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DOSSIÊ

DESAFIOS, TENDÊNCIAS E PESQUISAS:


ROTEIROS AUDIOVISUAIS

V. 12 – N. 1 - jan./ abr. 2021


ISSN: 2179-1465 / https://www.revistageminis.ufscar.br

Carolina Gonçalves A DRAMATURGIA COMO PRINCÍPIO REALIZADOR


Pinto
ECA- USP
DRAMATURGY AS A PRINCIPLE OF REALIZATION
São Paulo, SP
Brasil

Rubens Rewald
ECA- USP
São Paulo, SP RESUMO
Brasil Artigo composto por dois relatos que descrevem o processo de realização de uma obra
audiovisual. São projetos que possuem em comum seus pontos de partida, quais sejam,
imagens de arquivo: em um caso, imagens pessoais; no outro, imagens de conhecimento
público. As descrições buscam dar conta do histórico dos processos, das forças e objetivos
estéticos e dramáticos implicados e do instrumental técnico e teórico, referente à teoria
do cinema e à filosofia, que alicerçaram tais processos.
Palavras-chave: Filmes Ensaio; Processo Criativo; Dramaturgia Audiovisual

ABSTRACT/ RESUMEN
Article composed of two reports, in which each one describes the process of making an
audiovisual work. These are projects that have in common the use of archival images as
a starting point, one in a personal case, and the other using images of public knowledge.
The descriptions seek to encompass the history of the processes, the aesthetic and
dramatic objectives involved and the technical and theoretical instruments, referring to
the theory of cinema and philosophy, which underpinned such processes.
Keywors / Palabras Clave: Essay Films; Creative Process; Audiovisual Dramaturgy

Recebido: 11/03/2021 / Aprovado: 15/04/2021


Como citar: PINTO, Carolina Gonçalves; REWALD, Rubens. A Dramaturgia como Princípio Realizador.
ARAÚJO, Denize Correa; CARVALHO, Marcos De Bona. As Diversas Vozes nos Estudos da Narrativa Clássica
para o Roteiro Cinematográfico. Revista GEMInIS, v. 12, n. 1, pp. 134-156, jan./abr. 2021.
Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 3.0
Internacional.

DOI: http://dx.doi.org/10.53450/2179-1465.RG.2021v12i1p134-156
A DRAMARTURGIA COMO PRICÍPIO REALIZADOR
ISSN: 2179-1465
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1 – INTRODUÇÃO
O artigo a seguir contém dois relatos, de Rubens Rewald e de Carolina Gonçalves, que descrevem a
experiência de realizar um filme a partir de imagens pré-existentes. Em ambos os casos, a dramaturgia
audiovisual se dá como estratégia de realização e não como a escrita de um roteiro.
O foco central dessa dramaturgia é a escolha dos dispositivos adequados que darão conta dos
elementos à disposição do realizador. Tais dispositivos funcionam como princípio norteador da obra, um
programa a ser seguido, que não só dispara o processo de realização como também articula dramaticamente o
filme.
Portanto, a dramaturgia audiovisual nesse artigo é compreendida num sentido mais amplo, como uma
ferramenta fundamental para se conceber e viabilizar a realização de um filme. De um certo modo, com a
mesma função de um roteiro, ou seja, um instrumento que principia o processo de realização e que confere
consistência dramática ao filme.

2.1 - RELATO I: O CINEMA E A VIDA


por Rubens Rewald
Filmes que não sejam maiores que a vida: esse é o horizonte que eu e o psicanalista e cineasta Tales
Ab’Sáber traçamos para nossos filmes. Uma premissa de concepção e de produção. Fazer filmes dentro da
economia e da dinâmica da vida, ao contrário do que geralmente ocorre numa produção cinematográfica,
quando a vida se organiza em função da realização do filme. Noites em branco escrevendo roteiros, preparando
projetos e orçamentos. Dias, meses, anos de trabalho e angústia visando a viabilização do filme, em captações
intermináveis de recursos. Depois, a pré-produção e a filmagem, que ocupa a vida em suas 24 horas, se não
mais. E depois a finalização do filme, com todas as suas complexidades técnicas, financeiras e laboratoriais.
E, ao final desse processo, quando o filme está finalmente pronto, um pesadelo maior: a sua
distribuição, quando o filme vem ao mundo e é afinal exibido ao público. Enfrenta-se a enorme dificuldade de
inserir um filme geralmente sem verba de divulgação e lançamento num mercado altamente competitivo e
quase sem regulação, ou então com uma regulação sistematicamente desrespeitada pelas grandes distribuidoras
e exibidores. Assim, um filme brasileiro de baixo orçamento estreia com duas ou três cópias, disputando um
lugar ao sol com um filme de super-herói da Marvel que estreia com duas mil cópias e uma verba vultosa de
divulgação. Resultado: mais de 50% dos filmes produzidos no Brasil não conseguem ser lançados
comercialmente. E dos que conseguem, só 10% deles permanecem em cartaz por mais de um mês.
Em suma, realizar um filme no Brasil é uma jornada que pode levar de cinco a dez anos, entre as
primeiras ideias e o filme na tela, deixando-o muitas vezes anacrônico, sem relação com o seu tempo. Isso
quando tudo acontece a contento, pois na grande maioria das vezes o projeto é abandonado, não se viabiliza.
E mesmo quando se viabiliza, ou não é lançado, ou quase ninguém o vê, com raras exceções. Uma situação
muito difícil, do ponto de vista cultural e econômico.

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Portanto, lançamos um manifesto a nós mesmos: iríamos fazer filmes simples, técnica e
financeiramente viáveis, com os meios de produção ao nosso alcance. Fazendo com que a precariedade seja
um dispositivo de criação e não um obstáculo. O importante seria fazer o filme possível e não o filme sonhado.
Filmes que fossem pensados, feitos e vistos no seu tempo, na temperatura de suas discussões.
Com tal manifesto em mente, no final de 2016, Tales Ab’Sáber me mostrou depoimentos captados
por ele do youtube, desde 2015, de pessoas expressando seu ódio ao PT, a Lula e a Dilma e exigindo a
intervenção militar imediata. Fiquei impressionado com a força e a violência impressas em tais depoimentos.
Havia de fato um movimento forte, uma extrema-direita se organizando nas hostes das mídias sociais, em
específico, no youtube. Assistindo às imagens, relacionei-as a um outro grupo de imagens, de milícias
evangélicas, que o roteirista e escritor Jean Canesqui me mandou na mesma época, também captadas do
youtube. Tais milícias se caracterizam por grupos de jovens vestindo uniformes militares, marchando nos
cultos evangélicos.
Propus adicionar essas imagens dos cultos evangélicos ao conjunto de imagens já reunida por Tales
e, junto ao montador e jornalista livre Gustavo Aranda e ao editor de som João Godoy, realizamos o
documentário Intervenção – Amor não quer dizer grande coisa (o filme pode ser visto no link
https://vimeo.com/264475519 senha: intervencao), utilizando somente as imagens coletadas do youtube. O
filme foi exibido no Festival de Brasília em 2017 e provocou reações conflitantes. Muitos espectadores ficaram
estarrecidos e perturbados com os depoimentos agressivos e contundentes dessa extrema direita vindo à luz.
Consideraram Intervenção um filme de terror. Outros consideraram o filme uma coletânea de bizarrices que
não teriam lastro com a vida política real. Trataram o filme quase como uma comédia. O fato é que, um ano
depois, Jair Bolsonaro venceu as eleições presidenciais com aquele mesmo discurso beligerante de ódio e
delírio observado nos depoimentos do filme.
Independente da qualidade técnica final do filme, conseguimos realizar, com meios absolutamente
caseiros, uma obra significativa que foi exibida no principal festival de cinema do país e que provocou uma
série de discussões políticas. E que, vale ressaltar, foi um dos primeiros filmes, talvez o primeiro, que apontou
para a emergência de uma extrema direita organizada no país.

