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Universidade Estadual de Campinas (uNicAmP) CARL E.

SCHORSKE
Reitor: Paulo Renato Costa Souza
Fdenador geral da universidade: Carlos Vogt

1z Aécio Pereira hagas, Alfredo Miguel Ozorio de Almei-


da, Attílio j ,_ Giarolá., Yara FrateSchi (presidente), Eduardo Roberto Jun-
queira Guimarães, Hermógenes de Freitas Leitão Filho, Jaytne Antunes
Maciel Junior, Luiz Cesar Marques Filho, Ubiratan D'Arnbrosio

Diretor executivo: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães .

VIENA FIN-DE-SIÈCLE
Rua Cecílio Feltrin, 253
Cidade Universitária — Barão Geraldo POLÍTICA E CULTURA
Telefone: (0192) 39-1301
13083 — Campinas — SP
Tradução:
DENISE BOTTMANN

2 reimpressão

EDITORA DA UNICAMP
COMPANHIA DAS LETRAS
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Nos anos 18~5 a 1900, quando Sigmund Freud, socialmente retirado
e profissionalmente frustrado, trabalhava na sua A interpretação dos
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sonhos, obra que marcou época, Gustav Klimt estava engajado como
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c::; explorador artístico num empreendimento não muito diferente, Enquan-
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mente em solidão, Klimt liderava um grupo de artistas heréticos de
idéias semelhantes, que rapidamente adquiriram um s6lido respaldo so-
»t cial e financeiro, Contudo, apesar de suas diferenças de fama e fortuna,
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Freud e Klimt tinham muito em comum, Ambos colocaram uma crise
pessoal de meia-idade a serviço de uma reorientação radical do seu tra-
balho profissional. Ambos rejeitaram resolutamente o realismo fisicista
em que tinham sido criados, Ambos soltaram as amarras biológicas e
anatõmicas dos campos que escolheram: respectivamente, psicologia e
arte, Procurando um caminho para sair dos escombros de uma concep-
ção sll~~tanç;.ªJista da realidade, ambos mergulharam noeu e .seguiram
num voyage intétieur. Quando trouxeram a público os resultados de suas
explorações do mundo do instinto, encontraram, em graus variados, a
resistência de dois setores: a ortodoxia acadêmica liberal-racionalista e
os anti-sernitas. Frente a essa hostilidade, Freud e Klimt retiraram-se da
cena pública, ao abrigo de um círculo pequeno mas fiel, para preservar
o novo terreno que tinham conquistado.
O que me leva a seguir o problema de K1imt..nãosãosimplesmente

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essas simetrias entre sua vida e interesses e os de Freud. É antes porque


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Klimt ilumina a situação sócio-cultural em que também a psicanálise
surgh:J-:-'Ele;-âà!Desma forma, enfrentou um período di: transição histó-
tiéã"com uma exigência imperiosa daquilo que Heinz Kohut chamou de
"um reembaralhamento do eu". Com outros intelectuais da sua classe e
geração, Klimt partilhou de uma crise da cultura, caracterizada por uma
combinação ambígua"entre revolta edípica coletiva e busca narcisista de
um novo eu, O movimento de Secessão na arte moderna - equivalente
austríaco do art nouoeau -, cujo líder foi reconhecidamente Klimt,
expressou a busca confusa de uma nova orientação devida na forma
visual.

31 ~,
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Gustav Klimt tornou-se famoso a serviço da cultura burguesa da Ring-


strasse. Suas origens sociais, porém eram mais humildes do que a classe
média liberal culta com a qual ele logo veio a se identificar. Seu pai,
um gravador, educou Gustav e seus dois irmãos para que seguissem
i seus passos como artesão-artista. Como Camillo Sitte, Klimt iniciou sua
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~ir educação de. modo tradicional, no aprendizado doméstico, mas a seguir


tomou um rumo mais moderno de aprendizagem profissional formal .
.~; Aos catorze anos, entrou na Escola de Artes e Ofícios (Kunstgewerbes-
cbule), que havia sido recentemente fundada (1868) no espírito histo-
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1,.:,
ricista do novo grupo dirigente, como extensão pedagógica do Museu da
Arte e Indústria, Lá, o jovem Klimt adquiriu o virtuosismo técnico e
:i,; a grande erudição em história da arte e desenho exigidos por uma época
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eclética.
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Klimt saiu da escola como decorador arquitetõnico, no exato mo-
mento em que o grande programa Ringstrasse de construção monumen-
tal vinha ingressando em sua fase final. Ele encontrou ocasião de em-
pregar seu talento versátil em pinturas históricas para dois dos últimos
grandes edifícios, o Burgtheater e o Museu de História da Arte. No
primeiro, em 1886-88, Klimt,' seu irmão e seu companheiro Franz
Matsch decoraram a grandiosa escadaria (figura 33) com uma série de
pinturas para forro, sobre cenas teatrais que iam do festival de Dioniso
aos tempos modernos. Os painéis mostram quão intimamente os pais
liberais tinham integrado perspectivas históricas e teatrais. Cada mural
celebrava a unidade entre teatro e sociedade, enquanto a série completa
Figura 33. Grande escadaria do Burgtheater, com pinturas representava a absorção dos teatros do passado no rico ecletismo da cul-
para forro de Klimt e Matsch, 1886-8. tura vienense. Assim, uma pintura do teatro shakespeariano (figura 34),

202 203
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'f valeu a Klimt, em 1890, o cobiçado Prêmio do Imperador, que foi seu
~ trampolim para a celebridade.'
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Em 1891, veio uma outra importante encomenda para a Ring-
l strasse. No novo Museu de História da Arte, Klimt decorou o corredor
principal com uma série de figuras femininas, cada uma representando
.~ uma época artística. A figura 36 mostra Palas Atena, escolhida para
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Figura 34. Teatro de Shakespeare, pintura para forro


na grande escadaria do Burgtbeater, 1886-8.

