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A BÍBLIA RESPONDE

Moisés permitiu o
“olho por olho e dente por dente”?
A Lei do Talião é uma das mais citadas em escritos e conversas
e quase sempre com a maior leviandade.
Referimo-nos a ela como sendo a mais brutal e sangrenta
de todas, próxima da vingança e própria de quem não
admite o perdão… Contudo, além de ser a lei mais antiga que
se conhece, talvez seja a mais justa e perfeita de todas.

Ariel Álvarez Valdés


arialvavaldes@yahoo.com.ar

A lei mais antiga do mundo


Nenhuma lei é tão incompreendida como a famosa Lei do Talião. Resu-
mida na fórmula «olho por olho e dente por dente», é considerada uma
norma brutal e sangrenta, e muitas vezes citam-na como exemplo de selva-
gismo e vingança. O próprio Mahatma Gandhi disse dela uma vez: «Se
aplicarmos o olho por olho, depressa o mundo ficará cego.» Será realmente
assim?
O Talião é uma das leis mais velhas do mundo. Já estava no Código de
Hammurabi, que é o corpo legal completo mais antigo, descoberto até hoje.
Quem era Hammurabi? Um rei de Babilónia, que viveu por volta do ano
1700 a.C., e que, face à instabilidade jurídica e social em que viviam os
súbditos do seu reino, decidiu promulgar um código, isto é, uma coleção de
sentenças, nas quais os juízes se pudessem inspirar para exercer a justiça.
Este código, com 282 artigos, gravados numa estela de pedra com 2,25
m de altura, foi encontrado pelos arqueólogos franceses em 1901, e desde
então encentra-se exposto no Museu de Louvre.

Três vezes na Bíblia


A Bíblia diz que, quinhentos anos depois de Hammurabi, Moisés também
deu ao povo de Israel uma série de prescrições e leis. E entre elas incluiu a
terrível e brutal Lei de Talião. Aparece três vezes na Bíblia.
A primeira vez, quando os israelitas acamparam diante do monte Si-
nai. Ali, Moisés ordenou: «Se houver acidente fatal, darás vida por vida, olho
por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por quei-
madura, ferida por ferida, contusão por contusão» (Ex 21, 23-25).
Alguns meses mais tarde, também no monte Sinai, voltou a ordenar o
seu cumprimento, dizendo: «Se alguém fizer uma ferida ao seu próximo,
far-se-á o mesmo a ele: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente;
conforme o dano que tiver feito a outro, homem, assim se lhe fará a ele.
Quem matar um animal pagá-lo-á, quem matar um homem deverá morrer»
(Lv 24,19-21).
A terceira vez que esta lei aparece é anos mais tarde, nas planícies de
Moab, quando os hebreus estão prestes a lançar-se à conquista da terra
prometida. Moisés, quase a morrer, reúne-os e ordena-lhes: «Não terás pie-
dade: é vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por
pé» (Dt 19,21).
Por isso esta lei recebeu o nome de “Talião”. Porque se alguém fazia tal
coisa (=talis, em latim), dava-se-lhe tal castigo.

Vinganças desgarradoras
Ao ler estes passos, muitos cristãos sentem-se escandalizados. Como é
possível que a Bíblia proponha a Lei do Talião, e nada menos que três ve-
zes? Como é que Deus, ao inspirar as leis de Moisés, pôde sugerir-lhe que
incluísse uma norma tão cruel?
Para responder a esta questão, é preciso ter em conta três elementos.
Primeiro: que no antigo oriente, existia uma prática muito comum, de
tal modo que quase se tinha tornado uma lei sagrada: a lei da vingança. Mas
esse costume cumpria-se de tal modo, que as vinganças eram sempre muito
superiores às ofensas recebidas.
Por exemplo, se alguém cortasse um dedo a outro, os seus familiares
procuravam o ofensor e vingavam-se cortando-lhe um braço. E se alguém
perdia uma perna, o seu clã cortava as duas ou até a cabeça do adversário.