O Pau de Deus: a extrema direita na vanguarda do cinismo pornográfico


… Intervenção: Amor não quer dizer grande coisa, de Rubens Rewald, Tales Ab’Sáber e
Gustavo Aranda é o primeiro filme brasileiro, ainda que de forma oblíqua, que me vem à
mente. Lançada em 2017, a obra compila uma plêiade de diversos arquivos nos quais pessoas
as mais diversas falam de frente para a câmera, como se estivessem na live de uma rede social
qualquer… Não é apenas o tom e o conteúdo dos discursos que salta à vista nessas falas que
anteciparam o novo espírito e a nova onda conservadora de nossa época. É sobretudo a forma,
audiovisual, inclusive, como esse discurso se articula. É um modo direto, que dispensa
intermediários, que busca uma interlocução tão solipsista quanto desesperada…
(GONÇALO, 2019, s/p)

Intervenção: quando a palavra golpe foi colocada em praça pública


Pude assistir esses dias ao documentário lançado em 2017 chamado “Intervenção – Amor não
quer dizer grande coisa”, dirigido por Tales Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda. O
filme procura retratar o bastidor social da convocação em massa para o golpe de 2016 através

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do relato de anônimos famosos por seus vídeos postados no youtube. Caso se possa tirar um
retrato entre tantas falas diferentes expostas no filme e correspondente ao que se chama de
bastidor social das convocações contra a presidência da república, é a que mostra como a
palavra golpe foi colocada definitivamente em praça pública e serviu de bandeira para toda a
direita, do alto clero neoliberal ao baixo clero, aquele que coloca em xeque um suposto acaso
que teria levado ao naufrágio o Titanic. Sem a reconfiguração do significado da palavra golpe,
dificilmente os grupos organizados contra o governo do Partido dos Trabalhadores poderiam
se aglomerar. (MATTOS, 2019, s/p)

Pode se dizer que atingimos o nosso intento. Fizemos um filme que provocou uma discussão e
reflexão política relevante em seu tempo, com artigos críticos a respeito. E, principalmente, fizemos um filme
que fala sobre a vida, a vida política, a vida social e que não paralisa a vida dos realizadores para ser feito.
Infelizmente, não seguimos adiante com o projeto, fazendo mais filmes com esse modelo de
produção e concepção. Só em 2020, em plena pandemia do novo coronavírus, resolvemos retomar nosso
projeto. Afinal, estávamos isolados em nossas casas, o país se incendiando, numa crise política, econômica e
sanitária sem precedentes. Sentíamos que tínhamos que fazer algo, refletir esse estado das coisas. Mas como?

Democracia e Amor
Um dia, entre Abril e Maio de 2020, Tales me enviou uma mensagem com um texto de Leandro
Saraiva, roteirista e professor de cinema da Universidade Federal de São Carlos publicado em seu facebook.
Era um longo texto, com um diagnóstico político contundente do Brasil, da Constituição de 1988 até o Governo
Bolsonaro. Por coincidência, e tais coincidências são decisivas na criação, havia lido um outro texto de Saraiva
no facebook no dia anterior. Foi um momento raro, não tenho o hábito de ler os textos das mídias sociais. Mas
esse de Leandro Saraiva me chamou a atenção, era uma declaração de amor à sua companheira, no dia de seu
aniversário, e eles estavam fisicamente separados devido à quarentena. Mandei então esse texto a Tales e,
assim, tínhamos em mãos dois textos de Leandro Saraiva, ambos se relacionando à crise do novo coronavírus,
um com viés político e outro com viés mais afetivo. Propus a Tales que esses dois textos fossem o esqueleto
de nosso novo filme. Um filme sobre nossa época, sobre Bolsonaro, sobre o coronavírus, sobre nossas mazelas
e afetos. Mas como fazer um filme cujos elementos eram dois textos de facebook?
Tales me fala sobre uma obra que o impressionou nos últimos tempos: Triste Trópico, de Artur Omar,
um filme de 1974. Nele, uma série de imagens é articulada com uma narração over que relata a história do Dr.
Arthur, um personagem cuja história evoca uma aventura modernista em viagem transatlântica e num
movimento do litoral ao sertão. No entanto, não existe uma relação lógica e determinada entre som e imagem.
As imagens não se apresentam como mera ilustração da história narrada. São, na verdade, dois discursos
independentes e o cineasta confere ao espectador a responsabilidade, ou liberdade, de criar suas próprias
inferências nesse embate entre imagem e som.

Triste Trópico se desenvolve em acúmulo frenético. Omar opera em um turbilhão sensorial


ao mesmo tempo em que narra alguma coisa. Aliás, este talvez seja um mal-entendido em
relação a Triste Trópico. Não se trata de um filme não-narrativo. Apesar de não ter uma
história em um sentido mais tradicional de encadeamentos causais de eventos, este

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documentário é extremamente narrativo. Tudo tem voz e fala. Cada pessoa, objeto, elemento,
situação, etc., tudo se apresenta como uma nova possibilidade... A narração nunca encontra
suas imagens, apesar de prometê-las. Algumas imagens até trazem referências de época e
parecem sugerir a existência do tal Dr. Arthur, mas estas primeiras impressões se revelam
nada mais do que ilusões. Triste Trópico frustra incessantemente as expectativas do
espectador e exige uma relação ativa de decifração. (BEZERRA, 2008, s/p)
Libertar as imagens e os sons dos vícios contraídos na produção comercial é o objetivo
principal deste filme. As imagens são selecionadas apenas por suas características formais,
não existe uma história para justificá-las. O verdadeiro assunto do filme não é a história do
doutor Arthur e sim o próprio cinema. Existe apenas o cinema: imagens para se ver, sons para
se ouvir. (AVELLAR, 1974, s/p)
A regra do filme é a não coincidência entre imagem e narração do locutor. Triste Trópico é
um filme sobre o processo de deformação, as contradições da cultura brasileira e a formação
do intelectual brasileiro: constrói um sistema dramático que signifique uma cultura feita de
cacos e que procura “tragicamente” se reconstruir em outras bases. (MURAO, 1974, s/p)

Tais características fizeram com que elegêssemos Triste Trópico como um objeto referencial
de nosso próximo filme, tendo como diretriz dramática a busca desse atrito entre imagem e som,
vendo o país como uma cultura de cacos.
Mas que imagens seriam essas de nosso filme, que dialogariam com o texto? Propus então a
Tales um jogo de livre associação. Usando o whatsapp como plataforma, iríamos enviar um ao outro
fotos extraídas do google. Ele iniciaria, me enviando uma imagem. Eu iria ver a imagem, refletir
sobre ela, ver o que ela me suscitaria e, a partir dessa reflexão, enviaria uma outra imagem a Tales,
mantendo o jogo em movimento.
Logo no início, Tales me enviou uma imagem da lua. Como resposta, enviei uma imagem
estilizada do planeta Terra plano, como sugerem os terraplanistas, sendo banhado pelo sol. Tales
então me enviou o esquema de planetas do sistema solar, com um brilho forte do sol. E então enviei
para ele uma foto do Congresso Nacional, em Brasília, com o sol ao fundo. E assim fomos, nesse
jogo, por um mês, até que julgamos que já tínhamos imagens suficientes: duzentas e oitenta e seis
imagens, para ser mais preciso.
O princípio da busca foi se delineando no decorrer do jogo: imagens do Brasil e, de
preferência, que dialogassem com a nossa experiência e história, articulando uma visão crítica e
afetiva do país sob o nosso prisma. Eu e Tales temos a mesma idade, nascemos em 1965. Tal fato
facilitou o jogo pois, pertencentes à mesma geração, compartilhamos as mesmas referências, fazendo
com que as imagens escolhidas de um fossem compreendidas pelo outro. Assim, vieram muitas
imagens de ícones ou eventos que foram marcantes em nossa infância e adolescência, como a
construção do minhocão, o incêndio do Joelma, os galãs das novelas da TV, os craques da música e
do futebol, a indústria das mercadorias, produtos e publicidade que ganharam força no país a partir
dos anos 1970. Mas também vieram muitas fotos da política brasileira, de Maluf a Sarney, de Lula a

