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2008 Os Sete Pecados Da Capital PDF
2008 Os Sete Pecados Da Capital PDF
EDITORA HUCITEC
Capa:
Mariana Nada. s/ I I
os SETE PECADOS DA CAPITAL
SANDRA JATAHY PESAVENTO
Coordenação editorial
Mariana Nada
Assistente editorial
MaRIANGELA GIANNELI.A
CIP-Brasil. Cataiogaçáo-na-fontc
Sindicato Nacional dos Editores de Livros
P5ÓS
Pcsavenco, Sandra Jatahy, 1947-
Os sete pecadosda capital / Sandra Jataliy Pes.ivento —São
Paulo: Hucitec, 2008
360p. : il.
ISBN 978-85-60438-80-8
Iconografia 425
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os SETE PECADOS DE UMA CAPITAL
Eles são sete, os pecados desta cidade, que tiveram lugar no passado, em
momentos e espaços diversos... As vezes, estes pecados são crimes, crimes ter
ríveis, ações tenebrosas, atos condenáveis por todo e sempre. Outras vezes, eles
são mais leves\ comparecem como contravenções frente uma ordem estabelecida,
contrapondo-se ao sistema devalores, às normas e aos hábitos de uma comunida
de. Mas em um e outro caso, estiveram sujeitos à condenação dasociedade onde
foram perpetrados. Chamemos todoseles, "pecados". E eles sãosete, tal como os
pecados capitais tão célebres: gula, luxúria, ira, preguiça, avareza, inveja, cobiça.
A tentação e o desejo do historiador é muito grande: de que estes pecados
da capital se encaixem ou se enquadrem nos sete imemoriais pecados da tradi
ção milenar. Em alguns casos, eles bem se ajustam, para conforto do autor e
provável deleite do leitor, mas nem sempre os pecados da cidade, objeto deste
livro, parecem ter sido previstos no famoso index.
Estes pecados são, sobretudo, práticas condenáveis que se deram no passa
do de uma cidade, a antiga Porto Alegre, a denotar práticas desviantes, sociabi-
lidades condenáveis ou atos transgressores da ordem, praticados por persona
gens com perfis inusitados. Mas não é porque se situam na contramão davida
que se endossará aqui uma posição, digamos, de avaliação moral ou de justiça.
A rigor, os protagonistas de tais pecados já foram condenados em sua época,
pela sociedade em que viveram, pela justiça que os julgou culpados oupela me
mória coletiva que deles conservou uma imagem desviante dos padrões aceitos.
Condenados eles jáforam, e não os condenaremos denovo, sem que, com isso,
tenhamos a intenção oposta: redimi-los de seus atos, perdoa-los de suas faltas,
relativizando condutas e reabilitando valores.
Porque estudar tais personagens e tais pecados, portanto? Chegamos, pois,
à história da história deste livro.
Há muitos anos pesquisamos sobre Porto Alegre, a cidade que abriga estes
pecados e, sobretudo sobre os subalternos ou excluídos da urbe. E, no decorrer
destas muitas pesquisas', de outras tantas leituras eescritas^, alguns detalhes nos
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1o SANDRA JATAUY PESAVENTO
porque não levá-las em conta nestabusca daquilo que teria acontecido um dia?
O que uma coletividade lembra c guarda de um acontecimento tem, por assim
dizer, raízes em uma memória social, partilhada e socializada. Respondem a
razões e sentimentos que denotam, no seu tecer e retecer da história, através
do tempo, os elementos que foram "escolhidos" para serem lembrados. Assim,
histórias contadas ou histórias escritas teriamvalor de rastro paraa reconstrução
de uma narrativa verossímil sobre o passado.
Desta forma, ao realizar uma vasta pesquisa de arquivo sobre espaços, prá
ticas sociais e atores da cidade, cruzaremos continuamente o dito e o contado,
a palavra c o silencio, o boato e o dado evidente, pois c destes elementos todos
que se faz a história e que se possibilita tentar resgatar as idéias e imagens que
os homens do passado construíram sobre os fatos e personagens do seu tempo.
Como os nossos sete pecados da capital, por exemplo.
Mas nossa abordagem tem ainda lun outro elemento diferencial, muito
importante para a recuperação de uma provável cadeia de sentidos.
Nos detenhamos sobre o aspecto de que os atores sociais de nossa trama
são mulheres.
Elas são, com as suas incríveis histórias de vida, as exceções que confirmam
uma regra: as mulheres são, basicamente, perigosas. Elas são uma alteridade in-
quietante, a marcar, pela sua natureza mutável, um risco permanente para a
sociedade da qual deveriam ser o esteio. A ameaça reside, basicamente, no seu
poder de ação, sedução, autodeterminação, o que mostrava que, não sendo
postas sob controle, as mulheres ameaçavam toda a ordem social,
Não por acaso, as mulheres dos nossos sete pecados, como personagens da
cena urbana, sãodesviantes neste mundo ordenado e controlado pelos homens.
Ora, o fato de se situarem na contramão da vida e de desafiarem, com suas atitu
des e palavras, as normas sociais da época, nos oferece umaoportunidade exem
plar: a de, pela quebra da normalidade, enxergar a norma; pelo acontecimento
excepcional, apreciar a regra, pelo personagem excepcionai, compreender o
comportamento dos personagens comuns, assim como as expectativas para os
papéis sociais.
Cabe ainda assinalar que tiil problemática se realiza na cidade, ou seja, em
um espaço social que potencializa todo este processo. Tais crimes ou contra
venções, tal como os percursos de vida se dão no contexto urbano que muda,
que cresce, que se moderniza, que se torna o lugar da diferença, da novidade,
do enlrentamento. As mulheres, sobretudo, estão expostas aos perigos da vida
urbana, quando não são a sua maior fonte. Em todo o incidente de alteração
da ordem, de crime ou contravenção simples, a presença feminina se impõe,
como o motivo subjacente de todas as infrações, tal como argumentam os
discursos policial, jurídico e jornalístico daquele tempo, com sua conhecida
feição moralizante.
os SETE PECADOS DE UMA CAPITAL 13
Um outro traço ainda preside nossa abordagem neste percurso pela cidade
de PortoAlegre dospecados: é o cruzamento, sedutore inusitado, das narrativas
histórica e literária. Expliquemo-nos.
Nossos pecados e suas protagonistas sáo "históricos', ou seja, participam
de uma verdade do acontecido. Ou, seja, tais mulheres existiram, seus pecados
"aconteceram". Podemos afirmar isto pela reincidência dos indícios de sua pre
sença no tempo, pelas reiteradas marcas de sua existência em diferentes fontes.
Mesmo que tenham sido alvo de controvérsia e objeto de múltiplas versões, es
creve-se e fala-se dos acontecimentos e personagens, atestando o seu "acontecer
no tempo". Mas, ao mesmo tempo em que sobretaisacontecimentos se estabe
lecem narrativas, por assim dizer, históricas, testemunhais daquilo que um dia
teve lugar, outros discursos se tecem e se cruzam, no tempo do acontecido ou
no de sua rememoração e ou construção narrativa.
Chamemos a eles de "ficçóes literárias", que no momento mesmo em que
os fatos ocorrem, estetizam o acontecimento, apresentando-o aos leitores da
época em uma versão romanceada ou folhetinesca, incluindo personagens e
acontecimentos à trama. Dizendo ou não se apoiarem em "fatos reais", temos o
fato histórico convertido em literatura, por vezes no momento mesmo do seu
acontecer. Tais discursos seapresentam como literários, construindo alternativas
para o fato sem correspondência com qualquer outra mai*ca de historicidade.
Mas havíamos dito antes que pressupomos que todo o discurso sobre o
real é uma representação, não estaríamos com isso igualando os discursos sobre
o acontecido e os de ficção literária? Não, sem sombra de dúvida, apesar de
entendermos que fatos e personagens são construídos e que tais representações
não tem necessariamente correspondência reflexa com o acontecido navida, Há
enormes diferenças entre as versões possíveis sobre os acontecimentos, mais tais
fatos construídos literariamente acenam para razões motivos possíveis. Há, sem
dúvida, um horizonte de expectativas na sociedade que concebe e que lê tais
versões. Sem maior compromisso, dizem coisas que tanto induzem a recepção
do fato quanto vão ao encontro das expectativas do social c que não comparece
em outras fontes.
A quase justaposição, em alguns destes casos, dos discursos, ou o seu dis
tanciamento, nos oferecem pistas e sugestões de análise.
Afinal, tais acontecimentos deveriam ser mesmo excepcionais, a ponto de
desdobrarem-se literariamente em versões ao agrado do público leitor. Como
romance ou folhetim, surgidos no calor da hora—caso de Chiquinha e Fausta —
ou recuperados pela crônica memorialística ou ainda pela reescrita continuada
do caso através do tempo nos jornais - Catarina Come-Genteos sete pecados
nos permitem avaliar a importância do ocorrido e o lugar que vieram a ocupar
no imaginário social da cidade. As reescritas e transfigurações do fato ressaltam
elementos que podem passar de forma desapercebida nos documentos oficiais,
16 SANDRA JATAUY PESAVENTO
Notas bibliográficas
1 Projetos executados com apoio do CNPq e FAPERGS dentro da linha de história cultural:
"Imaginário social: as representações dourbano dafin desiècle à belle époque (Porto Alegre;
"Os diversos olhares sobre o lu-bano: Porto Alegre, Rio de Janeiro e Paris (1850-1930)",
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1996-2003; "Em busca da cidade perdida", 2000/2002; "Os sete pecados da capital: perso
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Consultar, a respeito, entre outras obras, Ansay, Pierre e Schoonbrodt, Rcné. Penser Ia vil-
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philosophie urbaine. Paris, PUF, 1982.
2
CATHARINA COME-GENTE:
LINGÜIÇA, SEDUÇÀO & IMAGINÁRIO
rico, onde tinha tido origem o agrupamento formado a partir da segunda me-
tadc do século XVIII, com achegada dos Cíisues £Í'klRey, açorianos que tinham
vindo povoar as Missões, em função das negociações do Tratado de Madrid. Em
outra gravura', tomada de mais longe, a partir das ilhas fronteiras, Wendroth
apresenta uma vista geral de Porto Alegre com maior abrangência, permitindo
destacar os prédios que assinalavam os limites da cidade: àesquerda da imagem,
a Santa Casa, e à direita do olhar, a Casa de Correção, a inaugurar-se em breve,
à beira do Guaíba, na ponta da península.
Referindo-se a estes marcos de enquadramento, Avé-Lallemand assinalava
que deste centro cívico, no alto da colina, se estendiam duas ruas. Uma - a que
hojeé a Duque de Caxias - em direção à SantaCasa de Misericórdia, construí
da no perímetro então fora da cidade, para além do seu portão, mas em área que
seria depois incorporada como intramuros, porocasião das trincheiras erguidas
durante a Revolução Farroupilha. A instituição passara a acolher os doentes em
1826 e os expostos cm 1837. A outra rua —atual Riachuclo —desembocava no
final da península, onde tinha sido inaugurada, em 1855, a nova Casa de Cor
reção, na Praia do Arsenal, É interessante notar que, na visão do viajante, tais
ruas são mencionadas de acordo com o elemento de destaque do seu percurso
final - a Santa Casa e a Cadeia - e não em relação ao trecho das referidas ruas
na sua continuidade, na direção inversa!
No tocante à área ocupada. Porto Alegre era, praticamente, quase a mesma
daquela da época da Revolução Farroupilha, se formos comparar as plantas da
cidade realizadas na época do conflito, em 1839 e a de I868\
A cidade concentrava-se no flanco oeste da península que se projetava so
bre o Guaíba, e guardava, de forma ainda bem marcada, o traçado inicial das
três ruas, demarcadas pelo engenheiro militar capitão Alexandre Montanha em
1772: Rua da Praia, Rua do Cotovelo, continuada pela Rua da Ponte e Rua da
Igreja, esta prosseguindo como Rua Formosa até o Portão (atual Praça Conde
de Porto Alegre). Tais ruas, dispostas em paralelo, eram cortadas por outras —os
tradicionais e pitorescos becos -, que desciam da cidade alta, no topo da colina,
até a praia, no atracadouro dos barcos e onde se achava o comércio, ou desciam
pelo outro lado, em direção à Praia do Riacho, região baixa, alagadiça e pouco
povoada. A inclinação destas ruas, a mostrar quão íngreme podia ser a subida
até cidade alta pode serapreciada nas mesmas gravuras de Wendroth.
Neste perímetro urbano assinalado se concentravam os prédios principais
da urbe, alguns mais antigos, outros mais recentes ou em construção. A princi
piar pelo centro cívico do Alto da Praia, com seu Palácio do Governo, erguido
entre 1784e 1789 —com suas águasfiirtadas e bemfurtadas^ ironizava o cronista
Coruja''... a Casa da Junta, criada em 1790 e depois convertida em Assem
bléia Provincial, a Igreja da Matriz, ou de Nossa Senhora da Madre de Deus de
Porto Alegre, erguida entre 1772 e 1780 e o muito recente Teatro São Pedro,
26 SANDRA JATAHY PESAVENTO
de 1858. Desde oséculo XVIII Porto Alegre já contara com teatros para o lazer
de seus habitantes (Casa da Comédia, Casa da Ópera, Teatro D. Pedro II), mas
a nova casa de espetáculos, com seu imponente prédio, veio a representar um
marco na vida cultural da cidade. Àdireita do Teatro São Pedro iniciar-se-ia,
a partir de 1860, a construção de uma nova Casa da Câmara, tornada depois
Palácio da Justiça.
Porto Alegre já tinha, pois, um certo ar cultural. Um belo teatro, um
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, criado por intelec
tuais da província em 1860 e que estendeu suas atividades até o ano de 1864,
oLiceu D. Afonso, prestigiosa escola secundária da capital da província, que
desde 1846 funcionava na esquina da Rua da Ladeira (atual Rua General
Gamara) com a rua do Cotovelo, no local que é hoje a Biblioteca Pública do
Estado.
Mas o centro de Porto Alegre apresentava mudanças que não se restringiam
à chajnada cidade alta. O comércio junto à praia era intenso, e pelo Guaíba
se fazia a navegação pelo interior, através da bacia do Jacuí e, pela I^oa dos
Patos, seatingia Rio Grande e, através dele, o mar. As gravuras da época, como
aquelas deixadas pelas aquarelas de Wendroth, nos mostram uma costa ponti-
Lhada debarcos, a sugerir a animação do porto. Todo este movimento comercial
na cidade fizera com que fosse inaugurado em 1842 o Mercado na Praça do
Paraíso (atual Praça Quinze de Novembro), em substituição às feiras de peixe
e das quitandeiras, que tinham lugar na mesma Praça do Paraíso e na Praça
de Quitanda (hoje praça da Alfândega). Mas o desenvolvimento crescente das
atividades comerciais logo exigiu um prédio maior para este fim: em 1864 foi
iniciada a construção daquele queviria a sero novo Mercado da cidade.
Em 1858 era criada a Praça de Comércio de Porto Alegre, na chácara de
Lopo Gonçalves Bastos, à rua da Margem (atual João Alfredo), em plena Cida
de Baixa^, embora a nova entidade tivesse escolhido para sua sede uma casa na
esquina da Praça da Alfândega, em ponto bem central da urbe. No mesmo ano
dc 1858, era criado, pela associação dc capitalistas do comercio local, o Banco
da Província na esquina da Rua da Praia com a Rua de Bragança (atual Mare
chal Floriano Peixoto). A este estabelecimento bancário, se seguiria uma filial
do Banco Mauá, estabelecida também na Rua da Praia^. Não muito longe dali,
na esquina da Praça do Paraíso (hoje Praça Quinze de Novembro), perto do
Mercado, fora construído em 1856 o edifício MalakofFpelo empreiteiro João
Batista Soares de Silveira e Souza, imponente sobrado com térreo e três andares,
o primeiro prédio exclusivamente comercial da cidade.
Neste centro, onde já se assinalava a valorização imobiliária do solo, come
çavam os aterros, ganhando espaço com a projeção da cidade sobre o Guaíba.
Destes primeiros aterros feitos na zona central, ao longo dos anos 40 e 50 do
século XIX, surgiu a Rua Nova da Praia, depois Rua da Alfândega (Sete de
CATUARINA COMF-GENTE: lingüiça, sedução & IMAGINÁRIO 27
depois de muito perguntar aqui eali, o chefe de polícia ouvira que José Ramos
fora o último a ter estado navenda deJanuário. O jornalista d'0 Mercunlil cor
roborava na construção desta indicação, colocando em cena as pistas colhidas
no que se dizia na cidade-, avizinhança se pronunciava, contando que havia visto
Januário passar na rua com o açougueiro José Ramos. Ou seja, todos espiam
pelas frestas e se policiam, tudo é visto e registrado.
Assim a história começa a ser tecida, entre acontecimentos evidentes - o
sumiço de gente conhecida dentro de uma cidade ainda pequena e os rumores
que circulavam, a apontar, desde o início, um determinado indivíduo como
suspeito. Atenta aestes informes, a polícia começou as averiguações, chamando
José Ramos paraser interrogado.
Instado a depor. Ramos, com descaramento, dissera que acompanhara
Januário para embarcar em um lanchão que partira para o Caí. O jornal
O Mercantil dizia, claramente, que o suspeito conseguira, assim, safar-se nesta
primeira instância das diligências, mas a polícia o havia mantido sob vigilância,
a seguir seus passos. Logo, desde o momento em que se articula a narrativa
sobre os acontecimentos, o jornal já opõe versões contraditórias para o sumiço
de Januário e do menino, seu caixeiro: a da vizinhança, que os vira passar com
o açougueiro, e a do próprio José Ramos. Para o leitor que ainda não tivesse
notícia do caso, umasuspeita se instalava, pela entrada em cena, qualificada, do
principal envolvido.
A indicação de que a chegada da polícia até Ramos fora devido aos comen
tários da vizinhança seencontra insinuada na circular do subdelegado, publica
da n O Mercantil-, este afirmara que começara a ter desconfianças com relação a
José Ramos no dia seguinte ao do arrombamcnto da taverna de Januário —por
obra das conversas dos vizinhos, se supõe —, daí procedendo às buscas em sua
casa, o que havia resultado na prisão de Ramos no quartel do corpo policial"'.
A versão narrativa se enriquece com o relato d'O MercantiP-~ através da
introdução de uma testemunha crucial para as descobertas que se seguiram:
Antonio José Pereira, um vizinho do desaparecido, que desconfiava de José Ra
mos e declarara tê-lo ouvido convidar Januário para jantar por repetidas vezes.
Comunicando suas suspeitas à polícia, foi dado reinicio às averiguações.
Interrompamos a narrativa para reafirmar algumas considerações feitas.
Transparece nos relatos que Ramos já erasiLspeito, pois, pela vizinhança, mes
moantes da revelação do seu crime. Como narrativa ex-post dos acontecimentos
que tiveram lugar, os jornais se autorizam imputar uma culpabilidade antes
da acusação formal da autoria do crime, uma vez que já sabem o desfecho do
que acontecera. Afinal, o jornal é uma empresa que vende a sua mercadoria, a
notícia, e esta deve prender a atenção do leitor, envolvendo e formando uma
opinião. E, não esqueçamos, nas páginas dos jornais, no texto impresso, o leitor
esperar encontrar a verdade dos fatos e o desvendar de uma trama.
CATIIARINA COME-GFhnT.: LINGÜIÇA, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 33
gem das famílias constituídas. Sabemos que o amasiamento era prática corrente
e normal entre as camadas populares, e que tal desigtiaçáo precisa para a natu
reza das relações entre Catharina eJosé Ramos se deve ao jargão da linguagem
policial. Estabelece-se assim uma fronteira entre o mundo dos cidadãos e o dos
populares ou excluídos. Os cidadãos têm esposas, não amásias e esta palavra,
uma vez escrita e atribuída a tuna mulher, tem um valor simbólico preciso. As
expressões dos jornais referentes à Catharina são tanto de ser amásia de Ramos
como de viver com ele como amancebad^^ ou em concubinato^^.
Todas estas designações afirmam sentidos para o leitor: José Ramos é o po
tencial assassino, já definido como tal desde o início, como suspeito número
um, e em Catharina, se desenha o perfil damulher em situação irregular, passí
vel de uma condenação moral. No plano valorativo, as dimensões do simbólico
não têm necessária correspondência com as práticas sociais na sua freqüência.
Dizer que Catharina vive em mancebia implica autorizar supostos comporta
mentos negativos, associados a sua situação irregular.
Interrogada, para defender-se da responsabilidade dos crimes praticados
por Ramos, Catharina argumentou por mais de umavez não estar presente na
casa nos momentos em que alguns passos da trama estavam sendo armados,
pois saía muitas vezes à noite, eque muitagente a via na rua, ou quesaíra de tarde
de casa, andara toda a noite na rua e voltara depois da meia-noite^-.
Ora, tais comportamentos, por si só, já definiam um perfil muito claro
nesta cidade de Porto Alegre, nos inícios da década de sessenta do século XIX:
só uma mulher de má vida saía sozinha à rua à noite, nem ficava andando pela
cidade, a retornar para casa às altas horas. Se este era o comportamento de Ca
tharina, ela beirava a prostituição. Se, contudo, assumira este proceder no seu
depoimento para safar-se da culpa, para definir-se como uma não-testemunha
do que sepassara na casa da Rua do Arvoredo, o resultado era o mesmo. Catha
rinaparecia uma meretriz, por seus hábitos, mesmo que não o fosse.
O depoimentode Catharina incriminaJosé Ramos no que toca ao essencial
dos assassinatos ocorridos. Catharina diz que estivera presente no momento em
que Ramos trouxera para casa as vítimas, primeiro Januário, depois o menino.
Mas justo na hora em que o crime fora praticado, ela se ausentara —no caso
deJanuário, paradar águas às galinhas; no do menino, para buscar água para o
mate - e ao voltar encontrara os dois mortos. Logo, Catharina não presenciaia
o assassinato e não tomara parte no crime, mas no registro da ocorrência do
homicídio constatava uma informação comprometedora: recém perpetrado o
assassinato por José Ramos, realizado com o emprego de um machado e segui
do de esquartejamento dos corpos no porão, ela teria assistido a essa selvagem
operação de umajanela^^.
Catharinase apresenta, pois, como testemunha do crime e seu depoimento
é uma acusação ao companheiro, identificadocomo o assassino. Não presenciara
CATUARINA COMF.-GFhTR LINGÜIÇA, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 35
O corcunda Henrique nada vira dos crimes, e dissera mesmo ter deixado
com a mulher deste, Catharina, reformar uma japona que comprara, mas que
estava grande demais para ele, a qual não tinha ainda recuperado../'^. Não mais
morava com o casal, mas tinha ainda com Catharina relações, envolvendo pe
quenos serviços de reforma de roupas, como se pode ver pelo depoimento.
Henrique jRithmann, o corcunda, dissera ainda não conhecer Klaussner, a
terceira vítima descoberta e que teria vendido o açougue a Ramos. Mas prestou
à polícia uma informação curiosa: diante da indagação que fizera a um certo
Augusto, também alemão, vizinho de Ramos, sobre a prisão do açougueiro,
obtivera a seguinte resposta: Augusto lhe dissera que ele fora detido por terem
descoberto umpoço com carne na casa de Ramos^ mas que era carne de boi'^^.
Este é, a rigor, o primeiro documento no qual encontramos umaalusão ao
problema do açougue e de sua remota ou hipotética venda de carne humana.
Há um mas neste depoimento. O tal Augusto pareceu tranqüilizar Henrique
Ritmann sobre a natureza das postas de carne encontradas no tenebroso poço,
ao assegurar que eram de gado bovino... Haveria, pois, a partir das palavras do
corcunda Henrique, já um boato, um diz-que-diz que sobre a natureza de tais
restos de carne encontrados? Estas são meras suposições, mas que se autorizam
frente à construção do fato ex-post, tal como ele comparece no imaginário social
dacidade ao longo dos anos que se seguiram.
Entretanto, o mesmo Augusto Karim, de trinta e três anos, solteiro, prus
siano, pintor, morador da Rua da Varzinha, sabendo ler e escrever, quando
chamado a depor, relatou a conversa que tivera com o corcunda de uma outra
forma... O corcunda estava muito preocupado com a roupa que deixara na casa
de Ramos, agora ocupada pela polícia, provavelmente o tal paletó ou japona
que Catharina devia reformar, e buscava alguém que falasse "brasileiro" para
comunicar-se com a polícia. Uma suspeita se instala: o corcunda teria mesmo
comprado esta roupa, muito grande para si ou esta era parte dos despojes das
vítimas, daísua pressa em reavê-la? Mas tal desconfiança, que aqui colocamos,
não foi levada cm consideração pela polícia, pois o corcunda não foi conside
rado coadjuvante ou sabedor do crime. Restava, contudo, esta história entreele
e Augusto Karim.
Karim não confirmou o detalhe de que dissera ao corcunda ser a carne
encontrada no poço da casa de Ramos era de boi^''. Entre o disse e o não disse,
ficamos nós com mais uma suspeita: haveria já no ar uma interrogação sobre a
natureza das carnes?
Foi chamada a depor a preta Senhorinha, que disse ser lavadeira, ter cin
qüenta e quatro anos, ter por ocupação o serviço doméstico, ser solteira e ser
escrava de Balbina Palmeiro'''^, moradora da casa da Rua do Arvoredo. Senhori
nha declarara que morava há dois meses na casa, massópara dormir e recolher a
roupa que devia lavar e cozinhar mocotó, dando jornal à sua senhora. Ou seja.
CATIIARINA COMF-CFSTF: LlNGÜIÇ/\, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 39
SenJiorinlia era negra de ganho, que devia pagar um tanto de seu trabalho
diário na cidade à sua dona^^ e que dormia na casa de Ramos, pagando a lios-
pedagem com seus serviços.
Mas Senhorinha fora fechada em seu quarto na noite do homicídio, de
talhe que apontava para a culpabilidade de Catharina, como coadjuvante do
crime"*'. Entretanto, Senhorinha dissera ter visto na sala da casa de Ramos um
homem magro e velho, a quem chamavam Januário e que conhecia de vista;
vira também um menino, tal como vira Catharina a limpar as manchas de
sangue da escada, do chão e as que haviam ficado nos panos. E mais náo vira,
porque passara o dia a lavar roupa na beira do Riacho, tal como as lavadeiras
da época faziam.
O depoimento de Senhorinha é, desta forma, incriminador, tanto com rela
ção a Ramos como com relação à Catarina. Chamada a pronunciar-se, Catha
rina confirmou que tentara lavar o sangue, mas disse ter trancado Senhoria
por causa da fumaça, uma vez que esta estava a cozinhar mocotó. Ou seja, o
depoimento era de molde, mais uma vez, a incriminar Ramos e manter-se na
posição de testemunha do crime e só coadjuvante.
Cabe registrar, com relação à entrada em cena destes dois personagens —o
corcunda e a preta Senhorinha —, que uma situação peculiar se delineava, pró
pria às pessoas de poucos recursos. O casal recebia, na sua casa da Rua do Ar
voredo, pessoas com as quais mantinham relações indecisas. Tinham residência
ali de forma permanente, eventual, temporária? Pagavam aluguel ou prestavam
favores? Realizavam algum tipo de sei*viço, de maneira regular, a casa? Eram
"amigos", recebidos como hóspedes? Tal prática, de uma certa forma, se revela
comum entre os pobres de uma cidade^-. Havia na cidade, por certo, casas de
moradores com pouca renda que albergavam indivíduos de passagem, que dor
miam uma noite aqui, outra ali, sem domicilio fixo, e as redes quese instalavam
entre eles era ora de cumplicidade, ora de favor, ora nitidamente econômicas,
pagando uma espécie de aluguel, como sea casa fosse tuna hospedaria noturna
para pessoas de poucos recursos e ocupação incerta.
Tal como o corcunda Henrique Rithman e a preta Senhorinha, também
morava na casa de Ramos e Catharina um alemão velho chamado Carlos Ra-
thman, declarou o informante Adolpho Eduardo Koboldt, chamado a depor
sobre a morte de Klaussner. Rathmann, chamado por sua vez a prestar esclare
cimentos, iria declarar que pagava a Ramos três mil réis por mês^^. Ou seja, a
casa de Ramos era uma espécie de albergue ou hospedaria noturna para muitos
personagens de vida incerta e sem domicílio fixo^"*.
Estamos, pois, diante de umacomunidade degente pobre, ondecompras se
pagam com serviços, ou em espécie. Koboldt revelou que havia comprado um
coche a Klaussner e que, sendo proprietário de uma padaria, pagava-lhe o bem
adquirido com o fornecimento de pão. Com o sumiço de Klaussner e a notícia
40 SANDRA JATAMY PESAVENTO
deque José Ramos comprara o seuaçougue com todo oativo epassivo^ este viera
lhe reclamar que devia agora fornecer a ele o pão que devia a Klaussner...^^
De pequenas —ou grandes - misérias da vida e de astuciosos golpes de
escroqueria, uma série de crimes começava a ser revelada, tendo por centro a
figura deJosé Ramos.
O fator étnico, como se viu, estava a complicar ainda mais um contexto
já excessivamente tenso. Um alemão já idoso fora detido e conduzido, com as
mãos amarradas às costas, por dois policiais a cavalo, desde a Azenha até a ci
dade - oque éhoje o centro de Porto Alegre - em situação humilhante e injusta
para com um homem inofensivo e sem culpa formada^^'. O Deutsche Zeitung
comentava que em situaçãosemelhante, como denunciado e preso, encontrava-
se o piedoso Heinrich, a quem Ramos propusera comprar em sociedade uma
venda.
A cidade falava, comentava, fazia suposições e construía versões que circu
lavam rapidamente, criando o fato recém acontecido, com foros de verdade.
O já referido Koboldt revelava outra rede de possíveis, envolvendo uma
moça alemã —cujo nome não sabia —, vinda de Santa Cruz ou de Rio Pardo,
também nãosabia ao certo- paraa capital, o que lhe foracontado por um cabo
de polícia —que falava alemão —e que teria desaparecido também...Concluía
Koboldt: depois de descoberto os crimes deJosé Ramos entre os alemães nasceu a
desconfiança dequetambém esta mulher tivesse sido por ele assassinada.'^^ Ou seja,
através de um ouvir dizer, José Ramos comparecia como alguém com um pas
sado acusador, tendo praticado muitos outros crimes.
De boato em boato, de dizer e maldizer, de hipóteses e suspeitas, de casos
vistos ou ouvidos, todos mais ou menos incertos, mas plausíveis, dada a gravi
dade das descobertas dos cadáveres em pedaços, a história dos crimes da Rua do
Arvoredo era tecida no cotidiano da vida, abalada pelos trágicos acontecimen
tos. O jornal Deutsche Zeitung lamentava a rede de denúncias, a boataria e as
injustiças que começavam a serem criadas, sempre a envolver os alemães^®.
Na seqüência destes incidentes, o delegado ordenara a prisão de outros
alemães suspeitos, além de Carlos Rathman, implicado pelo depoimento de
Koboldt, tratava-se agora de Jacob Carlos Weber e João Gabriel Wonderke^'^
(nome que terá várias grafias ao longo do processo), ambos moradores da Rua
do Arvoredo. Sobre Rathmann, o mesmo Koboldt ouvira dizer na venda ao
lado do açougue de Klaussner, que todos os trastes do mesmo açougue haviam
sido transportados por Rathmann e Ramos para a casa deste último...
Em seu depoimento, Carlos Rathmann declarou ter sessenta e um anos de
idade, ser casado, filho de Melior, e ser natural de Kassel, na Alemanha, tendo
por ocupaçãoser seleiro. Morava no momento num lugar chamado Cascata, na
casa de Christiano Ruperti, mas já morara na casa de Ramos, como declarara
Koboldt, na época em que este comprara o açougue de Klaussner. Em ulterior
CATMARINA COMF.-GFhTF: LINGÜIÇA, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 41
pois esta dissera que o irmão dos padeiros assassinados havia estado na casa da
Rua do Arvoredo, a falar com José Ramos.O rapaz em questão —José Luiz
de Caldas, de 24 anos, morador do Rio de Janeiro e que viera a Porto Alegre
para tratar do espólio dos irmãos, fora convidado por Ramos para ir até sua
morada, a propósito de negócios que teria com LuizAntonio Príncipe.
A estratégia do assassino - convidar as pessoas para uma refeição amigável
em sua casa ou para uma visita, para tratar de negócios, era repetida por outros
jornais.^^ Logo, o boato crescia diante do homicídio evidente e das possíveis
ligações entre outros crimes acontecidos.
Remarquemos que para os leitores dos jornais de Porto Alegre, uma possi
bilidade se delineava: José Ramos bem poderia ter mandado matar os irmãos
portugueses da padaria para roubar, porque não? A violência dos homicídios
fomentava os boatos e comentários, a fazer ligações entre os crimes. Tais supo
sições, colocadas no jornal, deveriam, por seu lado, contribuir para a continui
dade da discussão diante do acontecimento invulgar, gerando, por sua vez, novas
especulações.
Como certo e indiscutível, diante de todos os depoimentos realizados,
caracterizava-se a ocorrência de um "crime em série" na cidade, o que permi
tia pensar que outros cadáveres ainda poderiam ser encontrados. As buscas da
polícia prosseguiam, agora na realização de escavações em todas as casas que
José Ramos havia morado, sem que, contudo, novas vítimas fossem encon
tradas.""
Em tudo e por tudo, os depoimentos de Catharina, a amásia e coadjuvante,
incriminavam Ramos, de molde a permitir à polícia reconstituir a cena do cri
me: Januário havia sido morto com uma machadada no crânio e o menino íòra
morto com dois golpes de canivete no coração quando tomava mate sentado
no sofá da sala, para depois receber machadadas sobre a cama do quarto para
onde fora arrastado. Já Klaussen parecia ter sido abatido fora da casa, tendo
sido depois para lá transportado, aos pedaços, em caixas verdes que ainda apre
sentavam marcas de sangue.'^ Sobre estas manchas de sangue, assim como as
das roupas. Ramos respondera sempre não ter notado e nada saber sobre a sua
origem, negando as evidências ou provas do crime.
Frente todas as acusações feitas nos sucessivos interrogatórios, José Ramos
negava a autoria dos crimes, mesmo quando confrontado com as denúncias de
Catharina, permanecendo sempre calmo, impassível e desdenhoso, com seu
rosto cadavérico}^ Um monstro frio e cruel, portanto, era o que se apresentava
aos leitores dos jornais.
A partir de todos estes depoimentos, o relato jornalístico d'O Mercantil
endossa de forma decisiva a culpabilidade de José Ramos, que em determinado
momento é referido como uma fera. José Ramos é, pois, um monstro e tem o
perfil do homicida. Não possui sentimentos, sendo frio e debochado.
CATUARINA UJMF.-GFNTR LINGÜIÇr\, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 45
eram os alemães, pois o povo supunha que o autor dos assassinatos era desta
nacionalidade. Ou seja, os alemães sentiam-se particularmente ameaçados, com
as identidades à flor da pele, as etnias em alerta.
Em resposta à iniciativa do Corpo Consular, e também publicada n O Mer
cantil, o Chefe de Polícia Callado saía na defesa do povo brasileiro, o qual
não podia ser equiparado ou julgado pela ação de um punhado de homens de
sentimentos tão mesquinhos que pretendia vingar a humanidade ofendida, em-
briagando-se em sangue.^'* Tais grupos não tinham nacionalidade determinada,
acrescentava o Delegado de Polícia Raphael Callado, o que eqüivalia dizer que
desordeiros não eram cidadãos, não tinham pátria e existiam em toda parte...
A figura de Callado é controvertida, pois um ano antes seria citado como
pouco afeto aos estrangeiros, desta vez franceses.
Em 1863, o vice-cônsul da França em Porto Alegre, Barão d'Ornano, dei
xou um relatório no qual manifestava a sua preocupação com a segurança e a
vida dossúditos franceses no sul do Brasil, tecendo um panorama preocupante:
de um lado, a violência e de outro o pouco caso das autoridades policiais. Do
Chefe de Polícia Dario Raphael Callado, geralmente conhecido como antiestran-
geiro e, sobretudo, antifrancês, o Barão d'Ornano teria ouvido, com surpresa, di
zer erepetir estaspalavras insólitas etotalmentefora do direito internacional: "se os
estrangeiros não querem sermortos em meu pais, que se vão embora para Parisí''^^
No mesmo teor, em defesa de uma nacionalidade ofendida pela suspeita
de que brasileiros e porto-alegrenses pudessem ameaçar estrangeiros residentes
na capital, levantou-se a Câmara dos Vereadores de Porto Alegre em defesa
daqueles que representava, diante do tumulto causado pela prisão de Ramos e
Catharina em 1864: ocorrera uma espontânea exaltação deânimo motivada pe
los nefandos assassinatosperpetrados porJosé Ramos e o receio de que súditos de
outras nações, sobretudo alemães, pudessem vir a serem atacados era destituído
defundamento. O povo local tinha caráter manso e pacífico, tolerante obedien
te às leis e à autoridade e que sempre tinha tão bem recebido os estrangeiros e
respeitado suas propriedades.^^
Tais questões de orgulhos nacionais étnicos feridos estavam emebulição na
époai. Callado, como Chefe de Polícia da capital, esteve novamente envolvido
com tais problemas. Um ano antes, em 1863, o Brasil se vira a braços com a
chamada "Questão Christie", provocada no Rio de Janeiro pelo ministro inglês
William Dougal Christie. O caso começara devido a dois incidentes envol
vendo súditos ingleses: o naufrágio do navio inglês Prince ofWales, em 1861,
na costa do Albaidão, no litoral do Rio Grande do Sul, sendo sua carga pilhada
pelos brasileiros e a prisão de oficiais da fragata Fort no Rio de Janeiro, acusa
dos de bêbados e desordeiros, no ano de 1863. O ministro Christie protestou
contra a atitude do Imperador, que aceitara pagar a indenização pelas perdas
sofridas e soltar os oficiais ingleses, mas se recusava a punir os policiais brasi-
CATUAKINA COMF-OF\TR LINGÜIÇr\, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 49
trado contra Januário e o caixeiro, cujo processo não se tem notícias até hoje.
Retorna também a personagem Catharina, a amásia cujas declarações haviam
contribuído tanto para incriminá-lo e que não fora declarada réneste caso. Teria
sido incluída como ré do outro, como José Ramos parece aludir.^ Na verdade,
Catharina quase presenciara os outros homicídios, vira os cadáveres das vítimas
e testemunhara a sua redução a pedaços, seguida de ocultamente!
Reunido o júri de sentença, decidiu pela culpabilidade de José Ramos pelo
homicídio de Carlos Klaussner, cujo cadáver, em partes, foi encontrado na casa
do assassino. O crime não fora feito com premeditaçáo nem com abuso de
confiança ou surpresa, c o réu não tirou os bens encontrados na casa da vítima
por emprego de violência. Sobre estecrime, o réu não tinha atenuantes em seu
favor. José Ramos foi considerado também culpado por crime de falsidade,
fabricando e assinando o recibo de compra do açougue, delito para o qual não
havia também circunstâncias atenuantes. Sobre Rathmann, o jiiri decidiu-se
pela sua não culpabilidade no homicídio perpetrado.
Por tais crimes, José Ramos foi considerado incurso no grau médio dosarti
gos 19.^ e 167 do Código Criminal, e condenado à pena dequatorze anos e um
mês de prisão com trabalho e multa de doze e meio por cento do dano causado
com a falsidade, aserem pagos na proporção devida."^ Já no códice do Fundo
de Justiça, esta condenação aparece como rendo sido na sessão do juri de 15 de
agosto de 1864, com provável erro de registro."®
Devem ter contribuído, para a pouca extensão da pena —quatorze anos e
um mês de prisão para um crime de morte com um cadáver pedaços achado na
casa do réu, além do crime de falsidade com um documento forjado —o fato
alegado por José Ramos: não havia provas contundentes e absolutas, mas sim
um conjunto de evidências. Venceram, no caso, o conjunto articulado das evi
dências, trazidas não apenas pelos oito testemunhas de acusação, mas pelo con
junto de depoimentos obtidos pela polícia antes do processo ir a julgamento.
Mas havia ainda mais: na mesma página 18 do códice de justiça, o rol de
culpados acusava que um dia antes, em 12 de agosto de 1864, José Ramos fora
condenado à morte e multa de vinte por cento do valor roubado. Eis o julga
mento econdenação aque oréu José Ramos se referira no dia seguinte, quando
fora ajuízo pela morte de Klaussner. Já fora condenado, na véspera, pela morte
do taverneiro Januário e seu caixeiro.
Eis ainda aqui aprova de que um outro processo —processo perdido, bem o
sabemos —deu-se na cidade de Porto Alegre tendo por objeto os crimes da Rua
do Arvoredo. Neste mesmo rol de culpados, denuncia-se, na página 7,a presen
çada ré Catharina Palse, condenada a treze anos e quatro meses de prisão com
trabalho e multa de três e três terços do valor roubado, na mesma sessão do juri
do dia 12."'^ Chegamos, com isso, à reclamação José Ramos no dia seguinte:
Catharina devia também ali se achar, para responder com ele e por ele.
54 SANDRA JATAHY PESAVENTO
tecer do fato, um papel importante nesta história. O autor da série Datas Rio-
gmndenses —o renomado médico da cidade Doutor Sebastião Leão, também
médico da Casa de Correção de Porto Alegre e estudioso da história, informava
que a história desses crimes espantososy únicos na criminologia do Rio Grande do
Suly será referida nas Datas de abril. Espero do Rio de Janeiro notas sobre esse
processo, quefoi remetido para o Superior Tribunal, e só então poderei historiá-lo
convenientemente.'
Estas notícias de caráter histórico-cronológico, redigidas por Sebastião
Leão sob o pseudônimo de Coruja Filho, foram publicadas no Coneio do Povo
de julho de 1900 a junho de 1901. Em 1962, o historiador Walter Spalding
republicou-as em livro, com introdução e notas de sua autoria.
No mês de abril deste ano de 1901, Sebastião Leão compôs um relato
circunstanciado de crime e acrescentou novos detalhes à história. A narrativa
é construída de forma literária, seja pela maneira de apresentar ao leitor a se
qüência dos acontecimentos, seja pelas palavras e expressões usadas, de molde
a compor uma trama plena de avaliações e valores. Os personagens têm vida,
sentimentos, humores e razões, que o narrador traz ao leitor, como se ele tivesse
presenciado todos os fatos sobre osquais discorre.
Assim é que a históriacomeça com uma frase típicaa um texto literário: Em
1864existia no prédio da Rua da Igreja, esquina da do Rosário, uma casa desecos
e molhados, da qualera proprietário oportuguêsJoaquim Martins, homem de bons
costumes, que passava por ter bens efortuna.^^^ Notemos as informações adicio
nais, que dão vida à trama: Januário é de hábitos morigerados e passava por ter
boa situação financeira. O tom é o de uma história que bem poderia começar
com era uma vez umportuguês chamadoJanuário, etc, etc...
Segue-se a narrativa dos episódios relativos ao sumiço de Januário e seu cai-
xeiro: a surpresa dos vizinhos ao ver seu estabelecimento fechado durante todo
o dia, a notificação do fato à polícia, as primeiras averiguações e a informação
de que o desaparecido fora visto na rua em companhia de um tal José Ramos.
Reaparecem aqui os boatos e informações da vizinhança, exaustivamente pre
sentes nos jornais e depoimentos, dados à polícia e à justiça, pelos personagens
da época.
Mas introduz-se na narrativa o vocabulário típico da polícia para designar
um suspeito: José é um tal, um indivíduo, um elemento, palavras que se equi
param na qualificar pessoas sem ocupação definida e potencialmente perigosas.
Indo o delegado à casa de José Ramos, na Rua do Aivoteáo, fiente ao quintal
do Palácio do Governo, obteve da parte de Ramos respostas negativas e dadas de
um modo grosseiro, e que se mostraram contraditórias na insistência do interro
gatório.'^®
Segue-se o relato, contandoa descoberta dos ossos humanos e destroços cada-
véricos, a demonstrar que o autor da notícia lera os jornais da época do crime.
CATUARINA COMF.-CFSTF: LINGÜIÇ,\, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 57
No que tocaà prisão de Ramos e sua companheira Catharina Passa [sic], ainda é
referida a tumultuada condução dos pei-versos criminosos à Cadeia em meio à
agitação popular, que exigia em altasvozes sl €nvre^ dosassassinos e que acabara
enfrentando as autoridades com pedras e garrafadas.
Mas o cronista destas Datais Rio-Grandenses traz informações adicionais
que, expressando procederes e palavras ditas, ajudam a fixar para o leitor o
perfil dos criminosos.
Catharina pedira, horrorizada^ ao Chefe de Polícia, diante da multidão en
furecida, que não a deixasse matar, pois o culpado era Ramos; este cotiservou-se
calmo e cinicamente disse:"Cáes que ladram não tnordemV-'^ Assim, confirma-se
um delineamento já feito: Catharina acusa Ramos, tem medo, supliai, inter
cede por si. Uma fraca mulher, que trai seu parceiro de crime. Já Ramos é frio,
característica presente nos piores assassinos. De onde Sebastião Leão tirara esta
fala desdenhosa do criminoso impávido diante do povo irado a exigir justiça?
Do processo perdido ou da memória social da cidade? Ou ainda se tratava de
umaliberdade poética, de uma criação literária, de uma ficção verossímil diante
das circunstâncias dadas, e de acordo com o estereótipo do cruel assassino? Não
esqueçamos que este mesmo Sebastião Leão fora o médico da Casa de Correção
de Porto Alegre e láestudara os detentos à luzdas mais recentes teorias de uma
nova ciência que despontava, a antropologia criminaU^" Logo, o delineamento
e identificação do homo criminalis não lhe eram estranhos.
O autor finaliza estaparte de sua narrativa dos fatos acontecidos com estas
palavras postas entre parênteses: "crônica velha". Ou seja, parece que, até este
momento, estivera a narrar e a reconstruir o fato a partir do quelera nas fontes
antigas, da época do ocorrido.
Na seqüência, o autor esclarece que das investigações judiciárias, foratn re
colhidas provas de que Ramos praticara muitos outros assassinatos para roubar.'-
Estaria, aqui. Sebastião Leão se referindo ao outro processo, hoje perdido, refe
rente aJanuário e seucalxeiro? Teria ele, pois, recebido do Rio deJaneiro o pro
cesso hoje perdido? Pois oproces.so que chegou até nós éreferente ao assassinato
de Klaussner, que não é mencionado nem identificado como vítima de Ramos
por Sebastião Leão. E, neste ponto, cronista e doutor acrescenta:
Foi então muito corrente que oferoz assassinofazia desaparecer acarne de suas
vitimas, fabricando lingüiças, que thiham gtande aceitação em Porto Alegre.
Aexpressãofoi então muito corrente remete ao domínio do falado edo co
mentado, mas não escrito, do boato, do diz-que-diz-que, ou do que se chamaiia
a voz do povo, Há uma oralidade implícita na afirmação, aqual se justapõe tuna
história que agora começava aser registrada, talvez recuperada da fala dos mais
antigos. Sobretudo, tais espécies de lendas urbanas —pois os crimes da Rua do
Arvores começam a tomar esta forma —compõem uma história em tiansfoi-
mação, urna work in progress, como uma narrativa transmitida e conservada
58 SANDRA JATAÍIY PESAVENTO
A multidão quedesde muito cedo enchia o edifício^ bem deixava ver o interesse
com quea população porto-alegrense corria com avidezpara presenciar ojulgamen
to deste monstro que além da autoria de tão bárbaros assassinatos, foi a causa dos
distúrbios que ameaçaram alterar a tranqüilidade pública no dia desuaprisão. '
Notemos, contudo, que nesta indignação popular não se configura o hor
ror diante da acusação maior: a de que o açougueiro Ramos matava, fabricava
e vendia lingüiças de carne humana...Com relação a este ponto crucial, o arti
culistacomentava mais adiante: nuncapôdesaber-se ao certo seRams matavasuas
vitimas parafazer lingüiça desuas carnes ou se apenas para roubá-las.
Com isso, percebe-se, mais uma vez, que as fontes de época não mencio
nam tais associações e que esta acusação correspondia a um boato, a uma sus
peita popular, conservada na memória da população. Mas parece difícil datar
com precisão o momento em que surgiu e, como todo boato, apresenta-se sem
autor.
rativa atraente que vai ao encontro daquilo que talvez já soubesse ou se ouvira
contar. E o que Achylles conta?
Narra que há cerca desessenta anos, a nossa então pacata cidade amanheceu,
certo dia, vibrante de uma sensação descomunaU Corria que a polícia tinha des
coberto uma série de crimes monstruosos e havia prendido um estrangeiro —que
"fabricava lingiiiças decarne degente"!..
Reportando-se a um tempo preciso do acontecido —sessenta anos atrás —
a narrativa parece acumular tempos: já na descoberta do crime e a prisão do
suspeito —aliás, já identificado como culpado —se dizia que ele fabricava as tais
lingüiças de gente... Mas a memória superpõe temporalidades, inverte a ordem
do acontecido, acumula fatos, mistura detalhes, seja ela invocação individual
ou coletiva.
Sigamos o caminha da narrativa memorialística: Ramos, tornado Ramis
é agora um estrangeiro, não mais um descendente de alemães. Mas Achylles
adverte que, nesta cidade de Porto Alegre tão pequena ainda —quase uma al
deia —a opinião pública era dirigida e orientada pelo que diziam os filhos da
Candinha. Portanto, cuidado leitor, parece alertai' o cronista, pois tudo o que
aconteceu, causando horror easco à população, poderia serdito de outra forma,
termais de umaversão... O povo comentava, falava, criava histórias. Podemos,
nesta altura, nosperguntar: Achylles narrava o acontecido, o retido na memória
popular ou o boato transmitido de boca em boca? Talvez um pouco de tudo,
porque não?
Em liberdade poética —ou recuperando "histórias de avós", a rememorar
o ocorrido e o ouvido —Achylles contava que ynuita dama, delicada e nervosa,
adoeceu, sócom a idéiade havercomido desta carne ensacadafabricadapelo Ramis
e, durante muito tempo, este gênero alimentício esteve banido de todas as mesasí^'^^
E de Achylles Porto Alegre a consagração do cachorrinho fiel, personagem
revelador do crime, com acréscimo de detalhes: o animalzinho fora notado pela
vizinhança, ganindo e raspando a porta do Ramis, a esperar sem sucesso seu
dono, o caixeirinho que fora atraído pelo assassino. Para arrematar, o cachor
rinho não acaba vítima de Ramis, sobrevivendo na história recuperada pelo
cronista. Detalhes são eliminados, para que o importante da intriga se preserve:
o essencial é a peitinência do agente revelador da trama, um animal, um ser
não racional e movido pelo instinto, personagem já tradicionalmente objeto de
tratamento ficcional.
Na reconstituiçâo dos fatos, deve-se a também Achylles a fixação do perfil
de Catharina como uma femmefatale, coadjuvante do assassino na realização
de seus crimes: O Ramis servia-se da mulher que teria sido bonita, para atrair os
conquerante [sic] à sua casa.^'^^ Notemos o emprego do tempo do passado. Ca
tharina fora bela, pouco tendo a ver com a velhaandrajosaque se arrastava pelas
ruas, a vender chinelas que ela e Ramis faziam na cadeia e que ela vendia nas
CATIIARINA COMF.-GFNTF: LlNGÜIÇ/\, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 65
tavernas. O cronista mesmo lembrava de té-la visto por voltas de 1884, mais de
umavez, com umgiosseiro chapéu depalha na cabeça e chinelos sem metas, a atra
vessar as ruas da cidadeé'^''' Ou seja, como uma pobre mulher, distante daquela
figura sedutora que, no passado, enfeitiçava suas vítimas.
A narrativa é moralizante, como que a demonstrar, pelo contraste das duas
Catharinas, tanto que o crime não compensa quanto que a beleza é fugaz e
enganosa.
Com requintes de uma história onde se mescla o horror e a sedução, o cro
nista descreve a Catharina deépoca do crime a atrair os incautos com requebros
e sorrisos provocadoresi
Prelibando deliciosas horas deamor, a vítima, à hora combinada, corriapara sua
aventura. Entrava na casafatal, utna casa deportaeduasjanelas, situada na Ruado
Arvoredo, quase em frente ao Seminário que aindaali não existia. Ao serconduzido
dasala para outro compartirnento, osoaüoo, subitamente, desaparecia sob os seuspés:
era um alçapão que se abria. O des^açado tombava no lúgubre porão, onde Ramis,
quejá oesperava, prostrava-o com um golpe de machadinha na cabeça. Em seguida
saqueava a vitima —dinheiro, jóias, roupas, calçado, tudo Use tirava —eia mostrar a
sua cúmplice, que sorria, vaidosa da suaforça de sedução, oproduto de sua "fériaV^^
A cena narrada fixará imagens que depois serão recorrentes: Catharina, a
sedutora, a má mulher, feiticeira a atrair os homens para a perdição e a morte,
a sorrir deliciada de seus poderes, indiferente às mortes que provocava; uma
casa como outras tantas da cidade de Porto Alegre de então e, sobretudo, da
Cidade Baixa, na Rua do Arvoredo, bimalmente apresentada como sendo de
porta cduas janelas, mas que abrigava no seu interior uma câmara de horrores:
um alçapão a abrir-se, um porão a aguardar as vítimas, que lá encontravam a
morte. Primeiro haviam sido os forasteiros que visitavam a cidade as primeiras
vítimas do casal criminoso; depois, escasseando estes, o alvo recaiu sobre os D.
Juan dacidade, homens sempre em busca dos prazeres fáceis evítimas do etertto
feminino, sobre quem Catharina exercia abismos deatração.^''^
Cabe refletir sobre o poder de sedução, atributo da mulher, a desencadear
instintos e impulsos, a fazer os homens perderem a sua capacidade racional.
Nesta medida, se revela o perigoso deste eternofeminino: as mulheres são movi
das por sentimentos e afeições, a instintos de natureza animal, os homens pela
racionalidade. Deixado à solta, sem controle, este traço identificador do femini
no écapaz de privar o homem de sua racionalidade, edesviá-lo de uma conduta
regrada eordeira. Catharina assim comparece como uma encarnaçáo de Lilith,
o arquétipo da mulher tentadora, demônio e serpente, bruxa e feiticeira, como
sereia a arrastar os homens para a perdição. Nesta medida, Catharina deve ser
bela, para seduzir e privar o homem de sua razão.
Atentemos para o fato que um D. Juan, conquistador de muUieres e, na
verdade, uma vítima destinada a sucumbir ao poder feminino da sedução. E
66 SANDRA JATAUY PESAVENTO
lização de cada homicídio. O crime era, para ele, libido, expres.so no traje, na
refeição e nas disposições amorosas, como revelara a bela e loira Catharina.'^"'
O autor Maurício Machado/Décio Freiras se íàz valer da sua condição de
jornalista, de trazer ao leitor uma narrativa convincente e clarado acontecido, mas
cria uma série de circunstância e delineia comportamentos plausíveis. Não traz
provas, mas suposições convincentes. Por exemplo, aumenta o número das víti
mas, aprofundando e complementando uma suspeita levantada porAchylles Porto
Alegre quando invocava a memória social sobreo caso da Rua do Arvoredo.