além de representar os atores no palco, mostrava o público da época


que tinha no teatro o seu espelho. Klimt registrou nessa pintura seu
sentimento pessoal de identificação com a cultura a que servia como
pintor. Ele se retratou, junto com seu companheiro e o irmão, como
membro da platéia elisabetana. (Na figura 34, Klimt está na frente da
coluna à direita, com uma grande gola.) Enquanto pintores anteriores
tinham se representado como testemunhas do teatro cristão de religião,
Klimt se historiciza como comungante na religião vienense do teatro.
Ele também pintou outros devotos do teatro - em proveito pró-
prio. Em 1887, o conselho municipal encomendou a Klimt e Matsch a
pintura do antigo Burgtheater, antes que este cedesse lugar à nova casa
de espetáculos (figura 35). O quadro deveria imortalizar não só o palco,
mas também os patronos. Klimt, ao pintar o espaço do audit6rio a par-
tir do tablado, incluiu nesse grande retrato coletivo da elite vienense
mais de cem retratos individuais, com figuras como Katherina Schratt,
amante do imperador (e ela mesma atriz do Burghtheater), o importante
cirurgião Theodor Billroth e o futuro prefeito Karl Lueger. * O quadro

(") O colega de Klimt lembrou o quanto as pessoas escolhidas para a


pintura reivindicavam lugares especiais; ser imortalizado como patrono do Burg-
theater significava muito para o status social de uma pessoa. Figura 35 Auditório do antigo Burgtbeater, Viena, 1888.

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dutos equivalentes da dissolução da fé dos filhos nas perspectivas dos
pais.
_,),. Em meados dos anos 1890, a revolta contra a tradição finalmente
alcançou a arte e a arquitetura. Na principal associação de artistas (a
Kãnstlergenossenscbaits, die [ungen - novamente se empregou o termo
- se organizaram para r9.:lP"p~~"com,as restrições acadêmicas dominan-
te.s"em favor de uma atitude aberta e experimentalem relação à pin-
tura. Não é preciso dizer que os jovens vienenses buscavam sua inspi-
ra'ção nos países artisticamente mais avançados: os impressionistas fran-
Figura 36. Palas ceses e naturalistas belgas, os pré-rafaelitas ingleses e os J ugend-stilisten
(tímpano no poço de alemães. O único terreno comum entre eles era a rejeição da tradição
escada do Kunsthistoriscbes realista clássica dos seus pais, na busca do verdadeiro rosto do homem
Museum), 1890-1. moderno.
Gustav Klimt, embora fosse um jovem mestre da velha escola, cedo
assumiu a liderança na revolta de:'die Jiingen, nas artes visuais, Em 1897,
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representar a cultura helênica. Ela levou-os para fora da associação de artistas estabelecida, para fundar a
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está vazada num estilo suavemente Secessão. Como algo típico da situação cultural vienense, a ideologia
f realista e tridimensional. Segundo sua dessa associação de artistas foi elaborada não só por artistas, -ffias"jgual-
Niké alada e a lança, ela posa como mente por literatos e pessoas cüjás'()tigens'estavam na política liberal

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", uma jovem senhora vienense experimen-
tando um vestido de baile. O segundo pla-
de esquerda. Mas essa ideologia contribuiu para transformar
como o artista via e representava o seu mundo.
a forma

no de Palas e das outras figuras é executa- I O primeiro tfaço destacado do ,credo secessionista era a afirmação
~~ do na linguagem do desenho ou da arquite- --+;10 rompimento com seus pais. Marx obsérvou certa vez que, quando os
tura do período representado. Aqui, o espí- homens estão' prest~s a fazer uma revolução, eles se fortalecem agindo
rito histórico positivista do museu celebra como se estivessem restaurando um passado desaparecido. A Secessão
urna vitória quase fotográfica. Com menos definiu-se não como um mero salon des réjusés, mas como uma nova
de trinta anos, Klimt estava em vias de se tornar um dos principais ar- secessio plebis romana, onde os plebeus, repudiando desafiadoramente
tistas e decoradores arquitetônicos. ' o mau governo dos patrícíos, retiravam-se da república.* Simultanea-
t:l'9.smeS,ll10s ,anos em que Klimt ganhou fama, com suas pinturas mente, a Secessão proclamava sua função regeneradora, dando à sua re-
se
na R1ngstrasse, ~Tnhã, miijàj1dêiõ' estrato sociar~~jos'~~lores ele ex- vista o nome de Ver Sacrum [Primavera sagrada]. O título se baseava
pressava. Já 'vimos como os desafios à hegemonia liberal, -tendo-se ini- num ritual romano de consagração dos jovens em épocas de perigo na-
ciado com a crise econômica em 1873, estavam se tornando cada vez cional. Enquanto em, Roma os mais velhos entregavam seus filhos a uma
maiores. Ao mesmo tempo, dentro da própria sociedade liberal, aos gri- missão divina para salvar a sociedade, em Viena os jovens se entregavam
tos pela reforma misturavam-se gemidos de desespero ou ódio pela à missão de salvar a cultura das mãos dos mais velhos.'
impotência da Austria liberal. Nos anos 1870, iniciou-se uma revolta Para a primeira exposição da Secessão, K1imt fez um cartaz que
edípica coletiva generalizada que se difundiria pela classe média austría-
ca. Die J un gen [Os Jovens] tornou-se o nome genérico escolhido pelos (*) A formulação da ideologia romana da Secessão foi elaborada por Max
rebeldes em todos os campos. Die [ungen apareceram inicialmente na Burckhard (1854-1912), nietzschiano, progressista em termos políticos, e um dos
política corno uma nova esquerda no partido constitucional no final grandes reformadores do direito administrativo, que em 1890 renunciou à sua
carreira político-jurldica para virar diretor do Burgtheater, cargo que acabara por
dos anos 1870. J.u..~g-Wien foi o movimento literário que, por volta de,
perder quando passou a co-editar a revista da Secessão, Ver Sacrum. Associou-se
1890, enfrentou a postüra moralista da literatura novecentista, defen- aos die [ungen em todos os aspectos: na política, literatura e artes visuais. Sobre
dendo a 'verdade sociológica e a abertura psicológica, especialmente die Jungen em geral, ver Car! E. Schorske, "Generational Tension and Cultural
sexual. Os playboys de Schnitzler e os estetas de Hofmannsthal são pro- Change: Refleetions on the Case of Vienna", Daedalus (outono de 1978), 111,22.

