemente, um plano de estru- texto original e a adaptação, aquilo que se produz res de Robert Stam, também pode ser encarado
turação que pode, se necessário, realizar altera- tomando por base esses dois vieses já consolida- como:
ções que expressem de maneira mais satisfatória dos pode gerar uma terceira via de enfrentamento
determinada passagem que na(s) obra(s) fonte(s) e interpretação a partir de um novo processo de
leitura, re-escrita, crítica, tradução, transmu-
se manifesta(m) a partir das propriedades e dos re- releitura. tação, metamorfose, recriação, transvocaliza-
cursos estéticos mais próximos àquele tipo de arte. Na mesma toada, Linda Hutcheon acres- ção, ressuscitação, transfiguração, efetivação,
Hutcheon ainda ressalta o pensamento de centa: “as histórias não são imutáveis; pelo con- transmodalização, significação, performance,
Robert Stam quando assinala que “a transposição trário, elas também evoluem por meio da adapta- dialogização, canabalização, reimaginação,
para outra mídia, ou até mesmo o deslocamento ção ao longo dos anos” (Hutcheon, 2011, p. 58). encarnação ou ressurreição” (Stam, 2006,
dentro de uma mesma, sempre significa mudança Uma adaptação como A hora da estrela, realizada p.27),
ou, na linguagem das novas mídias, ‘reformatação’. por Suzana Amaral, também pode contribuir para
E sempre haverá perdas e ganhos” (Stam apud Hu- a produção de novas releituras do mesmo texto
tcheon, 2011, p.40). Assim, mesmo quando se co- possui imbricamentos que se desgarram
literário, como é o caso da adaptação feita para a
gita a possibilidade de determinado processo de da concepção simplista ainda em voga no voca-
TV Globo, no programa Cena Aberta3. Pode, inclu-
adaptação “respeitar” ou “ser fiel” ao texto adap- bulário corrente de algumas análises críticas. Os
sive, contribuir para a construção de uma maneira
tado, o que está em jogo consegue suplantar esses elos e rupturas do ato de adaptação, por suas par-
diferente de se ver e interpretar aquela obra base
argumentos por tratar-se de um método de reco- ticularidades, destituem o paradigma de simples
e, a partir do próprio texto fílmico, demonstrar
dificação, lidando com as dificuldades e os atalhos retrato de um texto anterior, por isso, “o problema
as impressões da diretora por meio das escolhas
que o novo meio proporciona. É, dessa forma, que importa para os estudos da adaptação é que
ali computadas e o resultado final concebido sob
que o gênio criativo daquele que adapta pode, no princípio guia o processo de seleção ou ‘triagem’
aquele olhar cinematográfico, dentre as inúmeras
terreno fértil que se consubstancia essa zona in- quando um romance está sendo adaptado? Qual é
possibilidades que poderiam se configurar não
termediária, caracterizada pela materialização do o ‘sentido’ dessas alterações?” (Stam, 2006, p.41).
apenas no âmbito do audiovisual, mas também de
trânsito, cultivar seu trabalho. A hora da estrela, na adaptação cinematográfica,
quaisquer outras manifestações artísticas4.
