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VISÃO CRÍTICA SOBRE AS DIFERENTES ABORDAGENS


METODOLÓGICAS NA ÁREA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

 Maria Lúcia do Eirado Silva (*).

Embora não se possa hoje determinar “a” ciência como um campo unificado,
reconhecendo-se uma multiplicidade de ciências em função de uma pluralidade de
objetos de conhecimento bem delimitados, é possível perguntar: o que distingue esses
“objetos”, a ponto de serem entendidos justamente como objetos de conhecimento
científico? Uma resposta seria a de identificar, através de todas as ciências atuais, certas
exigências comuns – por exemplo, as exigências de objetividade e verificabilidade –
como critérios de cientificidade1. Mas estes critérios não são necessariamente
interpretados do mesmo modo por todas as ciências. Além disso, alguns campos de saber
mostram-se rebeldes às interpretações que são feitas desses critérios por certas ciências
tradicionalmente consideradas “modelo” de cientificidade (tais como a física e a
matemática). Em outras palavras, atualmente discute-se se é possível se chegar a uma
definição definitiva sobre o que é conhecimento científico e critica-se o dogmatismo
implicado na intenção de se estabelecerem hierarquias e classificações das ciências 2,
como se umas fossem “mais” científicas do que outras.
Aceita-se, de modo geral, a separação de um grande conjunto de ciências (ou
“saberes”) denominado ciências do real onde se formam conhecimentos constituídos, em
última análise, por enunciados que “afirmam ou negam algo acerca do real”. Estas
ciências, ao tratarem do real, das coisas e acontecimentos que se dão no mundo,
fundamentam-se na necessidade de estabelecerem a “verdade” ou a “falsidade” de seus
enunciados recorrendo à experiência, “isto é, direta ou indiretamente, à observação” 3. A
possibilidade de haver uma experiência concreta, de observar de modo controlado o que
acontece nesta experiência e de provar, pela experiência, o que se afirma (prova
experimental ou empírica) seriam, assim, momentos indispensáveis à constituição do
conhecimento científico no domínio das ciências do real. A objetividade e a
verificabilidade distintivas do conhecimento científico são aqui interpretadas por esta
referência necessária à experiência, à observação: um fenômeno é objetivo quando dele
se tem uma experiência direta, sensível; um enunciado é verdadeiro quando pode ser
verificado na experiência.
Embora, à primeira vista, se concorde com a necessidade da experiência, da
observação e da experimentação, para reconhecer como científico o saber que o homem
adquire sobre o real, ao mesmo tempo, é preciso analisar as dificuldades levantadas por

*
(*) Professora do Mestrado em Educação da FGV. Publicação interna do
Departamento de Psicologia da Educação, do Instituto de Estudos Avançados em
Educação, Fundação Getúlio Vargas.
1
Blanche, Robert. A epistemologia. Lisboa, Ed. Presença, 1983.p. 77.
2
Idem, p. 93-6.
3
Blanche , Robert. Op. Cit. , p. 133.
2
4
esta concepção, conhecida como “abordagem empirista” . Por exemplo, se as ciências
pretendem chegar a um conhecimento do real em um nível máximo, onde se estabeleçam
as leis universais dos fenômenos observados (válidas para todas as experiências de um
mesmo “tipo”, em qualquer lugar e em qualquer tempo), o valor da experiência, da
observação e da experimentação pode ser questionado, pois levaria à exigência de se ter
uma “experiência infinita” do que se afirma nessas leis: verificar o que uma lei afirma
não apenas em um momento, uma situação e para um conjunto determinado de
observações, e sim, em “todos” os momentos, “todas” as situações, e para “todos” os
conjuntos observáveis de fenômenos, o que é praticamente impossível.
Por essa e outras razões, a abordagem empirista, ainda que conservando
atualmente sua força de produção de conhecimentos e técnicas, vem sofrendo críticas que
têm levado seus defensores a constantes correções nos seus postulados fundamentais.
Pode-se compreender por essa discussão, restrita a apenas uma das abordagens
científicas, e sabendo que esse tipo de discussão amplia-se a outras abordagens e a outros
aspectos da atividade científica, que é indispensável uma visão crítica a toda pessoa que
se engaje na tarefa de produzir conhecimentos. A própria produção científica é crítica.
Hoje, como mostra Blanché, os sistemas fechados, contendo “verdades absolutas”, não
seriam propriamente científicos: “constitui, pelo contrário, uma característica do trabalho
científico, o proceder por aperfeiçoamentos graduais, graças a uma colaboração em que
os cientistas se corrigem ou se completam mutuamente...5
É pensando assim que procuro, neste trabalho, apresentar criticamente as
abordagens metodológicas que orientam a pesquisa nas ciências humanas e sociais,
incluindo as investigações que vários profissionais (psicólogos, administradores,
sociológicos, médicos, assistentes sociais, pedagogos e outros mais) realizam dentro das
empresas e instituições de diferentes tipos.
O que se entende por “abordagem metodológica”? O método de uma investigação
é o caminho, o percurso, em suas linhas mestras, do processo de investigação. Para
percorrer esse caminho, ou seja, para efetivar o método, realizam-se “passos” e usam-se
procedimentos e instrumentos determinados (característicos do método). Mas, por que se
escolhe um método, e não outro? Em princípio, porque o pesquisador prefere, adere,
atribui um valor maior a uma forma de conhecer em especial, não só devido à sua
formação e à sua formação e às suas experiências de vida, mas sobretudo devido ao seu
posicionamento em relação às questões do que significa “conhecer” e do uso que se faz
daquilo que se conhece. Logo, a escolha do método refere-se não exclusivamente ao
método em si. Refere-se basicamente a posições prévias constitutivas do próprio método:
à abordagem, no sentido da forma pela qual se “vê” a realidade como cognoscível, pela
qual se “problematiza” a realidade e pela qual se “abre o acesso” à realidade com vistas a
uma ação sobre ela. Neste sentido, uma abordagem metodológica está sempre
pressuposta pelos métodos empregados na pesquisa. Se escolho o método
“fenomenológico”, estou aceitando uma abordagem específica: tenho uma perspectiva
4
É empirista por se vincular ao “empírico” – ao campo da experiência sensível – como única realidade
capaz de basear um conhecimento “verdadeiro”.
5
Blanché, Robert. Op. Cit. , p. 144-5.
3
sobre o real, um campo problemático no real e uma via de acesso ao real que são
diferentes, singulares. Sem entender as diferenças de abordagem, dificilmente o
pesquisador é capaz de trabalhar eficazmente com o método que escolhe. Por outro lado,
mesmo quando não reconhece a abordagem metodológica, o pesquisador não se “livra”
dela.
 As diversas abordagens a seguir apresentadas colocam-se em contraposição umas
às outras no referente a um ou mais dos seguintes aspectos:
 o “objeto” visado;
 o papel atribuído à teoria;
 as formas de observar, registrar, tratar e analisar informações;
 o papel do pesquisador e do “pesquisado” (relações entre “ sujeito” e “objeto” de
conhecimento);
 privilégios concedido à quantidade ou à qualidade;
 concepções sobre o que é a “verdade”.
[
1. ABORDAGEM EMPIRISTA
Já foi mencionado anteriormente que a abordagem empirista se define pelo
postulado fundamental segundo o qual todo conhecimento sintético 6 é fundado sobre a
experiência. Tendo a experiência, na perspectiva empirista clássica, um valor essencial,
os enunciados científicos deveriam ser produzidos por indução, isto é, partindo-se do
particular (fenômenos observados), o cientista chegaria ao geral (lei dos fenômenos –
generalização para todos os fenômenos da mesma classe).
Este postulado, que ainda sobrevive integralmente em algumas investigações que
trabalham com métodos puramente empiristas, sofreu correções importantes. “O
empirismo lógico contemporâneo acrescentou a máxima segundo a qual uma proposição
não constituiu uma asserção cognitivamente dotada de sentido e não pode, por
conseguinte, ser considerada nem verdadeira nem falsa, a não ser que seja, ou (1°)
analítica ou contraditória, ou então (2°) susceptível, pelo menos em princípio, de ser
submetida a um teste pela experiência”7. Sem deixar de ser empirista, essa nova
abordagem, a do empirismo lógico, atribui valor à experiência sobretudo em termos da
verificabilidade das proposições científicas, ou seja, preocupa-se mais com a
confirmação/refutação, pela experiência, dos enunciados que pretendem ser científicos e
coloca, também, uma ênfase na linguagem, ou lógica, da ciência, assim como no sentido
empírico (e não só na base empírica, como queriam os empiristas clássicos) das
6
“Conhecimento sintético” distingue-se de “conhecimento analítico” da seguinte maneira: o primeiro
constitui-se por “juízos analíticos”, os quais, na definição de Kant (citada por Lalande, Vocabulaire
technique et critique de la philosophie, P.U.F.; 1980, P. 1094), assim se diferenciam: “Ou bem o
predicado B pertence ao sujeito A como qualquer coisa que já está contida de uma maneira escondida
neste conceito; ou bem B está totalmente fora do conceito A, embora se encontre ainda assim em
ligação com ele. No primeiro caso, chamo-os de juízos analíticos: no segundo, de juízos sintéticos."Os
juízos analíticos são típicos das ciências formais (tais como a lógica e a matemática), e os sintéticos,
das ciências do real.
7
Chatêlet, F. (org). História da Filosofia – Idéias, doutrinas, Vol. 8 – O século XX. Zahar Ed. , Rio de
Janeiro, 1974, p. 71.
4
proposições científicas. Assim, uma lei científica teria significado (e significado
empírico) não porque se aplica a todas as experiências, em qualquer tempo e lugar, com
todos os fenômenos a que se refere, mas porque é enunciada de maneira tal (linguagem,
lógica) que a torna “susceptível”, pelo menos “em princípio”, de ser submetida a um teste
pela experiência (verificabilidade empírica). O valor da indução não é mais, sob esse
ponto de vista, tão essencial, pois o que interessa não é uma lei científica que parta dos
dados particulares da experiência, e sim, que o seu enunciado possibilite uma referência a
esses dados, sobretudo no momento de sua verificação (e não e sua construção).
As decorrências da abordagem empirista clássica para os métodos das ciências
humanas e sociais evidenciam-se nos seguintes aspectos:
1º) O objetivo de conhecimento não é construído teoricamente, é apreendido nas
observações, ou seja, é extraído por abstração daquilo que se observa (dos “dados”).
Aquilo que se apreende, ou se abstrai, aparece na regularidade, ou repetição, com que
esses dados se apresentam à observação, isto é: o “objetivo” não são os dados, mas estes
dados “se dão” de tal modo que o objeto visado pelo conhecimento se constitui na
própria manifestação desses dados, por sua regularidade (ou repetição) onde se abstrai a
“lei” ou “forma regular” (regulada, legal) dos fenômenos observados.
2º) A apreensão deste objeto consiste, então, em o pesquisador observar (colher
dados, coletar), organizando a sua experiência de tal modo que ela se dê sem
interferências sobre a apresentação dos fenômenos. Isto leva a dois grandes métodos ou,
no fundo, estratégias principais de apreensão dos “objetos empíricos: método
experimental e método de pesquisa “ex-post facto”.
Em relação à organização da experiência, ou observação, como experimento –
método experimental: a experiência produz os dados da observação, pela manipulação
ativa de variáveis em situações mais ou menos artificiais, ou intencionalmente planejadas
para isolar/controlar/medir as variáveis que se multiplicam (variáveis independentes) e as
variáveis “consequentes” à manipulação (“efeitos” ou variáveis dependentes). Neste
caso, o objeto a ser extraído dos dados é uma relação (concebida como causal, uma
relação associativa, “antes-depois”) entre o 1° e o 2° tipo de variáveis - podendo-se
considerar, ainda (para controlar ou depurar a relação abstraída), outros tipos de
variáveis, como as “estranhas” e as “intervenientes”, além das independentes e
dependentes.
Cabe observar que os modelos contemporâneo do método experimental quase
nunca são puramente empiristas, no sentido clássico, pois partem quase sempre de
hipóteses teóricas que orientam, inclusive, a definição operacional de todas as variáveis e
o plano experimental. Não servem, portanto, apenas à observação e à coleta de dados
como em pesquisas propriamente empiristas, em que a experimentação seria, muito mais,
uma forma de controlar a experiência visando a uma generalização confiável8 do que uma
forma de confirmar/refutar hipóteses teóricas (de que se deduzem os “casos” cuja
observação serve de teste para tais hipóteses). Assim é que o método experimental se filia
muito mais às abordagens do empirismo lógico, neopositivista, geradas pelas correções