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anunciava a revolta de gerações. Escolheu como
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J meio o mito de Teseu, que matou o Minotau-
ro brutal para salvar os jovens de Atenas' (fi-
gura 37).'" Observemos que Klimt não apre-
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sentava o tema de forma direta, mas como uma RE.D1N HU»T


cena teatral no palco - como se fosse o ato I LlVLHTtN UND
do drama secessionista. Palas, sábia protetora BRl.NNlN
virgem da pólis, escolhida pelo Parlamento aus- L' 1C.I1[Flk
tríaco como seu símbolo, foi adaptada por
Klimt como padroeira da libertação das artes.
O cenário de ação passa da política para a cul-
tura: é como segue a jornada. No tímpano do
museu (figura 36), a Palas de Klimt tinha
corpo, substancialidade. Agora ela é bidimen-
sional - a via recém-encontrada por Klimt
para expor uma abstração. Ela patrocina uma
idéia dramática. Visto que ainda não está rea-
lizada, ela é tratada de modo desencarnado,
alegórico, sobre o palco.
Outro objetivo básico da ideologia da Se-
cessão era o de falar a verdade sobre o homem
moderno, ou, como disse o arquiteto Otto
f
W agner, "mostrar ao homem moderno sua ver-
dadeira face".*'" De um lado, isso implicava
uma investida crítica contra o manto de histo-
ricismo e cultura herdada, com o qual o bur-
guês ocultava sua identidade moderna prática.
A Viena da Ringstrasse, onde o próprio Klimt
trabalhara, foi consoantemente rotulada de
"uma cidade Potemkin" nas páginas de Ver
Sacrum, Mas se se atravessassem as máscaras
de historicidade que ocultavam o homem mo-
derno, o que se encontraria? É o problema que

(*) Freud sugeriu que o touro podia significar


um pai arquetípico: "Zeus parece ter sido original.
mente um touro. O deus dos nossos pais, antes de
ocorrer a sublimação instigada pelos persas, era ado-
rado corno touro". Freud a Wilhelm Fliess, 4 de julho
de 1901, em Sigmund Freud, The Origins 01 Psycbo-
analysis: Letters to Wilhelm Pliess, Drafts and Notes:
1887-1902, Marie Bonaparte, Anna Freud, Ernst Kriss,
Figura 38.
orgs., trad. Eric Mosbacher e Jarnes Strachey (Nova
York, 1954), p. 333. N uda veritas.
Figura 37. Teseu, cartaz para a Primeira Exposição da Secessão, 1897. (**) Ver acima, pp. 89-90 e 98-100. 1898.
Klimt levantou num desenho ideológico para o n." 1 de Ver Sacrum (fig.
38). Uma menina núbi!, "Nada veritas", como a segunda Palas, é bidi-
I.(

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acrescentar ainda uma outra idéia às de revolta edípica e busca de iden-
tidade: a saber, a de que-a"'árte deveda oferecer ao homem moderno
um refúgio contra a'-pies'são da vida moderna. A Casa da Secessão foi
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mensional: um conceito, não uma realização concreta. Com símbolos pri- .·t
maveris aos pés, expressando a esperança de regeneração, ergue o espelho concebida em consonância com essa idéia.' A idéia central do seu arqui-
vazio para o homem moderno. O que o artista verá nele? Um speculum
mundi? Um refletor da luz ardente da verdade? Ou talvez um espelho
.de Narciso? Esta é a questão que agora tentaremos seguir com Klimt.
I I
teto, Josef Olbrich, era "erguer um templo da arte que oferecesse ao
amante da arte um local sereno e elegante de refúgio". Enquanto os
museus do século XIX geralmente seguiam o modelo de palácios, numa
Para completar o rol de objetivos originais da Secessão, temos de imitação burguesa dos mecenas renascentistas e aristocráticos, o arqui-
teto da Secessão encontrou sua inspiração num
templo pagão: "Haveria paredes brancas e cinti-
. lantes, santas e castas. [Expressariam] pura dig-
nidade, corno eu senti [ ... ] fremir em mim
quando me postei sozinho à frente do santuário
inacabado de Segesta".' Uma solenidade quase
sepulcral carateriza as escadas e portais do edifí-
cio da Secessão (figura 39). A entrada atrai o de-
voto para o santuário da arte. Mas o artista dei-
xou o espaço interior propriamente dito total-
mente aberto - como o espelho vazio da Nuda
peritas de Klimt. Quem poderia saber de ante-
mão qual seria a organização espacial capaz de
atender às exigências de exposição da arte e de-
senho modernos? O espaço do museu da Seces-
são inaugurou o uso de divisões móveis. Corno
observou um crítico, o espaço de exposições
tinha de ser mutável, pois esta era a natureza da
vida moderna, "da vida agitada, corrida, vibran-
te, cuja imagem especular múltipla procuramos
na arte, a fim de parar por um momento em
contemplação interior e diálogo com nossa
alma".'
Por sobre o portal do seu edifício, a Se-
cessão anunciou seus objetivos: *
À ARTE SUA LIBERDADE,
À ÉPOCA SUA ARTE,

(') A divisa foi escolhida pelos próprios artistas,


numa lista montada a pedido deles por um amigo crí-
tico de arte, Ludwig Hevesi. Ver. Ludwig Hevesi,
Acht [abre Secession (Viena, 1906), p. 70, nota de
rodapé.

Figura 39. Jose! Olbrich,


Casa da Secessão, 1898.

210 211
,.