operacionaliza uma dinâmica que trabalha num
Partindo desse pressuposto, podemos con-
ritmo diferente, demandando outras formas de ex-
siderar que “nenhum modo é inerentemente bom
pressão. Mais à frente, detalharemos algumas des-
para uma coisa e não para outra; cada qual tem

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ses mecanismos a partir de cenas, dos personagens Isso também se acentua pois, “adotando na cons- filme, Suzana Amaral fez a opção de não utilizar
e do próprio enredo do filme. trução da narrativa uma onisciência posta em es- Rodrigo S. M., escolhendo, para o desdobramento
Robert Stam examina ainda questões acer- tado de humildade, Rodrigo S.M. não esconde sua do longa-metragem, o narrador cinemático tradi-
ca do contexto social de produção como critério dificuldade de aproximação da realidade de sua cional, que pode ser mais claramente compreen-
importante para a crítica. “Cada lente, ao reve- personagem” (Mousinho, 2009, p.7). dido a partir do que diz Paulo Emílio Sales Gomes,
lar aspectos do texto fonte em questão, também Ao se colocar todo o conflito vivido pela quando ele constata que, “aparentemente, a fór-
revela algo sobre os discursos existentes no mo- instância autor, representado metonimicamen- mula mais corrente do cinema é a objetiva, aquela
mento da reacentuação”, já que se trata de “uma te pela figura de Rodrigo S. M., este personagem em que o narrador se retrai ao máximo para dei-
expressão situada, produzida em um meio e em estabelece uma relação de extrema proximidade xar o campo livre às personagens e suas ações”
um contexto histórico e social e, posteriormente, com Macabéa, demonstrando uma espécie de (Gomes, 2004, p.107).
transformada em outra expressão, igualmente situ- crise que o acompanha no desenvolvimento dela, Luiz Antonio Mousinho assinala que, ape-
ada, produzida em um contexto diferente e trans- no enredo de A hora da estrela. De acordo com sar de o filme conseguir trabalhar de maneira pers-
mitida em um meio diferente” (Stam, 2006, p.48, Luiz Antonio Mousinho, o narrador Rodrigo S.M. picaz em vários trechos, como quando procura
49 e 50). O contexto de produção também pode é também “construído em embate com a nordes- construir a solidão de Macabéa a partir de planos
ser analisado como um dado que contribui no di- tina pobre Macabéa, com a qual partilha um vago abertos nas ruas de São Paulo e a relação da per-
recionamento do produto adaptado por fatores sentido de exílio existencial” (2009, p.6). sonagem com o espelho, fazendo com que a obra
como “estilo de estúdio, moda ideológica, constri- Por meio dessas considerações e avan- se sustente autonomamente como produção cine-
ções políticas e econômicas, predileções autorais, çando na tentativa de examinar as atribuições do matográfica,
estrelas carismáticas, valores culturais e assim por autor, a despeito da modalidade artística a que es-
diante” (Stam, 2006, p.50), que, quando equacio- teja se dedicando – no caso cinema e literatura
o filme opta por não embarcar no forte jogo
nados no conjunto da realização, poderão ter im- –, podemos citar Ismail Xavier quando ele explica
metalinguístico instaurado na novela e hoje
pacto direto no resultado da obra. que “a seleção e disposição dos fatos, o conjunto até certo ponto menos comum no mundo do
de procedimentos usados para unir uma situação cinema. Nele também não há nenhum tipo de
a outra, as elipses, a manipulação das fontes de aproveitamento do narrador personagem Ro-
3. As escolhas da(s) autora(s): o narrador- informação, todas estas são tarefas comuns ao es- drigo S.M., absolutamente chave na criação
personagem critor e ao cineasta” (Xavier, 2008, p.32). de Clarice Lispector (Mousinho, 2009, p.8).
Philippe Lejeune registra, em O pacto au- Analisando a colocação acima à luz das
tobiográfico, que “o autor é, por definição, alguém estruturas presentes no texto literário e no texto
fílmico aqui estudados, observamos que a tarefa No filme, a metalinguagem manifesta-se
que está ausente” (2008, p.192). No texto literá-
de organizar a disposição de tais elementos, no sob outras formas, também presentes no texto li-
rio, metalinguisticamente, a utilização do autor é
primeiro caso, é, claramente, uma atividade rea- terário, só que de maneira mais sutil. Como por
construída de um modo bastante particular, por
lizada por Clarice Lispector que, no entanto, com exemplo, pela utilização da função metalinguísti-
Clarice Lispector, a partir dos mecanismos narra-
vigor metalinguístico, atribui esse labor a Rodrigo ca, a partir dos diálogos que Macabéa estabelece
tivos desenvolvidos por conta da presença de Ro-
S. M., um personagem criado por ela e que re- com Olímpico: das indagações que ela faz a res-
drigo S. M. enquanto narrador-personagem.
