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VISSUNGOS

CANTOS AFRO-DESCENDENTES

BELO HORIZONTE, OUTUBRO DE 2008. EDIÇÃO ESPECIAL. SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS.
SÔNIA QUEIROZ

PEDINDO LICENCA PRA CANTAR


“Os vissungos estão quase desaparecendo. Estão morrendo os poucos que sabiam. Os moços que aprenderam por necessidade ou VOZES DA ÁFRICA
EM TERRAS DIAMANTINAS
por curiosidade vão se esquecendo.” – assim já nos alertava Aires da Mata Machado Filho, por volta de 1938, quando terminava o
manuscrito de seu estudo intitulado O negro e o garimpo em Minas Gerais. Hoje, setenta anos depois, o alerta tornou-se uma rea-
lidade: esses cantos, vindos da África e que persistiram ao longo do tempo na região diamantina, resistem atualmente nas pessoas
de Ivo Silvério da Rocha, patrão do Catopê de Milho Verde, e Pedro de Almeida, cantador de Quartel do Indaiá.

Contudo, a pesquisa pioneira de Aires, ao dar forma escrita a sessenta e cinco vissungos, salvou do completo esquecimento parte
fundamental da história cultural brasileira, pois, como ele próprio já observava, “muito mais do que o produto de três raças tristes,
nossa música é o resultado da influência negra”, e um pouco do alcance dessa influência pode ser vislumbrado por meio da leitura
dos artigos deste Suplemento Especial, com curadoria da Profa. Sônia Queiroz, que homenageia os vissungos e o pesquisador Aires
Os vissungos, “cantigas em língua africana ouvidas outrora nos ser-
da Mata Machado Filho.
viços de mineração”, foram identificados pelo pesquisador Aires da
Alguns desses cantos, que se dirigiam à lua, ao trabalho, às coisas simples do dia-a-dia, com “evidente teor religioso”, ganham
aqui traduções, transcriações, transculturações, em prosa ou em verso, a fim de partilharmos todos do movimento iniciado e inci-
Mata Machado Filho em 1928 nos povoados de São João da Chapada
tado por Aires. Ele dizia: “Nos vissungos, os compositores de peças eruditas encontrarão o mais cristalino manancial. Villa-Lobos,
Mignone e seus seguidores terão a escolher farta messe de temas autênticos. Pensávamos neles, enquanto nos esforçávamos para
e Quartel do Indaiá, no município de Diamantina, em Minas Gerais.
grafar tais melodias, de rara e esquiva cadência”.
Entre 1939 e 1940, Aires publicou em capítulos, na acompanhamento nenhum, e o dobrado, que é a resposta
Assim, respondendo a essa convocação, numa espécie de desafio, “com a boca colada à terra” de um passado distante, de uma importante Revista do Arquivo Municipal, de São Paulo, dos outros em coro, às vezes com acompanhamento de
língua entre íntima e inaudita, buscou-se aqui a criação e a reflexão que conjugam, num mesmo gesto, a preservação dos traços da o resultado de sua pesquisa sobre esses cantos de tradição ruídos feitos com os próprios instrumentos usados na
memória e a sua mágica e sempre futura reinvenção. banto: 65 cantigas, com “letra, música e tradução, ou tarefa”. No capítulo 9, os vissungos foram agrupados
antes ‘fundamento’”, além de dois glossários da “língua em: padre-nossos, cantos da manhã (ou: ao nascer do
Camila Diniz banguela” – um deles extraído dos cantos e o outro, dia), canto do meio-dia, cantigas de multa, cantigas de
Editora do linguajar local; e ainda 8 capítulos de estudo sobre caminho, cantigas de rede e de caminho, pedindo licença
Paulo de Andrade a cultura afro-brasileira no contexto do trabalho da para cantar, gabando qualidades (talvez equivalente
Assessor Editorial mineração de diamantes. A primeira edição em livro saiu banto do oriki da tradição iorubá), cantos de negro
em 1943 pela José Olympio, na coleção Documentos enfeitiçado, cantiga de ninar, canto do companheiro
Brasileiros, ao lado de títulos da maior relevância, como manhoso e, ainda, um grupo de cantigas diversas.
Capa: Performance de JORGE DOS ANJOS fotografada por LUIZ HENRIQUE VIEIRA.
os clássicos Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
JORGE DOS ANJOS é artista plástico, nascido em Ouro Preto, MG, que em grande parte de seu trabalho de desenho, pintura e escultura tem buscado inspiração
nos traços da cultura afro-brasileira. Em constante pesquisa de técnicas e formas, aqui o artista, a convite do Festival de Inverno da UFMG, buscou o lastro Holanda, e Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre. Alguns vissungos “parecem cantos religiosos adapatados
do fogo para desenhar os cantos dos negros de Quartel do Indaiá.
Outra marca do prestígio dessa edição: conforme nota no à ocasião”, talvez pelo esquecimento de seu significado
LUIZ HENRIQUE VIEIRA é formado em Artes Visuais com especialização em Desenho (Escuela Leonardo da Vinci, Barcelona, Espanha). Participou de 29 Salões
de arte nacionais e internacionais, tendo sido premiado em 11 deles – Prêmio Pirelli de Pintura, São Paulo, 1983; Premi Internacional de Dibuix Joan Miró, verso da folha de rosto, “foram tirados, fora do comércio, original, observa o pesquisador. Mas outros conservam
Barcelona, Espanha, 1985; entre outros. vinte exemplares em papel Vergé, numerados e assinados seu sentido místico-religioso: “Há cantigas especiais para
pelo autor”. A segunda edição foi publicada pela também conduzir defuntos a cemitérios distantes” (das quais ele
GOVERNADOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS AÉCIO NEVES DA CUNHA SECRETÁRIO DE Suplemento Literário de Minas Gerais prestigiosa Civilização Brasileira, em 1964. Em 1985, a recolheu três exemplos) e há cantigas, como os padre-
ESTADO DE CULTURA PAULO BRANT SEcRETÁRIA ADJUNTA SYLVANA PESSOA Av. João Pinheiro, 342 - Anexo
Superintendente do SLMG CAMILA DINIZ FERREIRA Assessor editorial E 30130-180 Belo Horizonte MG Itatiaia, a mais antiga editora mineira, publicou com a nossos, usadas na mineração e também nas cerimônias
REVISOR PAULO DE ANDRADE + PROJETO GRÁFICO e direção de arte MÁRCIa LARICA
+ CONSELHO EDITORIAL ÂNGELA LAGO + CARLOS BRANDÃO + EDUARDO DE JESUS
Tel/fax: (31) 3213 1072 edusp, na coleção Reconquista do Brasil, uma edição que de levantamento do mastro, nas festas religiosas.
suplemento@cultura.mg.gov.br
+ MELÂNIA SILVA DE AGUIAR + RONALD POLITO + EQUIPE DE APOIO ANA LÚCIA (agora sem a parceria da edusp) ainda se encontra no
GAMA + Elizabeth Neves + APARECIDA BARBOSA + Weslley Rodrigues +
ESTAGIÁRIos BRUNA MARTA + GABRIEL ANGELIS + MARIA FERNANDINA + ACESSE O SUPLEMENTO ONLINE: mercado. No capítulo 8, dedicado ao estudo das cantigas, Aires
JORNALISTA RESPONSÁVEL Antônia Cristina de Filippo {REG. PROF. MTB 3590/mg} www.cultura.mg.gov.br
TEXTOS ASSINADOS SÃO DE RESPONSA­BILIDADE DOS AUTORES. AGRADECIMENTOS: ressalta “a necessidade universal de trabalhar cantando”.
Imprensa oficial/francisco pedalino Diretor geral, j. Persichini cunha
Diretor de tecnologia gráfica + Usina das letras/Palácio das Artes +
Segundo Aires da Mata Machado Filho, “dividem-se os E associa à prática dos negros de São João da Chapada
Cine Usina Unibanco + Livraria e Café Quixote + Francisco Magalhães. Impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais. vissungos em boiado, que é o solo, tirado pelo mestre sem e Quartel do Indaiá os cantos das colheitas de uvas

Outubro 2008 .1
Capa da primeira edição pela José Olympio, 1943. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG. Capa da segunda edição pela Editora Civilização Brasileira, 1964. Capa da terceira edição pela Editora Itatiaia, 1985.