Aqueles desaparecimentos que o povo murmurava e comentava como pos
síveis de serem atribuídos a Ramos, o jornalista confirma: sim, a colona de
Santa Cruz e um certo colono de Nova Petrópolis que haviam sumido foram
também assassinados pelo açougueiro e seus restos haviam sido achados em
uma chácara do bairro Petrópolis, alargando assim, para outras zonas da cidade,
o território atingido pelos crimes da Rua doArvoredo!
Já o sinistro corcunda, que não chega a ir a juízo no contexto do acon
tecido", é revelado como sendo cúmplice de Ramos no esquartejamento das
vítimas. Para alguém que teria lido os documentos de época, o jornalista em
questão mistura os dados criminalísticos e judiciais, dizendo que o processo
pelo homicídio de Klaussner fora o primeiro a que fora submetido José Ramos
eque este teria feito uma confissão minuciosa do crime, com requintes de deta
lhes realísticos.'^'' Eo pobre cãozinho preto, revelador do crime com seus uivos,
éincorporado na história, tal como em Achylles, mas volta aseu destino trágico
deser abatido pelo cruel assassino que éJosé Ramos.
Em suma, tais alterações da história, tais circunstâncias criadas vão muito
mais além do que se poderia chamar do resgate de uma memória social sobre o
caso. Machado/Freitas realmente cria uma verdadeira história romanesca base
ada no crime acontecido.
Por outro lado, nesta mesma linha ficcional, Machado/Freitas acrescenta
outros pequenos detalhes no desenrolar dos acontecimentos, de molde a incri
minar ainda mais José Ramos, da mesma maneira que outras, antes o haviam
feito: uma peruca fora achada entre os pertences das vitimas na casa da Rua do
Arvoredo, que Ramos dizia lhe pertencerem.'' Mas, justamente uma peruca.
Se ele tinha vasta cabeleira, porque necessitaria disto? Assim, de detalhe em de
talhe, uma trama é urdida de molde a confirmar, com riqueza de informações,
aquilo que todos já sabem: que Ramos éoculpado, que éum falso, cruel, um
monstro.
cadáveres da sériede crimes tenebrosos que ali eram praticados, a demonstrar que
as vítimas sei-viam para a fabricação de lingüiças de carne humana! O desenho
exibe o horror dos policiais diante do espetáculo de um homem dependiirado
de cabeça para baixo, como em um açougue, tendo em torno ossadas no chão e
os instrumentos para a despostaçáo dos cadáveres sobre uma mesa ao ladoJ''^
A repercussão desta descoberta é mostrada nas imagens seguintes, a revelar
a agitação e o alvoroço que sucedia no espaço público, com as pessoas a comen
tar, e o macabro das ossadas humanas encontradas no porão da casa, cercadas
pelos ratos.Se a crônica memorialística ou o texto de história induzem a
imaginação do leitor a visualizar cenas do passado, a história em quadrinhos já
oferece a imagem pronta daquilo que teria ocorrido um dia, a inserir detalhes
de um plausível acontecido: ratos a cercar ossadas, porque não? Tais imagens
fixam cenas de uma história extraordinária, tal como do pecado cometido: o
canibalismo, tabou maior da civilização.
Aáas sem sombra de dúvida, esta história em quadrinhos consagra a figura
de Catharina como a personagem principal da sucessão de crimes: na confissão
dos culpados, levados presos, revela-se que ela, com sua cara bonita e requebros
provocantes^ servia de isca para atrair os homens, afirmações acompanhadas das
manobras de sedução da bela loira, a lembrar com suas formas as pin-ups das
décadas de cinqüenta e sessenta e, com seus beijos, uma cena hollywoodianar^^
Ora, as pin-ups... Nascidas no século XX, elas são fruto de um desejo das
novas gerações de libertar-se da moral puritana de uma América perpassada
pelos valores familiares e os comportamentos reprimidos. Se elas começam a
insinuar-se na década de vinte, começando a aparecer nas capas de revistas, em
um mundo onde a comunicação de massa, em termos europeus, já utilizava a
mulher como o elemento onipresente de propaganda dos mais divesos produ
tos, é realmente no pós-II Guerra que elas se impõem. Primeiro restritas aos
calendários que "ornamentam" as garagens e oficinas de automóveis, depois
ganhando cada vez mais espaço nas revistas, os Estados Unidos consomem e
exportam ilustrações de belas mulheres: pernas longas, cintura fina, seios fartos,
traseiro saliente, ar provocante... No belo rosto, a ambigüidade: "maldosamen
te ingênuas", elas misturam inocência angelical com atitudes ousadas. Desde
situações imprevistas do tipo ''Céus! Perdi ?ninha calcinha!- pouco mostran
do de fato, mas liberando a imaginação - até a exibição de atitudes de corisca,
estas pin-ups que faziam delirar os rapazes são bem o exemplo das fronteiras
morais das décadas de cinqüenta e sessenta diante da progressiva liberação dos
costumes. Very sexyy e exportável: no Brasil, na mesma época, a revista O Cin
zeiro mostrava aos leitores as formidáveis do Alceu, produzidas por Alceu
Penna e com grande aceitação junto ao público. Eis, pois, Catharina-pin-up
mostrada aos leitoresda cidade de Porto Alegre na aurora dos anos sessenta, mas
com um diferencial: Ela talvez só seja falsamente ingênua para seus incautos
CATIIARINA C(JME-GF\TR LINGÜIÇA, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 79
—sua mulher, Catharina Paise, foi a grande figura coadjuvante que possibi
litou os homicídios, através de suas artes de sedução.
Catharina torna-se opivotáz trama e seconsagra como o estereótipo da má
mulher, ou dos perigos do feminino. Catharina corresponde a esta representa
ção arquctípica sobre a mulher, bastante antiga, c que chega ate nós. De certa
forma, Michelet é um dos precursores no resgate desta dimensão do imaginário
social sobre a mulher. Nasuaconhecida obraLasorcière,-^^ Michelet indica que
foi a Natureza que fez da mulher a feiticeira. Sem querer cair na questão levan
tada pelo autor—osmistérios do corpo feminino e suas funções —que acaba por
opor a mtãher-natureza ao homem-adturãy entendemos que o que se poderia
chamar de naturezafeminina^ ou o feminino é uma construção simbólica. E
esta, no caso, é dada pelo olhar e pelo julgamento dos homens sobre as mu
lheres. Com propriedade, Jacques Le Goff afirma que Michelet enfoca bem a
questão quando centraliza suaanálise num aparente paradoxo: é justamente no
momento em que a mulher emerge como uma personagem de maior presença
na história que é preciso diabolizá-la. É neste momento, na passagem do século
XIV para o século XV, em que se acentua a sua faceta de bruxa, de sexualidade
desregrada, dotada de malícia, capaz de realizar sortilégios e malefícios. Mais do
qtie isso, esta representação feminina trabalha com a idéia de que a mulher é
perigosa, porser capaz de trair e seduzir.-^'*
Afigura arquetípica de Eva étomada não como amãe de todos os homens,"'^
mas como aquela que não soube resistir àserpente e foi capaz de arrastar Adão ao
pecado, oque redundou na expulsão do paraíso, para sempre perdido...Ou talvez,
nesta visão do perigo feminino se possa mesmo remontar aLilidi, aanti-Eva, ver
dadeira primeira mulher criada, segundo outra versão judaica da Bíblia, o Zohar.
Expulsa do paraíso por má conduta —sua não submissão ao poder masculino de
Adão —foi condenada a errar no mundo das trevas, tornando-se a amante de Lú-
cífer, oanjo decaído.^'^' Metáfora da mulher livre epoderosa, ela éapersonificação
da capacidade sedutora da muUier, consciente dos seus atributos epodendo mes
mo ameaçar aordem estabelecida. Neste sentido, Lilith cpraticamente varrida do
contexto oficial. Por um outro prisma, poderíamos agregar aesta versão ou antii-
magem damulher algumas outras características associadas ao seu temperamento
ou natureza, como, por exemplo, a incapacidade de guardar segredos ou a eterna
curiosidade feminina, alegorizada na figura mitológica de Pandora.
Ocerto éque tais representações são trazidas como uma decorrência natural,
como algo próprio da mulher ede seu temperamento. As identificações sexuais
são fabricadas, como se sabe, a partir de papéis culturais esociais historicamen
te construídos, e as representações, no caso, induzem o olhar e o julgamento,
pautam os comportamentos e normalizam as práticas.
Mas estamos a analisar uma figura do século XIX, confessadamente coad
juvante de crimes.
82 SANDRA JATAirV PESAVENTO
Referências bibliográficas
1 Sainc-Hilaire, Auguste dc. Viagem ao Rio Grande doSul (1820-21). Belo Horizonte: Itatiaia,
1974, p. 40.
2 Avé-Lailemand, Robert. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858). Itatiaia: Belo
Horizonte, 1980, pp. 110-111.
3 O Rio Grande do Sul em 1852. Aquarelas de Herrmann RudolfWendroth. Hospital Igreja.
Mercado. Alfândega, fig 103.
4 Idem, Vista total de PortoAlegre, íig. 128.
5 CF. Planta de Porto Alegre que consta na obra de Francisco Riopardense de Macedo, Porto
Alegre, origem e crescimento. 2.® ed. Unidade Editoria: Porto Alegre, 1999, p. 112.
6 Coruja, Antonio Álvares Pereira. Antigualhas. Reminiscências de Porto Alegre. ERUS: Porto
Alegre, 1983, p. 101.
7 Franco, Sérgio da costa. Porto Alegre eseu comércio. Associação Comercial de Porto Alegre:
Porto Alegre, 1983, pp. 42 e 45.
8 Franco, Sérgio da Costa. Porto Alegre. Guia Histórico. Editora da Universidade: Porto Ale
gre, 1988, pp. 55-56.
9 O Rio Grande do Sul em 1852,Aquarelas op. cit., Porto Alegre vista doHospital fig 98.
10 Franco, op. cit., p. 171.
CATHARINA COMF-GE^TF: LINGÜIÇA, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 83
MS Cálculo Fcico a partir das declarações deCatharina no interrogatório da polícia, quando dera
28 cm 1864. tendo presumivelmente nascido cm 1836.
149 Porto Alegre, Achylles. yí heira do caminho. Ed. Globo: Porro Alegre, 1925.
150 Porto Alegre, Achylles. História popular dePorto Alegre. Prefeitura Municipal: Porto .Alegre,
1940.
151 PortoAlegre, Achylles, O Ramis... op. cit., p. 125.
152 Idcm, p. 126.
153 Ibidem.
154 Idem, p. 130.
155 Idem, pp. 126-127.
156 Idem, p. 127.
157 Idem. pp. 127-128.
158 Porto Alegre, Achylles. Amor que mata. In: Noites de luar. Ed. (tlobo: Porto Alegre, 1923,
p. 142.
159 Diáriode Noticias, 04/04/1925. Porto Alegre.
160 Porto Alegre, O Ramis... op. cit., p. 127.
161 Idem, p. 130.
162 Cf. timir, Cláudio. A história devorada. No rastro dos crimes da Rua do Arvoredo. Escritos:
Porto Alegre, 2004, p. 72.
163 Machado, Maurício. O açougue humano da Rua do Arvoredo. Diário de Notícias, Porto
Alegre, 09/12/1948, p. 8.
164 Machado, Maurício. O açougue humano... op. cit., p. 8.
165 Machado, Maurício. Um conviteparaa morte. Diário de Notícias, Porto Alegre, 10/12/1948,
p. 9.
166 Machado, Maurício. O càozinhopreto. Diário de Notícias, Porto Alegre, 19/12/1948, p. 20.
167 Machado, Maurício. O monstro perjiimado. Diário de Notícias, Porto Alegre, 21/12/1948. p. 9.
168 Machado, Maurício. Uma husca macabra. Diário de Notícias, Porto Alegre, 11/12/1948, p. 6.
169 Idcm. p. 6.
170 Machado, Maurício. Aconfissão de Catarina. Diário de Notícias, Porto Alegre, 12/12/1948.
p. 12.
171 Machado, Maurício. Uma busca macabra, op. cit., p. 6.
172 Machado, Maurício. O monstro perfiirnado. op. cit., p. 9.
173 Machado, Maurício. O brinco de ouro. op. cit., p. 14.
174 Machado, Maurício. O monstro perfiirnado. op. cit., p. 9.
175 Machado, Maurício. Henrique, ocorcunda. Diário de Notícias, Porto Alegre, 15/12/1948,
p.ll.
176 Machado, Maurício. Primeira confissão. Diário de Notícias, Porto Alegre, 18/12/1948, p. 9.
177 Machado, Maurício. Uma busca macabra, op. cit., p. 6.
178 Machado, xMauríclo. A lenda e os crimes deJosé Ramos. Diário de Notícias, Porto Alegre,
lòinnw, p. 9.
179 Machado, Maurício. O açougue humano... op.cit., p. 8.
88 SANDRA JATAUY PESAVENTO
180 iMachado, Maurício. A lenda e os crimes deJosé Ramos. Diário de Notícia.s, Porto Alegre,
23/12/1948, p .9.
181 Sanhudo, Ary Veiga. Os monstros. In: Porto Alegre. Crônicas de minha cidade. lEÍ./DAC/
SEC/IEL.UCSEST: Porto Alegre, 1979, p. 161.
182 Porto Alegre, Achylles, O Ramis, op. cit., p. ????
183 Idem, pp. 161-162.
184 Idem, p. 162.
185 Idem, p. 163.
186 Idem, p. 162.
187 Idem, p. 163.
188 Oaçoiigue macabro daRua do Arvoredo. Última Hora, Porto Alegre, 18/02/1964. Desenhos
de João Mottini, texto de Paulo Koetz.
189 Ibidem.
190 Odçoiigue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 19/02/1964.
191 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 21 /02/1964.
192 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto ^Alegre, 20/02/1964.
193 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 22/02/1964.
194 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 24/02/1964.
195 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 25/02/1964.
196 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 26/02/1964.
197 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 27/02/1964.
198 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 28/02/1964.
199 O açougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 29/02/1964.
200 O açougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 02/03/1964.
201 O açougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 03/03/1964.
202 Reed, Walter. L'art des pin-up: commentaire historique. lii: Martignette, Charles e Mcisel,
Ixjuis K. lhe Great American Pin-up. Koln: Taschen, 2002, p. 21.
203 Meisel, Louis K. Le "hei" art de 1* illustration. In: Martignette, Charles e Mcisel, Louis K.
Use GreatAmerican Pin-up. Koln:Taschen, 2002, p. 28.
204 O açougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 09/03/1964.
205 Oaçotigue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 04 c 05/03/1964.
206 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 07/03/1964.
207 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 06/03/1964.
208 Oaçougue macabro... Última Hora, Porto Alegre, 13/03/1964.
209 Elmir, Cláudio Pereira. A história devorada. No rastrodoscrimesda Rua do Arvoredo. Escritos:
Porto Alegre, 2004.
210 Pesavento, Sandra Jataliy. Catarirui Come-Gente: représentation imaginaire deIafemme devam
le crime (Porto Alegre, XIXe. siècle).\-.es, femmes dans Ia ville. Un dialogue franco-brésilien.
Centre d'Étudcs sur leBrésil. Presses deTUniversitc deParis-Sorbonne. 1997, pp. 125-135.
O mesmo artigo foi publicado em português na Revista Imaginário, LABl/USP, n.® 4. São
Paulo, 1998, com o título de Catarina Come-Gente.
CATIIARINA CUMF.-GFSTFl LINGÜIÇA, SEDUÇÃO & IMAGINÁRIO 89
a ser lido por aqueles que ficaram. Gostaríamos de nos debruçar sobre um tipo
especial desuicídio. Não se trata daquela modalidade que envolve um amor so
litário, o triste amor não correspondido que leva ao desespero e à decisão fatal.
Queremos nos deter noamor contrariado, noamor proibido, no amor rejeitado
pelas leis do social, que leva os amantes a um pacto de morte.
Os arcanos que presidem este tipo de suicidas são, de um lado, Fancesca da
Rimini e Paolo Malatesta e, de outro, Romeu e Julieta. A simbolÍ2^rem o amor
maldito e condenado —de Francesca por seu cunhado —e o amor impossível
pelas convenções sociais e familiares —entre os Capuletto e os Monteccliio —
convertem-se cm mitos literários indicadores de uma conduta a seguir, difun
didos através dos caminhos de imia leitura e da educação do gosto, que fixa
padrões e valores pelos quais são pautadas asações.
Com isso, queremos analisar este morrer de amor através dos poderes da
ficção sobre a vida, invadindo o real e despertando sentimentos quesetraduzem
em práticas culturais muito específicas como, por exemplo, o duplo suicídio.
Buscamos, pois, analisar como a literatura produz o sentimento e a leitura é
capaz deproduzir efeitos —fatais, porcerto —sobre os comportamentos dos in
divíduos. E, fato acontecido, em um desdobramento dos poderes da ficção, ver
como a literatura volta a seapoderar deste acontecimento, devolvendo-o como
romance ao público leitor.
Estaríamos, assim, diante de três estágios daestetização davida: aquele do
acontecimento, que acompanha as tendências literárias daépoca e das leituras
feitas, que faz os atores do drama se aproximarem dos personagens dos ro
mances, que teatraliza o ato derradeiro e que deixa de si próprio uma constru
ção narrativa; a da transposição do fato para matéria de jornal, que obedece
jáa um tratamento literário, estetizando por sua vez o drama e mobilizando
o público para a história narrada, assegurando a sua recepção; o da produção
literária de um romance verdadeiro sobre o acontecido, onde cotidiano e fic
ção trocam de lugar, indo ao encontro de um horizonte de expectativas dos
leitores.
Para tanto, fomos buscar em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul,
no final do século XIX, o que chamamos de um caso exemplar.
Porto Alegre dos suicidas: uma cidade onde se morre por amor
Stoll & Irmão, que tentara o suicídio com uma pistola, por estar endividado
e aborrecido com a vida. Comentava o jornalista, zombando dos motivos do
suicida: Ábon'ecido com a vida!Eela não é, desde ocomeço, isto é, do berço, tediosa
e insuportável!'^
Mas, dentre as causas declaradas ou insinuadas pela imprensa e pela polí
cia, os males do amor pareciam arrastar atrás de si a maior parte dos suicídios e
também a provocar maiores comentários e suposições. Suicídios ou tentativas
de, por amor, por ciúme, por desilusão rendiam notícia, vendiam nos jornais,
onde eram feitas insinuações.
Parece ter sido a insatisfação conjugai que levou D. Maria da Glória, ca
sada há quatro meses com o cidadão Manoel Gonçalves Vianna, a tentar o
suicídio com a ingestão de uma dose de ácido nítrico,^' que a levou a confessar
estar "aborrecida da vidã'\ resolvendo com isso pòr-lhe um termo." Ou, ainda,
a jovem Maria José, de 19 anos, mulher do anspeçada Manoel Guedes, para
matar-se cm sua residência, na Rua Lima e Silva, com um tiro de espingarda no
peito!® E tais desavenças conjugais levavam à morte também os maridos, como
a do sargento da Brigada Militar Manoel Hcrculano da Silva, de 27 anos de
idade, morador da Rua Duque de Caxias, que, após discutir por ciúmes com
sua esposa Zulmira, matou-se com dois (!) tiros na fronte.^
Mas o suicídio por amor ocorria, principalmente, por fora do casamento
institucionalizado. Lugar de destaque ocupavam as ditas "mulheres de vidafácil".
Nesse contexto é que se deu a tentativa de suicídio da meretriz Finoca, por
nome Delfina Silva, moradora da Rua Jerônimo Coelho n.° 5, que ingeriu
ácido bórico. Dizia o jornal: "Uma paixão amorosa determinou o ato da infeliz
rapariga'V^ Igualmente tentara suicidar-se, tomando uma regular dose deácido
fênico, a prostituta Bertolina Gomes, de 40 anos, moradora da Rua da Cadeia,
levando o jornalista a comentar: "Amores mal correspondidos levaram a infeliz
mulhera tomar esta resolução '
Temos ainda o caso de Adelaide Martinez Ruiz, a jovem prostituta espa
nhola da Rua General Paranhos, vindade Triunfo, onde fora abandonada pelo
marido, há poucos meses para a capital. Dizia o jornal: "Começando a sofrer de
histerismo, a infeliz, vendo-se abandonada pelos seus, e doente, desesperou-se apos
um ataque histérico. Socorrida a tempo, foi salva". Repetem-se as tragédias que
têm por protagonistas as meretrizes.
Mas tais mulheres não eram apenas as protagonistas centrais dos atos suici
das. Elas também provocavam atos desta natureza, eram a causa de indivíduos
tentarem contra a vida! Este parece ter sido o caso Salustiano Vieira da Silva
Pires, de 20 anos, solteiro, de profissão jornaleiro —o que eqüivale dizer que não
tinha profissão e que seempregava a cada dia no serviço que lhe aparecesse... —,
que se atirou em um poço, na Rua do Parque. O motivo de tal ato fora aatitude
de sua amásia, Malvina Machado de jesus, uma "rapariga de 15 anos de idade".
96 SANDRA JATAUY PESAVENTO
Mas havia ainda as moças que se matavam por amor. Nesse registro quase
diário, os jornais repetiam a razáo não confessa, mas evidente para os leitores
de tais notícias. Baseados no diz-que-diz-que de vizinhos a respeito de outra
tentativa de suicídio por parte de uma moça moradora na Rua da Margem, os
repórteres afirmavam: "Segundo ouvimos, amores não correspondidos levaram-na
a prática de tal ato de desespero". Tal como a moça Castorina, residente na Rua
do Arvoredo, que tentou se matar ingerindo uma grande dose de sublimado
de acônito. Nesse caso, anunciava o jornal, a jovem, que fora recolhida à Santa
Casa, deixara um caderno de anotações, e tinha-se como origem da tentativa de
suicídio os tais "amores mal correspondidos".^'*
Suicídio não consumado podia virar piada, e foi em tons jocosos, de tra-
gicomédia que o Jornal do Comércio se referiu ao fato, desde o mergulho do
suicida no Cais da Alfândega até sua luta com Pedro Ignácio dosAnjos —o "anjo
salvador"At, Primavera—, que, a custo, conseguiu trazê-lo à terra...
Mas outros fatos eram representados mais seriamente, como verdadeiros
dramas.
No caso de Paulina Fuchs, modista, alemã, "moça bemparecida"de 25
anos de idade, um noivo a esquivar-se da promessa de casamento fora causa
certa da rejeitada noiva dar-se um tiro no estômago. Da suicida, que segundo
testemunhas se dizia andar "triste e abatida", conseguiu-se obter ainda uma ex
plicação para o ato: "Eo melhor quepossofazer". Nada mais sabemos de certo,
salvo se rastrearmos um pouco os personagens do drama. O noivo, Carlos Au
gusto Pabst, era empregado da Intendência municipal. Seria parente de João
Pabst, antigo comerciante de Porto Alegre e proprietário da importante fábrica
de gravatas e espartilhos fundada em 1892, em Porto Alegre, que ocupava o
prédio n.° 76 da Rua Voluntários da Pátria?'^ Trabalhavam nessa fábrica, em
1907, 120 operários em 50 máquinas, e já havia obtido prêmio na exposição
internacional de Colúmbia, em 1893 e ainda obteria outros nas exposições de
Leipzig, em 1897, na Estadual de 1901 e na de Chicago em 1904.
Se fazia realmente parte da família, Pabst era por certo um moço da elite
porto-alegrense, mas as fontes não revelam o parentesco, só que o irmão de
Paulina, com quem a moça morava no Caminho Novo, não viacom bons olhos
esta "propensão amorosa".^^ Talvez seja por isto que Paulina, a jovem modista ale
mã, fora morar há dois meses na casa de Carlos Stieh, na Rua Ramiro Barcelos,
antigo Beco da Marcela, ou seja, na dita colônia Africana. Fosse Pabst um moço
MORRER DE AMOR: NEGO, CHIQUINIIA E A HSrRHVC.y/XA 97
bem nascido, a rejeitada noiva era uma modesta operária, e por aí acabam as
suposições, que só permitem entrever algumas considerações plausíveis sobre a
nature/a do drama que comovera a cidade...
Alguns meses mais tarde ~ em novembro de 1895 Pabst publicou no
jornal um arrazoado no qual se defendia das acusações sofridas, de ser o línico
responsável pelo suicídio de Paulina Fuchs e atribuindo a culpa ao irmão desta.
Guilherme Fuchs, empregado no comércio da capital. A julgar pela indigna
ção do articulista do jornal O MercanríU o silêncio de Pabst e as suas tardias
explicações não convenciam o piiblico leitor, escandalizado com o seu "nep-o
proceder", e não o haviam poupado das manifestações da imprensa, que atirara
sobre ele "opeso desua indignação", arrematando a notícia com este julgamento
implacável: "Se as leis os ?ião punem, ao menos a sociedade que os despreze de seu
gémio e lhes atire todo opeso desua execração"}'^
Teriam sido, ainda, os trágicos amores não correspondidos, que não afeta
vam somente as mulheres, a causa de mais outra tentativa de dar cabo à vida,
dessa vez do moço alemão Hans Bennecke, frustrado em sua paixão amorosa,'®
oude Pedro Primavera, cadete sargento do 5.° regimento, o que rendeu poética
descrição nos jornais: "com o coração alanceado pelo amor, quis afogar a paixão
que oalucinava, afogando-se no plácido Guaíha"}^
Por vezes, eram estranhos c inusitados casos que compareciam nas páginas
dos periódicos da capital, comoo de Frederico Frank, alemão de quarenta e oito
anos de idade, casado e com ííllios, morador do Faxinai de Dentro, município
de Santa Cruz, que viera para Porto Alegre, trabalhar na Padaria Zanandréa,
onde dissera chamar-se Carbs Frank. Ali se enamorara e casara com Amélia
Muller, vivendo ainda no gozo da lua de mel desse segtmdo consórcio quando to
mou a deliberação de por termo à existência,^- degolando-se em um local ermo
da Rua da Floresta!
O suicida deixara duas cartas, escritas em alemão e dirigidas à segunda mu
lher, pedindo que o perdoasse, dizendo não ser mau ou leviano, como muitos
supunham e todo o mal que lhe fizera poderia ser resgatado pelo muito amor
que lhe tinha. Razões do ato cometido? SuaAmélia, segunda esposa, não acre
ditava mais nele, dando crédito à sua ciumenta primeira mulher... Aliás, nem
esta nem os filhos mereceram uma carta do suicida. Face o acontecido, o jorna
lista comentava que parecia fora de dúvida que Frank se suicidara com receio de
ser punido por crime de bigamia...
Casos bizarros como este, colocados à parte, o certo é que uma espécie de
onda de suicídios percorria a cidade e os periódicos diziam que esta era tuna ma
nia nacional que percorria o país, de norte a sul, atingindo, sobretudo, os jovens.
Os jornais teciam comentários sobre o assunto, trazendo para suas páginas
análises feitas no exterior, pois o fenômeno se revelava mundial. Arespeito do
que identificava como um agitadofim deséculo, o Correio doPovo trazia aos seus
98 SANDRA JATAHY PESAVENTO
A Dama das CarneLias ése7npre bem recebida pelo publico, e hoje haverá razão
para que o sucesso seja completo, pois todos já sabem que a companhia Modena dá
a composição de Dumas uma interpretação correta eparelha. Nessa peça é digno de
seradmirado o trabalho de Olga Lugo, Lotti eDrago
Um romantismo fin de siècle, portanto, trazendo consigo as lutas terríveis
entre o desejo e o dever, ou entre a realização do amor e as convenções sociais,
entre o sentimento do vazio e o desejo de evasão diante da fatalidade do destino.
Tudo, enfim, de molde a ambientar o suicídio, como auto-exclusão de uma
sociedade onde o indivíduo não mais se reconhecia.
Por outro lado, a exacerbação dos sentimentos podia ainda comparecer
como um contrapeso a uma sociedade violenta, onde quase todos andavam ar
mados e onde um novo regime —o republicano —se consolidava regionalmente
de forma autoritária e excludente, em adaptação do positivismo comteano.
Sobre os suicídios qtie se repetiam, por vezes os jornais encontravam di
ficuldade em fazer deles uma história. Se não restara material escrito e se os
vizinhos e familiares nada relatavam, como saber as verdadeiras causas do ato?
Levantavam-se suposições, surgiam boatos, mas a notícia era curta.
Quando o suicida não deixava informações esclarecedoras do ato praticado,
nem a vizinhança explicava suas razões, a notícia da tragédia merecia apenas
uma informação do sucedido, encadcando-se a muitas outras, como no caso de
do cambista italiano Miguel Francesco, de 30 anos, morador da Azenha, que
se dera um tiro de revolver na cabeça." Francesco iria comparecer nos jornais
como mais um suicida, para fins de estatística, pois as razões do ato morreram
com ele.
Mas, quando o suicida deixava cartas ou bilhete, estas vinham logo às pá
ginas dos jornais, compondo o drama e ajudando a delinear o perfil do ator da
tragédia.
Foi este o caso de um suicida, que movimentou a imprensa no início do
ano de 1896. Tratava-se de um jovem de 23 anos de idade, Adelino de Miranda
Ferreira Campello, que trabalhava no escritório de uma fábrica de vidros no
Caminho Novo. Servira como sargento do 1.° batalhão da guarda nacional,
quando lhe haviam sido concedidas as honras do posto de alferes do exército.
Logo, era um rapaz respeitável, com emprego e mesmo boas referencias,
considerado por todos como de conduta morigerada e bom proceder, o que
lhe granjeava muitas simpatias. Pertencia ao Clube Caixeiral e antes trabalhara
na loja de fazendas dos srs. Paranhos Júnior & Castilho, à rua dos Andradas.
MORRER DE AMOR: NEGO, CHIQUINIIA E A HSTRHYCX/XA 101
para mima vida é umfardo. Trabalhar sópara mim é um absurdo, eaté hoje ofiz,
sujeitando-me a todas as privações, porque queria casar-me; não o querem. Adeus.
Pague as minhasdividas. —Caynpello.^'^
Portanto, nosso suicida fora rejeitado pela amada, que náo quisera casar-se
com ele. O casamento, única razáo que o impelia a trabalhar e viver, uma vez
frustrado, só lhe deixara uma saída: suicidar-se. Ao pai, além do desgosto, dei
xava a herança das dívidas.
Para o Sr. Arthur Tracey, gerente da fabrica de vidros onde trabalhava, e
que, entrevistado, só tivera para com ele palavras elogiosas, Adelino também
deixara algumas palavras, dissuadindo-o de tentarsalvá-lo dos efeitos da inges
tão do veneno:
Perdoai o desgosto que vou causar-vos, e não busque porforma alguma salvar-
me, se nãoproduzir o efeito desejado. Seuamigo —Ferreira Campello.^^
Diante da exposição das cartas de Adelino, o jornalista estabelecia o seu
juízo para os leitores da notícia:
Supõe-se apenas que o infortunado jovem, não tendo ainda posição social bas
tantepara poderdesposar uma distinta moça a quem consagrara seus afetos, deses
perou d£ esperar, epor isso deu-se a moHe.^^
Esta conclusão ou pressuposição do jornalista nos dá indícios para uma
situação que comparecerá mais adiante; a idéia de que os motivos que haviam
impedido Adelino de casar-se com sua amada fossem da ordem de um desnível
social. Ou seja, o moço suicida fora recusado por não se situar à altura ou ao
nível exigido pela moça ou por sua família. Trabalhador, honesto, cumpridor
dos deveres, mas sem status para aspirar casar-se com a eleita de seu coração. Si
tuação indicadanão como de anormalidade, como freqüente nesta cidade onde
os desníveis sociais eram naturais.
O trágico caso, porém, não se encerrou aí, pois o jornalista precisava ex
plorar mais a notícia e foi à cata de outras informações, que compareceram
nas páginas do jornal do dia seguinte: o padrinho e primo do suicida, também
chamado Adelino —Adelino Peixoto de Miranda, conhecido guarda-livros da
praça, em casa de quem o moço residia - forneceu mais detalhes sobre o que
ocorrera como, por exemplo, o fato de que na noite anterior o rapaz passara
quase que toda a noite a escrever, mas sem despertar suspeitas, pois era muito
estudioso e dedicava muito tempo à leitura.^®
O padrinho o acompanhara nos seus últimos momentos, assim como sua
esposa, a quem o moço, agonizando, pedira para ver. Disse ainda que parece
que Adelino esperava para morrer, apenas esta visita, o que implicava, em úl
tima instância, que não alimentava esperança de que nenhuma mulher amada
iria ao seu encontro.
Muito metódico, o previdente Adelino deixara todas suas coisas em ordem
em uma carteira de notas —pequenas dívidas contraídas, mas de pouca monta
MORRER DE AMOR: NEGO, CIIIQUINHA E A F.<TRHyCX/XA 103
—e dívidas de outros para com ele além de um pequeno escrito com suas delibe
rações sobre sua morte: O quemepertence para ti, mtindo profano, não vale nada;
mas para minha 7nãe são preciosas relíquias, epara eU deverá ser tudo remetido.
Enterrem-mefardado. —Campello.^'^
Notemos uma característica que se irá repetir nestes suicidas metódicos, or
ganizados, que planejam com antecipação o ato extremo: a preocupação com o
enterro. Adelino queria enterrar-se comsua farda, levando na morte a dignida
de simbólica de um uniforme. A morte é solene, as cerimônias fúnebres são um
ritual e o jovem fiizia questão de apresentar-se de forma digna nestasua última e
teatral aparição cm público. Tais disposições para com seu corpo mostram que,
para este derradeiro ato, se espera um público. Há um destinatário, uma platéia
para a cena derradeiraonde ele é o ator principal.
Para o padrinho, deixara um curto bilhete, agradecendo a proteção que
sempre lhe dispensara e pedindo-lhe que o enterrasse como pudesse, que seu pai
pagaria as despesas. Todavia, o ClubeCaixciral, ao qual pertencia, não permitiu
isto, arcando com os custos do enterro de seu sócio.
Para mãe, Adelino deixava uma tocante e poética despedida:
Minha boa e santa mãe - E' a missão dos poetas moirerem pelo seu ideal, e
seu filho não podia fazer uma exceção a essa regra. Lamento que não fosse possui
dor de um título de bacharel e de meia dúzia de contos de reis parafazerface às
contrariedades de que hoje sou vítima. É um hoyror o que voufazer, bem conheço;
mas creia que é em pleno gozo das minhasfaculdades mentais. Adeus, para sempre.
- Campello:^'^
O suicida reitera as condições de desnível .social, expre.sso pelo título de dou
tor c pelas boas condições financeiras, que lhe faltavam e que confirmavam assim
a sua tragédia pessoal de não poder concretizar seu amor pelo casamento. Aten
temosainda para a importante informação: o rapaz se autodefine como poeta, e
como tal, se vê associado ao seu trágico destino, que é o de morrer por amor.
Esta veia poética seria mellior ainda vislumbrada na carta de despedida
escrita ao irmão mais jovem, Alcides:
A meu irmão Alcides —Vais ser o meu sucessor na ordem natural de nossa fa
mília, visto que és dos homens queficam omais velho. És muito criança ainda, não
conheces afundo o coração humano, não sabes o que é a adversieLide por quanto
tiunca sofrestcs as ag'uras do exílio, logo não podes avaliar o alcance desta minha
resoltição. Na verdade, é cruel, morrer aos 21 anos, quando apenas a vida começa a
desabrochar, quando apenas omundo nos sorri (como dirão osjornais), mas éa pura
realidade oque estás ouvindo, o mundo só é bom para quem não se impressiona com
ospreconceitos sociais, o mundo só é bom para ospobres, pois que não tende em que
pensar tem cm si afelicidade.
Não ames, e sepor acaso o amor desabrochar em teu peito, que seja por uma
mulhersem nome, semdinheiro, semfamília, mas honrada, pois que seaí encontra-
104 SANDRA JATAUY PESAVENTO
Adeus
P. Campello
Nem uma vez se revela o nome ou se menciona a figura da moça que moti
va todo este drama. Por inferência, deduzimos que ela é de nível social superior
e que o recusou, por não ser rico e não ser doutor. Afinal, este Adelino é só um
pequeno funcionário de uma empresa, um caixeiro. Ganha um salário condi
zente com a sua função que, combinado a trabalhos suplementares de escritu
ração mercantil, lhe davam cerca de 450S000 por mês. Muito pouco para uma
moça rica da boa sociedade local, que poderia conseguir um melhor partido.
Adelino escolhera mal, seu amor não tinha futuro.
Outros pequenos bilhetes de Adelino tecem considerações sobre a existên
cia, denunciando mais uma vez as barreiras intransponíveis que acabariam por
destruir todos os sonhos. Não havia salvação neste mundo injusto, parecia dizer
Adelino, poeta, romântico e filósofo.
Quem podeprevêr ofuturo? Sejam aqueles que sejulgamfelizes, porquepos
suem U7n pouco dedinheiro, a adversidade ensina-los-á a sere7n comedidos em seus
esplendores. Campello.^~
Em outro pequeno escrito, Adelino fazia uma exortação e uma defesa da
causa dos humildes contra os poderosos.
Odiai, meus irmãos, sempre ofausto, fugi dos ricos,fugi das mais altas camadas
sociais, porque aí só existe a hipocrisia, apodridão ea miséria, e nega-vos aos que vos
parecem miseráveis, vivei nas carruidas menos abastardas dasociedade eat encontra-
reis a felicidade vereis onde há amor, honestidade, honra e brio. —Campello.^^
Detalhamos o caso de Adelino porque tais componentes de denúncia à
hipocrisia e o preconceito, tal como a angústia do amor impossível, vão compa
recer em outros muitos casos de suicídio ocorridos na época.
Igualmente, aingestão do veneno tornava-se aprática corrente dos suicidas.
Notemos ainda que um dos venenos mais terríveis, a estricnina, era usada na
época para corrigir o vício da embriaguez, através de doses certas de injeção e,
como tal, adroga era vendida nas farmácias. Neste sentido, o Correio do Povo no
ticiava que um dos presos da Casa de Correção, Irineu dos Santos, vítima de em 44
briaguez, ficara curado com aaplicação de quatro injeções de dois miligramas
Quando em 1.° de setembro de 1896, o jornal Meieantil noticiou que na
cidade de Santa Maria, o jovem João Carlos Vicent, com apenas 17 anos, se
dera um tiro no peito, por causa de uma paixão amorosa, teceu o seguinte co
mentário: Suicídiospor amor ainda!...Já não passou otempo deles?^^
Na realidade, os maiores suicídios ainda estavam por vir.
Sobretudo na capital, manifestava-se uma onda sentimental, amorosa e trá
gica, varrendo a cidade. Contava-se ainda com uma predileção pelo veneno, e
com a estricnina sendo vendida em farmácias. O palco estava pronto, faltavam
só os atores daquele drama maior, que iria acontecer nos inícios de setembro
de 1896, agitando de uma forma inusitada acidade de Porto Alegre na su^fin
de siècle.
106 SANDRA JATAHY PESAVENTO
morte, com fortes dores, mas que parecia empenhado em construir de seu ato
um verdadeiro acontecimento. Mesmo agonizando, Nico informa com clareza
surpreendente a identidade da amada neste diálogo derradeiro:
—Então trata-se de dois envenenamentos^
—É exato. Tomamos estricnina eu e minha amante.
—Quem é ela? Onde mora?
— Chama-se Francisca da Gama e mora na Rua da Ponte, n.° 169, entre as
ruas Clara e do Arroio.
—Mas 7íão eras tu que, há pouco, às 7 horas da noite, conversavas com uma
mulher, à esquina da Rua do Arroio, quando por ali eu passei?
—Era eu, sim, e a mulher era minha amante.
—E quefaziam vocês?
— Combinávamos o envenenamento.
—E como obtiveste o veneno?
—Roubei-o numa farmácia.
—Não sentes dores?
—Nenhmna, sinto apenas contrações, sintoma da morte. E só lamento morrer
longe dela, a quem tanto estimo.
—E não estás arrependido?
—Estou. Não devíamos terfeito isto. Mas... já agora, que remédio?'"^^
Antes de entrarmos nas considerações do drama propriamente dito, aten
temos para o fato de que, nesta ainda pequena cidade, todos se conhecem: o
suicida chamara o jornalista para contar seu envenenamento, e este lhe pergun
ta se Antonio náo havia passado por ele na rua em companhia da amante umas
horas antes. Todos se identificam e participam deste controle da vida alheia,
onde mesmo os dramas pessoais são socializados.
Na verdade, náo só o suicida declarara estar arrependido com o ato come
tido, como fora à Farmácia Firmiano, em busca de ajuda. Chamado imediata
mente ao local o Doutor Geraldo de Faria, médico, para prestar-lhe os socorros
da ciência, ministrou ao rapaz antídotos que não fizeram efeito. O potente ve
neno lavrava, fazendograndes estragos naquela desventurada existência, levando o
pobre moço a morrer em meio a atroz agonia."^^
Em matéria das sensibilidades de uma época, as declarações do suicida re
velam a causa do ato extremado: há uma censura social, impedimentos morais,
barreiras intransponíveis. Embora, em um momento, o jornal dissesse que tal
vez a causa do suicídio de Antônio fora o fato de ele não ter recursos para o
sustento de sua amante —a moça estava grávida de 5 meses —, o relato emotivo
permite realizar uma outra leitura, para além das questões materiais. Ele não
podia viver às claras esse amor, conforme afirmava.
O suicida era moço de bons costumes, morigerado e bem quisto e era escriturá-
rio de uma empresa —o que o fazia pertencer, digamos, a uma espécie de classe
MORRER DE AMOR: NECO, CHIQUINHA E A esrRHYOSVXA 109
média urbana. Já a moça suicida, Francisca Flores da Gama, era fiilia de Roque
Sicca (Rocco Liceu^ segundo o Mercantil), italiano, horcelão, e de Dona Bene
dita Tavares da Gama, residentes na Capela de Viamão, era uma calda, que cedo
perdera-se, que há muito se achava prostítuida^'^, como exclamara a inconsolável
máe de Chiquinha, ao deparar-se com a filha mona.
A história de Chiquinha era a trajetória de uma queda, tão comum às mo
ças que haviam dado um '*mau passo".
Há mais ou menos quatro anos, relatava o Mercantil, havia deixado o lar
deseus pais. Seduzida, acompanhara seu amante, um tal de Crescêncio, que logo
depois foi assassinado, a mostrarbem como o caminhoque escolhera implicava
uma descida na escala social. Depois se ligara amorosamente a um marinheiro,
vivendo em Itapuá. Mas tal relação pouco durara, devido aos exaltameiitos amo
rosos da rapariga, expressão usada pelo jornalista que, por si só, representava
uma condenação. Chiquinlia, como moça que dera um mau passo, tinha um
comportamento adequado ao caminho que, de alguma forma, escolhera, ou a
ele estava predestinada. Daí, o fato da troca de amante ser uma decorrência de
seu temperamento fogoso!
Vinda para a capital, Chiquinha fora morar na Rua da Varzinha, na casa
de uma parda, que a foz familiar sob seu teto e sua mesa. Li conhecera Bor
ges, nascendo daí uma poderosa afeição deamor, logo e logo convertida na maior
paixão sensual.^'^ A narrativa da queda parece indicar que, uma vez em Porto
Alegre, Chiquinha fora para em um bordel ou instituição similar. O que faria
o elegante Borges na casa de uma parda?. A tal parda deveria receber homens e
oferecer moças, por certo...
O certo mesmo c que, do amor à paixão —ou seja, do sentimento à anima
lidade e irracionalidade do impulso, parece dizer o periódico —o casal Antonio
Borges e Chiquinha estabelecera uma relação amorosa e se mudara para a Rua
da Ponte ou do Riachuelo,^^ onde tivera lugar a tragédia.
Mas Antônio, que agora morria de amores na Farmácia, cercado de curio
sos na contemplação doespetáculo, tinha casamento ajustado com uma distinta
jovemporto-aíegrense,'^'^ filha de um negociante naRua dos Andradas^-' (a conhe
cida Rua da Praia), uma certa y4. V., mantida emanonimato pelos jornais. Logo,
Borges era noivo de alguém de seu nível, mas se vira envolvido em uma buca
paixão por Francisca.
O Correio do Povo acrescentava que Chiquinha, louca de ciúmes ao saber
do compromisso de Nico com a interessante \ovem da sociedade local, ameaçara
suicidar-se se ele não desistisse daquele compromisso.'^" Nesta ocasião, teria es
crito a Nico um bilhete de despedida e, sem dúvida, de ameaça: Adeus, meu que
rido Borges. Oúnico pesar que me resta édeixar-te. Peço-te que não cases com aquela
mulher. Eb équemfez a minha desgraça. Adeus, mett anjo, meu amor. Aceita um
abraço daqueb que tanto te estima. Adeus, Borges. Datua —Chiquinha.^^
1 10 SANDRA JATAUY PESAVENTO
de ortografia que o jornal preservou: "Pesso [sicj para quemfor me vestir que me
vistam com um vestido de casemira que está depeudurado, casaco do mesmo, enfei
tado de encantado, botinas e roupa branca é com a que eu estiver no corpoV^
A desventurada Chiquinha parecia ter pudores post-mortem, pois deixara
recomendado que para ir enterrada com a roupa branca que estava no corpo...
Já Nico pedia, em curto billiece, que o enterrassem com a roupa preta e com a
roupa branca que trajava na hora do suicídio. Ou seja, o suicida se preparara
para a cena da morte e chega mesmo a pedir em bilhete a um primo que vá ao
seu enterro, garantindo o público para a cena derradeira.
E dele, Nico, mais ilustrado, que temos as escritas mais significativas en
quanto exposição dos sentimentos que os uniam. O romantismo dos amantes
e seus códigos secretos de afeição foram revelados ao público leitor pelo relato
jornalístico de achado íntimo: em um corselete de Chiquinha, o inspetor Lou-
zada, da polícia encontrou, [...] cosido pela parte interna, um quarto de papel
almaço em queselia os seguintes escritos a lápis por Borges Lima:
Chiquinha: —Embora com osacrifício da vida, serei teu —Borges.
—As minhas cinzas chamarão: Chiquinha.
—O meu cadáver envolverá teu nome.
—A minha alma encarnar-se-á na tua.
—Com meusangie escreverei: amor eterno.
—Sem teu olhos verei o mundo vazio de amorespara mim.
—Com teu coração enfrentarei ofuturo.
Entre estas frases de amor, traçadas por Antonio Borges Lima, o repórter
revelava: havia também esta, do punho de Chiquinha, edo mesmo modo escrita a
lápis: —Eu até morrer hei de ser tua".~^
As juras de amor parecem ter sido redigidas antes da decisão pelo suicídio,
uma vez que o rapaz fala em enfrentar o futuro. Ou este futuro já se revelava
para ambos como trágico, e só pelo amor que os unia teriam condições de to
mar a decisão fatal? Ao leitor, provavelmente, de fazer as suas conjeturas e tirar
suas conclusões. O certo éque Nico cChiquinha teriam vivido uma história de
amor capazde produzir o lirismo da poesia.
Decidido o suicídio, os amantes haviam preparado o desenlace e produzi
do, com antecedência, uma série de missivas de adeus. Dois diasantesde ingerir
estricnina, ambos haviam redigido e assinado o seguinte bilhete: Declaramos
que nossa mortefoi em conseqüência de havermos ingeridoforte dose de estricnina;
fiTsemos este para que não suspeitem um crime. Porto Alegre, 1.° de setembro de
1896.Antônio Borges de Lima —Francisca Gama.
No dia seguinte, na véspera do desenlace, noticiava o Correio do Povo, os
amantes haviam redigido juntos umadeclaração, a demonstrar que não temiam
a morte: Estamos satisfeitos, como se nada houvesse, temos gozado muito, chegou o
momento, adeus mundoP Já a Gazeta da Tarde datava o bilhete de 2 de setem-
1 14 SANDRA JATAHY PESAVENTO
bro, afirmando que fora escrito após a ingestão do veneno/'' Detalhes que, a
rigor, não alteravam o fato em si, mas que para os leitores alimentava o imagi
nário da morte.
Aos pais, o suicida pedia perdão e denunciavaa censurae a moral social que
não admitiam o seu amor:
[...] Peço-vos perdão do que acabo de cometer, mas era meu destino e devia
cumpri-lo, poisque um amor que nãopodia aparecer levou-me a este ato de deses
pero. Amei loucamente uma mulher e esta tinha-me tanto amor como só podia ter
minha ynãepor issojulguei mais acertado por termo a meus diasa terdeseparar-me
dela pois que a sociedade não permitia que eu aparecesse com ela sob pena de ser
considerado indigno de seu seio. Sociedade infame onde existe e impera a luxúria
emseu auge equepretendeu aniquilaraquele quenão possui dinheiro e quepor isso
não é digiio de si
Na carta de despedida, pois, Antônio Borges Lima reafirmava seus moti
vos: a incompreensão social e a hipocrisia dos valores. Mas, quando falava da
falta de dinheiro, o suicida se referia à pobre Chiquinha, sem recursos e sem
perdão pelas faltas que cometera ou a ele, quelargara o emprego? Se tivesse mais
dinheiro, Nico poderia talvez dar um outro desfecho ao caso? Ou a denúncia
se dava porque ele não era da elite, vivendo em um mundo regido por valores
construídos pelos bem-nascidos da cidade?
Prosseguindo, o suicida ameaçava vingar-se desde o além, caso não fossem
cumpridas as suas determinações e os seus últimos pedidos:
[...] Peço-lhes meuspais quefaçam meu enterro mais modesto possível, assim
como o dela e que seu corpo seja enterrado junto com o meu, na mesma ocasião.
Caso não queiram cumprir os pedidos que vosfaço, então considerem-me como um
estranho não devendo chamar-me defilho. Sefor uma realidade a imortalidade
da alma, a minha vos perseguirá, eternamente, caso meu corpo não seja enterrado
com o dela, que me amou muito e que morreu por mim. Ádeiu, meus queridos pais
lembre-se [sic] sempre do vosso amado Nico Borges. Peço ainda quenunca odeiem a
Chiquinha, mas devem amá-la comofilha. Nico. Qtiero, repito, que meu corpo seja
enterrado com o dela na mesma sepultura. Nico^^
Nesta carta, o moço suicida não apenas reitera o seu amor como busca
preservar, junto aos pais, a memória de Chiquinha. O pedido da simplicidade
no enterro revela, por outro lado, a busca de igualar-se, na morte, com aquela
que, em vida, por condição moral e social, não pode ser aceita a seu lado. A
insistência para serem enterrados juntos foi cumprida apenas em parte. Nico
foi velado na casa dos pais, Chiquinha na Santa Casa de Misericórdia, sendo
o enterro custeado por um amigo do suicidado. Anunciava o Correio do Povo
que, não sendo po.ssível colocá-los na mesma sepultura, foram os dois corpos
depositados em carneiras contíguas, tmia sobre a outra, dentro dos muros do ce
mitério.^'^
MORRER DE AMOR; NECO, CHIQUINIIA E A FSrRf/VC.WX.i l 15
Nico pedira ainda para serem postos no seu caixão três retratos da amada
e mais um amorperfeito^ trançado com os cabelos de Chiquinha, em corres
pondência com as práticas e os códigos românticos dos enamorados de então.
Solicitava ainda aos pais que mandassem reproduzir um retrato seu que estava
nolavatório e que, juntocom as fotos dela mais a tal trancinha, fosse tudo pen
durado em um gancho na sepultura comum.®®
Outras cartas do romântico Nico revelam um lado incrivelmente objetivo:
aos demais conhecidos e parentes o suicida revela medidas de ordem prática: ao
pai recomendou não usar a pequena balança onde pesara o veneno, acrescen
tando recomendações acacianas c mesmo irônicas —"cautela e caldo degalinha
nãofaz mala ntnguém"^^ dispunha ainda para entregarem à mãe, como recor
dação sua, uma estátua de Santo Antônio.
Em carta ao primo Porto, que trabalhava na empresa de Correios e Telégra
fos, além de mandar abraços à tia Luiza a à Jtilia, pedia que o primo fosse a seu
enterro e lembrava-o do abraço que lhe dera na esquina da Rua da Ladeira: fora
uma despedida... E, como arremate, o cuidadoso suicida pedia ainda que ele
passasse um telegrama aos pais de Chiquinha, avisando-os de sua morte...
Em mais uma carta aos pais, pedia perdão pelo ato cometido, causador de
acerbo desgosto^ dizia ter nascido sob a proteção de uma má estrela e, quanto à
Chiquinha, pedia paraque não a responsabilizassem por sua morte: Elaamava-
me loucamente c desinteressadamente. Era a íncamação deMargarida Gauthier.^^
Novamente, desta vez por partede Nico, a identificação com o mito literário se
cumpre. O novo Armand Duval se dispõe a seguir na mortea sua Marguerithe,
ícone da tragédia romântica, a simbolizar o amor impossível.
Para a tal noiva, A.V.^ da distintasociedade locaL Nico dizia ser indigno do
seu amor e pedia perdão, maneira polida e derradeira de dizer que morria de
paixão por outra. Finalizando a carta, em um RS. inusitado, o atormentado
suicida parecia recuperar as trilhas da racionalidade narrativa, em curiosa auto-
análise da escrita: E7icontrareis alguns períodos sem nexo, mas édesculpdvel, por eu
estar debaixo de horrível impressão. —Nico.^^ E, cm derradeiro bilhete, escrito em
um quartode papel azul, a recomendação: Nãotenteyn salvar-me, porque tentarei
outra vez morrer. —Nico.^"^
O drama do casal de amantes é bastante rico para a análise das representa
ções sociais da época. Estão reunidos todos os ingredientes de uma tragédia, tal
como a dos textos daliteratura daépoca: desnível social, juízos morais, barreiras
imaginárias e concretas e toda uma gama de representações sobre os dramas de
amor. Nico não é da elite, mas pertence ao grupo dos cidadãos e com eles co
munga dos valores que lhe apontam ser aquele amor impossível.
Todos estes detallies, estetizados nas páginas do Correio do Povo, mobili
zaram a opinião pública e fizeram com que as edições do jornal se esgotassem,
além de provocarem uma ida cm massa à sede dojornal, em cuja porta fora afi-
116 SANDRA JATAHY PESAVENTO
xado Oretrato da suicida. Para ali haviam acorrido "centenas depessoas, atriosas
de conhecerem a fisionomia da desveníurada vitima de tim amor infeLiz'.^^
O retrato de Chiquinha^^ nos exibe o rosto de uma belajovem, com rosto
oval, grandes olhos que miram um ponto distante, de viés, tem o nariz bem
torneado, a boca carnuda, os cabelos crespos penteados em chignon, no alto
da cabeça e com um pequeno cacho a desprender-se na testa. Chiquinha tem
todo o rosto à mostra com este penteado que ergue os cabelos para o alto, e usa
grandes argolas nas orelhas. Apresenta-se com um vestido escuro, arrematado
junto ao pescoço por uma espécie de broche ou pregador claro.
