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AS DILIGÊNCIAS PRÉ- OU EXTRA-PROCESSUAIS

A polémica sobre a possibilidade de realização de pré -inquéritos


O CPP de 1987 foi pensado de maneira a não permitir a existência de “fases pré-
ou extra-processuais” aliás “ que — bem o mostra a experiência recente com o
inquérito dito po1icial’ ou ‘preliminar’ —, sob a alegação de constituírem coisa
‘privada’ relativamente ao processo, ou representam um gasto inútil de tempo e
de esforços, ou se tomam particularmente vulneráveis a abusos resultantes de
simples ‘mudanças’ (ou ‘burlas’) de etiquetas”
A prevenção criminal
Mas a evolução recente do direito penal e do direito processual penal ditou
entretanto o aparecimento de diferentes modalidades de pré - inquérito.
Genericamente, a Lei de Organização da Investigação Criminal (Lei n.° 49/2008,
de 27 de Agosto atribui aos OPC competência para desenvolverem acções de
prevenção e investigação (art. 3.°, n.° 4, alínea b) do diploma legal citado).
No âmbito do combate ao tráfico de droga são admitidas acções de prevenção a
realizar pela Polícia Judiciária (PJ), Guarda Nacional Republicana (GNR),
Polícia de Segurança Pública (PSP) e Direcção-Geral das Alfândegas (DGA),
havendo inclusivamente brigadas anticrime da GNR com competência de
prevenção e investigação (arts. 2º e 5.° do Decreto-Lei n.° 81/95, de 22 de Abril),
devendo as notícias de crime eventualmente obtidas ser comunicadas
imediatamente ao MP (art. 3.° do mesmo diploma legal).
No domínio do combate ao branqueamento de capitais, as autoridades de
supervisão e fiscalização do sector financeiro têm poderes para efectuar
inspecções nas entidades supervisionadas, devendo informar o Procurador-
Geral da República e a Unidade de Informação Financeira dos factos que
indiciem a prática de crimes de branqueamento que porventura tenham
descoberto nas inspecções por si efectuadas (art. 40.° da Lei n.° 25/20 08, de 5
de Junho
Em tema de acções de prevenção criminal, que facilmente se transformam na
prática em pré-inquéritos, tanto assim que — como dissemos — as suspeitas e
os indícios recolhidos têm de ser imediatamente transmitidos ao MP para
instauração dos devidos inquéritos, importa referir a possibilidade de utilização
de técnicas especiais de investigação, designadamente as acções encobertas.
Nos termos do Regime Jurídico das Acções Encobertas para Fins de Prevenção e
Investigação Criminal (Lei n.° 101/2001, de 25 de Agosto), as mesmas são
admissíveis no âmbito da prevenção de um vasto catálogo de crimes graves,
tais como o homicídio voluntário, desde que o agente não seja conhecido,
organizações terroristas, associações criminosas, roubo em instituições
bancárias, tráfico de droga, branqueamento de capitais e muitos outros crimes
(art. 2.° do diploma legal citado).
As acções encobertas a realizar no âmbito da prevenção criminal devem, porém,
ser sempre autorizadas pelo juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal
(TCIC), mediante proposta do magistrado do MP junto do Departamento

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Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), nos termos do art. 3 n.° 2 e n.°
3, do mesmo diploma legal.
A necessidade de facilitar a operatividade da intervenção penal, considerando
as ameaças surgidas no começo de século, justificou a criação destas
investigações pré processuais.
Acerca disso há vozes muito críticas na nossa doutrina. Eis, por exemplo, a
posição de Germano Marques da Silva: “A pretexto do combate ao terrorismo e
à criminalidade violenta ou altamente organizada, as derrogações ao direito
comum, assim como a adopção de métodos particulares de investigação, e não
só de natureza reactiva, mas também preventiva, de que são paradigmáticas as
acções encobertas (Lei n.° 101/2001, de 25 de Agosto), tantas vezes na fronteira
da provocação, como nos dão conta os frequentes incidentes nos nossos
tribunais, {...] tendem a transformar-se na norma”
Na verdade, o Estado português até já foi condenado no Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem por usar situações de encobrimento para a provocação ao
crime (caso Teixeira de Castro contra Portugal, 1 998)30.
Seja como for, a própria lei não autoriza a provocação ao crime por parte dos
agentes encobertos ou infiltrados, mas somente “a prática de actos
preparatórios ou de execução de uma infracção em qualquer forma de
comparticipação diversa da instigação e da autoria mediata” (art. 6.°, n.° 1, do
diploma legal citado).