em Portugal, das fiandeiras, dos capinadores de roça e ritmo que deságua no carnavalesco de Maracangalha, patrimônio lingüístico e cultural. Em outras palavras: Belo Horizonte, no Centro Cultural Tambolelê e na
dos mutirões. “Muito interessante era a multa. Quando canção que se segue ao vissungo, em pot-pourri, na desaparecido o ritual dos funerais feitos a pé e o sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, e no
alguma pessoa chegava à lavra, era logo multada pelos mesma faixa do CD. trabalho coletivo, as festas religiosas de cronograma largo da igreja do Rosário, no encerramento do 4º
mineradores, com uma cantiga apropriada”: pediam fixo (especialmente a festa de N. S. do Rosário) passam Encontro Cultural de Milho Verde, distrito do Serro;
alguma coisa ao recém-chegado. “Uma vez satisfeito o Ao final da década de 90, a Associação Cultural a desempenhar um papel essencial na preservação dos em 2004, foi realizada uma oficina de transcriação de
pedido, seguia-se à multa o agradecimento com danças, Cachuera! gravou, na voz de Ivo Silvério da Rocha, cantos de tradição africana em Minas. vissungos, articulada a outra, de Etnomusicologia, com
ritmo de carumbés e enxadas”. contramestre do Catopê de Milho Verde (distrito do a participação dos dois cantadores de Milho Verde e de
Serro), três “cantos para carregar defuntos em redes”, O interesse na preservação desse patrimônio histórico estudantes angolanos falantes de quimbundo e umbundo
Com o desenvolvimento das tecnologias de gravação que constituem a primeira faixa do CD Congado Mineiro, e cultural brasileiro e o reconhecimento do papel – línguas banto faladas em Angola que estão na base
sonora na segunda metade do século XX, catorze dos 65 lançado pela Itaú Cultural, na série Documentos Sonoros relevante da Arte nesse processo têm levado alguns desses cantos afro-brasileiros; em 2008, nos 40 anos do
vissungos escritos pelo Prof. Aires foram gravados, em Brasileiros. Juntamente com as gravações que constituem artistas e pesquisadores a desenvolver estratégias Festival de Inverno da UFMG, os vissungos foram tema
1982, nas vozes de Clementina de Jesus, Doca e Geraldo as faixas 12 a 17 do CD Festa do Rosário – Serro, de valorização e revitalização das línguas e culturas da instalação montada pelo Núcleo Avançado de Criação
Filme, no LP O canto dos escravos, da Eldorado. Nessa lançado por Caxi Rajão em 2002, esses são os únicos africanas que foram vivas em Minas no período da Intermidiático, que reuniu profissionais das cinco artes
gravação, hoje disponível em CD, percebe-se uma leitura registros sonoros dos Catopês de Milho Verde, grupo mineração, reduzindo-se a vestígios esparsos a partir envolvidas.
nagô-iorubá dos cantos de tradição banto. Segundo o que mantém vivos ainda hoje, em seu repertório ritual, sobretudo do século XX. O Festival de Inverno da
musicólogo José Jorge de Carvalho, em Um panorama alguns desses cantos da tradição banto. UFMG tem se constituído num espaço de experiências Os ensaios e poemas que publicamos aqui, neste número
da música afro-brasileira, “a base rítmica escolhida poéticas transculturais que contemplam a cultura especial do Suplemento Literário, procuram dar aos
não repetiu o padrão rítmico original, mas usou um Dentre os membros do catopê de Milho Verde, a afro-brasileira: em 2002, reuniram-se em Diamantina leitores uma idéia da riqueza que até hoje podemos
tipo de ritmos binários generalizados de umbanda, tais pesquisadora Lúcia Valéria Nascimento, que investigou os dois cantadores de vissungos do Serro e o grupo extrair da pesquisa sobre os cantos de tradição banto
como o barravento, que ouvimos em casas de umbanda, a sobrevivência dos vissungos na região de Diamantina Tambolelê, de Belo Horizonte – constituído por músicos iniciada há oitenta anos pelo mineiro Aires da Mata
macumba e jurema por todo o país”. Cerca de quinze e Serrro no início do século XXI, identificou, além negros que trabalham com a poética afro-brasileira Machado Filho, em férias por sua terra natal, o distrito de
anos depois, em Minas Gerais, o músico Gil Amâncio e do contramestre, outro cantador proficiente: Antônio – numa proposta de criação coletiva integrando São João da Chapada, no município de Diamantina.
o poeta e músico Ricardo Aleixo incluíram um desses Crispim Verísssimo, que demonstrava ainda algum tradição e experimentação, que resultou no espetáculo
catorze vissungos no espetáculo e CD Quilombos urbanos: conhecimento ativo da “língua banguela” ou “língua Macuco Canengue, apresentado no adro da igreja do
SÔNIA QUEIROZ é poeta (Prêmio Cidade de Belo Horizonte 1980 com o livro O sacro ofício)
Muriquinho piquinino, o canto 62 do livro de Aires. d’Angola”, como a designavam os falantes à época dos Rosário, em Diamantina; e no documentário de mesmo e pesquisadora. Vem se dedicando ao estudo dos remanescentes lingüísticos e da literatu-
Também na releitura dos Quilombos urbanos, os tambores registros feitos por Aires da Mata Machado Filho. É título, produzido pelo antropólogo e videomaker ra oral de tradição banto em Minas Gerais, tendo publicado pela Editora UFMG o livro Pé
preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga.
não choram como pede o coro, mas se aceleram num notável a força do canto e da dança na preservação do Pedro Guimarães, e mostrado ao grande público em

2. Outubro 2008 VOZES DA ÁFRICA EM TERRAS DIAMANTINAS Sônia Queiroz VOZES DA ÁFRICA EM TERRAS DIAMANTINAS Sônia Queiroz Outubro 2008 .3
Ao final do século XIX, o médico-professor ram as pesquisas na cidade de Salvador, Universidade Nacional do Zaire em 1976 e

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


Nina Rodrigues realiza na cidade da Bahia nos mesmos terreiros onde ritos e mitos recentemente se encontram no livro Fala-
as primeiras pesquisas sobre línguas e re- do panteão iorubá são de fácil observação res africanos na Bahia, publicado em 2001,
ligiões africanas no Brasil. Impressionado empírica. O resultado desse continuismo já em segunda tiragem em 2005.
pela presença majoritária de falantes oes- metodológico foi o desenvolvimento da
te-africanos, principalmente de iorubás- tendência equivocada de resumir a histó- Naquele ano, o Centro de Estudos Afro-
nagôs naquela cidade, um fato novo para ria do negro no Brasil à história do povo Orientais da Bahia, através de intercâm-
a época por contrariar a concepção aceita sudanês através de uma ótica iorubá. Até bio com a Universidade Nacional do Zai-
de que seriam de origem banto os africa- mesmo Edison Carneiro, que dedicou um re, inaugura o ensino de línguas do grupo
nos trazidos para o Brasil na condição de livro aos negros bantos no Brasil, terminou banto no Brasil com o curso de quicongo
escravos, Nina Rodrigues chegou à conclu- incorrendo no mesmo erro de admitir a su- ministrado pelo professor congolês Nlandu
são equivocada de que os iorubás eram os posta inferioridade cultural desse povo em Ntotila. Em 1980, e por dez anos, esse cur-
africanos mais numerosos e influentes na sua própria origem, um estereótipo ainda so ficou sob a responsabilidade docente de
Bahia, mas querendo dizer Salvador, visto veiculado pela historiografia brasileira. um de seus alunos, Tata Raimundo Pires,
que suas pesquisas nunca passaram dessa que era membro da comunidade religiosa
cidade, então chamada de Bahia, nem fo- Na década de 60, começam a ser oferecidos de tradição congo-angola. Atualmente esse
ram estendidas aos congos e angolas que cursos práticos de língua iorubá através dos curso é oferecido pelo ACBANTU, entidade
ali se encontravam, como ele próprio con- centros de estudos africanos recém-criados afro-baiana dedicada aos estudos das tra-
fessou. Além disso, como a língua iorubá nas universidades da Bahia e, depois, de dições do mundo banto no Brasil.
já dispunha à época de uma literatura que São Paulo. A partir de então, o ensino da
lhe conferia, através de uma visão ociden- língua iorubá foi popularizado no Brasil e, RESULTADOS DA PESQUISA
tal, um certo prestígio comparável às lín- com ele, a idéia absurda de se conceber o Levando em consideração que a língua
guas européias face à oralidade da tradição continente africano como um país singu- viva de um povo é o testemunho mais an-
africana, Rodrigues terminou por exaltar a lar, uma África “única”, de língua e cultura tigo da história desse povo, os dados ob-
supremacia iorubá no Brasil, atribuída, se- iorubá, sem diversidade étnica, lingüísti- tidos no domínio da língua, da religião e
gundo esse mesmo parâmetro, à superiori- ca e cultural. Basta lembrar das tentativas das tradições orais no Brasil revelaram a
dade da cultura do seu povo em relação a de se querer atribuir um étimo iorubá ao presença banto como a mais antiga e supe-
outros povos negro-africanos também tra- termo banto candomblé e do exemplo do rior em número e em distribuição geográ-
zidos pelo tráfico transatlântico, o que não filme Quilombo, de Cacá Diegues, onde os fica no território brasileiro por mais de três
é verdadeiro. palmarinos falam iorubá, numa época (séc. séculos consecutivos.
XVII) em que não há registro da presença
CONTINUIDADE METODOLÓGICA E de falantes de iorubá no Brasil. Testemunho deste fato é a antroponímia de
PIONEIRISMO Palmares no século XVII, Ganga Zumba,

A PROPÓSITO DO
Na década de 30, a publicação de sua obra Nos anos 70, porém, inicia-se uma nova Zumbi, Dandara, sua toponímia, Dembo,
póstuma Os africanos no Brasil despertou o fase nos estudos afro-brasileiros com a Macaco, Osengo, Cafuxi, e o vocabulário

QUE DIZEM
interesse maior pelos estudos afro-brasileiros redescoberta da importância do mundo associado à escravidão, tais como: quilom-
no campo da religião, atraindo para a Bahia banto e de suas recriações no Brasil, en- bo, senzala, mocambo, libambo, bangüê,
pesquisadores de renome internacional, en- tão revelados através da descentralização mucama. Ao final desse mesmo século é

OS VISSUNGOS
tre os quais Roger Bastide e Pierre Verger. da pesquisa da cidade de Salvador que, publicada, em Lisboa, A arte da língua de
na África, foi estendida da região iorubá- Angola, uma gramática do quimbundo es-
No entanto, apesar de estudos cientifica- nagô do Golfo do Benin ao Congo e An- crita na Bahia pelo missionário Pedro Dias
mente mais bem orientados, todos segui- gola. Seus resultados foram analisados na com a finalidade de fornecer subsídios para
YEDA PESSOA DE CASTRO ram os passos de Rodrigues. Concentra- tese de doutoramento que defendemos na a catequese do grande contingente negro-

4. Outubro 2008 A PROPÓSITO DO QUE DIZEM OS VISSUNGOS Yeda Pessoa de Castro Outubro 2008 .5
na composição demográfica do Brasil co- brincadeira infantil brasileira dos escravos Uma correta interpretação das cultu-