A foto permite ver que o vestido é adornado no peito com pregas de um
arremate a formar como que flores de tecido nas extremidades, o mesmo que
enfeia a gola, rente ao pescoço. Igualmente as mangas são encimadas por um
babado junto ao ombro, que ajudam a compor o realce de uma cintura que se
advinha como sendo fina, espartilhada. O escuro do traje nâo permite ver cla
ramente se a moça traz ainda uma espécie de colete sobre o vestido e que ajuda
a moldar o corpo ou se este é um detalhe do corte de seu vestido. Sem dúvida,
Chiquinha é agradável à vista, é jovem e pode-se mesmo dizer que é bela.®"
E Neco? Uma foto que dele temos®® nos mostra um rapaz de aparência
muito jovem, esbelto, rosto de traços suaves, a posar em um estúdio fotográfico.
Parecia mesmo ter os grandes olhos sonhadores com que foi descrito. Cabelo
liso, feições regulares, Neco é sem dúvida um moço bonito. Posa vestido com
casaca de cor mais escura que a calça, que entreaberta deixa ver o colete. Seus sa
patos são escuros e Neco se apresenta de gravata, usando ainda a camisa branca
de colarinho alto, tal como se usava no século XIX. O rapaz faz pose no estúdio
fotográfico. Apóia-se em uma pequena mesacircular, disposta a seu lado, tendo
às costas um falso muro ou balaustrada com colunatas e florões, a compor uma
cena.
siva para a época. A "ansiedade" da espera nos indica que a mesma teria sido
alardeada e anunciada de antemão pelos próprios autores. E, neste sentido, é o
próprio Catálogo da Livraria Americana que dava a pista para o entendimento:
A 'Estricni?ta' é a narração verdadeira e triste dos amores desveiiturados de dois
jovensque emPorto Alegre, capitaldoRio Grande doSul, envenenam-se, ingerindo
grande quantidade do tenivel tóxico que deu nome ao livro. Escrito com grande
vigor de estilo, cheio deperipécias românticas, apresentando episódios reais da vida
de dois amantes, o novo livro é digno de leitura e recomenda-se ao bom gosto do
ilustrado público.'^^
A arte imita a vida? A ficção é, pois, baseada no real? Ou, atualizando o
debate, as fronteiras da história e da ficção são tênues mesmo?
O que é vendido como romance é a história de algo acontecido e transfor
mado em narrativa literária, o que explica a sua ampla recepção pelo público.
O texto ficcional se entrelaça com a realidade do acontecido: Antônio, ou Nico
Borges Lima, o suicida, vira Neco Borba, e Francisca, a desgraçada Chiquinha,
comparece como Chiquita. Os autores, como se vê, praticamente nada muda
ram da vidapara a ficção, salvo fazendo pequenas adaptações. SeChiquira-Chi-
quinha continuava a morar na mesma Riachuelo, ou rua da Ponte, o Neco do
romance figura como tendo comprado o veneno e não o roubara da farmácia,
como fora anunciado nos jornais.
No encontro da vida com a arte, o romance se inicia com uma encenação
de "A dama das camélias", no Teatro São Pedro, tal como o Correio do Povo noti
ciava em 2 de agosto de 1896: reapresentava-se, com sucesso, pela Companhia
Modena, a peça comovedora que "não envelhecia e que tão boa acolhida tinha
por parte da população local.^^
Na platéia, Chiquita se debulha em lágrimas, diante de sua identificação
com a personagem. Não por acaso, o drama se inaugura face o outro drama
tantas vezes encenado nos palcos do teatroda cidade, que narra a história de um
amor proibido pelas convenções do social. Chiquita soluçava na platéia e o pú
blico escarnecia do seu pranto. Contudo, adiantavam os autores, a platéia não
sabia que o dramacujarepresentação assistia nãoerasenão oprólogo de umoutro
drama de amor, real, vivo, palpitante (...) dramadequeem diaspróximos coireria
a noticia pelas colunas das gazetas, pelos cafés, pelas casas, pelas ruas, peLis praças,
bordada de milperipécias românticas, jnatizada de mil caprichos poéticos.'^'^
Marguerite Gauthier era bem ela, na sua dor e sofrimento! Chiquinha era
de poucas luzes, e não sabia o fim da pobre Marguerite Gautier... Quando Neco
convidou-a para irem embora, no fim do primeiro ato, sem esperar o final do
espetáculo, ela perguntou, trêmula, ao amante:
— Como termma isso?
—Naturalmente, respondeu ele, como devem terminar todas estas histórias ro
mânticas: pela morte de um dos aynantes.
MORRER DE AMOR: NECO, CHIQUINHA E A FSTRHYGWXA 1 19
das camélias, por exemplo, era tâo sensível que somente suportava o perfume
desta flor, a cainélía... Chiquinlia é também como uma criança, a receber de
Neco informações sobre o mundo e ou outras indicações sensíveis, sobre como,
por exemplo, apreciar a beleza da paisagem.
As aproximações entre o drama narrado e esta celebrada heroína romântica
que é Marguerithe Gaurhier são por sua vez, recorrentes na literatura. José de
Alencar, em Luctola, coloca a personagem que dá título ao romance —no caso,
uma jovem decaída - a ler a Dama das Camélias e a tecer considerações entre
sua situação e a de Marguerithe. Da mesma forma, seu amante Paulo, se coloca
a questão que o angustia: Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o
amor? Sonharia com as afeições puras do coração?^^^
Tal como no drama literário parisiense ou na tragédia romântica fin de
siècle de Porto Alegre, é o amor e a morte que redimem Lucíola, que sucumbe
no parto. Não seria o destino de outras tantas mulheres imortalizadas pela lite
ratura do século XIX, como por exemplo, a Ana Karenina de Tolstoi? O peso
da moral social é mais forte, e o perdão para o adultério ou para a prostituta
arrependida só encontra redenção na morte.
Nesta medida, há também um outro romance incluso e implícito, a entre-
cruzar-se com a história, que é o Gustave Flaubert, Madame Bovary.
Sem dúvida, a história de Emma Bovary é conhecida, e implica em uma
situação diferencial muito clara com relação ao caso de Neco e Chiquinha: o
romance aborda a iníidelidade conjugai e a aspiração de uma mulher de ser uma
outra, ou seja, de levar uma outra vida e ter uma outra performance, orientada
pelos valores do romantismo. O bovarismo, como mito de desejo, fundamenta
o romanesco moderno com personagens que experimentam uma vontade de
alteridade. No caso, Emma aspira viver um tipo de mulher distinto, construído
por seu imaginário que se alimenta de leituras. Já os dramas psicológicos de
Chiquinha são de outra ordem, e passam por seu passado e sua origem social,
que a condenam a não ter um futuro.
Entretanto, gostaríamos de tratar a aproximação de Madame Bovary com
Estrycnina a partir de uma jnise em ahime, dada por duas situações que com
parecem nas duas histórias: a da cena do teatro e a da cena da morte das duas
heroínas.
Pois bem, no caso da Estrycnina, tudo começa sob o signo do trágico-
romântico, como foi apontado, com o casal a assistir no Teatro São Pedro de
PortoAlegre a encenação da peça A Damadas Camélias, peça paradigmática do
amor impossível dada à diferenciação social e moral dos casais envolvidos.
Madame Bovary apresenta também uma cena no teatro, com Emma e
Charles Bovary a assistirem a encenação do romance de Sir Walter Scott, Lúcia
de Lammermoor, na ópera de Donizetti. A situação, mais uma vez, não é litera-
riamente inovadora: José de Alencar coloca suas personagens no teatro a assistir
MORRER DE AMOR: NEGO, CIUQUINIIA E A £.ST/?//)'C\7,V,-í 12 1
Era ema cidade aldeia? Náo exatamente, pois há nela um lado metrópole,
no plano das sensações daqueles que a vivem. O reduto desta experiência de
modernidade urbana é o centro, com a sua praça da Alfândega, ofooting na rua
da Praia e, sobretudo, a "multidão". Neste enclave de modernidade, as vitrines
são resplandecentes e multicolores^ para o que contribuía a iluminação elétrica do
centro, cujas lâmpadas, "como olhos eshugalhados de moribundos^ iluminavam a
rua a trechos, com a sua luz vivíssima eparada.'
Nesta agitada Rua da Praia, com as luzes das vitrines, os cafés e confeita
rias, percorrida por Chiquitaà procura de Neco, tem-se uma impressão de vida
febril e de festa:
Como era noite de retreta, uma banda de música tocava na praça da Alfân
dega, em aija alameda mal iluminada grupos de moças e de rapazes passeavam,
acotovelando-se, entre monossilabos secos e risadinhas disfarçadas, olhares indife
rentes e olhares brejeiros. Ao pontear a praça, Chiquita parou, nas proximidades
da Colombo, donde saiam tinidosfiníssimos de copos, estampidos de tolhas, ruídos
de cadeiras arrastadas, de mistura com um vozear contínuo e surdo. [...] Sempre
absorta, Chiquita seguiupela ruadosAndradas, que aquela hora de movimentação
e de ruído, sob a luzseca e áspera das lâmpadas elétricas, resplandecència gloriosa,
no seu orgulho triunfante deflordecapital, com doirados matizes de civilização e
de luxoV^^
No romance, os autores desenvolvem aquilo que, nos jornais, fora apenas
dito de passagem: que Neco tinha uma noiva, de outro nível social e, sobretudo,
moral, do que Chiquita.
A dor desta é enorme ao saber pela boca do próprio Neco a existência de
uma outra, cm mágoa tão intensa como quando surpreendeu o casal de noi
vos a passear, de braço dado, Qm footing elegante, na Rua da Praia. Eis, pois, o
clássico triângulo armado no romance, triângulo este subestimado nos relatos
de jornal.
E, neste ponto, os três autores fazem uma opção entre o par amoroso de
personagens. Chiquinha é a vítima, a mais reta de caráter, a mais pura de cora
ção. Há momentos em que Neco dá razão à sociedade e suas convenções, de ser
exigente eesatipulosa, ao menos tta aparência.^^^ Necoé mais fraco, e vacila sobre
a atitude a tomar, pondo em causa suaspiegiices de namorado de mulherà toa}^^
e levando em consideração os conselhos de amigos, que lhe diziam não levar a
sério o amor dessas mtdheres, que não passava de mero capricho.A conotação
de denúncia moral, revelando a fraqueza deste Neco com dúvidas, influencia
o público leitor, que reconhece onde está o mais fraco e injustiçado, tomando
partido. Neco só se redimirá pela morte, mesmo que arraste com ela Chiquita.
Neste centro de Porto Alegre, descritocomo implantado no coração de uma
metrópole, Chiquinha vara a noite, à procura do amante que anda sumido, este
mesmo Neco que lhe anunciara estar comprometido com uma moça. O texto
MORRER DE AMOR: NEGO, CHIQUINHA E A ESTRHVCMXA 125
à natureza. Não é por acaso que, antes de cometerem o suicídio, Neco leva a
amante para um passeiode bonde que destacamais a paisagem que a cidade. Ao
longo desta derradeira viagem, que vai da rua da Praia ao Menino Deus, com
largo trecho pela beira do Guaíba, embora Neco chame a atenção de Chiquita
para os prédios que se avistam —o Gasômetro, o asilo Santa Teresa, o Asilo de
Mendicidade, a estação da estrada de ferro da Ponta do Dionísio, o palacete
da Baronesa, a ponte dos Cadetes, a ponte do Menino Deus—é, sobretudo, o
aspecto paisagem que conta mais.
Assim, os destaques ficariam por conta do magnífico pôr-do-sol, com suas
cores deslumbrantes, ou com o enquadramento dos prédios, tendo o recorte
da costa, o Guaíba, o crepúsculo e a vegetação a comporem esteticamente a
paisagem: E o morro lá em cima, muito alto, como uma seritinela destacada guar
dando a casaria branca, que se esconde sob suas abas verdes. Como tudo isso é belo,
Chiquita!
Como cidade moderna. Porto Alegre oferece contrastes e possibilita o dis
tanciamento crítico para se repensar. Os autores do romance, no caso, se auto
rizam ter este recuo que lhes permite inserir nesta tragédia romântica e urbana
os dramas da vida.
Acelebração do campo e da paisagem dosul era, porsua vez, recorrente na
literaturada época entre os autores locais, desde o Partcnon Literário da década
de 70 daquele século XDC, a celebrar as virtudes do ruralismo, do gaúcho e da
terra. A inovação do romance dos três moços aurores é a de ter invertido o cam
po da ação. Espécie de primeiro romance verdadeiramente urbano, a paisagem
não estáausente da trama, e mais do que um pano de fundo, elatoma partee dá
sentido à performance dos personagens. E, mais do que isso, ela trabalha com
referências próximas ao universo dos leitores.
Enquanto discurso da cidade-aldeia ou de cidade-natureza, a obra identifica
lugares emblemáticos que articulam a paisagem com a trajetória designificados
destes espaços no tempo. Tome-se o exemplo da praça da Harmonia, conhecida
por todos da cidade. E nela que Neco Borba vai dar, a remocr o seu drama pes
soal de amar uma mulher com passado. Praça dos enforcados e dos poetas, é sob
suas árvores seculares e em bancos de pedra, em face ao rio, que Neco se decide
pelo suicídio, resgatando o clima trágico e romântico do local.E lá também
que volta mais uma vez, quando, sem destino, perambula pela cidade, a pensar
na perspectiva de induzir Chiquita, grávida, a cometer o suicídio. E mais uma
vez o crepúsculo que se anuncia, com o sol a agonizar e a por tons avermelhados
no rio, onde passam os navios.
Neco é compulsivamente atraído pela tristeza comunicativa que vinha das
árvores da praça, do silêncio do sitio, da quietude do Mais do que um ter
ritório da cidade, mas um lugar —um espaço dotado de sentido —a Praça da
Harmonia atua sobre o atormentado Neco, fazendo cumprir uma espécie de
MORRER DE AMOR: NECO, CHIQUINHA E A ESTRUYCNINA 127
destino fatal: outrora praça dos enforcados e depois dos suicidas, é lá que Neco
se decide a tomar veneno junto com sua amada.
Nesta medida, Estricnina nos reporta a uma postura nitidamente fin de
siècle, que é a da obsessão pela morte e, particularmente, pelo suicídio. Diante
desuas angústias existenciais e do preconceito social queele não ousa enfrentar,
Neco não vê saída para o seu amor senão o suicídio, ou melhor, pelo duplo sui
cídio. Ato, no seu entender, de coragem, que os redimiria diante da sociedade
que os condenava e que salvaria o filho que Chiquita trazia no ventre de um
destino já traçado e amargo: "o suicídio é a mais bela demonstração da superiori
dade humana"
Neco reproduz para Chiquita, com detalhes, os efeitos do veneno e o tipo
de morte que os aguardava, associando-o a um prazer intenso e profundo, só
comparável ao prazer sexual de um defloramento. Vai ao encontro de uma ob
sessão literária e a uma espécie de "legitimidade" do ato, que atravessa o final
do século, exprcssando-se na postura decadentista de que "não há mais nada a
fazer ou a esperar do mundo".
A tragédia da estricnina parece ter sido aquela que mais mobilizou a po
pulação de Porto Alegre no final do século, haja vista o seu uso literário, com
sucesso estrondoso de público e que gerou outros suicídios em cadeia...
Com uma tragédia, era possível compor uma crônica. Com um segredo,
montar uma intriga, mas dando as pistas para o leitor deslindar a identidade
dos protagonistas. Mesmo as crônicas policiais eram, assim, páginas literárias
que se ofereciam ao público e induziam às perguntas: quem será? Como foií
Onde?
Aobra, contudo, mereceria algumas críticas, pontuais e políticas ou de
fundo estético eliterário. Acoluna Peixe Elétrico, d^A Federação, jornal oficial do
Partido Republicano Rio-Grandense, referia ser o romance uma obra maragata,
por fazer críticas à república em certa passagem. Em um Rio Grande recem saí
do da Revolução Federalista, os ânimos ainda estavam exaltados, projetando-se
da vida para a ficção...'^"
Já um crítico literário do Correio do Povo, após divagar sobre oacanhado
meio intelectual vigente, ainda sem expressão, e declarar-se constrangido por
ter de opinar sobre obras que discorriam ingenuamente sobre os estados dalma,
acabou por considerar a leitura confortante..}^^
Mesclando recordações pessoais com um texto apreciativo —pois ocolunis
ta conhecera os dois amantes—a crítica não deixava, contudo, de ser feita: trata-
se de um livro que, no gênero, não constitui uma novidade; não deriva da espon
taneidade criadora do talento pessoal: é, antes, feito da sugestividade acidental de
um desses determinados casos interessantes, magníficos de exploração, especialmente
sob oponto de vista do sucesso mercantil, para oeditorperspicaz, etão ao sabor do
público que lhes inspira sôfrego ocapitoso perfume que enlanguece numa delicia
128 SANDRAJATAHY PESAVENTO
de seu ato, pois uma vez lançaiido-se às águas, pedira por socorro, aos gritos.
Depois de são e salvo, teria dito para os curiosos que acorreram ao local Desla
vez escapei; masse Tuliana não me namorar, eu desapareço 7iesses mares..
Cômicas ou trágicas, as tentativas de suicídio eram pois, reiteradas na ca
pital rio-grandense. Por vezes, os enamorados eram atendidos a tempo e con
seguiam salvar-se, mas por outros, nesta virada do século, os envenenamentos
davam cabo de muitos suicidas por amor na capital gaúcha, deixando cartas de
despedida, tal como no caso dos "célebres" Neco e Chiquinha.
No ano de 1899,'^^ um outro caso seria bastante comentado nos jornais da
cidade; o dc Diamantina c Álvaro, drama que combinou assassinato e suicídio
em uma tragédia de amor.
Ela, Diamantina Flora de Araújo Silva, fora deflorada pelo artistafunileiro
Gabriel José da Silva, que trabalhava na empresa de Domingos Conde. Instado
pela polícia, Gabriel casou com a seduzida e dessa união nasceu uma criança,
Fredegundes, mas o novo lar não foi feliz... Como o marido não lhe dava di
nheiro para o sustento. Diamantina o abandonou e passou a prostituir-se,
tornando-se amásia de Álvaro Antônio Nunes, moçosolteiro, de 20 anos, con
dutor de bondes da Companhia Carris Porto-Alegrense. Ora, o pai deste rapaz,
Simplício, também funcionário da mesma Companhia Carris, como capataz da
estação central, desaprovava a violentapaixão do filho pela rapariga de vidafiicií
e o aconselhava a deixar a amayícebida [sic], argumentando que uma ligação de
tal natureza lhe seria prejudicial.
Mais um drama romântico a explodir na cidade, pois o amor contrariado
fez o casal conceber um pacto de morte: Álvaro mataria Diamantina e, em
seguida, se suicidaria. Para tanto, Álvaro comprou um revolver na casa Rist, na
Rua dos Andradas, e Diamantina foi despedir-se do filho Fredegundes, que era
criado por sua tia materna, Maria José de Castro, residente na Rua Pantaleão
Teles n.o 79.
Sigamos os passos desse drama protagonizado por gente humilde: uma jo
vem seduzida, casada, prostituída e amasiada e um condutor da Companhia
Carris de bondes. Os espaçosonde a tragédia se dá são aquelesda Cidade Baixa,
na vizinhança com a margem do Riacho, habitado por gente simples. Os valo
res, contudo, seguem aqueles do folhetim: a situação criada por um amor im
possível, pois, mesmo pobre, o pai do rapaz nãoconsente na união do filho com
a moça decaida. A única opção possível para o casal de amantes parece ser o
pacto de morte, que o jornalista, com requintes literários, passa a narrar, como
se a tudo tivesse presenciado. A literatura insiste, pois, em invadir a vida, e os
jornalistas se ensaiam a escreverpáginas romântico-trágicas.
A trágica despedida de Diamantina a Fredegundes —"a maneira porque es
treitou ofilho nos braços, as lágrimas que derramara^'— despertou suspeitas na tia,
tal como o retorno de Diamantina pouco depois, pedindo para que "a avófosse
MORRER DE AMOR; NEGO, CHIQUINIIA E A ESTRHYCNIXA 133
Jáa carta deÁlvaro, truncada pelos erros de umaescrita precária, vai noutra
direção. Seus poucos e pobres bens, que dão a ver a precariedade das condições
de vida do casal —lembremos as cadeiras recentes e que não haviam ainda sido
pagas por Diamantina —, ele quer que sejam vendidos em proveito de Frede-
gundes. Mas, quanto ao ato cometido, o rapaztraz à tona todo o seu rancor. Dá
a pensar que o suicídio é uma forma de vingançacontra os pais, e espera que os
mesmos se roam de remorsos... Na carta de Álvaro, não só o pai é citado, mas
também a mãe entra em cena como culpada, responsável por um puritanismo
extremo que não queria vê-lo envolvido com mulheres:
Meu querido pai e mãe. Saudades minha muita [sic], por causa sua é quefiz
isto e minha companheira, que a tanto tempo vivia comigo. Você mande buscar as
minhas coisas, a cama, uma bacia, umjarro, enfim tudo quemepertence, bote tudo
no leilão e mande entregar para a tia da Diamantina para seu filho Fredegundes.
Nunca deidesgosto àfajnilia, você sempre mefoi ingrata. Você de mau interior [sic]
por me ver andar em companhia dela. O único culpado de minha morte é você
porqueeu com 20 anos a senhora não queria que eu conhecesse mulher. Saudades
deste seu filho Álvaro. Minha mãe queridafoi ingrata para seufilho, vir [sic] a se
matar. Aehtis companheiros. Alvaro".^^^
Os jornais mobilizavam diante de mais um caso. Diamantina recuperava-se
na Santa Casa, mas Álvaro sucumbiu diante dos graves ferimentos, sendo seu
corpo transpotado da Santa Casa para sua residência, a pedido da família.''''
O cronista do Jornal do Comércio anunciava que, quando da publicação da
notícia, em 7 de março de 1899, se realizava o "enterro do desgraçado moço viti
ma de sua paixão" <\\ic cometera o suicídio na véspera, mas Diamantina estava
ainda com vida. No dia 8 de março o mesmo jornal noticiava que a "desditosa
amante do condutor"se. achava um tanto melhor, relato que lhe chegara por um
dos jornalistas que fora visitá-la na Santa Casa, estando os médicos que a trata
vam esperançosos em salvá-la."*" Álvaro morria, Diamantina sobrevivia.
Diamantina, a vítima, a moça decaída, saía do seu anonimato para tornar-
se notícia, acompanhada diariamente pelos leitores do Jornal do Comércio\ Ou
seja, suicida frustrada, ganhava visibilidade, tinha voz...
Parecia mesmo que moças de vidafácil eram potenciais suicidas e os casos se
sucediam, expondo a quase banalidade dos dramas: Servindo-se de umapequena
dose de acich sulfúrico, tentou liquidar a sua existênciaJosephina de tal, cujo nome
deguerra no mundofácil é Finoca. Socorrida a tempo, hoje acha-se livre de perigo
eprontapara outra...tentativa.^^^
Mas os suicídios não cessavam de acontecer...Em 25 de julho de 1900, a
Federação noticiava que
Dois suicídios previamente premeditados e levados a efeito com a maior cal
ma efirmeza de ânimo deviam surpreender na manhã de hoje os habitantes desta
capital, decerto tempo a essa parte acostumados a continuamente encontrar relata-
MORRER DE AMOR: NEGO, CHIQUINIIA E A ESTRHYCS'I\'A 135
dos na imprensa diária, com todas as minudatcias, os atos de desespero dos que se
descartam da vida, violentamente, a tiros de revolver ou com a ingestão de tóxicos
poderosos e de efeitos imediatos}^
O duplo suicídio se dera na Rua da República, rua onde há pouco tempo
viera a falecer, por ingestão de ácido fênico, Alonso de Mello, moço distinto e
muito apreciado, suicida por amor e para cuja salvação haviam sido infrutíferos
todos os recursos empregados pela ciência. A tragédia que ora ocorria resultará de
um pacto de morte firmado entre Francisco Weimann, moço de 22 anos que
era pertencente a família de tratamento, freqüenta?itio a melhor sociedade, com
uma posição definida que Uye garantia os meios para uma existência honesta e a
jovem Oscarina de Souza, rapariga muito cedo perdida e entregue à prostituição,
inexperiente, à mercê dos embates daspaixões detoda a natureza.^^'^
Francisco Weinmann, era muito conhecido na capital, lembrava o jornal:
Estudante cUfarmácia, depoisfannacêutico, foipormuito te^iipo encarregado
da Farmácia que à rua da Figueira, esqtiifia da Concórdia, tiveram os srs. Daudt
& Leal.
Adquiriu depois, por compra, a Farmácia Providência, à rua dos Andradas n.
405, que pertenceu aosr. Arlindo Caminha, antes de seguir estefarmacêutico para
a capitalfederai
Não era primeira vez que Oscarina tentava suicidar-se. Cerca de um ano
atrás, quando residia na Travessa do Carmo, ela ingerira um outro veneno em
função de uma paixão amorosa, mas, socorrida a tempo, sesalvara.
O jornalista elaborava um texto sentimental para explicar as razões que
haviam levado o casal a conceberem o duplo suicídio: fora a relação intima que
acabou por unir os amantes de corpo ealma, num mesmo sentimento afetivo de
coração^'^^ que os faria, com o tempo, enfrentar a distância social e o preconcei
to. De início, o fato de ser um rapaz bem situado socialmente e manter uma
relação com uma rapariga de proceder equívoco não parecia incomodar ojovem
Weimann, mas com o passar do tempo —e o maior envolvimento amoroso,
como os leitores podiam imaginar —começou a mostrar-se apreensivo. Fez com
a amada um pacto de moite, para o que o fato de ser farmacêutico lhe dava
certas facilidades, como, por exemplo, o fácil acesso ao veneno.
Assim, amorte éprepara em ritual necessário. Chegara mesmo aconvidar
alguns amigos para assistirem seu enterro (!!), o que sem dúvida denota o cui
dado com o momento público e derradeiro da vida...
Ocasal ingeriu oveneno na casa de Oscarina e, durante amadrugada, puse
ram em alarme a companheira que com ela residia —uma outra prostituta como
ela —fazendo acudir mais gente que buscou socorro para os dois amantes. Com
Oscarina tudo foi inútil, pois ainfeliz sucumbiu aos efeitos da alta dose de veneno
ingerido, por entre as convulsões da morte a mais horríveV^^ Ja Francisco Wein
mann escapou da morte imediata, talvez por ter sido menor a dose tomada...
I36 SANDRA JATAHY PESAVENTO
habitava em companhia desua mãe, uma velhinhade nome Luiza Alves de Souza,
o prédio n.° 63 D da nut da Republica, circtinscrição judiciária. Acentuou-se
tanto esta aproximação, que Weimann, já tomado de amores pela rapariga, não a
podia mais abandonar. Perdeu até oseu recatado modo de moço ingênuo e compor
tado, fazendo suas visitas ostensivamente esem escrúpulos de qualquer espécie.
Assim, os costumes e a moral da época são expostos com naturalidade
pelo agente policial que nos retrata a situação: Weimann ultrapassara os limites
aceitáveis pela sociedade: era visto ostensivamente na casa da rapariga —o que
eqüivale dizer que não devia procurá-la mais furtivamente, à noite, mas sim a
luz do dia, e com freqüência —e acabara perdendo recato e ingenuidade. Ou
seja, a moça prostituída o fizera perder a inocência!
Notemos ainda a situação de Oscarina: mora com a mãe velhinha —que
provavelmente sustenta através do meretrício queexerce —em um prédio—63 D
—da Rua da República, indício certo de que habitava tun cortiço, com suas
casinhas numeradas. Oscarina é, de fato, deserdada e condenada pela vida.
O pai do rapaz, Francisco Weimann, preocupado coma falta de escrúpulos
deste e também com a sua inexperiência —o que confirma a visão jáinsinuada
de que, em princípio, Weimann é vítima de Oscarina —chama-o à realidade:
mostra-lhe que não podia comprometer seu nome nem desviar-se de seus deve-
res, alterando a sua conduta nasociedade e enveredando porum caminho que lhe
pudesse ser perigoso eprejudiciaU^^ A boa sociedade tem suas regras e normas, o
rapaz tinha um nome a zelar e era pertencente a uma família de respeito, além
de ter um futuro pela frente, que podia vir aser comprometido. Resultado desta
conversa? O rapaz ficou chocado, mas modificou sua conduta: não deixou de ir
à casa dc Oscarina, mas com moderação...
Mas Francisco tornou-se triste e calado, o que fez o pai voltar a carga de
recriminações e o moço, finalmente, deixar de freqüentar a casa de Oscarina,
oque muito magoou a esta porficar sem aproteção do seu homem."" ^Notemos a
avaliação do proceder: sem dúvida Oscarina sentiu a ausência do amante, mas
isto se deveu antes àperda de proteção do que aum amor verdadeiro. Os julga
mentos inseridos no relatório, que mostram os estados d'alma dos personagens,
induzem a avaliação dos procedimentos.
Deixar de ver a moça por imposição paterna, contudo, acentuou a de
pressão de Weimann, que desde sua farmácia na rua dos Andradas começou
amanifestar, aos amigos, intenção de acabar com avida, perguntando a todos
qual oveneno mais forte. Estranho proceder, pois de fato quem deveria saber
era justamente ele, o farmacêutico.
Decidido no seu intento, um dia Weimann saiu de sua farmácia levando
duas doses da terrível estricnina. A partir deste momento, entram cm cenas as
diversas testemunhas destas últimas horas do drama, até o seu desenlace final.
Muito pcnsativo eprofundamente tíiste orapaz passou pela Rua General Andrade
l 38 SANDRA JATAUY PESAVENTO
Afin de siècle no sul do Brasil reservaria ainda outros casos dramáticos aos
leitores dos jornais: o de Paulo Gentil dos Santos, moço de 24 anos, que inge
rira grande quantidade de ácido fênico, devido a um desastroso romance com
Izabel, uma mulherde vidafácil}^^
Logo, mais um caso de desnível social e moral a interpor-se diante de um
casal de amorosos: ele, conhecido por trabalhar no comércio da capital, se acha
va agora com seu irmão a dirigir os negócios do armazém Itaparica, de seu pai
Pedro Cássio dos Santos, estabelecimento situado na Rua Riachuelo e que man
tinha boa freguesia; ela, a tal moça que morava em prédio da mesma rua e que
acabou atraindo o jovem para a sua casa mesmo em horas de serviço. Um dia,
Paulo foi achado morto em seu quarto: A camisa de meia que vestia estava toda
rasgada no peito ondese notavam grandes sinais de escoriações, feitas pelas unhas,
no momento horrível, naturalmente, de sua agonia}^^
Junto ao corpo, jaziaum frasco azul, contendo regularquantidade de ácido fê
nico, que os jornalistas tinham ouvido dizerter ele comprado para desinfetar a casa.
Sobre tuna mesa existente no armazém foi encontrada, junto a uma garrafa
de cerveja Becker, algumas cartas, endereçadas à amante:
Querida Issaheh esta cartinhatem porfim orientar-te os trabalhos quepasso em
te amar; como sabes, meu pai vive contrariado em saber que te amo e que te amo
loucamente, com sinceridade por tanto me desctãpa não leves a mal meu procedi-
mento, morro por me ver coagido por meupai e morro com muito maisprazer por
chegara tua porta ds 11 horas da noitee ninguém responder. Adeus, querida Izabel,
subscrevo-me teu —Paulo Gentil dos Santos.
Nota —Escrevi no meujuízo natural, quanto aos comentános tenho certeza-
A carta era de molde a revelar que, além das contrariedades do pai, que
condenava o romance, a tal moça de vida fácil não era facilmente encontrada
em seu quarto tarde da noite... Ou seja, os problemas relativos à ocupação da
amada devem ter pesado sobre o atormentado Paulo, levando-o ao suicídio.
Outro bilhete foi achado junto com o primeiro, tendo como destinatário
desta vez a moça e o pai, mas desta vez atribuindo exclusivamente à reprovação
paterna o suicídio praticado.
Querida Izabel —Adeus é um adeus de despedida, naturalmente não repares.
Srs. todosfiquem sabendo que se cometi este ato de desesperofoi unicamente por me
considerar desprezíido e sem crédito perante o meu pai, que levado por certas con
versas que não lhe abadava respeito [sic]. Adeus, meu querido pai. Adeus —Paulo
Gentil dos Santos.
A sucessão dos bilhetes, contudo, assinalam bem os avanços e os recuos
dos dramas de consciência do suicida, mostrando que, de fato, mais do que a
censura paterna, pesavam a sua própria inconformidade diante da condição de
prostituta de Izabel.
MORRER DEAMOR: NEGO, CHIQUINHA E A ESTRHYCNIXA l41
Referências bibliográficas
99 Souza, 'Ibtta e Azurenha. Estrycnina. Págiiia romântica. Porto Alegre: Livraria Americana,
1897. p. 9.
100 Idem, p. 13.
101 Idem, p. 11.
102 Dumas, Alexandre. A Dama dascamélías. Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1996, p. 78.
103 Dumas, op. cit, p. 127.
104 Alencar, José de. Luciola. 4.® ed. líio deJaneiro, José Olympio, 1957, p. 125.
105 Boddaert, Fraiiçois, et aÜi. Autour d'Emmn. Madame Bovary. UmfilmdeClattde Chabrolavec
Isabelle Huppert. Hatier, Paris, 1991. p. 73-
106 Flaubert, Gustave. Madame Bovary. EDDL, Paris 1996, pp. 344-345.
107 Conforme definida em Pesavento, Sandra Jataliy. O imaginário dacidade. Representações lite
rárias do urbano. Paris, Rio deJaneiro ePorto Alegre. Editora da Universidade, Porto Alegre,
1999.
108 Idem,. p. 33.
109 Ibidem, p. 172.
110 Ibidem, p. 206.
111 Ibidem, p. 207.
112 Ibidem, pp. 214-5.
113 Idem, p. 116.
114 Idem, pp. 113-4.
115 Idem, p. 73.
116 Ibidem.
117 Idem, p. 75.
118 Ibidem, p. 183.
119 Idem, pp. 51 -57.
120 Ibidem, p. 23.
121 Idem, p. 66.
122 Ibidem.
144 Idem.
169 Idcm.
170 A Federação, 26.07.1900.
171 Polícia. Ccklicc 08, 14.11.1900. Arquivo Histórico do hsrado do RCS.
172 Idem.
173 Idem.
174 Idcm.
175 Cf. Franco, Sérgio da Co.sva. Gttia histórico de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Univer
sidade. 1988. p. 36.
SANDRA JATAHY PESAVENTO
183 Idem.
184 Idem.
185 Idem.
186 Idem.
4
NA CONTRA-MÃO DA VIDA: O CASO DA
CRIOULA FAUSTA, O PÁSSARO NEGRO
DO BECO DO POÇO
à unha, de uma maneira hoirorosa. O motivo, nos dizem, foi o diabólico ciúme,
que é sempre a causaprincipal das continuas desavenças entregente de tal espécie.
Apolicia, quefoi logo avisada da que ali se passava, compareceu incontinente ao
local do conflito e, prendendo asduas "horizontais" e conduzindo-as aopalacete do
cidadão Costa, onde estiveram detidasporalgumas horas ealiforam tratadas com o
cavalheirismo ea urbanidade que tanto distinguem o chefe daquela casa.^
Notemos as designações, usuais no tempo, para as tais mulheres da vida ou
de vida airada: elas são as hotizontais, as mulheres do demi-monde, francesismo
introduzido no Brasil desde a apresentação, nos teatros do sul, da peça do mes
mo nome de Alexandre Dumas Filho. Neste sentido, uma tradução do título
da peça para Mundo Equivoco permitiu que as prostitutas recebessem também
a bizarra denominação de mulheres do mundo equivoco\
Do espaço, pa.ssemos ao tempo. 1890 foi o ano em que o lenocínio foi
regulamentado no Código Criminal da República no seu artigo 278, que esta
belecia que a pessoa flagrada neste delito ficava sujeita à pena de prisão celular
por um a dois anos e à multa de 5005000 a 1.0005000.
Os jornais alertavam para a expansão desta prática na cidade, à vista de
todos e ameaçando a ordem social:
Alarga-se de uma maneira espantosa o "cafetismo"entre nós, crime hojeprevisto
epunido no código no código penal ondefigura com onome de "lenocinio . Inúme
ras espeluncas espalhadaspela cidade albergam as vitimas de semelhante indústria,
mais ou menos disfarçada aqui, exercida àsescancaras ali.^
Entretanto, foi neste mesmo ano de 1890 que chegara à cidade de Porto
Alegre uma certa Anna Fausta Marçal, vinda de Camaquã, do interior do es
tado, alugando um sobrado no n.° 42 do Beco do Poço, na segunda quadra e
àesquerda de quem subia da Rua da Ponte para aRua da Igreja» Neste local, a
crioula Fausta instalou um prostíbulo ou bordel, tratado também, no linguajar
da época de bodega, espelunca, alcouce, lupanar, e que recebeu o poético nome
de AFlor da Mocidade. Poético esugestivo, pois era o tal bordel freqüentado
não só pelos subalternos da urbe como, ao que se dizia, pela fina flor da socie
dade porto-alegrense...
Em 1899, Fausta foi julgada econdenada como incursa no delito de leno
cínio, sendo a primeira cafiina air às barras dos tribunais por tal crime, como
resultado de uma campanha jornalística que se fez presente de forma cotidiana
na cidade, acabando por dar um tratamento literário ao tema. Aficção veio ao
encontro do acontecido na tessitura do fato.
Tudo isco era, pois, notícia, diz-que-diz-que etema de profundas conside
rações, seja através de perorações morais, seja dando mesmo margem a criação
poética nos jornais da velha cidade de Porto Alegre do final do século XIX...
Neste contexto, há que referir o surgimento de um jornalismo de notí
cias, alternativo, com pretensões a ser um formador de opinião pública e que
152 SANDRA JATAHY PESAVENTO
aos leitores do jornal como um todo: que uma jovemfilha de uma altapatente,
anda se mostrando porde mais preocupada com o n.° "42". Cuidado moça... não
vá apertar-lhe os nervos emudar-se definitivamente...Os comentários, "apanha
dos" no que se dizia nas ruas - daí, talvez, o nome dacoluna se sucediam nas
páginas da implacável denúncia: ora era uma normalista a freqüentar o 42, ora
era a menina yl, que porém fingia honestidade. Cuidado, alertava o Beija-Flor,
por que o noivo podia tomar conhecimento da conferência que ela tivera com
o velho embaicadiço...^'^
Notemos o erotismo das cenas insinuadas: uma normalista, logo uma es
tudante, a freqüentar o bordel e a fomentar fantasias das mais variadas; uma
certa menina>4, noiva, mas a encontrar com o velho marinheiro, alimentando,
certamente, perversões imaginárias.
E havia, ainda, asviúvas, que iam encontrar "consolo", como sedizia então,
na espelunca da Fausta.
Postados nas esquinas, em frente aos bordeis à cata de notícias, os jorna
listas espreitavam. Um deles surpreendera uma viúva, a sair ligeirinha do 42
com uma cestinha na mão. Perguntada aonde ia, ela respondeu que ia ao tesouro
receber o soldo. Interrogada também sobre o que estiverafazendo ali declarou que
estivera apanhando cavacos..
A algumas, não era poupada a identidade, dando-se o endereço e a profis
são do defunto marido, a ocupação daquele com quem se encontrava e mesmo
o fato de valer-se do alcoviteiro Quirino, que trabalhava para Fausta, para a
parte "prática" de suas passagens pelo Beco do Poço:
(...) certa viúva dá as suas conferências no vasto salão do 42, e só aceita cha
mados peloseu patrono, o Querino, sendo necessário ir-se munido de 50 malrtiscos,
sendo 20para o Patrono, sem o que Maria não será angélica (...) a viúva andou
fazendo figuração com um condutor no vasto salão do 42. Mas então na rua da
OLiria não haveria cômodos?... Essas viúvas nem ao menos respeitam a farda dos
seus defuntos; em todo caso devemos darodesconto —canhão setnjuízo, sópara vovó,
não éassim, dona?...-^
Outra era reparada pelos seus modos pouco condizentes com sua condição
de viúva, mas dava-se ao leitor a pista para a indicação de um provável parceiro,
tal como a sua ocupação de costureira:
(...) na rua dos Andradas foi vista uma viúva costureira reboleando-se toda
como cobra a quem pisaram na cauda, viúva essa que talvez para matar sauda
des das priscas eras, lá se foi direitinho para o vasto salão 42 dar lições de dança
com um mestre do foro (...)^'^
Igualmente a terrível coluna de mexericos se perguntava o que a viuvinha da
rua do Arvoredo ia fazer todas as tardes no cento e trinta acompanhada do caften
Quirino..Logo, Quirino, o alcoviteiro e emissário de Fausto para arrebanhar
mulheres, levava-as também para outros bordéis, a julcar pela informação dada.
NA CONTRA-MÁO DA VIDA: O C/\SO DA CRIOULA FauSTA, O PASSARO NEGRO... 157
Serafim, pelo brilhante discurso que o mesmo proferira no vasto salão do bordel
por ocasião da apresentação da ultima novidade da casa —a farofa Uma
nova moça que passava a integrar o estabelecimento da famosa Fausta e era
louvada em seus atributos por um freqüentador da casa?
Por vezes, as referências tornavam-se quase explicitas para a identificação
do personagem: (...)foi visto um espirita dechapa repontando umagalinhapreta.
Talvez ele quisessefazer o espiritofalar no n. 42. Ah!seu Chico.Logo, um es
pírita, reconhecido como tal, por nome Francisco, fora visto em companhia de
uma prostituta negra, entrara no bordel de Fausta. O leitor tinha as informa
ções precisas para saber de quem se tratava.
Outras tantas cliegavam até o leitor notícias nos limites damaledicência a dar
nome completo ou adulterado para um dos supostos freqüentadores do bordel:
Será verdade que osr. Mario Espirro Santofoi convidado para examinador do
42?...^'
Logo, o texto jornalístico criava um quebra-cabeça, onde algumas peças
eram reveladas para ajudar a decifração do leitor: expimha-se o fato, mas não
seus personagens, ou pelo menos não todos eles. Da terrível crioula Fausta,
falava-se. E muito.
Ainda segundos os jornais, os freqüentadores da espelunca da Fausta esten
diam-se até outras esferas não suspeitadas da sociedade, como o padre Hyppó-
litto Costabile, que fora protagonista de escandalosa cena na afamada espelunca
junto a uma mulata, que lhe gritara já na rua, em plenos pulmões: —Caloteiro,
padre safado, eu hei de ir cobrar-me dentro da igreja, canalha!...^'' Podemos bem
imaginar a alta freqüência à missa de domingo, na igreja do Menino Deus,
onde o padre Hyppólitto era vigário, depois desta notícia...
Pois, sobretudo, oPadre Hyppólitto era figura demais conhecida na capitai
pelos seus sermões, como umprovecto oradorsacro^^... Desde 1897^"^ até 1906'^^,
era sempre ele opregador da Festa dos Navegantes, aconduzir os fieis eaoficiar
na concorrida procissão em homenagem a Nossa Senhora! A partir de 1905,
passou a servigário da Igreja do Rosário."^^
Se havia padres no bordel, a sociedade estava mesmo corrompida, alertava
a cômica e moralizante coluna. Religiosos no prostíbulo? Como admitir que
aqueles que deviam pregar a decência eram devassos no proceder?
(...) decididamente estes padres são cuéras na bilonuagem... Então, reverendo,
asacerdotapessoa também visita on. 42Í...Ea batina onde deixou, saiu deponcho
depala?...'^'
Amaledicência iamais além, falando-se mesmo que até oarcebispo dePorto
Alegre tinha lá um quarto reservado! Por conta de tais rumores, AGazeta da
Tarde ironizava, ao referir-se às desordens provocadas pela horizontal PsnwA do
Bispo, que injuriara um cidadão: não confimdam...T^ Ou seja: atrás da ironia se
insinuava que o bispo teria algo a vercom tais meretrizes!
I 60 SANDRA JATAHY PESAVENTO
padre, porém era uma mulher, que procurava confusa o quarto do reitor! Ele tudo
vira e ouvira, inclusive aquilo que se introduzia no confessionário, quando os
padres, em nome de Deus, perguntavam à incauta donzela ajoelhada se tinha
muito calor no corpo, se nunca sentira desejos de carne.
O indignado articulista Cardeal não ficaria nestadenúncia episódica, e em
um novo artigo —também intitulado^4prostituição em nome de... Deus!— volta
ria à carga, desta vez para contar um passeio noturno que fizera, em uma noite
quente de verão, para os lados da Capela do Menino Deus. Lá, nas sombras,
divisara um vulto de mullier que se esgueirava para o interior do templo. O
relato do anônimo Cardeal torna-se então literário, com a exposição de diálogos
e a descrição do ambiente e das reações dos personagens:
Apressei também os meus passos e ao entrar no vasto esilencioso recinto, deparei
com o vulto ajoelhado, e como que rezava reli^osamente, devotamente... Encostei-
me à parede quelheficava maispróxmia e esperei em silencio. Subitamente o vulto
levantara-se e dirigindo-se a mim, pergtintou-me; Sr, porque me persegue! Qtiem
sois e o que qucrcis de mim! —Eu ocidtando o rosto nas dobras de minha capa es
panhola, respondi-lhe com osilencio, masporque eu havia conhecido a mulJjer que
mefalava derosto escumilhado! [sic]. Á cólera de não poder-me reconhecer, o medo
de permanecerjunto a mini poralguns segundos mais, a necessidade talvez urgente
defazer sua oração em presença do Vigário, fê-la desaparecer como porencanto do
recinto da Capela c tomar a direção dasacristia, à cuja porta apareceu um padre
que tornando-a nos braços e beijando-a no rosto desapareceu com ela nas trevas de
um segundo aposento... Qiiereis saber quem era ovulto de mulher! Tenho vergonha
de vò-lo dizer porque é uma senhora da melhor sociedade e casada... com um...
pobre diabo! Eis a prostituição em nome deDeusT^
A Capela do Menino remeteria, forçosamente, à figura já denunciada do
padre Hypolitto Costabile, autor de algumas proezas libidinosas no antigo Beco
do Poço. As denúncias e as insinuações se cruzam, a compor um quadro niti
damente anticlerical, a tecer ligações entre sacerdotes e prostitutas ou a colocá-
los como indutores de comportamentos inadequados, a arrastar mulheres ao
adultério.
Cardeal ainda se manifestaria outras vezes nesta série de artigos contra os
jesuítas devassos, a mostrar que as mulheres que viviam nas igrejas da capital
—senhoras da nossa melhor sociedade, muitas casadas com doutores, médicos, advo
gados, negociantesfortes''^ —tornavam-se fanáticas com rezas e retiros espirituais
que ocultavam práticas pouco condizentes com a religião.
Talvez este clima de predisposição contra os padres da parte de alguns
jornais voltados mais para as camadas médias e populares urbanas, aliado aos
rumores da freqüência de sacerdotes ao bordel da crioula Fausta tenha contri
buído para a celeuma criada nacidade em face daapresentação de uma opereta
intitulada frei Satanaz. Acusada por uns de obscena e vulgar^^, o incidente foi
162 SANDRA JATAUY PESAVENTO
Utilizado, mais uma vez, para fazergraça pelo Beija-Flor, a dizer que a peçaseria
apresentada do 42 da rua General Paranhos../'^ A brincadeira iria mais longe,
pois o mesmo jornal viria a publicar uma músiai para ser cantada na ópera Frei
Satanaz, para ser cantada com a melodia de Joãozinho primo deAntonico, que
supostamente todos deviam conhecer. Nesta cançáo onde era dito que a mulata
Marcolina estava danada com a Gazetinha, pois sua igrejinba fora descoberta.
Marcoiina —de moralfácil —conseguiria coisa reservadinha com a gorjeta que
lhe dariam, arranjando mesmo boa ynamata da stranja... Com uma letra de
duplos sentidos, a canção ora incitava a continuar o deboche, ora alertava para
o perigo, pois seofogo arde, tudo incendeia, nós iremos todos de cambidhada, de
embrulhada para a cadeia.'^~
A alusão à stranja é sintomática para determinar a celebridade do bordel;
não somente Fausta era visitada por estrangeiros que passavam pela capital e
que, por certo, pagavam bem, quanto recebia do exterior novos contingentesde
"pensionistas", como se pode ver no comentário abaixo do Beija Flor:
Quea Fausta sempre chibante c donairosa está mudando defeguesia... Novi
dades chegadas do estrangeiro... Pássaros de vôo levantado queestãofazendo ponto.
Ah!Fim deséculo dos meus pecadosP^
Por vezes, algumas das mulheres que saíam da casa de Fausta para o Rio
—em franca "ascensão social" —, não resistiam e voltavam, prometendo trazer
novidades. Um telegrama recebido pela crioula Fausta dava contas de um des
tes retornos, da parte de uma tal Fragatosa ou Fragosa, já celebrada pelo jornal
como uma peça rara da casa;
(...) a Fausta recebeu o seguinte telegrama: "Hoje requeri divórcio, muitas sau
dades sul, nãoposso viver aqui vendo cobre meu esbanjado. Bem disseste naquela
tarde que "solicitei" encontro Appo... Manda preparar quartofundo, que tenho
tnuita inovação f^Jua casa. Abraça-te, "Fragatosa".'''^
I-XDcal de bebida e prostituição,A Florda Mocidade contavacom todos tipos
de conduta desviante da cidade e inclusive, os dramas e amores que ali tinham
lugareram objetode feitiçaria, prática tão condenada na cidade dc Porto Alegre
da época como sendo fruto da mais baixa ignorância. Tal aspecto não passava
desapercebido àsironias do Beija-Flor, comentando, entreoutrascoisas: (...) que
na rua da Ponte houve grosso sarilhopor causa dofeitiço... ingredientes colocados no
corredor, para varejar o n. 42...ou então a alertar que na rua da Alegria havia
uma casa de altafeitiçaria, que erafreqüentada por moças, mocinhas e moçoilas.^^
Mas para Beija-Flor, os caminhos da feitiçaria levavam ao bordel, pois eram as
artimanhas e filtros do amor o objeto destas práticas e crenças, que seduziam os
seres mais fracos, sobretudo as mulheres.
Aliás, muitas mulheres pontificavam nestas artes da feitiçaria, como uma
certa viúva de um militar que deitava cartas no arraial de São Manoel.^- Cartas
que revelavam futuros amantes e se desdobravam em atos imorais, por certo,
NA CONTRA-MÂO DA VIDA: O CASO DA CRIOULA FaUSTA, O PÁSSARO NEGRO... 163
pois em outra notícia veiculada por Apanhados se informava que na tal casa de
feitiçaria onde se tirava a sorte e arranjavam-se casamentos e divórcios. Comose
não bastasse, fora visto um homem casado e empregado publico entrar na mesma
casa do braço dado com uma messaíina. Este homem esqueceu-se que em sua casa
deixou uma virtuosa esposa e trêsfiUjos a quem ele cabia darexemplos de honradez
enão deve atirar-se as cantigas dessas em quem oamor só consiste naganância eque
procuram por todos os meios levar a discórdia ao seio dafamília. Vá, meu amigo, é
tempo de retroceder do mau-caminho em que estás trilloando.^*^
Mas, naquele ano de 1895, tão comentado na coluna de mexericos "Apa
nhados", alguns acontecimentos políticos importantes tinham lugar, para além
do cotidiano das coisas miúdas da vidado dia a dia: findava a sangrenta "Revo
lução da degola", que, desde 1893, colocara em campos opostos maragatos e
pica-paus, a seenfrentarem em atosde selvageria. A pacificação desta guerra não
passou desapercebida aos comentários jocosos do Beija-Flor, a mostrar que o
bordel da Fausta não perdera a suafreqüência nestes anos difíceis: (...)o reboque
na noite de 28foi medonho; nunca o n.42 viu-se tãofieqüentado. Aquilo é o que
se chama pacificação! Os cabras entram alterados e saem t)'a7íqüibs; pacificados até
nas algibeiras!...
Entretanto, sobre as tais caftinas, as Faustas da vida, que floresciam a som
bra dos bordéis, parece que não seestendia a ação do Código Penal... Ficavam
impunes, lamentavam os jornalistas! Era, pois, necessário que contra isso se
levantasse a opinião pública, para que o vicio encontre barrehas ao seu desenvol
vimento, alertava Germano Hasslocher, na Gazeta da Tarde.^^
O caso da espelunca da Fausta tornava-se, assim, padrão de referência para
todo e qualquer escândalo que envolvesse a moral sexual na cidade de Porto
Alegre no final do século XIX: quando estourou a notícia de que o vigário da
Igreja das Dores, o padre Bartolomeu, protegido do bispo Don Cláudio Ponce
de Leon, teria deflorado na sacristia a menor Clementina, de 12 anos, a Gazeta
da Tarde denunciava a seus leitores:
Eeis aíco?no Porto Alegreficou sabendo quepossui mais um alcouce, digno defi
gurarao lado do da ftegra Fausta: a igreja dapuríssima Virgem das Dores. Ali diante
da imagem sangrenta, diante do seu seio espinhado, sob os seus olhos lacrtmejantes de
mater dolorosa, osacerdote de Cristo poluiu ocorpo virginal de uma criança!^
Note-se, no caso em pauta, aassociação entre afigura o bispo, alvo do mal
dizer urbano, que o fazia um freqüentador do bordel da Fausta, com um outro
caso escabroso acontecido, onde o padre pecador se dizia ser seu protegido.
Sem dúvida que todas estas alusões e boatos tinham guarida junto aarticulistas
anticlericais, que tinham como alvo predileto os padres. Mas, o que contava
no momento era o efeito das notícias veiculadas, onde tudo bem podetia ter
acontecido, neste movediço território das coisas ditas que agora encontravam
suaexpressão escrita e pública, através das páginas dos jornais...
164 SANDRA JATAI IY PESAVENTO
decente evitarpassarpor ali à sujeitar sea levar esbarradas dos ébrios hnuridos ijiie
por ali vagam.
Ainda na segunda-feira ultima duas aioulas, sem casaco e sentadas à beira da
calçada, "divertiam-se" a proferir obscenidades dirigidas à outrapostadajunto à
porta de umacasa do lado oposto e que, por turno, respondia-lhes no mesmo tom.
É exato que pennanece durante algumas horas, de indeterminados dias, na
esquina do beco e da rua Andrad£ Neves umapatrulha composta deduaspraçasda
Guarda Municipal, eás vezes, à noite, depraças da Brigada do Estado.
Entretanto os inconvenientes indivíduos que reúnem-se no citado beco pouco
importam-se com a patruUja porque esta épor demais complacente.
