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CENTRO UNIVERSITÁRIO DA CIDADE

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES


CURSO DE ARTES DRAMÁTICAS

FAZER RIR É FÁCIL?


A DIMINUIÇÃO DA AUTOCRÍTICA
ATRAVÉS DA COMUNICAÇÃO DO CLOWN.

ISABEL DE ALBUQUERQUE CARVALHO

Trabalho apresentado como Projeto Experimental para Conclusão do Curso


Superior de Tecnologia em Artes Dramáticas da Escola de Comunicação e Artes
do Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro – UniverCidade, orientado
pelo Professor Mestre VITOR MANUEL CARNEIRO LEMOS.

Rio de Janeiro
Setembro/2007

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AGRADECIMENTO

Agradeço aos que passaram pela minha vida nos últimos três anos, durante este
processo de autoconhecimento, e aos que nela estão desde o princípio, confiando,
estimulando e segurando em minha mão: José e Maria - meus pais – e aos meus queridos
Aninha, Neco, bebê Clavijo, Suiá, Bruno. Também agradeço às Madrinhas e aos irmãos
amigos.
Agradeço também a ti, Vitor Lemos, meu Mestre e Orientador pelo esforço e
carinho, calma, sabedoria e ajuda neste processo, por sua dedicação e coragem na luta junto
à coordenação. Com certeza, me fizeste crescer em desejar ser pesquisadora.
E não menos, agradeço à minha primeira orientadora, Thereza Rocha, neste
processo dividido, pela calma, paciência, coragem, determinação, força e alegria que
transmite em ensinamentos.
Agradeço aos que me inspiraram e proporcionaram essa busca pelo momento
vivo e presente, Alexandre Mello e Ana Luiza Cardoso, através dos quais pude me
conhecer. E aos meus queridos primeiros Mestres e amigos neste percurso teatral e
certamente fomentadores de uma longa vida criativa, professores queridos: Paes Leme,
Varvaki, Tolipan, Rubin , Mello, Maciel, Lucatto, Brito, Sartori e Ferreira.
Também agradeço a todos os meus companheiros de turma e àqueles que se
esforçaram em me ajudar nas experimentações práticas desta pesquisa.
Agradeço ao meu bom amigo e professor, Daniel Matos.

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Às minhas amadas Vó Katy e Jacira.
À minha alma gêmea e mãe.

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SUMÁRIO

Páginas
1. INTRODUÇÃO........................................................................................................6-8

2. CLOWN: QUE FIGURA É ESTA?................................................................9-14

3. ENTENDENDO O ATOR ATRAVÉS DO CLOWN..............................15-19

4. ESTADO DE PRESENÇA.....................................................................................20

4.1. O Nascimento do Vazio: A Consciência do Momento Presente.........................20-23

5. OS EXERCÍCIOS DE INICIAÇÃO AO CLOWN.................................24-27

6. FAZER RIR É FÁCIL?.....................................................................................28-29

6.1. Relatório de Atividades..........................................................................................30-42

7. CONCLUSÃO.......................................................................................................43-47

8. FONTES CONSULTADAS..............................................................................48-49

9. ANEXOS.................................................................................................................50-59

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Agüenta o barco firme
Agüenta o barco
Com muita calma irmão
...
Escolher seja norte, seja sul, seja leste, seja oeste
Adiante deserto e oásis são a mesma coisa
As mesmas partes do caminho andado
Não existe caminho errado existe preguiça de continuar pra qualquer um dos lados.

Mano Mello – Toque

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1. INTRODUÇÃO

Durante a atuação o ator busca saber precipitadamente o próximo passo de sua


personagem, ou de outro colega de cena. Perde-se em buscar no passado aquilo que deve
realizar no presente. Sonha e almeja obter sucesso naquilo que ainda nem realizou. Porém é
no momento presente que ele consegue alcançar um estado criativo.
Durante nossos processos de criação sentimos muitas vezes uma grande
dificuldade em aceitar o próprio processo de trabalho criativo, que exige que o ator esteja
receptivo aos estímulos, tanto exteriores, da cena e dos demais atores, como interiores, do
próprio ator.
Possuíamos uma preocupação demasiada a respeito de como deveríamos
realizar nossas ações e se elas seriam aceitas ou não no contexto da cena. Ou seja, a
autocrítica que impúnhamos à nossa própria capacidade criativa e às nossas próprias
características, fossem elas ridículas ou não, causava uma estagnação em nossos processos
criativos e também impediam a fluidez das ações na cena, enfraquecendo assim, nossa
comunicação com os demais atores e com o público.
Ao nos depararmos com a influência do clown em duas ocasiões durante o
nosso período de graduação percebemos que, a partir dela, havíamos adquirido um maior
esvaziamento em nossa atuação, capaz de diminuir a autocrítica e alcançar um estado mais
vivo e presente em cena. A primeira experiência foi através de uma cena realizada para
uma avaliação no terceiro período do curso de Artes Dramáticas, na disciplina Ator e
Composição – ministrada pelo professor Alexandre Mello. Nesta experiência foi proposta
uma cena de nossa autoria, a partir de um fragmento de livre escolha do texto
“Companhia” de Samuel Beckett.
A segunda experiência aconteceu quando realizamos no quinto período do
mesmo curso um módulo de comédia dentro da disciplina Estudos Cênicos. Este módulo
ministrado pela professora Ana Luiza Cardoso baseava-se no aprendizado de técnicas e
exercícios da linguagem do clown buscando fomentar uma comunicação mais autêntica e
viva com o público.

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E mais uma vez, a partir da realização destes exercícios, pudemos notar uma
pré-disponibilidade para a comunicação com o público, um estado presente em cena, vazio
de autocrítica, medos, ou qualquer elemento que dificultasse o momento da criação.
Resolvemos então basear nossa pesquisa a partir dos exercícios dados em aula
pela professora Ana Luiza Cardoso, já que através deles havíamos chegado ao mesmo
estado alcançado na primeira experiência tida com o clown. Acreditamos que - adquirindo
através da iniciação do clown meios que nos proporcionem a identificação com o nosso
ridículo, nossas fraquezas e medos - obteremos maiores possibilidades de estabelecer com o
público uma relação viva. A partir do momento em que, esvaziando-nos, deixamos fluir
livremente nossas propostas, sem a ação limitadora da autocrítica, produziremos um
material mais rico, variado, e em sintonia com a cena que desejamos investigar.
Sendo assim, buscamos criar um jogo que denominamos FAZER RIR É
FÁCIL? baseado nos exercícios de iniciação ao clown, a fim de verificar a possibilidade de,
através dele, alcançar o esvaziamento a partir da comunicação que o clown estabelece com
o público e da consciência das próprias fragilidades, minimizando assim sua autocrítica na
construção de uma personagem.
Como parte de nossa pesquisa participamos como durante um mês, de um novo
curso de iniciação ao clown do módulo de comédia ministrado também pela Professora Ana
Luiza Cardoso com a turma do 5º período do Curso de Artes Dramáticas, em abril de 2007.
Nesta ocasião, verificamos através das visitas realizadas o trabalho de criação dos clowns,
bem como de suas influências no processo criativo dos atores.
Para isso, buscamos, inicialmente, apresentar brevemente o clown e suas
especificidades a partir de um recorte histórico. Em seguida, buscamos entender a idéia de
presença a partir do conceito de vazio de Peter Brook, trabalhado mais especificamente em
seu livro “A Porta Aberta”. Em seguida, relacionamos a presença com o papel da
consciência nos processos criativos do ator oferecidos por Gilberto Icle em seu livro “O
Ator Como Xamã”.
Esperamos com o nosso trabalho, poder despertar naqueles que se interessarem
pela sua leitura, o desejo de buscar respostas próprias para tratar de dificuldades próprias.
Essa atitude é aspecto fundamental de um ator que se propõe empreendedor. Desejamos
ainda, que o jogo aqui proposto seja útil para outro atores, visto que a questão da

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autocrítica, que nos moveu durante todo esse período de pesquisa, não nos parece um
desafio tão particular a ser vencido.

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2. CLOWN: QUE FIGURA É ESTA?

Primeiramente gostaríamos de esclarecer que usaremos o termo clown durante a


pesquisa apenas para delimitarmos um nome, a fim de que não haja confusões que nos
levem a sair do tema proposto. Se necessário for, utilizaremos outros nomes específicos de
acordo com as datas e ocasiões em que o clown aparece. Porém, estaremos nos referindo
propriamente ao clown de palco, pelo qual nos interessamos para realizarmos esta
investigação.
De acordo com Castro (2005)1, em seu estudo sobre as mais variadas aparências
do palhaço na história, desde as mais remotas épocas e culturas em determinados rituais
sagrados já se encontravam figuras de mascarados que davam gritos e dançavam de forma
exagerada, bem como práticas de rituais em que se imitam coxos, cegos e leprosos,
provocando a hilaridade dos participantes.
Todos estes rituais continham seus objetivos particulares, porém, em todos eles
encontramos o riso como uma maneira de extenuar seus pensamentos, vontades, angústias e
preocupações. Muitas vezes o riso também servia como uma forma de livrarem-se do medo
da morte, das doenças, da chuva ou da figura do mal e também como uma forma de inverter
os valores diante de tudo que estivesse impondo demasiado autoritarismo perante a
sociedade.
No início, estas figuras estavam presentes apenas nos rituais. Mas com o passar
do tempo foram ganhando maior visibilidade e conhecimento dentre as sociedades, o que
mais tarde levou vários nobres e poderosos de suas épocas quererem ter sempre do seu lado
seu próprio cômico, com o intuito de demonstrar ainda mais seus poderes e alegrar seus
convidados em festas e banquetes.
Podemos falar da existência do clown no Egito, na época dos faraós, que era
identificado por possuir uma grande liberdade de expor sua opinião a respeito das decisões

1
Alice Viveiros de Castro é atriz, diretora de teatro. Foi comediante de televisão e abraçou o circo em 1979.
E mais tarde pesquisadora e especialista em Circo. Trabalhou na FUNARTE (Fundação Nacional de Arte),
deu aulas na Escola Nacional de Circo e no Afro Reggae, organiza as seleções de artistas para o Cirque du
Soleil no Brasil, é fundadora do Comité pró-criação da Associação Nacional de Pesquisadores de Circo
(ANPC) e representante do Circo no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC).

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tomadas pelos faraós. Estes no entanto, permitiam o que era falado pelos clowns por
acreditarem que tais pessoas em posição inferior a deles não tivessem inteligência
suficiente para dizer qualquer coisa considerável.
Na Índia temos a figura de Vidusaka, o servo do herói mítico que ajuda o povo a
compreender todo o enredo dos dramas sânscritos, ao traduzir o texto para o povo no
dialeto utilizado por eles.
Em Roma temos a figura do stupidus e os Cicirrus. Este último era o nome dado
aos tontos que faziam rir por suas trapalhadas, de quem teriam se originado os bobos da
corte. Foi na Idade Média que a figura do bobo alcançou seu apogeu. Há relatos históricos
de casos de mulheres que também exerciam este ofício de bobo da corte.
Na Idade Média observamos uma religiosidade tão intensa, que o sufocamento
diante de tantas regras e proibições impostas pela Igreja na época fez surgir as festas e
folias como formas de desviar esta religiosidade. Estas festas foram se tornando grandes
eventos em que a principal função era a inversão de valores. Dentro deste movimento,
surgem estimulados por exigência de um público ávido por poesias satíricas e paródias, os
poetas e cômicos.
No início do século XVI surge a Commedia dell’Arte na Itália. Nota-se neste
período uma grande profissionalização a respeito do ofício do ator no uso da comicidade
em seu trabalho, ou seja, uma preocupação em diferenciar ator e personagem, uma nova
idéia de estudo e desenvolvimento de uma figura cômica. Os personagens da Commedia
dell’ Arte possuíam características tão bem definidas “que os atores acabavam assumindo
seu personagem por toda a vida” (CASTRO, 2005, p 44).
Podemos destacar também os Zanni, que eram comumente os servos. Zanni,
servo estúpido, era também o Pagliacci (origem de “palhaço” em português - e que em
italiano e em português significa o mesmo que clown em inglês), este personagem
constantemente aparece em dupla.
Havia também os espetáculos de Mistérios e Moralidades promovidos pela
igreja, em que a comicidade ficava a cargo dos personagens do Diabo e do Vice, este último
representava todas as fraquezas humanas. Porém a partir de 1550 é incorporado um terceiro
personagem cômico, o rústico.

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Mais à frente o conceito de rústico passa por transformações e por volta de 1580
a 1590 passa a ser diferenciado de um clown para ser referido como o clown. Ou seja,
agora suas características são bem definidas, pois conquista uma identidade. Na cena
elisabetana ele ganha esperteza e uma posição social mais elevada. Sua linguagem também
passa por evoluções2.

Clown é uma palavra inglesa derivada de colonus e clod, palavras de


origem latina que designam os que cultivam a terra, a mesma origem da
portuguesa, colono. Clown é o camponês rústico, um roceiro, um simples,
um simplório, um estúpido caipira. De início, o sentido era apenas o de
roceiro, mas a conotação pejorativa vai se entranhando aos poucos e
clown passa a identificar um roceiro estúpido e bronco. (CASTRO, 2005,
p 51).