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


lonial, tanto quanto por sua concentração de jó (os escravos domésticos) que joga- ras negro-africanas, de seus códigos, seu
em zonas rurais, isoladas e naturalmente vam caxangá (cf. Pessoa de Castro, 2007). conseqüente resgate do âmbito meramen-
conservadoras, onde o recurso de liber- A própria denominação vissungo corres- te folclórico ou lúdico, sua valorização e
dade era a fuga para os quilombos, foram ponde ao substantivo umbundo ovisungo, adequada difusão permitirão que o avanço
importantes fatores de ordem sócio-his- plural de ocisungo, que significa louvores e do entendimento da parte do legado banto
tórica que tornaram a participação banto ocorre geralmente na expressão imba ovi- para a formação e sentido do Brasil passe
tão extensa e penetrante na configuração sungo, cantar, louvar, exaltar (cf. Daniel, a ser visível e explícito, revertendo os este-
da cultura e da língua representativas do 2002, s/v.). reótipos vigentes em nossa academia.
Brasil que aportes de matriz banto, como
o samba e a capoeira, terminaram integra- Quanto ao influxo de línguas africanas no Além do mais, o estudo lingüístico des-
dos ao patrimônio nacional como símbolos português do Brasil, sem dúvida, a parte ses falares afro-brasileiros, apoiado pelas
de brasilidade. dos falares de base banto foi a mais signi- informações históricas existentes sobre o
ficativa no processo de configuração das período do tráfico transatlântico, trazem
Ainda hoje há registro de falares isolados diferenças que afastaram o português do subsídios importantes para a configuração
em comunidades rurais, provavelmente Brasil da sua matriz falada em Portugal. À do mapa etnolingüístico africano do Brasil.
vestígios de antigos quilombos, que pre- medida que a profundeza sincrônica revela Aqui está a prova do que nos dizem os vis-
servam um sistema lexical banto, a exem- uma antiguidade diacrônica, essa influên- sungos sobre a presença dos ovimbundos,
plo da linguagem do Cafundó em São Pau- cia torna-se mais evidente pelo grande nú- povo originário de territórios do antigo rei-
lo (cf. Vogt e Fry, 1996), do negro da costa mero de palavras do banto completamente no de Benguela, em terras de Minas Gerais.
em Tabatinga, Minas Gerais (cf. Queiroz, integradas ao sistema lingüístico do por-
1998) e nos vissungos recolhidos por Ai- tuguês e de derivados portugueses forma-
res da Mata Machado Filho em São João dos de uma mesma raiz banto por meio de
da Chapada e mais recentemente por Lúcia prefixos ou sufixos, tais como em nleeke, Referências
DANIEL, Rev. H. Epaungo. Dicionário de umbundo. Portugal:
Nascimento no município de Serro, tam- menino, jovem, que derivou em moleque, Edições Naho, 2002.
DIAS, Pedro. A arte da língua de Angola. Edição fac-similar. Rio
bém em Minas Gerais (cf. Machado Filho, e depois amolecar, molequinho, molecote. de Janeiro: MINC/Biblioteca Nacional, 2006.
GUTHRIE, Malcolm. The classification of the Bantu Languages.
1964; Nascimento, 2002). Importante notar Em outros casos, o lexema banto chega a London: Oxford University Press, 1948.
que se trata de falares de base portuguesa substituir completamente a palavra portu- MACHADO FILHO, Aires da Mata. O negro e o garimpo em Minas
Gerais. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,1964.
lexicalizados por línguas do grupo banto, guesa equivalente, como caçula por ben- NASCIMENTO, Lucia Valeria do. A África no Serro Frio: vissun-
gos do Milho Verde e São João da Chapada. Belo Horizonte: Fa-
assinalando-se, no entanto, a evidência de jamim, corcunda por giba, moringa por culdade de Letras, UFMG, 2003 (Dissertação de Mestrado).
PESSOA DE CASTRO, Yeda. Falares africanos na Bahia: um voca-
lexemas da zona lingüística R, na classifi- bilha, marimbondo por vespa, cochilar por bulário afro-brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira
de Letras/ Topbooks Editora, 2003.
cação de Guthrie, onde o umbundo, falado dormitar, bunda por traseiro. PESSOA DE CASTRO, Yeda. E por falar em samba, uma forma de
em Benguela, no Centro-Sul de Angola, é oração. Irohin, Brasília, v. 12, n. 20, p. 32-33, jul. 2007. Jornal
bimestral (16.000 exemplares).
majoritário. CONCLUSÃO QUEIROZ, Sônia. Pé preto no barro branco: a língua dos negros
de Tabatinga. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
Sendo assim, embora seja verdadeiro que VOGT, Carlos; FRY, Peter. Cafundó, a África no Brasil – língua
e sociedade. São Paulo: Cia. das Letras/ Campinas: Editora Uni-
africano que se encontrava naquela cidade de Matos e descrita, no século seguinte, em Congo) é sempre lembrada em versos como Entende-se assim por que os vissungos são esse processo de africanização se deva em camp, 1996.
sem falar português. No domínio da reli- 1728, por Nuno Pereira em O peregrino das Cabinda velha chegou / e rei do Congo fa- identificados pelos seus falantes como lín- grande parte à extensão e ocupação ter-
gião, predominam os vocábulos de origem Américas. Entre as mais conhecidas estão lou. A mesma lembrança se registra para a gua banguela. Em seu vocabulário predo- ritorial, densidade demográfica e antigui-
banto para nomear práticas diferentes de candomblé, umbanda, catimbó e macumba. Rainha Jinga ou Nzinga, do antigo Reino minam substantivos prefixados pela vogal dade do povo banto em território colonial
matriz negro-africana e os locais onde se Por sua vez, a importância histórica do de Matamba, em Angola atual. o-, um antigo demonstrativo que os ban- brasileiro, não se deve chegar ao extremo YEDA PESSOA DE CASTRO é etnolingüista, Doutora em Línguas
Africanas pela Universidade Nacional do Zaire, atual Universi-
realizam. No Brasil, a mais antiga de que Reino do Congo se reflete nos autos po- tuístas chamam de aumento, entre eles, o de querer “bantuizar” o Brasil como forma dade de Lubumbashi, (República Democrática do Congo). Além
de inúmeros artigos em periódicos, sobre as línguas africanas em
se tem notícia é calundu, registrada no sé- pulares denominados congos e congadas, A antigüidade dessa presença favorecida umbundo onjo, casa, mas que ocorre com de contrapor o “iorubacentrismo” que tem contato com o português no Brasil, publicou os livros Falares afri-
canos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro e A língua mina jeje
culo XVII na poesia satírica de Gregório onde a figura do Manicongo (senhor do pelo número superior do elemento banto o termo quimbundo njo na conhecida prevalecido nos estudos afro-brasileiros. no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII.

6. Outubro 2008 A PROPÓSITO DO QUE DIZEM OS VISSUNGOS Yeda Pessoa de Castro A PROPÓSITO DO QUE DIZEM OS VISSUNGOS Yeda Pessoa de Castro Outubro 2008 .7
1 turira auê, mapiá Muriquinho piquinino

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


Cantador turira auê, mapiá De quissamba na cacunda,
Jambá tuca rirá ô quê turira auê, mangorombô Purugunta adonde vai
Pru quilombo do Dumbá.
Respondedor Trabalha, trabalha em busca do ouro. Sol a
Jambá catussira rossequê sol. Remexe terras, remexe minas. Auê – eu Respondedor
choro. Auê – eu choro. Ei, chora-chora mgongo ê devera
Cantador chora, mgongo, chora
Rio, rio À noite, mininin lembrou da pedra encasca- Ei, chora-chora mgongo ê cambada
lhada. A pedra de brilho tem quer ser mereci- chora, mgongo, chora
– Achei ouro. Oooba! da e a marca de merecimento é o sol na pele,
– Esconde e segreda. é a chuva no coco e o cansaço dos músculos. Ficar aqui? Não. E ele, pequenino e meni-
Só é merecedor quem trabalha para conse- nin, vai-se embora, pro quilombo de Dum-
Como pode em uma pedrinha pequetita ca- gui-la. Chorou o cansaço do trabalho intenso. bá. Leva suas coisas e vai, para onde? Vai-
ber um elefante? É mistério que guardam os Chorou a pedra escondida, chorou de medo se embora para o quilombo de Dumbá. Vai
diamantes. O elefante e seu peso e marfim e do rio levá-la. A pedra bonita era mais que sozinho, mas vai com a reza de seu povo.
sua força e imensidão. O diamante e seu bri- beleza. O brilho era de liberdade também. Vai sozinho e o mundo, todo mundo, chora
lho e possibilidade de poder e riqueza. Acordou de noite e foi remexer o cascalho. não poder ir. Seu povo vai ficar. Para onde
ele vai? Vai-se embora para o quilombo de
O negro acha ouro e outras brilhosidades. Vai 3 Dumbá.
tudo pro patrão. A pele do negro é quente de Papai auê mamãe,
sol, é molhada de suor, é marcada de chibata. ongira oenda mondongo auê a. Caminhava o menino. Seus pais e seu povo
O bolso do senhor é cheio. O negro não guar- dormiam em sono, não ouviram seus passos,
da nada. Só segredo. Segredo ele cala, como Sigo o caminho do meu povo e auê – me quase ouviram uma lágrima que caiu de leve
esse que ficou calado e que eu vou contar e choro e alegro. no momento da decisão de partida. Mas o
que agora nem mais segredo vai ser. negrinho meninin pôde ouvir as vozes de
Antes de ir, olhou para sua casa. E se não vol- seu povo o acompanharem e ficou mais for-
Mininin achou ouro, pepita brilhante no rio. tasse? Pressentiu a saudade que iria mesmo te, cheio de impulso. Vai! Segue! Vai, vai. Ele
Seu grito retumbou nos ares. Sua voz teve sentir, viu o futuro em duas possibilidades: foi. Ouviu também, em meio aos incentivos, a
presença de elefante que caminha compas- perto de seus pais, sempre trabalho, sempre saudade, a tristeza do povo que queria rumo
sadamente: jam-ba, jam-ba, jam-ba, jam-ba choro, sem saída; perto da pedra ofuscante, novo e tinha que ficar e que ficou. Mais um
– são seus passos em direção ao pai. Para vida de fuga, talvez a venda da pedra, talvez passo, o povo – auê. O povo ficou. Mais um
mostrar a pedra. O menino bobo anunciou a melhora, talvez vida nova, talvez liberda- passo, a pedra já estava em suas mãos, des-
alto a pedra luminosa. O pai, experiente, viu de. Talvez. Olhou o caminho a sua frente, cascalhada, junto com ele rumo a Dumbá.
a confusão chegar, facas e tiros, ambição e longo caminho até o rio, pisado por centenas Estava escuro e a luz do ouro iluminava o
ganância de homens, e apontou o cascalho. de pés de negros, pés negros que choravam caminho: o caminho de Dumbá na memória,
Avisou com o olhar: guarda calado. O meni- caminhando para mais um dia de escravidão. a pedra na mão, o coração na boca, o ouro

PEDRA DO
no, agora esperto, entendeu o aviso: guarda Ele agora não chorava e se sentiu homem nos olhos, o frio na barriga, a noite em volta
segredo. E guardou a pedra no cascalho areia (menino-homem), como seus pais e avós ha- ia sendo afastada pelo sol do dia novo. Novo
fininha. O rio escutou tudo e fez chuuuum e viam sido no país África. O mesmo caminho dia. Dia em Dumbá.
fez sssss. Fez silêncio. havia se transformado em expectativa, espe-

MURIQUINHO
rança, fôlego novo. O menino caminhava.
2
Jambá cacumbi queremá, 4 CRISTINA BORGES é escritora, atriz (Indez, Prometeu Liberto)
e contadora de histórias. Mestre em Literatura Brasileira
turira auê, Cantador pela UFMG, desenvolveu pesquisa sobre Um homem da
Muriquinho piquinino, palavra: um estudo da poesia oral de Abel Tareco. As trans-
jambá cacumbi queremá, criações de vissungos aqui publicadas foram realizadas em
CRISTINA BORGES mapiá turi, Ô parente oficina do Festival de Inverno da UFMG, em Diamantina.