presenta metonimicamente a figura do autor que, peito do léxico, da maneira de se escrever corre-
Na novela, à medida que “conversa” com
consumido pela angústia, assume a “responsabili- tamente e do significado de certas palavras que,
o leitor, Rodrigo S. M. dá a impressão de que está
dade” pela história de Macabéa. No livro, pode- muitas vezes, a personagem escuta na estação da
construindo a história de Macabéa. Assim, temos
mos identificar a história de Rodrigo S. M., a his- Rádio Relógio, programa que está habituada a ou-
a sensação de que ele não possui, de imediato, as
tória de Macabéa e a “história da história”5. Já no vir quando de suas noites insones.
respostas sobre o que acontecerá à personagem.

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3.1 Macabéa: uma personagem livro, estabelecer um alívio cômico que é utilizado Olímpico, pedindo a ele que lhe faça uma ligação.
supostamente simples também em outros momentos da narrativa. Esses comportamentos se distanciam da
Uma subjetividade de particularidades Além disso, Mousinho destaca que, no fil- imposição e do fato de se realizar algo por hábito
pretensamente simplistas se delineia a partir de me, Suzana Amaral consegue construir uma per- e obediência, como é o caso dela trocar de roupa
Macabéa, demonstrando intenso inquietamento sonagem que traz consigo “certa compreensão embaixo do lençol para não ficar despida na fren-
diante da vida, inclusive no patamar existencial. muda do que na vida lhe é roubado, certa fruição te de suas companheiras de quarto. Um costume
A personagem devota atenção às curiosidades vei- secreta de um luxo de vida que lhe corre no ínti- que Macabéa acabou incorporando pelo tipo de
culadas nas madrugadas da Rádio Relógio, apesar mo e ninguém lhe rouba” (Mousinho, 2009, p.10). criação que sua tia exercia e que permanece mes-
da programação servir também como uma espécie Já por esse viés, Macabéa se revela menos defi- mo após a morte da parente. Esses comportamen-
de acalanto para as noites de sono difícil e tosse nível, decifrável. Não que, necessariamente, seja tos são, na verdade, maneiras de aprender, a partir
contínua. As informações da rádio constituem um uma personagem misteriosa, mas possui um ar de de uma reutilização de ações, a construir a própria
dado de descontextualização, que são peças sol- interrogação que, prontamente, a história lhe justi- identidade no âmbito das relações sociais. É o que
tas, como os pregos e parafusos que Macabéa diz fica no seu transcorrer, enfrentando a difícil tarefa a obra consegue promover de maneira consisten-
admirar. São peças soltas que indicam, entre ou- de sondar sua subjetividade, bem para além da te, sobretudo a partir da verve interpretativa que
tras coisas, sua dificuldade em se situar no mundo miséria material exterior que a constitui enquanto uma personagem como Macabéa oferece: uma
e na existência. As dúvidas que ela possui quanto signo de uma situação social e de um momento leitura da condição humana em permanente difi-
à maneira correta de se escrever determinada pa- histórico. culdade de lidar com a própria subjetividade.
lavra, simbolizam um desejo quase que indiscreto Tomando por base essas considerações,
pelo saber e que passa quase despercebido, por podemos analisar mais de perto determinada
se encontrar ali, incrustado numa figura que, só passagem onde Macabéa se preocupa quanto à 4. A hora da estrela: recortes do texto fílmico
aparentemente, não valeria a pena ser examinada limpeza, não por que alguém imponha isso a ela, Destacamos, nesse primeiro momento, al-
sob a melhor das lentes de alcance na tentativa mas pelo exemplo indireto que Olímpico lhe dá. guns termos úteis ao desdobramento deste estudo.