Mais adiante, em 1768 na Inglaterra, estão em voga os espetáculos eqüestres,


onde a companhia do sargento Philip Astley realiza espetáculos no qual utilizam exercícios
eqüestres com façanhas dos artistas de feira. Porém é atribuída a Astley a descoberta de que
13 metros de diâmetro são a medida ideal para que a força centrífuga ajude o cavaleiro a
manter-se de pé sobre o cavalo.
Há então, a redescoberta do círculo na apresentação dos espetáculos, trazendo
de volta a milenar arena dos gregos e a roda das praças públicas. É nesse período que surge
a figura do palhaço de circo.
Havia então o palhaço a cavalo, com seus mais variados números de equitação e
comédia, e o palhaço da cena, que agrupa diferentes tipos de cômicos, eles apresentaram-se
nos circos europeus nos últimos anos do século XVIII e nas últimas décadas do século
XIX. São eles os palhaços de tablado de feira; os diferentes tipos de criados da Commedia
dell’Arte, o clown da pantomima, o jester shakespeariano e o clown inglês e suas
tradicionais cenas. Com isso o palhaço de circo foi considerado um personagem cômico
novo, que além dos números a cavalo, de equilíbrios e saltos, mais tarde irá acrescentar
outra forma de comicidade em sua cena: o diálogo com o mestre de pista.
O mestre de pista era quem comandava a disciplina, e também representava a
autoridade máxima no picadeiro. Portanto o palhaço e o mestre de pista logo viraram a
2
CASTRO (2005 p. 51): Sua linguagem também evolui. Se expressa com palavras difíceis, num linguajar
complicado, cheio de hipérboles, que o aproxima dos Dottores da Commedia dell’arte e dos charlatões de
feira.

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primeira dupla de cômicos tipicamente circenses, pelo fato de serem o contraponto um do
outro. De um lado, a estupidez, a anarquia, o insólito e a bobagem do palhaço e, de outro, o
poder, a ordem e o equilíbrio do mestre de pista. Uma relação perfeita para criar conflitos
entre os dois, e daí nascer a improvisação e a graça do humor circense.
As duplas estiveram presentes na arte da comicidade em diversas épocas.
Citamos anteriormente a figura de Vidusaka na Índia. Porém não enfatizamos seu
companheiro de cena, Vita, que simboliza a figura do malandro sagaz, em junção do
estúpido idiota, Vidusaka. Temos também referências da dupla presente nos Zanni, servos
estúpidos da Commedia dell’arte, que possuíam a característica de um ser esperto e
malicioso, e o outro, estúpido e ingênuo.
Encontramos também a figura do Charlatão – farsante, mercadejador
(comerciante), prestidigitador (ilusionista) - e seu comparsa, que atrai os compradores e
prepara o ambiente para em seguida o vendedor farsante poder realizar sua apresentação. E
assim, podemos citar novamente os espetáculos dos Mistérios e Moralidades, organizados
pela igreja, com as figuras do Diabo e o Vice, este a partir de 1550 ganhará um
companheiro: o clown, personagem rústico, ingênuo, medroso, que vai se desenvolvendo e
se transformando num elemento risível. Este clown vai se modificando e já nas cenas
eqüestres dos picadeiros o encontramos com sua dupla, o Mestre de Pista.
Depois podemos ainda citar o surgimento da dupla do clown-branco e o
Augusto. Embora para Alice Viveiros de Castro, a história seja sempre um tanto mais
complexa. Ela relata que:

Muitos livros tentam forçar uma linha reta e rígida que começa com o
palhaço acrobata – o imitador dos números de destreza -, segue com o
clown-branco – reduzido a um mímico de picadeiro – e termina na
chegada do augusto, a figura cômica dominante, mistura de grande
idiota e vagabundo, que toma conta da cena para sempre. (CASTRO,
2005, p 64).

Contudo precisamos relatar que de fato existiu o surgimento deste clown


chamado augusto, até hoje um dos mais presentes e em atividade. A grande novidade deste
personagem, de acordo com a pesquisadora Alice, é o fato de que ele se apresenta como um
empregado do circo, mais próximo do homem, sem utilizar muita maquiagem, apenas um

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nariz pintado um pouco de vermelho dando a impressão que tivesse exagerado na bebida,
paletó, calças largas, sapatos com números maiores que os seus e cabelos desajeitados.
Características diferentes de um clown à la Grimaldi – mestre na arte da
pantomima -, como diz Castro (2005), que continha traços bem marcantes: o rosto pintado
de branco com grandes manchas vermelhas marcando as bochechas, a boca vermelha dando
a sensação de um sorriso rasgado à força e uma peruca com os cabelos espetados.
A face do augusto tal qual conhecemos hoje teria sido criada por Albert
Fratellini, em 1910. Seu augusto era uma figura extremamente idiota e possuía: “(...) um
visual tão hiper-super-extra-incrível e exagerado, que mudou a face dos palhaços dali por
diante” (CASTRO, 2005, p 71).
Realizamos esta grande volta no passado histórico do clown pelo continente
Europeu e Asiático para iniciarmos agora uma busca no universo brasileiro de comédia.
As artes circenses chegaram ao Brasil através das caravelas, mas de acordo com
Castro (2005, p 86):

Não podemos falar de espetáculos circenses, no sentido atual,


acontecendo no Brasil colônia, mas o jeito brasileiro de ser artista
estava sendo formado ali, durante os séculos XVI e XVII. A história das
diversões no Brasil está repleta de saltimbancos, volantins, funâmbulos e
cômicos – desde sempre.

No Brasil, de acordo com Castro (2005 p 104): “(...) aconteceu um fenômeno:


nossos palhaços tocavam violão, compunham modinhas e viraram cantores. (...) A tradição
do humor apoiado na palavra e na música vem das festas populares (...)”. Eles possuíam
em seus repertórios canções cômicas, picantes e teatralizadas como uma das características
mais marcantes.
Um dos maiores responsáveis pelo nascimento do clown de palco aqui no Brasil
foi Benjamin de Oliveira, um dos palhaços mais “inventivos e queridos do Brasil”
(CASTRO, 2005, p 171). Foi no circo Spinelli que Benjamim, a princípio, contra a vontade
do dono lançou o que seria o circo-teatro – “(...) o verdadeiro teatro popular do Brasil que,
por quase 60 anos, foi o teatro preferido das populações do interior e das camadas
populares das grandes cidades” (CASTRO, 2005, p 174) - um movimento que traria para
dentro do espetáculo circense todas as expressões artísticas daquele período.

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[...] eles estão “descobrindo um circo novo”. Estão descobrindo um
palhaço. E é interessante porque o circo não inventou o palhaço. O
palhaço já existia. O palhaço depois vai se tornar um palhaço de circo, um
palhaço na rua, um palhaço no teatro. (SILVA, 2006).

Ao que nos parece, o clown começa a ser uma figura que todo mundo deseja
inserir no seu espetáculo, festa, folia, entre outros. Ele está presente em quase todas as
formas de comemoração que se conhece, seja como palhaço, clown, augusto, bobo,
acrobata, cantador, charlatão e outros tipos. Mas aparece sempre para alegrar os
convidados, crianças e adultos ou para inverter os valores da sociedade, espantar o medo,
divertir, romper barreiras, transgredir. E neste grande número de funções uma delas é
primordial, fazer rir.
Hoje em dia podemos encontrar diversos tipos de clown atuando nas mais
variadas funções. Há clown de televisão, de cinema, os que fazem malabarismos nos
semáforos, os de hospital, de presídio, os que atuam na Cruz Vermelha, os de palco, de
circo, aqueles que encontramos nas Folias de Reis, nos folguedos e nos bonecos de
Mamulengos. Já existem também vários encontros anuais e oficinas de clown, seminários e
cursos. Existem hoje diversos trabalhos acadêmicos3e livros4 sobre o assunto, que permitem
divulgar e aumentar o conhecimento sobre a arte de fazer rir.
Mas, por todos esses lugares onde encontramos o clown e de todas essas figuras
que ele representa, nos identificamos nesta pesquisa pela virtude que tem de fazer o
próximo rir através da comunicação que estabelece e da própria identificação que ele, o
clown, nos permite, ao vermos suas fraquezas, medos, ridículos e fragilidades. Ao nos
refletirmos em seus olhos, “janelas de sua alma, espelhos do mundo5” nos vemos seres
humanos, tal como somos. Longe das perfeições, dos erros, dos acertos, das coisas

3
DORNELLES (2001); MARTINS (2004); PIZA (2006); FEDERICI (2004); KASPER (2004), dentre
outros.
4
LECOQ (1987), FELLINI (1986), TESSARI (1997), dentre outros.
5
CHAUI, (1988, pp. 33-4): Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de
nós para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si. Porque estamos certos
de que a visão depende de nós e se origina em nossos olhos, expondo nosso interior ao exterior, falamos em
janelas da alma. (...) Porém, porque estamos igualmente certos de que a visão se origina lá nas coisas, delas
depende, nascendo do “teatro do mundo”, as janelas da alma são também espelhos do mundo.

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cotidianas. Pelo espelho do mundo ele se revela e mostra para todos o que enxerga também
através das janelas de nossas almas.

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3. ENTENDENDO O ATOR ATRAVÉS DO CLOWN

“O palhaço é hoje um tipo que tenta fazer graça e divertir seu público por meio de suas
extravagâncias; ao passo que o clown tenta ser sincero e honesto consigo mesmo”
(BURNIER, apud ICLE, 2006, p. 14).

Entre todos os elementos que identificam a figura do clown, desejo abordar um


aspecto essencial: o ator em seu processo de criação utilizando-se do clown através de seu
caráter único e verdadeiro – no que diz respeito à utilização de suas próprias fragilidades
para a construção de seu trabalho - como uma possível ferramenta na construção de uma
personagem, a fim de alcançar um estado de presença em cena.
A partir da busca do teatro pelo clown, hoje muitos atores e estudiosos das artes
cênicas e circenses têm procurado descobrir o seu próprio clown através da significação e
compreensão que ele exerce no seu próprio fazer teatral, pois, “a graça é construída não
pela tentativa de fazer coisas engraçadas, mas na busca de sua maneira própria de fazê-la”
(MASETTI, 2001, p 31).
Após a Guerra fria, encontraremos um movimento no qual o teatro e o circo
buscarão um no outro uma forma de inovar e revigorar seus objetivos e especificidades. O
teatro buscará reencontrar sua origem nas feiras e no circo, explorando a força e a
capacidade artística das artes do povo. Meyerhold, Karl Valentin e Brecht, vanguardistas do
início do século XX, vão à frente deste movimento. “Mergulharam nas feiras, nos
picadeiros e procuraram assimilar outras linguagens e culturas (...)” (id. ibid. p 209).
O circo talvez tenha sido o último segmento artístico a render-se à educação
formal. Já no século XIX tinham sido criados e institucionalizados o ensino da dança, da
música, da pintura e do teatro. Porém, o saber circense continuou sendo passado de pai para
filho e de mestre para discípulos por meio de exemplos e de treinamento duro e repetitivo
até os anos 80 do século XX.
Desde então alguns mestres e pesquisadores teatrais encantados com o ofício do
palhaço vêm desenvolvendo metodologias para aprimorar tanto o estudo dos processos de
criação do ator - a respeito de novas técnicas e ensinos para a formação do trabalho do ator

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- quanto o próprio trabalho do palhaço, no que se refere ao seu crescimento e
desenvolvimento artístico e criativo também.
Copeau, diretor francês, inicia uma grande revolução nas artes cênicas e
cômicas ao instaurar uma nova linha de pensamento diferente daquela estabelecida por
Stanislavski, embora o considerasse como mestre em sua pedagogia. Gilberto Icle (2006),
em seu estudo a respeito da consciência nos processos criativos do ator, considera que
Stanislavski acreditava na consciência “(...) como método que domina e controla o fluxo de
vida criador”, enquanto Copeau “(...) tenta minimizar a razão e, em particular, o pensar do
processo, para que algo mais profundo que a consciência superficial venha a emergir”
(ICLE, 2006, p. 10).
Copeau, trabalhará com a chamada via negativa – que consiste basicamente na
eliminação dos bloqueios, identificando o que obstaculiza o processo criativo do ator e
promovendo um encontro proposital com estes obstáculos, tais como a própria autocrítica.
Para este diretor, a máscara era compreendida não somente como um “suporte de
expressão, mas como um instrumento poderoso de conexão com o universo interior do
ator” (ICLE, 2006, p. 09).
Os exercícios de iniciação ao clown que baseiam nossa pesquisa prática estão
intimamente ligados a este movimento, nos proporcionando uma consciência de nossos
ridículos, de nossas fragilidades e da nossa autocrítica para utilizar esta consciência a favor
do nosso trabalho. No qual, percebendo nossas fraquezas, podemos nos esvaziar delas e
traçar caminhos opostos e/ ou novos para alcançar a comunicação com o público, ou seja, o
estado de presença em cena.
Copeau busca, através da neutralidade, proporcionar um estado criativo no ator.
Este conceito seria reeditado anos mais tarde por Grotóvski, que também influenciaria
Eugênio Barba e outros diretores, como Peter Brook com seu conceito de “vazio”, herdado
também dos estudos de Copeau a respeito da neutralidade. Copeau e seus discípulos
encorajam “um vazio de pensamento para aí instalar a criação plena” (ICLE, 2006, p. 11).
Este diretor irá influenciar também outros diretores e pesquisadores que utilizariam o
conceito da eliminação dos bloqueios do ator para a construção de um estado criativo, na
construção de uma figura cômica, o clown.