8. Outubro 2008 Outubro 2008 .9


Os vissungos cantados na região do Serro mente demonstradora, e a palavra-força.” As recente verificou que um grande número de

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


e Diamantina, Minas Gerais, durante todo palavras africanas que permaneceram nos cantos já não eram mais conhecidos pelos
o período de escravidão apresentavam em vissungos são palavras-força, capazes de poucos cantadores encontrados na região.
suas letras palavras provenientes de lín- manter, no Brasil, a íntima ligação dos ne- Além disso, alguns cantos deixaram de ser
guas africanas trazidas pelos negros escra- gros com suas culturas de origem e a união cantados e passaram a ser falados.
vizados. Pouco se sabe, até agora, sobre os dos afro-descendentes.
étimos dessas palavras, principalmente por- Mas a diferença mais interessante é a mu-
que o acesso a dicionários e gramáticas das Com o passar do tempo, os cantos perde- dança ocorrida nas letras dos cantos. Lúcia
diversas línguas africanas trazidas para o ram essa função social. Aprender e manter Nascimento encontrou ao todo 35 cantos,
Brasil ainda é muito restrito, mas pode-se uma linguagem diferente do português já 14 deles em Quartel do Indaiá e São João
afirmar que a maior parte delas provém de não é mais interessante para as novas ge- da Chapada e 21 em Ausente e Milho Verde.
línguas faladas em Angola, pertencentes ao rações de brasileiros. A falta do contexto Desses 35, 15 foram identificados pela pes-
grupo lingüístico banto. Cantados em di- social em que os vissungos eram cantados quisadora aos cantos registrados por Macha-
versas situações da vida cotidiana, seja du- (já não se garimpa mais em grupo, nem se do Filho. A maioria, 14 deles, foram cantados
rante o trabalho nas minas, para saudar um carrega defunto em rede até o cemitério por Pedro e Paulo, em Quartel do Indaiá e São
caminhante ou visitante, para fazer feitiço, mais próximo, não é mais necessário usar João da Chapada, não por acaso, a região
durante as brincadeiras ou durante os en- uma linguagem que não seja compreendi- da primeira pesquisa. Em Ausente, a autora
terros, os negros escravizados preservaram da por todos...) e, principalmente, a falta de encontrou apenas um canto estruturalmente
sua cultura à revelia dos senhores, através interesse no aprendizado fazem com que os semelhante à primeira recolha, um canto de
do canto, dos gestos, dos rituais, da perfor- vissungos saiam da memória afetiva que os multa cantado por Crispim Veríssimo. Além
mance e, principalmente, por meio da pre- mantinha vivos. Os mais novos perderam o da localização, outro fator que pode ter con-
servação de uma linguagem que se diferen- vínculo que os ligava ao passado (e aos an- tribuído para que a maior parte dos cantos
ciava do português por inserir as palavras tepassados), e assim os vissungos e a língua semelhantes tenha sido encontrada em Quar-
que herdaram de seus ancestrais. A língua usada nos cantos perderam a relevância que tel do Indaiá é que os cantos registrados por
desses cantos era, provavelmente, uma lín- tinham para a comunidade. Machado Filho são, em sua maioria, cantos
gua em que se mesclavam várias línguas de trabalho e, ao contrário dos cantadores de
africanas e o português. Para as comunida- Sobre esses cantos, temos duas grandes pes- Quartel do Indaiá, Crispim, o cantador de vis-
des afro-brasileiras, o hábito cotidiano de quisas de campo, separadas por mais de 70 sungos do povoado de Ausente, quase não se
cantar usando palavras africanas, desco- anos. A primeira delas foi realizada por Ai- recordava desses cantos, lembrando-se mais
nhecidas de seus senhores, era uma forma res da Mata Machado Filho, entre os anos daqueles ligados ao ritual do enterro.
de resistência e de manutenção do elo com de 1928 e 1939, nos povoados de São João
as culturas de tradição banto, mantendo a da Chapada e Quartel do Indaiá, município Hoje, os cantadores das duas localidades não
ligação com os antepassados. Para os afri- de Diamantina, Minas Gerais. O pesquisa- se lembram mais, com exatidão, das letras
canos, a música faz parte do cotidiano, mas dor registrou 65 vissungos, apresentando dos cantos ou do significado exato de cada
também tem a função sagrada de ligar os a transcrição do canto, seu fundamento, a palavra africana, mas ainda guardam a cons-

A FORCA DA
mundos natural e sobrenatural. partitura e, no final, um glossário contendo ciência e a responsabilidade da preservação
as palavras africanas mantidas nos cantos. do pouco que ainda lembram da língua e da
Nas culturas orais, a palavra é o elemento A segunda grande pesquisa foi realizada em cultura aprendida com seus antepassados,

PALAVRA NOS
essencial, a força capaz de gerar o feitiço ou 2001-2002, no Mestrado em Estudos Lingüís- como pode ser percebido na fala de Crispim,
de conectar os mundos dos ancestrais e seus ticos da UFMG, por Lúcia Nascimento, que em entrevista a mim concedida em 2005:
descendentes. Não se trata da palavra banal, retornou aos dois povoados diamantinenses Mais acontece que tem essa língua.

VISSUNGOS
mas sim de uma palavra-força, como obser- estudados por Machado Filho e expandiu a Esta tradição existe. E é na língua, tá
va Paul Zumthor, no livro A letra e a voz: “a pesquisa para outros povoados próximos, no dialeto. Essas coisa que eu tô falano.
palavra proferida pela Voz cria o que ela diz. Ausente, Baú e Milho Verde, no município de Nada que eu tô pra falá num tá no dia-
No entanto, toda palavra não é só palavra. Serro. Evidentemente, há muitas diferenças leto. Não, a gente num pode inventá...
NEIDE FREITAS SAMPAIO Há a palavra ordinária, banal, superficial- nos resultados das duas pesquisas: a mais As palavra que a gente falá, cê tem que

10. Outubro 2008 A FORÇA DA PALAVRA NOS VISSUNGOS NEIDE FREITAS SAMPAIO Outubro 2008 .11
cla lingüística com predominância do por- Ô pu cumbaro num tem tempo Pru quilombo do Dumbá:

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


tuguês, além de um número relativamente Ô… ê… ê… ei coro:
maior de cantos totalmente em português. Cumbarauê… ê… ê… ê… êi Ei, chora-chora ngongo ê devera
Cumbará… chora, ngongo, chora
Os cantos apresentam também outras di- Cumbarauê… êi… ê Ei, chora-chora ngongo ê cambada
ferenças interessantes: a primeira delas é a Cumbarauê… ê… êi chora, ngongo, chora
mudança lingüística ocorrida nos próprios
vocábulos africanos que ainda permanecem A diferença de extensão entre os dois vis-
nos cantos, devido, talvez, a uma maior sungos é notável. O mais recente apresen- RECOLHA DE 2001
aproximação sonora com o português: ta repetições e nem todos os versos são, de
fato, semelhantes ao vissungo 1 da recolha (Outra língua – falado)
de 1928, como o verso “O mico cumbaro Eu memo é ogongoevira
VISSUNGO 1 DA RECOLHA DE 1928 num tem tempo”. Já os primeiros versos Eu memo é quatingonçara
são correspondentes, embora não sejam Eu memo é ogongoevira
solo: idênticos, possuindo modificações nas pró- Eu memo é quatingonçara
Otê! Pade-Nosso cum Ave-Maria, securo prias palavras africanas: calunga passou a
[camera qui t’Angananzambê, aiô... canunga; camera mudou para canera ou Chora, chora congo ê, parente
coro: caner; securo, deu lugar a segura e ossemá Chora, congo chora
Aiô!... T’Angananzambê, aiô!... mudou para gemá. Palavras africanas foram Otê chora congo, ê, parente
Aiô!... T’Angananzambê, aiô!... substituídas por palavras da língua portu- Chora, congo chora
Ê calunga qui tom’ ossemá, guesa que se aproximam da sonoridade do
Ê calunga qui tom’Anzambi, aiô!... vocábulo original ou por palavras criadas Os vissungos 20 e 62 da recolha mais antiga
com base nessa sonoridade. fundiram-se em um mesmo canto de traba-
lho cantado por Pedro e Paulo de Almeida
RECOLHA DE 2001 Outra mudança é a fusão de diferentes cantos em 2001. A primeira estrofe corresponde, de
da recolha de Aires da Mata Machado Filho certa forma, ao canto 20 e a segunda, à parte
Ê Pade Nosso cum Ave Maria segura o em um só canto na recolha mais recente: do coro no canto 62. A primeira correspon-
[canera, oi Zandoiola dência dá-se apenas na estrutura “eu mesmo
Ah ê é…”, já que as palavras usadas não são nem
Ô canunga me chama gere ê… ê VISSUNGO 20 DA RECOLHA DE 1928 ao menos semelhantes: capicovite, cariocan-
Ô caran me chama gemá a… a… ê ga e candumba serena, em Aires da Mata Ma-
Tê! Eu memo é capicovite chado Filho, e ogongoevira e quatingonçara,
Tê… tê… tê… tê eu memo é cariocanga em Lúcia Nascimento. Já a segunda estrofe
Pade Nosso cum Ave Maria segura o caner, eu memo é candandumba serena. apresenta mais equivalência: o verso “chora,
Dandoiola… chora, ngongo” passa a ser cantado “chora-
Dandaiê… ê chora, congo”, mudando apenas uma palavra
Ê… ê VISSUNGO 62 africana em outra com semelhança sonora
falá uma coisa que ocê pode caçá ela grado, por representarem a resistência cultural Em relação ao uso de palavras de línguas Ô cundero di ê num tem tempo bastante acentuada, embora o sentido não
no orige e incontá. de seu povo. Essa importância dada à língua e africanas, Aires da Mata Machado Filho re- Oi vero o cupo nuá tem tempo solo: seja o mesmo. Na segunda estrofe, a mudan-
à cultura de seus ancestrais é evidente também gistra oito vissungos totalmente cantados Aiê! Muriquinho piquinino, ça mais significativa (mas nem tanto) ocorre
Pode-se perceber nesse depoimento a extrema na atitude de Ivo Silvério da Rocha – mestre de nessas línguas e um número bastante consi- Ô caíconde… ê… ê… ê ô parente, no final dos versos, que de “ê devera” e “ê
consciência do que representa, para o canta- vissungos e patrão do catopê de Milho Verde derável de cantos em que elas predominam Ô calunga me toma bebê muriquinho piquinino cambada” muda para “ê parente”, expressão
dor, a cultura que recebeu, numa evidência –, que resiste a ensinar àqueles que não estão sobre o português. Isso não acontece na pes- Ô calunga me toma sambá… á de quissamba na cacunda. usada na primeira estrofe, solo, do canto 62.
do que a etnolingüista Yeda Pessoa de Castro imersos nessa cultura e poderiam, assim, usá- quisa mais recente, em que não foram regis- Êi… Purugunta adonde vai,
designou competência simbólica. Para os can- la de forma inadequada, sem o devido respeito trados cantos somente em língua africana e Pê… rê… rê… rê ô parente. Essas comparações são importantes para se
tadores, os vissungos guardam um caráter sa- aos valores que ela representa. a grande maioria deles apresenta uma mes- O mico cumbaro num tem tempo Purugunta adonde vai perceber que, apesar das modificações que

12. Outubro 2008 A FORÇA DA PALAVRA NOS VISSUNGOS NEIDE FREITAS SAMPAIO A FORÇA DA PALAVRA NOS VISSUNGOS NEIDE FREITAS SAMPAIO Outubro 2008 .13
Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


ocorreram ao longo do tempo, os cantadores
mantêm, de forma consciente ou não, uma
tas, os cantadores demonstram uma tentati-
va de impedir que se rompa toda a rede de TRADUCÕES
TRANSCRIACÕES
grande proximidade com os cantos antigos. significações que esses cantos representam.
Usando palavras da língua portuguesa ou
criando outras foneticamente semelhantes
às palavras africanas que ali estavam an-
teriormente e cujo sentido, muitas vezes, já
desconhecem, mantendo a estrutura formal
NEIDE FREITAS SAMPAIO é Mestre em Teoria da Literatura
pela UFMG, onde apresentou dissertação intitulada Por
uma poética da voz africana: transculturações em ro-
mances e contos africanos e em cantos afro-brasileiros.
TRANSCULTURACÕES
ADRIANA MELO E PAULO DE ANDRADE
Já na graduação havia estudado os cantos de trabalho do
do canto, mesmo que com palavras distin- ritual chamado de traição, uma variedade do mutirão.