de contemplar as complexidades que, na verdade, Quando os dois estão no jardim, ele se aproxima Dentre eles, a diegese que, de acordo com Carlos
transbordam nela. de uma pequena queda d’água e lava as mãos, Reis e Ana Cristina Lopes, no Dicionário de teoria
Outro dado que gera uma série de desdo- sendo seguido da mesma forma por Macabéa, que da narrativa, designa “o universo espacial-tempo-
bramentos é o fato de Macabéa ignorar certos pa- repete a ação, talvez, pelos sentimentos, e até cer- ral no qual se desenrola a história” (Reis e Lopes,
drões de higiene. É desleixada quando come, não ta admiração, que possui em relação a Olímpico. 1988, p.26). Ainda segundo os autores, a história
lava as mãos e, no trabalho, quando digita algo, A seguir, ele limpa um banco onde se senta, sendo (ou diegese) corresponde “à realidade evocada
suja as folhas brancas de papel cada vez que preci- também imitado por Macabéa. pelo texto narrativo (acontecimentos e persona-
sa tocá-las em sua máquina de escrever. No filme, Os hábitos de Macabéa, algumas vezes, gens)” e o discurso diz respeito “ao modo como
ela divide um ambiente de um cômodo com mais não estão necessariamente ligados a uma convic- o narrador dá a conhecer ao leitor essa realidade”
quatro companheiras de quarto e sofre delas, se ção interna, mas representam novas possibilida- (Reis e Lopes, 1988, p.49).
não reclamações, insinuações a respeito de sua re- des de interação, absorvendo maneiras de agir de O filme narra a história de Macabéa (Mar-
sistência quanto ao banho, por exemplo. Esse tra- outras pessoas, em certos tipos de ação que ela célia Cartaxo), uma jovem nordestina, órfã de pai
ço não impede que Macabéa apresente lampejos não tem o hábito de realizar, geralmente. É o que e mãe, criada pela tia e que se muda para a ci-
de vaidade, como quando diz que não vai banhar- também pode ser identificado no instante em que dade grande após a morte desta parente. Em um
-se por correr o risco de manchar o esmalte que Macabéa, por ver demasiadas vezes Glória, sua de seus passeios num jardim da cidade, ela en-
acabou de pôr nos dedos. A partir dessa constru- colega de trabalho, receber telefonemas de cará- contra Olímpico (José Dumont), que, também
ção, há uma estrutura que procura, assim como no ter pessoal no escritório, dá uma ficha telefônica a nordestino e órfão, vê nela uma semelhante em

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termos de história de vida, mas que não consegue ção de seu caráter. Olímpico apresenta traços que esforços de compreensão do espectador” (Brito,
enxergar em Macabéa nada que contemple sua resvalam na brutalidade, principalmente nos diá- 1995, p.186). Sem as duas peças do traje que
imensa ambição. Glória (Tamara Taxman) trabalha logos que têm com Macabéa, onde a falta de pa- comporiam um vestuário mais refinado, temos a
com Macabéa e acaba roubando-lhe o namorado ciência é um dado habitual. A vontade de subir na medida mais aproximada daquilo que Olímpico
por sugestão de uma cartomante, madame Car- vida a qualquer custo, de se tornar político e com- representa e/ou gostaria de representar, partindo
lota (Fernanda Montenegro). Vendo o sofrimento pletar a arcada dentária com próteses de ouro são daquele pressuposto da ganância e da necessida-
da colega de trabalho, Glória recomenda que ela alguns de seus objetivos, alicerçados em posturas de constante de tentar se auto-afirmar.
procure o mesmo tipo de auxílio. Quando as car- que, muitas vezes, se distanciam de princípios éti- Já a sequência que desencadeia o final de
tas são postas, a cartomante diz que Macabéa não cos básicos. Essas características demonstram certo A hora da estrela tem seu princípio quando Glória
sofrerá mais, pois ganhará muito dinheiro e um impulso predatório, inclusive sem nenhuma soli- percebe que Macabéa está mais quieta e desola-
rico estrangeiro irá ao seu encontro. dariedade de classe ou afins, como na cena em da que o habitual e indica-lhe madame Carlota,
que rouba no banheiro o relógio do peão que é a cartomante que teria resolvido seus problemas.