8
Processo indutivo.
5
feitas ao empirismo clássico, procedendo por um caminho (método) tipicamente
hipotético-dedutivo (ver item 2, “Abordagem neopositivista”).
Em relação à organização da experiência como observação controlada de
fenômenos não produzidos pelo pesquisador, mas que já estão acontecendo, ou seja, que
vão ser observados pelo pesquisador após “alguma coisa” tê-los feito acontecer: método
de pesquisa “ex post facto”. Estes métodos, em geral utilizados em estudos exploratórios,
pesquisas de campo e levantamentos, colocam muita ênfase no controle de fatores
capazes de distorcer os resultados da observação: fatores ligados ao próprio pesquisador,
a características das “populações” pesquisadas, aos procedimentos e instrumentos usados,
às formas de registro dos dados e às formas de levantamento e análise dos dados. Isto é
compreensível pois, nestes métodos, a apreensão dos dados é a única fonte do
conhecimento; qualquer coisa que aí interfira pode comprometer irremediavelmente os
resultados.
3°) O pesquisador, justamente por poder ser uma fonte de distorção, é visto em
posição de “absoluta” neutralidade, e treinado para adotar esta posição frente aos
problemas e às pessoas pesquisadas, como mero instrumentador das técnicas.
4°) Os “sujeitos” pesquisados são, também, controlados (colocados na posição de
objetos de observação equivalentes aos objetos das ciências naturais), para não
interagirem com o pesquisador nem com os outros “sujeitos”, para se restringirem ao
papel de fonte de informação (dados). São, assim, desconhecidos em sua intencionalidade
e em seu papel de “agentes” sociais.
5°) Como o objeto de conhecimento se constitui pela regularidade ou repetição
dos fenômenos, valorizam-se: (a) a frequência de aparecimento de dados “iguais”, ou
pertencentes à mesma classe (categorias estabelecidas por semelhança, identidade,
analogia etc., entre dados), assim como (2) a distribuição dos dados, ou seja, as formas
“regulares” com que os dados se distribuem, que são comparadas a modelos abstratos de
distribuição para se descobrir se obedecem a certos princípios formais, ou se são casuais.
Estes “tratamento” dos dados envolvem a sua quantificação por processos estatísticos,
havendo por isso uma ênfase desses métodos nos aspectos quantitativos das observações,
muitas vezes em detrimento dos qualitativos.
 Sendo aplicada a problemas da área das ciências humanas e sociais, esta
abordagem sofre, por parte dos defensores de outras abordagens, várias críticas
relativas às seguintes questões: (a) da validade das leis empíricas (ver pág.2); (b) da
ilusão de “neutralidade”, seja do pesquisador, seja das técnicas de pesquisa (ver
pág.7); (c) da pouca ênfase concedida à qualidade, ou tendência a transformar,
indevidamente, dados de natureza qualitativa, em dados quantitativos (ver acima, o 5°
aspecto exposto); (d) do valor ético e científico dos controles exercidos nas situações
de observação; (e) da ilusão da possibilidade de ter acesso ao conhecimento do
“objeto”, sem conceituações prévias (ver 1° aspecto destacado na abordagem
neopositivista, pág.12).
2. A ABORDAGEM NEOPOSITIVISTA
Os neopositivistas firmaram a sua abordagem aprofundando a tendência a atribuir
à lógica dos enunciados o índice de cientificidade, desde que se guarde uma referência a
6
“alguma” experiência possível que os “verifique”. Permanece, nela, o critério de
significação empírica dos enunciados científicos, definido por Carnap, por exemplo, da
seguinte maneira (segundo Bouveresse9): “Uma proposição tem uma significação
cognitiva se, e somente se, ela é traduzível numa linguagem empirista... cujos
constituintes não-lógicos se referem diretamente ou, de um modo indireto, por caminhos
especificados, a elementos observáveis”. Trata-se de uma versão do empirismo, que se
distingue do positivismo tradicional.10
Os elementos observáveis a que se refere de algum modo a “linguagem
empirista”, não são propriamente experiências diretas ou “fatos últimos”, mas
propriedades “de objeto accessíveis à observação” 11, sendo a acessibilidade à observação
dependente sempre de convenções relativas às operações de observação. Neste aspecto,
esta abordagem centra-se na tradutibilidade da linguagem das proposições científicas
para a linguagem empírica (observacional). Nesta última, a significação dos termos é
relativamente autônoma frente ao sistema conceitual. Sendo um instrumento de descrição
das observações, deve conter essencialmente termos observacionais (indicadores); é um
instrumento de comunicação, onde todas as proposições são compreendidas por todos
com o mesmo sentido, e serve exatamente ao propósito de interpretar (possibilitar a
tradução) de sistemas teóricos, formulados em linguagem teórica. Em outras palavras,
serve para dar uma “significação cognitiva”, cientificamente válida, no sentido da
verificação da ligação que os enunciados teóricos têm com a experiência, melhor
dizendo, com elementos observáveis. Portanto, a linguagem teórica nesta abordagem tem
seu sentido dependente da possibilidade de sua tradução para a linguagem observacional.
Um sistema teórico é, por si só, um conjunto de postulados e hipóteses, com uma
organização interna coerente, mas cuja interpretação deve ser estabelecida por regras de
correspondência entre alguns dos termos do seu vocabulário (termos teóricos) e termos
observáveis. Assim, um sistema teórico será sempre interpretado (isto é, ganhará
significação empírica) de modo indireto e incompleto.
No entanto, esta ênfase na linguagem observacional não reduz a importância de
outras possibilidades de definição dos termos científicos que utilizam termos descritivos
não estritamente observacionais. As operações lógicas de definição e redução permitem,
assim, estabelecer a extensão com que certos termos se aplicam, não fugindo ao princípio
de referência ao observável, pois tais definições e reduções consistem em especificar as
condições operatórias – e, portanto, no plano do “observável” – em que esses termos se
aplicam. Estas formas de atribuir significado aos termos teóricos (aos conceitos, por
exemplo) não esgotam definitivamente a interpretação dos mesmos, mas possibilitam
restringir a sua margem de indeterminação. Carnap admite “para um mesmo termo, uma
pluralidade e mesmo, eventualmente, um número indefinido de definições
operacionais”12 .