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Jacques Lecoq, especialista em educação física, um pesquisador com afinidades
com as inúmeras possibilidades expressivas do corpo humano, encantou-se pela figura do
palhaço, por seu humor, intensidade e emotividade que causava nele. Mas não se
identificou com os palhaços de picadeiro que se apresentavam no seu tempo, os quais
muitas vezes utilizavam um humor mais simplista e rasgado6. Foi um dos tantos que
marcaram época, deixando legados importantíssimos tanto para a arte da comicidade como
para a teatral. Copeau foi o responsável por trazer Lecoq para o teatro.
Lecoq que era um mestre do teatro, inseriu o palhaço de circo (onde ele
realmente estava) dentro do teatro como forma de trabalhar o ator em seus processos de
criação, como aprimoramento de suas técnicas e não somente para aprender a linguagem
cômica do palhaço (PUCCETTI, 2006). Lecoq especializou-se, ainda, no estudo da
Commedia dell’Arte, mímica e clowns7, foi mestre de Philippe Gaulier e Luiz Octávio
Burnier.
Burnier foi uma grande referência que tivemos no Brasil deste novo processo de
iniciação do clown dentro do teatro. Burnier foi aluno de Jacques Lecoq em Paris,
chegando ainda a estudar com Etienne Decroux - mestre da mímica, ator e pedagogo.
Chega a ficar amigo de Eugenio Barba e através de seus estudos funda em 1985, o Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais (LUME), aonde se realizam estudos a respeito da
linguagem do clown e das diversas linguagens teatrais. Lecoq e Philippe Gaulier serão os
grandes responsáveis pela “moda” do palhaço de palco.
Lecoq em um de seus trabalhos8 afirma que para um clown de palco, não basta
apresentar-se ao público fracassando naquilo que procura realizar, com uma roupa típica e

6
Segundo Castro (2005, p. 210), Lecoq era: [...] um pesquisador sério e apaixonado pelo movimento e pelas
inúmeras possibilidades expressivas do corpo humano, encantou-se com a figura do palhaço. O humor, a
intensidade, a emotividade despertada pela figura estranha e insólita deste personagem encantavam o artista,
mas ele não se identificava com a palhaçada de picadeiro, com o humor rasgado muitas vezes óbvio e
simplista dos palhaços de circo do seu tempo.
7
Segundo CASTRO (2005, p. 66): Tristan Rémy define de forma interessante como usar o termo clown.
Segundo ele, quando no singular – o clown – estamos nos referindo ao clown-branco, o parceiro do augusto,
mas quando usamos o plural – os clowns – estamos falando dos palhaços em geral: clowns, augustos,
excêntricos, grotescos.
8
Segundo Castro (2005, p.211), Lecoq relata que: (...) Não basta, para um clown de teatro, apresentar-se ao
público fracassando naquilo que procura realizar e com uma roupa típica e nariz vermelho. O clown
profissional deve saber realizar seus fracassos com talento e trabalho. Os clowns do teatro fundamentam-se
mais sobre o talento do comediante que sobre o do acrobata; sem o nariz vermelho, eles animam um mundo
geralmente absurdo e trágico. Em companhias, montam peças curtas criando seus personagens a partir de si
mesmos, caricaturando a si mesmos.

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nariz vermelho. Mas ele, como clown profissional que é, deve saber realizar seus fracassos
com talento e trabalho. Ou seja, o clown de palco agora além de passar por um processo de
iniciação diferente do que era vigente nos circos, também aprende técnicas e exercícios que
fundamentem seu ofício.
De acordo com Burnier, um dos fomentadores deste novo movimento herdado
por Copeau, a iniciação ao clown é um momento delicado no qual se expõe o indivíduo ao
ridículo, porém, fora dos picadeiros a iniciação ao clown tenta recriar esta situação
particular, no qual cada palhaço de circo passa naturalmente em algum momento de sua
vida antes de se tornar palhaço. Um ator não circense, entretanto, precisa atravessar este
processo de desenvolvimento do seu próprio clown “de outra maneira9”.
Este novo modo de iniciação ao clown, a busca de novos artistas pela sua arte
para dinamizar e potencializar estados criativos em seu trabalho foi o motivo pelo qual
também nos interessou a encontrar no clown, possíveis respostas a respeito do ofício do
ator e suas diversas possibilidades expressivas no campo da atuação. Mais especificamente
o estudo da diminuição da autocrítica, através do conceito da via negativa iniciado por
Copeau e mais tarde utilizado por Peter Brook com o conceito de vazio para a construção
de um estado criativo no trabalho do ator visando alcançar um estado de presença em cena.
Gostaríamos de citar também uma profissional considerada uma estudiosa do
clown de palco, que é Ana Luisa Cardoso, uma das primeiras a desenvolver este trabalho
no Brasil, com sua palhaça Margarita. Ana Luisa, também aluna de Philippe Gaulier,
aprendeu com ele técnicas de clown, bufão e melodrama. Esta atriz pôde assim também
conhecer a linguagem do clown e suas técnicas através de Mario Gonzáles com quem
aprendeu o jogo do Platô – um dos exercícios de iniciação ao clown - que tivemos contato
em nossas aulas durante a graduação. Esta experiência foi o “incidente critico10” que
ocorreu conosco durante o módulo de Comédia ministrado por Ana Luiza Cardoso, no 5°

9
Para Burnier (1994, p.255): A iniciação é um momento delicado no qual o indivíduo é exposto ao ridículo. A
iniciação do clown tenta criar esta situação particular que faz parte do cotidiano do circo. Um ator não
circense, no entanto, deve atravessar este processo por outros meios. Por ser um processo profundo vivido de
maneira condensada, procuro sempre realizá-lo em situação de retiro.
10
Mais de trinta anos de investigação sobre incidentes críticos, de acordo com FRANKRYKER (2002, p.3)
mostram que o trabalho do professor pode levar a uma diferença importante nas experiências educativas dos
alunos. A capacidade de criar ambientes favoráveis de aprendizagem na sala de aula pode supor um desafio,
sobretudo quando o docente utiliza um “incidente crítico” buscando apontar caminho para que os alunos
busquem respostas para questões surgidas em aula.

19
período do Curso de Artes Dramáticas da UniverCidade, contendo ensinamentos a respeito
da linguagem do clown, e foi um dos motivadores da realização deste trabalho.

20
4. ESTADO DE PRESENÇA

“O instante do ato não se renova, existe por si mesmo: repeti-lo é dar-lhe um novo
significado”.
(Lygia Clark)

Consideramos estado de presença o instante em que o ator consegue unir a


capacidade que tem de articular as ações na cena - desenvolvê-las de forma consciente de
acordo com o objetivo da cena - e a capacidade que tem de livra-se de idéias pré-
concebidas e pensamentos já estruturados para deixar sua criatividade fluir, deixando este
estado criativo nascer em cena – convertendo-o em forma.

4.1. O Nascimento do Vazio: a Consciência do Momento Presente

Peter Brook utiliza o termo “vazio” para designar não apenas o espaço físico do
seu trabalho, como também para apontar uma perspectiva da cena voltada para a utilização
mínima de informações de modo que se evite o desperdício de imagens e formas. Dessa
maneira, busca ativar a imaginação do público e, portanto, novas significações. O vazio
refere-se ainda ao espaço interior do ator, um lugar desconhecido que está entre os nossos
pensamentos e o momento da concepção do ato:

Nascimento é assumir uma forma. (...) É o que na Índia se chama sphota.


Este antigo conceito hindu é notável porque seu significado já está no
próprio som da palavra. Entre o que não está manifesto e o já manifesto
existe um turbilhão de energias informes, e em certos momentos há uma
espécie de explosão que corresponde a este termo: “Sphota” (BROOK,
1999, p. 42).

Supomos que tanto o vazio de Peter Brook, quanto o termo chamado Sphota
referem-se a este estado criativo, cuja tendência do ator de racionalizar seus pensamentos
durante a cena, coordenando-os para que suas ações sigam uma estrutura que já foi definida
por ele - as marcações, o texto definido – permaneça por um momento em conciliação com

21
uma parte sua que se deixa tornar objeto para a possibilidade da criação. Essa
transformação do ator em objeto de conhecimento que requer que uma parte dele
permaneça “sujeito”, de qualquer forma, para ter consciência de sua outra parte que é
objetivada11.
Ou seja, esse estado que caracteriza uma presença do ator em cena é um estado
no qual o ator se modifica a partir de suas próprias características interiores, até então
guardadas em sua memória psicofísica, porém ocultas, para encontrar outras formas mais
significativas de se comunicar:

Todos os impulsos humanos direcionados para o que chamamos, de


modo impreciso e canhestro, de “qualidade” provêm de uma fonte cuja
verdadeira natureza é desconhecida, mas que somos perfeitamente
capazes de reconhecer quando se manifesta em nós ou nos outros
(BROOK, 1999, p. 49).

É um estado em que as possibilidades criativas se deixam transparecer no


momento em que o ator deixa de lado todos os pensamentos pré-concebidos, sua
autocrítica, e encontra na união corpo-mente a vitalidade na atuação. Um momento em que
se sente presente por que se compreende verdadeiro, ou seja, estando em acordo com suas
próprias significações diante os objetivos da cena:

(...) o conceito de vazio do ator segundo Peter Brook é aquele cujo ator
está aberto, disponível, com a mente em estado de alerta - conectado no
momento presente. Assim, tem plena decisão e domínio do que faz,
quando faz. Está alinhado energeticamente: possui o equilíbrio da mente
e do corpo. (ARANTES & SPERANDIO, 2005, p.11).

“Estar presente significa integrar corpo e mente numa ação única e indivisível,
ao contrário da vida cotidiana, em que podemos agir e pensar em coisas diversas ao mesmo
tempo” (ICLE, 2006, p. 32).
E o que é necessário para que o ator, nas diversas ocasiões em que exerce seu
ofício, em uma cena, apresentação, performance, esteja disponível a viver este momento
presente, este estado vivo e criativo?

11
Para Icle (2006, p. 26): “(...) essa transformação do sujeito em objeto de conhecimento requer, de qualquer
forma, que uma parte do sujeito permaneça sujeito, para ter consciência de uma outra parte que é objetivada”.

22
Para que o ator possa se encontrar num estado criativo, disponível e aberto aos
estímulos da cena, é preciso confiar que o espaço cênico em que se encontra e as
circunstâncias serão favoráveis para o nascimento de uma criação artística que possa levá-
lo ao estado de presença: “o invisível pode surgir em qualquer lugar, a qualquer tempo, por
meio de qualquer um, desde que as condições sejam propícias”, (BROOK, 1999, p.19). Ou
seja, durante a cena, o ator está pensando a todo o momento, criando, raciocinando,
ligando, conectando ações e falas em seu pensamento e quanto mais preciso e organizado
for o espaço cênico em que está inserido e mais consciente ele estiver de suas funções em
cena, tanto mais ele se permitirá ousar em suas ações, criando novas possibilidades em sua
atuação: “No teatro é possível experimentar a realidade absoluta da extraordinária presença
do vazio, em contraste com a confusão estéril de uma cabeça entulhada de pensamentos” e
“somente com ensaios precisos, repetidos, e com a experiência dos espetáculos, pode-se
provar ao ator que, quando não se procura segurança, a verdadeira criatividade vem
preencher o espaço” (id. ibid. pp. 19-20).
Nesse sentido, podemos observar que o clown não tende a procurar segurança,
ao contrário, age no desconhecido, na improvisação. O clown brinca não só com suas
próprias características ridículas, mas também com o ridículo de cada um dos espectadores
que está à sua frente, e ao melhor jogar com estas fragilidades em seu trabalho reflete o
caráter humano que existe em cada um. Sabemos através do estudo realizado que, ele
possui uma linha de ações e textos, também utiliza as gags, os bordões, suas técnicas e
sabedoria, porém se ele se prender a uma determinada estrutura, cristalizando suas ações, a
qualidade de sua comunicação com o público pode ficar comprometida pelo fato de toda
sua valia estar nesta comunicação que estabelece com os espectadores.
Para a professora Ana Luiza Cardoso: “a presença do palhaço consiste na
comunicação que ele tem com o público12”. Sendo assim, ao fechar-se numa estrutura não
poderá brincar com o novo, o imprevisível: “a tendência natural de recusar o inesperado
leva inevitavelmente à redução desse universo potencial”, (BROOK, 1999, p. 45).
Por isso, notamos que o esvaziamento que o clown utiliza no seu trabalho, a
característica de conhecer e dinamizar seus próprios medos e fragilidades, ao mesmo tempo
em que traduz estas características na comunicação com o público em um jogo de

12
Anotações de entrevista realizada com Ana Luisa Cardoso em 22.03.2007.

23
improviso torna-se um dos fatores que possibilitam a diminuição da autocrítica no trabalho
do ator. Em conseqüência, levando o ator a um estado de presença em cena. Pois esta
característica do clown abre o campo do desconhecido em seu trabalho, levando-o a
aumentar sua criatividade e assim buscar o novo ao invés do conhecido.
A improvisação significa “(...) confrontar o ator o tempo todo com as suas
próprias barreiras” (BROOK apud ARANTES & SPERANDIO, 2005, p.119), “(...) sejam
elas de ordem técnica, no sentido de ter um domínio vocal e corporal ou de superar o
medo”, sendo que “a racionalização excessiva é um mecanismo de defesa para combater o
medo de sermos apanhados desprevenidos” (ARANTES & SPERANDIO, 2005).
No entanto, o clown necessita alcançar um estado de tomada de consciência de
suas próprias fragilidades em seu trabalho criativo para poder precisar com clareza suas
ações no jogo com o público. Pois, tudo aquilo que não interfere no pensamento do público,
tudo que não interessa nem o modifica, é descartável para o clown. Sendo assim, seu
processo de autoconsciência – no qual identifica suas características ridículas – o beneficia
na medida em que, quanto mais souber daquilo que lhe causa medo, que lhe fragiliza, mais
poderá utilizá-las a seu favor no processo criativo, para alcançar uma maior comunicação
com o público.
Este processo de tomada de consciência é: “(...) uma espécie de apropriação de
si ou das ações próprias numa dimensão que faz a experiência se constituir de forma tão
profunda, capaz de construir conhecimento e, por isso, mudar as estruturas do sujeito”
(ICLE, 2006, p.37). Sendo assim:

(...) o ator clown precisa de uma consciência apurada para um processo


que se inicia na identificação de suas próprias fragilidades como pessoa
e naquilo que lhe é ridículo (...). Processa-se num caminho complexo de
experimentações, no qual a percepção tem papel preponderante e,
auxiliada por outros mecanismos cognitivos, é capaz de construir
repertórios de estados e ações ridículas, para num último momento
serem acionados na presença do público (ICLE, 2006, p. XXII).