Desde a década de 80 que a instituição do agente infiltrado tem vindo a


cristalizar-se na generalidade dos ordenamentos jurídicos europeus e latino-
americanos. Depois do esforço secular da doutrina e da jurisprudência no
sentido da consolidação do conceito e do regime das proibições de prova, agora
definitivamente perspectivadas "como uma das construções basilares da
dogmática processual penal" num Estado de Direito democrático, a nova figura
surge disputando um lugar no processo penal, face à, pelo menos aparente,
estabilização da sua relação com os métodos proibidos de prova.

A existência de agente informador - homem de confiança


- ou de agente policial encoberto, que actua com o propósito e finalidade de
repressão e desmantelamento de redes de crimes não é meio de prova proibido,
quando ele em nada contribuiu para a formação do propósito criminoso dos
arguidos.

Neste contexto, é admissível não chamar a depor esse homem de confiança,


como testemunha, mesmo que tal depoimento seja requerido pelos arguidos,
tendo em conta o interesse legítimo das autoridades policiais na investigação do
ilícito em apreço( principalmente no âmbito do trafico de droga) de forma a
preservar o seu anonimato e a protege-lo de previsíveis futuras retaliações

Existem diferenças entre o agente provocador que convence outrem ao crime,


determina a vontade para o acto ilícito enquanto o agente infiltrado opera no

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sentido de ganhar a confiança do suspeito e, na base dessa confiança, mantém-
se a par do comportamento daquele, praticando, se necessário, actos de
execução em integração do seu plano, mas não assume o papel de instigador;

O agente encoberto aparece com uma posição exterior ao crime e ao criminoso,


ou seja, nem provoca nem se insere no âmbito das relações de confiança do
investigado.

Dos três, só o primeiro, ou seja, só o agente provocador se inclui nos "meios


enganosos" a que se refere a al. a), do n.º 2, do art. 126º, do C.P.P.

É válida a prova obtida através de "agente infiltrado", sempre que este "homem
de confiança" prossiga actividades exclusiva ou prevalentemente preventivas,
limitando-se a aproveitar-se de uma predisposição do arguido já anteriormente
revelada.

Não assim quando se trate de "agente provocador", cuja intervenção é decisiva


para a formação do projecto criminoso do arguido.

Aquisição da notícia do crime


O processo começa com a aquisição da notícia do crime (art. 241.° ss.).
O MP adquire a notícia do crime através de uma das seguintes três formas: por
conhecimento próprio, por intermédio dos OPC ou por denúncia (art. 241.0).
A propósito da denúncia, distingue-se os casos de denúncia obrigatória, que
impende sobre as entidades policiais e, mais genericamente, sobre todos os
funcionários (art. 242.°) dos casos de denúncia facultativa (art. 244.°). Adianta-
se desde já que é admissível a denúncia contra desconhecidos, visto caber nas
finalidades do inquérito a determinação dos agentes da infracção (art. 262.°, n.°
1).
Dantes discutia-se muito a questão de saber se a denúncia era obrigatória
apenas quanto aos crimes públicos ou também quanto aos crimes semi-públicos
e particulares.
A questão surgiu sobretudo defronte do teor do art. 242.°. n.° 3, onde se dizia
que “ denúncia obrigatória] não prejudica o regime dos crimes cujo
procedimento depende de queixa ou acusação particular”. Em função disso, a
maior parte da doutrina considerava que só os crimes públicos eram de
denúncia obrigatória Mas também havia opiniões contrárias. A redacção actual
do art. 242.°, n.° 3, ao dizer que “a denúncia só dá lugar a instauração de
inquérito se a queixa for apresentada no prazo legalmente previsto” resolveu a
questão, tornando claro que a denúncia é obrigatória para todos os crimes, sem
excepção. O legislador acabou, assim, dando razão àqueles que invocavam a
utilidade da denúncia obrigatória relativamente aos crimes semi -públicos e
particulares. Senão, vejamos: a maioria da doutrina, que negava a denúncia
obrigatória em relação aos crimes semi -públicos e particulares, rejeitava, do
mesmo passo, que tivesse de ser levantado auto de notícia em caso de flagrante