Mas ninguém sabia qual o sentido concreto que teriam. Renovação


dotisa grega com uma citara (figuras 40 e 41). Nesses painéis, a anima-
cultural e introspecção pessoal, identidade e refúgio da modernidade,
ção biedermeieriana e a inquietude dionisíaca se confrontam mutuamen-
verdade e prazer -.::,'os componentes dos manifestos da Secessão suge-
te através da sala. O painel "Schubert" representa a Hausmusick, a
'riam muitas possibilidades contraditórias compatíveis apenas em um
música como coroamento estético de uma existência social ordenada e
único sentido: sua rejeição comum das certezas do século XIX.
segura. O conjunto é banhado por uma suave luz de vela, que ameniza
os perfis das figuras, compondo-as em harmonia social. Pela composição
formal e temporal, é uma pintura do gênero histórico, totalmente den-
,..,. tro da linha das pinturas de Klimt para forro do Burgtheater. Mas agora
:-! II ~ a substancialidade clara desses trabalhos anteriores, com seu compromis-
so positivista de recriar realisticamente "wie es eigentlicb geuiesen
(como realmente foi)", foi diligentemente apagada. Adaptando técnicas
Tendo a Secessão como apoio social sólido para seu trabalho em 1897, impressionistas a seu serviço, Klimt substitui a reconstrução histórica
Klimt revelou uma energia criativa verdadeiramente exuberante. O que pela evocação nostálgica. PjmM:lo.SJlm..sonho__encantadorvintenso mas
nossa sensibilidade estética só consegue' perceber como um 'indistinto insubstancial, de uma arte inocente, reconfortanteqüê'servia'"a uma
tumulto iconogrãfico e estilístico era, de fato, uma, vigorosa busca ex- socíedade=devconforro. Lembramo-nosida unelodia de Schubert, An
perimental de urna nova mensagem e uma nova linguagem simultânea. die Músik, onde o poeta agradece a "a arte sublime" por "transpor-
Mas, apesar da mistura de línguas, logo ficou claro que IÇlimt, ao pro- tar [a ele] a um mundo melhor", Para Klimt e os burgueses seus
curar o rosto m01erno no_espelh~ da.N~d~ ueritas, estava se enca~i- contemporâneos, a era de Metternich, outrora odiada, é relembrada agora
nhando para uma ~exploraçaoda vida instintiva, como a era graciosa e simples de Schubert - um Paraíso Biedermeier
"Sur des pensers nouue aux [aisons des uers antiques", disse um Perdido.
amigo de Hofmannsthal a propósito da obra de sua geração.* E, na Muito diferente, em idéia e execução, é o outro painel "Música"
verdade, os mitos e símbolos trazidos da Grécia primitiva revelaram-se (figura 41). EII? contraste com o espaço diluído do impressionismo em
um instrumento poderoso de desnudamento da vida instintiva.tque fora "Schubert", Klimt preenche esse quadro com símbolos representados
'sublimada ou reprimida ná tradição clássica. Vimos antes como Hof- realisticamente, símbolos tais como teriam sobrevivido em restos arqueo-
m~~nsthál utilizou a via clássica para a vitalidade dionisíaca na sua lógicos. A concepção da arte e os símbolos que a transmitem denunciam
inversão da "Ode a uma urna grega" de Keats. Onde Keats prendera e a dívida de Klimt para com duas figuras que desempenham um papel
fixara a vida erótica na beleza, Hofmannsthal, em seu "Idílio sobre importante na crise fin-de-sikcle do racionalismo: Schopenhauer e Nietz-
uma pintura de vaso antigo", mostrava sua heroína madura para se en- sche,? A música aparece como uma musa trágica, com o poder de trans-
tregar à sexualidade, graças às imagens que vira em vasos pintados. formar instintos enterrados e uma misteriosa potência cósmica em har-
Hofmannsthal partiu da verdade da beleza, para redespertar a vida ins- monia. Os símbolos são os que Nietzsche usou em O nascimento da
tintiva ativa que fora congelada na arte. Testemunhos da mesma tendên- tragédia. O instrumento da cantora é o de ApoIo - uma cítara; mas
cia nos dão as cabeças serpentinas das três fúrias que deviam adornar a os elementos de sua canção são dionisíacos. Na lápide de pedra atrás
entrada do edifício da Secessão. dela estão duas figuras: um é Sileno, o companheiro de Dioniso, a quem
Klimt também começou o seu processo de dessublimação da arte Nietzsche considerou como "um símbolo da onipotência sexual da na-
recorrendo a símbolos gregos pré-clássicos. Para o salão musical de tureza" e "companheiro de sofrimentos do deus".' A outra é a Esfinge,
Nikolaus Dumba, um mecenas da Ringstrasse, ele pintou um par de mãe devoradora dos filhos, encarnação do continuam metamórfico entre
painéis, representando a função da música, de duas formas agudamente animal e homem, terror e beleza feminina. Sileno e Esfinge parecem
contrastantes. Uma era histórica e social, a outra mítica e psicológica. representar as forças instintivas enterradas que o nigromante apolíneo
A primeira pintura- mostrava Schubert ao piano; a segunda, uma sacer- invocará na canção, para que saiam do túmulo dos tempos. Assim, con-
tra o suavemente cintilante paraíso histórico perdido de Schubert le-
(*) "Sobre pensamentos novos façamos versos antigos." Helmut A, Fiechtner, vantam-se os símbolos arquetípicos das energias instintivas, às quais a
Hugo von Hojmannstbal. Die Gestait des Dicbters im Spiegel der Freunde (Viena,
1949), p. 52.
arte tem um misterioso acesso através do pesado tempo pétreo do cofre
da civilização.
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213
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No mesmo ano de 1898, Klimt realizou uma outra pintura que de uma nova cultura a partir de uma anterior. Klimt distorce a antiga
deixa claro que sua busca do homem moderno levã-lo-ia a arrombar esse iconografia de modo verdadeiramente subversivo: Palas, a deusa virgem,
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cofre. Foi uma outra Palas, a terceira e mais completa representação da não é mais o símbolo de uma pólis nacional e da sabedoria ordenadora,
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deusa virginal de Klimt. Ele a pintara pela primeira vez, no Museu de já que em sua órbita ela traz a sensual portadora do espelho do homem
História da Arte, como protetora, em corpo inteiro, da arte-na-história moderno. Realmente les pensers nouueaux estão saindo da crisálida dos
(figura 36). A seguir, ela se tornou mais abstrata (portanto, bidimen- 'I seus uers antiquesi
'!
sional), como paladina simbólica do herói da Secessão, Teseu, em sua .J; . Como Freud, com sua paixão pela cultura arcaica e escavações ar-
revolta edípica civilizatória (figura 37). Na nova versão (prancha I), queológicas, Klimt utiliza símbolos clássicos como ponte metafórica para
Palas assoma a nós vagamente modelada, impassível mas com uma força a escavação da vida instintiva, e principalmente sexual. O ex-pintor so-
enigmática. No entanto, outras coisas mudaram, além do caráter de cíalde teatros tornou-se o pintor psicológico da mulher. Depois de 1898,
PáIas-.-No canto inferior esquerdo do quadro, a mão de Palas não traz o tipo feminino angélico e doce da pintura "Schubert" desapareceu por
mais Niké, a vitória alada. Em seu lugar está Nuda oeritas , segurando quase um decênio. Klimt voltou à mulher como criatura sensual, desen-
seu espelho para o homem moderno. Mas Nuda veritas também mudou. volvendo todo o seu potencial de prazer e dor, vida e morte. Num
Antes menina em duas dimensões, agora é bem torneada e sexuada, com interminável fluxo de desenhos, Klimt tentou apreender o sentimento
cabelos, e mesmo pêlos púbicos, de vermelho flamejante," Não Nuda de feminidade. A figura 42 mostra apenas um dos seus muitos esforços
ueritas, mas Vera nuditasi Aqui temos uma virada crucial no surgimento de captar e registrar os lineamentos do êxtase. Em "Sangue de peixe",