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No caso de alguém matar uma ovelha do vizinho, este podia chegar a matar
todo o rebanho do outro. E quando se matava um homem, os seus familia-
res reparavam a ofensa matando o assassino com a mulher e os filhos.

Na falta de polícia
O livro do Génesis oferece um exemplo destas tremendas vinganças,
praticadas em épocas primitivas. Ali é narrado que Caim, depois de matar o
seu irmão Abel, foge e vai-se esconder. Então uma voz, que no livro aparece
como de Deus, mas que na realidade seria da própria tribo de Caim, excla-
ma: «Se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais» (Gn 4,15).
Mas, a amostra mais terrível destas sangrentas vinganças, temo-la num
cântico composto por Lamec, o filho de Caim, que dizia: «Matei um homem
porque me feriu, e um rapaz porque me pisou. Se Caim foi vingado sete ve-
zes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete» (Gn 4, 23-24).
Tais práticas podem parecer-nos demasiado sanguinárias. Mas, numa
época em que não existia a polícia, nem uma autoridade central que pusesse
ordem na sociedade, o medo da vingança por parte do inimigo refreava e
demovia os crimes e as tentativas de violência.
Ora bem, se é certo que o receio destas vinganças punha ordem na so-
ciedade, por outro lado cometiam-se inumeráveis abusos, e gerava-se uma
espiral de violência tal, que com frequência culminava em guerras e exter-
mínios de tribos e clãs inteiros. Um simples golpe na face podia desencadear
uma batalha campal.
A própria Bíblia relata que uma jovem rapariga chamada Dina, foi rapta-
da e violada por Siquém. Então, os seus irmãos, para repará-lo, foram aon-
de vivia o violador e assassinaram-no a ele, a seu pai e a todos os jovens
varões da cidade (Gn 34,1-31).

Um grande passo para a humanidade


Agora, sim, fica esclarecido o sentido da Lei do Talião. Perante este pa-
norama, a sua finalidade era refrear tais abusos. De facto, se arrancassem
um olho a alguém, para fazer justiça seria preciso tirar ao seu rival só um
olho, não os dois. E, se ficasse sem um dente, devia ressarcir-se tirando um
dente ao seu adversário, e não toda a dentadura.
A Lei do Talião, pois, apesar da sua cruel aparência, na verdade veio es-
tabelecer um princípio de grande misericórdia: que a vingança nunca deve
exceder a ofensa.
O seu propósito original foi conter a reação de quem se sentia ofendido
e limitar a vingança. Por isso, supôs um avanço em relação à tradicional lei
da vingança desmedida, própria das tribos sem organização judicial. E foi
dado um passo gigantesco para temperar a violência pessoal e social.
O livro do Deuteronómio, em sintonia com o espírito da Lei do Talião,
proibirá incluir nos castigos aos parentes inocentes: «Os pais não morrerão
por causa dos filhos, nem os filhos por causa dos pais. Cada um morrerá pe-
lo seu pecado» (Dt 24,16).

Só para aplicação dos juízes


O segundo elemento a ter em conta para entender melhor o sentido da
Lei do Talião, é que não foi ditada para as pessoas particulares, mas para os
juízes, os únicos responsáveis pela sua aplicação.
Devemos lembrar que os juízes da época antiga não eram profissionais,
nem iam à universidade, nem aprendiam de cor volumosos livros de Direito.
Muitos deles, nem sequer sabiam ler.
Portanto, para fazer justiça precisavam de fórmulas práticas, de fácil
memorização e aplicação, isto é, pequenos “refrães” que lhes permitiam re-
solver o maior número de casos possível.
A Lei do Talião, pois, não foi promulgada para que cada cidadão a apli-
casse por sua conta em resposta à ofensa de um vizinho, nem era uma carta
em branco para fazer justiça por mãos próprias. Foi dada para os juízes, a
fim de eles decidirem em cada caso como deviam fazê-la cumprir. É o que
afirma o livro do Deuteronómio (19,16-21).
A Lei do Talião não foi pensada para resolver questões pessoais, como
nós às vezes a aplicamos, mas para dirimir delitos públicos na presença de
um juiz.