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Bolsonaro, de FHC a Itamar. Ou seja, um festival de nostalgia e mitologia pessoal, em nossas relações
com o país.
E, do ponto de vista temático, pode-se dizer que esse conjunto de imagens que íamos
coletando dialogava diretamente com os dois textos de Leandro Saraiva, os quais tentavam dar conta
do momento atual, através de nossa jornada política e afetiva.
Dois detalhes interessantes surgiram nesse momento de busca das imagens:
* Em um instante do jogo, trouxe uma imagem da série de TV Shazan, Xerife & Cia (1972),
com os atores Paulo José e Flavio Migliaccio, por sua carga nostálgica e simbólica (dois heróis
brasileiros na chave da chanchada). Uma semana depois, Flavio Migliaccio veio a se suicidar.
Desiludido com a avalanche fascista que tomou conta do mundo, Migliaccio desabafou em sua carta
de despedida: “A humanidade não deu certo...”.
* Em outro momento, trouxe uma imagem da estátua do Borba Gato, pelo seu impacto visual,
sempre discutível, na cidade de São Paulo. E, semanas depois, surgiu nas redes sociais a proposta de
derrubá-la, indo na esteira de um movimento global de se derrubar estátuas de ícones escravocratas.
Meras coincidências talvez, mas de um certo modo, estávamos conectados com as flutuações
simbólicas que o país vivia.
Num segundo momento do processo, já com as imagens, começamos a refletir sobre como
trabalhar com os textos no filme. Tales propôs mandá-los a um ator e uma atriz, para que eles o
interpretassem. Ainda impactado pela experiência pessoal da escolha das fotos, propus que
radicalizássemos a experiência subjetiva e que nós mesmos gravássemos os textos. Tales gravaria o
texto político (que ele pinçou) e eu gravaria o texto de amor (por mim pinçado). E, claro, pedimos
autorização a Leandro Saraiva para usarmos seus textos, o que ele prontamente assentiu.
Com os gravadores contidos em nossos próprios aparelhos celulares, gravamos os textos.
Tecnologia caseira. Tales então falou da necessidade de termos uma trilha musical, para abrir e fechar
o filme. A princípio fui contra, defendia que nossas vozes seriam a trilha sonora do filme. Mas, ao
final, ele me convenceu da necessidade de se seduzir o espectador, traze-lo mais para dentro da obra.
Afinal, o filme seria composto por duas leituras de textos longos, poderia ser uma tarefa por demais
árida para o espectador e a música serviria assim como uma espécie de fio condutor da experiência
de fruição.
Cada um de nós escolheu algumas músicas, ouvimos juntos e selecionamos quatro possíveis.
Fizemos também uma seleção das 286 imagens e descartamos ao redor de 50, por não serem fortes o
suficiente ou então redundantes com outras que já tínhamos. Por fim, estávamos nesse momento com

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todos os elementos constitutivos do filme: as músicas, as imagens, as gravações dos textos. Faltava
apenas fazer o filme.
Nem eu e nem Tales sabemos editar um filme. Entendemos de montagem cinematográfica,
suas articulações narrativas, mas não operamos os softwares de edição. Para tanto, sempre contamos
com um parceiro montador, Gustavo Aranda. Mas Gustavo estava empenhado na montagem de outro
filme. Propus que convidássemos Alex Lima, o montador de meu último filme à época, um
documentário sobre Jair Rodrigues.
Alex adorou o projeto, mas estava num momento pessoal conturbado, com uma filha recém
nascida, em plena pandemia, com muitas demandas familiares. Mas ele queria fazer parte do projeto,
então propôs que uma editora que trabalhava com ele realizasse a montagem e ele ficaria como uma
espécie de supervisor. Aceitamos a proposta e assim Nara Dip entrou no projeto. Ela perguntou o
título do filme e não sabíamos responder, ainda não tínhamos um nome. Chamei-o provisoriamente
de “Isolamento”, que era o nosso estado de espírito e condição social.
A primeira ação de Nara foi fazer uma montagem intuitiva das imagens para testarmos as
quatro músicas no início do filme e assim podermos escolher uma. Tudo feito de forma remota. Nara
montava e nos passava por wetransfer (plataforma de transmissão de dados). Eu e Tales assistíamos
separadamente, discutíamos e então dávamos um retorno para Nara. Alex, que acompanhava o
processo a distância, ficou impressionado com uma foto da Lua, a primeira que Tales mandou. Alex
então encontrou no youtube uma imagem em movimento da Lua, e agregou à montagem provisória
de Nara, abrindo o filme. Todos gostaram da imagem, e ela acabou se incorporando ao filme.
Dessa forma, o filme foi ganhando gradativamente uma estrutura em blocos:
* abertura da lua
* música inicial
* primeira texto, político, narrado por Tales
* intermezzo (passagem entre o primeiro e o segundo texto)
* segundo texto, afetivo, narrado por mim
* música final
* créditos
Escolhemos para abrir o filme a música Bijuterias, de João Bosco e Aldir Blanc. A canção,
belíssima, se relaciona com o momento pandêmico, pela morte de um de seus autores, Aldir Blanc,
vítima do Covid-19. Além disso, ela traz uma forte carga nostálgica, por ter sido abertura de uma
novela de enorme sucesso da TV Globo, O Astro, em 1978. Portanto, ela dialogava intensamente com
as fotos, por fazer parte de nosso arquivo memorialista do país. Para a música final, decidimos optar

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por uma criação contemporânea, para criar um jogo entre passado e presente. A escolhida foi Pierrot
Lunático, de Rômulo Froes e Nuno Ramos, cantada por Juliana Perdigão.
No processo de montagem, jogamos inicialmente os elementos constitutivos nas mãos da
montadora, que deveria espalhar as fotos pelos diversos blocos descritos. Nara então nos apresentou
um primeiro corte. Não havia, porém, no corte proposto por Nara, um desenho orgânico de diálogo
entre imagem e texto. Ou a imagem era obvia e ilustrativa ao que estava sendo falado ou totalmente
aleatória. No entanto, uma ação interessante que Nara trouxe foi a criação do “turbilhão”. Havia mais
fotos que o necessário para cobrir o tempo de filme, portanto as fotos que ela não utilizou na
montagem colocou num bloco após a música final, passando-as num ritmo frenético. Daí o título que
demos a esse bloco, turbilhão, que foi incorporado ao filme.
Nesse momento, fomos nos distanciando um pouco do princípio de Triste Trópico e nos
aproximando mais dos princípios da montagem de Eisenstein.

O trabalho de Eisenstein está profundamente associado ao princípio da montagem como


justaposição de elementos que se mantêm separados, claramente visíveis embora integrados
na composição... Eisenstein reconhece que o essencial no cinema estaria no que se passa entre
os planos e na sua interação… Em tudo, Eisenstein quer encontrar o “terceiro elemento”,
síntese abstrata, conceito — que resulta da sobreposição de duas figuras dadas aos sentidos...
A produção de sentido se dá como resultado de uma coleção de representações (ou figuras)
que, na acumulação, formam a Imagem-Conceito… Agora se trata de uma série de n figuras
que produzem o elemento n + 1: o conceito. (XAVIER, 1994, s/p)

Esse era o conceito que buscávamos. Não uma dessincronia completa entre imagem e som,
como em Triste Trópico, mas uma sincronia própria, criada tanto pelo atrito entre a imagem e o som,
como pela justaposição entre duas imagens. Portanto, sob a luz de tal premissa, julgamos o primeiro
corte de Nara sem força dramática e conceitual no jogo da disposição das imagens. Discutimos
bastante a questão e chegamos à conclusão que Nara desconhecia grande parte das imagens, afinal
ela pertencia a uma outra geração que eu e Tales. Nara nasceu no final dos anos 1980, não vivenciou
os anos 1960, 1970 e mesmo 1980. Por exemplo, para Nara, uma imagem do antigo Secretário de
Segurança de São Paulo, Erasmo Dias, empunhando uma metralhadora, não tinha as mesmas
conotações que para mim e Tales. Para ela, era um senhor desconhecido empunhando uma arma. Para
nós, era uma imagem relevante do autoritarismo e truculência da ditadura militar. Ou então, o
incêndio do Edifício Joelma (evento trágico que foi um fenômeno midiático em 1974, sendo
transmitido ao vivo pela TV), ou mesmo um folheto publicitário da inauguração do Shopping
Iguatemi (inaugurando a era do consumo no país, no final dos anos 1960) não significavam muito
para Nara.