O próprio processo de trabalho se converte em processo criador, de buscas e de


descobertas sempre mais abrangentes. Isto requer que o ator seja receptivo a fim de
elaborar coerentemente, no todo que está se formando, a concepção da idéia inspiradora,
alcançando um estado de presença em sua atuação.

24
5. OS EXERCÍCIOS DE INICIAÇÃO AO CLOWN

Em diversos momentos em nosso processo de criação durante as disciplinas do


Curso de Artes Dramáticas da UniverCidade, nos deparamos com um forte censor para as
nossas propostas: a autocrítica. Porém, ao realizarmos o módulo de comédia durante um
dos períodos do curso, no qual eram realizados exercícios e estudos que abrangiam a
linguagem do clown, nos deparamos com uma possível diminuição desta autocrítica a partir
do momento em que nos identificávamos com nossas próprias características ridículas,
nossas fragilidades e medos e nos permitíamos ser esvaziados de qualquer pensamento pré-
concebido, qualquer julgamento próprio ou autocrítica - o que nos dava abertura para
alcançarmos um estado de presença em cena.
Notamos que as técnicas aprendidas nas aulas ajudam o ator na construção do
próprio clown e acrescentam ferramentas para o seu trabalho como ator. São instrumentos
que auxiliam à criação, abrindo sua comunicação com o público. Como dito anteriormente,
“a presença do palhaço consiste na comunicação que ele tem com o público13”.
Os exercícios de iniciação ao clown produziam em nós, dentre outros fatores,
estados criativos, propícios para o nascimento de um novo corpo, voz e atitudes
relacionadas ao clown em construção.
Ou seja, através destes exercícios de organização, construção e aperfeiçoamento
para a formação de uma figura cômica, nós pudemos perceber que os aspectos da
construção do clown estavam ligados ao trabalho do ator em seu processo criativo na
construção do personagem. Mas, como podemos caracterizar esse processo? Definiremos a
seguir algumas características dos exercícios estudados, bem como suas relações com os
processos criativos do ator.
Consideramos que, baseados nas aulas ministradas pela professora Ana Luisa,
os exercícios de iniciação ao clown são: alguns jogos, regras e técnicas voltadas à
linguagem do clown que criam no ator uma pré-disponibilidade para descobrir suas
próprias características ridículas e não só percebê-las, mas também aproveitá-las
cenicamente, estruturando-as e organizando-as para a construção de um futuro e possível
clown. De acordo com Burnier (1994 p.262):

13
Anotações de entrevista realizada com Ana Luisa Cardoso em 22.03.07.

25
Existem diversos exercícios que confrontam o ator com sua
ingenuidade e seu ridículo. Basicamente todos eles buscam
colocar o ator em situação de desconforto na qual se
opera um arriamento de suas defesas naturais. Nesta
situação surge uma série de pequenos gestos que
“escapam” ao seu controle. Em francês, estes gestos são
chamados de “gestes em fuite”, gestos-em-fuga. Eles são
preciosos na composição do clown, pois são como
“sementes”, algo muito pequeno, mas que contém um
embrião do futuro clown.

Referindo-se ao trabalho de Burnier, Puccetti (2006) afirma:

O Luis Otávio criou uma maneira através de trabalho em


sala. Isso não existe na tradição do circo. Mas pra gente
do teatro é assim. Então vai lá, fica na frente de pessoas,
constrangido... daí aos poucos você vai descobrindo por
onde a sua graça sai.

O “Platô”, um dos exercícios de iniciação ao clown, realizados por nós, tem


entre outras características a função de manter uma sintonia, conexão entre todos os
jogadores, um perfeito estado no qual todos estejam inseridos e presentes. Ele revela o
ridículo, o cômico e o lado humano presente nos jogadores.
Mas para isso é necessário que todos estejam dispostos a se desfazerem (pelo
menos durante aquele exercício) de suas “máscaras” cotidianas – formas que encontramos
de dar significados através de expressões faciais, trejeitos, manias e vícios corporais
adquiridos com o tempo – a fim de que, através da neutralização, possam encontrar novas
formas de significações até então desconhecidas pelos próprios atores. Novas atitudes e um
novo meio de se comunicar, que começa a ser o processo de nascimento do clown de cada
um dos envolvidos, e mais tarde levará ao aprimoramento do trabalho deste clown.
Em todos os jogos percebemos o treinamento para a comunicação que o clown
estabelece através do seu olhar com o público. Fazendo com que mantivéssemos sempre a
atenção aos estímulos que ele oferecia, correspondendo sempre a ele em suas ações.
Os exercícios proporcionavam também uma conscientização do corpo, da
respiração, das ações, para que os atores pudessem reconhecer exatamente onde estavam
“errando” e transformar os “erros” em utilidade, em técnica. Conscientizando o ator a

26
respeito de si próprio para utilizar suas fragilidades a seu favor. De acordo com Brook
(1999, pp. 57-8), “não podemos ignorar que expressamos incessantemente milhares de
coisas com todas as partes de nosso corpo. Não temos consciência disso na maior parte do
tempo, o que leva o ator a uma atitude corporal difusa, incapaz de magnetizar a platéia”. E
conclui, “ser sensível, para um ator, significa estar permanentemente em contato com a
totalidade de seu corpo” (id. ibid. p.17).
De acordo com Brook (1999, p 45), no momento em que o ator se depara com o
vazio em seu trabalho, naturalmente surge o medo. Medo de seu vazio interior e do próprio
vazio no espaço. Nesta hora o ator preenche o vazio realizando ações variadas e
desnecessárias para se livrar do medo. Um dos elementos que perturbam este espaço
interior é a racionalização excessiva.

Sempre que achamos que “essas palavras têm que ser pronunciadas de
determinado modo, têm que ter determinado tom ou ritmo...”,
infelizmente, ou talvez, felizmente, cometemos um grande erro. (...) uma
infinidade de formas inesperadas pode surgir a partir dos mesmos
elementos, e a tendência natural de recusar o inesperado leva
inevitavelmente à redução desse universo potencial. (BROOK, 1999, p
45).

Acreditamos que Brook ao se referir à racionalização excessiva como um dos


elementos que diminuem a possibilidade de esvaziamento do ator, está também se referindo
à autocrítica. Desse modo, se o ator “(...) tiver consciência do que lhe provoca medo, pode
observar como constrói suas defesas. Todos os elementos que dão segurança precisam ser
observados e questionados (BROOK, 1999, p. 21)”.
O processo de iniciação do clown consiste no contato e na utilização dos
aspectos humanos e sensíveis do próprio ator e sua decorrente “corporificação14”, ou seja,
na descoberta de novas possibilidades corporais adquiridas do conhecimento de suas
características ridículas e da relação que estabelece com o público.
A descoberta do clown interior de cada um promove a quebra de “couraças que
usamos na vida cotidiana. Mais do que formas estereotipadas, o que causa o riso são as

14
(BURNIER, 1994 p. 265): “A criação do clown, ao longo dos diversos exercícios, significa entrar em
contato com estes aspectos humanos e sensíveis do ator, e sua decorrente corporificação”.

27
manifestações autênticas advindas da sensação de desconforto e insegurança do clown
diante do público” (BURNIER, 1994 pp. 263-4).
Acreditamos, portanto que, de acordo com as afirmações acima e a partir dos
estudos de Brook, para que pudéssemos alcançar um esvaziamento de nossas barreiras,
seria necessário portanto reconhecê-las para torná-las úteis em nossa criação, utilizá-las ao
nosso favor, a fim de alcançarmos um estado presente em nossa comunicação com o
público.
Sendo assim, nos questionamos se ao termos realizado o módulo de estudos de
clown contendo exercícios capazes de nos proporcionar uma diminuição de nossa
autocrítica, possivelmente se ao criarmos um jogo baseado nos mesmos exercícios, para a
criação de uma personagem em outros aspectos que não o cômico, utilizando um texto
definido, poderíamos também encontrar as mesmas qualidades expressivas em nossa
atuação e portanto, também um possível estado de presença em cena?
Portanto, achamos necessário que a criação deste jogo estabelecesse as mesmas
condições que os exercícios de iniciação ao clown apresentam: alguma figura externa, ou
alguém que tornasse possível o confronto dos atores com suas fragilidades. Como também,
elementos que causassem uma pré-disponibilidade para a racionalização em sua atuação, ou
seja, a autocrítica. Dessa forma fazendo com que na hora do jogo, pudéssemos verificar se
através da comunicação estabelecida com o público poderíamos reconhecer nossas
fragilidades e a partir desse momento nos esvaziarmos de qualquer autocrítica para
alcançarmos um estado de presença no jogo.

28
6. FAZER RIR É FACIL?

Nossa pesquisa prática consiste na criação de um jogo denominado Fazer Rir é


Fácil?, criado a partir de exercícios de iniciação ao clown. Nossa intenção é, através desse
exercício, verificar o quanto rir do nosso ridículo permite minimizar a autocrítica e, por sua
vez, estabelecer um estado propício para uma investigação de possíveis relações com o
público a partir de um fragmento do texto Companhia de Samuel Beckett.
O objetivo do jogo é fazer todos os espectadores rirem. As regras:

• Cada espectador que rir deve sair do jogo. Até que reste só uma pessoa;
• O jogo só acaba quando a última pessoa rir;
• O público deve ser fiel e sair realmente do jogo quando rir;
• Quando o espectador sair do jogo ele deve se retirar da sala onde está sendo realizado
o jogo, para que seu riso não contagie e influencie os outros espectadores que ainda
estão jogando;
• No início do jogo deve ser estipulado pelo ator que todas as pessoas só devem rir
quando realmente acharem graça;
• Não precisa rir só por que o que o ator realizou foi “bonitinho”;
• O ator é obrigado a ter certeza de que o que está realizando é realmente engraçado;
• A partir do momento que o jogo iniciar tudo que o ator fizer deve ser julgado como
uma tentativa de fazer os espectadores rirem;
• O ator não pode usar a fala para fazer os espectadores rirem;
• Se por acaso ele falar alguma coisa ele deverá imitar algo - que algum espectador
escolher;
• Apenas quando este estiver imitando algo pode usar a voz – mas não pode utilizar
palavras prontas, apenas sons vocais;
• Se o público não estiver satisfeito com a imitação deve pedir para parar e a partir
deste momento o ator deverá continuar seu objetivo em fazer rir novamente - agora
sem a utilização da fala;

29
• Quando os espectadores não gostarem do que foi realizado, quando a ação do ator ou,
no momento em que ele estiver falando o texto*, não agradar ao público, eles devem
escolher entre as palavras: CHEGA! NÃO! ou PÉSSIMO! Dizendo-as Bem Alto,
com vigor e decisão;
• * Quando o ator conseguir fazer alguma pessoa rir ele deverá falar o texto que
decorou, utilizando a sensação de presença alcançada, do momento em que conseguiu
alcançar uma comunicação com o espectador e, deverá ser interrompido pelo público
se este não considerar que o ator alcançou um estado de presença falando o texto. Ou
seja, se não alcançou uma comunicação com o público. Só então deverá retornar a
realizar seu objetivo de fazer os espectadores rirem – agora sem fala.