9
Idem, Châtelet (nota 7), p. 86.
10
O positivismo tradicional é uma doutrina relacionada com Comte, cujas teses centrais são próximas
às do neopositivismo, mas que valorizam mais os “fatos” do que as construções lógicas na
caracterização da ciência. Em Lalande (op. Cit., nota 6) , à p. 793, encontra-se um resumo dessas
teses do positivismo fundado por Comte.
11
Idem, Châtelet, p. 92.
12
Idem, Châtelet, p. 105-6.
7
O neopositivismo incorpora, então, em sua abordagem, outro princípio importante,
que estende o 1° princípio de verificabilidade – pela tradução de uma linguagem teórica
para uma linguagem observacional - o princípio do operacionismo, ou operacionalismo.
No operacionismo, só se reconhece a significação empírica de um termo quando lhe é
possível dar uma definição operacional, o que justamente amplia a verificabilidade dos
enunciados que apresentam uma correspondência com elemento observáveis.
Os neopositivistas trabalham, ainda com variáveis não observáveis – variáveis
intervenientes e construções teóricas – o que completa os elementos primordiais desta
abordagem: elementos observáveis; variáveis intervenientes, que são elementos
meramente instrumentais, suposições auxiliares cujo valor se resume em facilitar a
formulação de leis empíricas, podendo ser descartadas no momento em que dados mais
seguros estiverem disponíveis; e constructos hipotéticos – por exemplo, a noção de
elétron, ou a de inteligência – que não são só auxiliares, nem descartáveis, pois implicam
a existência de algo, apesar de não observado.
A linguagem teórica, segundo os neopositivistas, quando considerada em si
mesma, compõe-se de elementos matemáticos e termos teóricos descritivos. A operação
com os termos teóricos se faz através de postulados teóricos (isentos de termos
observacionais) e de regras de correspondência, que unem os termos teóricos a termos
observácionais (o que quer dizer, também, que essas regras são diretrizes de aplicação
dos termos teóricos). Qual a significação dos termos teóricos para o conhecimento
científico, fora de sua referência ao "observável"? Eles designam "objetos" especiais,
lógico-matemáticos, que obedecem às condições exigidas pelos postulados teóricos. Têm
um papel indiscutível no processo de conhecimento: estabelecer a "rede" lógico-
matemática (axiomatizar e matematizar) que possibilita operar hipotética e
dedutivamente. Além disso, os objetos lógico-matemáticos, designados pelos termos
teóricos, ao serem estes últimos relacionados pelas regras de correspondência com
processos observáveis, e preenchendo as condições fixadas nos postulados teóricos,
aparecem como caracterizados do ponto de vista físico, também13.
A visão neopositivista sobre o conhecimento científico chegou praticamente a ser
dominante. "A concepção que consiste em representar-se uma teoria como constituída de
dois elementos distintos: um sistema dedutivo axiomatizado e um 'dicionário' que fornece
um conteúdo ao sistema, interpretando algumas de suas fórmulas em termos empíricos,
foi tão difundida na filosofia das ciências de inspiração analítica e, até uma data recente,
tão amplamente aceita, que pôde ser chamada de a concepção standard', 'recebida' ou
'ortodoxa' das teorias científicas"14. Também as ciências humanas e sociais passaram a
adotar essa concepção "modelar". Certos métodos foram assim gerados, destacando-se os
seguintes aspectos da vinculação dos mesmos a tal abordagem:
 1º) O objeto de conhecimento é tecido nas relações entre propriedades dos
fenômenos, observáveis na experiência e conceitos e proposições teóricas. Neste
sentido, a abordagem positivista responde às críticas feitas ao empirismo clássico,
com referência à "pretensão" de apreender diretamente, nos dados da experiência, um
objeto de conhecimento, já que os "dados", para serem científicos, só podem ser
13
Idem, Châtelet. p. 116.
14
Idem, Châtelet. p. 118.
8
produzidos em função de um distanciamento (ruptura com a realidade imediata) e já
são inevitavelmente "dados" por uma descrição, numa linguagem que decorre,
necessariamente, de concepções prévias à observação.
2º) O papel da teoria na construção do conhecimento é importante, mas está
sempre condicionado à necessidade de uma referência direta ou indireta a elementos ou
condições de observação (manutenção do postulado fundamental do empirismo). O
pesquisador, segundo esta abordagem, deve trabalhar indutiva-hipotética-e-
dedutivamente. Todo processo de pesquisa passará assim por estes momentos
metodológicos: observar, induzir relações e elaborar sistemas conceptuais, formular
definições operacionais e hipóteses, deduzir conseqüências observáveis (em certas
condições experimentais), realizar experimentos para confirmar/refutar as previsões
(deduções), rever os sistemas conceptuais.
3º) O método experimental (assim como os quase-experimentais), com sua
estrutura completa que visa essencialmente ao teste de hipóteses, é o que efetiva de forma
mais característica esta abordagem (ver comentário sobre o método experimental, págs. 6
e 7)
 4º) A postura do pesquisador mantém-se igual à estabelecida pela abordagem
empirista clássica, assim como a visão que se tem dos "sujeitos" da pesquisa. O
controle dos fatores de distorção torna-se ainda mais rigoroso, de tal modo que as
situações de observação e experimentação são transportadas preferencialmente para o
laboratório. Para assegurar a "pureza" e a ação das variáveis independentes assim
como o controle de variáveis capazes de interferir nesta ação ou na produção dos
efeitos, isto é, da variável dependente, o pesquisador, embora "neutro", tem um papel
ativo na organização da situação experimental.
 5º) Mantêm-se ainda a ênfase na quantificação, notando-se porém, no tocante à
construção dos elementos teóricos e das hipóteses, um maior rigor lógico, maior
formalização e uma ampliação dos recursos matemáticos, em comparação com a
abordagem empirista clássica.
 A abordagem do empirismo lógico, ou neopositivismo, tem recebido críticas
principalmente quando aplicada às ciências humanas e sociais, apesar de ser ainda
hoje, uma das mais ensinadas e praticadas, por exemplo, na psicologia. Como provém
da análise de sistemas teóricos prontos, pertencentes ao domínio das ciências formais
e da física, esta aplicação tem sido vista como determinada pelo ideal positivista
tradicional, que propõe tomar estas ciências como "modelo" sem que se leve em
consideração a adequação do "modelo" às problemáticas e à "natureza" dos
fenômenos que interessam às outras ciências. Os objetos matemáticos e físicos
vinculam-se a uma tal abordagem (sem se considerar, mesmo assim, que seja a única,
nem a melhor possível no seu caso). Quanto aos fenômenos da vida (biológica,
psíquica, social e cultural), as formas de concebê-lo, observá-los, controlá-los, "tratá-
los" e analisá-los exigidas nesta perspectiva são questionáveis, até mesmo eticamente
indesejáveis. A objetividade, ao nível da vida, se definida nos termos neopositivistas
de neutralidade e controle das observações, levaria inevitavelmente à negação de um
caráter essencial que é o "afeto", isto é, a capacidade de afetar e ser afetado, de agir e
reagir a qualquer circunstância ambiental ( por exemplo, à observação), capacidade
distintiva dos seres vivos. Aliás, mesmo do ponto de vista da física contemporânea,
no campo da microfísica, a prova da interferência das operações de medida sobre o
9
próprio processo observado ou testado, exigiu uma revisão crítica dos princípios de
objetividade, verificabilidade e causalidade (determinismo), e até de concepções
clássicas e axiomas sobre a natureza dos fenômenos físicos.
3. A ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA
"A maneira exclusiva pela qual a concepção do mundo do homem moderno na
segunda metade do século XIX foi determinada pelas ciências positivas e falseada pela
prosperity que a eles se devia, significava o abandono cheio de indiferença dos
problemas que são decisivos para um humanismo autêntico. As ciências dos fatos puros e
simples produzem homens que se vêem puros e simples fatos"15
Como se vê, Husserl (1859-1939), principal fundador da fenomenologia, estava
preocupado com o valor das ciências "exatas" - e das outras ciências que as tomam como
"modelo" - para a própria existência do homem. Coloca-se contra o positivismo de sua
época. Ou, melhor dizendo, contra a "importação" irrefletida que as ciências humanas
fazem, dos modelos da ciências da natureza. A psicologia experimental, por exemplo,
atinge resultados espetaculares inatacáveis do ponto de vista metodológico; mas essas
ciências não determinaram exatamente seu objeto e não sabem, pois, a que se referem os
resultados obtidos"16. Não será talvez por isso que ciências, como a psicologia, não
estariam contribuindo para uma compreensão do sentido da vida humana concreta e para
soluções de problemas mais urgentes da humanidade? Há um ceticismo significativo em
relação à "redução empirista" efetivada pelas ciências humanas e sociais: identificar a
atividade psíquica e social do homem a fenômeno "naturais" (no sentido das ciências da
natureza). Este é o ceticismo que origina a abordagem fenomenológica. Husserl procura,
na linha divisória entre idéias metafísicas e concepções positivistas, uma outra via de
acesso ao conhecimento onde se possa fazer uma ciência humana, propondo outros
fundamentos, postulados e pontos de partida. Como pensar os "dados da experiência"
sem perder de vista as diferenças essenciais entre eles? Em outras palavras, como ser
"metafísico" que é, o homem pode conhecer o essencial de sua experiência, sem reduzir
as diferenças "de natureza" e de "nuances" dos dados, a esse ou aquele "tipo" de dado? A
Fenomenologia é esta pergunta e as respostas a ela, na medida em que:
1º) Postula a necessidade e a possibilidade de atingir o essencial (essências) nos
dados da experiência.
 2º ) Visa ao fenômeno, isto é, toma a realidade como fenomenal, como uma
aparição significativa, que não remete a um “em si” e, sim, a um sentido: não é
preciso ir além, ou aquém, do fenômeno para encontrar o sentido do real e as
diferenças de sentido.
3º ) Portanto, como os próprios fenômenos são significativos, decorre que estão
“penetrados no pensamento, de logos, e que por sua vez o logos se expõe, e só se expõe
no fenômeno”17.

