Você está na página 1de 4

Triunfo

Se os jardins são tão imensos e as flores tão várias, por que não aproveitam o
perfume de todas, sem discriminar qualquer delas pela forma ou pela cor? A
natureza, perfeita em sua diversidade, compõe-se de um quadro amplo desses
pequenos vegetais: algumas alongadas, outras pequenas, roxas, com poucas
pétalas. Reside aí toda a beleza: diferir.
Margarida estava sentada pensando nisso. Flores de diferentes matizes e
tamanhos coexistiam naquela praça. Todas, em sua singela majestade,
pareciam sorrir.
Margarida suspirou. Olhou para o chão, no qual repousavam umas três folhas
de seu currículo amassadas. Sentia o dia massacrar seu corpo. Andou o dia
inteiro, cheia de esperança, motivada, carregando, na mochila, currículos e
certezas. Era impossível não vencer.
Disseram-lhe que não estavam contratando ainda. Tudo bem. Vamos em
frente. Em outra empresa, a secretária loira de corpo esguio, disse-lhe, com
sua voz protocolar, que o Doutor não poderia recebê-la. Tudo bem. Vamos
em frente.
Na Quarters SXS, gigante ucraniana do petróleo, recebeu um bom dia e uma
cadeira. A senhorita aceita um café? Não, obrigada. Foi o máximo que lhe
ofereceram. Procuravam uma pessoa com experiência. Eu deveria ter tomado
aquele café, pensou. Nunca vi uma xícara tão branca e tão limpa.
Tudo bem. Vamos em frente...

Na vida nunca se preocupara em ser feliz. Queria triunfar pelos estudos, pelo
trabalho. Afinal, princesas com seus dentes perfeitos e aquela roupa brega não
costumavam frequentar seus sonhos, tampouco a favela em que fora criada.
Não queria a alegria superficial da Disney. Ser feliz era secundário: o
importante era viver.

Sonhar muito alto pode dar um tombo feio na gente, aconselhava sua mãe.
Escolhera Geologia. Queria trabalhar no ramo do petróleo. Não era sonho,
era um caminho. Queria uma casa boa, um carro, poder gastar. Achava-se tão
linda naquelas roupas sociais. Sua mãe insistia que uma moça inteligente
daquele jeito deveria ser professora. Mais seguro. Aqui na comunidade tem
um tanto de mulher professora. Coitada de sua mãe, pensava, tão preocupada.

Seu berço fora doação de suas tias, irmãs de seu pai. Ora, seu nascimento não
definiria seu destino. Um dia aquele berço surrado seria o símbolo de sua
superação. Estava acostumada aos percalços. Havia barreiras. Tudo bem.
Vamos em frente.

Na última empresa, porém. Foi recebida rapidamente. Olhou no fundo dos


olhos daquele homem e de sua barba perfeitamente bem aparada.

Seu currículo é impressionante. Você fala inglês e alemão. Onde aprendeu?


Ganhei meia bolsa em uma escola de línguas. A outra metade meus
professores e minha mãe me ajudaram.
O que sua mãe faz?

Já fez de tudo na vida. Atualmente é merendeira em uma escola pública.


Que bom! Está vendo que tem gente que presta no morro?! Vejo que estagiou
na VNC Oil por seis meses. Realmente impressionante. Por que acha que é a
pessoa certa para esse cargo.
Margarida havia treinado essa pergunta: sua história, seu berço doado, o
incentivo da mãe. Era a pessoa certa por merecimento, por ter se libertado das
atrozes correntes do destino. Era a pessoa certa por ter digladiado com as
baixas expectativas e confiado naquela voz insistente dentro da alma. Enfim o
triunfo.
Seria muita pretensão julgar-me a pessoa ideal para o cargo. Tenho
qualificação e força de vontade de contribuir para o crescimento dessa
empresa. Não sei exatamente se sou a pessoa certa, mas sou a pessoa que
batalhará muito para se tornar a melhor funcionária.

E ainda diz que não tem pretensão? – perguntou o gerente sorrindo.


Embora esforçasse simpatia, aquele homem camuflava algo sob o sorriso.
Lançou vários olhares em direção ao discreto decote de Margarida. Molhava e
mordia os lábios a todo instante. Sorrindo, girando na cadeira, perguntou em
tom jocoso:

Além do trabalho, alguma coisa faz você gozar a vida?


Minha família – respondeu seca.

A palavra gozar causou desconforto naquele contexto. Perguntar por algo fora
do trabalho? Talvez seja para compreender se não sou desses bitolados,
quadrados, cujo mundo gira apenas em torno do serviço.
Agradeço por você ter nos procurado. Gostei muito de você. A decisão de
contratá-la não é minha, embora eu influencie bastante, se é que me entende.
Claro que entendia. Compreendia todas as nuances dos jogos de palavras de
nossa língua materna. Aquele sorriso, contudo...
Aqui está meu número. Pode me ligar a qualquer hora se precisar de qualquer
coisa.
Ao despedir-se, abraçou-a com força e demoradamente. Sem jeito, Margarida
agradeceu e saiu dali de cabeça baixa.
As palavras desse homem foram tatuadas em sua mente. Insinuavam, a
despeito de seu tom afável, alguma coisa grave.
Não: talvez fosse coisa de sua imaginação. Era um homem simpático. Só isso.
Certamente era o cansaço e a frustração por tantos nãos anteriores. Um
coração abatido atrapalha o raciocínio.
Depois de longas horas estava triste, em um banco de praça, observando o
jardim. A duas quadras dali estava o prédio imponente de onde acabara de
sair.
Aquele abraço ao final da entrevista... aquele sorriso inquebrantável... a palavra
gozar. Fora um dia difícil. O perfume amargo de uma daquelas flores da praça
inundou o poente. Não conseguira trabalho. A mochila voltava um pouco
pesada de dúvidas. Margarida caminhava firme em direção ao anoitecer. O
destino é conquista dura, comprado com sangue e dor.
Quatro quadras adiante, a geóloga fluente em alemão não tivera tempo para
pedir socorro: jogada ao chão, a visão um pouco turva da pancada, sentiu um
homem de barba feita, estuprar seus sonhos.
Os jornais noticiaram na manhã seguinte: Mulher é violentada e morta na Rua
Desembargador Camazzo.
Destino! Jornal sobre a mesa, um homem simpático, de barba impecável,
preparava-se para entrevistar uma nova candidata.
Bom dia! Vejo que seu currículo é muito bom!

Uma mulher morta. Um perfume a menos. Tudo bem. Vamos em frente...

Você também pode gostar