30
6. 1 – Relatório de Atividades

Para a realização de nossa pesquisa prática, escolhemos pesquisar baseados nos


exercícios de iniciação ao clown um jogo de nossa criação para verificarmos o
esvaziamento do ator obtido pelo confronto com suas fragilidades e ridículos a fim de
neutralizar sua autocrítica e alcançar um estado de presença em cena. Porém resolvemos
defender nossa pesquisa como forma de alcançarmos este estado de presença na construção
de uma personagem, ou seja, no seu desenvolvimento. Contudo, utilizamos para tal um
trecho da obra Companhia de Samuel Beckett. Esta escolha se deu pelo fato de termos
trabalhado esta obra no terceiro período do curso de Artes Dramáticas, na disciplina Ator e
Composição – já citada anteriormente. Em que nos relacionamos pela primeira vez com a
figura do clown.
Companhia, o último romance de Samuel Beckett, é “a última etapa na
progressão de seus personagens numa inexorável jornada para a solidão, o imobilismo e o
aniquilamento” (SANTARRITA In: BECKETT, 1982 p 6). Assim como em suas últimas
obras, em Companhia não existem mais cenários, diálogos, gestos ou qualquer outra coisa.
Há apenas o ser humano despido de suas vestimentas físicas e ambientais, “reduzido às
mais elementares das questões – por que, sem o ter solicitado, fui lançado neste mundo;
quem sou, que quero dizer quando digo “eu”; para onde me encaminho?” (id. Ibid. p.7).
Nas obras de Beckett notamos uma deterioração e fragmentação de seus
personagens, são eles, vagabundos, velhos, aleijados, habitando os lugares mais
improváveis, como latas de lixo e cilindros de borracha. Eles se encontram
“simbolicamente e de fato, no fundo do poço da existência humana15”.

É como se o autor revolvesse a massa informe e borbulhante da


existência humana para de lá arrancar, após um exaustivo trabalho –
para ele e para o leitor -, uma gema preciosa, uma luz que, de tão
intensa, produz aquela lucidez alucinante que só os loucos e os santos
podem ver, mas não contemplar – apenas um fulminante vislumbre de
compreensão, que escapa antes de ser captado, como um êxtase16.

15
(SANTARRITA In: BECKETT, 1982 p. 8): “Esses seres, que tocaram o fundo da escala social e
existencial, se encontram também, simbolicamente e de fato, no fundo do poço da existência humana, onde só
contam as questões básicas”.
16
Id. Ibid. p. 9.

31
Talvez, o “vazio” de que falamos também esteja interligado com a obra
Companhia de Beckett utilizada em nossos estudos práticos. Pelo fato de acreditarmos ser
também o estado de presença um momento em que o ator pode alcançar um estado criativo
tão livre de preocupações, medos e autocríticas a respeito de seu próprio trabalho, que faz
com que a idéia inspiradora que até então estava armazenada nos seus pensamentos se torne
forma em ação.
Parece que podemos observar em seus textos um esvaziamento no qual ao despir
seus personagens, situando-os a uma condição simples acaba revelando as características
mais intimas do ser humano. E assim, acreditamos ser o que nos identifica em seu trabalho.
Em Companhia encontramos o homem em sua completa essência e desnudamento,
buscando se identificar acima de tudo. Buscando companhia.
Um homem que está deitado no escuro recebe impressões, determinadas fases
de sua vida vão surgindo do escuro onde se encontra e ele só as reconhece por que uma voz
assim o diz e lhe faz companhia. Também não sabe dizer ao certo se esta voz fala com ele -
se ele próprio está lá - ou possivelmente se fala de uma outra pessoa também deitada no
escuro. Muitas vezes questiona sua própria existência abolindo a idéia desta voz que lhe faz
companhia, ao pensar ser sua a voz que fala no escuro. Não lhe resta nenhuma certeza, está
só ou acompanhado?
Constatamos que Beckett foi acima de tudo, pesquisador do ser humano, de sua
existência e condição. E teve que buscar além da superfície do homem o caminho para
compreender a sua essência. Foi preciso muitas vezes observar o seu lado mais obscuro.
Identificar-se com suas fragilidades e seus medos.

Mais do que ter ido buscar no abismo do ser humano suas significações, Beckett
transformou em obras de arte todas as suas inquietações e crenças. E assim, através de
Companhia, nos identificamos com a busca deste autor pelo “vazio” cheio de
significados e pela sua influência na nossa própria busca pelo “vazio” e o humor no
trabalho do ator como forma de desnudamento de seus ridículos para alcançar
vivacidade em sua atuação.

32
1º Dia de Experimentação Prática: 03-09-2007.

Para o primeiro dia de experimentação prática, começamos realizando uma


primeira e rápida explicação ao público sobre o jogo e seguimos a sua realização, a partir
de suas regras básicas, a princípio estabelecidas.
Realizamos o jogo duas vezes neste dia. Na segunda experiência, o público nos
solicitou que as pessoas que saíssem do jogo fossem para fora da sala onde o jogo estava
sendo realizado, pois os espectadores que haviam saído do jogo e continuavam
permanecendo na sala - regra estabelecida por nós - estavam induzindo os outros
espectadores a rirem, contagiando-os com suas risadas, mesmo que os espectadores
participantes do jogo não estivessem com vontade de rir. Então solicitamos aos jogadores
que saíssem da sala.
Resolvemos organizar este relatório dividindo as informações obtidas durante as
experimentações dentro de alguns temas – comunicação, autocrítica, esvaziamento, ação e
texto. Algumas informações poderão muitas vezes se encaixar em outros temas, porém
achamos mais importante considerá-las dentro da formatação exibida.
Perguntas dos espectadores:
• 1ª - Se nós já havíamos preparado algo antes de realizarmos o jogo, alguma
seqüência de ações, pelo fato de terem achado que nós seguíamos um certo
“padrão” de ações e movimentos.
• 2ª - O por quê de termos inserido o texto no jogo.
• 3ª - Qual a finalidade do riso. Por que não o choro? Causar o choro nos
espectadores, ao invés do riso.
Para nós:
• 1ª - Apesar de não termos preparado nada antes, percebemos que seguíamos
realmente um certo estilo de movimentos e que só em alguns momentos saíamos
dele.
• 2ª - Inserimos um trecho do texto Companhia de Samuel Beckett pelo fato de
querermos pesquisar o estado de presença alcançado na construção de uma
personagem, não só na linguagem cômica do clown, como também encontrar o
esvaziamento proporcionado pelos exercícios de iniciação ao clown a partir do

33
confronto do ator com suas fragilidades na criação de um jogo que possa ser
utilizado em um possível treinamento do ator em seus processos de criação para que
através da diminuição da autocrítica ele possa alcançar um estado de presença em
sua atuação.
• 3ª - Escolhemos o riso por termos estudado a linguagem cômica através do módulo
de comédia ministrado pela professora Ana Luiza Cardoso e com esta linguagem
termos nos identificado em nossos estudos. Mas não necessariamente o que
fizéssemos durante o jogo faria o público rir, muitas pessoas possuem uma reação
diferente para cada ação. Apesar de nosso objetivo no jogo ter sido fazer os
espectadores rirem.

Comunicação:
Percebemos que só pelo fato de estarmos realizando “qualquer coisa” para fazer
o público rir não significaria que seria engraçado. Pelo contrário, quando fazíamos um
movimento sem estabelecermos uma comunicação ou relação com algo era desinteressante
e podíamos perceber pela reação do público.
Isso nos forçava a buscar uma forma mais autêntica, mais proximal de nos
comunicarmos. Uma comunicação mais íntima com cada espectador. Muitas vezes essa
comunicação mais íntima com somente uma pessoa, proporcionava o interesse de outras e
também o riso delas.

Autocrítica:
Os espectadores percebiam o momento em que nos criticávamos – quando
desistíamos de continuar um movimento. Eles acreditavam que se continuássemos o
movimento, com certeza conseguiríamos fazer alguém rir.
Nós também percebíamos quando estávamos nos julgando. Ou então quando
estávamos fazendo “de qualquer jeito”.
Quando conseguíamos fazer alguém rir e a partir deste momento também ríamos
junto, não aceitávamos o nosso próprio riso como sendo parte do estado de presença
alcançado e perdíamos o estado presente alcançado para começarmos outra relação. Ao
invés de utilizarmos o estado da risada em nossos improvisos com o texto.

34
Esvaziamento:
Quando percebíamos que estávamos nos criticando ou fazendo “de qualquer
jeito” a ação, tentávamos nos esvaziar para olhar através do público, de suas reações para
compreender o que eles queriam para poder fazê-los rir. Ou seja, nos modificarmos através
dele para alcançar um esvaziamento.
Às vezes, o esvaziamento era voluntário, outras vezes era produzido. Nós o
produzíamos quando tínhamos a consciência da autocrítica e então nos forçávamos ao
esvaziamento interior de pensamentos para estarmos mais presentes.

Texto:
Quando conseguíamos fazer o público rir, inseríamos o texto que havíamos
decorado. As pessoas que riam saiam do jogo e assim, começávamos a falar o texto para
aqueles que ficaram.
No início o processo de inserir o texto dentro do estado de comunicação que
havíamos estabelecido com o público, era mais lento. Como se alcançássemos um estado de
presença durante a relação com os espectadores e deixássemos de lado toda a comunicação
e presença psicofísica alcançada só para falar o texto. Ou seja, não utilizávamos os
estímulos presentes nessa comunicação para desenvolvermos nosso texto. Havia uma
quebra de raciocínio na passagem do jogo para a fala do texto. Ficávamos fechados a um
certo padrão de como falar o texto – já criado em nosso corpo e voz e estabelecido em
nossa mente - sem novos movimentos, nuance de voz, utilização dos estímulos.
Posteriormente tivemos a consciência de que éramos livres para criar utilizando
os estímulos do jogo na improvisação do texto falado. Assim, nossa compreensão foi
aumentando e começamos a utilizar não só o estado de presença alcançado, mas, o corpo
novo que fora descoberto, a respiração e muitas vezes a seqüência de raciocínio que
estávamos tomando no jogo. Ao invés de abolirmos por completo o que havíamos
alcançado até o momento do riso dos espectadores.
Notamos também que quando estávamos falando o texto e durante a fala
desviávamos o olhar e conseqüentemente a atenção do público, na maior parte das vezes os
espectadores pediam que parássemos de falar o texto. Isto também acontecia quando nos
distanciávamos dos estímulos que eles estavam nos dando para irmos buscar através da

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racionalização os estímulos para a improvisação do texto. Ou então acontecia de falarmos o
texto sem vontade, só para cumprirmos uma regra e então nos fechávamos à comunicação
do público.
Havia casos em que, mesmo tendo feito o público rir não achávamos que era
conseqüência de uma certa relação que havíamos estabelecido com ele. Levando-nos a
talvez pensar que quando isto acontecia era por que havíamos estabelecido uma certa
comunicação com o público, mas não notávamos, ou que talvez não se possa comparar e
relacionar o sentimento de comunicação que o ator sente em relação ao público e o
sentimento de comunicação que os espectadores sentem em relação ao ator.

Ação:
Podemos notar através da gravação que fizemos do jogo que para fazer o
público rir era preciso estar o tempo todo em movimento e quando parávamos, notava-se
que era porque estávamos pensando no que fazer. Ou seja, para que estivéssemos sempre
em comunicação com o público era preciso estar realizando sempre alguma ação ou
movimento. Por que, se parássemos talvez fossemos buscar através da racionalização
algum modo de fazer o público rir, formulando as ações em nossos pensamentos.
Notamos que fazíamos mais movimentos aleatórios do que ações físicas
propriamente ou algo que fizesse relação com algum tema. Encontramos neste dia maior
disponibilidade para a criação a partir dos estímulos do corpo e sua utilização nas
improvisações para fazer o público rir. Era muito constante a utilização de movimentos
cotidianos, gestos prontos, conhecidos.
Apesar de tudo notamos que fazer “qualquer coisa” era diferente de fazer de
“qualquer jeito”. Às vezes, estar fazendo “qualquer coisa” nos ajudava a encontrar algo
novo, diferente.
Consideramos a expressão “qualquer coisa”: desde o maior movimento ao
menor gesto, um olhar, uma ação, tudo que viesse na nossa cabeça durante o jogo e que
estivéssemos com vontade de realizar. E consideramos “de qualquer jeito”: a falta de
objetivo no jogo, a preguiça de realizar o exercício proposto, o desânimo, a falta de
comunicação com o público e relação com os estímulos que ele dava.

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2° Dia de Experimentação Prática: 04/09/07.

Começamos novamente a realização da Experimentação com a explicação a


respeito do jogo e desta vez já estabelecendo que as pessoas que rissem deveriam se retirar
da sala. Neste dia já havia novas pessoas participando do jogo. E também algumas pessoas
que estavam presentes no dia anterior.

Comunicação:
Tanto as relações com as novas pessoas quanto as relações com as já conhecidas
trouxeram uma outra interação durante o jogo, outra comunicação. Nos parece que criamos
um certo tipo de raciocínio no qual, se realizássemos alguns movimentos aleatórios em
algum momento do jogo alcançaríamos um estado de comunicação com o público. E
ficamos confiantes de que isto aconteceria.
Já esperávamos que o público risse, de uma forma ou de outra. O que achamos
ter dificultado ainda mais nosso jogo. Neste caso, o público ficou mais de cinco minutos
sem rir, o que não aconteceu no dia anterior.
Sabíamos que tanto o público do dia anterior como o deste dia esperava que fizéssemos
algo engraçado, e isso também dificultava para nós no jogo o trabalho criativo.