Toma-se, pois de muita necessidade que o ativo sub-intendente do primeiro
distrito ponha cobro aquelas prejudiciais reuniões na rua General Paranhos, o que
será de toda a maneira utilissimo, evitando em primeiro lugarque a imoralidade
impere tão desbragada epublicamente eem segundo lugar vedando a que soldados
ali embriaguem-se eexibam-se depois ao lado das muUseres sem a mínima noção de
respeito à sociedade e servindo dedivertimento e instrumento das mesmas! o queé
uma vergonha.
Eaproveitamos a ocasiãopara chamar a atenção dos srs. fiscais daintendência
para odesasseio da referida rua General Paranhos ou beco Poço; as calhas acham-se
quase sempre cheias de porcarias despedidas de algumas das casas juntas ás quais
passam.
Horas ha, durante odia, em que torna-se prejudicial à saúde transitar-se por
ali, tal é ofétido que exalam asditas calhas.^'^
A notícia nos remete, talvez, a mais detalhada e completa definição de
um beco, na acepção que toma no finai do século XIX: é um local tortuoso,
sujo, fétido, feio, escuro e, sobretudo, mal freqüentado. Ali se encontram os
estabelecimentos que se constituem nos focos da contravenção e do crime:
os lupanares, as tavernas, as casas de jogo. Por ali circulam os tipos suspeitos,
desde os vadios aos criminosos, tendo por centro de convergência de tudo as
mulheres fáceis. Mulheres que, no linguajar da época, se revelam sem com
postura, no trajar, no linguajar e nos gestos. Nestes lugares malditos da urbe,
onde gente honesta não podia transitar, ahidra daprostituição tinha asua sede,
com destaque para o mais famoso deles, ofamigerado Beco do Poço, onde a
desordem continuava:
Infelizmente tem continuado com muito mais calor, os sarilhos e bebedeiras
no octogenário esempre temível Beco do Poço. Não há dia em que as bodegas ali
existentes não forneçam assunto para a reportagem da imprensa; e vivemos nós a
clamar no desertoporque, afinalde contas, os "rolos"eimoralidades têmprosseguido
com omaior assombro, no tal "bequinho". Ao sr. Louzada, mais wna vez pedimos
que providencie com referencia aos ajtmtamentos naquelas imundas bodegas, que é
a causa das desordens daquela rua?^
166 SANDRA JATAHY PESAVENTO
Por vezes, sua campanlia parecia surtir algum efeito, pois a polícia tomava
algumas iniciativas, fato sempre festejado como sendo um belo resultado da
cruzada saneadora que empreendia. Por exemplo, naquele ano de 1896, o jor
nal A Gazetinha louvavaa atitude da polícia, que passaraa proibir a residência
de mulheres com costumes reprováveis —as horizontais, as Magdalenas inarre-
pendiveis— em hotéis de terceira classe e em botequins ou tascas, protegidas que
eram por proprietários sem escrúpulos.
Tais mulheres eram focos de propagação de doenças, como a sífílis. A pró
pria Fausta dera entrada na Santa Casa em julho de 1896 para tratamento de
sífilis secundária. Nesta ocasião, foi registrada como pobre, de cor preta, ter 32
anos e ser filha de Marcelina.^'
Alertava o periódico;
Na Europa, em localidades de menos número de habitantes do que o de Porto
Alegre, há regulamentospoliciaisa quea mulherpública sãoobrigadas a sujeitar-se; e
um dospontos muito interessantes dos mesmos, é o queestabelece as inspeções desani
dade tanto nelas como também nos seus domicílios. Essas inspeções, que emalgumas
partes sãofeitas semanalmente e em outras quinzenalmcnte, apresentam imediatos e
benéficos efeitos: evita a propagação d.£ certas doenças que em nossa cidade levam à
tumbaanualmente notável número de moços, eestabelece, por assim dizer, mais uma
peia ao livre exercício do comércio nefando dos prazeres a tantopor horafacilitados
pelas desgraçadas que noaltar do erro sacrificararn opróprio pudor?^
Entretanto, apesar do tom sério, literário e grandiloqüente da campanha
encetada entusiasticamente, a Gazetinha não deixava de ponderar com certo
ceticismo que não era esta a primeira vez em que a polícia tentara acabar com os
prostíbulos, que na capital existiam sob o titulo de hotéis e botequins. A rigor,
asseverava o periódico, tTü.fi}ra de duvida que os referidos proprietários são sem
pre os pritneiros a ter conhecimento dos planoscombinados pela policia no intento
depilhá-los descuidados afim de efetuar uma visita em regra a suas casas e, dessa
maneira, conhecer d£ perto em todos os seus pormenores o gênero de comércio ali
seguido. Informados com bastante antecedência, eles sabem qualodia em que terão
de receber aquela visita que lhes é incômoda e, parafrustrar a intenção policial,
retiram da espelunca assuas auxiliares, unicamente no diapreciso, de modo que,
quando a autoridade ali comparece não encontra nenhuma e, portanto, ilude-se
muitas vezes, julgando infundadas suas suspeitas em relação ao grau dedecência da
casa visitada?^
Não era só necessário tomar medidas —com visitas de surpresa, à noite, e em
todas as casas ao mesmo tempo —, mas garantira durabilidade de sua execução.
O Beco do Poço era o epicentro deste processo de desordem e de atentados
à morai, conforme o jornal noticiava:
(...) domingo ultimo na bodega denominada "RestauramcLiMocidade"esitaà
rua General Paranhos, antigo beco d[o]Poço deu-se um enorme sarilho entrepraças
NA CONTRA-MAO da VIDA: o CASO DA CRIOULA FaUSTA, O PASSARO NEGRO... 167
E viva a maternidade.
Em honra da autoridade!.
Tudoo que até agora fora sussurrado, insinuado, delatado, comentado, por
meias palavras, se torna explícito através da descrição da cena: é ela, é Fausta,
que reina e que impera na cidade desde o seu bordel no Beco do Poço: £ ela
que desafia a autoridade, porque as tem nasua mão. Ela contacom o apoio dos
poderosos, que vemsaciar seus desejos e fantasias, em busca das "novidades" ou
"iguarias" de qualidade quesuacasa oferece. Sim, a Flor da Mocidade é mais do
que um prostíbulo,é uma maternidade que não vive só de suas horizxintais. Ela
recebe em seus salões homens e mulheres da melhor sociedade...
A idéia de começar a lazer aparecer Fausta em meio a músicas, que deve
riam ser cantadas, por serem do conhecimento do povo, veio agregar mais um
ingrediente aos comentários do sarcástico cronista Beija-Flor: os versos. Dizen
do que os mesmos haviam sido oferecidos à heroina do 42 por uma fragatona
de guerra que partira para o capital federal —logo, que ascendera na carreira —o
colunista brindava seus leitores com a seguinte seqüência, a ser cantada com a
musica da copia Trampolim eu soíij da Revista O Bedengô'.
A Fausta eu sou
Caftina sem rival.
Ninguém me contestou
A esperteza natural.
Percotrer a cidade é minha sina
Eu ando olá eu ando olé
A mim ! nenhuma outracaftina
Passaopé, passa opé.
trazia "novidades" de outras terras para os bordéis da cidade. Viera para o es-
tabelecinienco da crioula Fausta no 42 do Beco do Poço a Ursa Vermelha, que
atendia, também, pelo nome de Cotinha e trouxera mulheres para outros pros
tíbulos, nos n.°s 130 da rua da Ponte e 101 da Praça do Portão. Logo havia este
tal Príncipe Magnas, rico e poderoso, envolvido no tráfico de mulheres. Quem
seria? Lacunas da história, difíceis de serem preenchidas.
E sobre a figura de Quirino, o alcoviteiro, é interessante tomar em conta a
recuperação feira desta personagem anos depois pelo célebre cronista Achylles
Porto Alegre. Dizendo que ele se assemelhava a um ratão, sem tirar nem pôr. era
baixote, grosso, olhos pequeninos, negros, redondos, bigode curto e espetado, cami
nhava ligeiro, passo miúdo, de queixofincado, gestos bruscos e ariscos.^^^
Mas, a parte esta descrição, digamos, lombrosiana, Achylles acrescentava
outras informações: era contínuo ou servente da Mesa de Rendas, mas este seu
honrado ofício acrescentava outra nem tão nobre assim: o de rufião, o que lhe
dava muito mais, em termos de remuneração, do que o seu modesto salário...
Além disso, vendia bilhetes de loteria, pretexto para poder abordar homens e
mulheres de todos os estratos sociais, entrando em qualquer ambiente. Dizia o
cronista que ele fora um dos mais audaciosos alcoviteiros da cidade, a entregar
desde cartas e bilhetesamorososa namorados ingênuosaté serviraos propósitos
de descarados D. Juan junto a damas da hante-gomme, pelo que recebera, por
tais façanhas, mais de uma sova de chicote! Mas Achylles tinha, a rigor, um
julgamento complacente para com Quirino... Dizia ele que o rufião era limpo
nos seus torpes negócios. Não enganava ningiém. Quando tinha de afrontar uma
empresa arriscada, ele confessava logo —que não dava certeza.Contava ainda
que ele tinha suas protegidas, a oferecer jovens necessitadas, de boa aparência,
a senhores de meia-idade. Negócio limpo, por certo, a satisfazer dois lados e
também a comer por dois carrinhos, como dizia Achylles.
Seu julgamento moral é, por assim dizer, dúbio. Chegando a dizer que não
sabiacomo não acabaraa vidarico ecomendador dequalquer coisa... ^^ O estranha
mento de tal julgamento, expresso em um livro de memórias que, a rigor, tem as
lembranças edulcoradas por um sentimento de perdae saudade dos bons tempos,
é o de ter uma opinião amoral sobre o caso. Talvez se possa admitir a presença
da ironia no seu texto, mas parece evidente que o personagem acada por restar
simpático e ser mesmo desculpado emseus negócios dealcovitice. Esta, contudo,
não seria a primeira vez em que Achylles Porto Alegre teria sido contestado em
seus julgamentos sobre o caso Fausta-Quirino, como severá a seguir...
No início do ano de 1897 A Gazetinha considerava uma vitória sua o fato
do delegado de polícia da I circunscrição, o tenente coronel João Leite, manda
ra chamar à sua presença osproprietários dos hotéis Jagiarense, Ramon, Rhenano,
Portugale Garibaldi e intimou-os afazer com que dentro de 24 horas se retirassem
definitivamente desses estabelecimentos as meretrizes queai se achavam morando.''
ilo
NA CONTRA-MÂO DAVIDA: O CASO DA CRIOULA FaUSTA, O PÁSSARO NEGRO... 179
negaria se lhe disséssemos, de chojre, saber que ele exercia o mister de coiretor de
bandaUteiras; epor isso tratamos de captar-lhe a confiança, dar-lhe mesmo certa
intimidade que outro qualquer indivíduo, menosfalto de perspicácia, na ocasião,
estranharia.^^^
Notemos os termos empregados, típico de um jargão policial: Quirino é
definido como um tipo e um indivíduo, vocabulários que atestam uma estig-
matizaçáo. Parece dissimulado e servil ao mesmo tempo, comportamentos que
atestavam um caráter fraco e influenciável. Para extrair dele as informações ne
cessárias, era preciso que se empregassem ardis, sob o estímulo da bebida e do
oferecimento de dinheiro.
O perfil do tipo humano, que mescla os princípios científicos da an
tropologia criminal, então em voga, com os recursos literários do século XIX.
O infame Quirino é descrito com tons lombrosianos, tão caros à época: pouca
estatura, branco —embora em outras crônicas ou comentários ele tivesse sido
descrito como um creolote —, trajar modesto, voz baixa e mansa, com um certo
tom de submissão, um suspeito, enfim!
Neste primeiro contato, segue-se uma conversa, em um café da Praça daAl
fândega, onde se reproduz um diálogo imagindrio-acontecido, entre as perguntas
ardilosamente feitas pelo jornalista e as respostas de Quirino, em princípio dis
simuladas e depois confessadamente reveladoras de seu tipo imoral, desbriado e
interesseiro, com detalhes escabrosos de seu 7tegro oficio.
Levamo-lo, pois, para um cafépróximo, ondejuntos tomamos cálices de vinho.
Ai então dissemos-lhe com ar confidencial:
Precisamos um serviço seu ejá.
Qtte serviço éesse? retorquiu ele, nos olhando de soslaio edando à voz um tom
realmente cômico.
Ora! Qiie você nos indique uma casa assim... assim... onde haja moças bonitas.
Você sabe...
E dernos-lhe a explicação categórica.
IJé homi! Eu não sei disso.
Deixe-se de historia! Caso contrário vocêperde deganhar uns bons dez mil réis.
Não! nada! Qtter meflautear...
Comofbiutear?
Muitos moçosjá me tem vindo com essas histórias, edepois de servidos me dei
xam a ver navios.
Você receberá o dinheiro adiantadamente.
Diante da perspectiva de ganhar dinheiro adiantado —logo, tudo era uma
questão de preço —, Quirino começou a discorrer sobre suas atividades no me-
tier que ocupava nas horas vagas, pois tinha também um emprego sério durante
odia... Mas oleitor, sem dúvida, queria mais detalhes, além da confirmação do
péssimo caráter de Quirino, coisa, aliás, já sabida!
182 SANDRA JATAHY PESAVENTO
Em meio da conversa o ?niserável contou que levara, em certo dia, uma carta
de conhecido donJuan à uma senhora casada, muiio bonita, e que essa, indignada,
depois de ler a missiva, ameaçara o dizer ao marido que, por sua vez, depois de
aplicar-lhe uma sova ynandá-lo-ia para as autoridades.
E você o quefez?Interrogamo-lo.
Pedi muitas desculpas e raspei-me. Caramba! que a mulherestava braba mes
mo. Mas, meu Deus!que ynulher bonita!
E depois?
Depois... Não! não conto nada.
Compreendemos queo bandalho também tinha segredosprofissionais...
Outra vez, um moço de cartola, umgordo, com quem eu estavafalando ainda
há pouco, me mandou levar um bouquet para certa mocinha que morava na rua
tal, (omitimos aqui o nome da rua que não vem a propósito), eai então, sim, a coisa
rendeu. Tambétn, custei a entregar as taisflores, porquea mãedela estava em casa e
o moço me ordenara queas entregasse ásocultas da velha. Nodia seguinte, por sitiai
que era um sábado...
Os detalhes inseridos eram, sem dúvida, para espicaçar a curiosidade do
público leitor e também para mostrar quão perigoso era este ofício, mas náo
devia a notícia se contentar com a exposição das falcatruas de Quirino. Todos
ansiavam para o destino final desta peregrinação noturna: o bordel de Fausta!
Os repórteres interromperam a narrativa de Quirino, pagaram o devido e pedi
ram que ele os guiasse até o prostíbulo.
Neste momento, a narrativa coloca elementos de ficção que se superpõem
à veracidade. (...) pela primeira vez fomos nos convencer de que Porto Alegre, a
nossa cidade natal e quejulgávamos muito longe de terfocos deimoralidades como
os queseencontram nos grandes centrospopulosos, possufe]prostíbulos onde a orgia
desenfreadafaz lembraras mais abjetas bacanais!^^^
Como era possível dizer que pela primeira vez se convenceram de que a
cidade possuía bordéis? Mas se a Gazetinhn se especializara em denunciar a
sua existência, dando endereço, nome de proprietários e das prostitutas, dando
enfim, as evidências da devassidão existente! E os repórteres não conheceriam
o Beco do Poço, justo no centro da capital, desta cidade ainda de tamanho tão
reduzido?
Mas o estilo e a retórica se impunliam. Erapreciso mostrar aos leitores a ino
vação jornalística, com reportagens vibrantes e minuciosas que faziiun os leitores
adentrar, pela leitura, no foco principal do vício. Texto quese propunha inaugu
ral, em certo sentido, ele deveria, desde a publicação da primeira desta série de
notícias, reter a atenção do público, fazendo-o esperar ardentemente a próxima
seqüência.. E esta não se fez esperar, no prosseguimento da caminhada.
A reportagem folhetinesca se segue em quadros, dados pela entrada no
estreito, escuro e sujo Beco do Poço, às 9:00 da noite, descrevendo o ambiente.
NA CONTRA-MÂO DA VIDA.* O CASO DA CRÍDULA FaUSTA, O PÃSSARO NEGRO... 183
vista dequem penetrana sala, pela entrada docorredor, acha-se osofá depalhinhae
duascadeiras; no meio do compartimento umapequena mesa redondíi, nos vãos das
janelase ao lado daporta de enti'ada várias [sic] cadeiras simetricamente dispostas.
O significativo, porem, da sala, quefaz o visitante perceber logo aoprimeiro golpe
de vista o caráter do estabelecimento acha-se nasparedes: oleografias representando
Vêntis no banho e em atitude provocante; odaliscas deitadas langorosamente ern
completa nudez, e otitros nessas condições e de idêntico valor obsceno.^^^
Mas, a rigor, não era isso mesmo que se esperava de um bordel? A existência
de uma sala de visitas com gravuras licenciosas e obscenas nas paredes a decorar
o ambiente?
Complementando a cena, por cima da porta que conduzia ao reservado
achava-se pregado umgrandee lustroso par de chifres de boifranqueiro... Alusão
aos muitos maridos enganados pelas mulheres que freqüentavam a maternidade
de Fausta ou um simples recurso de estilo campeiro para adornar um ambiente?
Os jornalistas, neste caso, se limitaram a inventariar o que viam...
A alcova ostentava, no alto do cortinado, um grande laço de fitas verdes,
amarelas e vermelhas, em clara alusão à bandeira farroupilha, fazendo o repór
ter lamentar, escandalÍ2Lado: miserável ironia da sorte, último aviltamento das
tradicionais cores que simbolizam a glória do passado de nossa terrdP^ Eis, pois,
o Rio Grande enxovalhado, ridicularizado no prostíbulo, em claro acinte aos
sentimentos regionalistas tão arraigados...
Faltava, contudo, o famoso quarto grande reservado. Este não apresentava
em suadecoração ou aspecto nadade especial. O que realmente deu nova luz ao
ambiente foi a aparição de uma das moças da casa, de origem italiana, que deu
explicações sobre o processo de reserva desta alcova, tudo narrado em forma de
diálogo entre a rapariga e os repórteres:
Diga uma cousa: esta alcova aqui é reservada, —não é verdade?
Para certaspessoas só; não temfregueses certos. Me admiro como estava aberto.
Porque aqui a sia Fausta nem baterdeixa quando está ocupado. E do seu doutor
Tal, da senhora Fulana, dopadre Sicrano...
Como diz?dopadre?Pois aqui também vêm padres?!
De certo! Vem opadre Tal o vigário Beltrano...
Está bem, está bem, atalhamosfartos detanta desilusão, pois a rapariga citava-
nos vários nomes degente reputada cáfora como modelos de virtudes.^^'^
Enfim, a reportagem reiterava, através de um depoimento tomado in loco,
as notícias tantas vezes repetidas: religiosos freqüentavam o bordel sito no n.®
42 da rua General Paranhos, antigo Beco do Poço. Podemos, neste ponto, lazer
uma consideração sobre a estratégia narrativa desta série de reportagens intitu
ladas Apodridão social. A rigor, nada do que supostamente se vira ou presencia
ra era realmente novo. Tudo já era sabido porque já fora sussurrado, dito, lido,
comentado. Apenas, o jornal colocava no papel, de forma seriada e historiada,
NA CONTRA-MÁO DA VIDA; O C/\SO DA CRIOULA FaUSTA, O PÁSSARO NEGRO... 189
estas misérias! Criava-se assim uma rede de sentidos entre pequenos incidentes
que, sem esta ação jornalística, poderiam parecer isolados.
A Gãzetinha criticava a ação da polícia e dos médicos legistas que faziam a
autópsia nos cadáveres das crianças, mas nada faziam para descobrir e punir os
responsáveis pelo crime!Mas a mera central do periódico continuava a sero
fechamento dos bordéis. Lembrando o artigo 278 do Código Penal da Repúbli
ca que dispunha sobre o crime do lenocínio, A Gazetinha alertava:
Como o crime delenocínio não está incluído naqueles em que cabe a ação da
justiça por queixa da parte, mas sim no quedevem serpunidos por denuticia dfo]
ministério público, esperamos que a autoridade investida deste importantíssimo
cargo faça sentir a ação da lei dando denuncia dos criminosos em desajronta à
justiça e à moral pública. (...) Com a perseguição das cajiinas de matemidetdes,
diminuirá sensivelmente a prostituição da nossa capital, eficará reduzida aospros
tíbulospúblicos que muitas mulheres nãopodemfreqüentar, sobpenadeachare7n-se
expostas às vistas do transeunte.
Finalmente, em 15de agosto de 1898, a estratégia jornalística da Gazetinha
encontrou a resposta desejada: o 2.° promotor público da comarca, ojovem e
criterioso advogado JoséJoaquim de Andrade Neves Netto, apresentou ao juiz
distrital do crime dr. Marinho Loureiro Chaves denúncia contra a preta Fausta
como incursa nas penas do art. 248 do Código Penal, por dirigir um estabele
cimento de prostituição. Acrescentava a Gazetinha como informação ao leitor,
rejubilando-se com a medida:
A denunciada mora há alguns anos nesta capital, à rua General Paranhos,
antigo Beco do Poço n.° 42, onde dirige um estabelecimento de prostituição.
Nessa casa vivem mulheres ás quais a denunciadapresta auxílios eassiste, dan
do-lhes teto e mesa, mediante quantias em dinheiro, proporcionais ao numero de
visitas diárias recebidas pelasprostitutas.^^'
Enfim, a denúncia partia da própria justiça, tal como deveria ser, pois,
como seviu, no caso do lenocínio, a acusação do crime deveria partir do minis
tério público para que fosse levado a juízo. No dia seguinte, cm 16 de agosto,
foi distribuída ao 2.° cartório do civil e crime a denúncia.Desde 1890 o
Código Criminal da República punia o crime de lenocínio, mas Fausta era a
primeira acusada!
A Gazetmha se rejubilava, pois considerava o fato uma vitória sua:
Oilustre sr. promotorpublico, dr. Andrade Neves Netto, tomando em conside
ração oartigo em que a nossa modestafolha, clama contra as miseráveis espeluncas,
onde sãopraticados os mais repelentes atos deprostituição materialemoral acaba de
dardenúncia contra uma crioula de nome Fausta, uma das maisperigosas caftinas,
que existem nesta cidade. O ato que acaba de praticar o ilustre órgão da justiça
pública, nos enche de verdadeirojúbilo, enos estimula a trilhar sempre no caminho
que temos andado desassombrada mente, apojitando os erros e os crimes cometidos
192 SANDRA JATAHY PESAVENTO
previsto para mesma sessão do júri que Arma Fausta.'^" Mobilizado pela ação
empreendida contra Fausta, Andrade Neves acusou outra personagem célebre
da época por seus golpes e ações fora da lei.
Em novo artigo comentando o próximo julgamento de Fausta, o jornal
reconhecia haver poderosos interesses contrários à sua condenação.
Brevemente serájulgada uma destas exploradoras indignas, e então veremos
como seportarão os que nela encontram o instrumento consciente e ignóbil que
necessitam, para execução d^ seusfins, para satisfação deseus bestiais desejos. (...)
O ilustre sr. dr. promotor público há cumprido digtiamente a missão de que está
incumbido, mas se a justiça publica sairá vencedora nesta causa, é o que bem
difícil está de demonstrar-se. Os interessados pela não condenação da acusada,
trabalham nas trevas, porém, nós que somos amantes da luz, havemos de dissipar
a escuridão, para que opublico conte?nple estes novos paladinos na arena, à luz
do dia.^"^^
Mas o ano de 1899 se iniciara, os meses se passavam e o julgamento não
acontecia...
Referiam os autos do processo que a preta Fausta de tal—em designação
típica da linguagem de estigmatização social —contudo, não comparecera para
depor na audiência marcada para 15 de março'^^, e nem mesmo fora encon
trada, apesar de citada pela justiça ede serem expedidos contra ela mais de um
mandado de prisão.
Seseguirmos o caso pela leitura do moroso processo, vemosque poucas tes
temunhas depuseram contra ela. Gente simples, em geral constituída de traba
lhadores sem maior especialização, se auto-definiam como jornaleiros, ou seja,
cmpregavam-sc c ganhavam por jornada trabalhada, não tendo emprego fixo.
Deoclécio Car\'alho, com 24 anos de idade, solteiro, informou que a ré aluga
va qtiartos para encont}'os amorosos; Germano Feldmann, com 44 anos, casado,
respondeu que sabe edisso tem plena certeza que a denunciada aluga quartos, cito
narua GeneralParanhos, 42à meretrizes-, (...) tira disso proventos tanto assim, que
cobra altas quantias, não só das próprias, como dos indivíduos queficam com estas,
disse ainda não saber se Fausta iniciava na prostituição filhas de família, mas
podia assegurar que atraía mulheres para sua casa por meio de cartões ouconvi
res, para lá terem encontros ilícitos; João Pedro, com 45 anos, solteiro, natural
de Londres, respondeu, cauteloso, que apenas sabia que entravam naquela casa
homens e mulheres dia c noite, mas não sabia para que fins; Manoel Guenno
daSilva, com 60 anos de idade, casado, disse nada saber, e que lá estivera uma
vez, apassear, por convite de amigos... Já Argemiro da Rosa, com 35 anos de
idade, solteiro, advogado, natural da Baliia —ou seja, uma testemunha distinta
das anteriores em termos de posição social, respondeu que épúblico enotóuo que
a denunciada possui uma casa de prostituição nesta cidade onde recebe meretrizes
para encontros com homens quefreqüentam a casa, que a denunciada recebe poi
194 SANDRA JATAHY PESAVENTO
assobrada onde reside a dez anos a celebre cafetina. Por um corredor sem luzvai se
ter uma sala, que, por stta colocação conesponde a sala dejantardas casas defamí
lias. Áihá umapequena mesa ao redor daqualafreguesia toma lugar aguardando
horas. Contígua uma alcova, cujas paredes de tábuas não ofereciam resistência ao
inglês da conhecida anedota daMariquinha. Esta alcova é mal ajeitada, suja mes
mo e não se descobre que tivesse havido 7ia sua arrumação cuidado em agradar o
alugador. Na cama uma triste colcha de chita cobre a podridão de um lençol, cuja
cor deveria ter sido branca. Este éoquarto barato, igual a alguns outros, destinado
a pessoas quepagampouco. Próximo porém existe o chamado quarto da —colcha
azul— que tira onome ao estofo que cobre asalmofadas da boa cama de casal, cama
de cedro embelezada dealguns valores de vista.
Um cortinado defiló bordeado dá a esse compartimento umaaparência menos
má.
Mais confortado que os outros, que só tem vela de sebo, ofreqüentador deste
tem a suadisposição a vela decliclty em castiçal delouça, exatamente iguais aos que
opreço fixo vende a l$500. A sala de visitas é regularmente arranjada. Dá-lhe o
tomfamiliara mobília preta oformoseada deguardanapos decrochet, mimos que
Fausta recebe dos conhecidos.
Algumas oleograjias baratas sem expressão, pendem das paredes, donde a volta
uma série infinita defotografias de prostitutas, algumas delas com dedicatórias or
tográficas coyitestável. Uma cadeira de balanço completa o conforto ea estética. E a
bandeira da porta, colossal, eloqüente, característico, um par de chifres domina os
horizontes, apontando o camittho do viandante... Nopavimento superior tem-se a
fotografia do que éa miséria do cafetismo. Asparedes estão cobertas depinturas obs
cenas. Vendo-asparedes que está naquele templo da nudezpagã em que era trazido
para os templos eadorada como asfrlguraçóes de divindade aparte menos nobre do
corpo do homem. É uma arte obscena e trabalhada por mão inábil. Uma torpeza
capaz de coroar omais crapuloso dos devassos. Imagine-se a imundície moral eleva
da ao superlativo de sua evidencia, eis aia decoração do pavimento superior dacasa
nro.42. Ai tem os nossos leitores uma ligeira descrição do lupanar daFausta.
Alonga descrição demonstrava ser fruto ou de um conhecimento pessoal
do ambiente —detalhe pouco dignificante, por certo —ou ter sido calcada na
descida dos repórteres da Gazetinha ao basfond de Porto Alegre... Além disso,
Hassloclier lembrava que Fausta se achava instalada há 10 anos no local, e na
inauguração que fizera de seu bordel nesta época havia comparecido muita gen
te: mulheres de todas as cores e cavalheiros de todas as classes.
A Gazetinha, que fora, de certa forma, responsável pelo desencadeamento
do processo contra Fausta, não apenas desaprovava o julgamento emitido por
Germano Hassloclier como também fazia ironia com o raciocínio do jornalista:
(...) temos a declarar nos parecer muito, mas muito mesmo estranho que o
tribunal do júri possa condenar alguma pessoa pelos crimes por outros praticados.
198 SANDRA JATAUY PESAVENTO
perus recheados! Tudo que fora previsto para um grande banquete caso Fausta
fosse absolvida...
De quebra, vendia-se também um lindo papagaio, pertencenteà condena
da, muito falador, e que por diversos cavalheiros conhecidissimos..}^^
E, diante do resultado da condenação de Fausta, o Petit Joumal revelava,
pela pilhéria, o desapontamento dos seus defensores e simpatizantes: dizia que
no 42 da rua General Paranhos, se processava um grande leilão de comes e
bebes, que deviam servir para um grande banquete, caso a infortunada Fausta
fosse absolvida'^'*. Na mesma página, anunciava a venda, na mesma ocasião, de
um lindo papagaio, pertencente à condenada, que falava muito e chamava por
diversos cavalheiros conhecidtssimos...
Novos versinhos, assinados por Querino, ofinoy debochavam do destino da
caitina, condenada pelo júri, misturando na blague o caso que teria motivado
o processo contra a outra personagem, Joana Eiras, na mesma época: o roubo
de uma cabra!:
Cá das tejTOS brasileiras,
ó Faustade infausta sorte,
a cabra da Joamm Eiras
há de levar-te ao teu norte!
Chegou a Fausta,
chiL..que alvoroço!
— Ficou exausta.
Antes, sem pinga.
Empeso, o Beco,
AoJacotinga
Saudou, em seco.
Mas, à noitinha.
Veio o salame
Veio a caninha
E o cervejame
Fausta, bradou:
—A quem me vinga
E assim saudou
AoJacotinga
Ah! O paisano
Não cabe em si.
Está tão ufano
Como o Petit
Fique Octaviano
Fora de si
Viva o Paisano!
Viva o Petit.
para a farra e para as mulheres, o que já sucede desde uma parada em Rio Gran
de até a cliegada no Rio, onde o turbiliião da grande cidade o atordoa.
Mas porque Esrevam trai Olinda, se viviam are então em felicidade con
jugai? Pela nefasta companhia de Gualberto, o vagabundo sem espirito e sem
vergonha}'^^\ e —alerta, famílias! - pela distância do lar, uma vez que partira em
viagem de negócios. Aquele que era honesto eforte torna-se fraco e é levado por
forças e impulsos que não pode controlar!
Já Olinda, a suspirar na janela, é alvo do olhar cobiçoso de Arthur, moço
sem escrúpulos, elegante, vestindo-se com apuro na alfaiataria do Germano
Petersen. Mas Arthur era um vadio, conquistador de mulheres.^''" Fútil, habi
tuado às casas de bebidas, figura cotidiana na rua da Praia, a dirigir galanteios
às moças, tinha um verniz de cultura, que encantava a muitos. Na figura de
Arthur, o Jornal do Commercio resumia um tipo social desta pequena-grande
cidade que era Porto Alegre:
Assinava revistas estrangeiras, onde bebia a ilustração ligeira, pela rama, com
que entretinha as palestras, deleitando, a seu modo, a nossa mocidade igtwrante,
freqüentadora dos cafés, cujos conhecimentos não vão além doAlmanack Hachette
com assuas gravuras minúsculas e os seus provérbios idiotasP^
O bilontra Artur, que alternava suas andanças mais largas, fora do centro
da cidade, ora em velocípede —muito moderno, portanto! —, ora a cavalo, um
dia fora passear com um amigo pelas bandas da Praia de Belas e viu Olinda na
janela, melancólica e a fitar o rio Guaiba. Logo deseja-a para si, mas ela é ho
nesta, e retira-se, ofendida diante da insistência do moço. Afinal, Olinda é uma
mulher séria e que ama seu marido...
A maneira de conquistar a difícil Olinda é dada pelas artes da Fausta, cuja
oisa Artur freqüenta com assiduidade. O Beco do Poço é descrito segundo o
relato já feito pela Gazetinha, com pequenas variações de ambiente. Arthur
chega ao cair da noite, divisando nas janelas mulheres magras, cansadas da orgia,
a aproveitar o momento propício para os convites obscenos.
São uns tipos dignos de estudo e análise. Emgeralsujas, desdentadas, intempe-
rantes na linguagem, que é o escoadouro das suas almas corroídas pelasérie dos vidos.
Aqui canta-se uma canção torpe, pontilhada deestribilhos imorais. Ali duasfarpelas
esg4edeU}am-se a tapasporcausa do homem. Mais adiante, àportada amada, umca-
fageste de lenço no pescoço echapéu do lado arranca à viola os sons nostálgicos de uma
melodia roceira, enchendo os espaços com asimprovisações do estro apaixonado.^'^''
A entrada do Beco do Poço encontra ressonância nas muitas descrições já
feitas pelos jornais, com variações de cenas, plausíveis e possíveis de acontece
rem no cotidiano daquele espaço. Tudo é feio, abjeto, fétido e o sobradinho de
Fausta —que todos conhecem, diz o texto —é escuro, sujo, mal caiado.
Na casa de Fausta, a crioula, alegre, sorrindo, dentes à mostra, com cham
bre de chita, recebe amigavelmente o habitué, que lhe expõe seus interesses.
208 SANDRA JATAHY PESAVENTO
pudores, vencendo aos poucos seus escrúpulos, facilitado pelo fato de Arthur
diminuir a luz da sala, iluminada apenas por uma lamparina de azeite, Olinda
entregou-se ao amante.^"'^ Fora levada por um impulso arrebatador que, porém,
náo a livraria dos remorsos do dia seguinte:
Tinhadesejos insojridos dechorar, dechamar, de bradar, revoítando-se contra a
iniqüidade da injustiça queelamesmapraticara. Eporquehaviaprocedido daquele
modo, porque?-^^
Em estratégia narrativa, o escritor do folhetim adiantava certos acontecimen
tos, mas por estas alturas, o leitor, intrigado, deveria estar a perguntar-se: como
se deu, afinal de contas a sedução de Olinda? Como esposa tão virtuosa caiu na
conversa do bilontrcü Porque teria cedido Olinda à tentação? As razões ainda não
tinham sido reveladas ao leitor, a esperar um flash-back da trama para poder en
tenderquais teriam sido os ardis de Fausta paracaptara confiança de Olinda.
A sordidez da trama é, contudo, finalmente exposta no episódio de n.° 15:
Fausta, analfabeta, pedira a Quirino (o já conhecido rufião denunciado pela
Gazetinha, que ingressa na história folhetinesca) para escrever uma carta anôni
ma, na qual avisaria Olinda de que seu esposo a traía desde há muito!
Olinda caiu das nuvens, dograndecastelo em que morava, admirando o ma
rido (...) Então, tim mundo de idéias acudiu-lhe aopensamento. Suicidar-se-ia, ou
jitgiria, ouaceitaria a corte do bilontra quepassava às tardes...
O leitorfica então esclarecido de que Olinda, indignada, a pensar na igualda
de entre homens e mulheres (!), resolvera dar o troco ao marido...Quando ha
viamcasado, juraram fidelidade um ao outro. Que sociedade era esta, que só punia
as mulheres adúlteras, inocentando os homens que incorriam no mesmo crime?
Sestas eram as únicas razões da queda de Olinda? Os próximosepisódiosdo
folhetim acabam por esclarecer: a até então bondosa e jneiga Olinda possuía um
espiritofraco e explorável e fora envolvida... Mas ao envolver-se, perdera a razão
e o bom senso, não se importando mais em ser discreta e descuidando-se do
falatório da vizinhança. A imagem do esposo se dissolvera nos cinco meses de
amor com Artur, a viver regaladamente horas de amor sob o céu azul de Porto
Alegre. As imagens são poéticas e mostram como Olinda passa a viver, por um
certo tempo, um amordespreocupado comArthur. Até mesmo não pedia mais
para apagar a luz...^''®
Até que um dia... Oh, fatalidade! Cerca de cinco meses depois, Olinda,
desesperada, lhe anuncia que está grávida e Artur, horrorizado com o futuro
que lhe aguarda e estando, mesmo, jáum pouco entediado daamante, que fora
instrumento do seu prazer, pede auxílio - mas sempre bem pago... - à terrível e
despudorada Fausta, quelhe envia a china velha Petrona para fazer o aborto.^"''
O destino é, como se poderia dizer, cruel para estas mulheres do século XIX
que haviam ousado dar um mau passo. Como Madame Bovary, Marguerithe
Gautier ou Ana Karenina, Olinda deve morrer: para expiarsua culpa.
NA CONTRA-MÃO DA VIDA: O CASO DA CRIOULA FaUSTA, O PASSARO NEGRO... 11 I
fora o escritor cio folhetim, sobre o caso em julgamento, é quase certo que sua
história tenha dado um impulso maior à campanha contra o lenocínio!
Poucos meses após a entrada de Fausta na cadeia, teve lugar, fevereiro de
1900, um leilão dos pertences do estabelecimento A Florda Mocidade, localiza
do na rua General Paranhos"'"^. Entretanto, a notícia do leilão dos utensílios e
pertences do que é chamadode hospedaria Fbr daMocidade, é assinalado como
se situando no n.° 3 e não no famoso 42 da mesma rua. Tratava-se do mesmo?
Estando Fausta na cadeia, repassara a grifféi Seu estabelecimento continuara
funcionando como bordel em outro prédio?
Os bens anunciados eram os seguintes: um balcão, mesa redonda, cadeiras
de pau, armação, tina para lavar copos, gaita, talha para água, bebidas engarra
fadas, garrafas vazias, etc, No primeiro quarto, uma cama para casal, colchão,
cabides de parede, lavatório; no segundo quarto, uma cama para casal, colchão,
lavatório; no terceiro quarto, uma cama de ferro para solteiro, colchão, mesi-
nha, no quarto, uma cama de ferro para solteiro, colchão, lavatório, mesinha.
Na salade jantar, duas mesas grandes, diversas cadeiras com assentode palhinha
e de madeira, armário envidraçado, quadros, 2 armários pintados, etc., na co
zinha uma mesa,, balcão, prateleiras, panelas, chaleiras e outros apetrechos de
cozinha e em outras dependências, barris.diversos para água, tinas, cozinha de
madeira, galinheiro, bacias, cestos, caixões, etc.-'^
Seria este o mobiliário do renomado bordel, descrito em minúcias, com
detalhes que faziam os leitores imaginar cenas eróticas, personagens terríveis?
Nos deparamos com o mobiliário pobre de uma pensão barata, que sem dúvida
poderiaservirde bordel. Afinal, não sesituava na famigerada Rua General Para-
nhos, no antigo Beco do poço, ostentando o mesmo nome do estabelecimento
da crioula Fausta?
Masalguém deve ter arrematado o local, conservando o nome famoso, pois
em maio de 1900 o Correio do Povo anunciava a ocorrência de um conflito na
conliecida bodega Aflor da Mocidade, no nA3 ou 5 da travessa General Para-
nhos de propriedadede Onofre Henrique de Castiíhos, ferido pela punhalada
que lhe dera um marinheiro e que haveria de morrer devido a esta agressão!""*
Ou seja. Fausta estava na cadeia, mas o meretrício continuava, com outras Flo
res da Mocidade... Parecia, contudo, que Florda mocidade davafrutosfatídicos,
ironizavao jornal.
Com o passar do tempo, a Flor da Mocidade pareceu tornar-se uma len
da, preservando o nome a memória, mas mudando de designação e de en
dereço na própria rua General Paranhos. Em 1905, a Gazeta do Commercio
comentava:
Referencias Bibliográficas
1 Raxicière, Jacques. Les mots del'histoire. Essai depoétique dtisavoir. Paris, Seuil,1992, p. 8.
2 O casoda crioula Fausta c um dos analisados no projeto dc pesquisa que desenvolvemos na
UFRGS com o apoio doCNPqa partir dcagosto de2003, Ossetepecados dacapitai: espaços,
personagens epráticas na contra-mão ela ordem da cidade dePorto Alegre.
3 Gazetinha, Porto Alegre, 12,01.1896.
4 Gazetada Tarde, Porto Alegre, 08.01.1896.
5 Gazetada Tarde, Porto Alegre, 18.09.1895.
6 Rudigger, Francisco. Tendências dojornalismo. Porto Alegre, Editora daUniversidade, 1993,
pp. 44-45.
7 Idem, p. 45.
8 Idem, p. 46.
9 Porto Alegre, Achylles. Homens Illustres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Livraria Selbach.
1912, pp. 264-265.
10 Gazeta da tarde, 30/04/1895 (Germano Hasslocher).
11 A Gazetinha, 16.02.1896.
12 A Gazetinha, 01.08.1895.
13 A Gazetinha, 28. 08.1895.
14 Ibidem,
15 A Gazetinha, Porto Alegre, 15.10.1896; 06.12.1896.
16 A Gazetinha, 02.02.1896.
17 A Gazetinha, 04.10.1896.
NA CONTRA-MÁO DAVIDA: O 0\SO DA CRIOULA FauSTA, O PÁSSARO NEGRO... 21 5
18 A Gazetinha, 06.12.1896.
19 A Gazetinha, 07.06.1896.
20 Como referia a coluna/l/w/z/Wwda Gazetinha de 31.05.1896 ao comentar a partida preci
pitadada cidade de um ca.sal de artista.s, tendo um certo moço,um tal Gonçalve.s, pago para
a moça cm qucstáo uma fina capa na alfaiatariado Bins. Ao que Bcija-Flor recomendava ao
desiludido amante: Ao 42! Marche!
21 A Gazetinha, 09.02.
22 A Gazetinha, 15.10.1896.
23 A Gazetinha, 08.11.1896.
24 A Gazetinha, 06.10.1895.
25 A Gazetinha, 05.07.1896.
26 A Gazetinha, \\.\0.\Z96.
17 A Gazetinha, 25.10.1896.
28 A Gazetinha, 20.10.1895.
29 A Gazetinha, 26.07.1896.
30 A Gazetinha, 13.12.1896.
31 A Gazetinha, 02.02.1896.
32 A Gazetinha, 03.10.1897.
33 A Gazetinha, 31.10.1897.
34 A Gaz.etinha, 16.02.1896.
35 A Gazetinha, 06.10.1895.
36 A Gazetitiha, 02.02.1896.
37 A Gazetinha, 19.04.1896.
38 A Gazetinha, 23.02.1896.
39 A Gazetinha. 0^.09.1^95.
40 A Gazetinha, 18.08.1895.
41 A Gazetinha, 25.02.1897.
42 Gazeta da Tarde, Porto Alegre, 18.01.1896.
43 Correio do Povo, 31.01.1896.
44 A Federação, 31.01.1897.
45 O Independente, 21.06.1906.
46 As referência,s sobreo padre Hyppóiitto nos foram fornecidas pelo Dr. Henrique Licht.
47 A Gazetinha, 11.08.1895.
48 Gazeta da Tarde, Porto Alegre, 17.01.1896.
49 A Gazetinha, 31.10.1897.
50 A Gazetinha, 20.10.1895.
51 Ibidem.
52 Ibidem.
53 A Gazetinha, 03.11.1895.
54 y\ Gazetinha, 17.11.1895.
55 A Gazetinha, 20.10.1895.
2i6 SANDRA JATAHY PESAVENTO
56 A Gazetinha, 06.10.1895.
57 A Gazetinha, 10. 1 J.1895.
58 19.07.1896.
59 A Gazetinha, 25.10.1896.
60 A Gazetinhuy 25
61 A Gaz£tiriha, 04.10.1896.
62 A Gazerinha, 11.10.1896.
63 A Gazetinha, 27.09.1896.
64 A GíJzetinha, \5.(i9.\^^5.
65 Gazeta da Tarde, PortoAlegre, 30.04.1895.
66 Gazeta da Tarde, 08/10/1896.
67 A Gazctinha, 17.12.1896.
68 A Gazetinha, 28.06.1896.
69 A Gazetinha, 05.00.1^96.
70 A Gazetinha, 02.04.1896.
71 Santa Casa de iMisericórdia, livro 7, 1893-1897, p. 145-
72 A Gazetinha, 03.12.1896.
73 A Gazetinha, 05.04.1896.
74 A Gazetinha, 17.09.1896.
75 A Gazetinha, 05.11.1896.
76 A Gazetinha, 05.11.1896.
77 A Gaz-ctinha, 06.08.1896.
78 A Gazetinha, 03.09.1896.
79 /í 09.04.1896.
80 A Gazetinha, 08.03.1896.
81 A Gazetinha, 05.11.1896.
82 A Gazetinha, 05.11.1896.
83 Ibidem.
84 A Gazetinha, 06.09.1896.
85 A Gazetinha, 26.03.1896.
86 A Gazetinha, 18.02.1897.
87 A Gazetinha,, 27.02.1896.
88 Correio do Povo, 29.02.1896.
89 A Gazetinha, 01.03.1896.
90 Correio do Povo, 01.03.1896.
91 A Gazetinha, 01.03.1896.
92 A Gazetinha, \5.ld.%.
93 Coneio do Povo, 21.07.1896.
94 O Mercantil, 20.07.1896.
95 O Mercantil, 21.07.1896.
96 A Gazetinha, 29.11.1896.
NA CONTRA-MÂO DAVIDA: O CASO DA CRIOULA FaUSTA, O PÁSSARO NEGRO... 217
97 A Gazetinha, 20.12.1896.
98 Ibidem.
99 A Gazetinha, 06.06.1897.
100 A Gazetinha. 10.06.1897.
101 A Gazetinha, 12.04.1896.
102 A Gazetinha, 11 10.1896.
103 A Gazetinha, 12.11.1896.
104 A Gazetinha, 29.10.1896.
105 A Gazetinha, 15.11.1896.
106 ibidem.
107 Ibidem.
108 A Gazetinha. 17.05.1896.
109 domo por exemplo, quando A Gazetinha debochava de uma da-s inform.ações dada.s por
Fausta a respeito de sua supostaocupação como modista, em que se dizia que no 42, Fausta
precisava naturalmente duma máquina defazer pregas... Qiiantas casadas e viiivas não an
damcom aspregas arrebentadas, pelos imprudentes quelhepisam nos vestidos?... {A Gazetinha,
08.03.1896).
110 yl Gazetinha, 23.08.1896.
111/1 Gazetinha, 30.08.1896.
112/4 Gazetinha, 25• 10.1896.
113 Porto Alegre, Achylles. Noutros tempos (Chrônicas). Porto Alegre: Globo, 1922. pp. 102-
103.
122 Ibidem.
123 Ibidem.
124 Ibidem.
125 Ibidem.
126 A Gazetinha, 12.05.1898.
127 A Gazetinha, 12.05.1898.
128 y4 20.05.1898.
Náo, Porto Alegre não é Leiria, nem o Brasil do final do século XIX era
Portugal. Nem houve, na capital sulina, um certo Padre Amaro que seduzisse,
miseravelmente, uma pobre moçachamada Amélia, profundamente beata...
Mas, de certa forma, quando Eça de Queiroz escreveu em 1871, o seu
famoso romance, O crime do Padre Amaro^ publicado em 1874, o célebre es
critor português abordava, de forma literária, algumas questões presentes na
sociedade de sua época e que ocorriam também na cidade de Porto Alegre, às
margens do Guaíba, naquele nada tranqüilo ano de 1896.
Em 1896 Anua Fausta reinava no Beco do Poço com seu famoso bordel, a
Flor da Mocidade, enquanto Neco e Chiquinha se suicidavam com estricnina,
diante de um amor impossível face às conveniências do social e a temível Joana
Eiras era presa e processada por um de seus crimes—o assassinato do Capitão
Jordão —, sendo logo libertada. No ano seguinte, o Almanak Literário e Estatís
tico de 1897 lembrava que ainda restava, na memória dos cidadãos, a recorda
ção dos tenebrososcrimes da Rua do Arvoredo, perpetrados pelo sinistro Ramis
e por sua amante. Catarina Palse cm 1864...
A pequena cidade de Porto Alegre tinha, pois, os seus pecados, que agita
vam o cotidiano da vidae que seriam em maior ou menor escala, integrados ao
imaginário social urbano ao longo do tempo.
Naquele mesmo ano de 1896, no mês de setembro, um outro escândalo ou
caso extraordinário se dava nçafin desiècle porto-alegrens, ocupando as paginas
dos jornais.
Noticiava o Mercantil^ que desde o dia 21 de setembro circulava um boato
na cidade, a espalhar uma notícia escabrosa. Mais uma, poderiam pensar os lei
tores dos jornais da época, nestacidade agitada por casos que iam do murmúrio
do povo nas ruas para as páginas da imprensa local, sempre ávida de noticias
que rendessem leitores...
22 1
222 SANDRA JATAHY PESAVENTO
Desta vez, comentava-se que o vigário da Igreja das Dores, templo situado
no centro da cidade de Porto Alegre, o padre Bartholomeu Tiecher, defloraia a
menor Clementina Simionarto, uma menina de 14 anos, de sua paróquia, que
com ele tomava lições de catecismo!'
O periódico Mercantil informava ainda os leitores que o acontecimento viera à
tonaface tunadenúncia havida contrao vigário da Igreja das Dores, feita porErnesto
Carvalho, membro da confraria da Ordem Terceira, feita em 19 de setembro,
O leitor porto-alegrense se deparava assim com o início da construção de
uma história: a existênciade um boato, a circular rapidamente na cidade, como
uma "voz do povo", a murmurar e a repassar, de boca em boca, um caso esca
broso, que o jornal fazia questão de veicular em suas páginas. Da oralidade à
escrita, o acontecimento já era definido como um "escândalo".
Revelava-se a questão da existênciade um presumível cidadão honrado que
estava a cometer crimes! Além do mais, tratava-se de um religioso, supostamen
te um pastor de almas, de conduta ilibada e com ascendência moral sobre o seu
rebanho, particularmente sobre as mulheres e as crianças...
O enredo d'0 crime do Padre Amaro, de Eça, ganha força nesta tragédia
porto-alegrense. No romance, o Padre Amaro tem ascendência moral e cultural
sobre a moça. Vivendo em ambiente de extrema carolice, cercada de beatas e
religiosos, Amélia tem veneração por Amaro: ele é jovem, belo, bem falante, se
dutor. Ou seja, tem o controleda situação, é capaz de induzircomportamentos.
Mesmo com caráter fraco, ele é a parte forte da relação. Amélia é influenciável,
apaixonada e tem a sua sexualidade despertada pela figura, pela palavra e pelo
comportamento do padre Amaro. De freqüentador da casa, ele se torna o con-
fessor da moça e, de possuidor da alma de Amélia, toma propriedade de seu
corpo. A crítica feroz de Eça à Igreja, revelando a torpeza das práticas religiosas
em Portugal e a influência nefasta dos padres na vida das comunidades tem no
perfil do Padre Amaro o seu centro.
No caso da Igreja das Dores, torna-se difícil chegar ao acusado; do padre
Ticcher sabemos o que dele dizem, para o bem oupara o mal. Podemos, contudo,
pressupor que, tal como o Padre Amaro, o vigário das Dores tivesse total ascen
dência sobre a seduzida. Talvez mesmo maior, pois se tratava de uma criança.
Assim, nafin de siècíe porto-alegrense, as pessoas, escandalizadas, comen
tavam o incidente que tivera lugar em um recinto sagrado e envolvendo um
vigário de Cristo e uma menina, menor de idade. Como não comentar, como
não falar do acontecido, desta história que corria de boca em boca, assustando
as famílias que tinham crianças a freqüentar a igreja e o catecismo? Um adulto
—e padre —se aproveitara de uma menina que tomava aulas de catecismo.
Talvez se pudesse dizer que o escândalo da Igreja das Dores vinha se inse
rir, de forma modelar, no conjunto das posturas anticlericais que vicejavam na
cidade e que tinham seu porta-voz em Germano Hasslocher, através das pági-
o DIABO NA SACRISTIA: O PADRE, A MENINA E AS VERSÕES DO FATO 223
em comércio ilícito com o Rev" Padre Barthoíomeu. Indignado com a noticia de tei-
o Padre Vigário tão repreensível procedimento em tmi Lugar considerado sagrado,
Ernesto Carvalho expulsara a menina Clementina do coro dizendo que a nave da
igreja abrigava todos osfins em seu seio sem haver necessidade de ir postar-sejunto
ao quarto do Vigário tendo, como se isso lhe competisse, na mão a chave do dito
quarto. Chorando retirara-se Clementina efoi queixar-se ao vigário queaoseu tur
no quis saber quem tão malseportaria com a sua discípula. Encontrando-se então
com Ernesto Carvalho deu-se a tal cena pouco edificante que tomou-se publico em
poucas horas visto estar a igreja repleta de crentes que tinham ido assistir ao septe-
nário das Dores. Sabedores do encontro, os Simionati que atéaquelle dia viviam na
mais absoluta ignorância doquesepassavaforam apresentar a menina Clementina
ã políciajudiciária epediram providências}^
Tal relato parece, grosso modo, corresponder a narrativa jornalística, salvo
o fato de que lun primeiro interrogatório de Clementina, no qual ela acusa o
Padre não consta nos documentos integrantes das averiguações policiais, nem a
sua ida à policia acompanhada do irmáo Elmo. Ha, asvsim um gap de dois dias
neste relato policial, de 23 a 24 de setembro, embora em seu relato o Delegado
de Policia Cherubim da Costa remonte a revelação do ocorrido ao escândalo de
19 de setembro.. Torna-se, pois, necessário cruzar as distintas versões para ter
uma idéia do processo ocorrido.
Os registros documentados da policiacomeçamem 25 de setembro, quan
do uma queixa fora registrada na Delegacia do 2.° Distrito pelo pai da menor,
Giuseppe Simionatto, natural da Itália e morador da Rua da Ponte, "homem de
condição pobre", que disse "desconfiar" que sua filha tivesse sido deflorada pelo
padreTicher —portanto, em nova grafia do nome do padre—e pedira paraque
se descobrisse a verdade.'"-'
Foientãosolicitado que os médicos da policia, doutores Sebastião AíFonso de
Leão eJoão Damasceno Ferreira comparecessem no dia 28 de setembro paraque,
às 12 horas, procedesse ao examedo corpo de delito da menor Clementina. Cabe
ainda registrar que antes da realização deste exame o Correio do Povo mudava o
caráterde suas reportagens face o ocorrido: dizia que ascontradições erammuitas
nos depoimentos feitos diante da polícia, que todos procuravam eximir-se e que
não se podia afirmar nada de certo contra a conduta do padre Barthoíomeu.