14. Outubro 2008 A FORÇA DA PALAVRA NOS VISSUNGOS NEIDE FREITAS SAMPAIO Outubro 2008 .15
TRADUÇÕES TRANSCRIAÇÕES TRANSCULTURAÇÕES ADRIANA MELO

CANTO À CIDADE FURA BURAQUIM


canto à manhã
auê
aqui onde foi mato alto senguê ai, senhê!
aqui onde foi mina e mato mendê ai, senhê!
a noturna escuridão
hoje tudo é cidade onbaro ô sanguê fura buraquim, senhê
auê ê ererê
ô lua, ai senhê
ô lua, ai senhê
fura buraquim, senhê

lavra a madrugada, senhê


TINGUÊ CANHAMA o diamante do dia
do ouro negro da noite

ai ô, Tinguê ô imbanda, ai senhê


Tinguê canhama, fura buraquim, senhê
ô Tinguê canhama, auê em dor e canto
só Tinguê! ai Tinguê! ai, senhê!
ai senhê!
de primeiro, príncipe, devera ô imbanda, fura buraquim, senhê
diamante extraído, extraviado ô imbanda, fura buraquim, senhê
desterrado, só. ai! êrerê...

ai ô, Tinguê
Tinguê canhama,
ô Tinguê canhama, auê em dor e canto
só Tinguê! ai Tinguê!
CANTO DA TARDE
leiloado príncipe devera cai a tarde, auê
da Real Extração prisioneiro a luz vai apagando
precipício cai a tarde, auê
o sol se esconde no mar.
ai ô, Tinguê
Tinguê canhama, coro
ô Tinguê canhama, auê em dor e canto apaga o sol
só Tinguê! ai Tinguê! vamos pra cafua, onjó.
apaga o sol
de primeiro, príncipe, prisioneiro vamos pra cafua, onjó.
diamante extraído, desterrado
só. coro
ADRIANA MELO é poeta, contista e ensaísta. Graduada e
pós-graduada na UFMG (Letras, Turismo e Geografia),
eu vou é pro lume da mina, auê.
desenvolve estudo sobre o sertão na literatura e na Geogra- eu vou é pro lume da mina, auê.
fia, como duas escritas da paisagem, dos lugares. Aqui,
aventurou-se nos cantos diamantinos, buscando escrever a
paisagem sonora dos vissungos.

16. Outubro 2008 Outubro 2008 .17


TRADUÇÕES TRANSCRIAÇÕES TRANSCULTURAÇÕES PAULO DE ANDRADE

CANTO QUE ARDE ARREPIO


solo
quebranta o sol, ai ô ei ê derrama, chuva-
vou quebrantar, auê, a de-rama
quebranta o sol, ai ô choro gelado, cai – frio que só
vou quebrantar, ê, nas ondas do mar acorda pena de guiné
D. Maria de Ouro Fino
coro crioula bonita não vai na venda
vou quebrantar, lá me vou eu só chora, chora, chora só
vou quebrantar, lá me vou eu só chove, chove, chove só

coro
quebranto só, ê, o ouro do mar
quebranto só, ê, o ouro do mar

CANJERÊ MALUNGO
sol me vou boiado
feira afora, ê pé na tábua ô crioulo
mulher ah, cadê simbora pra
o trabalho do amor longe ô crioulo
sol me vou feira afora, ê
mulher ah, cadê dobrado
o trabalho do amor na beira!
quenquém na carreira
na beira!
na beira!
quenquém na carreira
na beira!

PAULO DE ANDRADE é poeta, autor de Livra-me, e ensaísta


premiado (Prêmio Guimarães Rosa da PUC-Minas), tradu-
tor (traduziu recentemente L’amour, de Marguerite Duras)
e editor (Assessor Editorial do Suplemento Literário). Nas-
cido na Bahia, nos caminhos de Minas se encantou com a
sonoridade dos vissungos.

18. Outubro 2008 Outubro 2008 .19


Os viajantes que passaram por Minas Gerais jornada de trabalho, promoviam um sentido Eschwege foi o primeiro viajante que escre-

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


no século XIX foram unânimes em destacar de solidariedade do grupo e resgatavam os veu sobre as danças dos escravos em Minas
a dança e a música como o traço mais ca- valores de sua origem africana. Dança e mú- Gerais no século XIX. Seus relatos eviden-
racterístico e marcante da cultura dos seus sica se completavam e, através do ritmo, os ciam uma compreensão da dança como di-
habitantes de origem africana. Nas ruas, nos escravos buscavam reviver a cultura de suas versão: “[...] Grande é a satisfação do míse-
quintais, nas estradas e durante os encontros regiões de procedência. Apesar de perten- ro quando, aos domingos e dias santificados
nas “vendas”, segundo Saint-Hilaire, dançan- cerem a diferentes nações, encontravam aí pode divertir-se dançando a noite inteira com
do esqueciam a escravidão e suas misérias. muitas afinidades, podendo continuar, mes- sua bela.” Neste relato, dançar era prazer, ao
mo diante das duras jornadas, a recriar novas contrário de outros que enfatizavam o esgo-
Desde o momento de sua chegada ao Brasil, identidades. O toque dos tambores eram os tamento físico dos escravos.
ainda nos mercados onde os escravos fica- cantos de liberdade.
vam expostos para serem vendidos, os rit- Dentre o lundu, o caculelê, a capoeira, o fan-
mos africanos eram registrados, assim como A resistência e a grande disposição para a dango e o batuque, todos mencionados pelos
nos períodos de trégua do trabalho forçado dança, após um dia árduo de trabalho, sur- viajantes, é o batuque o mais freqüentemente
e até mesmo enquanto trabalhavam, seja na preenderam muito os viajantes estrangeiros. citado. Freireyss, assistindo a um batuque em
agricultura, na mineração ou no trabalho do- Se, por um lado, tinham um caráter espon- Vila Rica, assegura ser raro outro tipo de dan-
méstico. Saint-Hilaire e Burton, um no início, tâneo, por outro sua concretização dependia ça no interior, enquanto nas cidades já pre-
outro no fim do século XIX, testemunharam do consentimento do senhor. Saint-Hilaire, dominava aos poucos a influência das danças
o costume dos escravos africanos cantarem em sua ida a Ubá, observou que somente me- inglesas. Nas descrições do batuque, podemos
enquanto mineravam. Segundo Saint-Hilai- diante permissão os escravos, após um dia de notar algumas pequenas variações quanto aos
re, no Distrito Diamantino os negros reuni- trabalho, dançavam o batuque. A importân- instrumentos que marcam o compasso, que
dos em grande número cantavam em coro cia da dança e da música serviu muitas vezes para uns são tambores, outros estalidos de de-
as canções de sua terra. Na mesma região, para reforçar, na literatura, a idéia de uma dos e palmas das mãos. Estas variações ocor-
muitos anos depois, Burton escreveu: “os ne- escravidão humanizada, em que os escravos riam na maioria das vezes por circunstâncias
gros, fiscalizados pelos feitores, postados em trabalhavam cantando e dançando. ocasionais, e dependiam em certos casos da
todos os ângulos, estavam removendo, ento- existência ou não de instrumentos, que eram
ando cantos alegres de costume, a camada Contudo, a prática de cantar durante o traba- então substituídos por palmas e estalidos de
sem valor, sob a qual esperavam encontrar o lho nem sempre era permitida e, ao contrário língua e dedos. Os toques de viola (dentre to-
cascalho amarelo, portador das pedras pre- de significar boas condições de vida, inseria- dos os instrumentos, o mais comum) também
ciosas”. se na lógica produtivista, como uma forma se condicionavam às disponibilidades mate-

O TOQUE DOS
destes suportarem o pesado fardo que lhes riais de cada grupo.
As festas ou tinham um caráter profano, impunham; ou também uma resistência às
como por exemplo, o batuque, ou estavam desumanas formas de opressão e exploração. No batuque, o dançarino do centro dava uma

TAMBORES
Com os jarretes vergados, punhos fechados, o antebraço em ligadas ao calendário das festas religiosas. Alguns viajantes perceberam que o consenti- umbigada no outro que se exibia e trocava
posição vertical, avançavam um após o outro remexendo os Dentre as várias formas de diversão citadas, mento do senhor, quando isto ocorria, funda- com o seguinte, repetindo a mesma seqüência.
pés e dando a todos os membros uma espécie de agitação

E OS RITMOS DA
há uma acentuada valorização da dança e da mentava-se no fato de que a dança e a mú- Spix & Martius viram um casal de bailarinos
convulsiva que devia ser extremamente fatigante para homens
que tinham trabalhado durante o dia todo. Um tal estado vio- música, que apareciam em todas as suas fes- sica eram considerados um fator estimulante, que realizavam “rotações e contorções artifi-
lento, porém, contribuía para esse esquecimento de si mesmo, tas, sendo partes de uma mesma atividade, revitalizador, e não que esgotaria suas forças ciais da bacia”; em Rugendas os “figurantes”

LIBERDADE
que faz toda a felicidade da raça africana, e foi com grande quase sempre como elementos que, através produtivas. Freireyss testemunhou um grupo trocam de lugar na roda. São variações muito
pesar que viram chegar o instante marcado para seu repasso. do ritmo, fundiam-se num único espetáculo. de negros recém-chegados, dançando à moda sutis, mas que revelam as várias diferenças
Saint-Hilaire, 1810-1822. de seu país, e explicou: “o traficante lhes per- existentes: tanto no que se refere à origem
Apesar de nem sempre percebidos pelos via- mite, porque sabe que a falta de movimento e africana, quanto às influências regionais, ve-
ILKA BOAVENTURA LEITE jantes, os cantos amenizavam a dureza da a nostalgia lhes diminui o infame lucro”. rificadas em todo o País.