15
Husserl. La crise des sciences européannes et la phénoménologie transcendentale, em Estudes
philosophiques, 1948, nºs 2 e 3, p. 129 - citado por Dartigues, O que é a fenomenologia?, Eldorado,
Rio de Janeiro, 2ª. Edição, p. 73.
16
Idem, Dartigues, p. 19.
17
Idem, Dartigues, p. 20.
10
4º ) A “intuição originária” é este “voltar às coisas mesmas”, despojar-se do que já
se pensa sobre a realidade (dos a priori ), para encontrar o sentido no fenômeno como se
apresenta. Mas, não se trata de voltar aos “dados dos sentidos” (como no empirismo
clássico), pois o que interessa é que, dando-se a experiência pelos sentidos, os fenômenos
já se dão com um sentido – essência – que não está absolutamente na sua regularidade ou
repetição, mas no próprio fenômeno. O sentido do fenômeno é imanente e é acessível ao
sujeito do conhecimento por “transparência”, devendo-se distinguir este acesso à essência
do fenômeno, do processo que se domina “percepção de fatos”. “A intuição da essência...
é a visão do sentido ideal que atribuímos ao fato materialmente percebido e que nos
permite identificá-lo”18. A essência de um fenômeno permanece idêntica a si mesma
através da variação factual em que se realiza – tem um caráter de necessidade, distinto do
caráter de “facticidade” da sua manifestação casual. É a essência, o objeto alcançado pela
“redução eidética”, esforço do pensamento para purificar o fenômeno do que não lhe é
essencial, do que o encobre no plano dos fatos. A essência é o “ser” da coisa que se
apresenta (fenômeno), o seu “puro possível”, inteligível (a “racionalidade imanente do
ser”), sendo possível, portanto, pelo exposto, uma compreensão a priori do ser. Haverá
tantas essências quantos forem os objetos dados nas diferentes modalidades de
experiência humana (Pensar, perceber, lembrar, etc.).
5º ) Sob o ângulo dessa pesquisa de essências, há várias regiões de fenômenos
pensáveis (independentemente do fato de existirem, ou não, essas regiões): região
“natureza”, região “espírito”, região “consciência” etc., correspondendo aos diferentes
domínios das ciências – sendo que a região “consciência” é constitutiva do acesso a
qualquer outra região, pois nela se dão os atos de experiência com os fenômenos, de
modo geral. Husserl propõe, assim, a possibilidade de um conhecimento a priori dos
diferentes domínios científicos: um saber prévio sobre o que vão tratar (objeto).
6º ) O pensamento possui formas puras de pensar (categorias formais) apreensíveis
também por intuição (intuição categorial), tanto quanto as “formas significativas”, ou
essências dos fenômenos.
7º ) As essências de que temos intuição não estão “fora” do mundo. Em princípio,
estão na consciência, onde as vivemos como dados a nós, e nem por isso são
psicológicas, pois a consciência não é algo fechado em si mesmo, é intencional: a
consciência é sempre consciência-de-alguma-coisa, está sempre dirigida-para um objeto,
do mesmo modo que o objeto é sempre “objeto-para- um-sujeito”, razão pela qual é
possível afirmar uma existência intencional do objeto na consciência, o que é o mesmo
que afirmar estar o seu sentido (essência), como objeto, necessariamente referido a uma
consciência.
8º) A análise intencional dará consistência a esta colocação relacional (sujeito
consciente-essência fenomenal) como solução para a dicotomia entre um psicologismo
(segundo o qual a essência é psíquica) e um idealismo platônico (a essência é ideal, está
“fora” do sujeito que conhece e do objeto conhecido). Na análise intencional, não se parte
nem da “coisa em si”, nem da “representação da coisa” em nós: parte-se da “coisa”
enquanto percebida, e do estar percebendo “alguma coisa” (da vivência original do