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Figura 40. Scbubert ao piano, 1899. Figura 41. Música, 1898.

2.14 215
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desenho para o primeiro número de Ver Sacrum, Klimt celebra a sensua- a fêmea fálíca preferida do [in-de-siécle, Klimt tece um contraste assus-
lidade feminina sob um aspecto mais ativo (figura 43). Suas figuras tador entre as mãos em garra e o rosto anguloso da personagem e os
prazerosas entregam-se livremente ao elemento aquático, conforme ele contornos calorosos do corpo (figura 44) .
as carrega rapidamente para baixo, em seu curso 'desimpedido. Vemos . -- '''À época sua arte, à arte sua liberdade" proclamara orgulhosa-
aqui algo que logo se tornará uma preocupação fundamental de Klimt, , mente o lema secessionista. Ao procurar a imagem de Eros doador de
comum a outros artistas art nouoeau: o cabelo feminino. As longas prazeres, enquanto segurava o espelho para o homem moderno, Klimt
madeixas flutuantes, neste caso, servem de intermediárias entre os cor- encontrou, ao invés dela, os problemas psicológicos que cercavam a
pos sinuosos e' o poderoso impulso linear da água. As mulheres de tentativa de libertar a sexualidade das restrições de uma cultura mora-
Klimt estão à vontade num mundo liquefeito, onde o masculino rapida- lista. O alegre explorador de Eros descobriu-se caindo nos anéis de Ia
mente submergiria, como marinheiros seduzidos por sereias. . . [emme tentaculaire. A nova liberdade estava se convertendo num pesa-
Em "Cobras-d'água" (prancha n), a sensualidade da mulher ganha delo de ansiedade.
uma nova concretude e, simultanea-
mente, torna-se mais ameaçadora.

'"'J~~ As lúbricas jovens do prazer das


pi:õfufid~zifs;-'ná-sefui-s61101ência da "
.
~~\: J\.
t( ,
saciedade sexual, estão totalmente
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unidas com seu meio viscoso. São

~~v,. ""? realmente cobras-d'água, com seus


cabelos fortemente canelados num ~
\>1 (
contraste ameaçador com a suavida-
de da carne e a sensibilidade das
@ mãos. As mulheres-serpentes de
<;
Klimt dominam o homem, não tan-
<, to com a tentação do Jardim, mas
\

\\
com o sentimento, que nele susci-
tam, de insuficiência frente à sua
capacidade aparentemente inexaurí-

Ijl
-, vel de gozo carnal. Na sua explora-
ção do erótico, KÜmt baniu ~ sen- 'f-
tido moral do pecado que atormen- ój'.\\-

tara os pais virtuosos. Mas, ern seu


~~ lugar, surgiu um medo do sexo que
assombrou muitos filhos sensíveis.
A mulher, como a Esfinge, ameaça
.:"[
o homem. Algumas das pinturas
VV~T7lv ( mais belas de Klimt tratam do

;' )
kL.IM"T'-
tema da castração, em seu tradicio-
nal disfarce invertido de decapita-
ção. Sua "Judith" (prancha m), *'" ,
\ tendo acabado de assassinar Holo-
fernes por amor, fulgura numa
Figura 42, Sem Título volúpia quase maternal. No tra-
("Moça sensual") (sem data). tamento que deu a Salomé, Figura 43. Sangue de peixe, 1898,
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216 217
,
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'11