20. Outubro 2008 O TOQUE DOS TAMBORES E Os RITMOs DA LIBERDADE ILKA BOAVENTURA LEITE O TOQUE DOS TAMBORES E Os RITMOs DA LIBERDADE ILKA BOAVENTURA LEITE Outubro 2008 .21
se acha na escala social, que, conforme co “evita” passar, por considerar deselegante, Diferente não era a escolha de adjetivos para

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


nossas idéias de beleza, está muito bai- fora de seu padrão estético. caracterizar a música. Freireyss fala de uma
xo, sendo singular que as danças dos “música infernal e uma gritaria insuportá-
negros sejam exatamente o contrário As palmas, os movimentos do corpo, os tre- vel”; Saint-Hilaire e Pohl chamam-na de “mo-
das nossas, porque ao passo que nós jeitos rasgam e contorcem os espaços, pre- nótona e cansativa” e Spix & Martius, apesar
procuramos mostrar o nosso corpo na enchendo-os de novos significados. São rit- de referirem-se a uma música plangente, não
luz mais favorável e os nossos profes- mos e vozes que ecoam arrefecendo dores e deixam de tomá-la por “estridente”.
sores de dança se esforçam por dar aos sofrimentos das duras jornadas. O corpo do
seus discípulos uma posição exata e negro constitui o vazio, a falta e, portanto, Havia, contudo, uma surpresa e admiração
elegante, os negros procuram dar aos o novo que se instaura. A síncopa, nos lem- pela paixão dos escravos pela música e por
seus corpos as mais extravagantes po- bra Moniz Sodré, é a ausência da marcação sua capacidade para executá-la, mas que re-
sições, contrariando de modo mais des- de um tempo que repercute em outro mais fletiam muito mais um olhar voltado para o
natural possível o jogo de todos os seus forte, e sua força magnética vem do impulso exótico e para as comparações com os de sua
músculos, e quanto mais ele o conse- provocado pelo vazio, compensado pela au- terra. Saint-Hilaire achava que “seus cantos
gue, maiores são ao aplausos que lhe sência do tempo na dinâmica do movimento e danças são, sem dúvida, bárbaros, e sabem
são dispensados. no espaço. Um vazio que é preenchido pelo executá-los com uma perfeição geralmente
próprio corpo do negro, o corpo deslizante desconhecida aos franceses de classe inferior”.
E continua: entre os limites de uma existência diaspórica, O termo “bárbaro”, segundo o próprio senti-
da roda sai de repente um deles, pula de uma humanidade negada. A síncopa com- do da frase, é utilizado de forma depreciativa.
para o centro onde gira sobre si mesmo, porta o que Jacques Derrida descreve como Também o fazem outros autores, que o asso-
movendo o corpo em todas as direções, différance: a projeção do Outro pela subtra- ciam a atraso ou a selvageria.
parecendo destroncar todas as articula- ção da sua humanidade o incorpora em um
ções, e aponta para um outro qualquer, lugar plenamente reconhecível: o da cultura Apesar do enfoque etnocêntrico e discrimina-
que por sua vez pula para dentro, fa- negra na cosmologia universal. dor, tão fortemente presentes nas obras dos
zendo o mesmo que o anterior e assim, viajantes, é possível, mediante pesquisa, re-
sem mudança nenhuma continuam até Hermann Burmeister, outro viajante, perce- flexão e crítica, aproveitar muitas das infor-
serem vencidos pelo cansaço. Esta dan- beu com bastante clareza e visão crítica, in- mações fornecidas nesses relatos. É preciso
ça às vezes dura horas, com grande des- comum nos autores de sua época, a segrega- filtrar ao máximo o preconceito e recuperar
contentamento dos vizinhos. ção na dança: “nunca se vêem pretos dançar estas fontes no que elas possuem de caráter
com mulatos ou brancos, mas sim mulatos documental sobre a vida dos africanos e seus
A meu ver, a dança passa a ser um dos for- com brancos. Contudo o branco de certa ca- descendentes no século XIX.
tes veículos de discriminação, pois é através tegoria mantém-se reservado, dançando ape-
dela que eram julgados os padrões estéticos nas com outros brancos de ambos os sexos. Em Minas Gerais, estamos começando a
africanos. O social é invocado para expres- O lundu é uma dança mais agradável que conhecer e desvendar os ritmos que foram
sar a oposição entre branco e negro e para o batuque [...] este é preferido pelos pretos, invisibilizados no período colonial. Estamos
Freireyss citou entre os inimigos desta dança ciedade branca. Assim, o batuque seria uma os movimentos do corpo – bem distintos do justificar o ponto de vista discriminador: o aquele, pelos brancos”. começando a conhecer os vissungos, os qui-
a Igreja, especialmente os padres. Um deles “dança lasciva” para Freireyss, “dança inde- europeu. Freireyss achava importante o co- batuque não só é “diferente”, é também “o lombos e muito mais.
chegou a negar a absolvição a um paroquia- cente” para Saint-Hilaire e “dança obscena” nhecimento das formas de lazer como padrão contrário”. Nesse contraste, realçam-se os bi- A preferência por um ou outro tipo de dança
no negro, “acabando desta forma com a dan- para Spix & Martius. Tanto na descrição da de julgamento de um povo; aliás, perpassado narismos, os aspectos positivos e negativos sugere sua eleição pelos vários grupos so-
ça, porém, com grande descontentamento de moral local como no ponto de vista do cro- por uma visão etnocêntrica: de cada um. Sob este prisma, será analisado ciais como veículo de sua expressão exis- ILKA BOAVENTURA LEITE é professora do Departamento de Antropo-
logia UFSC e coordena o Núcleo de Estudos de Identidades e Re-
todos”. Há um preconceito explícito contra nista (por exemplo, Saint-Hilaire a classifica: [...] o negro selvagem com a alegria como o oposto do movimento do branco, o tencial. Daí, possivelmente, a discriminação lações Interétnicas. Destacam-se dentre suas publicações Antropo-
logia da Viagem (UFMG), Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e
o batuque, que perpassa todos os discursos, “dança que a decência mal permite mencio- barulhenta e o cômico maneiro de seu “seu negativo”, o corpo negro como que pre- e o desprezo que os colonizadores tinham territorialidade (Letras Contemporâneas, coletânea) e O Legado do
Testamento: a Comunidade de Casca em Perícia (UFRGS, 2004).
reproduzindo sobretudo os valores da so- nar”), o que mais impressiona os autores são corpo, indica o verdadeiro grau em que enchendo os espaços por onde o corpo bran- pelo batuque.

22. Outubro 2008 O TOQUE DOS TAMBORES E Os RITMOs DA LIBERDADE ILKA BOAVENTURA LEITE O TOQUE DOS TAMBORES E Os RITMOs DA LIBERDADE ILKA BOAVENTURA LEITE Outubro 2008 .23
Ê, no garimpo po da oficina – uma semana – tínhamos, Além da memória dos mestres, a pers-

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


Pinga ouro em pó então, o privilégio de poder interagir com pectiva histórica também se apresenta
No garimpo esses mestres, e ouvi-los. como alternativa para o estudo etnomu-
Pinga ouro em pó sicológico dos vissungos, através de da-
No entanto, Seu Ivo fez a opção pela dos contidos em livros, em especial na
Durante os rituais do Candombe da Co- cautela, no que se refere à divulgação obra de Machado Filho. Esse pesquisador
munidade Negra dos Arturos, em Conta- dos vissungos. A tristeza ainda ecoava teve o cuidado de registrar em partitu-
gem, é comum cantarem-se os versos aci- em sua voz, ao nos contar que, há mui- ra os 65 vissungos. Não sendo a música
ma para comentar as coisas bonitas que tos anos, um vissungo que ele cantou foi o foco de seus estudos, as transcrições
estão sendo feitas ali em honra a Nossa gravado sem que ele percebesse ou per- são bem simples, apresentando a melodia
Senhora do Rosário e aos antepassados do mitisse, e arranjado, sob o resguardo da dos cantos com suas letras e com even-
grupo familiar. noção do domínio público, como tema tuais indicações de andamento. E, evi-
de telenovela. Um canto exclusivamente dentemente, elas não são acompanhadas
Com esses versos, gostaria de comparti- masculino, que para ele vinculava-se a de uma reflexão teórica e metodológica,
lhar algumas coisas bonitas que experi- gestos rituais e sagrados, se via recria- como geralmente aconteceria hoje num
mentamos em outro garimpo: a oficina do num contexto estrangeiro, na voz de estudo etnomusicológico que utilizasse o
de Introdução à Pesquisa Etnomusico- uma mulher. recurso da transcrição. Tal reflexão diz
lógica, que orientei no 36º Festival de respeito, primeiramente, às implicações
Inverno da UFMG em Diamantina, em Aires da Mata Machado Filho menciona de um processo de representação visual
2004. A convite da Profa. Sônia Queiroz, um filho de escravo que tinha aprendido do som. Em segundo lugar, à proprieda-
da Faculdade de Letras, que ministrou a as cantigas com o pai, mas observa que de do uso do sistema de notação desen-
oficina “Vissungos: cantos afro-descen- nem tudo fora ensinado, pois “algumas volvido no âmbito da música ocidental
dentes de morte e vida”, várias ativida- só podem ser ouvidas pelos iniciados”. erudita para representar outros repertó-
des foram compartilhadas entre os parti- Assim como acontece com várias outras rios, sobretudo os de transmissão oral.
cipantes de ambas as oficinas, contando expressões vocais afro-brasileiras, alguns Embora possa ser uma ferramenta ana-
com a presença dos mestres de vissungo saberes rituais exigem um grau de desen- lítica importante para a compreensão de
Ivo Silvério da Rocha e Antônio Crispim volvimento pessoal do aprendiz para que algumas culturas musicais, o uso da no-
Veríssimo, convidados especiais do Festi- sejam transmitidos, de tal forma que os tação ocidental é considerado por muitos
val. Integrantes do Catopê de Milho Verde mestres detentores de tais saberes podem como etnocêntrico, uma vez que reduz e
e, à época, dois dos poucos detentores dos preferir a não revelação ao risco de um traduz o fenômeno sonoro/musical à luz
saberes em torno da prática do canto dos uso inadequado. Um capitão de Moçam- da concepção musical que fundamentou
vissungos, Seu Ivo e Seu Crispim nos pro- bique, dos Arturos, certa vez se referiu a esse sistema de notação.
porcionaram a oportunidade de muitos essa atitude como um ato de preservação
aprendizados, dos mais variados tipos. da cultura. Assim, “preservar” pode re- Entretanto, uma questão nos tinha sido
presentar a extinção de certos aspectos colocada pela Profa. Sônia: à medida que

GARIMPANDO OS
O canto do vissungo é uma prática social da cultura, visando à sua proteção. algo da música dos vissungos se encon-
que se vem silenciando pela perda das tra registrado nessas transcrições, seria
funções que o motivavam. Essa realidade O silêncio do Seu Ivo se tornou, então, possível “ressuscitá-los”, com a ajuda dos

VISSUNGOS
coloca um primeiro desafio a um possível um pingo de ouro para o nosso apren- mestres Ivo e Crispim? Encaramos o de-
estudo etnomusicológico sobre os vissun- dizado, gerando reflexões importantes safio como uma oportunidade de refletir-
gos: como realizar um trabalho de cam- sobre a ética na pesquisa; sobre a noção mos sobre o papel da transcrição musical

NO SECULO XXI
po? O campo não mais se realiza em espa- de autoria e de propriedade em diferentes na pesquisa etnomusicológica.
ços sociais observáveis, mas os vissungos contextos musicais; sobre as teias de sig-
ainda eram, à época daquele Festival, nificados que impregnam os traços sono- Nesse caso, o caminho seria inverso: te-
carregados nas redes da memória desses ros e as conseqüências decorrentes de seu ríamos que oralizar a escrita, tornando as
GLAURA LUCAS homens. Apesar do curto espaço de tem- deslocamento contextual. transcrições, originalmente descritivas,