Autocrítica:
Nos sentíamos obrigados a fazer algo engraçado – embora tenhamos estipulado
este fato como uma regra do jogo. No dia anterior não nos sentíamos de fato obrigados,
como se não precisássemos nos sentir de tal forma, pois já estávamos realizando suas regras
naturalmente, sem que estivéssemos conscientes delas, porém, realizando-as.
Inevitavelmente ficávamos fazendo comparações entre a realização do jogo
deste dia e o jogo do dia anterior. Estas comparações fizeram com que deixássemos de
realizar certos movimentos ou ações pelo fato de estarmos diante do público que já havia
presenciado o jogo no dia anterior e pelo medo de repetirmos alguns gestos usados no dia
anterior.

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Percebemos que isto diminuía a nossa capacidade de disponibilidade perante o
público, porque estávamos apreensivos em saber que eles poderiam reconhecer nossos
gestos e movimentos, caso repetíssemos eles.
Então reduzíamos pelo medo nossa capacidade criativa e não só pelo medo,
mas, pela autocrítica que sentíamos de estar realizando algo parecido. O que na ocasião nos
produzia algum tipo de pensamento, de vergonha e aflição fazendo com que não
arriscássemos.
Notamos que muitas vezes estávamos realizando apenas “clichês” ou “qualquer
coisa” diante do público apenas para fazê-lo rir (que era nosso objetivo), porém, a
consciência demasiada deste fato em vários momentos nos proporcionava uma autocrítica.
Que não permitia pensar que através de “qualquer coisa” talvez pudesse surgir uma
espontaneidade criativa, um esvaziamento para alcançarmos a comunicação com o público.
Em vários momentos questionávamos a nós mesmos dentro do jogo, se
estaríamos fazendo certo ou não, ou se podíamos fazer “isso” ou “aquilo”. Acreditamos que
estes tipos de pensamentos e dúvida façam parte do quadro da autocrítica – que impedia
nosso esvaziamento.

Ação:
Pelo fato de termos assistido à gravação que fizemos do jogo do dia anterior
criamos já em nossa mente alguns pensamentos a respeito do que havia acontecido, tanto na
comunicação com o público, como da própria descoberta a respeito da autocrítica e do
esvaziamento no dia anterior. O que nos levou a querer no dia atual explorar movimentos
mais sutis, pelo que vimos no dia anterior, a realização de vários movimentos aleatórios
com muita agilidade entre eles. Apenas como uma forma de pesquisarmos outras nuances
no jogo.
Porém, acreditamos que este fato tenha impedido – embora não tivéssemos
realmente estipulado fazer os movimentos mais sutis – de explorarmos mais as diversas
possibilidades do corpo e de estarmos mais disponíveis para a criação – o esvaziamento.
Involuntariamente ficamos presos a um tipo de pensamento e não conseguimos
mais jogar de outra forma.

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Comunicação:
Notamos que esta nova forma que encontramos de descobrir os movimentos,
sendo mais detalhada, nos modificou bastante. Fazendo com que pesquisássemos outra
forma de comunicação com o público. A comunicação que tentávamos estabelecer com ele,
com seus olhares e a nossa atenção aos seus estímulos que ele dava fazia com que
buscássemos corresponder a ele e conseqüentemente, fazê-lo rir. Ou seja, através do
público, nos modificarmos para alcançar nosso objetivo.

Esvaziamento:
Quando percebíamos que estávamos nos questionando demais no jogo, e nos
criticando, primeiramente ficávamos preocupados se o público estaria percebendo nossa
situação – vergonha do público. Depois tentávamos imediatamente abolir a autocrítica
exagerando nos movimentos para sairmos de qualquer racionalização. Se, percebíamos que
não estava funcionando, mantínhamos um contato visual maior com o público e
realizávamos as ações tentando buscar estímulos em qualquer movimento dos espectadores,
de suas respirações, seus ritmos, seus olhares, para deles extrair uma criação significativa
que os fizessem rir.

Texto:
Também pelo fato de termos assistido à gravação da experimentação do dia
anterior, criamos condições já estabelecidas em nossa mente como: explorarmos mais a
relação de comunicação com o público utilizando a continuação da mesma linha de
raciocínio entre a improvisação do jogo e a fala do texto. Já falávamos o texto visando
alcançar uma maior comunicação com o público, utilizando todos os estímulos para atingir
esta relação com ele.
Porém, notamos que o fato de termos estabelecido uma linha de pensamentos
em nossa mente para realizá-los no jogo tornou possível que já entrássemos, no momento
do texto, interessados em verificar este estado de presença do ator, a comunicação que
estabelecemos com ele e como poderíamos manter cada vez mais este mesmo estado de
presença em nossa atuação.

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3° Dia de Experimentação Prática: 05/09/07.

Depois de termos feito novamente as explicações sobre o jogo para os


espectadores incluímos neste dia uma nova regra: cada espectador que risse, ao invés de
sair imediatamente, como estipulado, deveria permanecer, para que nós falássemos o texto
olhando para estas pessoas, e quando o público não estivesse mais satisfeito com nossa
improvisação e pedisse para pararmos, aí sim os espectadores que riram deveriam sair da
sala. Nos dois dias anteriores realizávamos a improvisação do texto depois que as pessoas
riam e saíam da sala e falávamos o texto para aqueles que tinham ficado nela.
Neste dia o número de espectadores era menor que os dois primeiros dias.
Guardávamos uma sensação de que algo muito interessante aconteceria. Sentíamos também
uma vontade de não fazermos nada para do nada tudo fazermos.
Parece-nos que através da consciência que tínhamos dos jogos realizados nos
dois dias anteriores já utilizávamos uma certa técnica apreendida para fazermos o público
rir. Pudemos perceber-nos desleais aos objetivos do próprio jogo.
Quando percebíamos, tentávamos nos esvaziar e simplesmente fazermos algum
movimento, seja ele qual fosse, tirado do nada, para que o estímulo que ele causasse em
nosso corpo fosse levando a outros movimentos e a possíveis ações.

Ação:
Era muito complicado que não testássemos essa facilidade de conseguirmos
fazer os espectadores rirem depois que descobrimos uma forma mais concreta de
alcançarmos nosso objetivo. Ou seja, Já sabíamos que determinadas atitudes do corpo,
algumas máscaras faciais faziam com certeza os espectadores rirem. Tivemos que
experimentar para ver se realmente funcionava. E sim, funcionava, o que era fácil tornou-se
mais fácil ainda.

Texto:
Durante o jogo pudemos perceber que a nova regra estabelecida de falar o texto
olhando para quem tinha rido, ou seja, para os espectadores com os quais havíamos
estabelecido uma certa comunicação e encontrado um estado de presença, funcionava mais

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no que diz respeito à utilização da seqüência de raciocínio que estávamos estabelecendo
durante o jogo na transposição do estado de presença alcançado para o texto falado.
E também para que pudéssemos manter ainda mais o estado de presença
alcançado, verificando até que ponto podíamos seguir com ele e o que acontecia conosco
para que os espectadores não quisessem mais que continuássemos falando o texto.

Comunicação:
Notamos nos dias anteriores que o fato de desviarmos o olhar dos espectadores
ou nos afastarmos deles e dos estímulos que propunham a nós fazia com que eles se
desinteressassem. Neste dia, pudemos notar que quanto mais desejávamos fazer com que o
público entendesse o que estávamos falando no texto, mais eles ficavam interessados em
saber o que nós estávamos falando. Ou seja, quanto mais desejávamos manter uma
constante comunicação com o público, mais ele desejava saber por que queríamos manter
esta comunicação com ele.
Aconteceu de termos feito todos os espectadores rirem e de ter sobrado apenas
um espectador, o que já teria acontecido nos demais jogos nas outras experimentações,
porém, neste caso ficamos quase uma hora somente testando e verificando até fazê-lo rir.
Mas, como não procurávamos somente o fácil e após termos verificado essa
nuance em nosso jogo, resolvemos testar o uso de movimentos aleatórios para se chegar a
um estado de presença. Vimos que não, pelo menos neste caso, pudemos notar que os
movimentos e ações que eram feitos sem qualquer ligação com o espectador ou uma
referência a ele, que o fizesse saber que nosso objetivo era com ele e para ele, não
causavam efeito algum no espectador.
Mesmo assim, depois de muitas tentativas de esvaziamento e dedicação em
busca do que realmente o espectador estava nos comunicando pudemos perceber que em
vários momentos realizávamos ações semelhantes e repetíamos propositalmente alguns
gestos ou movimentos que já havíamos realizado para tentarmos causar alguma referência
ao espectador e fazê-lo rir.
Buscávamos imitá-lo para ver se o espectador se afetava com suas próprias
características e ria com elas. Mas não alcançávamos resultado. Acreditamos que talvez

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tenhamos o imitado de tal forma que ao invés de tê-lo feito rir, tenhamos causado uma certa
irritação por estarmos algumas vezes debochando de sua imagem.
Tentamos várias formas de fazê-lo rir e até retiramos algumas partes de nossa
roupa, como, a touca e uma blusa (havendo outra por baixo). Ou seja, saindo um pouco do
que havíamos estipulado a nós mesmos, mas não como regra - que era uma certa
neutralização nossa visualmente para que não desviássemos a atenção dos espectadores ao
que não fosse estritamente essencial. Porém, já estávamos recorrendo a todos os tipos de
ações possíveis para conseguir fazê-lo rir que não nos preocupamos se a nossa roupa ou
utensílios fosse desviar sua atenção.
Em algumas etapas deste jogo pensamos em desistir de fazer o espectador rir,
pois nos víamos recorrendo a ações repetidas, gestos prontos, atitudes banais, e sem
nenhum resultado. Estávamos frustrados por não estar conseguindo fazê-lo rir e com
vergonha de estarmos tentando fazer de tudo, porém nada conseguindo fazer. Não sabíamos
realmente se já havíamos tentado de tudo.

Autocrítica:
Foi quando houve um momento em que falamos no exercício, e quando isso
acontecia o espectador pedia para que imitássemos algo. Neste caso ele nos pediu para que
imitássemos uma dançarina de Streap Tease. No momento, não sabíamos o que fazer. Se,
ríamos da situação, se aceitávamos o que nos foi pedido (o que era uma regra do jogo), ou
se dentro da imitação criávamos subterfúgios para não realizar a tarefa, pois estávamos com
vergonha de termos que tirar alguma parte de nossa roupa na sua frente e na frente dos
outros espectadores que já haviam saído do jogo, ou se ainda deveríamos realmente imitar
fielmente o que nos era pedido já que não havíamos estipulado nada a esse respeito.
Neste momento pensamos no que seria melhor para o que estávamos propondo
em nosso projeto experimental. Começamos querendo exagerar nas características da figura
da dançarina, ou seja, nos clichês, mas vimos que era insatisfatório tanto para o espectador
quanto para nós. Tentamos então realizar a imitação da forma mais verossímil possível,
porém, como vimos que realmente não estávamos dispostos a tanto, ou que pelo menos não
estávamos disponíveis, desistimos e resolvemos novamente apenas brincar com a imitação.

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Findou em realizarmos o pedido, porém, muito envergonhados, acabamos
dentro da imitação fazendo mais um estilo da figura da streaper do que propriamente a
imitação como seria. Neste momento, o espectador pediu para que parássemos, como era de
costume se não estivéssemos sendo satisfatórios a ele. Agradecemos muito por isso no
momento, interiormente.
Neste caso pudemos notar claramente o efeito do jogo a respeito da
autoconsciência de nossas fragilidades, da autocrítica em nosso trabalho, de nossos medos,
barreiras, vergonhas, ridículos. E sabemos que também fomos notados pelo espectador,
pelo menos acreditamos que sim.
Neste momento, pudemos nitidamente fazer a relação deste jogo com os
exercícios de iniciação ao clown, aonde éramos levados a nos confrontar com nossos
ridículos e barreiras, bem como a autocrítica no nosso caso, para deste encontro alcançar
um esvaziamento e poder estar disponível e livre destas barreiras ou então utilizá-las nos
exercícios, a fim de obter uma comunicação com o público, o estado de presença na
atuação.

Esvaziamento:
Talvez a experiência da imitação da dançarina não tenha tido seus resultados
imediatamente, mas para que conseguíssemos fazer este espectador rir foi necessário no
final do jogo que imitássemos com uma meia (que havíamos justamente retirado de nosso
pé ao imitarmos a dançarina de streape tease) o seu órgão genital.
Quando iniciamos a imitação a princípio ficamos novamente com vergonha de
estarmos lidando com aspectos sexuais em nosso trabalho, porém, depois de termos
lembrado da experiência da imitação da dançarina streaper, resolvemos ir em frente,
esvaziando-nos e verificando se realmente já havíamos tentado de tudo. E então realizamos
a ação fazendo referência a uma outra que já havíamos realizado, para que ele fizesse a
relação em sua mente e enfim se identificasse e risse. Foi o que aconteceu, ele riu.
Neste momento ficamos todos tão eufóricos que nem lembramos de falar o texto
para ele, após tê-lo feito rir. Estávamos todos apenas curiosos em saber o que realmente
causou o riso ao espectador.

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7. CONCLUSÃO

Vi que não há Natureza,


Que Natureza não existe. (...).
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas idéias. (...).
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.(...).
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.