ao estático abstrato e geométrico -, podemos ver um tateamento em


busca de orientação num mundo sem coordenadas seguras.
"Gustav Klimt", escreveu o poeta Pe- Muito a propósito, a Universidade de Viena ofereceu a Klimt a
ter Altenberg, "você é ao mesmo tem- oportunidade de apresentar na tela sua visão da condição humana em
po pintor de visão e filósofo moderno, seu mais amplo sentido. Em 1894, o Ministério da Cultura,* após con-
poeta totalmente moderno. Quando sulta a urna comissão de docentes, convidou Klimt para realizar três
você pinta, subitamente se transforma, pinturas para forro para o salão nobre da nova universidade. Na época,
como num conto de fadas, no homem Klimt acabara de se destacar como o jovem mestre decorador da Ring-
mais moderno, que não é, talvez, na strasse, onde a nova universidade viria a se instalar corno um dos últimos
vida cotidiana." 9 Klimt deve ter apre- projetos monumentais. Mas, quando executou a encomenda (1898-1904),
ciado a homenagem de Altenberg. Sua Klimt já se engajara profundamente na Secessão e em sua busca pessoal
experimentação pictórica, de amplo es- da nova verdade. Ao pintar sua nova visão para o projeto da universi-
pectro, estava ligada a uma missão dade, atraiu sobre si a cólera dos velhos racionalistas e novos anti-semi-
maior. Klimt era um questionador e tas." Na contenda que se seguiu, pintores, público e políticos discutiram
um provador do questionável, do pro- calorosamente a função da arte moderna em Viena. Dessa contenda re-
blemático, na experiência pessoal e na sultou uma inequívoca clareza na determinação dos limites do radica-
cultura. Como Freud, procurou respos- lismo secessionista. A derrota pessoal de Klimt na disputa pôs fim ao
tas aos seus enigmas explorando suas seu papel de subvertedor das vias antigas. Ela o levou a 'uma definição
profundezas pessoais, e muitas vezes mais restrita da sua missão como artista da modernidade e, finalmente,
deixou clara a resposta a outros ex- a uma fase nova, abstrata, na sua obra.
pondo-se a si mesmo. O que ele ini- O terna d~~ pinturas na universidade fora concebido pelos clientes
ciara corno uma animada busca da li- acadêmicos de Klimt na melhor tradição do Iluminismo: "O triunfo da
beração sensual por muito pouco não luz sobre as trevas". Em torno de um painel central sobre o tema, que
terminou numa catástrofe profissional, seria desenhado pelo companheiro de Klimt, Franz Matsch, dispor-se-iam
e até mesmo psicológica pessoal. Mas, quatro pinturas para representar as quatro faculdades. Klimt deveria
nesse processo, Klimt virou uma es- executar três delas: "Filosofia", "Medicina" e "[urisprudência". Depois
pécie de metapsicólogo no mundo de alguns desentendimentos preliminares em 1898 sobre seus projetos
visual. iniciais, a comissão de docentes e o Ministério da Cultura deram carta
Nos anos 1890, a própria natureza
l
,
branca a Klimt. Em 1900, ele apresentou sua primeira pintura, "Filoso-
da realidade tornou-se problemá- fia", e em 1901, "Medicina".
tica para Klimt. Ele não sabia se a
Nenhuma delas refletia uma fácil vitória da Luz sobre as Trevas.
procurava no físico ou no metafísico,
Em "Filosofia" (figura 45), Klimt se revelou ainda filho de uma cultura
na carne ou no espírito. Essas cate- ."0;:
teatral. Ele nos apresenta o mundo como s~ à estivéssemos vendo do
gorias tradicionais vinham perdendo
fundo da platéia, um tbeatrum mundi na tradição barro~a. Mas, enquan-
sua clareza e independência. A crise
to o tbeatrum mundi barroco era nitidamente estratificado em Céu,
do ego liberal veio a se concentrar na
Terra e Inferno, agora a Terra parece desaparecer, dissolvida numa
indeterminação das fronteiras entre
fusão das duas outras esferas. Os corpos confundidos da humanidade
elas. Nas representações constante-
sofredora arrastam-se lentamente, suspensos a esmo num vazio viscoso.
mente mutáveis do espaço e substân-
Da escuridão cósmica - as estrelas estão atrás, muito distante - asso-
cia de Klimt - da solidez naturalista,
ma cegamente uma densa e sonolenta Esfinge, ela mesma apenas uma
passando pela fluidez impressionista,
(*) Abreviei o nome completo: "Ministeriumfür Kultus und Unterricht".
Figura 44. Salomé (Judith n), 1909. O Ministérioestava encarregadoda política religiosa,educacionale cultural.

218 219
condensação de espaço atomizado. Somente o rosto na parte inferior da
pintura sugere, em sua luminosidade, a existência de uma mente cons-
ciente. Das Wissen, nome da figura no catálogo," está entre as luzes do
palco, como um ponto virado para nós, o público, como que para nos
assoprar a deixa dentro do drama cósmico.
'~t
A visão do universo de Klimt é schopenhaueriana - o Mundo
como Vontade, energia cega numa ronda interminável em torno de nas-
cimento, amor e morte sem sentido. Peter Vergo sugeriu que Klimt
compreendeu Schopenhauer através deWagner, especialmente com a
súmula concisa de Wagner sobre o pensamento do filósofo em seu en-
saio largamente difundido Beetbouen, e que tanto a iconografia como a
mensagem de "Filosofia" mostravam a influência da Das RheingoldY
Visto que Klimt movia-se em círculos sociais e intelectuais admiradores
das figuras entrelaçadas deWagner, Schopenhauer e Nietzsche, pode
ter-se inspirado em qualquer um deles para a sua visão cósmica. Vergo
mostrou a possível derivação da figura central da "Filosofia" a partir da
Erda de Wagner; tanto o lugar que ocupa como sua postura divinatória
dão base a essa interpretação.* Mas a Erda de Wagner é uma mãe-terra
calorosa, oprimida de dor; a Wissen de Klimt é fria e dura. E tampouco
ela, não mais que Klimt e seus prósperos patronos, se aflige com a mal-
dição do ouro tão decisiva para Wagner impregnado de política e seus
heróis cósmicos. A sacerdotisa filosófica de Klimt trai, em seus olhos
sobrenaturalmente luminosos, uma atitude diversa: uma sabedoria, si-
multaneamente selvagem e gélida, que afirma o Mundo da Vontade.
Essa abordagem, a meu ver, aponta antes para a leitura de Nietzsche, e
não de Wagner, de metafísica existencial de Schopenhauer. Vimos como
Klimt bebera em O nascimento da tragédia de Nietzsche para sua "Mú-
sica" em 1898. Agora, sua figura da Filosofia sugere a sombria lingua-
,~
gem rapsódica da "Canção ébria da meie-noite", de Zaratustra:

6 homem! Preste atenção:


O que diz a profunda meia-noite?
"Eu dormia, eu dormia-
De sonho profundo fui despertada; -
O mundo é profundo,
E mais profundo do que pensou o dia.
Profundo é o seu sofrimento -
O sofrimento diz: Passa!
O desejo - ainda mais profundo que a dor.