24. Outubro 2008 GARIMPANDO OS VISSUNGOS NO SÉCULO XXI GLAURA LUCAS Outubro 2008 .25
Uma vez preparadas, nossas musicistas Soma-se a esse aspecto a margem de va- conheciam, a partir da escuta de sua me-

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


entoaram o Padre Nosso, e foi difícil para riabilidade presente no universo da orali- lodia ao piano. Essa experiência aconte-
os mestres conterem o riso. Primeiro, com dade, o que sugere que cada transcrição ceu na turma da Profa. Sônia, e eu não
delicadeza, a informação que não conhe- do livro seja um retrato aproximado de acompanhei os resultados, porém supo-
cíamos: “Tá muito bonito, mas mulher uma performance particular daquele can- nho que o domínio estilístico tenha fa-
não canta isso, não!” E ficaram também to. Essa maleabilidade se verifica quando vorecido uma proximidade estética. Em
evidentes a escassez de dados escritos e, comparamos a transcrição n.1 do Pai Nos- outras palavras, as características sono-
sobretudo, as distâncias culturais. Não ha- so com sua forma sonora atual, tal como ras provavelmente foram mais semelhan-
vendo especificação do andamento, por se encontra registrada pelo Seu Ivo no CD tes ao que era cantado contextualmente
exemplo, elas o imaginaram demasiada- Congado Mineiro. na região de Diamantina e do Serro, no
mente lento. Mas, principalmente, o exer- passado, do que o que fora entoado pelas
cício demonstrou que a decodificação do Finalmente, assim como oralizaram a musicitas. Entretanto, seja com maior ou
sistema de notação ocidental por membros transcrição conforme uma estética fa- menor proximidade sonora, a recriação
dessa mesma cultura está atrelada a um miliar, nossas cantoras desconheciam as desses traços musicais, hoje, necessaria-
processo de aprendizado que inclui tam- especificidades estilísticas da música dos mente implica um deslocamento contex-
bém a transmissão oral e a familiaridade vissungos, como acentos rítmicos, e tim- tual e a produção de novos significados
com os diferentes estilos dessa música. Ao bres, inflexões e gestos vocais expressi- funcionais.
cantarem o vissungo, “naturalmente” im- vos. Esses aspectos são difíceis – senão
postaram a voz como que realizando um impossíveis – de serem representados no
exercício de solfejo numa aula de percep- papel, e dependem da familiaridade com
ção musical tradicional. Buscaram tam- as intenções, sentimentos e motivações
bém a precisão da afinação das notas e das contextuais, para uma interpretação cul-
durações indicadas, embora provavelmen- turalmente mais aproximada. Seu Ivo e GLAURA LUCAS é etnomusicóloga, com Mestrado em Mu-
sicologia na USP e Doutorado em Etnografia das Práticas
te os negros cantadores do passado perce- Seu Crispim detinham esses saberes e, no Musicais na UniRio. Publicou pela Editora UFMG o livro
bessem diferenças na forma de divisão do passo seguinte, esses mestres buscaram Os sons do Rosário, resultante de pesquisa sobre a música
das Irmandades do Rosário do Jatobá e dos Arturos, que
contínuo temporal e o das freqüências. recriar alguns cantos transcritos que não recebeu o Prêmio Sílvio Romero em 1999.

em prescritivas. A turma era composta de de Machado Filho, para posteriormente início do século XX, nas festas de mas-
estudantes e profissionais de diferentes cantar para a turma, tendo a partitura tro. Esse era um canto ainda conhecido
campos do saber – Música, Jornalismo, como única referência. de Seu Ivo e Seu Crispim, e uma versão
Ciências Sociais, Teatro, Letras, e outros melódico-textual recente se encontra no
– o que enriquecia os debates. E, como Segundo o autor, com esse vissungo, os CD Congado Mineiro. Uma outra versão é
experiência inicial, propus a um grupo de negros pediam a Deus e a Nossa Senho- ouvida nos inícios das atividades do Rei-
musicistas que nunca tinham ouvido um ra que abençoassem o serviço no começo nado de Nossa Senhora do Rosário da Ir-
vissungo que treinasse o de n.1 do livro do dia, e eles ainda estavam presentes, no mandade do Jatobá, em Belo Horizonte.

26. Outubro 2008 GARIMPANDO OS VISSUNGOS NO SÉCULO XXI GLAURA LUCAS GARIMPANDO OS VISSUNGOS NO SÉCULO XXI GLAURA LUCAS Outubro 2008 .27
No Serro, as tradições de origem mais espe- condução da matina e dos cortejos e café da mas também sua função ritual nos levaram

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


cificamente africanas estão representadas, manhã nas seis casas de festeiros. Contudo, a considerá-lo um vissungo, gênero musi-
na festa de Nossa Senhora do Rosário, no para nossa surpresa, em seguida a este mo- cal de marcada origem africana de tradi-
grupo de dançantes chamado Catopê. Num mento inicial da festa, a Caixa de Assovio ção banto, normalmente vinculado a um
contexto em que outros grupos também to- não mais será vista como grupo indepen- número variado de funções, identificadas
mam parte, como o Caboclo e a Marujada, dente e gostaríamos de chamar a atenção pelo pesquisador Aires da Mata Machado
simbolizando e assumindo funções diversas para uma fusão singular que ocorre então, Filho no livro O negro e o garimpo em Mi-
das do Catopê, é este último grupo, sem dú- na qual os tocadores de caixa e pífano, a nas Gerais: padre-nossos, cantos da manhã,
vida, o mais importante do ponto de vista partir do dia do Reinado (no domingo), são cantos do meio-dia, cantigas de multa, can-
hierárquico, já que, além de outras prerroga- assimilados pelo Catopê, tornando-se um tigas de rede, cantigas de caminho, cantigas
tivas, como a retirada da bandeira de Nossa só grupo. Não é mais possível determinar a de pedir licença para cantar.
Senhora da casa do Mordomo, ele é o res- origem dessa fusão. A festa do Rosário do
ponsável pela guarda e condução direta de Serro remonta a princípios do século XVIII, Emo quá é realizado em situação também
Reis e Rainhas ao longo de todo o Reinado e tanto a Caixa de Assovio quanto o Cato- específica: normalmente na entrada em
− termo com que são também designadas as pê são provavelmente remanescentes desses recintos − casas, ou a própria igreja, e ao
festas de N. Sra. do Rosário e que se refere à primeiros tempos. redor de uma mesa com alimentos, o que
presença de Reis e Rainhas escolhidos entre equivaleria a pedir licença para entrar e
os membros da Irmandade do Rosário. Nesta fusão, a Caixa de Assovio incorpo- para comer. Durante a manhã de sábado,
rou o repertório tradicional do Catopê, exe- a Caixa de Assovio repete este canto vá-
Entretanto, um outro tipo de grupo desta- cutando-o mesmo nos momentos em que rias vezes, sempre na chegada às casas dos
ca-se também neste contexto, em vínculo atua sozinha, como na manhã de sábado da festeiros e, em seguida, ao entrar na casa,
estreito com a guarda de Reis e Rainhas e festa. Amplifica-se assim o conjunto instru- abençoa a mesa posta do café da manhã,
a condução do cerimonial durante as festas mental, que já contava com duas ou três circulando-a várias vezes, sem interrupções
do Rosário. São grupos formados por toca- caixas, tamboril (pequeno tambor quadra- na execução. Nestes momentos, o grupo é
dores de caixa e pífano, chamados, no Ser- do, tocado pelo chefe do grupo), reco-recos reforçado pela presença de outras pessoas
ro, sugestivamente, Caixa de Assovio. O pí- e xique-xiques (armações de madeira no que tomam parte na circunvolução em tor-
fano é uma flauta transversal com seis furos formato de um “x”, com arames esticados no da mesa, cantando. A versão do canto
de digitação e um de sopro. Os conjuntos nas duas extremidades em que se prendem que aí escutamos é a seguinte:
musicais baseados em caixas e pífanos são tampinhas de garrafa). Emo quá, valha-me Nossa Senhora,
muito comuns no Nordeste brasileiro e tive- Emo quá
ram relevância histórica também em Minas Uma das características musicais mais dis- Emo quá, lá no campo do Rosário,
Gerais, onde estiveram presentes em cida- tintivas dos grupos de tocadores de caixa e Emo quá.
des como Diamantina e Ouro Preto. Destes pífano é a execução de peças propriamen-
grupos centenários não restam, em Minas, te instrumentais, comuns para este tipo de Entretanto, uma outra versão do canto foi
mais do que três, todos vinculados à festa conjunto. Quando a Caixa de Assovio se fornecida por Maria de Lurdes Silva, a Dona
do Rosário. Este tipo de grupo, mais conci- junta ao Catopê, os cantos são feitos com Cesária, em entrevista realizada em março

EMO QUÁ,
so, com algo em torno de quatro tocadores, alternância entre voz e flautas, funcionan- de 2007:
contrasta, em termos numéricos, com as ou- do estas como um coro de resposta, ou mes- Emo quá, Inganazambi eu sô fia [?],
tras guardas que participam da festa do Ro- mo as execuções tornam-se inteiramente Emo quá
sário e que abrigam normalmente dezenas instrumentais, com a substituição da voz Emo quá, lá no campo do Rosário,

UM VISSUNGO
de integrantes entre músicos e dançantes. pela flauta. Emo quá

A Caixa de Assovio, dentro de suas atribui- Entre os vários cantos do repertório do Ca- Apesar de já não deter o conhecimento
ções, é o único grupo a atuar na manhã do topê, Emo quá foi um dos que nos chama- da tradução completa do texto, soubemos
sábado que abre os três dias principais de ram a atenção pela presença de palavras de da própria entrevistada que quá represen-
DANIEL MAGALHÃES festividades, no Serro. É responsável pela origem africana. Não só esses vocábulos, ta uma saudação e Inganazambi significa

28. Outubro 2008 EMO QUÁ, UM VISSUNGO DANIEL MAGALHÃES Outubro 2008 .29
ANTÔNIO CRISPIM VERÍSSIMO
MESTRE DE VISSUNGO
Aí. Pra tudo tem um nome e tá no dialeto.