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Decidimos então fazer uma reunião para falar de todas as imagens, sua história, seu valor
simbólico, seus significados políticos e afetivos. E assim, numa tarde pandêmica, via zoom, eu, Tales,
Nara e Alex tivemos uma longa conversa sobre cada imagem. Eu e Tales discorremos sobre Xuxa,
Francisco Cuoco, Antonio Cândido, Roberto Carlos, Pelé, Antonio Marcos, esquadrão da morte,
Paulo Maluf, Itamar Franco, Itamar Assunção, Silvio Santos, Lula, Regina Duarte, Mirandinha,
Emerson Fittipaldi, Maguila, Cacique Juruna, Leonel Brizola, Faustão, Hebe Camargo, Ibrahim Sued,
Daniela Mercury, Minhocão, Amazônia, Decio Pignatari, Cigarros Charm, Bozo, Seleção de 82,
Carlos Marighella, e vários outros artistas, políticos, ícones, eventos ou produtos que marcaram o
país nos últimos 55 anos. Claro, nossas referências eram marcadas pela subjetividade, afinal era a
nossa visão de cada uma delas, mas esse fato dialogava com nosso partido de marcar essa
subjetividade por todo o filme. Nossas impressões do nosso país e de nossa vida nele.
Essa reunião foi marcante dentro do histórico do processo do filme. Exteriorizamos nossas
referências subjetivas. Colocamos na mesa nossas impressões de cada imagem e de cada sujeito ou
objeto contido na imagem. Discorremos sobre a ditadura militar, o tropicalismo, as novelas da Globo,
a nova república, os anos lulistas, a MPB, o MDB, o samba, o futebol, a Fórmula 1, a miséria, a elite
brasileira e muito mais. Em cerca de quatro horas desfiamos uma certa história do país nos seus
últimos 50 anos, com seus personagens e fatos e, principalmente, nossa visão pessoal dessa história.
Além de discorrer sobre cada foto, também indicávamos em qual bloco cada foto seria mais
apropriada. Explicamos nosso princípio eisensteniano em tal escolha. Não queríamos uma ilustração
da fala, uma imagem que colasse perfeitamente ao que estaria sendo dito, mas uma imagem que
criasse tensão, que levasse o espectador a refletir. Assim o texto X com uma imagem Y, criaria um
sentido Z na mente do espectador, o terceiro sentido. E claro, cada espectador criaria um sentido
próprio para si, afinal cada um tem seu próprio arsenal de referências.
Por exemplo, num momento em que o texto fala do acesso à universidade pública, usamos
uma imagem da greve dos metalúrgicos do ABC, de 1979, num plano de multidão na Vila Euclides,
com um céu cinzento sobre eles. Qual o sentido disso? A metáfora é aberta, podendo criar diferentes
sentidos para cada espectador.
Para a montadora, essa sessão foi crucial na compreensão do projeto e de seus elementos. E
assim, com todas essas informações em mente, do princípio norteador da montagem e do valor e
significado de cada imagem, Nara voltou ao Premiere (software de edição) e fez seu segundo corte.
Assistimos e discutimos com ela. E, dessa forma, levamos adiante o processo. Nara montava,
mandava o corte para nós, que discutíamos e dávamos um retorno crítico sobre o corte, visando a
evolução do trabalho. E a cada nova versão do filme, a montagem ia se aproximando do que eu e

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Tales desejávamos. Chegamos assim ao sexto corte e decidimos fazer juntos a sétima versão, pois
havia agora apenas pequenos detalhes de precisão de corte e ritmo, e seria mais produtivo discutirmos
e realizarmos juntos, on-line, em tempo real.
Finalizamos esse sétimo corte e assistimos algumas vezes o filme, para de fato fechar o
processo ou identificar algum elemento ainda a ser retrabalhado. E, de fato, identificamos alguns
poucos momentos do filme em que a edição poderia ser melhorada. Nara tinha um compromisso de
trabalho que a obrigou a se ausentar e, assim, o oitavo e último corte foi efetuado por Alex. E,
finalmente, após 3 meses, desde a concepção até o corte final, chegamos ao filme pronto, com seu
novo título sugerido por Tales, que remete aos temas dos dois textos: Democracia e Amor (o filme
pode ser visto no link: https://vimeo.com/448751208/9837ab1105). Um tempo relativamente curto
para a sua realização, considerando o tempo médio de produção de um filme, mesmo que seja um
curta-metragem (nosso filme atingiu 18 minutos).
Um dado curioso: a imagem que abriu o jogo de associações entre eu e Tales, a lua, acabou
fechando o filme, como última imagem. Foi uma proposta da montadora, para criar um jogo de
espelhos, afinal o filme abre com a lua (imagem trazida ao filme por Alex) e, assim, fecha também.
Para Tales essa imagem da lua tem um valor simbólico, como se nosso planeta não desse mais conta
de todos os problemas e questões e precisássemos refletir para além dele, para a lua, para o espaço,
em busca de novas soluções.
O filme foi exibido por Tales para alguns de seus pares, escritores, psicanalistas, filósofos,
artistas visuais. A repercussão foi imediata, como pode se verificar nos artigos publicados no blog da
Editora Boitempo e no site da revista Cult:

O filme Intervenção – amor não quer dizer grande coisa, de 2017, dirigido por Tales
Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda, é inteiramente construído a partir da montagem
de trechos de vídeos coletados nas redes sociais de canais da extrema-direita. Os diretores
nos arremessam num labirinto aparentemente sem saída de violência e rebaixamento cultural
e cognitivo. Terminamos a sessão com a violência do neofascismo brasileiro impressa em
nossos corpos. Diferentemente do que afirmou Vladimir Safatle sobre a relação de Bolsonaro
com seus seguidores, o atual presidente eleito por cinquenta e sete milhões, setecentos e
noventa e seis mil e novecentos e oitenta e seis votos, não criou os fascistas à sua imagem,
mas foi elevado a mito por uma expressiva camada da sociedade brasileira que vinha
cozinhando seu ressentimento há anos nas redes mais atualizadas da era digital. Diz o
professor de filosofia da USP: “Freud não conheceu o Brasil, nem nunca ouviu falar de Jair
Bolsonaro. Mas é certo que os últimos dias mostraram com precisão sua tese de que o poder
molda sujeitos, fazendo-os à sua imagem e semelhança. Todos estão a perceber essa mutação
na qual expressões de desprezo, indiferença e violência antes inimagináveis de serem feitas
a céu aberto e na frente de todos se tornam manifestações cotidianas, em uma espiral em
direção ao abismo que parece não ter fim”. O filme, ao descer ao chão histórico, prova o
contrário… No curta metragem Democracia e amor, dirigido por Ab’Sáber e Rubens
Rewald, de 2020, temos quase vinte minutos de montagem de fotos com narração over. Vinte
minutos de pensamento crítico de alta voltagem que problematiza e atualiza o que se discutiu
até aqui… “Bolsonaro é isso: capitão do mato a serviço do senhorzinho gringo”, diz o

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narrador, atando os fios do nosso passado colonial violento com o, também violento, capital
globalizado hoje. Ressoa aqui o frankfurtiano Max Horkheimer, que às vésperas da Segunda
Guerra Mundial afirmava não ser possível discutir fascismo sem discutir capitalismo… O
efeito da montagem das fotos é um fluxo ininterrupto de aproximação e afastamento,
reconhecimento e estranhamento. Forma principal a organizar o conteúdo do filme. Antonio
Candido e Os Trapalhões, Tom Jobim e Faustão, Odete Roitman e Paolo Rossi. A vertigem
da montagem tem método e objetivo. Ao colocar toda a cultura brasileira na mesma gôndola,
a equivalência é perturbadora. O Brasil bom aparece não tão bom assim; e o ruim, ainda pior.
E mais, chegamos a ficar em dúvida sobre o sinal correto para algumas imagens. (Ainda há
correto? Há sinal?) O efeito é fatal: nós, críticos, também fazemos parte da “monstruosa
coleção de mercadorias”, para utilizar expressão de Marx no Livro I d’O capital. Somos
também homens e mulheres unidimensionais. (FERRO, 2020, s/p)

Democracia e amor (2020), curta-metragem dirigido por Rubens Rewald e Tales Ab’Sáber,
recoloca em questão os efeitos profundos das superficialidades da indústria cultural entre nós.
Em um exercício cinematográfico que mimetiza as ligações inconscientes dos múltiplos
estímulos, é possível percebermos o poder dos produtos culturais na constituição de uma
ideia geral que se impregna na sociedade brasileira, quase em mediações conscientes. Como
em uma linha de montagem industrial, instantâneos da cultura brasileira se encaixam em um
jogo de livre associação, deslocamento e condensação cinematográficas, que impressionam
de modo enigmático. (DIAS, 2020, s/p)