18
Idem, idem, p. 22.
11
fenômeno na consciência). Então, a relação entre o percebido (fenômeno) e o percebedor
(consciência) escapa à concepção do senso comum: o 1º e o 2º estão reciprocamente
dados um ao outro, são correlativos – e não entidades separadas uma da outra que se
juntam depois, ao se dar uma percepção. Não há nada prévio – nem coisa (objeto), nem
consciência (sujeito) – antes do ato de consciência. Esta correlação constitutiva da
consciência intencional e, ao mesmo tempo, da existência intencional do objeto, estende-
se ao mundo (e não só a um só objeto e uma só consciência).
9º) A análise intencional leva à redução fenomenológica, elemento fundamental da
abordagem fenomenológica: trata-se de colocar "entre parênteses" a realidade concebida
pelo senso comum, como existindo em si, fora dos atos da consciência. O cientista e o
homem comum pensam que o sujeito está "contido" no mundo, como os outros seres e
também as idéias. O psíquico passa a ser, então, uma realidade como outra qualquer no
mundo, e os saberes referem-se então a "fragmento" do mundo (regiões do mundo), não
se sabendo os que os unifica. Se, no entanto, há uma correlação original entre consciência
e mundo, é nela mesma que se produz a separação entre "interior" e "exterior" (sujeito e
objeto) e, por isso, é necessário suspender isto que já está produzido como crença - a
anterioridade (exterioridade?) do mundo - para apreender tal correlação original e extrair
dela todas as suas consequências.
A atitude fenomenológica é uma posição de ruptura da consciência, que se coloca
como consciência transcendental, ou seja, como a própria "condição de aparição desse
mundo e doadora de seu sentido" 19. Aí ela não está "contida" no mundo; ela é o lugar de
desdobramento do mundo no campo original da intencionalidade. Como Descartes,
Husserl privilegia o "eu penso" (consciência), mas não vê, nesta intuição, o aparecimento
da dualidade de "substâncias" irredutíveis uma a outra (substância extensa, o mundo;
substância pensamento, o eu, a consciência, o espírito humano); pela colocação "entre
parênteses" da realidade exterior "em si", vê aparecer como resíduo a correlação original
entre o "eu penso" e o "objeto do pensamento": o mundo permanece, mas desde sempre
ligado à consciência que o pensa - o que é outra maneira de chegar ao "ser", ao existir,
indissoluvelmente ligado ao sentido e, por isso mesmo, à origem do sentido na vivência
de consciência, como já originalmente um voltar-se para o mundo.
10º) O método fenomenológico, coerente com essas colocações, será a
investigação de um campo de análise constituído por uma "estrutura intencional"
(noético-noemática), onde se analisará a atividade da consciência (noése) e os objetos
constituídos por esta atividade (noémas), em sua íntima correlação. O método visará à
análise das "vivências intencionais da consciência para perceber como aí se produz o
sentido dos fenômenos, o sentido desse fenômeno global que se chama mundo" 20.
Analisará "percepções", "representações conscientes", adotando a atitude fenomenológica
e operando a redução fenomenológica, para encontrar a vivência ou intuição original,
onde se tem a essência do fenômeno (do percebido) indissociada ou na conjunção com a
abertura da consciência (do percebedor) ao objeto representado - e onde é possível
separar elementos "reais" e "irreais" da mesma vivência.

19
Idem, Dartigues, p. 28.
20
Idem, Dartigues, p. 29.
12
 21
O método fenomenológico engendrou uma prática "positiva" , enriquecendo as
ciências humanas - de cuja crítica específica Husserl partiu. Vários pesquisadores,
entre eles psicólogos e antropólogos, aplicaram esse método que nessas aplicações, se
caracteriza pelos seguintes aspectos principais:
1º) O objeto de conhecimento é a essência dos fenômenos.
2º) Todo método fenomenológico privilegia a intuição.
3º) Para ter acesso à essência, deve-se efetuar reduções, ou seja, exercer um
esforço de pensamento para purificar o fenômeno do que lhe é inessencial - daquilo que
pode ser suprimido sem destruir o objeto na vivência da consciência.
4º) Procede-se à redução imaginando todas as variações que um objetivo poderia
sofrer, de modo que se chegue a determinar as condições sem as quais essas variações
deixam de ser variações do mesmo objeto - condições que constituem um invariante,
assim identificado através das diferenças, e que define a essência procurada: aquilo sem o
qual os objetos de uma espécie seriam inimagináveis, impensáveis. A experiência
proporciona apenas os exemplos, como material para as variações realizadas pela
imaginação. Este processo de “variação eidética”, ou imaginária, aproxima-se do
raciocínio por indução, mas não é o equivalente exato da indução empirista (pois esta
procura o “comum”, o que se repete, o regular, e não o invariante); aproxima-se de fato
do processo de descoberta científica, na física por exemplo, onde se constata que o
importante não é a observação como acumulação de dados, e sim a construção de uma
possibilidade ideal de acontecimento, a qual os fatos concretos realizam, mas sempre
imperfeitamente.
 5º) No domínio das ciências humanas, encontram-se as essências inexatas ou
morfológicas. Diferentemente das essências exatas, das matemáticas e da física, que
são objeto de construção, as essências inexatas só podem ser objeto de descrição.
Logo, o método fenomenológico é descritivo, nas ciências humanas, cabendo notar
que “essas ciências não têm necessidade de ser exatas para serem rigorosas; seu vigor
provém, ao contrário, de uma ausência de exatidão, a qual é sempre uma
simplificação idealizante do dado”23.
 6º ) A escola gestaltista dá um bom exemplo da aplicação de abordagem
fenomenológica na área da psicologia. Verifica-se a estreita correspondência entre a
essência da fenomenologia e a forma ou estrutura – gestalt – no referente ao caráter
de invariância formal, central nas duas noções; e ainda entre a concepção de campo
fenomenológico, ou fenomenal, e a de campo psicológico. Mas a fenomenologia
husserliana mantém uma diferença fundamental em relação ao gestaltismo, pois a
essência é “o sentido ideal do objeto produzido pela atividade da consciência”,
enquanto que, do ponto de vista gestaltista, a forma é uma realidade, seja psicofísica
ou física, não constituída pela consciência (realismo das formas)24 . Esta posição
realista opõe o gestaltismo ao “idealismo” (não absoluto) da fenomenologia

