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Moisés permitiu o
“olho por olho e dente por dente”?
A Lei do Talião é uma das mais citadas em escritos e conversas
e quase sempre com a maior leviandade.
Referimo-nos a ela como sendo a mais brutal e sangrenta
de todas, próxima da vingança e própria de quem não
admite o perdão… Contudo, além de ser a lei mais antiga que
se conhece, talvez seja a mais justa e perfeita de todas.
Vinganças desgarradoras
Ao ler estes passos, muitos cristãos sentem-se escandalizados. Como é
possível que a Bíblia proponha a Lei do Talião, e nada menos que três ve-
zes? Como é que Deus, ao inspirar as leis de Moisés, pôde sugerir-lhe que
incluísse uma norma tão cruel?
Para responder a esta questão, é preciso ter em conta três elementos.
Primeiro: que no antigo oriente, existia uma prática muito comum, de
tal modo que quase se tinha tornado uma lei sagrada: a lei da vingança. Mas
esse costume cumpria-se de tal modo, que as vinganças eram sempre muito
superiores às ofensas recebidas.
Por exemplo, se alguém cortasse um dedo a outro, os seus familiares
procuravam o ofensor e vingavam-se cortando-lhe um braço. E se alguém
perdia uma perna, o seu clã cortava as duas ou até a cabeça do adversário.
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No caso de alguém matar uma ovelha do vizinho, este podia chegar a matar
todo o rebanho do outro. E quando se matava um homem, os seus familia-
res reparavam a ofensa matando o assassino com a mulher e os filhos.
Na falta de polícia
O livro do Génesis oferece um exemplo destas tremendas vinganças,
praticadas em épocas primitivas. Ali é narrado que Caim, depois de matar o
seu irmão Abel, foge e vai-se esconder. Então uma voz, que no livro aparece
como de Deus, mas que na realidade seria da própria tribo de Caim, excla-
ma: «Se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais» (Gn 4,15).
Mas, a amostra mais terrível destas sangrentas vinganças, temo-la num
cântico composto por Lamec, o filho de Caim, que dizia: «Matei um homem
porque me feriu, e um rapaz porque me pisou. Se Caim foi vingado sete ve-
zes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete» (Gn 4, 23-24).
Tais práticas podem parecer-nos demasiado sanguinárias. Mas, numa
época em que não existia a polícia, nem uma autoridade central que pusesse
ordem na sociedade, o medo da vingança por parte do inimigo refreava e
demovia os crimes e as tentativas de violência.
Ora bem, se é certo que o receio destas vinganças punha ordem na so-
ciedade, por outro lado cometiam-se inumeráveis abusos, e gerava-se uma
espiral de violência tal, que com frequência culminava em guerras e exter-
mínios de tribos e clãs inteiros. Um simples golpe na face podia desencadear
uma batalha campal.
A própria Bíblia relata que uma jovem rapariga chamada Dina, foi rapta-
da e violada por Siquém. Então, os seus irmãos, para repará-lo, foram aon-
de vivia o violador e assassinaram-no a ele, a seu pai e a todos os jovens
varões da cidade (Gn 34,1-31).
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um olho são por um olho doente, o de um dente intato por um dente caria-
do.
Por isso, a própria Bíblia já estabelecia outras penas compensatórias
menos sangrentas. Por exemplo: «E quando um homem ferir a vista do seu
escravo ou aa vista da sua escrava, e a destruir, deixá-los-á partir pela sua
vista. E se fizer cair um dente do seu escravo ou da sua serva, deixá-lo-á
partir em liberdade pelo seu dente» (Ex 21,26-27).
E mais adiante estabelece-se que, se um boi escornear uma pessoa e a
matar, os juízes podem impor ao dono do boi apenas uma multa (Ex 21,28-
30).
A túnica e o manto
No segundo exemplo, diz que se alguém organiza um julgamento para
nos tirar a capa, devemos dar-lhe também o manto.
Neste caso também há muito mais do que aparece superficialmente. A
“túnica” era uma espécie de vestido comprido, geralmente feito de algodão
ou linho, que se usava sobre o corpo chegava até aos joelhos. Geralmente,
até a pessoa mais pobre possuía mais do que uma túnica para mudá-la fre-
quentemente. Pelo contrário, o “manto” era uma peça retangular, feita de
tela grosa. Durante o dia usava-a sobre os ombros como parte do vestido
exterior, e durante a noite como manto para dormir. Cada pessoa, geral-
mente, só tinha um manto.
Ora, a Lei judaica estabelecia que a um devedor se lhe podia tirar a tú-
nica com um julgamento; mas nunca o manto, pois podia ser pobre, e ter
apenas esse para se cobrir de noite (Ex 22,25-26).
Ao ordenar, simbolicamente, a um cristão que entregue também o man-
to, que não lhe podiam tirar legalmente, Jesus quis dizer que ele não deve
viver pensando permanentemente nos seus direitos, mas nos seus deveres.
Não deve viver obcecado pelos seus privilégios, mas pelas suas responsabili-
dades. O verdadeiro discípulo não é o que põe os “seus direitos” acima de
todos, procurando ser minimamente “atropelado” no resto; é o que sabe
deixar até os seus direitos para depois, quando deste modo pode ganhar al-
guém para o Mestre.
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O que aconteceu a Simão de Cirene
No terceiro exemplo, Jesus fala da “obrigação” de acompanhar alguém
um quilómetro. Esta imagem, que a nós parece estranha, era familiar na Pa-
lestina, na época de Jesus.
A Palestina era um país militarmente ocupado. E os cidadãos de um país
ocupado tinham a obrigação de prestar qualquer tipo de serviço às tropas de
ocupação. Desde dar--lhes alimentos ou alojamento, a levar mensagens ou
uma carga para algum sítio. Em qualquer momento, um judeu podia sentir
sobre o seu ombro o toque de uma lança de um soldado romano. E com isto
sabia que a sua obrigação era servir o soldado que o chamava, em tudo o
que ele precisasse.
Foi isto que aconteceu a Simão de Cirene, num dia em que vinha do
campo: foi obrigado a carregar com a cruz de Jesus, que caminhava para o
Calvário.
O que Jesus quis dizer foi que não devemos cumprir as nossas obriga-
ções com amargura e rancor. Se nos for confiada uma tarefa que não é do
nosso agrado, não devemos assumi-la como um dever odioso, rejeitando in-
teriormente quem no-la pediu. Uma vez que vamos prestar um serviço, de-
vemos oferecê-lo com alegria. E não o mínimo indispensável, mas ir mais
além, tratando de cumprir com o que realmente nos quiseram pedir.
Aquele que faz uma obra boa, mas ressentido e mal disposto, ainda não
compreendeu o que significa a vida cristã.