No entanto, todosfazendo pesar sobre a cabeça do padrea nuvem tenebrosa de
uma insistente e aviltante suposição, impossível de se desfazer por isso mesmo que
seapresentavam intangível. Mas, eupergunto, alguém tem o direito de assim pro
cederá De levantar acusações assim tremendas, sem base, a não ser em malévolos e
calculadospensamentos? Então éjusto que umhomem qualquer, um padreque seja,
fique sob a pressão de permanente desconfiança desconsideração pública, porque
um, dois ou trêsindivíduosentenderam de enxergar em um ato seua intenção ou a
possibilidade de serpraticado um ato imoral?^^
o DIABO NA SACRISTIA: O PADRE, A MENINA E AS VERSÕES DO FATO 233
O jornal lamentava ainda que uma criança como Clementina fosse obriga
da a sofrer um exame deste tipo através das mãos frias, práticas e indiferentes do
médico que a examinaria! Mas, apesardeste apelo, Clementina foi submetida à
prova no dia 28 de setembro.
Na secretaria da policia e na presença do delegado do 2.° distrito, Major Fe-
beliano Faibes da Costa, assim como de duas testemunhas —AchyUes Porto Alegre
e AíFonso Moreira —foi feito o exame pelos médicos, com o fim de responder aos
seguintes quesitos: seexistiam sinais da menor ter mantido comercio sexual, se tais
relações eram recentes, e, por ultimo, se eram freqüentes. Concluída sua tarefa, os
médicos assim registraram suas conclusões nos autos do exame do corpo de delito:
Apaciente apresenta desenvolvimento extraordinário para a idade que diz ter
(doze anos incompletos, responde, com clareza e naturalidade, asperguntas que lhe
são dirigidas, E menstruada desde alguns meses. Nãopresenta vestígios de moléstia
geral ou local, como de sevicias. Examinando os orgãos genitaes, notamos: monte
de Vênus, coberto depellos abundantes e longos, relativamente a idadeda menor,
grandes epequenos lábios regularmente desenvolvidos; clitoris desenvolvido; prepu-
cio muito movei efrouxo;fossa navicular regular; afastados ospequenos lábios, pode
se entrever o himen emfoima dediafragma deabertura central, apresenta?ido-se o
contorno do lábio direito perfeito, nafolha esquerda do himen, nota-se na porção
superior uma pequena cicatriz, perfeita, devido à ruptura depequena porção da
membrana; o contorno do lábio esquerdo do himen é irregular em conseqüência de
ulceraçôes entretidas por abundante corrimento leitoso quecorre da vagina; o dedo
indicador, bem como o médio, penetramfacilmente pelo himen atravez da vagina,
até tocar o utero que nadaapresenta de extraordinário; e queportanto, respondem:
aoprimeiro quesito, sim, existem signais evidentes de que a paciente tem entretido
relações sexuais; firmamos este juizo diante dofacto de apresentar-se o himen com
pequena ruptura, como foi descrito, assim como no estado defrouxidão do mesmo,
deixando penetrar sem dificuldade o dedo médio; segundo, as relações já devem ser
nutridas desde algum tempo porquanto a cicatiização da ruptura éperfeita; tercei
ro, sim, edéstemodo pode serexplicado o extraordinário desenvolvimento daspartes
sexuais numa meniiía de doze annos (...fr
Reinando grande expectativa na cidade para a divulgação do laudo, realiza
do este, os jornais Correio do Povo e O Mercantilanunciaram, em 26 de setem
bro, que nada havia sido averiguado em termos de comprometer o sacerdote,
mas não adiantaram as razões para que se pudesse expressar tal conclusão."
Estas razões, contudo, poderiam muito bem estar contidas no relatório do
Doutor Leão, homem de ciência, médico legista e que aspirava, neste ano de
1896, dirigir, junto à Casa de Correção de Porto Alegre um Laboratório de
Antropologia Criminal que estava em vias de ser instalado. Para tanto, havia
se oferecido ao chefe de polícia. Desembargador Antonio Augusto Borges de
Medeiros, para ocupar este cargo, sem remuneração.
234 SANDRA JATAHY PESAVENTO
padre e a menina, que por sua vezdeviam remontar desdeantes. Tudo de molde
a justificar o alvoroço das crianças e os decorrentes comentários que tais inci
dentes, nem tão secretos assim, deviam provocar. O mal-dizer, o diz-que-diz-
que devia correr à solta, das crianças eseus familiares ao sacristâo eseus amigos,
para chegar um dia à constatação do fato pelo secretário da Ordem, que tornara
publico o fato pela altercaçáo que tivera com o vigário das Dores, na frente de
muitos fiéis, em dia de festa na igreja!
Mas havia ainda o interrogatório da família Simionatto. Guiseppe Simio-
natto tivera de responder a um documento que fora anexado ao processo: tra
tava-se de uma informação, passada pelo gerente de Caixa Econômica, em res
posta a umoficio do Major Cherubim daCosta, Delegado dePolicia dacapital,
a respeito de sucessivos depósitos que ali fizera em uma caderneta um irmão de
Clementina, Joaquim Simionato José, de 18annos de idade, solteiro, sapateiro,
morador da Rua Riachuelo, natural da Italia, não sabendo ler e escrever. Ao
total, os depósitos perfaziam 500$000, não tendo sido feita nenhuma retirada.
Constava, por noticiaveiculada em 28 de setembropelo jornal O Mercantilque
o irmão de Clementina, Joaquim Simionatto, seguira na véspera para Buenos
Aires.^®
Comparecendo para prestar declarações, compareceu Giuseppe Simionato,
natural da Italia, casado, morador a rua da Ponte, numero 178, sabendo ler e
escrever, foi perguntado se seu filho Joaquim Simionato havia se retirado de
Porto Alegre a seu mando do depoente. Respondeu que não e que seufilho fora
embora por suavontade, não contando pai*a onde ia. Perguntado se havia dado
dinheiro a Joaquim para que ele se retirasse, respondeu não dispor de dinheiro
algum tal como seu outro filho El mo, pis sendo ambos pobres, ganhavam so
o suficiente para viver. Joaquim é que, ao retirar-se dera a ele duzentos mil reis
paraasnecessidades dafamilia, não sabendo absolutamente quem pôde terlhe dado
dinheiro.
Chamada a prestardepoimento, Clementina Simionato declarou ser natu
ral da Italia, filha de Giuseppe Simionato e sua mulher Maria Capcleti, ter doze
annos de idade, moradora a rua da Ponte, numero 178, sabendo ler e escrever.
A menor Clementina veio trazer novos dados à história: declarara receber
lições de catecismo com o padre Bartholomeu há quatro meses, lições essas que
a princípio eram dadas paramuitos outrosmenores, na nave da igreja, passando
depois o padre a dá-las na sacristia, para uns seis ou sete alunos, tendo sido de
pois as outras crianças dispensadas. Por fim, as lições eram dadas no quarto do
padre para ela, para a menina Maricota Ramonielli, de 10 anos e para o imiáo
de Maricota, um menino de 11 ou 12 anos. Ao final das aulas, ela permanecia
sozinhacom o padre no quarto, a portas fechadas, para se confessar."^®
Notemos um deslocamento no espaço, da nave para a sacristia e desta para
o quarto do padre, o que eqüivaleria a uma transição gradual de uma esfera, por
238 SANDRA JATAHY PESAVENTO
timidade com uma comadre de que nascem filhos porobra egraça do espirito que
não ésanto, filhos esses que invariavelmente são batizados sob oapadrinhamento do
referido padre. E apesar disso, que é muito sabido, ainda, nenhum padre, que nos
constem aquifoi chamado à barra do tribunal eclesiástico por transgressor das leis
canônicas, quanto mais condenado...
Entretanto, o que realmente deve ter atraído a atenção dos leitores foi a
visita que um de seus repórteres fez à casa dos Simionato, dando um relatório
minucioso do que nela acontecia, repleto de diálogos travados na ocasião..
Reside essafamíliaà rua do Riachuelo n° 178,pavimento térreo dosobrado do
sr. dr. Duarte. Na primeira sala está estabelecida numa alfaiateria, propriedade do
chefe dafamília, e cm que trabalham seus filhos. Receberam o nosso companheiro
duas pequenitas e logo após, o irmão de Clementina, sr. Elmo Simionato, moço de
20 annos epouco de idade. Na ocasião, Clementina achava-se presente; éformosa,
alva e rosada, olhos vivos e cabelo preto e luzidio, depequena estatura ainda, sua
aparência é apenas a de uma criança ingêjiua, não te?n o desenvolvimento próprio
a que sejtdgue-a uma muüjer na completa acepção dapalavra. Olhou com curio
sidade o referido nosso companheiro, parecendo mesmo algo indiferente ao que lhe
succedera. Coitadinho! Talvez nem cogite quão grande éa suadesgraça. Osr. Elmo
excusou-se aprestar asinfoimaçôespedidas em vista deachar-se suaprogenitora gra
vemente enferma, pois logo após a verificação médica do defloramento desuafilha
Clementina sofrerá um abalo em suasfaculdades mentais, tendo tido violento acesso
às onze horas mais ou menos da manhã do dia 26 do corrente.^^
Assim novos elementos eram acrescentados a esta história que se tecia aos
poucos, da Igreja aos jornais e destes à delegacia de policia, para serem osdados
novamente retrabalhados nos jornais. As novidades se davam na exposição da
pobreza do lar de Clementina, sendo seu pai um pobre alfaiate, a viverem no
térreo de um sobrado; a beleza da menina Clementina e sua inocência diante do
drama no qual vivia e elemento de tragédia instalado naquele lar, onde a mãe,
abalada pelo acontecido, começava a apresentar distúrbios mentais!
Este dramaadicional não poderia deixar de ser esmiuçado, exposto, conta
do em detalhes, compondo cenas dolorosas, de molde a mobilizar as sensibili
dades do publico...
Evidenciou-se mais essa desgraça nafamília Simionato no dia 26 das 6 horas
as 7 horas da tarde. Cercaram a pobre senhora de certos cuidados imprescindíveis,
e assim, a hora do costume ela recolheu se a alcova em companhia do esposo. Pouco
depois, porem, ergueu-se do leito repentinamente cmem trajos menores saiu a correr
ruafora, gitandofrases sem nexo. Seu esposo seguiu-a, no intento de alcançã-Lt e
leva-la para casa. Seria 11 V2 horas da noite.
Alguns moços que achavam-se então no edifício da "FlorestaAurora" e im-
mediações, prestaram-se humanitariamente a auxiliar o atribulado pai de famí
lia, conseguindo segurar a esposa dele na travessa Paysandú já próximo a rua 7
240 SANDRA JATAHY PESAVENTO
veefnentes indícios de ter tido relações sexuaes com a menor Clementina Simionato
durante os meses de agosto esetembro. Estando, pois, por talopadre Bartholomeu
Ticcher [sic], vigário das Dores incurso no art. 266§ único do código penal sendo
a menor Clementina de condição paupérrima e cabendo no caso acção oficial, o
escrivão faça remessa destes autos ao Excelentíssimo Dr. Desembargador Chefe de
Policia afim de terem oconveniente destino.^^
Portanto, os autos das averiguações policiais concluíram pela conduta con
denável do padre.
O Correio do Povo, através da sua secçáo cômica Malacachetas, voltava a
atacar, referindo-se à opinião de Tenório, que escrevia para o jornal:
(...) o vizinho Tenório é de opinião que o vigário, por mais que se lave, não
sairá limpo deste negocio, e, por mais que o caso conte, não contara um conto que
seja digno de seu nome. Eu por mitn acho que esse caso do padre Bartholomeu éo
mais lindo conto do vigário que te?n sido contado.'^'
Recebido o relatório do Delegado Cherubim, o Chefe de Polícia Borges de
Medeiros remeteu-o à promotoria publica por intermédio do juízo distrital da
vara criminal, para as devidas providências, ainda em outubro de 1896.
Mas, em paralelo a tais ações, a Igreja, precisava pronunciar-se diante da acu
sação infamante para um de seiLs vigários. O bispo Don Cláudio Ponce de Leon
declarou que soubera do fato pela imprensa, após adenúncia levada ao Correio do
Povo por um dos empregados da Ordem Terceira das Dores. Convocou as testemu
nhas a irem "a seu palácio depor" ç., após colher as informações, entendeu que nada
do que ouvira provara ou simplesmente indicara ser ovigário das Dores culpado do
crime que lhe acusavam. Tendo inclusive considerado seus antecedentes, de todo
honrosos, "julgou-o inocente quanto aofato de toda eqitalquer culpa"c^ Entretanto,
dizia Don Cláudio, ele sabia que as conclusões da polícia divergiam das da Igreja.
O caso gerara grande estardalhaço, e o Correio do Povo chegara a noticiar
que o bispo suspendera o padre de suas funções por maus costumes.''^
Já O Mercantil, na mesma época, dava outro teor para tais notícias. Noti
ciava que o padre Tiechcr [sic], "naturalmente aborrecido com esse acontecimento
e mesmo para defesa, caso fosse pronunciado",^ pedira e obtivera exoneração de
suas funções de vigário da paróquia das Dores. Como jáera sabido, mudara-se
das Dores para o Palácio Episcopal. Ou fora o bispo que tomara esta decisão.^
As noticias eram desencontradas...
Na seqüência das noticias que se sucediam diárias, AGazeta da Tarde anun
ciava em 13 de outubro que o bispo teria cedido à pressão da opinião pública,
convencendo-se da criminalidade do padre, uma vez que decretara a igreja
como interditada. Se isso por um lado era positivo, por outro lado poderia ser
fatal para a Igreja como instituição, pois outros templos podiam sofrer também
interdição, tais os atos imorais que ali tinham lugar, passando a desfiar denun
cias, sabidas e ouvidas aqui e acolá:
o DIABO NA SACRISTIA: O PADRE, A MENINA E AS VERSÕES DO FATO 245
Acapela dos Passos teni wnafama de aícouce eêpublico enotório qtie ozelo de
certíis rabichíuLu vae ao ponto de se meterem, pelosfundos dacapela, ostensivamen
te, em companhia do esquálido sacerdote que ali tem ogalinheiro. Nacapela de São
José, háanos, um padre daordem deJesus desonrou afilha de um alemãofabricante
de gaiolas, ficando para ahi, atirada a pobre moça, mãe de uma aiatura nascida
de seu infortúnio.(...) Láestá em Montenegro, opadre Knobs que no Rio dos Sinos
seduziu uma moça, sendo transferido para oRio Pardo onde não o toleraram, pre
cisando ser expulso. Na sua nova parochia ofende a moral vivendo publicamente
amigado com uma sujeita que tem em sua casa, ao mesmo tempo que vai para o
púlpito pregar contra ocasamento civil esancionando oconcubinato religioso.^^
As denúncias anticlericais da Gazeta da Tarde reriam o seu prosseguimenro
ao longo deste agitado mês de outubro, com novos e renovados casos, como
o do padre do Convento do Carmo e perseguir —e apanhar —uma freira que
lhe fugia, a gritar desesperada que ele fosse fazer isso com a MadreJoamia^A^ Os
conventos eram verdadeiros lupanares, ponderava o periódico...
Comentando a interdição da Igreja das Dores, que estabelecia ainda que
rodos os atos religiosos ai celebrados passavam a ter lugar na Catedral, A Gaze-
tinha se perguntava:
Terá a autoridade eclesiástica reconhecido a culpabilidade deseu preposto? Não
émuito de crer se isto, porque é bem sabido que oespirito de teimosia, depertinácia
embora estúpida, é um dos predicados mais notáveis da padrecada. O crime de
Fietsch [sicj, segundo asaveriguações policiais, esta provado; mas apesar das provas
éjá sabido queofatitasmagorico tribunal eclesiástico deixou deachar criminalidade
no proceder desse vigário com a desgraçada menor Clementina Simionato... (... )
Ninguém negará de boafé que opoder padresco envida esforços para livrar aquele
nojento d.Juan de batina, dajustiça civil, dajustiça legal.^^
Aventava A Gazetinha que talvez a interdição do Igreja das Dores se devesse
a uma vingança do bispo contra a posição de alguns membros da Ordem Ter
ceira, que haviam provocado a eclosão do escândalo.
No meio destes acontecimentos, tornava-se necessário uma reunião de toda
a congregação dos Irmãos da Ordem Terceira para tomar uma atitude diante
do ocorrido. Já no início do mês de outubro A Gazetinha trazia a seus leitores
os comentários que se ouviam nas ruas, convertendo o murmúrio do povo em
palavra escrita:
Diz-se a boca pequena, queo sr. Ernesto Carvalho não tem o apoio da Ordem
Terceira de Nossa Senhora das Dores, da qual é o secretário, nessa questão escan
dalosa originada no templo. Diz-se também, que vai ser convocada uma reunião da
referida Ordem ou cousa que o valha, para tratar-se do caso. Se é verdade aquilo,
é de extranhar, pois cremos que o sr. Carvalho fez o que lhe cumpria fazer em tal
emergência, isto é, procedeu com energia desde que lhe constou haver imoralidade
na igreja epelo menos na aparência isto se lhe evidenciou. Agora mesmo équea Or-
246 SANDRA JATAIIY PESAVENTO
dem elas Dores deve prestar todo o apoio deseu sea-etário, visto a maneira grosseira
com que osr. dom Cláudio, na igreja, recebeu as razões que ele tentou apresentar em
justificação de seuprocedimento. Quem sabe se osr. bispo amda assusta gejite? Pois
éperder o medo porque é desarrazoado. E tão ridículo como as tais excomunhões
divorciadas das leisda Justiça...^
Naturalmente, aproveitava para transformar os boatos em argumentos que
serviam à causa a qual se dedicava: o anticlericalismo. E arrematava a notícia,
em principio seria, com uma piada final, bem ao estilo que cultivava e que de
veria ser do agrado dos leitores:
É o caso: cautela e caldo degalinha. O que nós explicamos assim: cautela para
o vigário e caldj) de galinha para a pobre da menina Clementina...
Mas, na tâo esperada reunião da Ordem Terceira das Dores, os aconteci
mentos tomariam outro rumo. O prior da Ordem, o general Sabino Salgado,
censurou as denúncias feitas por Ernesto Carvalho contra o padre, ao passo que
muitos dos presentes manifestaram seu ressentimento contra as censuras do
bispo ao secretário da Ordem Terceira que denunciara o padre Bartholomeu,
em reprimenda que parecia seestender a todos. Diante da situação, Ernesto de
Carvalho, delator do padre e responsável pelo escândalo de 19 de setembro,
exonerou-se do cargo de secretário que ocupava.^
A questão poderia acabar por aí, para a tranqüilidade da Ordem Terceira,
com a exoneração dos dois envolvidos —acusador e acusado —, mas teve seus
desdobramentos, com o afastamento de outros membros da ordem e/ou que
haviam testemunhado contra o padre, como o sacristão, que também trabalha
va como sineiro.
As testemunhas, que na polícia haviam incriminado o padre, diante da reu
nião da Ordem, reformularam seus depoimentos, negando os fatos... Da parte
do bispo, veio a tão esperada pelos mais céticos: absolveu o padre Fisher!
O Mercantil declarava que não tinha dúvidas quanto à inocência do padre,
enunciando um rol de felicitações: à Ordem Terceira, pelas substituições feitas
com a exoneração de parte de seus membros; ao prior, por ter-se saído bem de
um caso que pareciamais gravedo que era em realidade; ao padre Bartholomeu,
pela sentença do bispo, inocentando-o. Findava dizendo que tanto a polícia
quanto a justiça haveriam de concluir também que nunca o padre Barthlomeu.
estivera a sós com Clementina!^'"
Logo, havia uma diferença de posturas muito clara: de um lado a Ordem
Terceira, que acabara alinhada com o bispo, e de outro a policia, que encami
nhara a abertura do processo criminal contra o padre.
Comentava o Correio do Povo que, diante do andar dos acontecimentos, o
padre teria de se defender diante da justiça.''®
Em 20 de outubro de 1896, foi aberto contra o padre Fischer o processo
criminai n.° 134.Paralelamente, o jornalA Gazetinha passou a seempenhar em
o DIABO NA SACRISTIA: O PADRE, A MENINA E AS VERSÕES DO FATO 24?
Referências bibliográficas
1 O Mercantil^ 22.09.1896.
2 Gazeta da Tarde, 30.04.1895.
3 Gazeta da Tarde, 21.09.1896.
4 Ibidem.
5 Gazeta da Tarde, 22.09.1896.
6 Ibidem.
7 Ibidem.
8 Correio do Povo, 22.09.1896.
9 Ibidem.
10 Ibidem.
11 Correio do Povo, 23.09-1896.
12 Ibidem.
43 A Gazetinba, 11.10.1896.
44 Idem.
45 Idem.
46 Idem.
47 Idem.
48 Correio do Povo, 11 out. 1896.
49 Gazeta da Tarde, 08.10.1896.
50 Correio do Povo, 09.10.1896.
51 Correio do Povo, 10.10.1896.
52 Gazeta da Tarde, 10.10.1896.
53 Idcm.
54 Subdelegacia de Polícia códice 4, 2.® distrito, 10out. 1896. Averiguações policiais. Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul.
55 Idem.
56 Idem.
57 Correio do Povo, 11.10.1896.
58 O Mercantil, 13 out. 1896.
59 Correiodo Povo, 18 out. 1896.
60 O Mercantil,, 13 out. 1896.
61 Gazeta da Tarde, 13.10.1896.
62 Gazeta da Tarde, 22.10.1896.
63 A Gazetinba, 22.10.1896.
64 A Gazetinba, 04.10.1896.
65 Idem.
66 O Mercantil, 14 out. 1896.
260 SANDRA JATAHY PESAVENTO
87 A Gazetinha, 25.10.1896.
88 Processo Crime n." 134, maço n'' 3.619, 20 out. 1896; Ai-quivo Publico do Estado do Rio
Grande do Sul.
89 Correio do Povo, 15 jan. 1897.
90 Correio do Povo, 17 .01. 1897.
91 Correio do Povo, 17.01. 1897.
6
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS,
O PODER & O CRIME QUE COMPENSA
do, na esquina da Rua da Ponte com o Beco do Poço? Por esta época, tal Eiras
já devia ter uns 50 anos, mas saúde de ferro e alegria radiosa, permitindo quese
lesse em sua fisionomia o encanto e a delícia da vida...
Baixo, mais para gordo quepara magro, tinha o rosto corado e usava a barba,
airta egrisalha, a passapiolho (...) Era o que pode dizer-se o homem dos sete ins
trumentos (...) além de exímio esfola —queixos', era cirurgião, relojoeiro,, dentista
e amolador.^
Tipo muito querido na época, o Eirasdavaesmolas e gostava de jogar cartas
(bisca e solo) com a gurizada da vizinhança e nos sábados, fechada a barbearia,
pania com umaespingarda na máo e a cavalo, para caçar no Arraial daTristeza,
onde tinha propriedade e família.
Seria este Eiras o mesmo Eiras, primeiro marido de Joanna, que viera com
ela do interior para a capital em 1879 e que vamos acharem 1885 com casa na
Tristeza? Sob este ângulo, os indícios seriam fortes para esta indicação.
Todavia o Eiras de Joanna morreria assassinado neste mesmo ano de 1885,
aos 39 ou 40 anos. E, a parte a coincidência da data de 1879, dos relatos de
Achylles Porto Alegre e dos depoimentos deJoanna, além do sobrenome de se
rem ambos portugueses, os dados que encontramos no processo iniciado contra
um certo Joaquim Fernandes Eiras em janeiro de 1883 referem-se sem dúvida,
a um outro tipo de comportamento, distante do tipo bonacháo descrito por
Achylles PortoAlegre... Sigamos, pois, a estréia de Joanna no mundo do crime.
O local onde teria ocorrido o incidente —onde se localizava a taberna de
Eiras, na Rua da Varzinha (atual Rua Demétrio Ribeiro), correspondia na épo
ca o que se chamava o distrito dos bagadús. Termo celebrizado por Apolinário
Porto Alegre no conto Pilungo^, o texto literário celebriza os Tmteiros e bagadús.
O autor tece a trama inicial era torno das disputas entre bandos de meninos da
cidade alta, que iam a escola—os Tinteiros —e aquelas crianças filhos de famílias
pobres, que viviam na Cidade Baixa, em frente ao Guaíba, a pescar bagadíis. O
conto de Porto Alegre, publicado em 1875, mas referindo-se a uma realidade
passada ao tempo da Revolução Farroupilha, já aponta para umadesigual apro
priação social do espaço urbano.
Na década de oitenta do século XIX, a conotação da área havia mudado:
em correspondência enviada aoChele de Polícia, moradores do distrito dos ba
gadús queixavam-se, emfevereiro de 1884, deque esta região tornara-se umfoco
de vagabundagem, deperaltas ede larápios, com suas tavernas freqüentadas igual
mente por policiais e por representantes daquela escória social. Cidadãos vizi-
nhavam com gente desclassificada e o distrito estaria entregue ao Deus dará... ^
Nesta área da cidade, atuavam Joanna e Joaquim Eiras, pivotse réus de um
acontecimento a envolver violência e ofensas verbais.
Clemente de Ossimas, vizinho de Eiras na Rua da Varzinha, negro, dera
abertura a um processo^ contra ele em função de insultos e iiiiúrias sofridas e
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRJME QUE COMPENSA 265
SobreJoaquim Eiras, Floreiitíno ainda declarou que tem ouvido dizer que tem
sido obrigado a retirar-se do lugar onde tem ynorado por indisposições com a vizi
nhança}^ Ele próprio, sapateiro, tivera uma desavença com a mulher de Eiras
por causa de umas botinas e fora por elaofendido.
Um outro sapateiro que depôs, José Maria da Silva, de 27 anos, solteiro,
teria sido também convidado por Eiras para espancar Ossimas, mas recusara a
oferta e mesmo mandara avisar a vítima das intenções do acusado a seu respeito.
Complementando o depoimento de seu colega de profissão Florentino, afir
mou que a mulher doacusado oprocuravapara espancar umapardinhada casa de
Sousa Lobo}"^ Fora então falar com a esposa de Eiras, que confirmou o convite,
mas ele recusara. Afirmou ainda saber que o acusado era tido como desordeiro
e mau vizinho.
Assim, temos uma história que se tece em torno de desavenças e aitercaçóes
com vizinhos, associada a uma prática que depois se tornará constante: a con
tratação de mandantes para aplicarem surras aos desafetos. A rigor, tratava-se
de um casal problemático, a peregrinar pela cidade devido aos problemas que
causavam nos lugares onde se estabeleciam com sua venda.
Já a testemunha Basílio Gomes Jardim, 34 anos de idade, solteiro, alfaiate,
acrescentou à narrativa um novo personagem, um cerroManoelde tah freqüen
tador da tabcrna do Eiras que perguntara a ele, vizinho da vítima, se não en
contrara um pertence seu que deixara no quintal. Isto o fizera supor que fora
este Manoel o autor do arrombamento, pois ouvira durante a noite, durante o
incidente, as vozes de umas 3 ou 4 pessoas.'^
Dionysio José dos Santos, de 39 anos, solteiro, dizendo viverdejornal, afir
mou que na noite do incidente estava na venda do acusado, pois este lhe havia
contratado para tirar leite das vacas. Estava pois, morando na casa de Eiras,
quando apareceram trêsou quatro crioulos que foram conduzidos pelovendeiro
até a varanda. Supunha, portanto, que estes pretos teriam arrombado a casa da
vítima, pois Eiras já lhe havia feito este convite por mais de umavez. Além dis
so, confirmou que o acusado andava sempre a provocar a vítima, chamando-o
de negão cativo}'^
Ora, estamos nos anos finais da escravidão, pois no ano seguinte, 1884,
o Rio Grande do Sul declararia a abolição antecipada, mediante a cláusula de
prestação de serviços. Questões como raça e condição servil estavam, pois, na
ordem do dia, carregando o estigma de três séculos de escravidão no Brasil. In
sultos como estes —negão, negofilho daputa, cativo, negro sujo —cvâm freqüentes
como práticas discriminatórias, a construir a exclusão social.
O fato da vítima, Clemente Ossimas, ser negro - logo, da mesma cor dos
mandantes contratados pelo casal Eiras - não o exime das injúrias sofridas. Os
Eiras se valiam de negros para aplicarsovas em seus "inimigos", brancos ou ne
gros, como se verá no prosseguir desta trajetória. Valiam-se inclusive da precária
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 267
marido, dizendo que sua filha abraçara-se ao pai, pedindo que náo o matassem,
mas levara um bofetâo na cara e nas ventas que fizeram deitar sangue, ameaçan
do ainda que ficasse quieta, caso contrário lhe ocorreria o mesmo que haviam
feito com Eiras.^®
Posteriormente Joana declarou, que uma filha sua, de 15 anos de idade, ha
via sido espancada, e sendo esta convidada a prestar-se o competente auto corpo
de delito, recusou-se alegando acanhamento, mais tarde tendo o Dr.João Plinio
e o Dr. Abott notado sobre um baú, um lenço com algumas nódoas de sangue,
procurou informar-se a que pertencia o dito lenço respondendo a mesma moça
ser dela, e que as manchas provinham de haver deitado sangue pelas ventas, o
que lhe acontecia as vezes, Joana, no entanto, que procurava persuadir ser o
resultado de um espancamento.
E não selimitaram ao quefica exposta os meios de queJoana lança mão para
verse conseguia comprometer a força, pois que as 3 horas da tarde, mais ou menos,
apresentou-se como roubada em 800$000 RSquantia que dizia Ter sido entregue
por Eiras a sua referidafilha, acresceyitando quea dita quantia achava-se deposita
da em uma carteira nova; cumpre notar entretanto que, por ocasião desua busca,
se encontrou uma caixa defolha deflandres, fechada com um cadeado, e dentro
dela uma outra com diversas cédulas de diferentes valores, quantidade de "nichel"
[níquel], o que leva a crer que era nesse lugar onde se guardava odinheiro, eassim
o único existente?"^
Tendo a polícia realizado um exame do sítio, apreendeugrande quantidade
de armas e verificou encontrar-se no mato queficapróximo, camas de vento e rou
pas, o que indica quesemelhante lugarachava-se desdejá convertido em um verda
deiro quilombo, com tendências a aumentar, segundo se colheu, o que constituiria
mais tarde umagrave ameaça à segurança individual e depropriedadeJ^
Anunciava-se um rigoroso inquérito sobre o trágico incidente, que de novo
vinha encontrar Joanna a agregar em torno de si capangas, apaniguados, sobre
tudo negros. Não é de espantar, pois, que se denunciasse o local como uma
espécie de quilombo, onde se açoitavam negros fugidos.
Presos, os capangas de Joanna confirmaram as relações de dependência
mantidas com ela, em seus depoimentos. Olegário Rolim declarou que tinha
vindo por chamado da dona da casa de notne Joanna, para o que "désse e viésse"',
João Maria, ex-escravo de João Gonçalves Lopes e no momento liberto condi
cionalmente , declarou que viera por convite da dona de nome Joana, não tendo
dado ciência ao seusenhor, com quem tem contrato deserviço', Cândido de 70 anos
de idade, natural da África, ex-escravo deJoão Gonçalves Lopes e atualmente
contratado deste, disse ter sido chamado por Joanna paia trabalhar em sua
casa; o mesmo sucedera com Elias liberto, com condição de serviço com seu
ex-senhor João Gonçalves Lopes e que teria ido para a casa de Eiras a convite
de Joanna ou de Caetano de 16 anos de idade, também liberto com condição
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER &c O CRJME QUE COMPENSA 273
deserviço pelo mesmo ex-senJior João Gonçalves Lopes, que tinha cliarqueadas
no distrito de Belém/' Ou seja, nos interstícios do processo dedesescravizaçáo,
Joanna requisitava oscontratados, ou seja, os escravos libertos por seus senhores
mediante a cláusula de prestação de serviços.
Também mulheres negras encontravam guarida e serviço junto a casa de
Joana e prestaram depoimento no processo: Claudina, de 42 anos, livre, ou
Luiza Maria da Conceição de 30 anos de idade, natural da província de Per
nambuco, escrava de Ferão Naiciso, residente em Pelotas.
Em 9 de janeiro de 1885 Joana Eiras foi presa, passando a ser seu procura
dor João Pereira Maciel.''- Foi então aberto o processo 1600 contra contraJoan
na de tal —mtãher de Fuão Eiras, mandante do crime e contra seus mandatários,
Manoeíignacio Pavão, Olegario Rollim, Antotiio Capita e um indivíduoconhecido
por fPridj, '^todos identificados como negros, crioulos ou caboclos.
Feito o exame na casa de moradia e negócios de José Teixeira da Silva ata
cada na noite de Natal de 1884 pelo bando armado, foi constatado o emprego
de meios violentos no seuarrombamento e mesmo a tentativa de atear fogo no
prédio. Interrogado, o português José Teixeira da Silva, proprietário e vítima,
narrou o ataque, identificando quatro dos assaltantes afirmando que havia ou
trosdesconhecidos no bandode assaltantes. Seudepoimento, contudo, torna-se
mais interessante quando informa sobre o comportamento de Aííbnso Moraes,
o filho do Coronel Moraes que os assaltantes queriam matar:
Respondeu queofilho do major Moraes, de nome Affonso, costuma embriagar-
se e que nesse estado falta muitas vezes ao respeito e desacata aspessoas com quem
fala ou encontra; que uma mulher que vive em companhia deJoaquim Fernandes
Eiras, de nome Joanna, no lugar denominado Tristeza, havia jurado, isto há cerca
de dez dias, mandar matar o referidofilho de major Moraes, que isso disse à ek res-
pondente naquela ocasião; que a aludida mulher de nomeJoanna, goza depéssimo
conceito, jáporsermuito atrevida e oaipar-se muito da vidaalheiaeaté mesmo da
honra dasfamílias, jápordar coito à vagabundos, desordeiros eescravosfugidos, ou
libertos contratados; que no número das que ela açoita e vivem em suacasa acham-
se os indivíduos à que ele se referiu e que assaltaram a sua casa.
Cabe notar não apenas a máfama deJoanna como o seu hábito de vingar-
se de forma violenta daqueles com quem se estabelecia inimizade. Igualmente,
reitera-se a prática dacontratação ouacoitamento denegros, fugidos ou libertos
contratados, criando ao redor de si uma espécie de guarda pessoal, escolta ou
grupo de ataque, a trabalhar sob suas ordens em troca de abrigo e alimentação
e mesmo dinheiro, quando se desincumbiam bem de alguma tarefa por ela
encomendada. Isto, sem sombra de dúvida, não caracteriza joanna como uma
incentivadora da abolição ou da concessão de liberdade aos negros, mas sim da
formação de uma quadrilha que se formava nos interstícios do processo mais
amplo de desagregação da escravatura no sul. Uma das possibilidades que se
274 SANDRA JATAUY PESAVENTO
ofereciam era, assim, a de integraj este bando armado, sob o mando da fami
gerada Joanna.
Os mandatários do atentado, segundo as diversas testemunhas, gritavam
aosocupantes da casa assaltada: queremos matar-te e heber-te osangue!(...) botem
este homem que está ai dentro para cá, que ele hoje não escapa (...) nós queremos
despedaçá-lo (...) saiparafora; saigaleguinho; sai cozinheiro; sai caboclinho que
te queremos matarJ^"^ Galeguinho, no caso, era o portuguêsJoão Teixeira da Silva
e os nomes de cozinheiro e caboclinho eram dirigidos a AíFonso , uma vez que
seu pai, o Major José Maria Moraes era cozinheiro.
Os depoimentos das várias testemunhas chamadas a depor no processo rei
teraram o mau juízo quanto ao proceder de Joanna: Bernardo Gomes da Silva,
de 51 anos, lavrador, disse que a referida mulher conhecida porjoanninha fizera
ameaças a seu filho mais moço, de nome João, achando que ele iria depor con
tra ela "deixa estar aquele carade tacho que ele me há depagar; o campo ê largo'\'"'
Julgava que Joanna gozava depéssimo conceito, pois que de todosfala sem razão,
sendo a casa em queela vive com Eiras um verdadeiro coito de bandidos.'^^
Antonio Gomes da Silva, de 19 anos, trabalhador em uma olaria, filho de
Bernardo, confirmaria o mau conceito de Joanna na vizinhança, dizendo mesmo
ter ouvido tuna vozde mídher, que pareceu sera deJoanna,sairde dentro de uma
carretinha, a dirigir ordens a seus capangas durante o ataque, mandando pegarem
machado e querosene para porfogo na casa. A presença deJoanna foi confirma
da por Mauricio Teixeira da Silva, de 28 de idade, português, viúvo, e irmão do
baleado, disse ter ouvido da parte dos capangas durante o ataque da sua casa de
negócios: Diga a DonaJoanna que inande okerosene que está na carretilha.
Joanninha, tida como a mulher que vivia com Eiras —não há menção nos
depoimentos de que seria sua esposa —, era considerada por todos os vizinhos
como coisa muito ordinária, e que havia dito que iria matar Affonso. A versão
de que Joanna estivesse dentro de uma carretinha, acompanhando o assalto,
foi confirmada por outra testemunha, Antonio Pereira da Silva, de 34 anos de
idade, português, vendedor de leite de vacas.'*'' Declarou ainda que Joanninha
é cousa muito ruim, assim considerada por todas as pessoas da localidade, que só
a desejayn verfora d'ali para sossego de todos dando coito em sua casa a uma
súcia de bandidos.Outra testemunha declarou que ela mandava roubar gado e
outros animais'*^, uma outra informou quecostumava ameaçar demandar matar
a diversas pessoas.^'QomçAtmcmàxiáo o rol de crimes, um terceiro denunciou
que Joanninha [homisiava!] diversos indivíduos em sua casa, os quais praticavam
roubos e levavam a ela osprodutos dos mesmo^^. Portanto, em matéria de contra
venções, Joanna Eiras praticava um amplo leque...
Galvani Jacintho, de 42 de idade, casado, natural do Império Ausrro-Hún-
garo, província deTrento, lavrador, deu notícias de um outro ataque, que pre
cedera aquele havido nacasa do português José Teixeira daSilva, pelos capangas
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 275
dos dois envolvidos. O nome de Joanna Eiras deixara, neste momento, de ser
mencionado no processo contra Pavão e João Maria.
Inocentada, beneficiada pela invisibilidade obtida, os anos passavam, os
filhos cresciam e Joanna deslocava-se mais uma vez pela cidade.
Em junho de 1889, vamos encontrar o registro do casamento realizada na
Igreja Catedral de Porto Alegre, paróquia Nossa Senhora da Madre de Deus, de
sua filhaMaria Assumpção Fernandes, de 19 anos,com o CapitãoJordãoAntu
nes d'Almeida, de 23 anos, soldado do 13® Batalhão de Infantaria. A noiva foi
declarada ser filha de Joaquim Fernandes d'Azevedo (Eiras) e Joanna Fernandes
de Oliveira*^^. Mais uma vez, os nomes apresentavam variações...
por ter visto deitada ejá despida sobre uma cavia na sala a mulher do mesmo
Jordão; e como este persistisse em que entrasse, entrou efoi então que a mulher de
Jordão, disse-lhe quefosse dormir na [cocheira], o quefez encnminhando-se para
lá onde deitou-se e adormeceu. (...) ' Ou seja, Fiel Cândido, a pedido de Maria
Assumpção, deixaia esta noite de dormir na cozinha e fora dormir na cocheira,
juntamente com os animais.
Já noite alta, quando saíra para urinar, vira parado em frente da porta da
rua um vultoque reconheceu ser Avelino Pedroso de Moraes, aimado de pistola
e facão e uma garrafa de cachaça na mão, tendo lhe oferecido um trago que ele
recusara. Acrescentou que Avelino já tinha passado por ele mais, quando estava
a guardar os animais, dando-lhe boa noite e, de modo misterioso, impor-lhe
silencio, levando o dedo a bôca.
Cabe notar que o depoimento de Fiel Cândido era extremamente incrimi-
nador com relação a Avelino, confirmado pelo possível reconhecimento desta
personagem por Lúcia Luterotti.
Tarde da noite, acordara sobressaltado com o barulho de tiros que trouxe
ram-lhe a lembrança ofato dos encontros quetivera com Avelino Pedroso, rondando
a casa e vendo quealguma coisa deperigo se estava passa7ido no interiorda casa"^
Com medo, fugira para o mato, tendo contudo tempo de ver imi vulto que se
evadia d casa. Só saíra do mato de manhã, quando viu a casa rodeada do povo e
de soldados, vindo então a saber do assassinato do Capitão Jordão Antunes de
Almeida. Pelo que presenciara e ouvira —detalhe do depoimento que pressupu
nha um rumor, um ouvir dizer da vizinhança —o crime havia sido perpetrado
por Avelino Pedroso de Moraes. Di.sse ainda que este não tinha profissão nem
meio de vida algum a tião ser estar ás ordens deJoanna Eiras, de quem ocupa, crê
que gratuitamente uma casa que ela possuijuntoa um pequeno chalet, ao lado da
Colônia Africana:"^
Portanto, as declarações do negro Fiel Cândido culpabilizavam Avelino,
mas o ligavam, de maneira clara, ao bando deJoana Eiras.
Daquela que, com atestado de pobreza, se casara com Massera cm 1893, já
a encontramos proprietária, em 1896, de um imóvel na rua Sete de Setembro,
na centro de Porto Alegre, de uma chácara com animais, um chalet e uma pe
quena casa no arrabalde da Colônia Africana.
O minucioso relato de Fiel Cândido foi confirmado, com mínimas va
riações de detalhe, por Juvencio Ignacio dos Santos, de 36 anos, carpinteiro,
sabendo ler e escrever casado, morador da mesma Rua Boa Vista da Colonia
Africana que dele ouvira a história do crime ocorrido. As variações diziam res
peito a duas saídas de Cândido para a rua na noite do crime - uma para fumar,
outra para urinar —que fora ele Cândido que o chamara, mas o outro lhe impu-
sera silêncio; que, depois da fuga para o mato, ele se homiziara na casa de uma
vizinha, lá passando a noite."^
282 SANDRA JATAHY 1'ESAVENTO
trava o negro Fiel C.andido ao depor: Evã lastijndvel o estado de projunda exa
cerbação desse mísero prelo velho, quando chamado a minha presença para depor.
Perguntando-lhe omotivo do manifestopavor deque se mostravapossuído, declarou
que lamentava-se de tersido testemunha do que tinha de revelar, pois acreditava que
Joanna Eiras, sabedora disso, não descansaria talvez enquanto não ofizesse matar.
Foipreciso garantir-lhe toda a segurançapara que se tranqüilizasse edepusesse.
Sobre o interrogatório feito a Avelino Pedroso de Moraes, dizia-se que o mes
mo se emaranhara desastradamente num extenso e enredado tecido de contradições
flagrantes, quese chocavam contra osdepoimentos das demais testemunhas.
Um ponto do relatório é particularmente significaEivo: Não seperca de vista
que o capitãoJordão Antunes de Almeida cntretivera nos últimos dias de sua vida
freqüentes e violetitas rixas com sua mulher, que suasogra é o qtie todos sabem e que
esse pobre moçofoi vilmente assassifiado dormindo o sono solto nopróprio leito.^'^
Sobreesta passagem, pode-se ver uma avaliação já conclusiva: o culpado era
Avelino, mas havia um consenso sobre o proceder e o caráter de Joanna Eiras,
para quem o suposto autor do crime trabalhava. A questão da rixa entre o casal
lançava uma suspeita sobre a esposa e, por extensão, a sogra de triste fama.
Já a esposa em questão, MariaAssumpção de Almeida, ao depor não falou
em brigas como o finado marido, mas sim de relações cordiais e extremosas,
envolvendo também as com sua mãe. Falou antes no horror do despertar na
madrugada, com dois indivíduos a entrarem no quarto, um deles desconheci
do, mas como fisionomia de índio ou mulato fusco e o outro claramente iden
tificado como João Polícia. A partir daí, a ênfase do depoimento voltou-se para
a agressão sofrida, ao ser agarrada pelos cabelos, arrancada da cama e jogada na
rua, onde ficou, pisada e sem sentidos, por um tempo que não podia precisar,
até o momento em que se erguera do chão e, atordoada e como louca, saíra a
correr, gritando e caindo a cada passo, em busca de socorro. Sobre o tal João
Polícia, relatou que seu marido o ameaçara com uma sova de espadase voltasse
a praticar outro furto na chácara. Assim, na versão da viúva, Avelino era ino
centado e os assassinos eram dois, caindo no tal João Polícia a autoria de uma
vingança contra o Capitão Jordão, tal como a do furto de355$000 emdinheiro
que seu marido tinha no bolso, um relógio e uma corrente de ouro, bem como as
roupas que ele e ela traziam vestidas.
Mas ocorriam também depoimentos indiretos, de terceiro, que tornavam o
crime ainda mais complicado de elucidar.
Jose Antonio Dias Júnior, parente afastado deJordão, comerciante em Uru-
guaiana e que, segundo aviúva Maria Assumpção, comeria com eles no dia se
guinte um churrasco de terneiro na chácara —teria por seu lado contado aJoão
Ramos, proprietário de um hotel na cidade de Santa Maria, e que se achava na
capital quando ocorrera o crime, que se pudesse demorar mais na cidade sem
prejuízo de seus negócios, não teria a menor duvida em vir espontaneamente a
286 SANDRA JATAHY PESAVENTO
de abrigar duas pessoas numa noite quente de verão como a que fizera, quanto
pelo fato de uma delas de corpo volumoso como a de dela. Fica-se assim saben
do que Maria Assumpção devia ser gorda, de proporções avantajadas... Além
disso, pedira ao preto Cândido que fosse pernoitar aquela noite na estrebaria,
coisa quejamais lhepedira antes, tal comoalegara que seu marido tinha o sono
pesado. Como seria possível, se ele regressara havia pouco tempo das lutas,
como guerreiro ativo dasforças legais?
Seguiam-se os argumentos, a manifestar a estranheza de que Maria As
sumpção houvesse sido poupada pelos assassinos, uma vez que um dos assas
sinos, supostamente João Polícia era inimigo do genro e da sogra... Porque a
condescendência de arrastá-la para a rua, se esta poderia vir a denunciá-los?
Além disso, acentuava o relatório, o quarto onde estavao catre sobre o qual
foi o capitão Jordão, assassinado, é uma peça acanhadíssima, —estar na porta é
estar no interior —é estar mesmo junto aquele catre no local em que se achava
situado; como é pois que à mulher do assassinado, deram os bandidos tempo
para que ela chamasse seu marido, sacudisse-o e conseguisse até acordá-lo do
pesado sono a que estava entregue? Será crível que os facínoras estivessem assim
à vista testemunhando tão pachorrentamente o demorado esforço que ela fazia
para que a vítima adormecida despertasse e se defende.sse? Para arrematar o re
latório da polícia lembrava uma singular circunstancia: o Capitão Jordão depois
de assassinado, foi arrancado da cama e lançado no porão da alcova onde dor
mia, por um alçapão cuja porta no soalho só podia ser encontrada à noite e as
escuras porquem conhecesse bem o interior da casa ou tivesse sido previamente
instruídos a respeito.
Findo o relatório, o Correio do Povo louvou a ação do delegado de policia do
1° distrito, tenente-coronel João Leite Pereira da Cunha, encarregado do caso
e endereçara ao Desembargador Chefe de Policia um extenso relatório, cujas
conclusões o jornal passava a publicar a seus leitores:
Parece fora de duvida que os autores do revoltame assassinato foram Maria
Assumpção de Almeida, esposa da vitima, eAvelino Pedroso deMoraes, capataz ou
capanga deJoanna Eiras, sogra do capitãoJordão. Avelino desde nmito está recolhi
do à Casa de Correção, eMaria Assumpção iráfazer-lhe companhia, desde que seja
pronunciada pelo juiz distrital do crimeP~
Recapitulando as principais peças do processo, aventava-se a possibilidade
de tersido misturado um narcótico a cerveja que tomou o capitão Jordão (dada
por sua mulher), para assim se tornar mais fácil a realização do crime; outro
ponto destacado foi o da falsidade das declarações da viuva, ressaltando ainda
a coincidência singular de que as balas extraídas do corpo do assassinado pelo
Doutor Sebastião Leão eram do mesmo calibre das que haviam sido encontra
das numa pistola de dois canos de que se achava armado Avelino, na ocasião
de ser preso.
288 SANDRA JATAHY PESAVENTO
rido.^® O Correio do Povo^ noticiando o fato, dizia que constava ser engenheiro
ou agriniensor, deslocava-se na região serrana em direção a São Vicente quando
fora detido pela polícia^^ sendo, contudo, logo solto.Ao mesmo tempo, o
jornal Taquaryense, noticiava, em 25 de abril, que estivera aquela cidade a co-
nhecidissima sra. Joanna Eiras, que, segundo lemos no Correio do Povo, de Porto
Alegre, está implicada no assassinato de seu genro, o capitão Jordât) Antunes de
Almeida (...) Em conversa com diversas pessoas desta cidade, essa senhora declarou
que deu-se sempre muito bem com o assassinado, sendo para ele, não uma sogra,
porem uma verdadeira mãe. Joanna Eiras, umfilho, umafilha (menores) e uma
crioula que a acompanham, seguiram quarta-feira, no vapor Corvo, com direção
ao alto Taquary.^^^
Sem perder a oportunidade de comentar a notícia dada pelo Correio do
Povo, a Gazetada Tarde lamentava a impunidade de Joanna Eiras, a passear, em
excursões pelo estado, embora fosse cúmplice de um crime monstruoso, do qual
a polícia tinha provas suficientes.
A impunidade era tal que, voltada da viagem feita com seu marido para Es
trela eTaquary, ao regressar paraPorto Alegre Ibraaté os escritórios do Correio do
Povo para afirmar que eram falsas e caluniosas todas as acusações que lhe faziam
sobre ter tido participação no assassinato de seu genro, o CapitãoJordão. Já Mas-
sera, no exercício desua ocupação deagrimensor, seguira para Uruguaiana'®^.
Comentando as declarações de Joanna publicadas pelo Correio do Povo,
a Gazeta da Tarde exclamava-se: Santa ingenuidade! Oh simplicidade humana!
Que mais queria o colega queJoanna Eiras dissesse?...
Na disputa entre os jornais, podemos apreciar não apenas a notoriedade
deJoana como o fato de mobilizar as opiniões e o debate, revelando interesses
e alianças. Estava presente no mundo do crime e da contravenção, mas nunca
era apanhada!
Entretanto, ao mesmo tempo em que não cessavam os comentários sobre o
assassinato do Capitão Jordão e o possível envolvimento de Joanna Eiras, esta,
em destino incerto e não sabido, tinha contra si um outro processo criminal cm
andamento, que corria na sua ausência, à revelia: o processo de n.° 1872 foia
instaurado contra Domingos da Silva Gonçalves e Joanna Eiras, acusado o pri
meiro de crime de ferimentos em José Garcia Nunes, e a segunda do crime de
extorsão contra João Viegas.
Joanna, usando de violência, teria obrigado José da Silva Viegas a assinar, com
um documento em que ele se declarava devedor daquantia de trezentos mil reis.'^^^
Relatando o crime, o processo se apresenta pleno de avaliações e juízos de
valor, como a contar uma história aos leitores:
João da Silva Viegas, boçal, leiteiro, morador nos arredores desta Capital, foi,
em dias do mês de Fevereiro findo, vitima de uma infame extorsão praticada pela
célebreJoanna Eiras, com um desplante tamanho queparece indicar ter a referida
290 SANDRA JATAÍIY PESAVENTO
No dia seguinte, Joanna Eiras voltara mais uma vez ao posto, eyn atitu
dearrogante efanfarrônica, com a sua audácia e cinismo pectdiares, a acusar os
agentes policiais e a lamentar não ter metido uma bala na cabeça de Renoldi.
Logo, o incidente das cabras vorazes por pouco não teria degenerado em crime
de morte!
O subintendente capitão Travassos repelira energicamente as palavras de
Joanna, dizendo que seela tivesse feito isto o crime de que a acusavam, já esta
ria na cadeia. Os agentes de plantão, no dia da ocorrência argumentavam que
Joanna pedira a presença da polícia porque um italiano a ameaçava de faca e
revólver, mas outros agentes confirmavam que Renoldi estava completamente
desarmado e se entregara pacificamente à polícia.
O relatório concluía pela culpabilidade de Joanna e Massera e solicitava a
sua prisão preventiva, uma vezque se comentavaque eles pretendiam se ausen
tar da capital.
Mas, sem dúvida alguma, havia algo ou alguém a proteger Joanna. Com
que autoridadeela mandavae desmandava em policiais, desafiando as autorida
des? Se o agente Dyonísio era expulso, porqueJoanna, evidente aurora do in
cidente, não ficava retida? Via-se claramente que Joanna sempre se apresentava
bem instruída por advogados, invocando mesmo leis e direitos...
Deste incidente, resultou a aberturade um processo por crime de ferimen
tos na pessoa de Renoldi, tendo o promotor público Andrade Neves solicitado
a prisão deJoanna em 5 de abril de 1898 na audiência realizada com o juiz dis
trital Doutor Marinho Chaves. Joanna se ausentara da audiência, pretextando
doença. O chefe de polícia providenciou então uma força da Brigada Militar
que foi de bonde ate o Passo daAreia, acompanhados de dois oficiais de justiça
com um mandato de prisão. Um repórter do Coneio do Povo acompanhava a
escolta, para registrar os fatos no calor da hora.
Chegando ao local, a força policial cercou acasa onde residia Joanna Eiras,
um confortável chalet^ na Avenida Brazil. Quando osoficiais de justiça bateram
àporta, cm uma janela apareceu oadvogadoJoséJoaquim Francioni, que declarou
não estar em casa a itidiciada. Logo e?n seguida, apareceu odr. Antonio Martins
Costa, quepediu para ver omandado deprisão. Esse advogado, depois de ler aquele
documento, dirigiu-se ao filho de Joanna Eiras, perguntando-lhe se ela estava em
casa, ese consentia fosse dada busca no prédio. Como era natural, a lesposta foi
negativa'-^.
Os vizinhos, contudo, informaram que ela estava em casa, pois a tinham
visto entrar, mas como o mandado não ordenava quesefizesse arrombamento e
busca, aescolta precisou voltar. Tão logo soube, o Doutor Marinho Chaves ex
pediu um mandado de busca, ao mesmo tempo em que mandou cercar o chalet
de Joanna por guardas municipais euma escolta da cavalaria da brigada militar,
sitiando a casa, durante a noite a fim de poder realizar a prisão de Joanna.
296 SANDRA JATAUY PESAVENTO
da lavra do sr. Luiz Cândido Teixeira e da iniciativa do dr. Plínio Casado, advo
gado da ré. Foi redi^do, segundo nos consta, antes dasessão dojury, em presença do
presidente deste tribunaP'^.
Cabe notar a pouca inibiçáo de Joanna em procurar pessoas de proje
ção na cidade, advogados famosos, em suas próprias residências, para arrumar
apoios em suas disputas com a justiça. A julgar pelas informações dadas, neste
momento Joanna Eiras estava com dificuldades de encontrar quem a defen
desse...