2 1
Prática científica positiva - Idem, Dartigues, p. 31, citando Husserl: "Se por 'positivismo' se
entende... o esforço, absolutamente livre de preconceito, para fundar todas as ciências sobre o que é
'positivo', isto é, susceptível de ser captado de maneira originária, somos nós que somos os
verdadeiros positivistas" (Idéias directrices pour une phénoménologie, Lallimard,1950, p.69).
23
Idem, idem, p. 36.
24
Idem, Dartigues, p. 42-3.
13
husserliana; mas mesmo assim se reconhece a abordagem fenomenológica em muitos
aspectos do trabalho dos autores gestaltistas, o mesmo acontecendo com Merleau-
Ponty que, por sua vez apoiadono gestaltismo, procurou corrigir o
naturalismo/realismo deste último, tanto quanto o idealismo implicado na abordagem
fenomenológica husserliana.
7º) Os métodos compreensivos apresentam-se, também, como decorrentes desta
abordagem fenomenológica a partir da noção de intencionalidade, que possibilita o
acesso aos fenômenos humanos no seu sentido vivencial. Esses métodos retomam o lado
“subjetivo” abandonado pelos gestaltistas, valorizando o caráter intencional da produção
humana (seja ela material, cultural, imaginária, etc.), aplicando-se assim em várias
ciências. O grande problema desses métodos é distinguir o intencional nas aparências,
nos interesses manifestos, nos fins declarados, nos sistemas instituídos. O sentido visado
é o “aparente” e, por isso, os métodos que privilegiam a compreensão vão orientar-se
para o sentido profundo (necessidade que os relaciona com a psicanálise). No encontro
entre o pesquisador e o “pesquisado”, dá-se o encontro de duas intencionalidades e, como
a relação do homem com o mundo ou com outros é sempre significativa, corre-se o risco
de confundir, nesse encontro uma "primeira" explicação, com a compreensão
propriamente fenomenológica. Por isso, deve-se proceder, inicialmente, a uma fase
explicativa, que consiste na elaboração, pelo pesquisador, de uma concepção explicativa
prévia, que lhe permitirá aproximar-se do “pesquisado” (pessoa, comportamento,
processo, fato social etc.) sem se “confundir”. No entanto, esta explicação não deve
perder de vista o “humano” (não deve reduzir o seu sentido a níveis não humanos) e só se
fará para efetivamente visar a uma compreensão maior. Por exemplo, explicações prévias
sobre a interação nos grupos, sendo elaboradas com vistas à compreensão do sentido da
dinâmica de um grupo, servirão ao pesquisador como referência para um
posicionamento, um “olhar”, não imediatamente contaminado por suas vivências
pessoais ou pelas aparências da conduta do grupo. O pesquisador não se serve dessas
explicações para reduzir a elas o que acontece no grupo e sim para, através delas e
abandonando-as ao final, chegar ao essencial dos fenômenos ali vividos.
8º) A abordagem fenomenológica, nas ciências humanas e sociais, trabalha com a
noção de intersubjetividade enquanto fundamento da compreensão entre os homens e,
portanto, também, do conhecimento dos fenômenos humanos pela compreensão. Pode-se
ter a intuição do sentido essencial do comportamento “dos outros”, ou seja, conhecê-lo
compreendendo-o, porque: “O conhecimento não repousa, com efeito, senão sobre as
amplas bases da vivência e, no que diz respeito precisamente ao conhecimento do outro,
sobre o que se poderia chamar uma sociabilidade originária, isto é, uma maneira de ser
com o outro mais primitiva que toda sistematização do social pelo pensamento” 25.
 As críticas à abordagem fenomenológica referem-se à tendência idealista
(absorção do significado do real no pólo da consciência, apesar da afirmação de uma
correlação original entre consciência e mundo), à tendência ou ao risco de
subjetivismo (implícitos na necessidade de uma “fase explicativa”, nos métodos
compreensivos) e ao risco de confusão entre o que é representado (representações
conscientes do pesquisador ou dos “pesquisados”) com o que é “essencial” (intuído;
designado com “sentido profundo”).
25
Idem, Dartigues, p. 63.
14
4. A ABORDAGEM ESTRUTURALISTA
A grande preocupação desta abordagem é tornar possível conhecer totalidades e
interdependências de elementos nessas totalidades26. Pode-se dizer, então, que a visão
estruturalista se opõe às explicações atomistas, associacionistas e lineares usadas no
campo científico – tais como, na psicologia, a fragmentação da conduta em “variáveis”
isoladas umas das outras, relacionadas apenas como antecedentes e conseqüentes no
tempo, sem se considerar as relações que mantêm com o seu campo de ocorrências.
Desde modo, o processo de isolar aspectos ou propriedades dos fenômenos, sem guardar
sua dependência frente ao conjunto de outros aspectos a que os primeiros estão
vinculados, destruiria a “integridade” ou “totalidade organizada” dos fenômenos
humanos, que ocorrem em contextos complexos, nos quais seria inadequado procurar
uma cadeia simples e linear de causas-e-efeitos. A abordagem estruturalista oferece
aplicações nas áreas mais diversas, tais como a lingüística, a antropologia, a psicologia, a
psicanálise, a história, a sociologia, a economia, etc.
Uma atitude totalizante e a concepção de estrutura são as peças mestras desta
abordagem, mas é preciso também distinguir um esforço de construção formal do que é
observado, como se depreende da seguinte observação de Lévi-Strauss: “O princípio
fundamental é que a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica, mas aos
modelos construídos em conformidade com esta”27. Esses modelos serviriam para dar um
suporte explicativo ao conhecimento dos conjuntos observados empiricamente, ou
“organizações” (sistemas lingüísticos, organização social, organização grupal,
organização de condutas individuais, organismo fisiológico etc.). Lévi-Strauss 28 define
quatro condições para que os modelos possam “merecer o nome de estrutura”:
Em primeiro lugar, uma estrutura oferece um caráter de sistema. Ela consiste em
elementos tais que uma modificação qualquer de um deles acarreta uma modificação em
todos os outros.
 Em segundo lugar, todo modelo pertence a um grupo de transformações, cada
uma das quais corresponde a um modelo da mesma família, de modo que o conjunto
dessas transformações constitui um grande grupo de modelos.
 Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem prever de que modo
reagirá o modelo, em caso da modificação de um de seus elementos.
 Em quarto lugar, o modelo deve ser construído de tal modo que seu
funcionamento possa explicar todos os fatos observados.
Discute-se se esses modelos existiriam de fato, na realidade, ou seriam puras
concepções ou artefatos do pensamento. Pode-se responder do seguinte modo: o real é
estruturado; os acontecimentos, as coisas, as relações entre pessoas ou das pessoas com
as coisas, as produções culturais etc., ocorrem de uma “maneira” (forma) configurada,
organizada; há interdependências bem definidas entre os diferentes “termos” envolvidos
nos acontecimentos e nas situações e o “arranjo” que está presente nessas
interdependências permite apreender esses acontecimentos e situações como tendo
26
Prado Coelho (org.). Estruturalismo – Antologia de textos teóricos, São Paulo, Martins Fontes, p. 6.
27
Lévi-Strauss. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p.315.
28
Idem, Lévi-Strauss, p. 316.
15
propriedades de “todos”, ou seja, um sistema; são essas propriedades reais de sistema que
constituem as “organizações” ou “fodos” e que possibilitam a elaboração dos modelos
pesquisados pelos estruturalistas. “Como escreve Lévi-Strauss, a forma define-se por
oposição a um conteúdo que lhe é exterior; mas a forma não tem conteúdo; ela é o
próprio conteúdo, apreendido numa organização lógica concebida como propriedade do
real”29
O estruturalismo não se restringe à análise e formalização de sistemas estáticos
(análise sincrônica), pois o seu trabalho, além de incidir sobre o caráter recorrente dos
acontecimentos, abrange ainda as oposições e desequilíbrios e, mais ainda, o estudo dos
estados sucessivos de um mesmo conjunto. Sob esse outro ângulo de análise (o das
transformações e desequilíbrios), a abordagem estruturalista procura encontrar as regras
de transformação diacrônica, isto é, encontrar a estrutura “histórica” dos acontecimentos
(estrutura na dimensão temporal). “Se, aliás, elas (as coisas) não se modificassem, o
estruturalismo não teria razão de ser: o seu objetivo é dar conta das variações; a mudança
é um modo particular de variação; não pode, portanto, desmentir o estruturalismo. Este, é
certo, consagrou-se, antes de tudo, ao estudo de organizações sincrônicas e sistemas
fechados. Mas a história mostra que não se deve condená-lo a isso” 30.
Para o trabalho de pesquisa nas ciências humanas e sociais, essas colocações
básicas da abordagem estruturalista definem um método, que se pode caracterizar assim:
1º) O objeto de conhecimento são as propriedades estruturais do real e, assim, em
última instância, os modelos estruturais.
2º) Há uma maneira distintiva de realizar observações (1° momento da pesquisa),
que se denomina “etnográfica”, pois está baseada nos procedimentos usados pelos
etnógrafos: observação e descrição exatas (e exaustivas) dos fatos, evitando-se que
preconceitos teóricos, ou de outro tipo, “alterem a sua natureza e importância”. Nesta
observação e descrição, deve-se sempre ter em mente a relação que os fatos têm como o
conjunto – “quer dizer que toda mudança observada num ponto será relacionada às
circunstâncias globais de sua aparição”31.
3º) Já durante a observação e descrição, o pesquisador deve tentar perceber se está
diante de fenômenos cujo caráter de sistema já foi detectado pelos grupos pesquisados
(modelos conscientes: normas, regras ou crenças, sistematizadas para organizar e/ou
explicar os acontecimentos). Neste caso, é preciso que faça a crítica desses “modelos”,
tentando descobrir se há possibilidade de explicá-los em nível estrutural, ou seja, não
confundindo esses modelos conscientes com as estruturas que são objeto de estudo,
apesar de ser necessário valorizá-los mais do que as suas representações teóricas sobre os
fatos observados já que, embora não sejam em si mesmos modelos estruturais, oferecem
uma melhor via de acesso às categorias (inconscientes) do pensamento desses grupos,
“na medida em que lhe estão estruturalmente ligadas” 32. Há, assim, modelos explicativos
conscientes e inconscientes, e o pesquisador deve visar ao material que lhe é necessário
29
Prado Coelho, op. cit. (à nota 26); p. 16; citação do artigo de Lévi-Strauss “Análise morfológica dos
contos russos”, International Journal of Slavic linguistics and poetics, 1960.
30
Prado Coelho, idem, p. 18.
31
Lévi-Strauss (op. Cit. à nota 27), p. 317.
32
Idem, Lévi-Strauss, p. 319.
16
para os “passos” seguintes – elaboração de modelos que, por suposição, teriam uma
correspondência estreita, senão uma equivalência, com os modelos inconscientes das
sociedades ou grupos pesquisados.
4º) O pesquisador deve dispor de recursos matemáticos ou lógicos que o ajudarão
na passagem dos resultados da observação e descrição, para a confecção dos modelos.
Segundo Lévi-Strauss (op. cit., p. 320), esses recursos – lógica matemática, teoria dos
conjuntos, teoria dos grupos e topologia – possibilitam uma ênfase maior nos aspectos
qualitativos do que outros ramos da matemática tradicionalmente aplicados nas ciências
humanas e sociais.
5º) O pesquisador precisa saber determinar os níveis de validade implicados em
suas observações, para poder posicionar-se no nível mais propício ao seu objetivo
estruturalista (elaboração de modelos). Pode-se dizer que os níveis significativos para a
análise estrutural decorrem de recortes feitos, nas observações, que permitem trabalhar
com elas sempre em termos relacionais (detectar as interdependências, as oposições
significativas) e sempre guardando uma referência ao conjunto total dos acontecimentos.
6º) A elaboração de modelos é efetivada em obediência às quatro condições
mencionadas anteriormente. Para exemplificar esse importante “passo” metodológico,
ver o Cap. XI – “A estrutura dos mitos”, da obra citada de Lévi-Strauss.
7º) O método estruturalista realiza, finalmente, a “experimentação dos modelos”:
procura-se (a) estabelecer como o modelo construído se altera quando ocorrem
modificações no conjunto de descrições a que ele se refere e (b) comparar os modelos
construídos com outros do mesmo tipo, ou de tipo diferente.
 A grande crítica feita à abordagem estruturalista refere-se ao seu formalismo,
questionando-se qual o interesse de “traduzir” a historicidade, a multiplicidade e o
dinamismo dos acontecimentos reais para a linguagem dos modelos estruturais
(formais), e se, fazendo isso, não se “esvaziam” os fenômenos estudados. No entanto,
é evidente que a formalização é praticada, no domínio científico, por muitas outras
abordagens, embora operando de modo diferente; portanto, esta crítica não se aplica
apenas ao estruturalismo.
De algum modo, a “forma de perceber estruturalmente” o real está presente na
visão-de-mundo de grande parte dos cientistas contemporâneos, o que explica a vasta
extensão dessa abordagem, aplicável e aplicada praticamente em todos os domínios do
saber científico. Na área de nosso interesse, desprovida ou não do seu formalismo lógico-
matemático, e sob diversas linhas de atuação, aparece na análise institucional, na
psicanálise lacaniana, na psicologia de campo, nas concepções sistêmicas do
desenvolvimento organizacional, na etologia etc. Conclui-se que investigações
tipicamente estruturalistas, como as de Lévi-Strauss na antropologia, não são facilmente
realizáveis, em qualquer pesquisa relativa a problemas humanos, quando se consideram
as técnicas de pesquisa nas fases de elaboração e experimentação de modelos. No
entanto, a preocupação com um nível estrutural de explicação, presente nas distinções
entre consciente-inconsciente, explícito-implícito, manifesto-latente, superficial-
profundo, que orientam a interpretação das observações em muitas dessas pesquisas, já
17
indica que os pesquisadores adotam pelo menos alguns pressupostos da abordagem em
questão.
Da abordagem dialética, que é apresentada a seguir, procedem várias críticas ao
estruturalismo, todas classificáveis como ataques à “recusa” do estruturalismo em lidar
com a dimensão histórica dos acontecimentos, pois, segundo esses críticos, mesmo
quando o estruturalista leva em conta esta dimensão, chega a reduzí-la a regras formais,
ou seja: a “regras”, o que subentende uma subordinação do acontecimento concreto a
uma “realidade normativa” (que pode até de fato existir, mas que não é discutida pelos
estruturalistas do ponto de vista de sua origem histórica e/ou ideológica); e a regras
“formais”, que subentende a dissociação do concreto-lógico (que, para a abordagem
dialética é uma categoria fundamental), assim como, finalmente, critica-se a explicação
do concreto pelo lógico (e não a explicação envolvendo justamente a articulação dos dois
termos).
6. A ABORDAGEM DIALÉTICA
Esta abordagem tem duas fontes principais: o marxismo (dialética materialista) e a
filosofia dialética, de longa tradição (remontando o Plantão). A filosofia dialética pode
ser entendida como fonte também do marxismo, já que este se desenvolveu, com Marx, a
partir da crítica da dialética de Hegel. Pode-se, assim, indicar postulados comuns às duas
linhas, embora haja uma versão especificamente marxista desses postulados.
- O pensamento humanos é dialético, no sentido de que opera ultrapassagens,
superações entre termos contrários; reconhecendo a presença de “termos” que se opõem
como contraditório; descobre o princípio de união entre eles e opera, com este princípio,
a passagem para uma categoria superior, superando a oposição. Supõe-se assim que o
movimento dialético do pensamento (“Espírito, em Hegel) é algo necessário, isto é, o
espírito humano é necessariamente este impulso para superar as contradições. Em Marx,
o mesmo princípio vai ser colocado no real: o movimento, a evolução da humanidade,
que constrói a sua história, é dialético, é superação de conflitos.
- Esse movimento dialético pode ser entendido também como uma passagem
progressiva, de uma consciência “primitiva”, para a construção de uma consciência
“superior” – tal como se dá com o conhecimento científico, que reconstrói distanciando-
se cada vez mais das concepções do senso comum.
- A realidade (seja ela “o Espírito”, como em Hegel, seja a materialidade das
produções sociais, como em Marx) é, portanto, dialética. O seu “motor” são as
contradições. Para se conhecer algo objetivamente, portanto, é necessário criticar as
aparências da realidade, encontrar as forças em oposição, os conflitos, e as formas de
superação desses conflitos. Tem-se, então, uma perspectiva essencialmente crítica, que é
reflexiva, conjuntural e histórica. Reflexiva, porque é preciso uma “re-visão”, um
“segundo” olhar para desocultar, desvelar o real “verdadeiro”. Conjuntural, porque é
necessário manter sempre o concreto em vista, pois é aí, e não nas generalizações, que as
forças reais e as tendências reais de desenvolvimento dessas forças agem. Histórica, pois
toda conjuntura atual é o resultado de momentos anteriores de forças em interação, e
caminha para momentos futuros.
18
- A visão global desta abordagem, em sua versão marxista – o materialismo
dialético – pode ser assim sintetizada: “Consiste e considerar o universo como um todo,
formado de matéria em movimento, engajada numa evolução ascendente atingindo níveis
sucessivos, onde um grau mais elevado de complexificação quantitativa faz aparecer
necessariamente, por uma transformação brusca, mudanças qualitativas inteiramente
novas”33. O materialismo histórico pode ser considerado um caso particular do
materialismo dialético, atribuindo aos fatores econômicos a determinação em última
instância da evolução histórica do homem e colocando, como motor central desta
evolução, a luta de classes (contradição fundamental).
- No mundo humano (universo social), esta abordagem utiliza as categorias gerais
implicadas na definição anterior: a) totalidade (a significação dos acontecimentos só é
objetivamente compreendida considerando o “todo” em que eles ocorrem); b)
materialidade (o social é “material” na medida em que é formado por processos de
produção e produtos); historicamente (nenhum “objeto” é dado para sempre, todo
“objeto” é produzido historicamente); tendências ao progresso (o social tende a estados
“superiores”, isto é, à solução de contradições em níveis mais elevados); emergentismo
(há transformação bruscas de “quantidade” em “qualidade”; por exemplo: o aumento
quantitativo da força de trabalho determina mudanças qualitativas nas relações de
produção); contradição (“motor” dos movimentos sociais).
- A abordagem dialética, em termos de investigação, busca ser coerente com esta
concepção do real: tanto quanto qualquer outra produção humana, a ciência está sujeita a
esse movimento dialético, ela depende do momento histórico, de determinação
econômicas do instrumento tecnológico disponível, da participação coletiva, material,
entre os homens. O progresso científico é discutido dialeticamente, por exemplo, em
Bachelard (O novo espírito científico). O conhecimento é um processo, uma prática
teórica e técnica de produção social. Consiste num movimento constante de ir-e-vir entre
o “concreto” e o “lógico” (campo das produções teóricas). Não há, nesse movimento,
uma dissociação entre os dois termos, mas uma atividade de crítica que, desde o início,
dissolve as aparências para mostrar a contradição entre as representações das “coisas” e a
sua real estrutura, as suas leis reais.
- Há, assim, para essa abordagem, um “pseudoconcreto”: formas ideológicas (já
no domínio das explicações sobre as coisas) e aparências externas, superficiais; por trás
dessas representações e aparências (o pseudoconcreto), estão os processos reais e
essenciais. No pseudoconcreto, os objetos são “fixados” como imutáveis e “naturais”
(quando nada mais são que produtos históricos da ação e do pensamento dos homens em
sociedades).
Para entender bem esta questão, pensemo no objeto “menor de rua”. O
pseudoconcreto é uma “mistura” de projeções, representações, feitas pelos homens, com
as aparências exteriores dos próprios fenômenos. Isso significa que qualquer objeto a ser
conhecido já é algo mentalizado, ou seja um “mental concreto”. Os pesquisadores
“olham” esses objetos trazendo, nesse olhar, as representações que a sociedade, por
diferentes processos, lhe forneceu, e sempre a partir de manifestações externas desses
3