Sem a levar tão a peito


O terceiro e último elemento que deve-mos considerar é que a fórmula
«olho por olho, dente por dente» nunca foi entendida literalmente. Tratava-
se, apenas, de uma forma de exprimir que nenhum castigo devia ser superi-
or à ofensa recebida. Mas ficava ao critério do juiz escolher a pena justa.
Os juízes judeus afirmavam, com razão, que a aplicação literal da Lei do
Talião podia levar a injustiças, pois corria-se o perigo de privar alguém de

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um olho são por um olho doente, o de um dente intato por um dente caria-
do.
Por isso, a própria Bíblia já estabelecia outras penas compensatórias
menos sangrentas. Por exemplo: «E quando um homem ferir a vista do seu
escravo ou aa vista da sua escrava, e a destruir, deixá-los-á partir pela sua
vista. E se fizer cair um dente do seu escravo ou da sua serva, deixá-lo-á
partir em liberdade pelo seu dente» (Ex 21,26-27).
E mais adiante estabelece-se que, se um boi escornear uma pessoa e a
matar, os juízes podem impor ao dono do boi apenas uma multa (Ex 21,28-
30).

A nova lei de Jesus


A Lei do Talão, pois, na sua época, foi uma norma sumamente miseri-
cordiosa, compassiva e benigna. Significou um enorme avanço contra as ter-
ríveis leis da vingança, e a sua aplicação fez progredir enormemente a hu-
manidade no seu caminho para a civilização, a convivência e o progresso
das relações humanas.
Mas, quando veio, Jesus Cristo decidiu eliminá-la. Porque entendeu que
a vingança, por mais controlada, restrita e justa que seja, sempre gera no-
vos ressentimentos. E por isso não tem lugar na vida cristã, nem na nova
ordem que Ele veio instaurar.
Por isso, no sermão da montanha, Jesus ensinou: «Ouvistes o que foi di-
to: “olho por olho e dente por dente.” Eu, porém, digo-vos: não oponhais
resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe
também a outra. Se alguém quiser pleitear contigo para te tirar a túnica, dá-
lhe também a capa. E se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma
milha, caminha duas com ele. Dá a quem te pede e não voltes as costas a
quem te pedir emprestado”» (Mt 5,38-41).

Uma estranha bofetada


Com estas palavras, Jesus propõe uma nova lei, mas agora de perdão e
não de vingança. Para explicar como funciona, Ele mesmo dá vários exem-
plos tirados da vida diária, mas que não devem ser tomados literalmente,
pois se correria o risco de interpretar mal a sua mensagem.
O primeiro exemplo é o da bofetada. Jesus esclarece que se refere à
face “direita”. Porquê? Suponhamos que uma pessoa está parada diante
doutra e quer dar-lhe uma bofetada na sua face direita. Como o faria? Habi-
tualmente, usaria a mão direita. Portanto, há uma só maneira de o fazer:
com o dorso dessa mão. Ora bem, segundo a Lei rabínica, bater com o dorso
da mão era mais humilhante e insultante do que fazê-lo com a palma.
Portanto, o que Jesus quis ensinar foi que, mesmo quando alguém nos
dirigir um insulto grande e envergonhador, não devemos responder com ou-
tro insulto do mesmo tipo. Não é frequente recebermos bofetadas na vida,
mas sim agravos e ofensas por vezes desmedidas, equivalentes a uma bofe-
tada com o dorso para um judeu. O cristão é aquele que aprendeu a não
sentir ressentimentos, nem procurar qualquer vingança.
O verdadeiro discípulo de Jesus é quem esqueceu o que significa ser in-
juriado. Aprendeu do seu Mestre a não tomar nada como um insulto pessoal.