É interessante notar como nesse breve trecho do artigo acima pode-se situar o princípio fundamental
do processo, o jogo de livre associação, impresso no corpo do filme. A livre associação como princípio
dispositivo do jogo e como princípio poético na relação com o espectador.
Tal princípio poético é central no processo. Nesse sentido, uma questão que vale ressaltar é a
principal referência de Alex Lima, o supervisor de montagem, para esse trabalho: o cineasta francês Chris
Marker. Alex passou para Nara alguns filme de Marker, para ela se inspirar em seu processo de montagem.
Em especial, o filme La Jetée (1962), no qual Marker cria uma narrativa intensa e complexa utilizando somente
imagens still, ou seja, não há imagens em movimento.
A referência a Chris Marker me fez chegar a um texto de Jacques Rancière sobre o filme Le Tombeau
d’Alexandre (1992), de Marker:

Há duas grandes poéticas, por sua vez, passíveis de subdividir e, eventualmente, de se


entrelaçar. A poética clássica aristotélica é uma poética da ação e da representação. Nela, o
cerne do poema é constituído pela «representação de homens que agem», pela encenação de
um ou mais atores da palavra que expõem ou reproduzem uma sucessão de ações que
acontecem às personagens segundo uma lógica que faz combinar o desenvolvimento da ação
com uma virada no destino e o conhecimento dos ditos personagens. A essa poética da ação,
do caráter e do discurso, a época romântica propôs uma poética dos signos: a história não
nasce mais daquela cadeia causal de ações “segundo a necessidade ou verosimilhança”
teorizada por Aristóteles, mas do poder de significação variável dos signos e dos
agenciamentos de signos que formam o tecido da obra. É, em primeiro lugar, a potência
expressiva pela qual uma frase, uma imagem, um episódio, uma impressão são isolados para
apresentar, por si, a potência de sentido - ou não sentido - de um todo. Em segundo lugar, é
o poder de correspondência pelo qual os signos de diferentes regimes entram em ressonância
ou dissonância... E, por fim, é o poder de reflexão pelo qual uma combinação se torna
potência de interpretação de outra ou, ao contrário, se deixa interpretar por ela… A poética
romântica, portanto, se desdobra entre dois pólos: ela afirma tanto a capacidade de falar
inerente a todas as coisas mudas como o poder infinito do poema de se multiplicar pela
multiplicação de seus modos de falar e de seus níveis de significado. (RANCIÈRE, 2013, P.
390)

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Rancière descreve exemplarmente, a propósito de Le Tombeau d’Alexandre, a nossa busca estética


em Democracia e Amor, definindo-a como uma poética romântica, alicerçada nas potências de seus elementos,
as imagens, os textos, as músicas, os espaços vazios (tela preta). Ao contrário da poética clássica, que se
estrutura numa dramaturgia causal, de ligação indissociável entre seus elementos, gerando a famosa unidade
de ação aristotélica, na qual tais elementos tem que estar intrinsicamente conectados, como em uma
engrenagem ou em uma trama de fios. Pelos critérios clássicos, se algum elemento for retirado e o todo não
sofrer nenhuma mudança estrutural, tal elemento não faz parte da unidade de ação e deve ser retirado da obra.
Em Democracia e Amor, se uma imagem for retirada do filme, não necessariamente tal fato irá
desestruturar o todo. Pois os elementos tem autonomia, valor por si só. E pode-se também inserir novas
imagens, propondo novas combinações e novos sentidos. Buscamos, pelas palavras de Rancière, o poder
infinito do poema/filme se multiplicar pela multiplicação de seus modos de falar e de seus níveis de significado.
Esse sempre foi o nosso objetivo: criar uma obra sem um sentido único, sem uma leitura unívoca,
sem uma unidade de ação. Buscamos a multiplicidade dos elementos, suas relações internas abertas propondo
diferentes níveis de leitura. Construímos, assim, um filme voltado para o espectador, conferindo a ele o poder
de criar seus próprios sentidos e significados, seus próprios afetos e histórias.
Essa abordagem nos deu segurança conceitual para seguir na criação de novos filmes. Decidimos
fazer o Democracia e Amor II, Democracia e Amor III, e assim por diante, até completar um longa-metragem,
cujo tempo mínimo é 70 minutos. A opção pelo longa se dá em termos de visibilidade, pois a sua duração
mínima é determinante para o filme ser aceito em festivais, além de facilitar uma possível (mesmo que remota)
circulação comercial em salas de cinema, TV ou Streaming. A base de todos os filmes será a mesma: textos
de facebook relatando alguma impressão do mundo contemporâneo, em especial da sociedade brasileira. E
acompanhando a leitura dos textos, imagens retiradas do youtube, que criam ressonâncias ou dissonâncias
entre si e com o texto. Em suma, uma forma cinematográfica na qual os diretores têm pleno domínio dos meios
de produção, já que os elementos estão disponíveis publicamente pelas mídias sociais, mesmo que não
tenhamos autorização oficial dos autores das imagens. Nesse sentido, assumimos uma posição marginal na
produção, um cinema de guerrilha, de orçamento zero, que seja factível em termos financeiros, técnicos e
burocráticos. Buscamos, assim, um cinema possível, contemporâneo, que fala de questões prementes e
relevantes e que, acima de tudo, não seja maior que a vida, mas que a alimente e ajude a compreendê-la.

2.2 - RELATO II: CINEMA, FABULAÇÃO E MEMÓRIA


por Carolina Gonçalves

Em 2007, recebi de minha mãe uma bobina de filme super 8 mm, a qual ela acreditava conter cenas de seu
casamento. O material me suscitou curiosidade, pois seria a oportunidade de ver imagens em movimento de
meu pai, falecido quando eu tinha 4 anos. Eu tinha apena fotografias e poucas lembranças dele, que com o
passar dos anos vão ficando ainda mais difusas.
Quando finalmente consegui assistir ao material, descobri que se tratavam de imagens realizadas durante

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minha festa de aniversário, quando completei 4 anos e a última na qual meu pai esteve presente. Vê-se na
imagem os familiares, crianças brincando, um show de mágicas, cenas registradas ao longo da festa, sem que
uma única imagem de meu pai fosse encontrada na película. Pouco antes da câmera ser desligada, a câmera
se vira para seu operador e a objetiva revela um fragmento de rosto masculino, com uma barba escura, sem
que seja possível de fato identificar quem empunha a câmera.

Meu projeto de filme se inicia a partir deste relato e da ausência da imagem em movimento de meu
pai. De fato, a imagem não existe; apenas o desejo de que ela estivesse presente nesta bobina de super 8mm.
Imediatamente, eu conjecturo que seria ele a pessoa a empunhar a câmera e ter realizado tal registro, mas, se
passariam ainda alguns anos para que realmente eu iniciasse o processo de realização deste filme, que tem
como ponto de partida a apropriação destas imagens de arquivo familiar.
Na época em que tive contato com este material pela primeira vez, projetei-o uma única vez, o que
foi suficiente para querer contar esta história. Receosa de que o material pudesse ser danificado, preservei-o e
escrevi alguns textos sobre as impressões e elucubrações a respeito de um filme autobiográfico que nunca veio
a existir.
Estes primeiros textos escritos, após esta única visualização, trazem descrições imprecisas, feitas a
partir da memória, de imagens que não fazem parte da bobina, como o batizado de meu irmão, ainda bebê na
ocasião, assim como a lembrança da sequência das imagens do material, que não corresponde de fato ao que
se vê registrado, entre outras imprecisões que constam nestes textos.
No entanto, o tempo que separa o momento em que escrevi sobre isso pela primeira vez e a retomada
de um projeto de filme, momento em que estas imagens foram reassistidas e telecinadas, foi essencial para
todo encaminhamento e conceituações que apresento a seguir.
Ao apresentar estes relatos acima, a respeito destes dois contatos com o conteúdo da bobina, um
sendo após a primeira visualização e a subsequente, aproximadamente 10 anos depois, pretendo evidenciar a
distância entre o primeiro relato elaborado a partir da memória e as imagens que de fato constam do registro.
A narrativa que surge neste primeiro momento para expressar esta experiência de se deixar afetar por estas
imagens não é fiel ao que é visível como matéria. Ela capta sensações sobre os elementos vistos, mas também
agrega outras imagens de arquivo, ou informações que me chegam de outras fontes, como conversas e enredos
familiares e desta síntese organiza-se o discurso.
Neste projeto de filme em processo, trato de como as fabulações dão origem a narrativas, suscitadas
a partir de imagens deste arquivo pessoal. Esta busca por fabulações acerca da memória se situa neste mar
incerto, no qual a imagem indicial do filme pouco pode contribuir para preencher as lacunas do esquecimento.
Não espero criar uma obra que busque explicar os mecanismos da memória, mas de tornar evidente a distância
entre a imagem registrada e a experiência que a memória pode oferecer em relação àquele registro.
Se por um lado esbarro nos limites da representação, pois a imagem não consegue muitas vezes
explicar completamente os eventos, por outro lado considero a potência em desencadear sensações e diferentes
significados para quem a observa. O desafio em se formalizar, por meio de imagens e sons, as experiências
relacionadas à imprecisão da memória coloca-se como uma questão. A criação artística oferece a possibilidade