33
Lalande (op. Cit. nota 6), p. 593.
19
objetos. Por isso, a abordagem dialética concebe todo conhecimento objetivo como uma
ruptura frente a este pseudoconcreto. A noção de ideologia é o grande instrumento para
esta ruptura, esta crítica. Conhecer é exercer um esforço ativo de apropriação do objeto
para intencionalmente produzir o real objetivo (objeto lógico-concreto), pela elaboração
(trabalho) sobre o material que é obtido. Desse modo, não se privilegia a ação teórica;
“livra-se”os objetos, daquilo que encobre a sua objetividade. Nesse sentido, o teórico é
sempre crítico e está sempre envolvido com o concreto, e tem por objetivo reproduzir
explicitamente a compreensão crítica que se alcançou do real. A teoria é um instrumento
de reprodução do real no nível lógico. A única diferença entre o “real”(concreto) e o
“teórico” (lógico), quando se entende o conhecimento como produção do real (sentido
objetivo) no “real” (pseudoconcreto), é que o real, ponto de partida, é ilusório, e o real
produzido, nos dois aspectos da crítica e da construção teórica, é objetivamente,
essencialmente, um real compreendido, lógico-concreto. Não há, assim, dissociação entre
conhecimento do concreto e conhecimento lógico, ou “abstrato”. Para bem entender essa
concepção, é preciso que se tenha sempre em mente que tudo o que existe, seja material,
seja mental, é produzido. No mundo social, não existem coisas “naturais”; mesmo a
matéria-prima, usada na indústria, já é social, é efeito de uma “extração”, de uma
atividade humana (e, portanto, social). Uma prova de que os objetos científicos são
“lógico-concretos” é a possibilidade de o homem, voltado ao “pseudoconcreto” e
aparelhado com essa compreensão lógico-concreta do real (real cientificamente
produzido), operar transformações visíveis no real (por exemplo, cura de doenças
operando com o “objeto” causalidade por infecção microbiana).