A túnica e o manto
No segundo exemplo, diz que se alguém organiza um julgamento para
nos tirar a capa, devemos dar-lhe também o manto.
Neste caso também há muito mais do que aparece superficialmente. A
“túnica” era uma espécie de vestido comprido, geralmente feito de algodão
ou linho, que se usava sobre o corpo chegava até aos joelhos. Geralmente,
até a pessoa mais pobre possuía mais do que uma túnica para mudá-la fre-
quentemente. Pelo contrário, o “manto” era uma peça retangular, feita de
tela grosa. Durante o dia usava-a sobre os ombros como parte do vestido
exterior, e durante a noite como manto para dormir. Cada pessoa, geral-
mente, só tinha um manto.
Ora, a Lei judaica estabelecia que a um devedor se lhe podia tirar a tú-
nica com um julgamento; mas nunca o manto, pois podia ser pobre, e ter
apenas esse para se cobrir de noite (Ex 22,25-26).
Ao ordenar, simbolicamente, a um cristão que entregue também o man-
to, que não lhe podiam tirar legalmente, Jesus quis dizer que ele não deve
viver pensando permanentemente nos seus direitos, mas nos seus deveres.
Não deve viver obcecado pelos seus privilégios, mas pelas suas responsabili-
dades. O verdadeiro discípulo não é o que põe os “seus direitos” acima de
todos, procurando ser minimamente “atropelado” no resto; é o que sabe
deixar até os seus direitos para depois, quando deste modo pode ganhar al-
guém para o Mestre.

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O que aconteceu a Simão de Cirene
No terceiro exemplo, Jesus fala da “obrigação” de acompanhar alguém
um quilómetro. Esta imagem, que a nós parece estranha, era familiar na Pa-
lestina, na época de Jesus.
A Palestina era um país militarmente ocupado. E os cidadãos de um país
ocupado tinham a obrigação de prestar qualquer tipo de serviço às tropas de
ocupação. Desde dar--lhes alimentos ou alojamento, a levar mensagens ou
uma carga para algum sítio. Em qualquer momento, um judeu podia sentir
sobre o seu ombro o toque de uma lança de um soldado romano. E com isto
sabia que a sua obrigação era servir o soldado que o chamava, em tudo o
que ele precisasse.
Foi isto que aconteceu a Simão de Cirene, num dia em que vinha do
campo: foi obrigado a carregar com a cruz de Jesus, que caminhava para o
Calvário.
O que Jesus quis dizer foi que não devemos cumprir as nossas obriga-
ções com amargura e rancor. Se nos for confiada uma tarefa que não é do
nosso agrado, não devemos assumi-la como um dever odioso, rejeitando in-
teriormente quem no-la pediu. Uma vez que vamos prestar um serviço, de-
vemos oferecê-lo com alegria. E não o mínimo indispensável, mas ir mais
além, tratando de cumprir com o que realmente nos quiseram pedir.
Aquele que faz uma obra boa, mas ressentido e mal disposto, ainda não
compreendeu o que significa a vida cristã.

Agora sim, para todos


Estes ensinamentos de Jesus não são ideais nem teóricas. São verdadei-
ros mandamentos que o Senhor propõe aos seus seguidores.
Mas com elas Jesus não eliminou a Lei de Talião da legislação. Nem su-
primiu os tribunais de justiça, nem quis dar um novo Código de Direito Pe-
nal. Estes novos ensinamentos de Jesus dirigem-se, não já aos juízes, mas
ao homem ofendido, ferido, lesionado, para lhe indicar qual deve ser o seu
comportamento como seu verdadeiro discípulo
O Senhor não pretendeu abolir a legislação do seu tempo. Só introduziu
na sociedade um novo comportamento humano, a fim de que os códigos pe-
nais vigentes foram superados pelo comportamento concreto dos cidadãos
cristãos.
Há poucas passagens do Evangelho que contenham com tanta pureza a
essência da ética cristã, como o que acabamos de analisar. O mundo espera,
ainda, vê-la posta em prática pelos discípulos do Mestre.

Resumindo, podemos dizer que a humanidade passou por três eta-


pas.
Na época primitiva, praticava-se a mais cruel vingança.
Com a chegada da Lei de Talião, passou-se para a era da justiça.
Com a vinda de Jesus Cristo, inaugurou-se o tempo do perdão.

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