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delito nesses crimes. É preciso ver que o auto de notícia é um documento
lavrado por uma autoridade pública que presenciou um crime de denúncia
obrigatória (art. 243°, n.° 1). Quando a autoridade pública tenha verificado por
conhecimento próprio o cometimento do crime, seja ele semi - público ou
particular, é sempre útil o auto de notícia como meio de conservação da prova,
mais ainda se considerarmos o seu valor probatório particular (art. 169.°, ex vi
art. 99.°, n.° 4).
É de notar que o ofendido poderia passar por grandes dificuldades de prova
dos factos se não existisse este meio de prova, de mais a mais com o valor que
lhe é atribuído.
O auto de notícia
O art. 243°, n.° 1, dispõe que sempre que uma autoridade judiciária, um OPC ou
outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória,
levantam ou mandam levantar auto de notícia, descrevendo os factos que
constituem o crime, entre outros aspectos.
O auto de notícia não prova o crime, mas prova os factos materiais dele
constantes, enquanto prova bastante (art. 169.°, ex vi art. 99.°, n.° 4).
As medidas cautelares e de polícia
Os arts. 248.° a 253.° tratam das medidas cautelares e de polícia, que podem ser
necessárias tanto anteriormente ao processo como durante o desenvolvimento
do mesmo.
Os OPC devem praticar todos os actos cautelares necessários e urgentes para
preservar os meios de prova, mesmo antes de receberem ordem da autoridade
judiciária competente (art. 249.°, n.° 1).
Estes actos de polícia só serão integrados no processo mediante validação da
autoridade judiciária competente.
A delegação genérica de competência na PJ, ou noutro OPC, para a realização
de diligências de investigação relativamente a certos tipos de crime (art.
4, CP1) não pode, de maneira nenhuma, ser confundida com autorização para a
realização de “inquéritos policiais” preliminares, à margem de noticia do crime.

- As polícias têm competência, para a realização de medidas cautelares ( 248 .°


ss. CPP). Mas são actos fora do processo, que depois têm de ser validados
por autoridade judiciaria (por exemplo, art. 174.°, n.° 6, CPP);

- As polícias têm, essencialmente, a chamada dependencia funcional da


autoridade judiciária competente mas ressalvando a sua organização
hierárquica própria, e a sua autonomia técnica e táctica na realização da
investigação. Ao MP caberá, portanto, um poder de orientar a investigação e às
polícias caberá coadjuvar o MP nesta missão, mas tal não significa que o MP
faça a investigação material, já que a experiência e o saber criminalisticos, bem
como os instrumentos técnico-cientificos adequados pertencem aos OPC’.
A direcção funcional do inquérito pelo MP implica, isso sim, poderes de
directiva e de controlo relativamente aos OPC, o que é distinto do poder de dar

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ordens, já que as directivas deixam a decisão sobre a forma e os meios de
execução a quem as recebe. Mais concretamente, o MP tem poder para pedir
informação sobre as diligências de investigação e exigir outras, definir a
estratégia e dar orientações
Os OPC podem ter necessidade de proceder à identificação de pessoas (art.
250º).
Os OPC podem proceder por sua iniciativa a revistas e a buscas, em caso de
urgência (art. 251º).
Também podem proceder a buscas domiciliárias por sua iniciativa aquando de
detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão (art. 174°,
n.° 5, alínea c).

O Ministério Público

O MP é o órgão de Estado encarregado de exercer a acção penal (art. 219.°, n.° 1,


CRP).

Restrições ao exercício da acção penal pelo Ministério Público


A promoção da acção penal pelo MP depende da natureza processual dos
crimes. Há que distinguir entre crimes públicos, semi -públicos e particulares.
Nos crimes públicos o MP exerce a acção penal com total autonomia, ainda que
os ofendidos, ou os seus representantes, possam tomar a posição de assistentes
para influenciar o curso do processo. Nos crimes semi-públicos, a promoção do
procedimento depende queixa ou de participação do ofendido (art. n.° 1, CPP),
seguindo no resto o regime do procedimento nos crimes públicos, a menos que
haja desistência da queixa, seguida de homologação pela entidade competente,
o que fará cessar a intervenção do MP no processo (art. 51º CPP).

Nos crimes particulares, o procedimento criminal também depende de queixa


ou de participação do ofendido, além de que depende ainda da constituição de
assistente e da dedução de acusação particular por parte deste (art. 50º, n.° 1,
CPP).

Quanto ao concurso de crimes públicos e semi-públicos ou particulares, rege o


art. 52.° CPP.

Quanto a crimes cometidos por titulares de certos cargos políticos, há também


restrições ao exercício da acção penal pelo MP (arts. 130.° e 157.° CRP).

O Ministério Público como parte acusadora?


O MP, no quadro da estrutura acusatória do processo penal, é essencial ao
contraditório, mas não e ‘parte” no processo, já que não tem um interesse
jurídico próprio.