Apesar da recusa do presidente do Tribimal em ordenara prisão da ré, finda
a sessão. Germano Hassíocher, acompanhado pelodelegado judiciário tenente-
coronel João Leite, do subintendente Louzada e de dois policiais, com autori
zação do Doutor Manoel André da Rocha, dirigiram-se para o Passo da Areia
para prender Joanna Eiras. Mesmo não tendo tempo para conferir o resultado
antes do fechamento de sua edição diária, A Federação informava que constava
que ela tinha sido presa e já estava na Cadeia, aguardando o dia de ir às barras
dos tribunais.
O julgamento teve lugai* em janeiro de 1899, em sessão muito concorrida
em matéria de público, tendo como juizo Doutor Aurélio Bittencourt Júnior e
como promotoro Doutor Martins Costa. Interrogada, Joanna Eiras disse que
atribuía o processo a perseguições. Apresentou-se sem advogado, conduzindo
ela mesma as perguntas, com todo "aplomb", com osanguefilo e a sagacidade de
um verdadeiro profissional...Ela mesma fazia as perguntas às testemunhas e
ditava ao escrivão as respostas.''*'
Joanna Eiras impugnou os depoimentos das testemunhas, classificando-as
como suspeitas, e dando razões paraisso. Dizia o Correio doPovo quepor duasve
zes, opromotorpublico interino, dr. Martiiis Costa, chamou à ordem a acusada.
Relatava o Jornal do Commercio que Joanna Eiras tinha a fisionomia abati
da e que trajava um vestido de alpha (sic) de seda lilás com enfeites amarelos.
Quando um representante do jornal se levantara para assinar o interrogatório, a
seu rogo, pois era analfabeta, Joanna selevantara dizendo cm alta voz: Euquero
ouvir ler oque se vai assinar! Esó depois de ouvir a leitura do documento é que
consentiu que o mesmo fosse assinado...''*^
Torna-se realmente surpreendente ler suaperformance segundo as notícias
de jornal. Da ousadia ao descaramento, seu proceder dava margem a que se
pensasse que ela tinha certeza de que não seria condenada ede que aprotegiam.
Sua fama ou seu procedimento eram de tal forma conhecidos e comentados
que ela já se tornara uma especie de parâmetro de comportamento delituoso,
caracterizado por sua desfaçatez. Neste mesmo mes de janeiro, ao comentar o
procedimento de um estelionatário que agia na cidade —um tal de Doutor
Candinho - o jornaldo Commercio o chamava de um Joanna Einis de calça e
sobrecasaca]}^'^
300 SANDRA JATAHY PESAVENTO
pelo povo que lotava a sala.O que cumpria neste momento erajulgá-la por um
simples delito de espancamento^ usando de palavras que atingiram o promotor
público que, levantando-se arrebatadamente disse\ Osenhor querfazerfiguração a
minha custai Não admito, não admito!^^^
Sobre este tumultuado julgamento, em carta dirigida privadamente a JC —
Júlio de Castilhos?Jornal do Commercio'*. —em 14 de fevereiro de 1899, Aurélio
Viríssimo de Bittencourt contava:
"AJoana Eiras está na berlinda. A salado tribunal repleta. Atéagorafalaram
com grandes aplausos os acusadores Gennano eAndrade tieves. Este fez-lhe carga
medonha. Na tribuna da defesa o burlesco Cassai. O Timótheo nãofoi visto, talvez
pelo tamanho. A condenação parece inevitável A résorri de tudo; quando o Ger
manofalava, elafazia sinais indicativos de sereste maluco.,
Mesmo diante do júri, Joanna náo perdiaseu ar de debochee desprespeito,
confiante nos possíveis apoios que dizia ter.
Descrevendo a ré, a Gazeta da Tarde dizia que ela tinha quarenta e oito anos
de idade, era branca, alta, magra, com cara enrugada; estava com um vestido azul
claro, já desbotado, enfeitado de vidrilhos pretos e rendas amarelas no corpinho.
Desde quesentou-se na cadeira dos réus atéfinalizar os debates, conservou sempre
um riso desdenhoso, afrontando cinicamente as mais graves acusações. Por diversas
vezes, tapando o rosto com o leque, a fim de não ser vista pelo juiz presidente do
tribunal diriga aos circunstantes mais próximos (sic), aparteando jocosamente os
acusadores
Nada, portanto, parecia abalar sua postura arrogante, o que devia impres
sionar o público presente, e talvez mesmo os jurados e advogados. Nos inter
valos, passeava ao redor da mesa, como um animal enjaulado, dirigindo-se às
pessoas mais próximas e tomando, de vez em quando, uma colher de xarope
que parecia ser de bromureto de potássio. Sua audácia, pois, parecia náo ter
limites.
Um dos jornalistas da Gazeta da Tarde teria ouvido Joanna dizer que as
lágrimas quederramava seufilho menor, que lá estava presente, tiansformar-se-iam
em sangue vertidopelo Doutor Germano Hasslocherse casofossefeiticeira, conforme
ele dizia ú-
O julgamento terminou com a condenação da ré a um ano deprisão celular
e Gaspar Massera, ausente, mas julgado à revelia, a sete meses e quinze dias de
prisâo.Joanna abraçou os filhos que lá estavam e lamentou que seu defensor não
tivesse sido o Doutor Tbimoteo da Ro.sa, que conhecia seu caso e impediria a
condenação'^".
E,apesar dachuva contínua quecaia naquele fim detarde, quando terminou a
sessão do júri, a réfoi acompanhada pordiversas pessoas do povo atéa cadeia civiD''^
Parecia, pois, que houvera uma pequena vitória da justiça frente uma tão
longa série de crimes. Mas o caso Joanna Eiras náo seria apenas um aconteci-
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER fif O CRJME QUE COMPENSA 303
Complementava o periódico:
A opinião estava, corno está, firmada relaiivamente ao ccuo Joanna Eiras, —
criminosa cekhre neste município, a qual, por um inexplicado das cousas huma
nas, o sr. Moacyr, dá hoje o tratamento de "extna. sra. d.Todos estimaram a
condenação deJoanna e ninguém da razão aojuiz de comarca da 3^ vara cujo
procedimento abrindoa sessão, tnereceu as censuras de todos, sem distinção de classes
nem departidos
A rigor, Joanna já era uma lenda na cidade e a Gazeta da Tarde resolveu
escrever a sua história para os leitores, reavivando e memória e contando, para
os mais jovens, proezas que talvez pudessem estar esquecidas. Joanna era, pois,
uma celebridade, cuja trajetória de vida merecia ser escrita nas páginas de jor
nal, através de uma série de notícias, certamente esperadas e apreciadas pelo
público da cidade.
Assim, remontava-se às origens da atuação de Joanna, desde suas façanhas
na Tristezaaté as da Colônia Africana. Para tanto, podemos pensar que a Gazeta
da Tarde se valiam tanto do fora escrito em jornais e dito em processos como
sobre o que se sabia, se ouvia dizer e se imaginava que ela tivesse feito. Uma
história escrita a partir do vistoe do não visto, cujo resultado era uma visão pos
sível. Afinal, Joanna era antiga no mundo do crime, já havia percorrido todas as
escalas e modalidades das contravenções usuais...
É de extrema importância a trajetória traçada no que diz respeito ao es
pectro social, que ela parecia percorrer de ponta a ponta. Joanna era o terror
das populações pobres, por um lado, mas tinha proteções em outros níveis da
sociedade, a tecer relações com a política local... Dizia a Gazeta da Tarde-.
Joanna Eiras, já no tempo da monarquia, era um elemento de desordem com
o qualpodiam contar indivíduos sem escrúpiãos para a satisfação dos seus ódios
pessoais. Protegida naquele tempo por chefetes políticos de ambos os partidos mo
nárquicos, ela fornecia o capanga para as soluções do cacete e dafaca-rnodo (sic)
porque muitas vezesforam resolvidas questões de vindita partidária. Nestas condi
ções, compreende-se o prestigio crescente deque se viu cercada a megera que, além
do valor próprio, teiiha o maior de todos —a posse dos segredos dos luminares da
política daquela época. As autoridadesfaziam-lhe as vontades, satisfazendo-lhe os
mais desarrosados (sic) caprichos. E tola teria sido ela se nãofizesse assuas exigências
em troca dos relevantes serviços prestados a quem tudo podia. A sua casa era então
a ante câmara onde iam ter os reclamantes, que nela viam uma espécie de poder à
parte, colocado entre a polícia c opovo. Chegou o tempo em que Joanna viu que o
seu papel de intennediáriapoderia muito bem transformar-se em papelprincipal; e
ela começou a distribuirjustiça.^^^
Irada, apaixonada, a denúncia da Gazeta da Tarde, contudo, tocava em
pontos fundamentais, como este de ser mandada para passar a mandar, possi
bilidade analítica de um caso de ação na esfera do crime e da violência, onde
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 305
aquele que executa ordens passa, a partir de certo tempo, a utilizar-se de sua
própria força, tornando-se também fome de autoridade, Ainda mais que, no
mundo da políriai, segredos, fraquezas e faltas rornavam-se do conhecimento
daquele que executava, passando a se estabelecer uma relação de troca e auxí
lio mútuo entre mandante e mandatário. Seria, talvez, o caso de Joanna, que
passou a exercer a justiça em causa própria. A cada disputa da vizinhança pela
posse de pequenos bens, cia intervinha, não para resolver o litígio, mas para se
apropriar do bem em questão. Seu poder foi crescendo, e com ele o medo dos
humildes, que sofriam furtos, agressões, insultos, que deixavam de apresentar
queixa por terem medo da desforra da cruel mulher.
Processos movidos contra ela não tinham sucesso, porque outros interesses,
para além das razões da justiça, se fizeram sentir e mesmo em tempos da repú
blica, con.seguira conquistar as simpatias de um funcionário —o subintendente
Travassos, do bairro onde morava —que agira em seu favor.
jMas Joanna era ainda fanfarrona, amedrontando o povo com sua proximi
dade com os graúdos da terra ou com seus poderes sobrenaturais, lembrava a
Gazeta da Tarde.
Depois, convém notar qtieJoanna Eiras gabava-se de boas relações com todos
os políticos e ho?nens da administração. Isto é irrisório. Mas as gentes ignorantes
acreditavam. De umafeita deixou ela no jardim dapraça dois pretetidentes à sua
justiça, enquanto ela, dizia coyiferenciar com o presidente do Estado. Ento'ou de
fato a porta do palácio, sentou-se, no gabinete de espera, pediu um copo dágua
ao servente que Vho deu, e retirou-se após alguns minutos, afirmando aos tais que
a esperavam que tinha sido muito bem recebida pelo presidente. Nestas condições,
imagine-se o medo, o verdadeiro pavor queosimples fiorne dessa mulher lançava na
ahna ingênua das classes desprotegidas. Convém não se esquecer (e éde alta impor
tância para o caso) que joanna Eiras dedicava-se à feitiçaria, fazendo constar aos
pobres crioulos da Colônia que tinha faculdades sobrenaturais. Diabos encerrados
em alcovas ela os tinha aosmil segundo nayra, ainda em tanto assustado, o cocheiro
Felisberto. Um santo quefalava e comia, como gente, erao deus daquele povo que,
nasua ignorância, levava-lhe galinhas, leitões, etc.'^^^
No dia seguinte"^"^, a Gazeta da Tarde continuava a contar as peripécias de
Joanna no caso do ataque e espancamento do italiano Renoldi, com uma rique
za de detalhes que mostrava estar a par do processo e do relatório da polícia,
fontes confirmadas na próxima notícia que se seguiu. O jornal afirmava que
seu intento era altruístico e de fornecer aos leitores a verdade do acontecido,
narrando tudo com a mais sincera fidelidade de acordo com a prova)^\ chavão
bastante utilizado pela imprensa.
Na continuidade da narrativa, encerrando o caso das violências contra Re
noldi, o jornal reafirmava a lisura do processo criminal subseqüente: Tratava-se
de um crime: a justiça não podia cruzar os braços. Exercendo o seu nobre oficio.
306 SANDRA JATAHY PESAVENTO
...Vi sim. Ela seguia, há tempos, pela ina da Praia, e o Andrades perseguia-a
de trazP^^
Noticiava-se que Joanna Eiras fora condenada por forto, mas que o valor
do roubo fora estipulado em 200$000, pois se a quantia fosse inferior a esta
cifra o crime seria prescrito e a ré não cumpriria a pena que estava condenada.
Entretanto, o caso não ficara por isso. Para ser novamente avaliado o valor da
cabra roubada, a Gazetinha informava que o dr. Fausto Neves de Souza no
meara o tenente coronel João Antunes Cunha Neto. Este acabou por atribuir
o valor de apenas 505000 à cabra, enquanto que a multa aplicada a ré devia
ser arbitrada em 6$250. Em vista desta avaliação a réjoanna Eiras está isentado
cumprimento da pena a quefora condenada}^^, ou seja, do pagamento de um
valor pelo furto realizado.
Assim, a própria justiçaapresentava idas e vindas, resultando em benefício
de Joanna e o desfecho motivaria também piadas:
Uma comissão de S. Miguel c Almas anda pelas casas dos irmãos, na lou
vável intenção de conseguir meios para a comprade um carro fúnebre que con
duza a gente desta para melhor. Há dias foram à casa de um fratello, que está
bastante doente de uma constipação, lá nele. Falou-se etc. O irmão, fraternal
mente, assinou duas dezenas de bodes (mais caros que os da Joanna Eiras).''"
O Jornal do Commercio depois "historiaria" aos seus leitores as marchas
e contramarchas de um tão longo e debatido processo, no qual a justiça dera
avanços e recuos face aos recursos interpostos pela celebérrima Joanna, epíteto
preferencial a que fazia jus na imprensa. Depois detersido ela condenada pelo
Tribunal do Júri a quatro meses e meio de prisão, alegara a prescrição do crime
por seu advogado, apresentando tal recurso ao juiz Antonio Fausto Neves de
Souza*". Este considerou, em agosto de 1899, com bons fundamentos e apre
ciável argumentação que a prescrição alegada porJoanna Eiras é improcedente,
razão pelaqual estáelaobrigada a cumprir mais a penaque em boa hora lhe foi
imposta pelo tribunal de Porto Alegre.""
Mas Joanna Eiras não parava de ser notícia, pois, mesmo recolhida à Casa
deCorreção, era noticiado que seria submetida anovo processo, impetrado pelo
Doutor Andrade Neves Netto, desta vez para responder pelo furto de um carro
de praça e dois cavalos, pertencentes ao cocheiro de nome Felisberto"^. Assim,
Andrade Neves celebrizava-se também, como advogado, em pronunciar crimi
nosos na capital do estado. Neste final de século, fora o responsável por levar a
julgamento duas das mais renomadas personagens do mundo da contravenção,
sempre presentes nas páginas dos jornais: A Crioula Fausta eJoanna Eiras!
Em 14 dedezembro de 1899, Joanna Eiras saiu daprisão, após ter cumpri
do sua pena."'' Para qual de suas propriedades teria ido? Aparentemente, para
nenhuma delas na capital, pois em janeiro de 1900 o Correio do Povo noticiava
que ela teria migrado com sua família para Encruzilhada, de onde fora corrida
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 3 1 I
pelo intendente do município, que lhe dera 24 horas para abandonar a vila.
Joanna retirou-se, prometendo vingar-se do intendente, constando que fora
para SanfAnna do Faxinai, onde seu marido "agrimensor" devia realizar algu
mas medições.'''^
Debochando da situação, a coluna Carrapichos, do mesmo jornal, 'iamen-
tava" a sorte da pobre, corrida de um lugar ao outro, a andar de Herodes para
PilatoSy ameaçando ficar iem eira nem beira..
Mas Joanna não seria esquecida tão facilmente, e velhos casos retornavam,
assombrando o novo século.
No início de 1903, o Livro de Registro deAveriguações da Policia informava
o recebimento de material relativo ao assassinato do Capitão Jordão, ocorrido
em 1896. O relatório recebido retomavaas declarações feitas pelo preso Aveli
no Pedroso de Moraes relativamente ao crime, lamentando a demora havida,
uma vez que fora difícil encontrar as moradias das pessoas citadas e muitas
haviam sumido. Caberia lembrar que, nos diferentes processos, muitas das
testemunhas declaravam viver a muito pouco tempo na residência indicada
como atual. Ou seja, as camadas populares migravam bastante pelas diferentes
zonas da cidade, seja em busca de aluguel mais conveniente, seja por trocarem
de trabalho.
O caso, portanto, não parecia estar encerrado, embora oficialmente, Aveli
no fora considerado culpado e pagava sua pena na cadeia enquanto que Joanna
não fora para a prisão por tal crime... Mas se isso se dera no plano da justiça, as
averiguações policiais continuavam!
Fora chamado para novo depoimento um vizinho da Rua Sete de Setem
bro, onde Joanna vivia na época, o tenente coronel José Evaristo Teixeira. Este
vira na manhã posterior ao crime um sujeito ruivo —semelhante ao que fora
condenado —apear-se do cavalo e que, em sua opinião, fora dar contas do as
sassinato cometido, notícia que produziu muita alegria na casa. Joanna mesmo
daí a pouco cliegara a sair para a rua para exprimir a sua satisfação. Disse ainda
que era voz pública queela esuafilha, a mulher do assassinado, haviam combinado
suprimi-lo, porque dera uma grande sova na mulher.'"'^'
Também fora ouvida D. Josefina, esposa do majordo 3.° batalhão da briga
da militar, Claudino Pereira, que fora procurada por MariaAssumpção na noite
do crime, a relatar a invasão de sua casa para agredir seu maiãdo. D. Josefina
contara um detalhe interessante: diante da tragédia, a viúva se esforçava para
chorar, mas não conseguia...
Depôs ainda Umbelina Antunes de Oliveira, rua Garibaldi, n.° 35, , ama-
siadacom Avelino Pedroso de Moraes, depôs contra se amante, desdizendo suas
afirmações e chamando-o de um verdadeiro vagabundo que vivia sem dar se ao
mínimo trabalho, sustentado sempre por ela, ausentara-se ás vezes por 3 ou 4 dias,
sem nunca dizer ondefora nem o quefizera.^"^^
3 12 SANDRA JATAHY PESAVENTO
Dias mais tarde, Álvaro mandava publicar nA Reforma o pedido que seu
padrasto fizera de providências ao major Clierubim Costa, chefe de Policia a
cercado atentado que sofrerá."®''
Se o assunto nâo teve boa solução neste caso, ÁJvaro Massera, por seu lado,
iria tornar-se cada vez mais próximo ao governo e parece que, desde cedo, tinha
preocupação com sua imagem pública.
Por exemplo, mandavapublicar no jornal O Independente^ que surgira com
o novo século, poesias de sua lavra, tal como fizera nas páginas d' A Reforma.
Poesias todas, basicamente, românticas, a celebrar o amor e suas penas, sendo
por vezes lúgubres: Ante um túmulo^ a falar de uma criança morta; Lamento,
sobre a perda da mulher amada; A ti, a comparar a amada a uma flor; Num
álbum, a solicitar um gesto de afeição da amada para poder deixar umapalavra
escrita no seu álbum de lembranças; e na poesia Retribuição, dedicada a Mimosa
deSá, o título revela a identidade do objeto de seuamor. Em lun pequeno con
to,À beira mar, espécie de prosa poética, também publicado n OIndependente c
dedicado ao colega João Carneiro Jr., Álvaro Massera narra um história fantás
tica e misteriosa, onde se misturam visões, amor e morte.Poesias, portanto,
típicas de umjovem desua época, a debater-se com os sentimentos, a extravasar
emoções, que marchavam lado a lado com suas questões familiares, que devia
enfrentar.
Mas, o mesmo jornal que publicava suas poesias sentimentais, noticiava
outros acontecimentos, relacionados com a peregrinação de sua mãe pelo inte
rior do Rio Grande e de suas novas façanhas:
Somos informados por noticias vindas da Barra do Ribeiro, que a célebre mu
lherJoanna Eiras e seu marido Gaspar Massera, estiveram há dois meses mais ou
menos na casa do cidadão João Pmheiro naquela localidade, onde sestearam por
algumas horas, seguindo depois viagem para irem pousar em casa de um preto de
nome Adão. Ai nesse lugar, os tais viajantes, com opoderde sua varinha mágica,
conseguiram de Adão uma procuração parafazerem venda de um pedaço de tena
nafazenda denominada Guará, distrito daBarra do Ribeiro. Sabemos porem, que
as autoridades do 7°distrito tomaram conhecimento dofato esaíram aos embargos
dos vigaristas, isto é—estão providenciando no sentido de nulificar (sic) a talprocu
ração. Cautela com a megera\^^^
Mesmo perseguida, corrida das diferentes localidades, Joanna eseu marido
e comparsa Massera não deixava de aplicar golpes, tornando-se, por assim dizer,
uma persona no grata em escala regional.
É interessante pensar nesta aparição, pública, intelectual e artística deÁlva
ro, em correlação com as atividades desua mãe. O jovem publicara, no mesmo
jornal O Independente, um artigo contra a feitiçaria, motivado por um ruidoso
caso acontecido em Porto Alegre, em torno de um certo Tio Pedro, negro ve
lho dedicado a tais práticas de exploração da crendice popular e que fora preso
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA E1R/\S, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 31 5
Quesiga, o caro amigo, oseu destino equeseus ingentes esforços sejam coroados
do maisfeliz êxito, são os votos quefazemos.
Assim, a comunidade vinha a saber que, naquele ano de 1902, Álvaro Sér
gio Massera, nem tão criança assim, completava, com distinção, por conduta e
aplicação aos estudos, o curso preparatório da Escola Brasileira. Anos maistarde,
ao dissertarsobre este que seria uma personalidade rio-grandense, Dante Piantá
escreveu que Álvaro Massera fizera seus primeiros estudos, afrontando todas as di
ficuldades quelhesurgiram no caminho}^- Aludiria a uma infância problemática,
com a mãe a aplicar golpes e a ser processada, sempre às voltas com a polícia e
as reclamações dos vizinhos, a mudarde residência e de bairro em Porto Alegre,
conforme ia praticando seus crimes, maiores e menores?
As mesmas referências elogiosas ao perfil do bom estudante constam do
atestado fornecido pelo professor Ignácio Montanha, que lhe serviu de base
para o ingresso no primeiro ano da Faculdade Livre de Direito de PortoAlegre
no mês de março de 1903, aos vinte e dois anos de idade. Portanto, o plano
de cursar Direito em São Paulo fora mudado para o ingresso na Faculdade de
Porto Alegre. Ignácio Montanha, além de mestre, parece tersido alguém próxi
mo a Álvaro, pois comparece como seu procurador para inscrevê-lo no quinto
ano da Faculdade, em 1907.^'"^
A saúdede Álvaro parecia ser frágil, pois por três anosconsecutivos - 190.5,
1906, 1907- delegava alguém para realizar a matrícula em seu lugar, por estar
doente. Em 1898, aos 17 anos, estivera na Santa Casa de Misericórdia de
Porto Alegre, internado pelo seu padrasto Gaspar Massera, como pensionista
de D classe, devido a uma fratura do colo do fêmur^"'. Estaria aqui radicado o
problema que o levaria mais tarde à amputação de uma perna?
Ao mesmo tempo, ele parece ter tido uma precoce vida política nos quadros
do Partido Republicano Rio-Grandense, como foi característico desta chamada
"geração de 1907" da Faculdade de Direito de Porto Alegre, integrada por nomes
como Getúlio Vargas, Osvaldo Vergara, Firmino Paim Filho. Integrou o Bloco
Acadêmico Castilhista queapoiou a candidatura deCarlos Barbosa Gonçalves, in
dicada por Borges de Medeiros paraa sua sucessão na presidência do estado, tendo
sido ainda colaborador do jornal O debate, periódico de propaganda partidária e
de difusão doutrinária do situacionismo republicano rio-grandense. Em 1907, A
Federação ao noticiar que Álvaro Sérgio Massera estava enfermo, guardando oleito
há dias, chamava-o de nosso correligionário acadêmico de Direito^^^, denotando sua
filiação aos quadros do Partido Republicano desde os tempos de estudante.
Algo, contudo, deve ter ocorrido com Massera - uma doença, mais uma
vez? -, pois tendo integrado a turma de 1907, não seformou com ela em 1907,
mas sim em março de 1908.-'"
Mas não descuidava da família, a par de suas atividades políticas e acadê
micas. Ainda como estudante, em dezembro de 1906, no quarto ano da Facul-
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 317
dade, dirigiu ao Conselho Municipal justiça para um caso que vinha ocorrendo
com os seus. Possuíam um prédio, quase em ruínas, sito à Castro Alves, n° 34 e
um outro em construção na Av. Bahia, de n.° 28. Referia Álvaro:
Lutando, (eluta exaustiva essa!) com a adversidade da sorte, o suplicame., ape
sar de dividir a sua atividade na obtenção de meios conducentes à sua subsistência,
a par da manutenção deseus estudos, ttão lhe têmsidodado evitar daforma alguma
a inco}rer nafalta depagamento dasdécimas sobre aqueles prédios.-^"^
Estes eram os únicos bens que lhe restavam, pois os outros haviam ido a
leilão, executados pela Fazenda Municipal. Dado o fato dos prédios se acha
rem, um cm ruínas c outro cm construção, sendo impossível alugá-los, e com
os rendimentos, pagar o imposto devido, Álvaro Massera solicitava relevação
das décimas. Em carta datada de 5 de novembro de 1906, que acompanhava a
petição de Álvaro ao Conselho Municipal, Ignácio Montanha atestava que não
restava ao estudante outros bens e que, para custear seus estudos, era obrigado
a dar aulas particulares.*"®
A situação descrita mostra penúria, derrocada de uma família que possuíra
imóveis. Por onde andaria Joanna, nesta altura em que seu filho se encontrava
prestes a formar-se advogado?
No mesmo ano de 1906, sempre a procurar reaver bens para a família, Ál
varo havia entrado, como procurador e tio da menorptibere Edelmira Antunes
de Almeida, filha do falecido capitão Jordão e de sua irmã, Maria Assumpção,
com uma queixa crime contra João Sbelczyk, dirigindo-se Curador Geral dos
Orphãos da capital. A queixa se dava por ter este retirado os moveis que estavam
em um sótão da casa 72" 15 da avenida BrasiL casa essa arrematada empraça pelo
aludido Sbelczyk}^'' Pronunciando-se também contra o aro levado a efeito pela
Fazenda Municipal de levar à leilão o imóvel, Álvaro Massera argumentava que
os bens e os pertences que neles se achavam pertenciam à herança da menor,
que se via assim duplamente lesada em seus direitos. No seu entender, Sbelczyk
arrombara a peça onde a mãe de Edelmira guardara os bens da menina e dera
sumiço neles.
Chamado a prestar depoimentos, João Sbelczyk declarou que arrematara a
casa e para lá se mudara; deparando-se com alguns moveis velhos no sótão, que
soube pertencer a Joanna Eiras. Mandou então avisá-la para que os retirasse e
como ela não quisesse fazê-lo, chamou seus visinhos José Zurosisld, negociante
eJosé Pomaradzki, operário, residentes na mesma rua n^ 36 e 27 e cm presença
dessas testemunhas fez o arrolamento dos moveis e mandou entregá-los ao Juiz
de Ausentes, Doutor Aurélio Júnior.
Entretanto, duas testemunhas arroladas por Massera disseram não ter visto
no sótão da casa os móveis da neta de Joanna: um deles, Ildefónso Gonçalves
Pires, fora por um tempo encarregado de alugar a casa não vira os tais móveis,
tal como Ernesto Dias, auxiliar do 3.° posto policial, que acompanharaJoanna
318 SANDRA JATAHY PESAVENTO
acé a casa de Sbelczyk, também nada vira, mas sabia que Joanna Eiras agora
reclamava até pedras de brilhante e correntes de ouro.
Na verdade, no documento anexado ao processo e que arrolava os bensper
tencentes à Edelmira e sua máe Maria Assumpçáo, escrito com terríveis erros de
ortografia, constavam, entre numerosas peças de roupa feminina, de qualidade,
com atavios e de boa fazenda, acessórios como cliapéus, calçados e luvas, linge-
rie, roupa de cama e mesa, tapetes e cortinados, móveis, incluindo um lavatório
com pedra de mármore, objetos de utilidade doméstica —abajures, lampiões e
lamparinas, máquina de costura, louças, panelas, talheres, ferro de engomar —e
uma curiosa lista de objetos religiosos, de uma espécie de altar caseiro, onde se
revelava a existência de prata e ouro:
tualhas da messa do santos 4 sendo 2 de croje enfiada com [fita?] e 2 de [amo-
rin?] de noivaemfeitada com renda
tapete do altar crande1
espanador do altor (...)
messa do altar da crande são duas
1 defiimador do altar de ban'o os santos de vulto qtie estão no altar são 2 nossa
senhora da Conseição contem uma corrente de ouro com gruseiro
nossa senhora da Assumpçáo contem corrente de ouro com dous annes com pe
dra de brinte
nossa senhora d^ Rossario Conte um balseira de ouro
menino jesus 1 conte uma aliaça de ouro
santo Átonio conte um pregador deouro com pedra dediamante
santa rita com auma [corca?] de prata
dados este santo envulto contem em redomas de vidro
cortina decroje enfiada comfitta com a estrellas da Republica
do altar
salvadeprata do altar 1
(...jvassos deflor artificias 4 queficam perto do altar^^~
O documento finalizava com uma declaração, assinada: Arrolamentofeito
por mim e acinado. Edelmira Antunres deAlmeida. Porto Alegre 13 deSetembro
de 1903, tendo sido escrito primeiramente 4 e depois 3, por cima, corrigindo
o ano. Ou seja, Álvaro Sérgio teria entrado com sua queixa três anos após a
feitura do arrolamento por Edelmira, tão cheio de erros. Assistida por sua
avó e tutora, Joanna Oliveira Fonseca Masera, - o que nos autoriza pensar
que a máe da menina havia morrido —Edelmira passara procuração em 31
de agosto de 1906 a seu tio Álvaro Sérgio Massera para receber importâncias
que lhe sejam devidas e reivindicar, judicial ou extrajudicialmente, bens moveis
ou imóveis
Entretanto, feitas as diligências necessárias, não resultaram elementos que
autorizassem uma denúncia-crime, pelo que o processo foi arquivado. Resta,
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 319
O caso ficou por isso mesmo, reconhecendo as autoridades que nâo havia
ali nenhum crime. Entretanto, cabe o registro do envolvimento do filho nas
peripécias da mãe, que não havia encerrado sua carreira na contramão da vida.
Uma nova faceta de suas práticasagorase revelava: o de exercer a violência con
tra moças que trabalhavam em sua casa, como no caso de Dorothea.
A prova é que no ano seguinte, em 1916,Joanna Eiras comparecia como ré
em um novo processo criminal^-^. Nomeadacomo Joanna Massera, era acusada
de espancar violentamente as menores Maria da Conceição, Angelina Schmidt e
Ambrosina Rodrigues da Silva, suas serviçais, a ponto deproduzir-lhesferimentos,
como se podia constatar pela leitura dos autos de corpo de delito. As vítimas
sofriam castigos que, além de imoderados, não eram aplicados com um fim edu
cativo que os justificasse, visto como as menores referidas eratn apenas suas criadas
de servir}^^
Os espancamentos haviam ocorrido na casa da acusada, de meados de mar
ço até princípios de maio. O pai de umadas menores. Justo Pantaleão da Silva,
que havia empregado suafilha Maria da Conceição, menor, de 11 anos de idade
na casa de Joanna, em face das brutalidades que a meninasofrerá fora buscá-la.
Joannao insultara compalavras injuriosas, expulsara Maria da Conceição da casa
aos cachaçôes, apossando-se da sua roupa e negando-se a restituí-la. O procedi
mento deJoanna parecia serigual para com todas as serviçais que tinha. Frazina
Schmidt, mãe de Angelina, de 17 anos, empregada para servir de companhia
à Joanna, fora atraída para a casa com lábias que lhe eram peculiares: prometia
livrarseu marido efilho de umprocesso queestão sujeitos, bem como pagar-lhe-ia a
mensalidade de 25$000 reis. Logo, Joanna Eiras parecia acenar com os serviços
de advogado de seu filho, mas a tão tentadora promessa não foi cumprida; que
além disto Joanna Eiras, castigava corporalmente a menina de um modo brutal;
que no dia2 do corrente ela fora dar em casa de compadre João Pedroso, compa
dre desua mãe, descalça esenii-nún; sendo preciso tomar roupa emprestada para
voltar para casa. Como ocorrera com Maria da Conceição, Joanna Eiras, ficou
com a roupa pertencente a Angelina, negando-se a restituir-lhe.
Amélia Rodrigues Carneiro, que havia depositado na casa de Joamía Eiras
sitafilha Ambrosina, menor de 15 anos de idade, afim desta providenciar sobre
o seu casamento, qual não foi sua surpresa, quando no dia 4 do corrente, ás 20
horas apresentou-se suafilha em sua casa,fugida para escapar dos castigos corporais
que lhe eram infligidos porJoanna Eiras, bem como a ofensa, que lhe era dirigida
pela mesma, ferindo em seu pudor com palavras imorais na presença de pessoas
estranhas. Declarou maisqueJoanna Eiras, ameaçou a declarante de mandar dar
uma surra.^^^
A incrível Joanna seduzia os miseráveis, com promessasque iam desde a ca
samento (!) à liberação de causas judiciais, para depois exercer violências físicas
sobre as menores e apoderar-se de seus parcos bens.
ENTRE O FATO E A LENDA; JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 321
dos Andradas, dando expansão aosseus desejos de sórdida vingançaP^ Mas Carlos
Cavaco ausentara-se da capital e o processo teve seu fim pela desistência dopróprio
Massera.A rigor, o boêmio Carlos Cavaco, notável orador, jornalista e lídersocia
lista, deveria termuitos pontos deatrito com Álvaro Sérgio Massera. Colaborador
ativod'y4 Federação, Massera náo deveria aturar críticas a seu partido.
Dedicando-seao exercício da advocacia, Massera conquistara grandeclien
tela. Tornou-se depois Procurador do Estado.
Em 1925, Álvaro Massera era eleito deputado estadual pelo 2.° distrito
de Porto Alegre para a 10.® legislatura, a transcorrer de 1925 a 1928, sendo
eleito membro da Comissão de Petições e Reclamações c tornando-se logo seu
presidente.
No decorrer deste mandato, Massera foi ferrenho defensor do borgismo e
do Partido Republicano Rio-Grandense. Para tanto, enfrentou, na 30® sessão,
realizada em 29.10.1925, o debate com o deputado oposicionista Simões Lopes
Filho-^'. O deputado Simões Lopes Filho, que migrara do situacionismo para
alinhar-se junto à oposição liderada por Assis Brasil, a quem chamava de chefe
da democracia no Brasil, acusava Borges de Medeiros e Arthur Bernardes de
manterem o país sob um regime de força: Bernardes a governar sob estado de
sítio e Borges a manter no Rio Grande uma ditadura positivista.
Na defesa da situação política gaúcha, Álvaro Massera acusou o depurado
oposicionista de versatilidade política: desertara do borgismo para o assisismo...
Em resposta, SimõesLopes Filho, mesmo chamando Massera de um mestre de
direito, um oradorfiãgurante, um dos luminares do nosso foro, disse que ele não
tinha autoridade moral para acusá-lo de mudar politicamente de lado, pois já
condenara a ditadura rio-grandcnse, ao fazer um mccting deoperários cm praça
pública da capital, tendo sido varrido pela polícia... Nesta ocasião, escrevera um
artigo criticando o governo do estado! Massera retrucou, negando, a dizer ter
pertencido sempre a um partido, desde a mocidade.
O debate continuou, acalorado, em outra sessão da assembléia^ com o
deputado Massera acusando o colega de tê-lo ofendido ao falar que ele não
tinha autoridade moral para contestá-lo:
(...) entenda que v. ex. atentou contrao único patrimônio, a única riqueza que
me édado desfrutar na vida, que éa minha honorabilidade dehomem que sempre
pugnou pelo seus ideais, que sempre pugnou pelo seu passado, que sempre defendeu
a sua personalidade, personalidade que semprefoi uma reserva de sacrifícios para
poder ser útilum dia aos interesses de sua terra}^^
Empolgado, voltava a rebater o colega oposicionista na sua crítica ao Par
tido Republicano Rio-Grandense, bradando que seu partido tinha bandeira,
programa, chefe, honorabilidade política, tradição histórica. De uma certa for
ma, Massera buscava confundir-se com a própria história do partido. A esta
agremiação política elese filiara desde cedo, quando estudante do curso prepa-
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 323
Morirz, dr. J. Corrêa da Silva, advogado Armando Hypollito dos Santos e Oc-
taviaiio Borba.
No foro central federal, o juiz seccional federal no Rio Grande do Sul,
Doutor Alceu Barbedo, procurador da Republica, requereu que fosse inserido
no protocolo, um voto desmtido pesar pelo falecime?íto do ilustre causídico rio-
grandense dr. Álvaro Sergo Masera, deputado estadual.
No Conselho Municipal, o Doutor Camillo Martins Costa discursou,
enaltecendo Álvaro Massera e requereu a suspensão dos trabalhos do Conselho
em sua homenagem.
Os jornais noticiaram com detalhes as cerimônias fúnebres. O corpo fora
velado na sala da residência da família, na rua Gomes Cai^neiro, n.° 1, no bairro
da Glória, transformada em câmara ardente e repleta de coroas. A família de
Massera fora cercada de amigos, colegas do foro, políticos e correligionários
republicanos. A encomendação do corpo fora feita pelo cònego José de Nadai,
vigário da Igreja Nossa Senhora da Glória e na presença de inúmeras autorida
des, como Getúlio Vargas, presidente do Estado, Borges de Medeiros, chefe do
Partido Republicano e dosdeputados estaduais. O cortejofúnebre contara tam
bém com a presença de muitas personalidades da política local e da melhor so
ciedade, segurando nas alças do esquife o dr. Antonio Augusto Borges deMedeiros,
chefe do Partido Republicano; odr. GetiUio Domelles Vargas, presidente do Estado;
o dr. Nicolau de Araújo Vergueiro, presidente da Assembléia dos Representantes; o
general Firmino Paim Filho, secretario da Fazenda; o dr. Ildefonso Simões Lopes
Filho, deputado estadualpela oposição, eocoronel Francisco deOliveira Neves, pre
sidente da Comissão Republicana do 5" distrito desta capital. No g-ande cortejo que
então se fonnou, viam-se altas autoridades civis e militares, chefes de repartições,
oficiais do Exercito e da Brigada Militar, representantes da imprensa e numerosas
pessoas de todas as classes sociais. O cortejo de automóveis segiiu, depois, o coche
ftínebre, formando longafila, pela Avenida Teresopolis e rua da Azenha até o Ce
mitério da Santa Casa» Acompanharam o enterro três autosfunerários conduzindo
grande quantidade de coroas e bouquets deflores naturais. Em seguidafoi o cotpo
do malogado dr. Álvaro Masera, napresença deextraordinário número depessoas,
inumado no quadro principaldo Cemitério da Santa CasaP^^
Álvaro Massera era casado com Paquita do Amaral Massera e tinha um
filho pequeno, mas deixava sua esposa grávida.
No registro das pessoas presentes ao enterro, os jornais não se cansavam de
arrolar celebridades, a conferir prestígio ao morto Noticiava A Federação-^^ que
fora possível apenas anotar os seguintes nomes: Dr. Getiilio Vargas, presidente
do Estado, acompanhado do snr. João Pinto da Silva secretário da Presidência;
dr.Antonio Augusto Borges de Medeiros, chefedo Partido Republicano do Rio
Grande do Sul; dr. Nicolau de Araújo Vergueiro, presidente da Assembléia dos
Representantes; dr, Oswaldo Aranha, secretario do Interior e Exterior; dr. Fir-
328 SANDRA JATAUY PESAVENTO
mino Paim Filho, secretario da Fazenda; dr. João Fernandes Moreira, secretario
das Obras Publicas; general Cypriano da Cosia Ferreira, vice-presidente da As
sembléia dos Representantes; depurado Othelo Rosa, leaderáz maioria republi
cana na Assembléia dos Representantes e diretord' A Federação; desembargador
Francisco de Souza Ribeiro Dantas, dr. José Montaury de Aguiai* Leitão, dr.
Possidonio da Cunlia, padre Augusto Martins da Cruz Jobim, dr. Aurélio de
Lima Py, dr. Jacob KroeíF Netto, dr. Demetrio Mercio Xavier, tenente-coronel
Firmino Soares de Oliveira, dr. Lucas de Lima, coronel Virgilino Porciuncula,
dr. Ildefonso Simões Lopes Filho, dr. Vicror de Azevedo Bastian, Olympio
Duarte, Carlos Soares Bento e Frederico Carlos Gomes, deputados estaduais;
desembargadores Caio da Cunha Cavalcanti e Augusto LeonardoSalgado Gua
rita; membros do Superior Iribunal do Estado; dr. Luiz José de Sampaio, juiz
seccional federal no Rio Grande do Sul; desembargador Florencio de Abreu e
Silva, chefe de Policia; dr. Alceu Barbedo, procurador da Republica, dr. Prota-
sio Antonio Alves, marechal Carlos Frederico de Mesquita; coronel Claudino
Nunes Pereira, comandante geral da Brigada Militar, acompanhado dos capitão
Agenor Barcellos Feio e primeiro tenente Nicomedes Moreira Rehrig, do Es
tado Maior da Brigada Militar; dr. Sinval Saldanha, vice-intendentee membro
da comissão executiva do Partido Republicano deste município; dr.João Soaies,
diretor geral do Tesouro do Estado; dr. Carlos Heitor de Azevedo, procurador
fiscal da Fazenda do Estado; dr. Renato Costa, diretor do Banco do Rio Gran
de do Sul; drs, João Carlos Machado, Antonio Vieira Pires, Darcy Azambuja
e Cyrino Tiellet Prumes, redatores desta folha; coronel Francisco de Oliveira
Neves e major Antonio Mariante, da comissão republicana do 5" distrito; dr.
Camillo Martins Costa, Octavio Barreto de Oliveira c dr. Basil Scfton, con
selheiros municipais; coronel Manoel Gonçalves Cardoso, comandante do 3"
batalhão da Brigada Militar; tenentes-coronéis Emilio Lúcio Esteves, e João de
Deus Canabarro Cunha, instrutores da Brigada Militar; tenente-coronel José
Rodrigues Sobral e major José Freire de Oliveira e Souza, comandante e fiscal
do H batalhão da Brigada Militar; majorPedro Maya, conferente daAlfândega;
dr. Álvaro Magno Nunes, presidente da comissão republicana do 8^ distrito; di-.
Jayme da Costa Pereira, presidente da comissão republicana do 2" distrito; drs.
Alberto Britto e José Corrêa da Silva, H e 2^ promotores públicos da comarca
desta capital; drs. Antonio Moraes Fernandes, José Carlos de Souza Lobo, An
tonio Henriques de Casaes, Tancredo Tostes, professor Ignacio Montanha, drs.
Eurybiades Dutra Villa, Pedro Vergara, José Pereira Coelho de Souza, Mario
Cinco Paus, Manoel Palmeiro Filho, P oficial da Secretaria da Assembléia dos
Representantes, Carlos da Gama Lobo d'Eça, dr. Raul Bittencourt, Orlando
Gonçalves de Oliveira, Philadelphio Soares, tenente-coronel Accacio Almeida,
dr. Oliverio de Deus Filho, dr. Dario de Bittencourt e numerosos advogados,
serventuários de justiça e outras pessoas cujos nomes nos foi impossível tomar.
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 329
MISSA
Paquita doAmaralMassera efilho, Joan?iade OliveiraFonseca Massera, Fran
cisco de Paula Massera efamilia, Francisca Romana de Souza efamilia. Victalina
Rangel doAmaralefilhas, Dr.JoséVoz doAmaral efamilia (ausentes), Dr. Homero
Vaz doAmaralefamilia (ausente), EdelmiraAnttmes deAlmeida, Teimo deAzam-
btija Cidade efamilia (ausentes), Maria do Amaral Pedroso (ausente), esposa, filho,
mãe, irmãos, sogra, cunhados e cunhadas, sobrinhos e sobrinhas do inolvidavel e
sempre pranteado
Na poeira dos arquivos, os rastros do passado nos indicam pistas. Mas tudo
é um verdadeir quebra-cabeças, pois muitas vezes os dados não fecham ou as
lacunas insistem em deixar vazios e silêncios no passado. O historiador teimoso
tenta montar com o quebra-cabeças uma certa lógica, para entender o passado.
Quer construir versões, plausíveis e possíveis, com os fragmentos escritos. Tem
muitas dúvidas, poucas certezas.
Mas, do texto para a voz, da escrita para a oralidadc, outros murmúrios do
passado insistem para transmitir outras versões, malucas por vezes, fantasiosas,
descabidas, impossíveis talvez. Mas criadas pelos homens de um outro tempo
em função de expectativas, dúvidas e certezas, paixões, medos e angústias. O
que se ouve, o que se diz, o boato, o mal dizer tem, também, o seu valor de
testemunho. Não pela certeza do acontecido, mas pelo fato de serem criações
elaboradas no passado que chegam até nós. Assim, a pergunta cabível seria não
atribuir a veracidade de tais histórias contadas, mas sim porque foram construí
das e o que as autoriza terem tal e tal enredo e atribuição de valor, assim como
porque atravessaram o tempo e chegaram até nós.
E nesta pista lá vamos, para ver o que restou da fantástica Joana Eiras.
Ainda na década de cinqüentado século XX, as mães no bairro da Media-
neira diziam para as crianças quese portavam mal: "Olhaqueeu chamo aJoana
Eira para te levar! Ou seja, a terrível Joana ocupava um papel similar ao bicho
papâo ou ao velho do saco no universo do terror infantil!
Era tão ruim, diziam, fizera tantas maldades, fora responsável por tantos
crimes, que o povo lhe rogara uma praga: não teria ninguém para lhe carregiu:
o caixão. E parece que esta praga se cumpriu, diz N., contando o que sua mãe,
que a conheceu, por ser velha moradora do bairro, lhe relatava...
Assim, o que restou de sua memória na cidade é de umamulhermuito má,
dedicada a fazer o mal, sendo dotada de muito poder e ligada a gente impor
tante, sobretudo políticos.
Já Seu E., pai de N, nascido em 1923, disse que não a conhecera, mas sabia
onde morava: ali na Rua Caieira, esquina com a Rua Professor Oscar Pereira.
Acrescenta N: diziam até que este nome de rua Caieira - vinha da forma do
povo se referir que ali morava, ali estava, ali era a casa de Joana Eira. Note-se
que, na oralidade transmitida dos mais velhos aos mais moços, seu nome se
alterou: de Eiras passou a Eira.
Seu E. nos diz que parece que Joana morrera na década de trinta, pelo que
lhe contaram... Diziam que ela era muito orgulhosa, má, autoritária, que do
minava aquela região da cidade e que ninguém entrava sem a sua permissão na
zona"do cemitério para cá", ou seja, desde a lomba do cemitério descendo a Av.
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 331
Oscar Pereira, até a Rua Caieira e Rua Gomes Carneiro. Diziam, acrescenta seu
E, sempre a repetir o que lhe diziam os mais velhos, que ela acobertava os fugi
tivos, que viviam sob sua proteção. Ela lidava com muita "ralé", e era poderosa.
Neste ponto, seu E. confunde os tempos: dizem que depois da Revolução Far-
roupiíljã houve muita bagunça, tinha muitos prisioneiros, soldados, gentefugida,
perseguida, c neste meio Joana Eira recrutava seu bando...
Ou será que tudo isto se dera por ocasião da Revolução Federaiista, de 1893?
De certo, seu E. nos diz que todos os que entravam para a casa de Joana
Eira trabalhavam para ela. Ela morava em uma chácara, no meio do mato, e
tinha muitos inimigos. Falar de Joana era falar de polícia e de política, e se dizia
que ela era protegida dos políticos. Tinha autoridade e era respeitada. Na sua
propriedade, a polícia não entrava...
O sogro de seu E, avô de N. e nascido em 1902, contava para a família
como fora o enterro de Joanna Eira: a praga rogada se concretizara, pois não
havia ninguém que quisesse levar o caixão!
Do maravilhoso ao dado conaeto —de arquivo, de jornal, de processo, da po
lícia e da justiça - se cruzam as ficçóes. Os tempos podem se misturar, mas certos
dados permanecem, mesmo no relato que fala de pragas e vaticínios realizados: Joana
erachefe de bando, tinha poder e proteção. Açoitava gente, que trabalhava para ela.
Dona M.E. avó de N, nascida em 1906, era neta de escravos. Sua mãe já
nascera dentro da Lei do Ventre Livre. Sobre Joana Eira, ouvira falar muito, era
célebre por seus crimes e falavam até de um assassinato. Ela era conhecida por
se associar a tudo que era "coisa ruim". Todos ficavam com medo dela, ela tinha
uma história de violência e agressividadee era respeitada pelo medo que provo
cava. Talvez, diz dona M.E. ela até tivesse entrado no meretrício...
I.W. moradora do bairro da Glória, diz ter morado perto do terreno onde
Joana tinha a sua chácara. 1. W. reforça o perfil de Joana como uma pessoa "do
mal". Era uma mulher terrível, diz ela, muito má, velha e enrugada, de pele
avermelliada, muito braba. Na chácara, havia muitas frutas e quando as crian
ças pulavam a ccrca para pcga-las, a "velha Joana" soltava um enorme cachorro
dinamarquês para pega-las. A mãe de 1. por muitas vezes batera boca a discutir
com ela, pois a velha Joana tinha o costume de roubar pintos dos vizinhos.
Havia um taquaral a separar as duas propriedades, onde as galinhas faziam
ninho e quando os pintos atravessavam para lá, ela os caçava com uma arapuca
e se apropriava da ninhada. Diziam que seu marido, um velho que andava de
chinelóes na horta, junto a um chacareiro, seu capanga, morrera vítima de seu
comportamento violento. Diziam os vizinhos que ela era de descendência por
tuguesa. Deve ter morrido aí pela década de cinqüenta, bem velha.
Voltando a seu E, ele nos dá uma outra faceta de Joana Eira: diziam que
ela era associada a uma casa de nação —à religião afro-brasileira, e gozava de
proteção espiritual...
332 SANDRA JATAUY PESAVENTO
Segundo Eloah dos Angeles*^®, quando seus feitiços não davam certo, ela
chamava seus capangas, que executavam as maldades que ela ordenava.
Mas, no depoimento de Carlos Augusro Ferrari, Joana Era- em nova alte
ração do nome —teria sido uma belíssima mulher, de traços açorianos quefazia
tremer atéperna depau.
Retoma-se, pois, o prestígio e o proceder, marcados pelo mando, pela ate-
morização, mas agora associados a uma bela mulher, ingrediente que vai jogar
um papel importante nesta série de depoimentos. Aponta-se paraa origem lusa,
inegável que filiação da personagem, mascom uma conotação especial também;
não português, como apontara I. W., mas açoriana, tradicionalmente a.ssocia-
dos a belos tipos físicos, muitas vezes com olhos verdes, a mostrar suas raízes na
colonização flamenga do arquipélago, realizada na época do Infante D. Henri
que, quando uma sua irmã casa com um príncipe de Flandres.
Pois bem, Joana era bela e autoritária, mas foi além: destacou-se na arte
de saber matar. Vivia na Lomba do Cemitério —logo na região da sua última
morada, no bairro da Glória —, local que ficou registrado na memória daqueles
que recolheram suas histórias, passadas de bocaem boca.
Disse Ferrari que Joana tinha uma única filha, que diziam serde Borges de
Medeiros^*^". Aqui as coisas se cruzam, insinuações são recuperadas para dar um
significado preciso à história de Joana: bela mulher, íntima do poder, passando
impune através dos crimes e violências cometidas...porque não ter Borges de
Medeiros como protetor? Protetor e amante, talvez desde os tempos em que
fora chefe de polícia até ser presidente de estado e chefe do Parido Republicano
Rio-Grandense.
Para outro depoente, CaJegari, Joana Eiras era concubina e capanga do
poderoso Borges de Medeiros^'''. Se este mandava no Rio Grande, o que dizer
desta mulher que a ele se associava por laços de afeto?
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER Sf O CRIME QUE COMPENSA 333
por náo ter executado uma ordem da mãe. Rsta então, furiosa, teria atiçado um
de seus cães no filho, que lhe arrancou uma paite da perna. Confirmam-se na
história, os fios condutores de uma trama que envolve fúria, maldade, uso de
cães para a execução de vinganças, dirigida até aos membros da família. Álvaro
na realidade perdera uma perna, mas o acontecido foi ressignificado para dar
reforço ao perfil de Joana e sua fama de ser muito má.
Segundo tais depoimentos, Joana criara seus netos —que na narrativa de
Carlos Ferrari comparecem como filhos de Maria Assumpçâo e nãode Álvaro
—, eliminando, por exemplo, a figura materna de Paquita do Amaral Massera.
Sobre o casal Álvaro c Paquita, M.A.P.C. relata que sua mãe, suaavó c sua
prima llie contavam que estaJoana, amante de Borges, com apoio dos políticos
e sempre a safar-se da polícia e da justiça, infernizara a vida da nora.
Paquita do Amaral era muito linda, Álvaro era muito ciumento e Joana ti
nha ódio da nora...A relaçãosogra-nora era de tal ordem que Paquita não podia
por o nariz para fora de casa que Joana, que morava vizinha, na mesma rua, ia
logo fazer intrigas com o filho, espicaçando seu ciúme. Segundo M. A. a casa
de Joana era na esquina da Rua Gomes Carneiro com a Rua Coronel Neves,
uma casa grande com uma torrezinha e a do Filho era no meio da quadra da
mesmarua. Um dia, conta M.A., batera na porta alguém e Paquita fora atender,
com um chambre estampado, pois a empregada não estava no momento. Des
cera cerca de dois degraus da escada da rua, no que foi vista pela terrível sogra
que imediatamente telefonou ao filho dizendo que sua mulher estava a receber
homens em casa. Ele," ciumento, veio rápido para casa, mas a telefonista —que
por sua vez vigiava Joana que vigiava Paquita —avisou a esposa de Álvaro, que
rapidamente trocou de roupa, tirando o chambre revelador...
O ódio e a maldade de Joana pela nora não tinham limites: Paquita tivera
com Álvaro sete filhos, mas cinco deles —diziam —foram mortos porJoana, que
lhes dava vidro moído misturado na mamadeira e no mingauí Só haviam sobre
vivido dois: Álvaro Masera, médico, e Celeste, poetisa pertencente à Academia
Feminina de Letras c que depois de formada no colégio Bom Conselho dava
aulas particulares de latim. Segundo M.A., em versão confirmada por Eloah
dos Angeles, o médico Álvaro Masera tinha poderes mediúnicos: olhava para o
paciente e dizia imediatamente o que ele tinha (M.A.); utilizava-se da homeo-
patia e banhos com ervas para pacientes com problemas psicológicos (Eloali).