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de ressignificação das experiências e sua reordenação, segundo uma outra lógica que permite cristalizar esta
experiência e transmiti-la via outros meios.
Ao revisitar este material não encontrei a esperada imagem de meu pai, pois ele pode ter sido a pessoa
a empunhar a câmera e produzir o material. Mas, o encontro com a imagem não se deu apenas por que a
imagem inexistia? Se a memória é lacunar e traiçoeira, seria possível ainda afiançar a natureza e sequência das
imagens ali presentes? Conjecturo que dificilmente coincidiriam a imagem mental e a impressa na película.
Esta suposição parte de experiências recentes com as imagens deste rolinho de filme, como seu lugar
de repositório de uma vida provoca sentimentos e atitudes variados, fazendo dos relatos sobre a imagem algo
bem distante daquilo de fato visto. E é através da fabulação que estas histórias são reinseridas no fluxo do
tempo, que se confere nova existência a estes acontecimentos em vias de desaparecimento, como reforçam os
aspectos presentes na imagem, no som e na montagem do filme. A narrativa fabulatória se edifica também a
partir das ausências, se estabelece entre memória e invenção, não como uma narrativa ficcional, mas como
aponta Gilles Deleuze, (DELEUZE, 1985) uma outra verdade que se revela a partir de um devir.
Este registro em super 8mm pertence a uma época da qual não possuo uma memória baseada na
experiência. Esta se construiu ao longo da vida, mescla de outros relatos, mas também de deduções. Neste
contexto, parto destas imagens registradas em super 8mm, mas também da ausência de uma imagem, para
propor a problematização acerca da relação entre memória e imagem audiovisual em tempos atuais, em uma
investigação acerca desta relação que se estabelece, a partir deste nosso objeto, entre o registro fílmico e a
produção de materiais destinados a salvaguardar a memória de acontecimentos.
Embora esteja trabalhando sobre um arquivo pessoal, penso que esta empreitada não é voltada para
a constituição de uma obra de cunho autobiográfico. Entendo que percorrer histórias pessoais e familiares neste
projeto seja algo inevitável, dada a natureza deste material. No entanto, ao propor a realização deste filme,
busco sobretudo explorar a relação da imagem já registrada com a memória, a partir da evocação e do relato.
Neste sentido, a fabulação é pensada como uma das formas através das quais a memória pode se manifestar.
As lembranças, muitas vezes repletas de lacunas, escapam quando se deseja organizar um enredo. Em minha
busca pessoal por estas memórias, o cinema se configura, assim, como o último espaço do imaginável, como
a possibilidade de se instaurar um processo de criação. Diante da potência e fragilidade da representação como
suposto substituto da memória e da experiência do encontro, a fabulação manifesta-se como uma forma de
recriar este tecido do rememorar.
Para Deleuze, o oposto da ficção não é o cinema da realidade, mas o cinema da fabulação. A função
fabuladora deriva do relato e o cinema de fabulação não busca retratar aspectos objetivos ou subjetivos de um
personagem. “O personagem não se separa de um antes e um depois, mas o que ele reúne em uma passagem
de um estado a outro”. (DELEUZE, 1985, P. 196) A fabulação visa flagrar o que o personagem se torna a
partir de seu próprio relato. Ao colocar este mecanismo em ação, o personagem cria suas próprias “memórias,
suas lendas, um monstro”. (DELEUZE, 1985, P. 196) Assim o ato de narrar, é indissociável do personagem,
no que aproximamos com o texto de Walter Benjamin, O Narrador (BENAJMIN, 1996) ao dizer que a

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memória se faz no ato de narrar uma história, tanto a partir de memórias que são acessadas para compor a
narrativa, como das memórias que são criadas junto àqueles que a escutam. A partir desta noção, elaboro a
concepção de memória com a qual irei trabalhar em minha pesquisa.
A realização deste filme não compreende uma busca por formas de se acessar as memórias em si,
mas de deflagrar o relato como fabulação. Me interessa a possibilidade de construir fabulações acerca e através
de memórias. Parte-se da observação de que, ao formular narrativas pela evocação de lembranças, pode-se dar
origem ao ato de fabular. As fabulações por sua vez, atualizam e re-inscrevem as memórias junto àquele que
fabula e àquele que escuta, ao dar novo encadeamento aos fatos, pela estruturação do relato e criação ou
reorganização dos acontecimentos.
A escolha pela forma ensaística se deve sobretudo pelo paralelo que encontro entre a fabulação e a
constituição do ensaio. Como aponta Theodor W. Adorno (ADORNO, 2003) em um dos textos mais
importantes sobre o tema, o ensaio também dá ensejo à certa liberdade de criação quanto à sua forma, ao se
distanciar de um texto científico e imprimir um ponto de vista pessoal sobre determinado assunto social. A
ausência de uma forma pré concebida para o ensaio permite uma grande variedade entre as obras, tanto em sua
forma textual, como cinematográfica.
A narrativa fabulatória escapa ao sistema da representação e, neste sentido, aproximo a forma do
filme ensaio do regime cristalino, descrito por Deleuze (DELEUZE, 1985). Ao falar da fabulação nos filmes,
o autor trata de dois regimes de descrição, o orgânico e o cristalino. Nesse primeiro regime, a descrição que se
faz de um objeto pressupõe uma realidade preexistente deste objeto, o que vale dizer que há uma relação de
verossimilhança, de coerência entre o que se descreve e a o objeto real. Ao passo que na descrição cristalina,
ela “cria e apaga a um só tempo” (DELEUEZE, 1985, P. 185) e “sempre está dando lugar a outras descrições
que contradizem, deslocam ou modificam as precedentes. Agora é a própria descrição que constitui o único
objeto decomposto, multiplicado” (DELEUEZE, 1985, P. 185). Neste ponto, entendo que a forma de
construção própria ao ensaio é correlata à descrição que a fabulação opera.

Inscrição e Memória
As imagens de arquivo, sobretudo de arquivo familiar, quando descoladas de um referencial, já não
são suficientes para a reconstituição dos eventos. Porém, podem vir a servir a um outro propósito, o da criação
artística, em sua ressignificação. Como aponta Harun Farocki, “é preciso encontrar com uma imagem ou
pensamento pelo menos duas vezes para ver o que acontece com ela, como ela se transformou por um novo
contexto.” (ALTER in ELSAESSER, 2004, P. 216) A imagem do registro assume ao longo do tempo
significações diferentes, em vista do presente a partir do qual ela é revisitada.
Estabeleço aqui uma ligação entre o aforismo de Farocki e a conceituação de memória sobre a qual
elaboro a presente reflexão e a realização de meu filme. Assim como a imagem ressignificada em um novo
contexto permite diferentes interpretações dos eventos ali registrados, pensamos a manifestação da memória
de uma forma análoga. A memória trata de uma evocação de um passado que se manifesta em determinado

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presente. Nesta fusão de temporalidades, aquilo que é evocado também se funde a um determinado contexto
presente no qual ocorre.
Em O Narrador, (BENJAMIN, 1996) texto de Walter Benjamin apresenta seu entendimento sobre
as diferentes manifestações da memória; segundo o autor, a memória pode se manifestar de forma voluntária
e involuntária e parte da evocação de um passado. No entanto, sempre se manifesta no presente. O ato de narrar
estas reminiscências é, portanto, um acontecimento que se modifica a cada vez que é produzido. Da mesma
forma, Beatriz Sarlo em Tempo Passado (SARLO, 2007) coloca, a partir de Deleuze e Bergson, que o tempo
próprio da memória é o presente; o passado se faz presente e sendo assim “o único tempo apropriado para
lembrar é o presente, e, também, o tempo do qual a memória se apodera, tornando-o próprio.” (SARLO, 2007,
P. 10)
A memória, portanto, é vivenciada como uma experiência que convoca à uma visão sobre
determinado passado e como experiência, não está aderida a nenhum suporte. Enquanto é possível falar de
registros e objetos que remetem aos fatos, a vivência da evocação destes fatos é da ordem da de algo que não
se repete, mas se sobrepõe em camadas. É intangível, sendo assim, não pode ser representada mas, no entanto
busca-se traduzi-la.
Gerald Edelman e Giulio Tononi (EDELMAN; TONONI, 2000) propõem, em uma visão geral, que
o que fica retido é um resíduo da experiência original e quando convocado de forma voluntária ou involuntária,
se manifesta, segundo os autores, como um tipo de “representação” (EDELMAN; TONONI, 2000. P. 93) do
que foi esta experiência, podendo aparecer sob a forma de imagens ou outras sensações com os demais
sentidos. No entanto, este é um primeiro contato com a memória e para que ela produza algum sentido, precisa
ser organizada na forma de um pensamento, que remeta a esta experiência. E, para que ela comunique algo, a
organização deste pensamento acerca da memória deve produzir algo da ordem do discurso.

Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem a narração: a


linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu
esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A narração inscreve a
experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio
começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração
também funda uma temporalidade que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar.
(SARLO, 2005, P. 25)

Como questiona Sarlo (SARLO, 2005): no relato, resta ainda alguma coisa da experiência? Não
existe uma resposta definitiva para esta indagação e não seria possível esgotar esta questão. Meu interesse recai
sobretudo no aspecto de criação que a memória opera ao resgatar esta experiência. Assim retorno a Benjamin
em O Narrador (BENJAMIN, 1996), segundo o qual uma das formas da memória seria esta busca por
recuperar um fato e tentar dar algum sentido ao que foi assimilado, através da organização de uma narrativa.
Este texto de Benjamin me interessa também no que tange o ato de narrar, associado ao ato de criar
experiências. Entendo que a memória é uma associação de temporalidades.

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Neste processo de realização, me interessa a memória como uma experiência que pode se tornar um
substrato, que ao ser ressignificado, dá ensejo à criação artística. Neste processo de criação, esbarra-se nos
limites e potências da própria representação. Limites, pois a experiência escapa a ser fixada em uma forma.
Potências, pois a tentativa de traduzir a memória gera novas experiências e narrativas. Trata-se aqui de refletir
sobre a forma sinuosa pela qual a fabulação atua na criação de narrativas, a partir de acúmulos e perdas. E,
particularmente, como este ato de fabricação pode dar origem a fabulações, no corpo de uma obra
cinematográfica.
A imagem, de maneira geral, e cinematográfica, em particular, carrega em si acontecimentos
polifônicos e, como toda imagem, está aberta à projeção de múltiplos sentidos. A memória é seletiva e lacunar,
um acontecimento, que opera a partir de um corpo físico-mental e que não se repete. Mesmo quando lembrança,
se modifica no processo de rememorar. A evocação da experiência vivida reinventa o passado em um
determinado presente e opera uma fusão de temporalidades, de forma única, pois estes resíduos deixados pelos
fatos vividos sempre serão evocados em um presente distinto. A memória que busco traduzir não diz respeito
ao passado, mas sobre o efeito que ela produz no presente. Em especial, sobre o efeito que produzem aos que
se deparam com o registro de uma imagem, há muito esquecida.

Processos
A primeira etapa de realização do filme se deu com a telecinagem deste material super 8mm para
uma mídia digital, feita de maneira artesanal, com auxílio de um projetor 8mm e duas câmeras digitais para
captação. A escolha por este aparato permitiu registrar também o contra campo deste momento em que o filme
é projetado, ou seja, a mim mesma assistindo ao filme, após dez anos de sua primeira visualização.
Uma vez em posse de um arquivo digital, um dispositivo foi instaurado, obedecendo a algumas
variações, necessárias de acordo com as naturezas dos eventos. O dispositivo consiste em projetar o material
tanto para meus familiares, como também para pessoas que não tinham nenhuma relação com o projeto. O
princípio norteador foi de mostrar as imagens, sem que num primeiro momento fosse explicada a natureza
deste registro ou sobre seu objetivo e, com isso, com isso, buscar não influenciar qualquer relação prévia que
pudessem estabelecer com o material de arquivo. Posteriormente, colhi depoimentos sobre as impressões
provocadas junto a esses espectadores. Os entrevistados foram convidados a se expressar individualmente.
Meu intuito, ao gravar os depoimentos, era de captar nestas falas, fabulações, que pudessem dar origem a
narrativas.
No segundo semestre de 2019, realizei uma primeira rodada de entrevistas com pessoas que
desconheciam o projeto. A projeção do material foi realizada para todos os presentes conjuntamente e depois
os entrevistei individualmente sobre o quê o material havia evocado para cada um.
A natureza do filme super 8mm, com sua coloração, granulação e, nesse caso, a ausência de banda
sonora, desencadeou junto aos presentes reminiscências próprias, o que era de meu interesse. Independente
das imagens contidas no super 8mm e do universo nele inscrito, a fabulação ensejada pelo encontro com o

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tema, com a época e pessoas presentes no evento filmado, trouxe à tona a evocação de universos imaginários,
pouco percorridos enquanto realidade e muito explorados enquanto enredo sobre um tempo. As falas coletadas
evocam o ato de criação que a memória envolve. Não se pode recuperar o acontecimento passado e esquecer
faz parte do lembrar. Ao se falar de reminiscências, este algo que se manifesta no presente está em busca de
reconstituir, de alguma forma, o fato vivido. No entanto, ao se recuperar as sensações antigas, novas sensações
são criadas no processo de evocar.
Dentre os depoimentos colhidos nesse dia, atribuí maior relevância, no contexto desse projeto, a uma
depoente que discorre sobre a importância das imagens no processo de evocar e criar memórias, pois ela mesma
relatava ter perdido os pais ainda cedo em sua vida e não possuir mais que três fotografias de seus progenitores.
Ela conta que possuía fotos de sua mãe, anteriores ao seu nascimento, e que fazia um esforço para reconhecer
a imagem que conheceu de sua mãe, nas fotos que tinha. Esta passagem me remete ao texto de Roland Barthes,
A Câmara Clara, (BARTHES, 1984) no qual o autor descreve uma situação simetricamente oposta, ao dizer que
percorria as fotos de sua mãe já falecida, “mas nenhuma me parecia verdadeiramente “boa”: nem desempenho
fotográfico, nem ressurreição viva da face amada.” (BARTHES, 1984, P. 96) Até que algum tempo depois,
ele encontra uma foto muito antiga, de quando sua mãe era ainda uma criança e na qual ele consegue reconhecer
suas expressões. Estas duas descrições, quando justapostas, me fez refletir sobre o sentido da imagem nesta
busca por memórias. Barthes, em sua obra, assim como a depoente em seu relato, parecem estar em busca de
imagens nas quais possam encontrar suas próprias memórias e experiências. No caso desta entrevistada em
questão, ela afirmava fazer um esforço para que pudesse enxergar, nas fotografias, a imagem da mãe tal qual
se recorda. Barthes afirma, ao contrário, que nem todas as imagens conseguem evocar em nosso espírito aquilo
que pretendemos recordar. Não se trata, portanto, apenas do registro de algo ou alguém, mas sim da potência
em se atribuir um significado para estas imagens, de modo que elas coincidam com as imagens mentais que se
possui, daquilo que foi registrado.
Em um momento posterior do projeto, ainda me utilizando deste mesmo dispositivo, passei às
entrevistas com meus familiares, que conheciam a natureza dos eventos ali registrados. As entrevistas foram
coletadas durante uma viagem de festas de final de ano. Para que nenhum relato invadisse a fala dos demais,
tomei o cuidado de mostrar as imagens e subsequentemente gravar os depoimentos individualmente e pedi
sigilo sobre o que haviam visto e falado.
Vale ressaltar que estes depoimentos foram coletados de maneira bastante artesanal, contando apenas
comigo e meu companheiro, ambos operando os equipamentos de captação de som e imagem. Se esta condição
significa abrir mão em relação à estrutura e elaboração do aparato técnico, ganhei ao construir um ambiente
de intimidade, fator determinante no que diz respeito ao testemunho.
Essas entrevistas ainda não foram editadas, ou seja, não foram confrontadas e comparadas umas às
outras. Mas, em uma primeira análise, trazem os elementos de fabulação que eu buscava. À sua maneira, cada
integrante de minha família busca falar das pessoas que estão vendo na imagem. Dentre todas as entrevistas
realizadas, destaco abaixo o resultado obtido da entrevista que realizei com minha mãe.