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Mas seria preferível que o MP tivesse no processo uma autêntica posição de
“parte”, já que a imparcialidade que se lhe exige, na prática, é muito dificil de
manter? Seguramente, o empenhamento do MP e dos OPC é natural, além de
que é indispensável para a descoberta das provas do crime. Mas será que
prefeririamos o adversário do sistema americano ao sistema vigente? Será que
gostaríamos realmente de ter um sistema em que o MP e os OPC ocultassem ou
até destruíssem os elementos cuja inclusão no processo favoreceria a defesa do
arguido, em vez de termos o actual sistema, no qual o MP e os OPC estão
obrigados a contribuir para a descoberta da verdade material? Enfim, a moda
agora é fazer o elogio da superior aderência à dura realidade do combate ao
crime que seria proporcionada por um processo de partes, mas, em última
análise, não cremos que a nossa tradição garantista se possa conformar com
esse modelo de processo penal

O estatuto do Ministério Público e dos seus agentes


No desempenho dessa função, o MP apresenta as seguintes características:
- Enquanto órgão do Estado, é um órgão judiciário, na medida em que colabora
com o Tribunal na administração da justiça;
- Constitui uma magistratura autónoma (art. 219.°, n.° 2, CRP), no sentido em
que goza de autonomia funcional, guiando-se por critérios de legalidade e
objectividade, a que se junta uma autonomia orgânica, dada pela exclusiva
competência da Procuradoria-Geral da República (PGR) para nomeação,
colocação, transferência e desenvolvimento na carreira dos representantes do
MP (art. 219.°, n.° 5, CRP);
- É integrado por magistrados responsáveis, que são, no entanto, subordinados
hierarquicamente (art. 219.°, n.° 4, CRP), na medida em que têm de observar
directivas, ordens e instruções, mas devem recusá-las se forem ilegais e podem
recusá-las com fundamento em grave violação da consciência jurídica. Só que o
superior hierárquico pode avocar o processo ou redistribuí-lo a outro
subordinado.
A posição institucional do Ministério Público
Na estrutura da divisão dos poderes soberanos do Estado, o MP ocupa uma
posição institucional ambígua e, além disso, polémica. Pergunta-se: integra-se
no poder executivo, como órgão administrativo ou no poder judicial como
colaborador do juiz na actividade jurisdicional.
A nomeação e a exoneração do Procurador-Geral da República pelo Presidente
da República, sob proposta do Governo (arts. 133.°, alínea e 220.°, n.° 3, CRP),
coloca o próprio MP, de certa forma, na órbita do poder executivo.
Acresce que o Procurador-Geral da República deve obediência às eventuais
instruções genéricas do Ministro da Justiça, o que acentua a referida ligação ao
poder executivo.
Por outro lado, o MP participa na execução da política criminal definida pelos
órgãos de soberania, o que, mais uma vez, o assemelha a um órgão

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administrativo. Seria preferível, em vez disso, a judicialização do MP,
garantindo assim a sua estrita independência e equiparando o seu estatuto ao
da magistratura judicial (veja-se os arts 215°a 218 °CRP)
A judicialização do MP faria sentido, quem sabe, no quadro da tradição clássica
do principio da legalidade penal, em que o MP não desenvolvia estratégias de
politica criminal, até porque a única política criminal admissível era
rigorosamente intra- sistemática em relação ao direito penal e tomava, portanto,
o crime como um’ dado que tinha de ser sujeito ao devido processo legal, sem
margem para a definição de prioridades na repressão da criminalidade.
Entretanto, o mundo mudou e, com ele, mudou a visão da política criminal no
Estado de Direito democrático e liberal. A política criminal tem para os
complexos problemas da nova criminalidade (e.g., a criminalidade violenta, a
criminalidade de empresa, a criminalidade altamente organizada, o terrorismo
internacional, o tráfico de pessoas, armas ou estupefacientes, a corrupção, o
tráfico de influências ou o branqueamento de capitais). Tais problemas exigem
respostas articuladas, que não se compaginam com a judicialização dos agentes
agindo desgarradamente, como se a criminalidade pudesse ser, ela controlada
com cada qual gerindo e promovendo às vezes os processos que lhe são
distribuídos. Definitivamente, não! Este não é o modelo reclamado pela
realidade actual. Pelo contrário, até se deveria aprofundar a participação do MP
na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania,
promovendo as assessorias do Procurador-Geral da República diante do
Parlamento, no contexto definido pela Lei- Quadro da Política Criminal (Lei n.°
17/2006, de 23 de Maio).

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