Alberto Caeiro
Fragmento XLVII – O Guardador de Rebanhos

Verificamos primeiramente nesta pesquisa que um pesquisador seja de que área


for deve doar-se inteiramente à realização de seu estudo. Seja voluntária ou
involuntariamente. Porque involuntariamente?
Notamos que mesmo durante a construção desta pesquisa não havíamos ainda
verificado o quanto ela exercia influências sobre nós em nosso cotidiano. Somente a partir
da perspectiva de pesquisadores foi que percebemos o quanto já participávamos
inteiramente do processo criador.
E quão interessante foi ver a vontade que nasce de um pesquisador de alcançar
mais e mais os objetivos de sua pesquisa e como neste vasto campo do conhecimento as
informações e conteúdos se interligam. Porém como é sabido também compreender o
quanto nos debruçarmos em uma só questão e cada vez mais focarmos nela torna nosso
campo de atuação cada vez mais inteiro em sua realização e seguro em seu saber.
Acreditamos não ter ainda alcançado este mérito.
Compreendemos também que a pesquisa se torna realmente presente quando
resolvemos realizá-la sem almejar o fim, pois esta palavra, já traduz seu significado, já está
pressuposto encontrarmos um fim em nossa pesquisa, dure ela o tempo que for. Porém,
acreditamos que vivenciar ativamente, tomar decisões, raciocinar, estudar, viver, dialogar é
estar presente. O fim já está nele, para que acelerá-lo?

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Através da pesquisa pudemos perceber que estar presente constitui-se pelo
processo em que se vive. Que o estado de presença que desejávamos alcançar em nossa
atuação estava em não alcançá-lo e sim tornar possível através do nosso estudo criativo,
através do jogo criado, a sua presença.
Verificamos que o esvaziamento que alcançávamos através do jogo criado
tornava possível a construção de um estado vivo, presente. Mas por que, ao invés de
produzir o estado de presença, ele apenas tornava possível a sua construção? Pudemos notar
através de nossos experimentos práticos que tanto o esvaziamento como o estado de
presença são atitudes do corpo-mente que tornamos vivas a partir do momento em que
desejamos sua presença. Ou seja, quando aceitamos ser tocados pelos estímulos do outro e
pelos nossos próprios estímulos interiores, como a imaginação, a nossa vontade,
inspirações e atitudes físicas advindas do exercício. A partir desse momento, ficamos
dotados de um vazio interior que agora julgamos ser a vontade plena de estarmos presentes.
Percebemos que através do jogo “Fazer Rir é Fácil?” a capacidade, a liberdade
de podermos fazer “qualquer coisa” para alcançarmos nosso objetivo – que era fazer os
espectadores rirem - nos ajudava na medida em que, de todas as coisas que realizávamos,
seja do maior gesto para o menor gesto, podíamos verificar alguns momentos que de tudo
surgia o nada – o esvaziamento. E que só era possível o surgimento do nada por que
fazíamos tudo, ou seja, no momento em que deixávamos nossa criatividade fluir
completamente ao realizarmos qualquer exercício, movimento, gesto ou ação.
Porém, o fato de estarmos realizando “qualquer coisa”, não significava que
alcançaríamos um esvaziamento, pois somente com o estudo de nossos impulsos, de nossas
vontades, dos nossos ridículos que podíamos nos conhecer e através deste conhecimento,
verificarmos as nuances de comunicação que poderíamos estabelecer com o público a fim
de fazê-los rir.
Acreditamos que foi necessário experimentar este jogo por encontrarmos
realmente muito forte a presença da autocrítica em nossos trabalhos. Fato este que nos
impedia de realizarmos nossa vontade, nossos desejos em cena.
A hipótese de que o jogo criado proporcionaria um esvaziamento e
conseqüentemente a diminuição da autocrítica, foi confirmada. Notamos que através do
confronto com nossas próprias barreiras, nossos medos, nossas características ridículas e

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nossa própria autocrítica a respeito delas fazia com que tivéssemos o desejo de nos esvaziar
para podermos alcançar um estado de presença no jogo. Percebíamos que este
esvaziamento acontecia voluntária e involuntariamente. Ou seja, quanto mais percebíamos
a presença da autocrítica na realização do jogo, mais sentíamos a vontade de nos esvaziar
de quaisquer pensamentos que estivessem impedindo um estado criativo. Isso tornou
possível que adquiríssemos uma certa prática em buscarmos o esvaziamento.
Consideramos através de nossos estudos práticos que encontramos um hábito,
de fazer “qualquer coisa” quando notávamos a presença da autocrítica, visando a
comunicação com o público, para desta relação encontrarmos um esvaziamento. Mas como
poderíamos encontrar um esvaziamento através da comunicação?
Verificamos que só era possível alcançar um esvaziamento de acordo com os
estímulos que o público oferecia e também, como dito anteriormente, pelo desejo de
querermos nos disponibilizar a estes estímulos. Sendo assim, quando estávamos realizando
todas as coisas necessárias para fazermos o público rir, notávamos pelo seu olhar ou
podíamos perceber por uma regra estabelecida pelo jogo – quando pediam para parar a ação
– se o que estávamos fazendo era satisfatório ou não ao público. Quanto mais ouvíamos
seus pedidos para pararmos, mais tentávamos realizar coisas diversas para fazê-los rir. E
isto fazia com que nos confrontássemos com nossas características ridículas e nossas
fraquezas, ou pelo menos o que achávamos que fossem.
Porém, enquanto não buscávamos interiormente uma significação verdadeira
que estivesse relacionada ao desejo do público, aos estímulos que eles ofereciam, não
alcançávamos um pleno estado de vazio interior, ou seja, neste momento, não
considerávamos mais nossos pensamentos como autocrítica, por já estarmos em um estágio
tão avançado de desejo de fazer o espectador rir que somente buscávamos o imenso vazio
dentro de nós que se comunicasse com o imenso vazio do espectador. O que nos levava a
alcançar enfim o estado de presença, a nossa comunicação.
Era a este “vazio” que procurávamos no início desta pesquisa como forma de
nos livrar de nossa autocrítica para alcançarmos um estado de presença em nossa atuação e
através de nossa pesquisa prática foi este mesmo “vazio” que encontramos. Porquanto, nos
consideramos vitoriosos nesta pesquisa.

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Sendo assim, acreditamos que o “vazio” ao qual Peter Brook se refere, no qual o
ator está em completo equilíbrio com seu corpo-mente, tendo pleno domínio do que realiza,
encontrando-se aberto e disponível com sua mente em estado de alerta pode se relacionar
com o “vazio” que encontramos em nossa pesquisa.
Acreditamos que nossa pesquisa contribua com o pensamento criador do ator,
ou seja, na evolução de sua compreensão a respeito de uma busca criativa pela
multiplicação do conhecimento através da comunicação que estabelece com o público.
Eliminando quaisquer barreiras que possam dificultar em seu processo, tais como a
autocrítica. Acreditamos que a criação do jogo “Fazer Rir é Fácil?” foi proveitoso não só
nesta pesquisa, a fim de comprovarmos um possível esvaziamento do ator para se alcançar
um estado de presença em cena, mas também na comprovação de que cada um é capaz de
criar e pesquisar formas de alcançar seu objetivo, quando o projeto é imbuído de vontade e
desejo.
Também concluímos que, apesar de termos relutado a respeito da criação de um
jogo, por não nos acharmos capazes de realizar tal tarefa, nosso objetivo ao final foi de tal
forma lucrativo que nem se quer pensamos, ao criá-lo, no valor que ele teria em nossa
pesquisa. Somente agora podemos ver que os resultados obtidos além de nos encorajarem a
guiarmos nossa profissão aos aspectos do ensino, também nos levam a crer que ele possa
ser usado durante os processos de criação de atores independente da linguagem teatral que
estiverem usando em seus trabalhos. A fim de encorajar a eliminação da autocrítica em seus
processos e o conhecimento de estados criativos únicos e plenos.
Nosso objetivo ao início desta pesquisa foi buscar pela aceitação de nossos
próprios pensamentos criativos, de nossas vontades, realizando em ações nossas próprias
descobertas, quebrando as barreiras que nos impedem de experimentar novas idéias em
nosso trabalho criativo. Agora podemos afirmar que o confronto com nossas fragilidades,
nosso ridículo deu-se em entendermos o quanto todos nós somos únicos e essenciais à
existência de um todo. E quanto a aceitação de nossas próprias características pode influir e
ajudar no crescimento e evolução do próximo. O quanto estar presente significa aceitar o
momento presente, em desejá-lo e lutar por ele. Consideramos hoje que não precisávamos
ter denominado nossas características como ridículas, ou como fraquezas e medos, mas
sim, apenas como características.

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8. FONTES CONSULTADAS

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ferramenta para o esvaziamento do ator. Rio de Janeiro: UniverCidade/Curso de Tecnologia
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48
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TESSARI, Roberto. Instituto di storia dell’arte da universitá di Pisa. Carta à Ana Elvira
WUO. Ripafratta – Itália, 20 giug. 1997.

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9. ANEXOS

Anexo 1

Trecho da obra Companhia, de Samuel Beckett utilizado na realização da


Experimentação Prática do Projeto de Pesquisa - FAZER RIR É FÁCIL?
UMA BUSCA PELA DIMINUIÇÃO DA AUTOCRÍTICA ATRAVÉS DA COMUNICAÇÃO
DO CLOWN – por Isabel De A. Carvalho. Orientado por Vitor Lemos.

“Se a voz não está falando com ele, deve estar falando com outro. Assim
raciocina com a pouca razão que lhe resta. Falando com outro, daquele outro. Ou dele. Ou
de um outro mais. Com outro, daquele outro ou dele, ou de um outro mais. De qualquer
forma, com alguém deitado no escuro. De alguém deitado no escuro, seja este o mesmo
escuro ou outro qualquer. Assim, com a pouca razão que lhe resta, ele raciocina, e
raciocina mal. Pois se a voz não está falando com ele, mas com outro, então deve estar
falando daquele outro e não dele ou de um outro mais. Já que fala na segunda pessoa. Se
não fosse sobre ele e dele que está falando, se está falando de outro, não falaria na
segunda pessoa e sim na terceira. Por exemplo, Ele viu a luz pela primeira vez em tal e tal
dia, e agora está deitado no escuro. Portanto, é claro que, se a voz não está falando com
ele, mas com outro, também não fala dele, mas daquele outro e de ninguém mais, e com
aquele outro. Assim, com a pouca razão que lhe resta, ele raciocina mal. Para servir de
companhia, tem que demonstrar uma certa atividade mental. Mas esta não precisa ser
muito complexa. Certamente pode-se argumentar que quanto mais simples, melhor. Até
certo ponto. Quanto mais simples o tipo de atividade mental, melhor a companhia. Até
certo ponto”.

Anexo 2

DVD com a gravação das Experimentações Práticas realizadas pela aluna Isabel
Carvalho na UniverCidade durante a pesquisa do jogo: Fazer Rir é Fácil?.

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Anexo 3

Abaixo relatamos alguns exercícios ou jogos estudados durante o módulo de


comédia ministrado pela professora Ana Luiza Cardoso, que foram essenciais para a
criação do jogo “Fazer Rir é Fácil?”. Porém não sabendo o nome de cada jogo – apenas o
jogo do Platô - resolvemos nomeá-los de acordo com a característica de cada um. Os jogos
estudados foram:

1° jogo: O Tapa

• Um jogador dá um tapa na parte superior das costas de outro jogador sem falar
nada.
• O jogador que levou o tapa tem que falar o nome de outro jogador do grupo (que
esteja presente e participando do jogo). Mas não pode falar o nome do jogador que
deu o tapa nele.
• Cada jogador que escutar seu nome sendo chamado deve dar um tapa em um
jogador.

2° jogo: Batatinha frita 1,2,3!

• Um jogador fica em um canto da sala, de costas para o restante dos jogadores.


• Os demais jogadores estão no outro extremo da sala, olhando para o jogador que
está sozinho.
• O objetivo do grupo de jogadores é encostar no jogador que está de costas.
• O jogador que está sozinho, pode virar-se às vezes para o grupo e olhá-los. E se ao
virar ele vir uma pessoa se mexendo, esta pessoa sai. Com a condição de que se ele
conseguir fazer algo engraçado para os demais jogadores e a maioria aceitar e
gostar, ele pode continuar a jogar.

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3° jogo: Olhar com o Nariz

1° passo - os jogadores devem estar espalhados pela sala.


• Eles seguem uma seqüência de ações que consiste em: parar, escolher um ponto fixo
na sala (que esteja na altura do olhar, na direção dos olhos) e ir a direção deste
ponto.
• Um instrutor deve dizer para eles pararem, ou continuarem, alternando os ritmos e
velocidades.
• Após este passo, o instrutor pode indicar que façam um pulo ou uma pirueta, um
desmaio, na hora em que pararem, e depois podem continuar.
2° passo - separa-se o grupo em duas partes: uma parte assiste e a outra realiza o exercício.
• Os jogadores que estão realizando o exercício fazem a mesma coisa do 1° passo,
com os saltos, piruetas e desmaios incluídos. Mas desta vez, devem fazer a ação e
depois ficar olhando para o público (esperando a reação dele – como quem diz “olha
como minha ação é linda”).
• Ou alternar a seqüência: primeiro parando, depois olhando para o público e depois
fazendo a ação (olhando para o público).

4° jogo: História

• Um jogador sentado em uma cadeira de frente para os demais jogadores- que estão
como espectadores – conta uma história (utilizando as regras gerais*)
• Pode-se variar o dialeto, como contar a história em japonês, alemão, russo,
inglês.etc.