seu colega de trabalho. Depois de ter aprendido a mentir para o chefe, co-
4.1 Cenas analisadas O primeiro encontro entre Macabéa e piando o comportamento de Glória, Macabéa diz
Já no início do filme, ainda quando os Olímpico se arquiteta diante de elementos estéti- pela segunda vez que tem que ir ao dentista, quan-
créditos relacionados ao elenco são exibidos em cos da linguagem cinematográfica a partir de uma do, na verdade, vai ao encontro da cartomante. A
branco, num fundo azul, há um primeiro indício quebra de expectativa. Num jardim, Olímpico partir de então, o filme investe numa arquitetura
do uso de elementos cinematográficos para estru- está sentado, vestindo elegantemente terno e gra- pautada pela montagem paralela. Num primeiro
turar a história de Macabéa. Nesse instante ini- vata, esperando que um fotógrafo tire um retrato momento, as cenas se dividem entre Macabéa se
cial, ouve-se o som característico de uma estação seu. No caso, para a análise dessa sequência, dois encontrando com madame Carlota e alternam-se
radiofônica, no caso, a Rádio Relógio, marcando dados se destacam, a prospecção e a retroação. com a peregrinação de Olímpico sendo rejeitado
com um ritmo constante o passar do tempo. Essa De acordo com João Batista de Brito, ao começar ao tentar se aproximar de Glória e depois esperan-
espécie de prólogo faz a narrativa fílmica começar a assistir a um filme, como uma espécie de exercí- do Macabéa, na frente da pensão onde ela mora.
de maneira mais rápida que o convencional, fa- cio preliminar, o espectador desenvolve “um tipo Quando as cartas são postas, madame
zendo com que o espectador seja inserido na his- essencial de conhecimento, por excelência hipo- Carlota vai tecendo uma série de comentários so-
tória desde então. O rádio, no livro, e o constante tético, precário e provisório, podendo ou não vir bre as dificuldades da vida de Macabéa, como o
exercício de ouvi-lo são aspectos que ajudam no a ser homologado ao longo do desenvolvimen- fato dela não ter conhecido os pais. Partindo, a
entendimento e no desdobramento da construção to da estória” (Brito, 1995, p.186). Quando nos princípio, de previsões mais espinhosas até atingir,
de Macabéa enquanto personagem. Ao trazê-los deparamos com a figura distinta de um homem a posteriori, o grau máximo de otimismo: o na-
para o princípio do longa-metragem, permite-se, sentado, que aguarda ser fotografado, imaginamos morado que vai voltar e pedi-la em casamento, o
desde logo, estabelecer uma sugestão no sentido que a sua postura procura demonstrar traços mais chefe que não vai mais demiti-la e o dinheiro que
de assinalar a importância que possuem para o de- abastados. Após o retrato ser feito, o fotógrafo vai vai chegar pelas mãos de um estrangeiro, loiro de
senrolar do filme. até Olímpico para, num ato inusitado, recolher o olhos verdes, que também vai querer desposá-la.