(") Vergo mostra a semelhança entre as indicações cênicas para a primeira


aparição de Erda em Das Rheingold e o conteúdo de sua fala, e as cores e com- Figura 45. Filosofia, pintura para forro da universidade, 1900.
posição de Klimt. Ver nota 12 deste capítulo.
Mas todo desejo quer a eternidade -
Quer profunda, profunda eternidade!" *
I
t
as dores". Como na flutuante cadeia do ser de Klimt, "todas as coisas
[ ... ] estão interligadas, entrelaçadas, enamoradas [ ... ] assim você

É a mesma canção que o herói posterior de Klimt, Gustav Mahler, uti- 1 amará o mundo".*
Não era assim que os professores da universidade viam ou amavam
lizara como centro da sua filosófica Terceira sinfonia, concluída em
1896. De fato, a magnífica montagem dessa canção por Mahler pode J o mundo. Eles tinham uma concepção diferente de "O triunfo da luz
sobre as trevas" e da representação que ele deveria ter em seus salões.

I
oferecer ao observador da "Filosofia" de Klimt outra via de acesso à A pintura de Klimt tocou um terminal nervoso do corpo acadêmico.
dolorosa visão de mundo psicologizada daquela geração intelectual - SUa metafísica Nuda oeritas levara-o, com mais uns poucos intelectuais
uma visão que afirma o desejo e, ao mesmo tempo, sofre a dissolução de sua geração, a um terreno que ultrapassava os limites estabelecidos
mortal dos limites entre ego e mundo, decretada pelo desejo.**\3 da razão e do direito. Oitenta e sete membros docentes assinaram uma
Mesmo a explicação que Nietzsche dá sobre sua canção da meia- petição em protesto contra o painel, solicitando ao Ministério da Cultura
noite, no final fulgurante de Assim falou Zaratustra, pode ser lida como que o recusasse. Pusera-se lenha na fogueira. A arte de Klimt estava se
se fosse escrita para eIucidar a pintura de Klirnt." Inversamente, a sa- tornando uma questão ideológica, e logo viraria política.
cerdotisa extasiada com folhas de parreira nos cabelos, de Klimt, pode-
ria ser uma ilustração da cantora noturna de Nietzsche - "essa poetisa
ébria" que, como sugerem seus luminosos olhos voltados para cima,
"vigilante [iiberwach]".*** Como a poetisa de Nietzsche, a Wissen de ~ IV "'.
~
Klirnt engole a dor - e, mais, o próprio desejo (Lust) - em sonho,
para afirmar a vida em sua misteriosa totalidade: "Vocês dizem 'sim' a
um único desejo? Oh, meus amigos, [então] vocês dizem 'sim' a todas A crise sobre as pinturas da universidade tem sua importância na his-
tória da arte pelo impacto que provocou no desenvolvimento da obra
(*) "O Mensch! Gib acht: / Was spricht die tiefe Mitternacht? I lch de Klimt. Para jj história geral, porém, a cause célebre artística abre uma
schlief, ich schlief - / Aus tiefen Traum bin ich erwacht; - I Die Welt ist janela para um problema mais amplo, a intricada relação entre cultura
Tief, I Und tiefer aIs der Tag gedacht. I Tief ist ihr Weh - / Lust - tiefer
noch als Herzeleid; I Weh spricht: Vergeh! I Doch alIe Lust will Ewigkeit - / e política no despontar do novo século. A intensidade da reação a "Fi-
- will tiefe, tiefe Ewigkeit!" Do capítulo "Das andere Tanzlied", final da parte losofia" e as posições assumidas pelos adversários e defensores de Klimt
nr, Also Spracb Zaratbustra. revelam a profundidade da crise do racionalismo dentro da elite austría-
(**) Não existem provas de influência filosófica direta de Mahler sobre ca. Os paladinos dos dois componentes da cultura liberal austríaca, que
Klimt. Provavelmente, o autor não conhecia bem Mahler até 1902, ano em que no meu primeiro ensaio considerei complementares - o legalismo e o
este se casou com Alma Schindler, a quem Klimt conhecia desde a infância. Mas, esteticismo -, agora se enfrentavam em campos contrários. O governo
desde a época da indicação de Mahler para a direção da Ópera em 1897, eles
imperial, que, por razões políticas ainda a serem examinadas, dera seu
se moviam em círculos sociais e intelectuais entrecruzados, permeados pelo pensa-
mento wagneriano e nietzscheano. Ambos freqüentavam a casa do professor apoio à nova arte secessionista, logo se viu apanhado no fogo cruzado
Zuckerkandl, e ambos conheciam bem o seu amigo Max Burckhard, o advogado entre as forças combatentes da velha cultura ética e da nova cultura
nietzscheano que era diretor do Burgtheater e editor de Ver Sacrum. Quando estética. Quando as questões políticas se tornaram culturais, as questões
Mahler finalmente saiu da Austria para os Estados Unidos, depois de forçado a culturais se tornaram políticas. Para entender a significação da arte de
deixar a Ópera da Corte, Klimt foi até a estação ferroviária, com outros aficiona-
dos de Mahler, para se despedir do maestro. Cf., p. ex., Alma Mahler-Werfel, Klimt e o rumo que tomou, examinarei primeiramente a convergência
Mein Leben (Frankfurt am Main, 1965), pp. 18, 22-6; Berta Szeps Zuckerkandl, político-cultural na crise pictórica da universidade, observando-a deti-
My Li/e and History, trad. John Sommerfield (Londres, 1938), pp. 143-4, 151; damente através das posições de três atores principais da peça, todos
Kurt Blaukopf, Gustav Mahler, trad. Inge Godwin (Nova York e Washington, eles eruditos e outrora colegas na Universidade de Viena: Friedrich
1973), p. 218. Jodl, um filósofo liberal ortodoxo que liderou a oposição docente 3.
(***) Klimt concebeu originalmente a figura alegórica da Wissen à maneira
tradicional, como uma mulher sentada de perfil, debruçada em reflexões como o
Klimt; Franz Wickhoff, pioneiro no desenvolvimento de uma nova
pensador de Rodin. Foi apenas em 1899 que ele a substituiu pela cantora noturna
nietzscheana, erguendo-se numa frontalidade desafiadora. Cf. Christian M. Nebehay, (*) Friedrich Nietzsche, Also Spracb Zaratbustra, parte IV, "Dastrunkene
Klimt: Dokumentation (Viena, 1968), pp. 214-6, figs. 311-15. Lied", seção 10.