5° jogo: Luta de Karatê

• Dois jogadores ficam frente a frente, e diante o público.


• Preparam-se para uma luta de Karatê. Os jogadores se cumprimentam, olham para o
público.

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• O primeiro jogador a dar o golpe, deve fazê-lo olhando para o público, após a ação
retorna o olhar para o jogador a sua frente e este olha para o público, dá o golpe
(olhando para o público) e ao término da ação retorna o olhar para o outro jogador.
• Depois os jogadores podem acrescentar sons aos golpes; outras línguas.
• Pode-se fazer, utilizando máscara.
• E utilizando outras situações fora a luta de karatê, como pedir aos jogadores que
falem que nem leiloeiros, feirantes, vendedores de carro – Mas sempre dentro das
regras estabelecidas no jogo. *Utilizando as regras gerais.

* Regras Gerais:

• FOCO – olhar com o nariz – na direção do seu olho com o da outra pessoa em
relação.
• 3 SEGUNDOS – para realizar uma ação ou para responder ou fazer uma pergunta,
deve-se esperar 3 segundos. Para que haja tempo de formatar o seu pensamento e
evitar desperdícios com falas inúteis. Formular a pergunta coerentemente, e quando
estiver certo daquilo que você quer falar, aí sim pode fazê-lo.
• PROTAGONISTA - Fazer uma ação somente quando alguém estiver olhando para
você. Fazer a ação olhando para esta pessoa, com o foco nela. Parar quando
ninguém estiver olhando, até que alguém o veja e aí sim você pode continuar sua
ação.
• VOU FAZER – avisar quando for tossir, espirrar, bocejar, rir, e principalmente se
for pensar – aí a pessoa pode desviar o olhar e pensar, depois volta o olhar para as
outras pessoas e continua a ação ou a fala.
• 3 VEZES O ERRO – cada vez que a pessoa falar “ééé...” deve repetir 3 vezes –
menos quando este “é” for referente ao verbo ser.
-Ao errar, ou seja, quebrar as Regras Gerais, deve-se repetir três vezes o erro,
minuciosamente igual à primeira vez.
• PERCEPÇÃO – quando perceber um barulho, ou algo que não havia o
conhecimento de que aconteceria, deve-se parar o que está fazendo, olhar para o

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acontecido, ou para onde surgiu o barulho, constatar e continuar a ação que estava
fazendo.

6° jogo: Platô

O platô consiste em um jogo que sugere uma plataforma apoiada por um único
pino, aonde os atores devem entrar e durante o jogo estabelecer o equilíbrio desta
plataforma. Desta forma exercitando o jogo e a harmonia entre o grupo, para que durante a
cena um ator não se sobressaia mais que o outro, todos trabalhem em grupo.
Este jogo é utilizado por Mario Gonzáles e também por Ana Luiza Cardoso, a
qual acrescentou algumas palavras e algumas movimentações após ter trabalhado por
muitos anos com o jogo, continuando até hoje a trabalhar com ele.

PLATÔ

(COXIA)

O platô é jogado dentro de um círculo perfeito. Pode ser jogado com mais de
oito pessoas. Porém, para iniciar o jogo devem estar presentes no mínimo quatro pessoas.
Em volta do platô os jogadores devem dispor as cadeiras onde ficarão sentados
antes do jogo começar, e também aonde os demais jogadores, que não entrarão inicialmente
no jogo, deverão ficar.

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Portanto, é necessário que as cadeiras fiquem dispostas de forma que não
atrapalhe a visão de nenhum jogador e o equilíbrio do jogo.

Como jogar:
• Os jogadores ficam sentados em volta do platô.
• Dispostas ao redor do círculo do platô deverão ser feitas até no máximo oito
coxias17, que deverão ficar uma de frente para a outra, formando uma cruz, porém
devem ser tangentes ao círculo – as coxias podem ser feitas com fita crepe.
• As coxias são especificamente formadas por um desenho em forma de “T”, em que
o traço horizontal fica tangente ao círculo e o traço vertical fica exatamente no meio
do traço horizontal, exatamente formando a letra “T”.
• Atrás de cada coxia os jogadores deverão se posicionar de forma que seus pés
fiquem exatos de cada lado do traço vertical, correspondendo a mesma medida que
cada pé está em relação ao traço. Sendo que eles devem estar atrás do traço
horizontal, não devem ultrapassar o traço.
• Utilizando a regra, para começar, os próprios jogadores deverão decidir quem está
disposto a jogar ou não.
• Ao entrarem em um acordo, os jogadores se olham, vêem quem está jogando e,
partindo do princípio do menor esforço para o grupo todo – parceirismo entre o
grupo, a escolha que for melhor para todos -, decidem para que “coxia” deverão se
deslocar.
• Cada pessoa só pode ir até sua coxia se outro jogador estiver olhando para ele.
• Ao chegar na coxia, todos os jogadores se olham e a partir daí cada um, na sua
coxia, irá se preparar para entrar no platô.
• Este é momento no qual cada um irá ajeitar seu pé para ficar simetricamente igual
de cada lado e depois ir se concentrando, relaxando a coluna, respirar, fechar os
olhos. Depois, pode ir desenrolando a coluna até chegar no topo, por último levanta
a cabeça e só então pode abrir os olhos.
• Os que forem abrindo os olhos primeiro devem ir procurando aquele que ainda não
abriu, passando o olhar rapidamente para os outros participantes – quando observar
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Termo utilizado pela professora Ana Luiza Cardoso.

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que os outros participantes já abriram o olho, deve passar o olhar imediatamente
para o outro que ainda está de olho fechado - até o último abrir o olho.
• Neste momento, o último jogador que abrir o olho, deve olhar para todos e ao ver
que foi o último, deve olhar para aquele que está à sua frente – imediatamente.
• Quem abrir o olho por último será o PROTAGONISTA.
• Aquele que está na frente do Protagonista será o CORIFEU.
• O Corifeu deve manter sempre o olhar no Protagonista – se ele desviar o olhar, o
protagonista morre (de acordo com o raciocínio do jogo) e se o Protagonista morrer,
todos morrem.
• *Quando um jogador morre, ele bate palma com as mãos uma vez, olha pra coxia de
onde começou o jogo e vai até ela, fica lá na parte de fora do círculo até poder
entrar no jogo novamente18.
• *Para entrar no jogo novamente, o jogador deve esperar o momento no qual o platô
está sendo equilibrado pela entrada de outro jogador no platô.
• *Então, o jogador se posiciona novamente na coxia, se prepara e faz novamente
todo o processo de fechar olhos. Quando abrir, deve olhar para o Protagonista que
está jogando e bater palma duas vezes com a mão, o que significa que ele está
avisando aos outros jogadores que está no jogo novamente.
• Quando houver um protagonista o jogo pode começar.
• Obs: se antes de começar o jogo houver uma dúvida entre os jogadores sobre quem
abriu os olhos por último, então aqueles jogadores que tem plena certeza de quem
foi, mantêm o olhar para ele e aqueles que estiverem em dúvida, olharão para aquele
cuja maioria está olhando, então este será o protagonista.
• Se houver algum movimento, algum barulho fora do platô antes de começar o jogo,
o Protagonista pode olhar, conferir o que aconteceu – e os demais jogadores o
acompanham com o olhar, olhando para onde ele olhar – e depois que tiver passado
o acontecido e todos estiverem concentrados no jogo novamente, o Protagonista
volta a olhar para o Corifeu e aí sim pode começar o jogo.

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Este momento do jogo foi inserido pela professora Ana Luiza Cardoso após ter realizado diversas vezes o
jogo do platô, tendo assim adicionado esta nova situação no jogo.

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• Para começar o jogo no platô, o Protagonista vai dar um passo para entrar nele, isso
significa que ele desequilibrou o platô, então assim ele também está convidando o
Corifeu para entrar no jogo.
• O Corifeu para aceitar o convite deve também dar um passo para entrar no platô –
após ter contado três segundos, só então pode dar seu passo.
• O primeiro passo do Corifeu é obrigatório.
• O protagonista pode então dar o segundo passo – que deve ser exatamente igual ao
primeiro, ou o mais semelhante possível que conseguir fazer – contando sempre os
três segundos.
• O segundo passo do Corifeu significa que ele aceitou o segundo passo do
Protagonista, ou seja, que para o Corifeu, o segundo passo dele foi igual ao
primeiro.
• *Neste momento do jogo, cada jogador que se encontrar como Corifeu ou
Protagonista deve ser sincero consigo mesmo para saber se o passo do outro foi
igual ou não. Não é necessário aceitar, o jogo não é pessoal, cabe ao jogador saber
se o passo foi ou não igual ao primeiro, aceitar ou não o passo do outro. Isso não
significa que ele gostou ou deixou de gostar. Não pode haver mentira na hora da
escolha – com medo de que o outro jogador não vá mais jogar, esse não é o objetivo
do jogo.
• Se o Corifeu não aceitar o segundo passo ou algum dos passos do Protagonista, este
deve escolher outro jogador que está fora do platô para entrar no jogo e equilibrar o
platô.
• O Protagonista deve escolher o jogador que estiver na primeira coxia à sua direita,
no sentido horário.
• O Protagonista escolhe o outro jogador depois que contou os três segundos após seu
passo e viu que o Corifeu não andou novamente, então ele sabe que o Corifeu negou
e, imediatamente deve olhar para o outro jogador fora do platô.
• O novo protagonista antes de entrar deve observar a distância do Ex-Protagonista ao
centro e a distância do coro – que agora é o antigo Corifeu, e o antigo protagonista
passa a ser o Corifeu – ao centro e equilibrar o platô quando for entrar, ou seja, deve

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estar na mesma distância que o protagonista estiver do centro do platô – se
posicionando à sua frente.
• *É neste momento que o jogador que morreu durante o jogo poderá entrar. Pois,
para equilibrar o platô, assim que o novo protagonista se posicionar perante o
corifeu, um jogador de fora deve se posicionar atrás do protagonista e verificar se
ele está exatamente na frente do corifeu, através da marcação do centro do platô e
depois se posicionar no meio do corifeu e do protagonista - na parte de fora do platô
- e verificar se ele está realmente posicionado na mesma distância que o corifeu está
do centro do platô. Depois que tiver verificado, o jogador de fora deve dar uma
palma para dizer se o protagonista deve andar pra frente para equilibrar o platô e
deve dar duas palmas para dizer se ele deve andar para trás. Se ele quiser posicionar
o protagonista à frente do corifeu, ele deve se posicionar atrás do protagonista e
esticar o braço para frente, para o lado que ele estiver precisando se deslocar – e
deve abaixar o braço só quando o protagonista estiver no lugar certo. Ao ver o braço
levantado, o corifeu deve fazer o mesmo, assim, o protagonista verá para que lado
deve ir. Quando o protagonista estiver chegado no lugar certo, o jogador abaixa o
braço e também o corifeu. Assim, o jogo foi equilibrado novamente.
• Se durante o jogo um corifeu (e o coro – se houver) não aceitarem o passo do
protagonista e este tiver que convidar outro jogador para o jogo, ele deve escolher
aquele jogador que se encontra na primeira coxia à sua direita, no sentido horário.
• Caso ele escolha um jogador que está na segunda coxia de sua direita para ser o
protagonista e este souber que o protagonista deve ser o jogador da primeira coxia,
o jogador da segunda coxia passa o olhar para o jogador da primeira coxia. Só então
os demais jogadores vão olhá-lo como o novo protagonista e ele poderá entrar no
platô.
• Quando um jogador que está fora passa a ser o protagonista, o ex-corifeu se
posiciona atrás do ex-protagonista – imediatamente, quando o novo protagonista
entrar no platô – virando assim, coro. O ex-corifeu deve olhar para o novo
protagonista quando o ex-protagonista o escolher. Vira seu corpo para o
protagonista que está fora, enquanto ele estiver medindo a distância exata para
entrar.

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• Quando o novo protagonista entrar, o ex-corifeu deve ir olhando para o protagonista
até ficar posicionado atrás do ex-protagonista, que agora se tornou corifeu.
• Se durante esse processo algum dos jogadores desviar o olhar do protagonista, esse
jogador morre. Então ele abaixa a cabeça, bate palma uma vez e se direciona pra
coxia aonde iniciou o jogo.
• Se algum dos jogadores que estiverem como coro e durante a mudança de
protagonista se posicionar fora do platô, este jogador também morre. E deve fazer o
mesmo processo.
• Se os jogadores forem aceitando os passos até chegar no meio do platô, eles então
abaixam a cabeça, olham para o centro do platô, fecham os olhos e pensam naquele
jogador – que estiver entre eles - que ainda não foi protagonista. Quando tiverem
certeza, então eles devem diretamente olhar para o jogador escolhido.
• A partir desse momento, o novo protagonista olha para o ex-protagonista, que agora
é corifeu, se posicionam na frente um do outro e os demais jogadores, que já estão
olhando para o protagonista se posicionam atrás do corifeu.
• O jogo começa novamente, após um jogador de fora ter equilibrado os jogadores no
platô.
• Sempre, em cada mudança de jogador como protagonista, um jogador que está fora
do jogo deve equilibrar o platô.
• Este jogador deve estar realmente fora do jogo, não pode ser um jogador que está
posicionado na coxia, preparado para entrar.

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