Para analisar a cena do primeiro encontro paletó e a gravata do cliente que recebe a foto Ou seja, nas palavras da cartomante, uma vida que
entre Macabéa e Olímpico, destacamos algumas três por quatro do lambe-lambe. Com isso, a re- tem por destino mudar completamente quando
peculiaridades que compõem a estrutura deste troação pode ser vista a partir de sua utilização Macabéa sair do recinto. Neste segundo momen-
personagem. Ele é um nordestino do interior da para ratificar as expectativas de quem assiste ao to, o filme continua a investir na montagem para-
Paraíba e, também órfão de pai e mãe, foi criado filme. Ela “funciona como uma espécie de endos- lela, agora, ao intercalar a felicidade de Macabéa
pelo padastro, figura determinante na consolida- so narrativo de todas as hipóteses levantadas pelos a cenas de um indivíduo saindo de carro e que se

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encaixa na descrição do estrangeiro, sugerida por pelas indagações de Macabéa, temos esse breve Na caracterização dos personagens, ainda
madame Carlota. Desse modo, ganha forma o es- traço parodístico como outro parâmetro da con- destacamos as peculiaridades de Macabéa que,
pectro simbólico de um encontro, já vislumbrado cepção auto-reflexiva que o filme possui. Robert apenas aparentemente, pode ser apreendida sob
pela cartomante, que passa a ser iminente entre Stam destaca que a qualidade das paródias feitas uma leitura simplista. O traço poético de sua per-
aquele sujeito e Macabéa. no Brasil também pode ser observada quando elas sonalidade vai além desse retrato e perpassa uma
Nesse jogo de cenas, a obra intercala tam- “‘devoram’ o intertexto hollywoodiano antropofa- complexidade representada a partir das constan-
bém a trilha sonora, que rearranja Danúbio Azul gicamente, digerindo-o e reciclando-o, voltando o tes indagações que ela faz, além da dificuldade
– valsa de Johann Strauss II – expressando-a por riso crítico e catártico contra os modelos metropo- que sente ao lidar com a própria subjetividade.
meio de tonalidades mais amainadas para carac- litanos ao enfatizar seu profundo deslocamento” Outro dado que investigamos foi o parâ-
terizar, de um lado, a imagem em câmera lenta (Stam, 2000, p. 54). A obra de Suzana Amaral se metro metalinguístico que se apresenta tanto no
da felicidade de Macabéa, que caminha usando sustenta e se impõe como produção autônoma, texto literário quanto no texto fílmico. Identifica-
um vestido que acabara de comprar; e de outro, em que o processo criativo responde não só a cri- mos que, no primeiro caso, Clarice Lispector faz
um veículo em alta velocidade ao som de uma térios dessa natureza, mas também consegue, pelo uso de um narrador-personagem, Rodrigo S.M.,
trilha que procura elevar o nível de tensão cada vigor artístico e pertinência estética que possui, um dos elementos catalisadores do discurso meta-
vez que vemos o carro do suposto estrangeiro em dar fôlego ao debate sobre adaptação para quem, ficcional. Já no filme, percebemos que os processos
movimento. A alternância de imagens paralelas como diria Robert Stam, aceita o desafio de trans- de metalinguagem alçados por Suzana Amaral não
vai ficando mais rápida, o que faz “suscitar no es- codificar, ressignificar e reimaginar a própria arte. se utilizam desse dado. Eles podem ser assinalados
pectador uma emoção intensa em mantê-lo em pelas indagações de Macabéa quanto ao léxico
suspense, traduzindo a iminência do drama, da de algumas palavras. No entanto, como pudemos
fatalidade” (Betton, 1987, p. 79). 5. Considerações finais identificar, a metalinguagem se consubstancia de
Ao atravessar a rua, Macabéa é atropelada. Neste artigo, analisamos o trabalho da maneira mais proveitosa no final do filme, quando
Os signos do acidente, que acaba gerando a morte cineasta Suzana Amaral na estruturação de uma a codificação hollywoodiana é parodiada na últi-
da personagem, são sucessivamente colocados, a nova perspectiva da novela A hora da estrela, de ma cena.