Já Celeste, ainda segundo Eloah, teria também poderes mediúnicos, que se re
velavam em seus poemas.
Nas diferentes versões contadas pelos depoentes, o endereço de Joana no
bairro muda: ora se situa na Rua Caieira, esquina com a Rua Professor Oscar
Pereira {Seu E.), ora na esquina da Rua Gomes Carneiro com a Rua Coronel
Neves (M.A.P.C.), ora na Av. Oscar Pereira (I.W., Luiza Ferrari), ora de forma
mais geral, é dito que morava na lomba do cemitério.
336 SANDRA JATAUY PESAVENTO
Referencias bibliográficas
1 Conforme consta das Fichas de Batizado de seus filhos Álvaro Sérgio e Francisca de Paula.
2 Ficha de Batizado. Cúria Metropolitana. I.i\no B, 13,Igreja do Rosário, 1881 -1882, p. 42v.
3 Ficha de Batizado. Cúria Metropolitana. Livro B, 23, Madrede Deus, 1885a 1887, p. 84.
4 Porto Alegre. Achylles. Homem illiistres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Selbach, 1917,
pp. 165-166.
5 CúriaMetropolitana, Livro C, 4, Rosário, 1877-1880, p. 59.
6 Porto Alegre, Achylles. O F.iras. Jardim das saudades.\*ono .Alegre: Wiedmann & Cia, 1921,
pp. 69-70.
7 Porto Alegre, Apolinário. Pilungo. In: Paisagem. Porto Alegre, Movimento/MinC/Pró-Me-
mória/Instituto nacional do Livro, 1987.
8 O 01.02.1884.
9 Processo n.® 2.830, maço 174, 1883contraJoat|uim Fernandes Firas. Cartório. Vara: Júri.
Arquivo Público do Estado do Rio Cirande do Sul.
10 Idcm, p. 44.
11 Idem, p. 21.
12 Idem, p. 12.
13 Idem, p. 14.
14 Idem, p. 31V.
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 337
15 Idcm, p. 18,
16 Idcm, p. 27.
17 ídem, p. 44.
18 Idcm, p. 10.
19 idcm, p. 33.
20 Idem, p. 36.
21 Idcm, p. 37.
22 Idem, p. 39.
23 Idem, p. 44.
24 Idcm, p. 46.
25 Idem, pp. 50-51.
26 Consultar, a propósito: Pesavento,Sandra Jatahy. Uma outra cidade, O mundo dos excluídos
nofinal do século XJX. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2001.
27 Registrodc Batismos da Cúria Metropolitana. Livro de Batismos n.° 2, Paróquia do Meni
no Deus, p. 11 verso.
28 CartórioA/ara: Júri. Processo n.° 2.837, maço 174, 1884.
29 Idcm, p. 24.
30 Idem, p. 25.
31 Jornal do Commercio, 25.12.1884.
32 Em requerimento datado de 27.12.1885, feito pelos moradores o arraial de Teresópolis,
distrito dc Viamão,a demandar a instalação dc um distrito policial na região,é mencionado
ser esta localidade como sendo a antiga Tristeza. (Fundo requerimento Maço: 233. Ano;
1885. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul).
33 Códice Policial. Maço 100. Correspondências expedidas: 17 de janeiro dc 1885. Of. 17.
Secret. Polícia.
34 Jornal do Commercio, 11.01.1885.
35 Cartório/Vara : júri. Processo n.® 1.535, maço 60, Ano: 1886, Réu: Joana Eira.
36 Códice Policial, op. cit.
37 Códice Policial, op. cit.
38 ("artórioA/^ara;Júri, Processo n." 1.535, maço 60, Ano: 1886, Réu: Joana Eira
39 Códice Policial, op. cit.
40 Jornal do Commercio, 11.01.1885.
41 CarrórioA'ara: Júri, Proce.s.so n.° 1.535, maço 60, Ano: 1886, Réu: Joana Eira.
42 2." Cartório Cível e Crime Sumário/N —1932/M —64/E —28.
43 Proce.sso n.° 1.600, maço 63, ano 1886. CartórioA/ara/Júri. Proce.s.sos crime. Arquivo Pú
blicodo Estado do Rio Grande do Sul. p. 2.
44 Proces.so n." 1.600, op. cit., p.l7.
45 Idem. p. 18.
46 Ibidcm.
47 Ibidem.
48 Ibidcm, p. 21.
338 SANDRA JATAHY PESAVENTO
49 Ibidem, p. 22.
50 Ibidem, p. 45v.
51 Tdem, p. 46.
52 Ibidem.
53 Idcm, p. 43.
54 Júri/N - 1600/M - 63/E - 33.
55 Processo... op.cit, p. 86, v.
56 Polícia —Documentação Avulsa—Delegacia de Polícia. Arquivo Histórico do JRio Grande
do Sul. Maço: 101, Ofício n. 155 de 31.03.1885.
57 Requerimentos da Polícia. Fundos. Maço 233, 1885
58 Secretaria da Polícia. Arquivo Históricodo Rio Grande do Sul, 10.07.1885.
59 Processo n® 1932, maço 64. setembro de 1885. CartórioA^iara. 2® Vara Cível e Crime Su
mário. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
60 Idem, p. 30.
61 Idem, p. 33.
62 Proce.sso... op. cit., p. 113 v.
63 Cúria Metropolitana. Livro C, 10, Madrede Deus, 1888-1893, p. 33.
64 CartórioA^ara: 1" Cível/Processo n° 539/Maço 22/1893.
65 Livro n.® 4 de Registro de Casamentos de Porto Alegre; folhas 20v-21.
66 Cúria Metropolitana, Livro C, Dores, 4, 1891-1906, p.21v.
67 Cúria Metropolitana, Ficha de habilitação de casamento, 1893, 125, PortoAlegre.
68 yí Gazetinha, 01.03.1896.
69 Ficha de códices das policias. Registro de Averiguações, Livro 5, Período 1897-98, Códice
05. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
70 Gazeta da Tarde, 25.01.1896.
71 Ficlias de Códices das poücias. PortoAlegre, Registro de Averiguações. Livro 1, 1896,Có
dice 01 .Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
72 Registro deAveriguações. Livro 1, 1896, Códice 01, op. Cit. R 36.
73 Idem, p. 37.
74 Ibidem.
75 Ibidem.
76 Idem, p. 38v.
77 Idem, p. 40.
78 Correio do Povo, 28.01.1896.
79 A Gazetinha, 30.11.1896.
80 Correio do Povo, 01.03.1896.
81 A Gazetinha, 01.03.1896.
82 Correio do Povo, 05.03.1896.
83 Registro de Averiguações. Livro 1, 1896, Códice 01, op. cit., p. 41 v.
84 Registro de Averiguações. Livro 1, 1896, Códice 01, op. cit., p. 44 v.
85 Registro de Averiguações. Livro 1, 1896, Códice 01, op. cit, p.
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 339
86 Idem.
87 Idcm.
88 Tdem.
89 Idcm.
90 Idcm.
91 Idcm.
92 Correio do Povo, 12.04.1896.
93 Idem.
94 Correio do Povo, 11.04.1896.
95 Correio do Povo, 16.04.1896.
96 Correio do Povo, 12.04.1896.
97 Gazeta da Tarde, 13.04.1896.
98 Correio do Povo, 19-04.1896.
99 Correio do Povo, 21.04.1896.
100 Correio do Povo, 25.04.1896.
101 Correio do Povo, 29.04.1896.
102 Gazeta dti Tarde, 2')SSA.\^^Ci.
103 Correio do Povo, 09.05.1896.
104 Gazeta dti Tarde, 08.05.1896.
105 Caj'iórioA/ara/Júri, processo n." 1.872, maço 77, 1886, ré: Joaiina Eiras. Arquivo Público
do Estado do Rio Grande do Sul, p. 2.
106 Idcm, p. 10.
107 Idem.
108 Idcm, p. 45.
109 Idem, p. 48.
110 Idcm, p. 53 V.
111 Gazeta da Tarde, 09.12.1896.
112 Livro deSentenciados. Casa de Correção de PortoAlegre, 1874-1900. Museu da Polícia Civil
(manuscrito).
113 Os criminosos no Rio Grande do Sul. Álbum Phorográfico organisado pelo Dr. Sebastião
Ixão, Diretorda Officina dc Anthropologia Criminal. Porco Alegre, 1897
114 Relatório do Doutor Sebastião Leão, médico da Polícia, anexo ao Relatório da Secretaria de
Estado dos Negócios do Interior e Exterior do Rio Grandse doSulde 1897,
115 Á Federação, 17.05.1897; Correio do Povo, 19.05.1897.
116 Correio do Povo, 04.06.1897.
117 Não possuímos data dc nascimento deste filho de Joanna com Masscra.
118 CartórioA/ara: 1.°Cartório - Órfãos, Processo 01, Maço: 01, 1897, p. 2.
119 Idem, p. 6.
120 Registro dc averiguações (Livro 5) Porto Alegre, 1897/1898, códice05, Arquivo Histórico
do Rio Grande do Sul, p. I68v.
121 Idcm.
340 SANDRA JATAHY PESAVENTO
122 Idem.
123 Idcm.
124 Tdem.
125 Correio do Povo, 06.04.1898.
126 Correio do Povo, 07.04.1898.
127 Correio do Povo, 10.04.1898.
128 Correio do Povo, 19.07.1898.
129 Gazetinha, 20.07.1898.
130 Gazetinha, 11.07.1898.
131 A Federação,
132 A Federação, 29.07.1898; Gazetinha, 28.07.1898.
133 Gazetinha, 31.08.1898; Correio do Povo, 01.09.1898.
134 Cartório/Vara: 2.® Cartório —Órfãos, Processo 01, Maço: 01, 1897, p. 8 e 10
135 Idcm, p. 22.
136 Gazetinha, 05.12.1898.
137 A Federação, 12.12.1898.
138 Idcm.
139 Idem.
140 Gazeta da Tarde, 13.01.1899.
141 Jornal do Commercio, 14.01.1899.
142 Correio do Povo, 14.01.1899.
143 Jornal do Commercio, 06.01.1899.
144 Jornal do Commercio, 21.01.1899
145 Correio do Povo, 17.01.1899.
146 Gazeta da Tarde, 15.02.1899.
147 Idem.
148 Correio do Povo, 16.02.1899.
149 Gazetinha, 15.02.1899.
150 Sobre esteponto, consultar o capítulo8 desta obra. Feitiço negro em cidade branca: morte cm
família.
151 A Reforma, 15.02.1899.
152 Gazeta da Tarde,
153 Gazetinha, 15.02.1899.
154 Carta do Aurélio ao JC de 14-2-1899, 4,30 p.m. Arquivo Particulardo Aurélio Veríssimo
de Bittencourt.
198 Idem.
199 Idcm.
200 CartórioA^ara: 2.° Cartório —Órfãos, 1899, p. 27.
201 A A órfã...
A...A'ti, quehásde entender-me, consa^o-te estas rimas.
Foi ali...sobre aquela neff-a campa,
queeua vi-chorando a desventura
D'umafillsasem pai!
E corrmdo os olhos sobre um livro,
ejuntando as mãos à umaprece
Ela soltou um- ai!
Esse- aU-perpassou por meus ouvidos,
e levado porforte vento agreste
seperdeuno ar...
e a "órfã", contritae lacrimosa,
deixou a campa- ajoelhou-se ao tumulo
Dum ente de além-mar.
Este, por quem elaagora chora,
foi aquele, que porella amado
Vilmente a desprezou:
e mais tardequando a vida lhefugia,
e o remorso o invadiu-jurou amá-la
e chorando eleexpirou.
Estava a "óyfã"sobre a lápide do tumulo
d aquele quemorreu jurandoamá-la
depois quea desprezou...
Quandoali penetra bruscamente,
o noivo, quejulgando-se traído,
Punhaladas lhe vibrou!
E sobre o túmulodesfolhou-se a rosa,
que deslava secasaraogoivo,
pálida efria e bem envolta em crepe,
vai ela, a "órfã", reunir-se ao noivo!
Álvaro Sérgio Masscra
202 A Reforma, 04.05.1900.
203 Idcm.
204 A Reforma, 04.07.1900.
205 Idem.
206 A Reforma, 16.07.1900.
207 O Independente, 05.10-,10.08;l4.09;24.08;29.ü6.;26.10.1902.
208 O Independente,
ENTRE O FATO E A LENDA: JOANNA EIRAS, O PODER & O CRIME QUE COMPENSA 343
212 Piantá, Dantc. Personalidades rio-gratidenses. Porto Alegre: Globo, Volume I, 1962,p. 66.
213 Faculdade de Direito, Pasta: 72/73 D, Maço: 72
214 Idem.
215 Idem.
216 Livro de enfermos da SantaCasa n." 8, 10/05.1897-13/02/1899, p. 52, n." 86.
1\7 A Federação, 08.06.1907.
218 Cf.Rosa, Inocêncio Borges da. Questõespráticas deDireito Penal. Porto Alegre, Globo, 1936.
(dedicatória); UFRGS, FACULDADE DE DIREITO. Livro do Centenário da Faculdade
de Direito da UFRGS. Porto Alegre: Síntese, 2000.TILL, E. Rodrigues. História da Facul
dade de Direito de Porto Alegre: 1900-2000. Porto .alegre: Martins Livreiro, 2000.
219 Documento Massera. Conselho Municipal, Porto Alegre, 1906, 287 1-1.
220 Carta de Ignácio Montanha ao Conselho Municipal de Porto Alegre. Anexo ao Documento
Massera.
221 Cartório/Vara/Júri, processo crime n.® 148, maço 07, 1906, Arquivo Público do Estado do
Rio Grande do Sul.
222 Idem.
223 Idem.
224 Registro de averiguações 3.® di.strito, 1915-1916, códice 50, Ficha de Códices policiais.
Arquivo Histórico do Rio grande do Sul.
225 Idem.
226 CartórioA/ara/Júri, processo n.° 736, maço 43, 1916, Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sid.
227 Idem.
228 Idem.
229 Ficha de códices policiais. Porto .\legre. Registro de diversos delitos. 1" distrito, códice 30,
1920. Arquivo Históricodo l^o Grande do Sul.
230 Cartório/Vara/Júri, processo n." 815, maço 49, 1917, Arquivo Piiblico do Estado do Rio
Grande do Sul.
231 Anais da Assembléia de Representantes do Estado do Rio Grande do Sul. 34 sessão ordiná
ria, 30= sessão de 29.10.1925, p. 194.
232 Anaisda Assembléia dc Representantes do Estado do Rio Grande do Sul. 34 sessão ordiná
ria, 33= .sessão de 03.11.1925, p. 228
233 Idem.
234 Idem.
235 Idem.
236 -A partir dc um certo momento, a família passa a ser chamada dc Mascra, mas consci-vamos
neste trabalho a graíia original vinda de Gaspar Massera.
237 Idem.
344 SANDRA JATAUY PESAVENTO
238 Idem.
239 Idcm.
240 Annaes da A&semblea de Repreientanres do Esrado do Rio Grande do Sul. 1928. Sessáo
extraordinária junho-julho.20^ .sessáo, 02.07.1928, p. 117.
241 O Rio Grande do Sul cm revista. 1928. Porco Alegre: Globo, 1928, p. 101.
242 Piantá, op. cit.
243 Livro de Óbito. Livro 35. 16.12.1927-30.06.1929, p. 81 e Certidão de Óbito, Cartório de
Rgistro Civil de Nascimentos e Óbitos, 357, 1® '/.ona,Santa Casa, CEDOP.
244 A Federação, 25.10.1928. 29.10.1928.
245 A Federação, 31.10.1928.
246 Diário de Notícias, 01.11.1928.
247 A Federação, 01.11.1928 e Diário de Noticias, 01. II. 1928.
248 A Federação, 01.11.1928.
249 idcm.
250 Idem.
251 Diário de Noticias, 01.01.1928.
252 A Federação, 01.11.1928.
253 A Federação, 03.11.1928.
254 A Federação, 06.11.1928.
255 A Federação, 30.10.1929.
256 A Federação, 31.10.1929.
257 Silva, Maria Helena Nunesda. O "Principe" Ctistâdio ea "Religião"Afro-gatícha. Dissertação
de mestrado. Programa de Pós-Graduação emAntropologia Cultural. Recife, 1999.
258 Idem, p. 43.
259 Idem, p. 42.
260 Idcm, p. 42.
261 Idcm, p. 135.
262 Idem, p. 43.
263 Idem, p. 137.
264 Idem, p. 137.
265 Idcm, p. 131.
266 Idem, p. 42.
267 Idem. p. 42.
268 Idem, p. 131.
269 Idem, p. 42.
270 Idcm, p. 42.
271 Idem, p. 43.
272 Idem, p. 42-43.
7
MARIA DEGOLADA:
A MOÇA ALEGRE QUE VIROU SANTA
iluminada pelas veias dos devotos. Depoisde morta, tornou-se uma santa mila-
greira, mesmo uma virgem mártir.
Mas, se mergulharmos nos autos da polícia, nos artigos dos jornais da épo
ca, comentando o fato e no processo criminai que se seguiu, encontramos ver
sões diferentes para o fato...
A história começa com dados mais antigos sobre a pobre Maria, encon
trados na Santa Casa de Misericórdia, onde ela dera entrada muitas vezes, por
doença. Em 04/08/1897, a matrícula geral dos enfermos desta instituição
acusava a baixa de Maria Francisca Trenz, com 21 anos, de cor branca, natural
do Rio Grande do Sul, filha de José GuilhermeTrenz, viúva e pobre, devido a
uma chloroaiiemia'. No ano seguinte, em 13/05/1898, era anotado que Maria
Francelina Trenis, de 22 anos, filha de José Guilherme Trenis, de cor bran
ca, natural do estado, definida sempre como pobre mas agora como solteira,
entrava na Santa Casa devido devido a eurisipela, eczema da perna} Teve alta
como curada após cerca de um mês de hospitalizaçáo, mas em 10/12/1898
novamente dava baixa Maria Francelina Trenst, com 23 anos, de cor branca,
natural do estado, filha de José Guilher Trenst, solteira e pobre, devido a úl-
ceras na perna.^ Desta vez permaneceu na Santa Casa até 22/03/1899, tendo
saído "a pedido".
Maria Degolada era, pois, pobre e doente, e a variação de seu estado civil
pode denotar que, da primeira vez, seu amásio ou marido vinha de falecer re
centemente. Depois, ela fica "solteira". A idade que se registra ter por ocasião
da morte —21 anos —não corresponde aquela registrada no livroda Santa Casa,
que a tornaria um pouco mais velha. Detallies da vida, que não interferem no
essencial de sua história.
Já Bicudo também, antes do crime, passara pela Santa Casa de Misericórdia
de Porto Alegre em 22/12/1897, quando contava 22 anos, mas por motivo de
uma prosaica gripe! Nesta ocasião, o Livro de Matrícula dos Enfermos o dá
como sendo de cor parda, diferentemente das definições usuais que sempre o
classificarão como indiático^
Os autos da polícia, por ocasião do assassinato, falam sobre Bruno Soares
Bicudo, que era soldado do 1° regimento da cavalaria da Brigada Militar, há
cerca de quatro anos. Fazia cerca de um ano que se encontrava amasiado com
Maria Trenes, mulher nova, de 21 anos, mas já prostituída. Explicitava o es
crivão: Esta mulher é de origem alemã, assim constituída em sociedade de corpos
com Bicudo, foi com ele habitarem um rancho nasproximidades do quartel do seu
regimento na Inventada do Gravatahy nesta cidade}
Notemos que de viúva à solteira, a moça passara à prostituta, para, com a
estabilidade da relação, ser guindada à condição de amásia.
Sendo Bicudo designado para servir no destacamento da Brigada postado
na Chácara das Bananeiras, no arrabalde do Partenon e próximo ao Hospício
M,\RIA degolada; a moça ÁI.EGRE QUE VIROU SANTA 347
São Pedro, sua amásia o acompanhou, indo viver num casebre próximo ao
destacamento. A descrição, baseada no depoimento do réu, faz de Maria Tre-
nes uma típica chi7ía de soldado: mulher pobre amasiada que se desloca junto
com a tropa, seguindo aquele com quem vive. E Bicudo, por seu lado, passara
a trabalhar como empregado nas plantações da chácara do governo do Estado,
denominado Recreio Agrônomo^.
Processo, autos e jornais especificam o momento e local do crime: fora
no dia 12 de novembro, em um belo e provavelmente quente domingo de
sol, quando alguns praças da Brigada Militar tiraram licença para comer um
churrasco fora do quartel, acompanhados de mulheres. Foram em bando até
o chamado morro do Hospício, na estrada do Mato Grosso, em local próximo
à Chácara das Bananeiras. O Correio do Povo diria que tal local era conhecido
como o arraial do Veiga' e A Gazetinha^ por seu lado, indicava com precisão o
local do crime: este se dera nos fundos da chácara do Sr. João de Oliveira Vianna,
em frente ao Hospício São Pedro, no local onde havia uma pedreira.®
O registro das averiguações policiais procedidas após o crime descrevia, de
forma inspirada, que o grupo pretendia assim passar algurnas horas aprazíveis
no campo...
Para talfim tiraram íice^tça do respectivo comandantCy cabo lgilio[sic] Corrêa
da Silva, os soldados Felisbino Aritero de Medina, Francisco Alves Nunes, Manoel
Antonio de Vargas, Maria José Alves de Almeida, amiga de Nunes e Maria Trenes
que viria com Soares Bicudo, se dirigiram a um local próximo do quartel, ponto
onde existe umafigueira do mato e ai sedemoraram algemas horas, divertidos?
As tais mulheres eram amásias ou amigas, diziam os autos da polícia. Eram
mulheres de vida fácil, noticiavam o Correio do Povo e o Jornal do Comércio.
Descrevendo a ce?ra verdadeiramente bárbara que tivera lugar na estrada do
Mato Grosso, o Correio do Povo dava uma conotação mais livre às relaçõesentre
os paiticipantes do passeio campestre;
Pj-aças da Brigada Militar do Estado coítcertaram wn pic-nicpara aquele lo
cal, e o levaram a efeito. Mulheres da vidafácil formavam parte da sociedade. A
reunião começou pela manhã, em umpequeno capão ali existente. Como é natural,
emfestas de tal ordeiJi, houve as diversões próprias do momento. Cada um dos con
vivas procurou tornar-se agradável a uma das mulheres.
Aqui, tratava-se de um encontro entre homens livres e mulheres fáceis, à
disposição do assédio. Não se menciona uma ligação prévia entre Maria Fran-
celina Treves e Bueno Soares, definidos ela como de nacionalidade alemã e ele
como caboclo. É relatado que este, tendo lançado as vistas sobre ela, fez-lhe
declarações amorosas, ao que Maria Francelina, que não lhe tinha simpatia, 7'es-
pondeu-lhe co7n o mais soberano desprezo... A narrativa jornalística não fica longe
do tom literário do códice policial, expressando estado d'alma, sentimentos e
paixões. Enfim, este assassino, que nada tinha em desabono de sua conduta no
348 SANDRA JATAHY PESAVENTO
quartel, fora levado a praticar o crime por uma exaltação apaixonada, por uma
perturbação dos sentidos que lhe perturbara o juízo.
Exarcebado, Bueno, em um ímpeto de cólera, atirou-se sobre Maria Francelina,
e, como ela recusasse os seus beijos, ele não quisque outros ogozassem. Uma nuvem
de sangue passou-lhe pela vista, e muito antes que os seus companheiros pudessem
obsta-b a pratica de um crime, ebjd o havia cometido, defonna horrorosa. Maria
Francelinafoi atirada por terra, comprimida pelojoelho dopossante soldado, e uma
faca afiada atravessou-lhe a garganta. Apobre mulherfora degobda\^^
Caberia ao leitor perguntar-se: mas ela não era uma mulher de vida fácil?
Porque se fizera de rogada face os avanços do seu admirador?
Já o Jornal do Commércio, ao narrar a horrível cena de sangue que tivera
lugar na estrada do Mato Grosso, no local conhecido como Chácara das Bana
neiras, apresenta uma visão um pouco distinta, com mais riqueza de detalhes,
pois não apenas descreve o clima reinante como inclusive o que o alegre grupo
consumia.
Eram 4 horas da tarde mais ou menos e no bcal indicado estavam reunidos
na mais alegre camaradagem vários soldados pertencentes ao 1° regimento de cava-
bria da Brigada Militar e algumas mulheres de vidafácil. Todas riam à vontade,
numa alegria comunicativa que se transmitia de momento a momento por entre os
circunstantes. Um pic-nic modesto, onde não figuravam iguarias caras, mas onde
abundava o churrasco regado a parati e cerveja marca Barbante.
Tais iguarias eram confirmadas por Bicudo em seu depoimento à polícia:
haviam levado carne, café, mate e algumas garrafas de cachaça^^.
Na notícia do jornal do Commércio, apesar de ter sido classificada como
mulher de vida fácil, tal como as demais, afirma-se que diziam ser Maria Fran
celinaTrenes amásia de Bruno Soares Bicudo. Na descrição do crime, o perió
dico assinala uma transição de humores e atitudes entre o casal, de um animado
diábgo, em meio zgeralabgria, Maria Francelina e Bicudo passaram às injúrias.
E, de maneira intempestiva e muito rápida, Bicudo, incendido de raiva, avança
ra sobre a rapariga e,
(...) segurando-afortemente pelos cabebs, derruba-a epuxando por umafaca
que traziaà cinta, fere-a profundamente no pescoço, degoUndo-a.^^
A presteza da açãoe a técnicasegura de degolar Maria Francelina insinuam
a provável difusão da prática da degola entre estes militares tão próximos dos
incidentesde 1893. Bicudodegolou Maria tal como um hábil degolador o faria
com o inimigo subjugado. Tão rápido que não dera tempo aos companheiros
para impedir o ato, tomados, aparentemente, de surpresa com a sua iniciativa.
O jornal A Gazetinha, classificando o incidente como crime hediondo, afir
mava que Bicudo, após algumas palavras com Maria Francelina, passara a mão
em uma faca e agarrando-a pelos cabelos, dera-lhe um profundíssimo golpe no
pescoço, impiedosamente,
MARIA degolada: A MOÇA Al£GRE QUE VIROU SANTA 349
Todavia, os rápidos repórteres deste periódico haviam feito mais: tão logo
avisados do crime, foram imediatamente ao local do crime, tendo a condição
de descrever o triste espetáculo presenciado /w loco:
A infeliz vitima achava-se atirada sobre o capim, debaixo deuma grande árvore,
usava vestido e casaco azul, tendo os cabelos todos soltos. Em redor de si achavam-se
alguns vizinhos que, como nós, lamentavam aquele tristonho quadro, obra talvez,
diziam eles, deuma destas tantas tragédias deciúmes, que são autores os mais bárbaros
dos homens. O citado ferimento que recebera Mana Francelina ntingra-lhe o lado
direito, na região lateraldopescoço, mostrando um enormíssimo eprofundo golpe. Era
lastimável econtristador oestado da vitima. Oassassino Brum apresenta também um
talho 710pescoço, que segundo dizem astestemutihas, tentou degolar-se após a perpetra-
ção do crime. Tem ele 40 anos mais ou menos, é solteiro, indiático e mal encarado.''^
Antes de qualquer outra consideração, cabe referir a modernidade da ação
jornalística d'A Gazetinha: seus repórteres estão em todos os lugares, são ágeis,
descrevem as cenas no calor da hora do acontecido, sendo, portanto, testemu
nhas das tragédias e, sobretudo, largam a notícia na frente: enquanto o Correio
do Povo e o Jornal do Commércio noticiaram o acontecido no dia 12 de no
vembro na edição do dia \A, A Gazetinha publicava o crime no dia 13...Por
outro lado, cabe a este a informação de que o assassino, por seu lado, tentara
suicidar-se após o crime, informação que será confirmada na cadeia, mas não
pelos outros jornais nas suas edições do dia seguinte.
E de ressaltar a descrição de Bicudo frente a de Maria Francelina: cabelos
soltos, elas é a vítima que aparece em um quadro de beleza trágica, no seu vesti
do azul, estendida na grama, debaixo da grande árvore. Bicudo é um tipo indiá
tico, mal encarado, e ao leitor cabe imaginá-lo como um sujeito feio e mau. Sua
idade é também alterada pelo julgamento negativo, pois A Gazetinha o define
comoferoz assassino e pede para ele punição enérgicae severa.
Na sua edição do dia 14 de novembro, A Gazetinha voltaria a se referir ao
crime, mas através do comentário filosófico-moraJista de um certo Zezinho,
a comentar o ciúme, a paixão e o descontrole dos instintos e sentimentos por
parte dos indivíduos embrutecidos e sem educação social. Este, como Bicudo,
sem força moral, desvairado, como louco, reage qual um tige, comete crimes
monstruosos, horrendos, sob uma excitação nervosa indescritível'^. Assim, Zezinho
lastimava este desgraçado que matara por ciiime. Era um bruto, não miserável
assassino ou um bandido covarde. Era digno de pena.
A curiosa posição do articulista encerrava o criminoso em uma condição
de fatalidade: por não ter educação moral c autocontrole, agira de tal forma.
Sua postura, no caso, se aproximaria de uma das correntes cientificistas dafin
de siècle da Europa, em discussão na velha Porto Alegre, através das pesquisas
realizadas pelo Doutor Sebastião Leão desde o seu Laboratório de Antropologia
Criminal na Casa de Correção da cidade.
350 SANDRA JATAUY PESAVENTO
referidos, retirando-se logo depois para o seu estabelecimento, vindo depois saber
da degola ocorrida.
Por tais depoimentos prestados à polícia, e segundo uma perspectiva mas
culina de apreciação do incidente, parece que Maria Francelina Trenes havia
merecido o que lhe sucedera, ou pelo menos o provocara...
O cabo Egidio Correia da Silva, que efetuara a prisãode Bicudo e o levara à
delegacia do 2" distrito, afirmou que nenhum dos soldados presentes na cenado
crime se achava embriagado, e que não havia cachaça naquela confraternização.
Entretanto, Bruno Soares Bicudo, ao confessar o crime, disse que ofizera
por estar embriagado e muito enraivecido; quesuaamásia provocou-o muito e que
oagrediupor duas vezes. Disse mais quepara o churrasco haviam levado 5 ganafas
de cachaça, compradas pelosoldado Manoel Vargas, não sabeaonde.
Manoel de Vargas, contudo, negou esta versão: ninguém tomara cachaça.
E possível compreender os motivos das informações contraditórias: Bicudo,
ao alegar raiva e embriaguez —toldando os sentidos, privando-o da razão—bus
cava atenuar sua culpa, os soldados, negando a presença da cachaça, buscavam
proteger-se.
Bicudo foi, pois, preso em flagrante delito de assassinato na pessoa de Ma
ria FrancelinaTrenes e considerado como incurso nas penas do artigo 294 do
Código Penal da República pelo delegado J. Ulysses de Carvalho.
Interrogado, o preso respondeu chamar-se Bruno Soares Bicudo, ter 29
anos de idade, ser filho legítimo de Izidoro Soares Bicudo e Maria Ignacia Soa
res Bicudo, ser solteiro, brasileiro, soldado, natural Uruguaiana e não saber ler
e escrever.
na garganta, nariz um tanto achatado, mãos epés regalares, cabelo preto e duro,
bigode escasso, barbafalhada}^
A descrição de Bicudo fazia assim jusao seu alegado ripo indiárico e, como
observação, registra-se queo talho de faca que apresenta na garganta seria pro
veniente de uma tentativa de suicídio após cometer o crime.
Aberto processo criminai"^, foram chamadas as testemunhas para depor,
comparecendo uma nova versão paraos fatos: Maria Franceiina havia, por duas
vezes, tentado agredir Bicudo: uma vê com um cacete e outra com uma barra
de ferro.A versão das duas agressões por partede Maria —uma acha de lenhae
um cano de ferro - foram confirmadas por Manoel Antonio de Vargas, chama
do a testemunhar.^'^ Já o brigadiano Francisco Alves Nunes não só corroborou
a dupla agressão como incluiu na seqüência dos acontecimentos, entre o ato de
retirar os instrumentos de agressão das mãos de Maria e o seu assassinato por
Bicudo uma espécie de pausa para o café! Os soldados foram preparar café para
tomar, ficando o casal a sós, mais aforado do grupo e foi só quando, pronto o
café, foram chamar Bicudo para bebê-lo que se deram conta de que ele havia
degolado Maria!^" Informou ainda que o réu sempre apresentara bom compor
tamento no quartel.
E notório que os colegas tentavam, em seus depoimentos, construir versões
e introduzir detalhes que atenuassem a culpa de Bicudo, assassino confesso e
preso em flagrante delito.
Denunciado pelo Ministério Público em 4 de dezembro de 1899 através do
Doutor Aurélio de Bittencourt Júnior, e a 13 do mesmo mês o promotor James
Darcy pediu para o réu a condenação no grau máximo do artigo 294, §1.'' do
Código Penal da Republica, considerando todos os agravantes do caso. Bicudo
voltou à cadeia em 16 de dezembro, conforme Registro do Livro de Sentencia
dos da Casa de Correção de Porto Alegre".
Éapontada como sendo sua profissão ex-praça, pois face o crime cometido,
Bicudo havia sido "desarranchado" da Brigada Militar.^^
Na descrição física do réu, era registrado que tinha 1,64 de altura, cor
indiática, cabelo e barba pretos, sobrancelhas ralas, rosto redondo, testa e boca
grandes, olhos negros, nariz chato, orelhas regulares, pés e mãos proporcionais,
assinalando-se que no lado direito do pescoço, na barriga da perna esquerda e
na coxa direita apresentava cicatrizes de talhoP
As datas da entrada na Casa de Correção são contraditórias, revelando de-
satençâo daquele encarregado de registrar: dava-se a prisão preventiva como
tendo sido em 16 de novembro de 1900 e de entrada na Casa de Correção em
8 de janeiro do mesmo ano,
O certo é que Bicudo foi a júri em 1.® de fevereiro deste mesmo ano, e ao
ser interrogado, declarou conhecer há cerca de mais de um ano as pessoas que
haviam deposto contra ele —mas que, aparentemente, o defendiam, ao reve-
354 SANDRA JATAUY PESAVENTO
lar novos detalhes do caso —, acrescentando que náo tinha fatos a alegar para
comprovar sua inocência, mas que seu advogado de defesa o faria. A interven
ção deste, contudo, náo alterou a decisão dos jurados, que por unanimidade o
condenaram. O processo teve fim em 8 de fevereiro de 1900 pelo juizAntonio
Fausto Nunes de Souzaa 30 anos de prisão celular, convertidos em prisão com
trabailio, a ser cumprido na Casa de Correção da capital.
Sobre este desfecho, o Correio do Povo noticiava secamentesua condenação,
para deter-se na constituição dos nomes responsáveis pela sua condenação:
O conselho de sentença foi constituído pelos srs. Honório Mariante, Car
los Emilio Haag, Fernando do Amaral Ribeiro, Adolfo Silva e Elcuthcrio de
Araujo.Acusou o dr. Darcy, 2° promotor publico, sendo a defesa produzida
pelo dr. Hemeterio Jose Velloso da Silveira.^^
Bicudo não era mais notícia, o caso não merecia maiores comentários. Náo
era mais polêmico, o réu já estavade antemão condenado e a pobre Maria Fran-
celina parecia ter sido esquecida.
A pena de Bicudo deveria, pois, se encerrar em 16 de novembro de 1929,
levando em conta a data certa de sua entrada na Casa de Correção, mas ele não
resistiria ao tempo de cadeia. Em 19.03.1905, já com 34 anos, dava entrada
em virtude de uma gripe, na Santa Casa de Misericórdia, No ano seguinte, aos
35 anos, falecia na Cadeia, a 16 de setembro, vitimado por nefrite intcstinal.-^^
E Maria ? Saiu da vida para entrar na lenda. De prostituta a santa, Maria
Francelina, a Degolada, vai de um extremo ao outro das representações sociais
bipolares sobre a mulher, que eram vigentes na época.
Poucas chances ela teria, segundo os padrões da época, para subsistir. Uma
vez decaída, lhe restava a prostituição ou, no caso, conseguir um amante mais
ou menos fixo, como parecera ser Bicudo. Como mulher de vida fácil, ela é o
estereótipo de um lado bruxa do feminino, do puro instinto, da fêmea sempre
prestes a trairsenão estiver sobcontrole, O incidente com José não seria apenas
o revelar da sua verdadeiranatureza e vocação? Afinal, Bicudo e também José já
a acharam prostituída...
Morta, ela pode virar santa, pois é vítima. E a loura mártir do sujeito cabo
clo e mal encarado
Cabe a Ary Veiga Sanhudo, em uma de suas crônicas de 1961, a recupera
ção da lenda que se afirmara junto à população. Cronista da cidade, Sanhudo
escreveu sobre o passado de Porto Alegre, a descrever os bairros, as gentes, os
usos, rememorando o que vira e o que lhe haviam contado, o que lera e apren
dera sobre aos tempos antigosda urbe. Parte de suascrônicas, foram publicadas
em 196U^e uma segunda parte só em 1975'' ^
Ao rememorar sobre uma vila marginal da cidade —a vila Maria da Con
ceição, situada no antigo Morro do Hospício, cheia de malocas —o cronista dá
a conhecer aos leitores suas origens trágicas. Embaralhado no tempo, passa a
MARIA DEG0L.'\DA: A MOÇA ALEGRE QUE VIROU SANTA 355
mida para o pai, trabalhador na pedreira. Parece que morava lá para os lados da
Glória e um dia fora morta por um indivíduo que tinha tentado "conversar" a
moça um dia e que, no outro, agarrou-a matou-a.^^ Assim, nossa Maria Dego
lada, menina ainda, torna-se a vítima inocente de um assassinato.
Já outro morador do local, Pedro Antônio de Souza, confirma sua crença:
porque duvidar dos milagres feitos? Na Vila, tudo gira em torno dela... Já Car-
mem Maria Bica dos Santos, também moradora do local, ela deveria ser uma
mulher normal, mas no fundo, ninguém sabia ao certo. Para si, ela era uma
santa, em face de todos os milagres, promessas e pedidos atendidos. Ela fazia o
bem para os membros da comunidade...
Mariza Jussara da Silva relata, por seulado, quehavia um esforço para tirai*
o misticismo da figura, e pesquisando, haviam sabidoque elasechamadaMaria
Francelina, nome preferível a Maria Degolada. Relatando sua infância na Vila,
Mariza lembra dos rituais seguidos com relação ao culto: muitas noivas, depois
de casar, iam oferecer à Degolada seu bouquet, seu vestido, seu enxoval, de
forma simbólica.
Há no rito assinalado, uma identificação entre a virgindade e a figura da
santa, em manifestação, mais uma vez, de um sincretismo religioso.
Cabe registrar ainda uma outra transfiguração da imagem, presente nos
relatos das meninas de rua, em conversa com as supervisoras técnicas. Arilceia
Teixeira nos conta de que na Casa das Meninas de Rua, estas, por vezes, assim
se expressam diante de uma contrariedade, ameaçando: Olha que me baixa a
Degolada e eu não sei o quefaçof^
De vítima e mártir indefesa, Maria Degolada ressurge como a mulher que
luta, que se defende, que mesmo agride. Degolada sim, mas retornando, "bai
xada" em alguém em vias de ser ofendida, para mobilizar forças de vingança.
Santa talvez, mas santaguerreira.
De moça fácil à milagreira dos aflitos, mais uma barreira transposta pelo
imaginário popular.
Referencias bibliográficas
1 Matrícula Geral dos Enfermos, Livro 8, 10/05/1897 a 13/12/1899, p.l8. CEDOP, Santa
Casa de Misericórdia.
2 Idem, p. 79.
3 Idem, p.120.
4 Matrícula Geral dos Enfermos. CEDOP- Santa Casa Livro 8 10/05/1897 al3/12/1899 p.48.
5 Ficha de Códices das Polícias. Porto Alegre, Registro de averiguações (Livro 5), 1898/1910,
códice 07, p. 189 V., Arquivo Históricodo Rio Grande do Sul.
6 A Gazetinha, 13.11.1899.
MfVRIA DEGOL/VDA: A MOÇA AI.F.GRF. QUE VIROU SANTA 363
27 Processo criminal n.° 1.990, ano 1899, Cartório do Júri de Porto Alegre. Fundo do Po
der Judiciário,, estante 33, maço 85. Réu Bruno Soares Bicudo. IN: Maria degolada:
mito ou realidade? hxcçxwo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Ed.
EST1994.
28 Idem, fl. 21 v.
29 Idem, fl27v.
30 Idem, fl 26.
31 Livro de Sentenciados Museu Dr. José Faibcs Lubianca —ACEPOL Livro 2, 1899-1901 p.
49, Numeração: 246
32 Livro de Detalhe e da.s Diversas Ordens da Cavalaria da Brigada Militar em Porto Alegre, p.
184, anvcrso. 17.11.1899.
33 Livro de .Sentenciados Museu Dr. José Faibes Lubianca —ACEPOL Livro 2, 1899-1901 p.
364 SANDRA JATAHY PESAVENTO
Negros feitiços
científicos cio seu tempo, como o ilustraclíssimo doutor Sebastião Leão, que
recebera autorização do governo para instalar um laboratório de antropologia
criminal na Casa de Correção da capital gaúcha, onde tinha a população carce
rária a seu dispor para realizar seus estudos à luz das mais recentes teorias sobre
o crimediscutidas na Europa! O Rio Grandeera aindasede da renomada Escola
Militar de Porto Alegre, a formar militares para o novo regime. E, no início do
século XX, criava-se na capital a Faculdade de Direito. Das elites às camadas
médias, havia palavras de ordem: higiene, moral, civilização, desenvolvimento
técnico, normalização do social.
Mas, nesse Rio Grande que se queria moderno, nessa Porto Alegre que se
visualizava como branca e civilizada, outros personagens e práticas tinham lu
gar, mesmo que, para efeitos de exposição pública - pelo jornais, por exemplo
—, tais religiosidades se apresentassem como que invisíveis. Uma outra cidade
se escondia sob as formas e a imagem da urbe dos cidadãos. Muitas práticas
se realizavam às escondidas; de outro modo, eram condenadas e reprimidas.
Falemos, pois, de feitiços, de negros feitiços, pois tais práticas e crenças tinham
cor determinada: eram coisa de negros, que invocavam entidades e pareciam
dominar poderes desconhecidos...
Certos ritos incomodavam as famílias de bem, com a exposição de uma
alteridade inquietante na virada do século XIX para o XX. Afinal, neste mesmo
século, cientificista, articulava-se, vitoriosa, a idéia da supremaciada civilização
européia cristã ocidental, e manifestações culturais de outras raças tombavam,
em versão complacente, para o pitoresco ou o exótico e em apreciação depre
ciativa, como manifestações de barbárie e ignorância. Exemplar da primeira
postura seria uma narrativa como a de Antonio Alvares Pereira Coruja, o velho
cronista e memorialista da cidade, ao se referir à Porto Alegre do passado, do
início do século XIX. Lembrava Coruja o candombe da Mãe Rita, que ficava na
várzea, em frente ao antigo matadouro, no terreno baldio que viria a ser cha
mado de Beco do Firme (atual rua Avaí). Nesse candombe^ tal como no de uma
certa Baiana do Presépio, os negros se reuniam no domingo à tarde, a cantar e
a dançar, "sem que causassem maiores cuidados à polícia".'
Tais práticas dos negros eram chamadas de batuque, nome que já fora
apontado por Rugendas para descrever as danças habituais dos negros com ba
tidascadenciadas de mãos, acompanhadas de movimentos expressivos do corpo
e cantoria, repetindo refrões.^ Mais que mera ocupação de lazer, o batuque era
uma forma ritual da religião jejê-nagô, com alguma influência do banto. No
culto que se instalava, associavam-se orixás de origem sudanesa com santos ca
tólicos, como nos aponta Corrêa.-^ Sobre os antigos batuques escrevia outro cro
nista, Achylles Porto Alegre, a rememorar práticas sociais perdidas no passado:
Não temos mais a dança dos negros, tão pitoresca e característica. O batnque
tinha algu77ta coisa de dança dos nossos selvagens, e tinha tanto de diversão como
FEITIÇO NEGRO EM CIDADE BRANCA: MORTE EM FAMÍLD\ 367
científico. Não era, pois, colocada em causa a posição da igreja católica frente
à religião afro-brasileira, mas sim da razão, da cultura e da civilização frente à
barbárie e à ignorância.
Havia, ainda, um novo jornalismo, moderno, a estetizar o cotidiano, fazen
do de cada acontecimento, por pequeno que fosse, um fato surpreendentes um
incidente semacional\ a mostrai^ que mesmo a pequena cidade de Porto Alegre
abrigava segredos e personagens terríveis!
A cidade, por exemplo, conser\'ara na memória o nome de um certo beco,
conhecido como do Pedro Mandinga^...Também se conhecia a fama de um
certo negro Antonio, estabelecido na rua dos Pretos Forros, no arrabalde do
Menino Deus, onde ele retirava maus espíritos que se alojavam no corpo da
clientela que a ele acorria a fim de curar os males que a afligiam...
Mas outros pretos "mandingueiros", também, atingiam a celebridade atra
vés das páginas dos jornais. Assim é que, em setembro de 1894, o Jornal do
Comércio anunciava que a polícia fizera "o feitiço virar contra o feiticeiro"! Fora
de surpresa bater à porta do tugúrio na Travessa do Carmo, às lOh da noite,
onde oficiavam Pai Firmino e Luiza Berta-Pau... O periódico relatava para seus
leitores que o miserável casebre se configurava como um templo, onde eram
praticados "os mistérios insondáveis da feitiçaria"!'® Lá, foram encontrados não
os fiéis, mas uma "moxinifada" do Pai Firmino: ''''santos e búzios, missangas e
conchas, oratórios e tripoides, moedas e tijelas, alcaças e acarajés, alimentodos san
tos, um barrete que era uma tiara, à moda persa, de largas badanas caídas, toda
cravejada de caramujos e contas, cheias de bordaAuras earabescos\^^
Tudo a indicar a cultura africana da terra distante, mas nada disso era, sem
dúvida, assinalado; tendo, antes, o móvel de pintar ao leitor o quadro diabólico
do ambiente onde se realizavam ritos exóticos.
Para completar o cenário e escandalizar o público, o jornalista assinalava
que
[...] alto, acimade toda esta mixórdia, como que superior às misérias supersti
ciosas efétidas deste covil, pairava a imagem do crucificado, com os braços abertos
na cruz e a cabeça pendente, na posição da derradeira amargura! Não era, porém,
por uma idéiade religiosidade que o Cristo seencontra ai, não!Seu corpo achava-se
amarrado por uma corda de noi>a espécie, —a pelede uma cobra, que enlaçava-o,
envolvia-o, e que lhe suspendia as mãos, amarradas pela cabeça eyn cada braço da
cruz, um Santo Antonio e umfilhinho deste, na expressão pitoresca do vulgoN
Mas parece não ter sido, contudo, a piedade cristã o que mobilizara o ex
pressivo relato jornalístico, com o emprego de recursos literários. Fora antes o
intento de chocar, pelo grotesco da situação, com o quadro oferecido ao leitor,
pondo face a face os conhecidos ícones do bem e do mal: Cristo e a cruz frente
à serpente. A feitiçaria era notícia, mercadoria, vendida e lida com sucesso pelo
público, a descobrir os perigos da urbe. Os selvagens da cidade estavam ali, ao
370 SANDRA JATAUY PESAVENTO
nenhum filho seu, varáo, se criaria... O certo é que a polícia começara a receber
indicações anônimas que estavam a ajudar na elucidação do caso!
O que mais atemorizava, contudo, eram os nomes dos participantes de tal
círculo secreto, que o jornal apontava serem das "primeiras camadas da socieda
de", envolvidas "nos sortilégios de um negro boçal, em fundos de espelunca".'®
Alegava-se a independência da imprensa e a moral social, frente à qual todos
deviam ser iguais. Portanto, as revelações de identidade seriam feitas: '^^queni
meteu-se na história que agüenté\ ameaçava o jornalista. Tais deniincias, con
tudo, não tiveram prosseguimento, e isso mostrava que, se verdadeiro o tal
arquivo do tio Pedro, o peso dos bons nomes se fez valer frente a tal imprensa
justiceira. Restava, contudo, a culpa de tio Pedro, demonizado pelo jornal e
preso pela políciaem 1895.
Ora, um preto dado a feiriçarias, promotor de orgias, desencaminhadorde
senhoras casadas e potencial criminoso poderia bem ser o mandante ou o cére
bro de uma cadeia de assassinatos. Para incriminá-lo ainda mais, andava bem
trajado e, como se viu, fora encontrada em seu poder uma caderneta da Caixa
Econômica. Um africano bem vestido e com dinheiro? Boa coisa não deveria
ser. ''Negro deluva ésinaldechuva", lembrava o ditado popular para destacar o
inusitado da situação...
O pensamento loinbrosiano da época, tão caro à antropologia criminal,
marcava suapresença na apreciação do caso. A fisionomia de tio Pedro, por cer
to, revelava seu íntimo. Seele era malvado e degenerado, isso devia transparecer
no seu rosto:
Há dias encontrando ele uma preta velha, miope, de nome Josepha d' Rosa e
residente na Várzea, próximo à estação da companhia de bondes, propos-se a curá-
la, examinando-lhe a palma da mão, olhos e coítcluindo estar a preta com a vida
ásavessas. Josepha convencendo-se do seu caiporismo, agarrou-se aoseu salvador de
acaso, epara começar a obra deu-lhe 6$000.
Octavio benzeu-a, dando-lhe dois breves, um branco e outro preto com carvão
moldo dentro, dizendo ser ervas torradas e moídas. O branco deveria Josepha colo
car nas costas e opreto sobre opeito. Para completar a obra ti?tha hoje a benzedura
finak a casa deJosepha seria benta também, sendo que esta, em paga dos seus boyis
serviços lhe arranjasse uma moça bonita para suacliente.
Ou seja, Oespertalhão busca, ele próprio, aproximar-se das tais moças bo
nitas, através de suas "pacientes".
O novo século daria continuidade a essas associações, pois a feitiçaria vira
rá notícia, tal a incidência dos casos que se sucediam, na capital e no interior.
Noticiava a Tribuna do Povo, em Rio Grande, por exemplo, que uma certa
renomada benzedeira D. Finoca, fora responsável pela morte de uma infeliz
mtdher, já de avançada idade, que recorrera aos passes daquela popularissima
curandeiraT
Mas ahnai, D. Finoca teria tais poderes, uma vez que depois de benzida, a
crente falecera ainda na casa da curandeira? O que, na realidade, esta lhe teria
feito? O caso, como seria de esperar, gerara toda sorte de comentários, além de
um comentário jocoso, vindo daquele que se assinava Diabo Coxo nas páginas
do Coneio do Povo, através de um verso de pé quebrado;
Uma alma simples, não lida
em filosofia alguma,
ao ler isto, exclama em suma:
—"ao menos morreu...benzida!...!"^
Também na localidade de São Jerônimo, nas minas de carvão, aparecia com
a freqüência de 3 em 3 meses, junto aos operários do local, um indivíduo de
corparda, estatura regular, magro, duas suíças, olhos pretos e vivos, tipo de homem
inteligente e trajando sempre corretamente, que se descobriu ser feiticeiro. Ao tal
feiticeiro se haviaapresentado uma rapariga de cor preta, com uma inflamação
no ventre e ele lhe receitara um chá.
Passados poucos minutos, a pobre rapariga começou a sentirfortíssimas eólicas.
Gemendo incessantemente, sofrendo terríveis dores, implorava ela, desesperada, que
a salvassem da morte. Ofeiticeiro, auxiliado pela stia agente e por mais algumas
pessoas, colocou a infeliz enferma em um caixão embrtdhou-a em um lençol efez-
lhe em seguida muitas massagens. Antes disso, haviam elesfeito no assoalho da casa,
um buraco, de onde tiraram uma cobra e uma bola de cabelo de cavalo, dizendo
quetais cotisas haviam saído da barriga da doente!! Esta, além de tudo, ainda teve
depegar a quantia de 32$ aofeiticeiro.
376 SANDRA JATAHY PESAVENTO
Descoberta a charlatanice por um operário das minas que fora também con
sulta-lo, o feiticeiro foi expulso das minas, mas o jornal comentava que o caso
devia chegar à polícia judiciária. Cabe assinalai* a evidente crendice e o fato deser
enganada pelo charlatão uma moça negra e de ser, o próprio feiticeiro, pardo.
Mas, embora a cor fosse nitidamente associada com tais práticas, o mais
alarmeiite é que elas se estendiam para além dos negros, mulatos e mestiços de
toda ordem. O curandeirismose alastrava e era noticiado que um bando de car
tomantes e feiticeiros tinham se instalado no arraial da Tristeza, depois de terem
sido corridos de São Leopoldo, Belém Novo e Belém Velho. Eram chefiados
por Antonio Pereira —supostamente branco, pois não havia a indicação da cor,
indivíduo que dizia ter achado na Gruta da Glória uma imagem de pedra de
Nossa Senhoraque fazia milagres^"^. O catolicismo era assim posto a serviço de
espertalhões, prontos a explorar as almas simples. Mas a própria Igreja não es
tava cheia de história de milagres? Assim, não eram somente aqueles vinculados
aos cultos afro-brasileiros os visados pela feroz campanha jornalística.
Vinculada aos negros, à religiosidade, afro e católica, à prostituição e ao
estelionato, a feitiçaria foi também ligadaao roubo. A mostrar esta última asso
ciação, o Correio do Povo anunciava que fora preso tentando assaltar uma casa
na Rua da Concórdia o indivíduo Antonio José da Silva, de cor preta, que for
çava a porta da casa de uma família. Em seu poder fora encontrado um rosário
e, ao que se dizia, ele fazia parte de uma quadrilha de feiticeiros e cartomantes
dirigida por suas mulheres.
Homens dominados por mulheres, pois, que mais se poderia esperar? Mas
esta não era a regra, pois havia muitos feiticeiros poderosos na cidade...
A Gazeta do Commercio publicava, em 1903,^'' denúncias contra um certo
tio Firmiano, negro que, de carroceiro e cangueiro, passara às artes do curan
deirismo. Tio Firmiano medicava com chás de ervas e ungüentos, aplicações
de pomadas e rezas, para curar não exatamente os males do corpo, mas os da
alma, provocados pela ignorância do povo; mulheresqueriam saber das traições
do marido, outras de amores não correspondidos, algumas, à beira do pecado
do adultério, buscavam seduzir um terceiro etc. Entretanto, sua fama era tão
grande que mesmo alguns médicos lhe repassavam os doentes, como no caso
de um homem que padecia de uma ferida na perna. Em ceito momento do
tratamento, tio Firmiano foi denunciado aos jornais pela mulher do doente,
pois este continuava a sofrer dores e não sarava.^^ Pequenacidade, onde mesmo
uma perna doente era notícia, mas justamente porque era tratada por um preto
curandeiro!