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Nesta entrevista com minha mãe, uma personagem chave deste processo, registrei o momento no
qual ela assiste às imagens após anos sem vê-las. Foi ela que havia guardado esta bobina de filme, pensando
ser um filme de seu casamento. Na primeira ocasião em que eu assisti às imagens, perguntei a ela se meu pai
havia feito este registro, ela afirmava não se lembrar que havia este registro e que era possível que tivesse sido
realizado por meu pai.
Se antes ela afirmava não se lembrar deste registro, ao ver as imagens, lembrou-se que a câmera
pertencia à uma pessoa da família de meu pai, que se ofereceu para levar a câmera na ocasião. Muito
provavelmente, segundo as palavras de minha mãe, pode ter sido esta prima em questão quem efetuou os
registros. Minha mãe foi, dentre meus familiares, a pessoa que mais identificou as pessoas que figuram nas
imagens.
Por outro lado, ela se pergunta se o rosto masculino pelo qual a câmera passa, criando uma imagem
desfocada, seria de fato meu pai. Enquanto assistia pela primeira vez, ela afirma o ter visto, mas logo em
seguida, quando reassiste ao material, ela fica em dúvida.
Ainda em sua entrevista, minha mãe afirmou possuir lembranças que ela considera muito precisas
sobre momentos longínquos de sua vida ou sobre os eventos mais recentes. Mas, memórias ligadas à época
deste registro são vistas por ela como mais turvas, colocando em cheque algumas das informações fornecidas.
Ao desenvolver sua argumentação, ela narra uma história de sua própria infância que a marcou e sobre a qual
possui uma imagem nítida em sua mente, de seu primeiro dia de aula, sobre o momento em que seu pai, meu
avô, vira de costas e sai da sala onde ela estava com a professora.
Penso que as histórias e especulações acerca dos fatos narrados por minha mãe, atendem ao propósito
de minha investigação sobre a fabulação a partir da memória e o poder de criar narrativas que comuniquem
certas experiências e acontecimentos, mesmo quando inventadas.
Cito aqui o filme Do Esquecimento ao não me lembro, filme no qual Juan Carlos Rulfo busca
reconstituir a história de vida de seu pai, o escritor Juan Rulfo, sem no entanto traçar sua biografia de forma
linear e apoiada em fatos comprovados. Ao invés disso, o realizador opta por instaurar uma atmosfera
semelhante às das obras de seu pai nas quais o texto é repleto de vaguezas, incertezas, lacunas. Os diversos
entrevistados são contemporâneos ao pai do realizador, alguns deles o conheceram, já outros não podemos
afirmar pelas cenas apresentadas. A maioria deles luta contra a memória falha e o esquecimento completo, que
a montagem do filme evidencia. As histórias apresentadas desviam por vezes do assunto principal, quando não
se contradizem. A sensação que emana do filme é da impossibilidade de se acessar os fatos que o realizador
busca conhecer, ao entrevistar esses personagens. Por outro lado, ele acessa uma atmosfera, um estado,
justapondo narrativas diversas, músicas, paisagens. Este exemplo aqui apresentado reflete em parte um dos
objetivos de minha pesquisa: falar desta impossibilidade de se reconstituir por completo uma experiência a
partir de sua lembrança, nem mesmo se nos apoiamos em materiais de registro, como é o caso.
Em meu processo, tenho feito um movimento da elaboração conceitual, por meio da escrita e da
realização cinematográfica. Tanto a experiência da realização tem servido de suporte para reflexões e

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desenvolvimento de uma tese, como, em um sentido inverso, a escrita instiga e dá sustentação à prática
cinematográfica.
Acrescento ainda o que entendo como uma visão parcial sobre o processo, pois nem o filme e nem a
escrita da tese encontram-se finalizados. Beatriz Sarlo em Tempo Passado (SARLO, 2007) trata, entre outros
aspectos, da questão do testemunho como uma forma de comunicar algo relativo a uma experiência vivida. A
necessidade de comunicar uma experiência, a cristaliza na forma de um discurso e motiva a autora a questionar
acerca da parte residual da experiência, passível de permanecer reconhecível no relato. A experiência, única e
impossível de ser repetida, não se materializa no relato, ela pode ser uma parte deste, mas que, ao narrar,
produz-se uma outra experiência a partir das memórias. Uma forma derivada que leva em conta a narrativa
que se cria e o momento presente da evocação. O que me faz cogitar a transmissão de um relato como uma
criação, não totalmente ficcional, mas que compreende também um trabalho de elaboração de algo que dê
conta, ou não, de expressar o vivido. Jacques Derrida em seu livro A Morada (DERRIDA, 1998) afirma que:
“não há testemunho que não implique estruturalmente em si próprio a possibilidade da ficção e simulacro, da
dissimulação, da mentira e do perjúrio.” (DERRIDA, 2004, P.24) A fabulação revela uma verdade, mas
também implica em criação. Deleuze coloca que a fabulação revela esta impossibilidade do relato em atingir
a completude da experiência. Nesta lacuna, se insere sua verdade, ao revelar seus limites e potências, ao dar
origem a narrativas que instauram uma nova experiência.

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aproximação entre estes dois relatos, de dois processos distintos de realização, evidencia alguns
aspectos da criação cinematográfica, como a apropriação de imagens de arquivo e a construção de imaginários
a partir de suas materialidades. O relato desses processos enriquece o debate sobre a realização de projetos que
se afastam de modelos mais convencionais de produção e que buscam dialogar com o contexto das realidades
nos quais se inserem.
A produção de tais relatos visa o desenvolvimento do campo teórico da escrita cinematográfica, como
também do pensamento sobre a dramaturgia audiovisual. Ao longo da história do cinema, muitos realizadores
percorreram, em uma via de mão dupla, o caminho que vai da escrita teórica ou reflexiva à realização e da
realização à escrita tanto de novos projetos como de textos que derivam de seus processos criativos. Estes
realizadores, tais quais Andrei Tarkovski, Pier Paolo Pasolini, Glauber Rocha e Jean Luc Godard, entre outros,
apontaram como suas obras audiovisuais dialogavam com suas produções textuais, assim como articulavam
pensamentos e teorias a respeito do campo cinematográfico.
Pensamos, assim, que as pesquisas em artes avançam também na medida em que este caminho entre
o campo teórico e o prático pode ser encurtado ou borrado e possa servir de estímulo na relação entre um e
outro.

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Del Olvido Al No Me Acuerdo (Do Esquecimento ao Não me Lembro), Juan Carlos Rulfo, México, 1999

Informações sobre o Artigo


Resultado de projeto de pesquisa, de dissertação, tese: O Relato II - Cinema, Fabulação e
Memória faz parte da pesquisa de Doutorado de Carolina Gonçalves Pinto
Fontes de financiamento: não se aplica
Apresentação anterior: não se aplica
Agradecimentos/Contribuições adicionais: Tales Ab’Sáber, Nara Dip, Alexandre Lima, Profa.
Dra. Patricia Moran Fernandes, Grupo Transversalidades Poéticas no Audiovisual.

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Rubens Rewald
Rubens Rewald é Professor Doutor da área de Dramaturgia Audiovisual do Curso Superior do
Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Escreveu e dirigiu
os curtas Cânticos (1991), Mutante… (2002) e os longas Corpo (2007), Esperando Telê (2010),
Super Nada (2012), Intervenção – Amor não quer dizer grande coisa (2017), Segundo Tempo
(2019), Jair Rodrigues – Deixa que Digam (2020) e #eagoraoque (2020). Publicou os livros Caos
Dramaturgia (2005), pela Ed. Perspectiva e A Dança do Fantástico – Autor Espectador (2019), pela
Ed. Patuá. No Teatro, escreveu diversas peças, como: Rei de Copas (1994) – Prêmio APCA,
Narraador (1996), Umbigo (2004) – Prêmio Funarte de Dramaturgia, Bruxas Bruxas e
mais Bruxas (2012), Prêmio APCA, entre outras.
E-mail: rrewald@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1794-971X

Carolina Gonçalves Pinto


Doutoranda e Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, com especialização prática em Audiovisual pelo Le Fresnoy -
Tourcoing, França, extensão em prática do documentário na La Fémis e graduada em Cinema e
Vídeo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Atua como diretora e
roteirista de documentários, curtas metragens e outras obras audiovisuais. Foi assistente de
direção por mais de dez anos.
E-mail: divinaclementina@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0203-9593

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