exemplo do sinal vermelho para pedestres e o som Clarice Lispector. Observamos que esse proce- Por fim, destacamos a importância das
agudo do freio, culminando no corpo estirado ao dimento não se constrói por um viés de filiação adaptações como procedimentos artísticos que
chão. O desdobramento do filme alude a uma que torna o texto fílmico submetido ao texto li- podem revelar um modo diferente de conceber
provocação a uma parcela do cinema hollywoo- terário. A adaptação representa, nesse caso, um determinada obra. Isso, certamente, contribui
diano que se apresenta por sua codificação crista- novo olhar que configura o longa-metragem como para o estabelecimento de novos olhares a partir
lizada (Brito, 1995, p.197), ao parodiar os típicos e obra autônoma, principalmente, por sua pertinên- de um diálogo permanente e cada vez mais im-
esquemáticos finais-felizes, “que parecem mentir cia estética. portante no campo da arte.
a vida, mentir a arte” (Mousinho, 2009, p.8). O Percebemos esse movimento por meio
que se segue, então, é uma espécie de epílogo, no da utilização da linguagem cinematográfica a fa-
que seria a consciência de Macabéa, em estado de vor da concepção de personagens como Macabéa Referências
transição, projetando o encontro romântico com o e Olímpico, por exemplo. Observamos também BETTON, G. Estética do cinema. Tradução: Mari-
estrangeiro, os dois correndo, um em direção ao a constituição de algumas cenas que reelaboram na Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
outro, em câmera lenta, ao som do Danúbio Azul a inserção dessas mesmas personagens na trama,
ininterrupto e fechando o filme com Macabéa sor- transcodificando e ressignificando esses dispositi- BRITO, J. B. d. Imagens amadas: ensaios de Críti-
rindo, pois sua hora havia chegado. vos por meio de novas possibilidades de leitura a ca e teoria do cinema. São Paulo: Ateliê Editorial,
Além dos jogos metalinguísticos, munidos partir dos deslocamentos que o filme empreende. 1995.

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CANDIDO, A. Crítica e sociologia. In: Literatura Notas
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São Paulo: Nacional, 1980. 1. Estudante graduado em Comunicação Social,
habilitação em Jornalismo, pela Universidade Fe-
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dução André Cechinel. Florianópolis: Ed. da -graduação em Letras, área Literatura e Cultura,
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pacto autobiográfico. Belo Horizonte: Ed. UFMG, mento de Comunicação Social e do Programa de
2008. pós-graduação em Letras da Universidade Federal
da Paraíba, pesquisador do CNPq (bolsa de Produ-
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 23 ed. Rio tividade em pesquisa. PQ). E-mail: lmousinho@
de Janeiro: Francisco Alves, 1995. yahoo.com.br

MOUSINHO, L. A. A cena aberta: Mimesis, litera- 3. Série especial que teve Guel Arraes e Jorge Fur-
tura e ficção audiovisual. Disponível em: <http:// tado na elaboração dos roteiros, além Regina Casé
www.intermidias.com/txt/ed9/acena.pdf>. Aces- na companhia de ambos na direção do projeto.
so em: 02 set. 2011. Furtado foi responsável pela direção geral do pro-
grama.
NABOKOV, V. Aprendendo a ser um verdadei-
ro leitor. In: Oitenta vol. 5. Porto Alegre: L&PM, 4. Aqui vale um breve registro da presença desses
1981. deslocamentos também na canção popular. No
disco A beira e o mar, de Maria Bethânia, duas
REIS, C.; LOPES, A. C. Dicionário de teoria da músicas utilizam e, de certo modo, adaptam da-
narrativa. São Paulo: Ática, 1988. dos da obra clariceana. São elas A hora da estrela
de cinema, que se refere à Macabéa e Da Gema,
STAM, R. Bakhtin – da teoria literária à cultura que é inspirada em Glória.
de massa. São Paulo: Ática, 2000.
5. Aqui me refiro à parte do enredo que traz fatos,
STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da que é exterior e explícita, e não à narrativa inte-
fidelidade à intertextualidade. In: CORSEUIL, A. riorizada.
R. (ed.). Ilha do desterro: Film Beyond Boundar-
ies. Florianópolis: UFSC, nº 51, Jul/Dez 2006.

XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opa-


cidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra,
2008.

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