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


Tem essa língua, esta tradição existe. Essas
coisa que eu tô falano. Nada que eu tô pra
falá num tá no dialeto. Não, a gente num
pode inventá: cê tem que falá uma coisa
que ocê pode caçá ela na orige e incontrá.
Mais uma palavra que num existe, num pode
falá. Agora, hoje, hoje esse povo num sabe
comé que faz esses rituais. Tinha que tê um
rituá. Isso só fazia, murtano, pedino quarqué
coisa. Hoje em dia o povo num qué sabê de
nada mais, não.
APRENDIZADO MORTE E CAMINHO
Eu tinha um tio, que ele era cantadô de vis- É pra Milho Verde! Num é longe não, nós ia
sungo, chamava João Veríssimo dos Santos. rápido. Com lito de pinga na garupa, nin-
Esse home cantava um vissungo que fazia guém ia sem cachaça, não. Ia morreno a
as pedra chorá. Era ele, meu pai, o Gazino, o pessoa, já mandava buscá a pinga, pra fazê
Firmiano, tudo era o rei perpétuo do vissun- o quarto. Quarqué um portadô, quarqué um
go. Esses tirava o vissungo... ah, minina, cê colega ali, ia e buscava a pinga pra passá a
nem imagina. Tudo eu aprindi com meu tio. noite. Já ficava ali a noite toda, nas incelên-
Isso é ritual dos véio. cia que rezava de noite:
Sá vitória, vamo levá essa alma pra
Eu passei a acumpanhá o interro da idade de [glória
catorze ano pra cima. Que, quando a gente Vamo levá, vamo levá,
Senhor Deus e aparece em vários outros região em que se espalhou a prática destes tro, entendemos que o canto em questão, era minino, o pai da gente num dexava, não. esse presente pra Nossa Sinhora
vissungos. É interessante notar a substitui- cantos, é natural supor que a influência dos Emo quá, realmente seria um vissungo. Duas incelência de Santa Vitória
ção de Inganazambi por Nossa Senhora, no vissungos tenha também chegado à cida- Esse que é o rituá que nós achamo e é dos an- Vamo levá essa alma pra glória
momento em que o canto é realizado em de ou mesmo partido de lá. Apoiados ainda tigão, do pessoal que é a orige da curtura. Seu Vamo levá, vamo levá,
contexto público. pela informação disponível no livro de Ai- DANIEL MAGALHÃES é músico e pesquisador, e nos últimos Gazino morreu com cento e tantos ano. Mor- esse presente pra Nossa Sinhora
anos tem se dedicado ao estudo das bandas de pífanos
res da Mata Machado Filho de que alguns em Minas Gerais. Esta pesquisa, patrocinada pela Natura, reu velho, que é a orige da curtura mesmo.
Tendo em vista que a cidade do Serro foi o já resultou no CD Bandas de Taquara e Música de Pífano
vissungos cantados na mineração também em Minas Gerais e no documentário Pífanos do Congado e
Que eles num são nação daqui, não. Tudo é Isso é de fazê quarto. E vai cabano uma,
principal núcleo administrativo de toda a se prestavam à cerimônia de subida do mas- prevê ainda um livro de textos e outro de partituras. africano. Essa nação, tudo é africano. pega a ota:

30. Outubro 2008 EMO QUÁ, UM VISSUNGO DANIEL MAGALHÃES Outubro 2008 .31
Lá no céu tem uma santa, Santa Maria, a que tanto arunanguê Vá imbora com Deus, com Deus,

Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.


[mãe de Deus. pambê, pambê, rêêê [com Deus
Rogá a Deus por ele, lá no céu,
[quando chega Achei ês cantano, mais num falô cu’a gente o É isso aí. Quando termina, o ispírito já tá
resultado, né? Mais, isso é do vissungo. saino. Agora a pessoa tá den’da igreja, e faz
Mais era as mulhé que tirava essas incelência. a intrega. Aí vira e fala assim:
Vissungo é só home que canta, mulhé não. Mu- PEDINDO AJUDA Equi, equi lambô nanguê
lhé só na saída da porta. Dona num canta Vis- Quando tá pesado, pede ajuda, né? Põe ca- Equi, equi lambô nanguê
sungo, não. Nunca vi mulhé cantá vissungo. xão no chão. Bate no caxão. É que hoje tá Equi, equi lambô, lambô nanguê
urna, essas coisas de hoje em dia. Ninguém Ô gerê, gerê, gerê
Na saída com o quimbimba de inganazambi. hoje num tá ino no caxão. O caxão é muito Ê gerê, gerê, gerê, rêêê.
Inganazambi é Deus. Quimbimba é o difunto. grande. Caxão é táubua assim, forrado de
Inganazambi do acemá. Acemá é céu. O céu, pano. Se é moça, é pano branco. Se é gente VISSUNGO DE MULTA
na língua, chama acemá. Depois as dona ter- aduto, pano preto. O caxãozinho das crian- Em garimpo é otra tradição. Que todas muis-
mina os bendito: ça era branquinho. E batia, chamano pelo ga de multa de garimpo, tinha que sê um ri-
Bendito, lovado seja nome aquela pessoa que morreu. Se é Maria: tuá, cê tem que cantá pidino. Ninguém num
Bendito, lovado seja “Ô Maria, manera, Maria. Pra visitá Nossa ixigia o que que é pra dá, não. O que pudes-
É o santíssimo, é o sacramento Sinhora. Manera”. se dá, dinheiro, cachaça. A pessoa canta pra
É o santíssimo, é o sacramento ele e fala: “Ocê que diga pra nós, seu moço”.
Os anjo, todos os anjo VISSUNGO DE INSULTO Ele vai e dá um lito de pinga. Aí nós canta
Os anjo, todos os anjo E agora, quando vai passá na frente da casa de agradeceno ele o lito de pinga:
Lovam a Deus para sempre, amém um inimigo, já pega uma muisga de insurtá na Timbô tê quê, quê, quê
Lovam a Deus para sempre, amém língua o oto, chamano ele pro cimintério. Tudo Timbô tê quê, quê, quê
tá no vissungo. A pessoa tira aquela muisga Timbô tê quê, quê, quê
Depois as muié pega treis punhadin de terra pra passá perto da casa do inimigo levano um Timbô tê quê, quê, quê
e joga atrais. É um ritual dos véi que a gente difunto, chamano o inimigo pra levá ele pro
achô. E fala: “vai com Deus, Nossa Sinhora cimintério tamém. Ela é cumeçada assim: Agora, se ele num deu, aí tem a cantiga pra
e num alembra de mais ninguém”. Agora os Êêê, jombá lerê ioô cantá tamém, já xinga ele tamém, na língua:
home cumeça, recebe os bendito das boca das Ê jombá lerê iô Que bicho é esse, é tamanduá
muié. Aí é que os home tira os vissungo: Que nego calucimba Que rabo cumprido, é tamanduá
Êi, bendito, é, lovado seja Cristo É fio de quem amá Que bicho é esse, é tamanduá
Madamba auê É o jombá Que rabo cumprido, é tamanduá
E que vá lá sê
Que seje lovado Calucimba é gato, ele tá xingano ele de gato. O freguês que já sabia que se num levasse,
É primero com Inganazambi Mais, na tradição do dialeto, ele chama jus- ia agüentá o tamanduá, já levava a pinga no
Teu [...] é com pai mais véio tamente calucimba. alforje. Isso nós achô dimais.
Quando o sol abranda Isso é fazeno quarto. A noite toda rezano. Aí Com o cordão bento na mão Quanto é com sinhuria
a lua alumeia, depois tem a da mesa, que fala assim: Com o cordão bento na mão O [ré té quá] minguê. CHEGADA NA IGREJA E NO CEMITÉRIO Nesse ritual não tem tambô. Nesse ritual é só
quando o sol abranda Sant’Antonho, São Geraldo Raiêêê Aí vai chegano, as pessoa cumeça: justamente as inxada e os carumbé bateno
a lua alumeia Tá que tá que Madalena Sant’Antonho, São Geraldo Ô caxinganguelê vá imbora com Deus, em roda dos visitante que chegô ali.
Nossa Sinhora da Lapa Tá que tá que Madalena Por que chamai, ocê num responde Esse era o primeiro que cantava. E aí agora [com Deus, com Deus
Virgem da Candeia Acorda que já é dia Por que chamai, ocê num responde vai ino. Depois dessa muisga, otra. Tem mais Vá imbora com Deus, com Deus,
Depoimento editado a partir da transcrição de entrevista re-
Num sei como ela agüentô Acorda que já é dia muisga. Tem o pambê. Pambê é cantado: [com Deus alizada por Neide Freitas Sampaio, com Crispim Veríssimo
Pambê, pambê, êêê Ê caxinganguelê vá imbora com Deus, em sua casa, em Ausente, zona rural próxima ao povoado de
Sofrê tanta dô. Lá invém o São Francisco E tem quando o dia invém, que o dia invém Milho Verde, no município do Serro-MG, no dia 7 de janeiro
Lá invém o São Francisco clariano, já tem uma reza que fala assim: Raiê, pambê, ê [com Deus, com Deus de 2005.

32. Outubro 2008 ANTÔNIO CRISPIM VERÍSSIMO, MESTRE DE VISSUNGO ANTÔNIO CRISPIM VERÍSSIMO, MESTRE DE VISSUNGO Outubro 2008 .33
34.
morreu crispim.
é de vera, viríssimo.
saiu de fininho, no astral.

Outubro 2008
melhor, foi pro astral,
reencontrar os personagens de suas histórias.

VITOR KAWAKAMI
encontrar nganazambi.

será que ele foi de sapato?


será que ele levou jurema?
será que foi com a espada?

morreu nosso último rei?


nosso eterno guarda-crôa?
ou nosso embaixador dos pretos?
“viva nossa senhora do rosário!”
“viiiva!”

morreu o mestre do vissungo.


ficou o corpo pesado, bate nele!
“o meu cooorpo me dói, ai, aaaiiii...”

e cadê as firmage?
cadê os pesquisadô?
cadê os artista?
a curtura é cara...

quem sabe agora ele vira patrimônio?


o crispinho que até ontem
morava co’aquela penca de minino
em casa com chão de terra batida.

quem sabe agora o que será da história?


boa parte dela tá lá
no cemitério do alto do morro.

não adianta lamentá, crispinho.


o milho verde tá amadurecendo...
reza pra gente daí, que por aqui
ainda vamos virá angu pra turista.

vancê disse as palavras certas no pé da cova: 


“minino, nessa vida pra gente morrê
basta tá vivo!”
queres malmequeres.

morreu crispim viríssimo.


agora sim ele estará ausente.
A MORTE DO ENCOMENDADOR DE ALMAS

Outubro 2008
.35
roteiro tristes périplos, um diário de viagem, e o livro de poemas Bem-me-
de Milho Verde, onde reside. Dirigiu um curta-metragem e publicou Sem
VITOR KAWAKAMI é professor de Português há muitos anos no povoado
VISSUNGOS

Rômulo Vianna, 2008.


IA
BAH
QUARTEL DO INDAIÁ

SÃO JOÃO DA CHAPADA

SOPA

GUINDA

DIAMANTINA

SÃO GONÇALO DO RIO DAS PEDRAS

MILHO VERDE
E T
ZON

SERRO
ORI
OH
BEL

RÔMULO COSTA VIANNA é artista gráfico e ilustrador e tem


dedicado parte do seu tempo ao desenho eletrônico de uma
cartografia cultural de algumas regiões de Minas: mapas
de inspiração naturalista, que inscrevem paisagens como
esta, dos cantos afro-descendentes na região do Serro e
Diamantina.

36. Outubro 2008

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