A figura do negro curandeiro era bastante ambivalente: por um lado, era
reconhecido na comunidade, como se viu, para além dos crédulos que o pro
curavam, e até por alguns médicos da cidade; por outro, o que se passava de
fato na casa de tio Firmiano que levava alguns vizinhos a dar queixa à polícia?
FEITIÇO NEGRO EM CIOADE BRANCA; MORTE EM FAMÍLIA 377
loQ que seu "tratamento" aos clientes consistia em surrá-los para retirar-lhes do
corpo o mau espírito que ali se alojara.
O jornal descrevia que no templo de Pai Celeste tinham sido encontrados
relhos variados, vidros de remédio com ervas medicinais, quadros com registros
de santos e muitos outros objetos, tudo a atestar as artes da feitiçaria. Mesmo
que as ervas fossem medicinais ou que santos católicos se fizessem presentes,
nenhum registro de uma prática religiosa ou medicinal não canônica foi assi
nalado, salvo a de que tudo não passava de embuste e bruxaria. Para corroborar
tal interpretação das práticas ali empregadas, o oficial de justiça foi até o Beco
do Pau Bate, na Rua João Alfredo, antiga Rua da Margem, onde encontrou,
em um dos casebres aí existentes, uma mulher miserável, deitada em um catre
e em estado desesperador por ter ingerido um dos remédios que lhe havia sido
aplicados por Mãe Joana.
Tinha continuidade uma campanha contra tais práticas de curandeirismo,
alternativas à medicinaformal e, aprioriy identificadas como feitiçaria,^^ sempre
associadas à exploração da boa-fé de uma população ignorante e que, via de
regra, acobertavam ações contra a moral e os bons costumes. Mais que isso, a
caiTomancia e as curas milagrosas anunciadas eram estratégias empregadas por
aqueles que se apresentavam avessos ao trabalho e que se dedicavam a viver à
custa dos ingênuos.
Na Rua Clara, n. 4 —denunciava o Jornal do Comércio —morava um mé-
dico-vigarista: Octavio de Assis, que benzia, dava santinhos, breves, tirava o
diabo do corpo, curava caiporismo, acertava vida às avessas etc. Tudo em troca
de dinheiro ou de que o paciente lhe arrumasse uma moça bonita para cliente...
Denunciado à polícia, o falso médico rumou para o xadrez."^^
A elite ilustrada buscava reforço na fala autorizada da época: ninguém me
nosdo que Cesare Lombroso dissertava sobreoscharlatães. "O charlatão recruta
a clientela entreos doentes da imaginação, gente de bons haveres, desocupada e
de gênio um pouco melancólico e que, por não ter em que pensar, cuida em es
tar docntc.""^^ O charlatãoera ardiloso, pois conseguia fazer o indivíduo achar o
médico um ignorante- porque não lhe diagnosticava nenhum mal —enquanto
granjeava para si reconhecimento e simpatia, ao explicar-lhe, com paciência, a
extensão de seus males! Dessa habilidade e da força de auto-sugestão, asseverava
Lombroso, curas milagrosas ocorriam para doentes imaginários!
Mas o negócio do curandeirismo, feitiçaria e charlatanismo —fosse o nome
por qual tais práticas fossem chamadas —parecia que dava bons lucros...Em
1905, a Gazeta do Commércio noticiava a morte, no Rio de Janeiro, do que
chamava de um "africano ricaço". Mama Soledade, que morrera deixando uma
fortuna superior a cem contos de réis:
Era um formidável feiticeiro e morava na rua Senador Pompeu. Alto, ma
gro, esguio como um varapau, adotara o processo de fingir que dormia para
382 SANDRA JATAHY PESAVENTO
Um segundo caso narrava a história de uma viúva com seu filhinho doente
e diante da qual uma entendida se iinpusera para impedir que levasse ao mé
dico, dizendo que o mal que atingia a criança —embate e quebranto —doutor
nenhum curaria... Dizia chamar-seiMaria Fausta das Neves e já ter salvado, com
benzeduras e chás, centenares de crianças que os médicos diziam sofrer defecçào
casti'0 entertifial. Tal como no caso anterior, a criança era levada tardiamente ao
médico e acabava por morrer.
Um terceiro caso discorria sobre uma menina de 6 meses de idade, de cor
parda, que falecera, pois o tratamento receitado pelo médico nâo fora seguido;
em vez, foi aplicado o da curandcira Vcnância Flores.'^''
Em outro relato, o médico-repórter chegava a descrever uma cerimônia
oficiada por feiticeiros no casebre de uma moça parda que estava possuída por
um mau espírito. A jovem era acometida de ataques, quando então se retorcia,
mordia a si própria e dava gritos pavorosos. Era dada como enfeitiçada, por so
frer de ataques histéricos e jaziacontorcida de dores, gemendo e atirada em uma
cama, em uma casinha de paredes stijas e enfumaçadas devido a um fogareiro
onde queimavam enxofre e raízes secas de diversas plantas.Na sessão de reza
que tinha lugar em torno da doente, um feiticeiro e uma feiticeira entoavam
cânticos, monótonos e cadenciados, que eram repetidos pela assistência, cerca
de umas 12 pessoas:
Meu adorado ]esus
Cravado na pesada cruz
Vem tirar o espirito mau
Qtie váprofundo do mar
Onde não veja as estrelas
Onde não encontre vago.
Santa Maria
Meu Santo Antônio
Áfigenta os espíritos
Afugenta o demônio
Estrelinha do céu
Ar serenado
Tira osfeitiços
Cura opecado
Santa Títereza
Santa Belém
Mata ofeitiço
Jesus Amém.-^
384 SANDRA JATAUY PESAVENTO
Toda essacantoria, que associava o feitiço, fruto do mal, com Jesuse os san
tos, força do bem, teria sido anotada pelo diligente doutor em seu caderninho
de noras, para depois dar a ler ao público na coluna de jornal onde se falava das
casas suspeitas e da possibilidade de a higiene estar ao alcance de todos.
Os relatos insistiam em uma estratégia discursiva que se repetia: as curan-
deiras, bruxas ou feiticeiras, que viviam junto a um meio de gente pobree igno
rante, interpunham-se entre os doentes e o atendimento médico, a administrar
tratamentos desastrosos! Mesmo com casos ocorridos em Bagé, os leitores de
PortoAlegre podiam identificar e fazer analogias com os casos que haviam pre
senciado ou ouvido falar, sucedidos na capital do Estado. Por outro lado, o dis
curso médico se amparava no da justiça, denunciando crimes e contravenções
que se associavam a tais práticas e também ao da imoralidade.
Outro fora o caso de Leonor, de 16 anos, moça dada também por enfeiti-
çada, apresentando ataques histéricos e estando com as regras suspensas de três
para quatro meses... O feiticeiro, chamado pelos pais, a fizera beber, todas as
noites uma águasuja, que se conservara por 24 horas no gargalo de uns castiçais
de cobre, enzinhavrados e sebentos. Os efeitos da poção mágica sobre a moça
enfeitiçada haviam sido surpreendentes:
Esta heheragem, após prolongados sofrimentos, a fez expelir um bicho, intei
ramente desconhecido para os pais e os irmãos da chininha enferma. Ofeiticeiro
não cabia em si de contente e asseverava que aquele estranho anirnalzinho era o
feitiço quea Leonor havia conservado durante qiuitro meses... A mãe da rapariga
depositara o bicho-feiíiço num copo com espirito de vinho e andava de Cíisa em casa
mostrando-o [...].^^
Naturalmente, o ilustrado doutor fez ver à inocente mãe que se tratava de
um aborto, e a infeliz moça veio a falecer dias depois de infecção, levando o
doutor-repórter a bradar pelos jornais para que os rigores da lei se abatessem
sobre o responsável por aquele crime! O alarmante, dizia ele, eravercomo tudo
ficava impune, como tudo que era caso de histeria era identificado como feitiço
e como tais fatos estavam presentes em todo o Rio Grande! De Bagé para São
Gabriel, a alta feitiçaria grassava... Em 1892, havia se registrado nesta comu
nidade um caso extraordinário entre os trabalhadores da estrada de ferro: uma
pardinha histérica deixara o tratamento médico para ser atendida por Ramâo,
um preto cuiandeiro, que a declarara enfeitiçada por um batalhão de espíritos
que haviam se apossado de seu corpo.
Para que se obtivesse a cura, o feiticeiro exigira que, a certas horas do dia
e da noite, as pessoas da casa deviam imitar as vozes de animais! Assim é que
a mãe miava, a enfeitiçada balia como uma ovelha, um dos rapazes latia, um
outro cacarejava, mais outro uivava, aquele zurrava como um jumento, en
quanto o mandingueiro Ramâo, com um pedaço de fumo e repetidas bochechas
d'água, esborrifava no rosto dos presentes da pobre família...'^'' A cena devia ser
FEITIÇO NEGRO EM CIDADE BRANCA: MORTE EM FAMÍLIA 385
realmente hilariante, mas atestava para os leitores até que ponto podia levar a
ignorância e a crendice do povo, a obedecer às mais absurdas exigências de um
charlatão!
O escandalizado doutor dera parte na polícia, que levou preso o perverso
negro dos espíritos. Amarrado em seu corpo, entre a camisa e o casaco, foram
encontrados em um saquinho vermelho mais de 30 biclios cabeludos, insetos
variados, bolas de cabelo, agulhas, alfinetes, pedaços de cal, de gesso, de capim,
apetrechos todos que o mandingueiro vomitava diariamente, fazendo crer que
expelia os maus espíritos captados dos pacientes... Ramão foi esfaqueado —ou
seja, preso por pés c mãos a uma certa altura do solo, amarrado a quatro tocos
—, sem água e comida, por 24 horas, e depois foi obrigado pelas autoridades a
deixar o município. Como se vê, deram ao bárbaro mandingueiro um trata
mento igualmente bárbaro. Quanto à enfeitiçada, deixou de ter seus ataques de
histeria e depois de alguns meses deu à luz a stwfeitiço^ um gordo nenê^ causa de
seus males... O episódio, por estapafúrdio que possaser, revela a associação que
se evidenciava, reiteradamente: a feitiçaria acobertava desvios de conduta, como
o caso da gravidez que se mascarava em feitiço.
Em 1914, o jornal A Noiteiniciou uma campanha contra o que chamou de
explorações torpes^ exercidas por indivíduos ignorantes, mas espertalhões, que se
apoiavam na crendice popular.''^ A situação era aproveitada para que se fizesse
uma crítica ao governo: no Rio Grande do Sul, a constituição estadual, para ga
rantir a liberdade profissional, impedia a correta aplicação das punições previstas
no Código Penal da República. Com isso, os charlatães se sucediam, a vender
beberagens e xaiopadas, panacéias que desafiavam a higiene e o bom senso...
Eram lembradas certas figuras que haviam passado pela cidade, a explorar
a boa fé dos ingênuos: um certo argentino, que se apresentara como publicista,
tendo alguns de seus contos publicados pela imprensa para depois, travestido
de químico, passar a vender um produto miraculoso, o suffit, panacéia para
todos os males; o fundador da Pharmacia Africana- dr. H. Menezes, a anunciar
o "Bálsamo da Surucucu', extraído do espinhaço da cobra, trazendo consigo
uma destas cobras, que com duas ou três lambidas acalmava dores remáticas e
nevrálgicas; vendeu ainda outras poções, como o famoso "Xarope Africano" e
o "Raio-X..."
Outros tantos espertalhões se dedicavam a curar males de amor ou a provo
car paixões súbitas nos mais indiferentes; outros ainda vendiam talismãs e fór
mulas mágicas para o sucesso nos negócios. Urgia coibir tudo isso, comentava
o articulista, pedindo que a polícia pusesse termo a tais "baboseiras, só próprias
da gente africana".''®
Notemos a persistência das associações imaginárias de sentido, ante uma
realidade que negava, em parte, a tal correspondência entre cor e charlatanismo.
Muitos charlatães não eram negros, mas mesmo assim se indicava que agiam
386 SANDRA JATAUY PESAVENTO
Bagé. Ao que consta, narra Costa e Silva, nestas cidadesfundou centr os para a
prática da religião aficana, pois era umdevoto de vodti Gnm (ou do orixá Ogtim).
Tornou-se tambémfamoso como especialista no uso de ervas mediciitais?^
Na tradição conservada por sua família e recolhida por Maria Helena Nu-
nes^^, Custódio, o PríncipeNegro, teria vindo do Benin, poderoso reinofunda
do no sul ocidental da Nigéria por Eweka I, do qual Custódio, cujo nome afri
cano seria Osuanlele Okizi Erupc seria descendente direto. Assim, a família lhe
atribuída linhagem real a este pertencente da tribo dos benis, dinastia de Geflê,
da nação gégê. Dos benis, Custódio incorporara os ritosmágicos que marcaram
a religião que veio depois a desenvolver no Brasil e indica ainda Nunes que a
memória coletiva conservou a informação de que Osuanlele teria sido Oba na
Nigéria.®" Legitimado assim como um príncipe, ele teria saído daÁfrica, onde
estava seu reino —não só territorial como espiritual —para a formação de um
novo reino, este de natureza religiosa, no outro lado do oceano.
Neste relato das origens, se misturam fatos, datas e lugares, comopor exem
plo a luta de Osuanlele pela sucessão do trono, sua ida à Europa e a invasão
inglesa do Benin em 1897. Segundo este relato —histórico mítico—a saída de
Custódio da África seria mais recente, contrriando aquele fornecida por Costa
e Silva. Concordamos com Nunes quando enfatiza o caráter simbólico e legi-
timador do relato e não a veracidade do acontecido. Assim, Cutódio era um
Príncipe, e como príncipe foi recebido pela elite gaúcha que o acolheu. E, neste
ponto, começam as relações, não abertas mas, aparentemente, estreitas, entre o
controvertido príncipeafricano em Porto Alegre e a elite política republicana.
Em depoimento de seu filho Dionísio, Custódio teria vindo para o Brasil
em 02.09.1898, tendo chegado no Rio de Janeiro e depois na cidade gaiícha
de Rio Grande em 07.09.1899, onde permaneceu até 04.10.1900, quando se
mudou para Pelotas, para chegar finalmente a Porto Alegre em 04.10.1901®'.
Logo, em nova discordância de roteiro face os dados fornecidos por Costa e
Silva e com datas bem precisas...
Um detalhe se revela dese já curioso: nas declarações de seu filho Dionísio,
Custódio —que no Brasil assumiria o nome de José Custódio Joaquim de -Al
meida —viera a Porto Alegre a convite de seu amigo Júlio de Castilhos, então
Presidente do Estado!
E por qual razão? Porsuas atividades no terreno do sobrenatural, por certo,
pois segundo Nunes, sempre apoiada nos depoimentos de familiares e pessoas
da época, que o teriam conhecido. Custódio teria sido o responsável pelo re
conhecimento da religião afro-brasileira nem Porto Alegre. Ou seja, seria sua
obra o fato dela não ser mais confundida com superstição e ignorância, com a
feitiçaria da qual era acusada.
Ao chegar à cidade, o Príncipe Custódio se instalara na Cidade Baixa, em
uma casa à Rua Lopo Gonçalves, número 468. Ele e sua corte —seus acólitos e
FEITIÇO NEGRO EM CIDADE BRANCA: MORTE EM FAMÍLIA 393
seguidores —, ele e sua família, mulheres e filhos, a habitar esta casa que espan
tara a vizinhança pelo seu tamanho, pois abrigava uma cocheira para cavalos e
um grande salão.
Contava-se ainda que este negro alto, dequase dois metros dealtura, passe
ava na cidade comseucarro, puxado por cavalos brancos em dias de sol e pretos
nos dias de chuva; que possuía também um landau, que freqüentava o Jóquei
Club, pois lá tinha animais que disputavam ascorridas de domingo; que recebia
em liras esterlinas uma pensão do governo britânico instalado no Benin e que
tinha uma condecoração concedida pelos ingleses; que tinha uma casa na praia
de Cidreira, onde veraneava, que abrigava prostitutas negras cm sua casa c que
as ajudava, encontrando para elas emprego e casamento.
Contava-se ainda que falava corretamente o inglês e o francês, que ajudava
ainda os meninos e rapazes negros, colocando-os a trabalhar, como por exemplo
nos Correios e Telégrafos; que assentara um bará no Mercado Público, outro no
Palácio do Governo, para proteger Borges de Medeiros e um terceiro no local
onde se erguia o patíbulo da Rua da Praia; que fazia grandes frestas africanas
todos os anos, no dia de seu aniversário, que era visitado por políticos, militares
e gente da alta sociedade; que curava pessoas dos mais estranhos males e que
tinha um poder de vida e morte com seus feitiços...
De seu grupo mais próximo,que o assessorava nos ofícios religiosos, muitas
são também as histórias contadas, plenas de "milagres", de curas, de trabalhos
encomendados e de atos de generosidade. Estava sempre cercado pelos grandes
da terra, como homens de negócio, do porte de Eleudiério de Araújo, impor
tante comerciante, ou o proprietário da confeitaria Rocco, seu protegido.
Neste sentido, os depoentcs que relatam os fatos da vida do Príncipe Cus
tódio não hesitam em nomear, por exemplo, as mulheres que ele acolhia em sua
casa como feiticeiras, a realizarem benzeduras e curarem de feitiços^^ Também
nos relatos de Dionísio, filho de Custódio, figuram as proezas de alguns dos
chefes do conselho da príncipe, moradores da Bacia de Monteserrat, na Colônia
Africana:
Outra coisa que eu me lembro é de quando eles queriam termittar com um
determinado casamento. Eles vestiam um casalde cabritos e largavam um um para
cada lado. O macho eles vestiam de noivo e a cabrita com direito a véu, grinalda
e luvas. O casamento jamais se realizava. Estas coisas causaram muitos problemas
para aquele povo, eestefoi oprincipal motivo das perseguiçõespoliciais sofridas por
aquela genteP
Tal tipo de incidente faz parte das memórias da família Boni, cuja neta
Flavia Licht, nos contou a seguinte história:
No entardecer do dia 21 de abril de 1915, lápara as balidas do MeninoDeus,
a parteira Amedea Vecchio estava ajudando a esposa do dr. Carbone dar a luz.
Terminado aquele parto, elafoi atender a outro chamado: na rua Santo Antonio,
394 SANDRA JATAUY PESAVENTO
onde meu tioDanilo, oprimogênito do casal Giuditta eArmando Boni (meus avós
maternos) estava por nascer. Só quepara ir do Menino Deus até a Independência,
a dita Amedea teve quese valer de uma chanete puxada a cavalos e o'uzar a vár
zea da Redenção. Na metade da travessia, já noite avançada, o que ela vêê Nada
menos que uma cabrita correndo entre os capinzais com um véu de noiva preso à
cabeça!^^'
Sem dúvida, tudo nos indica que a tal fantasmagórica cabrita, a correr ves
tida de noiva no meio da noite, atravessando a Várzea, era obra dos feiticeiros,
talvez mesmo dos amigos de Custódio...
Do Príncipe temos uma foto, a mostrar um negro alto, de turbante e cal
ças curtas de cetim, vestido principescamente, à muçulmana, em pose onde
não falta a grandeza do gesto, a postura confiante de alguém quesabe a posição
que ocupava nesta sociedade onde freqüentava o mundo dos brancos e dos
negros.
O admirável na recomposição desta figura são as histórias contadas, trans
mitidas pelaoralidade, talvez duvidosas no enaltecimento do personagem, mas
ricas de significado, a mostrar a importância deste ator no contexto de suaépo
ca. Mas, por outro lado, nos deparamos com o silêncio dos textos.
Surpreendente é o fato de que não há notícias sobre ele nos jornais da épo
ca, em que fora amigo deJuIio de Castilhos, estando próximo, portanto, do res
trito círculo da eliterepublicana que dominava o Rio Grande. Dele, tudo o que
sabemos advém das fontes orais, onde tem papel importante os depoimentos
de seus filhos, comprometidos com a natural afetividade filial e com a imagem
positiva do pai. Ele fora, segundo depoimentos, responsável pela aceitação do
culto afro, como nos contou Norinha de Oxalá, relatando o encontro de sua
mãe, ainda menina, com a figura do Príncipe, que fora visitar sua avó, mãe de
santo também.
Ele era wn homem alto, que chegou no pátio, acompanhado por um outro,
amigo demeu avô, me contou minha mãe. EUfez muito pelas casas deregião epelos
negros. As muitas casas que existiam no Areai da Baronesa, que eram perseguidas
pelapolícia, foram deixadas empaz!^^
Destes depoimentos, sobressai a figura de um poder espiritual enorme, que
fez o Príncipe Custódio viver entre dois mundos: o dos negros com seus cultos
condenados e o dos brancos, seduzidos por seus poderes. Moab Caldas, depu
tado e líder religioso d umbanda, chega a referir que líderes políticos iam até a
casa do Príncipe e lhebeijavam a mão!'^'' Aafirmação é inusitada, pois ele chegar
a usar a figura de Fores da Cunha para exemplificar o fato. Júlio de Castilhos,
Borges de Medeiros e Getúlio Vargas teriam também talcostume.^ De Borges de
Medeiros, Dionísio, filho do Príncipe, disse que ele era filho de Ogum!''^
Dante de Laytano declarou ter conhecido o Príncipe Custódio, que tanto
impressionara Roger Bastide no seu estudo sobre os batuques em Porto Alegre.
FEITIÇO NEGRO EM CIDADE BRANCA: MORTE EM FAMÍLIA 395
dia, e com redobrada força. Foraencão que um vizinho, não suportando maiso
espetáculo da tortura, denunciara o caso à polícia,
Quando, finalmente. Rosa morrera, o curandeiro negara-se a dar o atestado
de óbito, dizia o jornal, passando a tarefa a um outro feiticeiro, que deu como
causa mortts a berticulose pulmonar.
Cabe notar o inusitado deste desfecho "legal". Com que então feiticeiros e
não médicos, podiam dar atestados de óbito? Talvez, dado o princípio comtiano
aplicado na república posiivista gaúcha, que conferia liberdade para o exercício
da profissão, dispensando o diploma. Mas isto se aplicaria, também, aos docu
mentos formais c legais, como os atestados?
Averiguações foram feitas junto às instâncias competentes e o resultado foi
de molde a incriminar o curandeiro: este exercia a profissão de médico ilegal
mente. Fora realizada uma diligência para ver se ele havia pago os impostos de
industrias e profissões a que estava sujeito pela lei, concluindo-se ele não efeti
vara este pagamento'"^, assim como se viera a saber que não estava registrado
como médico na Mesa de Rendas de Porto Alegre.'®®
Tiveram então início os interrogatórios sobre os envolvidos na Polícia.
Emilio Correia, marido da vítima, narrou, com a maior simplicidade., as torturas
a que submetera a mulher, para depois, chorando, dizer que tudo fizera por
julgar que estava agindo pelo seu bem! A tia de Rosa e que com ela morava, D.
Florinda dos Santos, declarou também que acreditara no tratamento indicado
pelo curandeiro. A menor Miguelina Correia, irmã de Emilio e testemunha
ocular das torturas confirmou as declarações deste e da tia da vítima. Do núcleo
familiar, envolvido mais diretamente na morte de Rosa, foi ouvida a vizinhança,
que de hd muito tempo vinha presenciando o quese passava com a enferma.
Já a prisão do curandeiro Norberto Pereira Nunes dera margem a que se
constatasse que ele não só viviaem casa muito confortável, mas mobiliada mes
mo com luxo, dizia o jornal O Diário nesta extensa cobertura do crime. Che
gava a ter um peão, encarregado de soltar o galo na encruzilhada, depois de
esfregado no corpo da pobre Rosa!
Na delegacia, o charlatão confirmou que tratava de D. Rosa, administran-
do-lhe tisanas por ele preparadas.
Acrescentou que era espirita, tendo, por isso, no tratamento da enferma, feito
alguns passes, cobrando por cada um destes 8$000. Cada vez que esfregava na ví
tima ogalo preto, cobrava 5$000sendo somente essa a remuneração que exigia por
seus serviços médicos.''®
Cabe assinalar a afirmação do curandeirode ser espírita, o que devia corres
ponder a um certo imaginário popular da época: quem lidava com espíritos, a
espantá-los do corpo dos pacientes, era, por cerro, espírita...
As diligências policiais prosseguiram nos dias subseqüentes, com novas
descobertas sobre o charlatão. Norberto Pereira Nunes, até bem pouco tempo
402 SANDRA JATAUY PESAVENTO
antes dos fatos ocorridos, era servente de uma farmácia na Rua dos Andradas.
Voltara-se para o charlatanismo através do espiritismo"', afirmava o jornal,
colocando este como uma passagem para a feitiçaria e, por conseqüência, ao
crime. O negócio tivera tanto êxito que em cerca de 2 anos pudera construir o
prédio em que residia na Rua conde de PortoAlegre.
Mas o curandeiro não agia sozinho: conseguindo alguns adeptos, fundara o
Centro Espírita Serafim de Freitas, em homenagem, segundo dissera à polícia, a
um espírito desse nome. Devido a suafama, este centro crescera muito, estando
no momento com cerca de 1.000 associados, a tal ponto que fora transformado
em Irmandade Serafim de Freitas, cm solenidade realizada na noite de Natal,
quando foram invocados diversos espíritos. Foi inaugurado então o estandarte
da Irmandade, de cetim azul e tendo ao centro a imagem de uma santa.
A religião católica, o espiritismo e o charlatanismo, equiparado à feitiça
ria se davam as mãos através desta Irmandade formada, que contribuía para o
enriquecimento de seu líder. A instituição lhe valia uma certa renda, pois os
associados contribuíam com mensalidades, o que lhes dava direito a assistirem
as sessões espíritas e, quando doentes, a receberem remédios preparados pelo
charlatão. Além disso, quando curados, podiam retribuir a cura com outras
gratificações, de forma espontânea.
O charlatão não examinava os doentes. Estes deixavam seu nome por es
crito e no dia seguinte voltavam para receber os remédios prescritos pelos espí
ritos. Os tais espíritos era invocados por uma médium chamada Amélia de tal.
Complementava o jornal:
O major Herctiles Limeira, delegado judiciário do 4" distrito, soube, ontem,
que Norberto estava tratando por meio de "feitiçarias" uma senhora residente em
São Leopoldo e que se acha, agora, sofrendo dasfaculdades mentais)^^
As diligências da polícia prosseguiam, agora secundadas pela ação dos re
pórteres do Jornal O Diário, interessados em dar maior visibilidade ao caso de
feitiçaria ocorrido na capital.
Primeiro, partiramcm busca do marido da vítima, rctraçando uma história
de amor, que os leitores sabiam ter um destino trágico. Emílio Corrêa declarara
ter tido relações íntimas com a depoente cerca de três anos antes, passando a
viver maritalmente com Rosa em perfeita harmonia e combinação de gênios,
ele como ferreiro, ela nos arranjos da casa.
Que era carinhoso com dona Rosa, proporcionando-lhe, dentro de suas
posses, todas as comodidades, atesta-o com vizinhos que se davam com a morta
intimamente.
Nos últimos tempos ele mesmo se encarregava do serviço doméstico, e isto para
proporcionar à enferma o repouso aconselhado pelo "médico". Muitas vezes, ao re
gressar à casa, cansado do trabalho quotidiano, teve defazer a sua refeição, porque
elajá nem disto, ultimamente, podia ocupar-se. Tudo era pelo depoente suportado
FEITIÇO NEGRO EM CIDADE BRANC,\; MORTE EM FAMÍLLX 403
com a maior resignação e sem que sua estima e osseus carinhos para com a vítima
diminuíssem. Se praticou o ato que hoje reputa desumano, de tê-la espancado, foi
porque supunha que, destaforma, lhe afugentaria o "espirito mau" dequelhefala
va Roberto [sic]. Somente levado por esta convicção, poderia ittfligir maus tratos a
sua companheira, que, em momentos deadversidade, o consolava, dando lheforças
para vencer as dificuldades que se lhe deparavam na vida. Terminou dizendo estar
profundamente arrependido do quefiziera, levado pela melhor dasintenções.
A reporcagem falava em dedicação, desprendimento, mostrando que o jor
nal traçava um perfil favorável do marido, em seu arrependimento e também
simplicidade.
O Jornal O Diário também publicavao depoimento de uma vizinha, Maria
da Gloria da Silva, de cor mista, solteira, com 31 anos de idade, que se colocara
como testemunha ocular do martírio sofrido por Rosa, dando-se muito com ela
e sabendo dos detalhes íntimos de sua vida. Assim, o periódico abria uma porta
de entrada à intimidade da íàlccida, para satisfazer a curiosidadede seusleitores.
Era ela que lhe lavava a roupa e fazia a comida, depois que Rosa adoecera e fora
ela ainda quem presenciara os primeiros sintomas de alienação mental;
A infeliz introduzira a cabeça pela bandeira da porta dafrente, da qual que
brara um vidro, e, com afisionomia visivelmente alterada, imitava o zurrar de um
burro. Depois desta cena, segiram-se outras, deloucura, que a depoentepresenciava
com verdadeira mágoa, por quesempre teve em D. Rosa uma amiga dedicada. Ter
minou dizendo estarfirmemente convencida de queEmilio aplicou as varadas em
sua mulherpela convicção deque, assim, lheafugentaria o "espírito mau".^^^
Mas a melhor parte da reportagem estava dedicada à fala de Norberto, o
curandciro, longa e minuciosa, a relatar o início de sua vida no charlatanismo,
discorrendo sobre as curas milagrosas que havia obtido.
Um dos repórteres estivera na casa de Norberto, situada em um belo pré
dio, talvez o melhor da Rua Conde de Porto Alegre. Seu aspecto externo,
contudo, contrastava com o interior. Paredes sem reboco, com figuras de san
tos penduradas, velas a arder em castiçais de madeira, uma caixa a um canto,
para o recolhimento de esmolas... Tudo, pois, com aparência rude, primitiva,
acentuada pela presença de gente a rezar e finalmente a entrevista como "Ir
mão Norberto" em uma acanhada sala com dois rústicos bancos de pau e um
pequeno armário.
Norberto disse aos repórteres que a singeleza do ambiente se devia à deter
minação dos espíritos seus irmãos.
E Norberto, começou, então a lamentar-se da injustiça clamorosa que so
frerá ...
Não mandara vergastar Dona Rosa. Estafora a sua casa pedir-lhe remédio.
Ele, como nadafaz sem consultar os seus "irmãos espíritos", "chamou dois afala" e
estes pemitiram que tratasse da enferma, indicando-lhe o processo do "galo preto"
404 SANDRA JATAIIY PESAVENTO
Começou então o tratamento. A sua clientepiorava cada vez mais e ele terminou
por desenganá-la. O espírito do doutorSebastião Leão disse-lhe queela, fatalmente,
mnrreria.^^"^
Importante também haviam sido as declarações de Norberto, onde ele ex
plicava as razões porque se fizera espírita: há cerca de 4 anos ficara paralítico e
cego, e como todos os médicos que consultara haviam falhado, acabara indo a
um centro espírita tomar um passes, mesmo sem acreditar nesta religião e nos
seus poderes de cura. E, lá, uma "alma do outro mundo" lhe aconselhara o re
médio paraseu caso: sebo decarneiro preto, com erva delagarto... Um prodígio,
pois ficara curado c aderira ao espiritismo, começando a praticar a medicina
psíquica, comprando o "guiados médiuns"!
Mas, além desta profissão de fé, e de uma trajetória profissional onde se
intitulava atuar nos domínios do psíquico, como médico, Norberto largava aos
repórteres indícios de segredos e revelações que, se tornados públicos, incomo
dariam muita gente na cidade...
Poderia, disse o miserável nas suas declarações a polícia citarnomes defamílias
altamente colocadas na nossa sociedade, as quaispor muitas vezes recorrem aos seus
serviços profissionais. Entretanto nãofaz. A luz em tomo do caso em que inimigos
seus oenvolveram,far-se-á, eele sairá como nele entrou: com a consciência limpa. É
esta a primeira vez que se vê a braços com a policia, por que a sua vidafoi sempre
pautada por uma honestidade absoluta.
Norberto fazia uso aqui da ameaça da delação: se revelasse os nomes de
seus freqüentadores, das pessoas da alta sociedade que o procuravam... Mas não
o faria, pois tinha caráter! Norberto tinha, pois, consciência do medo .social
que pairava na cidade, pela freqüência de gente bem situada socialmente em
terreiros, "casas de religião", cartomantes, centros espíritas e outros locais da
contramão da ordem, reduto de gente das camadas mais baixas da população.
No seguimento de tais reportagens, que deveriam ser seguidas com avidez
pela população, os repórteres d 'O Diário realizaram uma entrevista com um
certo Pai Antonio, outro charlatão da redondeza, "colega" do "doutor" Nor
berto, que contou aos repórteres os métodos que utilizava, por meio da feitiça-
ria, para suas curas assombrosas.
Morava ele numa casa de porta e duas janelas, quase esquina da Rua Mar
quês do Pombal com a Rua Felix da Cunha. Cabe notar esta outra áreahabitada
por negros e dada às práticas da feitiçaria, até então não divisada cm Porto ale
gre. Talvez se tratasse do processo de migração dos negros egressos da Colônia
Africana, nas primeiras décadas do século XX, subindo primeiro para os altos
de Montserrat e depois descendo a encosta do outro lado, em direção às ime
diações da Rua Cristóvão Colombo.
A visita dos repórteres à casa do outro curandeiro foi de molde a mostrar,
à opinião pública, a ameaça social da feitiçaria. O charlatão Norberto, respon-
FEITIÇO NEGRO EM CIDADE BRANCA: MORTE EM FAMÍLIA 405
sável pela morte de Rosa, não estava só e nas proximidades do local da tragédia
um outro centro de exploração da crendice popular vicejava.
Já de manhã os repórteres puderam observar a quantidade de genteque, le
vando garrafas, entrava na casa do "mago". Estavam decididos a entrar quando
um velho sei-vente de uma certa repartição policial, morador das redondezas se
aproximou e aconselhou que não deviam falar diretamente com o curandeiro,
pois este já se achava prevenido com relação à publicidade que a imprensa dera
ao caso de seu colega fundador da Irmandade Serafim de Freitas" e certamente
nada diria. Mas, em contrapartida, ele poderiafornecer dados muito interessan
tes sobre a atuação dc Pai Antonio...
De umafeita caiu-lhe nasgarras uma mulata velha, que vinha ao município
de Cachoeira, especialmente para consultã-lo. Essa infeliz, segundo dizia, tinha
um velho incômodo no estômago sobre o qualjá cojisultara, sem resultado, a vários
médicos.
Começou o tratamento: "passes" espiritas, benzeduras, fricções com gaiospretos,
e odiabo em suma... Tempos depois, a enfennaandava a dizer que tinha um "bode
no estornago". O animal sempre que eUi pretendiafazer qualquercousa, virava de
catí-ambias e, e^itâo, ia tudo raso: o remédio era deitar-sepor que nada mais lheera
possívelfazer durante o dia. Afinala desgraçada enlouqueceu. Foi para o hospício,
deixando para oseu "médico" o resto dealgumas economias queainda lherestavam,
economias queainda lhe restavam, economias estasprovavelmente de umpedaço de
terra que vendera na Cachoeira, para vir tiatar-sena capital.''
Ouvida a história tragicômica com atenção, os repórteres entraram na casa,
deparando-se na sala da frente com um altar, cheio de santos. Pai Antonio era
crioulo dc cerca dc 60 anos c, dizcndo-sc dono da casa, colocou-se à disposição
dos repórteres que disseram ter curiosidade em ver a casa, saber quais os remé
dios que usava e quem eram seus clientes.
Pai Antonio respondeu que sua casa tinha mais de vinte anos e era fre
qüentada por centenas de pessoas, que o honravam com sua confiança. Seu
consultório era um quarto completamente fechado, onde, ao redor de velas
acesas em um oratório, um grupode mulheres rezavam, ajoelhadas. O charlatão
esclareceu queeram enfermas em busca de cura e que rezavam paraosespíritos,
pois eram estes que, por seu intermédio, ditavam os remédios que ele mani
pulava e dava às doentes. Sobre os medicamentos aplicados. Pai Antonio disse
serem cataplasmas, ervas, simpatias... Ante o espanto dos repórteres com as tais
"simpatias", o curandeiro esclareceu:
—Sim, simpatias. Tara batriga dágua, por exemplo, os espíritos mandam, qua
se sempre, colocar, sobre o ventre do paciente uma fileira de pedaços de sabugo de
milho, queimados; para "bichos brabos", no cotpo, [para] moléstia que os médicos
denominam cancro, adoto benzedunis com uma rama de santa maria e o pó dessa
erva, queimada.
406 SANDRA JATAHY PESAVENTO
se queixava, Miguelína dizia que ela não era Rozita e sim o TINHOSO, ao que
Rozita contestava dizendo eu sou Rozita sirn, como é que vocês querem que eu me
expresse, para vos convencer dequesou Rozita; que, sempre queMiguelina diziaser
Satayiaz qtde estava no corpo de Rozita, esta protestava energeticamente [sic]; que,
viu Aíigueíina e outras pessoas que Lá se achavam negarem alimento à Rozita, sem
pre queestapedia, protestando ?iào serRozita quem ospediaesim o Tinhoso, ao que
Rozita protestava; que, uma ocasião em que a esposa do depoente, Josefina Maciel
se achava na casa de Rozita, esta pediu para ir ao urinol, Miguelina cobcou-ílje
este vaso deforma, que a doente teria de defecar mesmo deitada, e tendo a esposa
do depoente pretendido levantarRozita, esta vazou-se a?jtes de sentar-se em urinóis
[sic]; queentrando nesse mommto naquele quarto, um menor, Rozita pronuncian
do o nome da menor, pediu-lhe que chanuisse sua mãe para socorrê-la; que estefato
presenciado por sua esposa, deu-se ha três dias}~^
Tais depoimentos são extremamente significativos para que se possa apre
ciar o cruzamento e interpenetraçáo das práticas religiosas populares, onde o
catolicismo se apresentava misturado ao curandeirismo e ao entendimento da
quilo que seria chamado de baixo espiritismo. Um casamento quase in extremis
com uma mulher da qual diziam estar possuída do demônio é, na realidade,
uma situação paradoxal.
Também destes depoimentos se destacam algumas falas da vítima, modifi
cadas ou não pela narrativa dos vizinhos, mas a mostrar o estado de sofrimento
em que se achava. Cabe notar ainda as afirmações de que não se encontrava
perturbada de suas faculdades mentais, em apreciação de seu estado que foi
confirmado por outros depoentes.
iMarculina dos Santos, residente à rua 3 de Maio n® 24, disse, por seu lado
que, por conhecer Roza, mulher de Emilio, foi ha dias passar uma noite com ella,
pois que se achava enferma guardando o leito; que, durante essa noite, viu que essa
doente era muito maltratada pois, havia defecado na cama epor mais quepedisse
para que mudassem as roupas, dizendo que em uma mala havia lençóis e rou
pas brancas, não lhefaziam a vontade, deixando-a permanecer no meio da maior
imundície, vestida apenas com um pequeno casaco; que. Rosa também pedia ali
mentos mas não lhos davam, dizendo que o curandeiro que tratava dela recomen
dara que não lhe dessem coisa alguma, pois Rozita Já tinha se ido e no corpo dela
estava o diabo: que Imrorizada com esta malvadez, nunca mais Ia voltou. Maria
Pedro deSouza, moradora à ma 3 deMaio 24, disse confirmar o depoimento de
Marculina dos Santos, pois que, se achava com ela na ocasião.^'"^
De tais depoimentos vê-se que outro sofrimento vitimara Rosa, além da
tuberculose e dos espancamentos: a inanição, pois a família a privava de ali
mentos e água.
Antonio Joaquim Machado Sobrinho, morador à ruaChristovão Colombo
n." 321, disse que o perguntar a Emilio sobre a doença de sua mulher, este lhe
410 SANDRA JATAHY PESAVENTO
respondeu que ela já devia ter morrido, pois seu tempo na terra havia termina
do, conforme lhe dissera o "médico" Norberto Pereira Nunes. Outro vizinho,
Joaquim Vizeu de Sá, morador à rua Dr. Timotheo n.° 54, disse concordar com
as declarações de Antonio Joaquim Machado.
Já Maria Cândida da Silveira, moradora à rua Dr. Timotheo n.® 62, disse
que indo à casa de Rozita, por duas vezes, notara a falta de asseio no quarto
dela, achando-a com as vestes descompostas e dizendo ser Nossa Senhora do
Carmo. Soubera, por ouvir dizer, que batiam em Rozita, mas nada vira. Da
mesma forma Maria da Gloria moradora a rua Dr. Timotheo n.° 60, disse que
rosa apresentava, desde há poucos dias, sintomas de alienação mental. Assim,
havia outro tipo de depoimento da vizinhança que atribuía uma perturbação
do juízo à enferma.
Alice da Cunha Oliveira, residente à rua Dr. Timotheo n.*' 53, disse que
fora impedida de entrar na casa por Emilio, pois lun espírito mau podia se
encarnar no seu corpo. Mas outros tinham acesso à casa, como a citada Maria
da Glória, que tivera oportunidade de constatar aquilo que ouvira dizer: Rosa
era surrada e ao mostrar a outras vizinhas, Maria Cândida e Luiza José Maria,
ossinais dos golpes de vara no corpo da doente, fora agredida com palavras por
Carlota, mãe de Emilio.
Emilio lhe dissera que os golpes de vara haviam sido receitados por Flo-
rinda, tia de Rosa, para expulsar um espírito mau que sua mulher tinha no
corpo.
Nestor dos Santos Praes, morador à rua Casemiro de Abreu n® 57, tio de
Rosa dos Santos, disse que ao saber que sua sobrinha estava muito mal, fora
vc-la, cncontrando-a a debater-se. Ouvira dos vizinhos que sua sobrinha estava
sendo massacrada por Emilio, ao que Emilio contestou dizendo, que o quefazia
para sua mulher não era massacre, e sim um benefício, pois com assurras que lhe
dava, tirava-lhe o espirito mau que ela tinha no corpo}^^'
Assim, as testemunhas iam compondo uma história, juntando o que ti
nham ouvido dizer com o que haviam presenciado. A constatação era geral
quanto às bordoadas sobre o corpo de Rosa e freqüente a alegação dos maus
espíritos que habitavam seu corpo.
Convocada a depor a citada Carlota Corrêa, mãe de Emilio Corrêa, resi
dente na Avenida Carioca, da rua da Olaria, disse que haviaaconselhado o filho
a chamar um médico, mas este lhe respondera dizendo que Rosa já estava sendo
tratada pelo curandeiro Norberto Pereira e que, devido a andar semprelidando
para os fundos da casa, não via o tratamento ministrado à Rosa e nem se esta
era ou não surrada, mas que depois dela morta, a depoente notou em seu corpo
sinais dos golpes de vara. A sogra, no caso, mesmo morando na mesma casa,
buscou esquivar-se de ter sido testemunha das surras que eram ouvidas pelos
vizinhos.
FEITIÇO NEGRO EM CIDADE BRANCA: MORTE EM FAMÍLIA 4l 1
lhe desseni de vara de maimcU) a bem de se retirar: cjue, a vista disso consultou
Florinda tia de sua anuísiUy quefoi de opinião que se desse em Rosa; que, então
Miguelina lançando mão de duas varas de mainneh começou de aplicar em Rosa
golpes nos membros inferiores e superiores, sendo nisso secundado pelo depoente, e
Florinda; que, nessa ocasiãofoi sentido um estouro dentro de casa, tendo Rosa me
lhorado em seguida; recomeçando depois no seu estado de agitação, porem não fez
mais odepoente uso das varas; que, Norberto, alem detratarpor meio doespiritismo
e bruxaria, faz despachos çU carne, gaios egalinhas pretas, para qs doentes passar
no coipo e botardepois yiuma encruzilhada de ruas: quetambém chamou o médico
Ricardo Jonas, qtie deu um remédio para Rosa tomar e mandou que procurassem
outro médico; que, toda vez que ia à casa de Norberto levava-lhe cinco mil réis,
sendo que a primeira vez levou oito mil réis; que, assistia sempre Norberto passar
pelo corpo de sttaamdsia, umgalo, ressando nessas ocasiões e mandando depois um
empregado dele despachar ogaloem uma encruzilhada.
Pela primeira vez, aparece nomeada a prática do rito afro-brasileiro do "des
pacho", associado no depoimento de Emílio com a feitiçaria e com o espiritis
mo, pois estes —espíritos do mal, bem entendido —haviam tomado possessão
do corpo de Rosa, perturbando seu juízo.
Miguelina da Conceição, preta, solteira, residente na Rua da Olaria, Ave
nida Carioca n.° 14 —logo, vizinha de Carlora, mãe de Emílio -, disse que
indo visitar sua amiga Rosa, a vira a correr pela casa empunhando um livro e a
família lhe dissera ser um espírito que se apoderara dela. Rosa mesmo chegara
a afirmai- em altos brados que tinha encarnado em si, o espirito d£ um negro mina.
pedindo que a surrassem afim de que ele saísse.
Este depoimento, tal como os de Marculina, Herminio e Lothario, são ex
tremamente interessantes porque veiculam falas de rosa. Em poutras palavras,
botas palavras na bocada morta, que ali não mais está para confirmar ou negar
seu discurso. Assim, são contraditórios, pois ora mostram a inconformidade de
Rosa com o cativeiro e suplício a que estava reduzida, ora a fazem algoz de si
própria, a pedir que a espanquem...
A tia de Rosa, Florinda Corrêa Furtado, moradora à Rua Barão do Trium-
pho n." 55, disse sabendora que sua sobrinha se achava muito doente, fora
visit-a-la eviraque era espancada por Emilio e Miguelina, que lhedisseram que
erapara tiraro espirito mau, queestava no corpo dçRosa, segundo havia afifirmado
o medico Norberto.
Assim, ela própria passara a espancar Rosa, pois se tratava de umaobra de ca
ridadeque se fazia para a doente. Mas o Major delegado, que dirigira estes interro
gatórios, acrescentou em seurelatório que tomara conhecimento de quea pretaFb-
rinda Cônea, tia da vitima, já estivera internada no Hospício S. Pedro, duas vezes. '
Uma família de pretos, migrada da cidade Baixa, vinha encontrar-se nesta
zona da cidade onde outros pretos, migrados provavelmente da Colônia Afri-
FEITIÇO NEGRO EM CIDADE BRANCA: MORTE EM FAMÍLIA 4l3
cidadão, honesto e humanitário e que o viu muitas vezes dar consultas a quem
necessitava e até dinheiro à pobre para comprar remédios}'^^ Tal procedimento
foi confirmado por outra resrenuinha, um maquinista, que disse que apesar
de Norberto não serformado, sendo curandeiro, curara sua esposa com ervas
medicinais de uma infecçáo intescinas que os outros médicos não conseguiam
eliminar.'^* Igualmente o testemunho de um sapateiro e de um empregado
do comércio confirmaram as curas e a condutaexemplar do curandeiro e que
nunca tinham ouvido falar que ele explorasse a crendice alheia com os espiri
tismo.'^^ Em geral, tais testemunhas haviam sido curadas de alguma moléstia
por Norberto.
Outra testemunha de Norberto, Gloria Izolina da Rosa, 23 anos de idade,
solteira e costureira, disse que, visitando Rosa, que estava doente, vira Emílio e
Miguelina aplicarem varadas na doente, a mando de uma parda que se chamava
Carola e que ali se achava presente. Assim, segundo esta testemunha de defesa
de Norberto, entrava em cena um outro personagem, como o autor da "pres
crição" do espancamento.
Afirmou conhecer Norberto de vista e que sabia, por outras pessoas, que
era um bom moço e que ouvira dizer que ele era curandeiro e empregava o
espiritismo no tratamento de seus pacientes. Rosa, ao ser espancada, em sua
demência dizia ser a Mãe do Céu, mãe da lua e mãe da estrela.
O promotor, contudo, insistia na busca da feitiçaria presente no caso para
incriminar Norberto. Assim perguntou à Glória se sabia que seu amásio,Alfiedo
de tal, conhecido por Sarará se oferecera a Emílio para fazer um despacho com
u7na galinhaeduaspottibas, dizendo queerapara queRosa morresse mais depressa,
pcrgunrando-lhe ainda se sabia que ele se entregava às práticas de feitiçarias.
Glória, contudo, disse não saber de nada.
O depoimento de Glória foi contestado, não só por introduzir na história
uma tal Carolaou Carolinaque ninguém vira como por ser seu amásio, Alfredo
Sarará, um feiticeiro conhecido, companheiro de Norberto e que tivera tam
bém parte no p.scudo tratamento de Rosa, pos fizera um despacho —com uma
galinha e duas pombas, fato este que Miguelina, afirmara ter presenciado.
Uma das testemunhas de defesa de Emílio Corrêa incriminaria Norberto.
Modesto Carlos dos Santos, com 63 anos de idade, casado, empregado munici
pal, natural deste Estado, contouque há cerca de 5 a 6 anos erasócio da Aliança
dos Operários, a qual pertencia também Norberto, mas que este fora excluído
da sociedade, tendo ouvido dizer que a causa de semelhante exclusão era desabo-
natóriaparao referido acusador'^'' Acrescentou que pouco tempo depois, tendo a
aliança dosOperários dado um baile noTeatro São Pedro, um tiro foi disparado
nas paredes, e fora atribuído a Norberto, como represália por ter sido excluído.
Isto era tanto verdade que os sócios teriam saído em busca de Norberto, mas
que não o haviam encontrado.
41 8 SANDRA JATAHY PESAVENTO
Referências bibliográficas
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Uniáo de Seguros Gerais, 1981, p. 27.
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1998, p. 157.
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Sul." In: Oro, Ari Pedro et al.Asreligiões afio-brasileiras do Rio Grande doSul. PortoAlegre:
Editora da Universidade, 1994, pp. 9-45.
4 Porto Ai.f.grk, Achyllcs. y/rrr/zw dassaudades. Wiedmann & cia.: Porto Alegre, pp. 161-2.
5 Areimor. Alinhavos. PortoAlegre: Oficinas T)'pographica5 do Jornal do Commércio, 1896,
p. 147.
6 Mercantil, lllmn^^X.
7 Porto Alegre, op. cit., p. 162-3.
8 Ba.stíde, Roger. As religõcs africanas no Brasil.Sío Paulo: Pioneira, Ed. Universidade de Sáo
Paulo, 2v., 1960.
9 Coruja, op. cit. p. 111.
10 Jornal do Comércio, 6/9/1894.
11 Idem.
12 Idein.
13 Gazeta da Tarde, 11/5/1895.
14 Idem.
15 Mercantil, 12/5/1895.
16 Idem.
25 Idem.
26 O Século, lòiwnm.
27 A Gazetinha, 19/7/1898.
28 Gazeta da Tarde, 7/4/1897.
29 A Gíizetinha, 5/3/1896.
30 Gazela do Commércio, 11/8/1905.
31 APUD Correio do Povo, 26/6/1900.
32 Correio do Povo, 27/6/1900.
33 Correio do Povo, 22/7/1900.
420 SANDRA JATAUY PESAVENTO
65 A Noite, 9/5/1914.
66 ANoite.UfbiVyU.
67 A Noite, 9/5/1914.
68 A Noite, 11/5/1914.
69 /I/Vo/r/?, 12/5/1914.
70 /!/Vo/re, 12/5/1914.
71 A Noite, 13/5/1914.
72 A Noite, 14/5/19)4.
FEITIÇO NEGRO EM CIDADE BRANCA: MORTE EM FAMÍLIA 421
73 /íAWfí, 15/5/1914.
74 /I Noite, 19/5/1914.
75 A Noite, 20/5 '1914.
76 A Noite, 22/5/1914.
77 Costa cSilva, Albcrco da. Um rio chnmado Atlântico. AÁfrica no Brasil coBrasil na África.
Rio deJaneiro: Nova Fronteira/Editora UFRJ, 2003. p. 171.
78 Ibidcm.
79 Nunes, Maria Helena. O Príncipe Custódio ea relipáo Afro-Gaticha. Dissertação de mestra
do. PFG —Antropologia Cultura, UFP, Recife, 1999, p. 15.
80 Nunes, op. cit., p. 22.
81 Apud Nune.s, op. cit, p. 34.
82 Depoimento deTureba. In: Nunes, op. cit, p. 44.
83 Nune.s, op. cit., p. 64.
84 Depoimento de Flavia Licht, setembro 2005.
85 Depoimento de Norinha de Oxalá, maio 2005.
86 Apud Nunes, op. cit., p. 89.
87 Nunes, op. cit, p. 121.
88 Laytano, Dante. AIgreja e os orixiis. PortoAlegre, Hd. da Comissão (laúchade Floclore, vol.
29, 1948, p. 38.
89 Nune.s, op. cit., p. 125.
90 Idem, p. 127.
91 Idcm, p. 129.
92 Idem, p. 140.
93 Idem.p. 141.
94 Idem, p. 130.
95 Irajá, Hertiani. O homem. Encontro com o passado. Porto Alegre: Pongeiti, 1959.
96 Nunes, op. cit., p. 135.
97 O Diário, 6/1/1916.
98 O Diário, 8/1/1916.
99 O D/V/V/V?, 11/1/1916.
100 A Federação. 25/1/1916.
101 Ibidem.
102 Fichade Processos Oimes. Proces.so n.° 772. Cartório/Vara:Júri Maço: 45 Estante: 29 Ano:
1916 Réus: Norberto Pereira Nunes, Emilio Correia e Florinda Corrêa Furtado. Arquivo
Público do Estadodo Rio Grande do Sul, p. 15.
103 Idem, p. 20.
104 O Diário,16l\IVn6.
105 Ibidem.
106 Ibidem.
107 Ficha de Processos Crimes. Processo crime n.° 772. Cartório/Vara: Júri Maço: 45 Estante;
29 Ano: 1916 Réus: Norberto Pereira Nunes, Emilio Correia c Florinda Corrêa Furtado.
422 SANDRA JATAHY PESAVENTO
125 Idem.
126 Idem.
127 Idem.
128 Idem.
129 Idem.
130 Idem.
131 Idem.
132 Idem, p. 5.
133 Idem, p. 2.
134 Idem, p. 28.
135 Idem, p. 30.
136 Idem, p. 32.
137 Idem, p. 33.
138 Albertina Santos Pinto, 42 anos, casada, serviço doméstico; Hermínio F. Maciel, 32 anos,
casado, comércio; Lothario Lavra Pinto, 42 anos, casado, agências, RicardoJonas, 23 anos,
casado, medico licenciado; Marcolina dos Santos, 59 anos, solteira, lavadcira; Antonio jo-
aquim Machado Sobrinho, 40 anos, casado, comércio;Joaquim de Sá, português, 37 anos,
viúvo, comércio.
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Tcxcos dc Edgar Koetz c desenhos de João iVíottini; p. 72.
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Tcairo São Pedro, início do século XX. Foco Irmãos Ferrari; p. 118.
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