 Na prática das pesquisas das ciências humanas e sociais, essa abordagem não
implica necessariamente em abandonar procedimentos tradicionais tais como
observação, coleta de dados, quantificação e análise. Mas impõe, necessariamente, as
seguintes exigências (inclusive ao pesquisador, em termos de posicionamento e
encaminhamento da pesquisa):
1 – Uma postura crítica radical.
2 – Estratégias de pesquisa em que os objetivos, os meios, as condutas e os
resultados sejam plenamente esclarecidos e discutidos em conjunto com os grupos
pesquisados.
3 - O emprego das categorias fundamentais de totalidade, contradição,
historicidade, emergência e tendência ao progresso, na definição do problema e do objeto
de pesquisa, no planejamento do processo de investigação e na análise dos resultados.
Disso decorre:
 realizar análise de conjuntura e análise histórica, identificando as oposições em
jogo no contexto em que se dá a investigação e a origem das mesmas, assim
como as tendências em desenvolvimento, os desdobramentos possíveis. Um
dado estatístico, por exemplo, não tem seu sentido esgotado descritivamente; é
considerado um índice da situação, pois foi extraído de observações envolvidas
em tal situação, total, mutável, conflitiva. Desse modo, este dado só será
conveniente e objetivamente interpretado à luz das análises mencionadas. Por
isso mesmo, se tal dado estatístico foi gerado pelos resultados da aplicação de
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um questionário, o próprio questionário deverá ter sido elaborado à luz das
análises acima mencionadas. Se assim não ocorrer, não será possível, depois de
obtidas as respostas, uma interpretação objetiva dos dados;
 Outra tática de interpretação típica dessa abordagem, para atender às
exigências acima, é a discussão. por exemplo, dos dados estatísticos, com os
grupos que fornecem as respostas nos questionários. Numa discussão, o
pesquisador pode contar com um movimento dialético de re-exame das
formações à luz das circunstâncias concretas, históricas, globais, subjacentes às
respostas, nas quais foram baseados os cálculos estatísticos.

Sendo muito mais uma maneira de elaborar, usar e interpretar procedimentos e


resultados de pesquisa, a abordagem dialética merece muito mais o nome de estratégia de
pesquisa, do que o de "método", no sentido convencional de "conjunto de técnicas e
procedimentos". A pesquisa-ação e a pesquisa participante são os exemplos mais típicos
desse "método" ou estratégica dialética.
As críticas feitas a essa abordagem, de modo geral, referem-se sobretudo ao risco
de "ativismo" (predomínio dos propósitos de mudança social sobre os de conhecimento
da realidade), e ao risco de "perda do rigor científico", pela tendência a colocar em
segundo plano o formalismo científico.

 NOTA: Referência bibliográfica para a abordagem dialética: Kosik, Karel. Dialética


do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.

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