222 223
história da arte, cujo relativísmo cultural fez dele um pronto aliado de liberal clássica em transformação. Como filósofo acadêmico, Jodl ado-
Kiimt e da arte moderna; e Wilhelm. von Hartel, antes professor dos tava o empirismo e o utilitarismo anglo-saxão, levando essa abordagem,
clássicos e agora ministro da Cultura. Hartel fazia parte do gabinete tão prontamente assimilada pelo liberalismo austríaco, para a área da
de Ernest von Koerber, primeiro ministério a tentar, frente a um Par- ética.' Sua conhecida História da ética celebrava o surgimento de uma
lamento imobilizado, impor uma política esclarecida por decreto buro- ética humanista a partir da crisálida da ilusão religiosa. À semelhança
crático. Assim como Klimt adquiriu relevância política para Hartel, da de John Dewey nos Estados Unidos, Jodl destacou-se publicamente
mesma forma a política adquiriu relevância existencial e, ao final, esté- como porta-voz filosófico para uma série de causas sociais e políticas
tica para Klimt. progressistas. Em 1894, foi co-fundador da Sociedade Ética de Viena,
Os professores em protesto demonstraram, em sua petição inicial, inspirada no movimento da Cultura Ética americana para uma moral
que entendiam o significado da pintura de Klimt sobre a Filosofia, em- científica libertada do dogma religioso. Ele defendeu a emancipação da
bora não conseguissem identificar explicitamente sua visão de mundo mulher e as liberdades civis, e encabeçou a Associação para a Educação
schopenhaueriana. Acusaram Klimt de apresentar "idéias nebulosas atra- de Adultos (Volksbildungsverein) como parte do esforço de diminuir o
vés de formas nebulosas E Verschwornmene Gedanken durch verschwom- lamentável fosso cultural entre a classe alta e a baixa." Em suma, Jodl
mene Formen]". O notável adjetivo dos críticos, verschwornrnen, suge- representava a fase progressista, em todas as suas dimensões, do racio-
ria bern a liquefação das fronteiras que vimos na pintura em apreço. nalismo liberal da virada do século. A própria natureza do seu naciona-
Apesar do virtuosismo com que Klimt empregara a cor para criar uma lismo, porém, impedia-o de consentir numa pintura de "simbolismo
atmosfera apropriada para o seu "fantasma sombrio", essa qualidade não sombrio e obscuro que só seria entendido por poucos" para a decoração
bastava para compensar os caos de símbolos e a indistinção de formas dos recintos da universidade. A filosofia, que a pintura deveria retratar,
que, para eles, revelavam a incoerência do pensamento por trás da pin- afinal era um assunto racional. Em explícito apoio a Jodl o crítico Karl
,

tura. Afirmavam que, por falta de uni domínio intelectual, Klimt pro- Kraus tomou posição semelhante: Klimt não entendia de filosofia, disse
duzira um fiasco estético. 15 ele, e devia ter deixado a escolha do meio alegórico para a sua repre-
O reitor, um teólogo chamado Wilhelm von Neumann, apoiando a sentação a cargo d9s seus patronos, os professores."
resistência dos docentes, entrou no centro da controvérsia. Numa época Para um paladino da liberdade como Jodl, não foi fácil ver-se iden-
em que a filosofia buscava a verdade nas ciências exatas, disse ele, ela tificado, no caso Klimt, com oponentes mais tradicionais, com objeções
não merecia ser representada como um construto nebuloso e fantás- de teor religioso à representação da nudez, e inimigos da liberdade ar-
tico.'' O ideal de domínio sobre a natureza através da obra cientifica tística. Mas a figuração orgânica erotizada da realidade por Klimt sim-
era simplesmente violentado pela imagem de urna luta misteriosa pro- plesmente empurrou Jodl, e outros defensores intransigentes do credo
blemática na natureza, conforme Klimt. O —tradicTõ-ria4s as que- racionalista, para o campo dos seus adversários mais antigos, os cen-
riam, evidentemente, era algo semelhante à 'Escola de Atenas de Ra- sores clericais. Por conseguinte, para evitar essa aliança embaraçosa,
fael, onde os sábios da Antigüidade — P1 tão, Aristóteles, E elides e Jodl tentou desviar a questão do âmbito do conteúdo filosófico para o
outros — são apresentados em sereno discar e-r—sribre_a_anatureza das, da qualidade estética: não é "contra a arte do nu, nem contra a arte
coisas. Um professor sugeriu uma cena: os filósofos das várias épocas livre que lutamos", declarou à Neue Freie Presse, "mas contra a arte
seriam mostrados em reunião num bosque, conversando, repousando, feia"?'
orientando os estudantes." É de se notar que essas sugestões se centram Foi esse juízo supostamente apenas estético que deu aos defenso-
numa imagística social: os eruditos em sociedade, difundindo o domínio res de Klimt na instituição acadêmica a oportunidade de um contra-
sobre a natureza e a vida humana. A "Filosofia" de Klimt, na verdade, ataque. Um grupo de dez professores, liderados pelo historiador da arte
desviara-se do elemento social. Em seu universo, a estrutura de domínio Franz Wickhoff, submeteu ao Ministério uma contrapetição alegando
socialmente fundada desaparecera frente a uma natureza enigmática oni- que os membros docentes não tinham o conhecimento especializado que
potente e aos sentimentos interiores do homem impotente nela preso. lhes permitisse emitir juízos sobre questões estéticas. 23 "O que é o
Embora os defensores de Klimt acusassem o reitor de ter organi- feio?", foi a pergunta que Wickhoff escolheu, ao aceitar o desafio que
zado pessoalmente o protesto dos professores, seu principal porta-voz Jodl lançara.
foi o filósofo Friedrich Jodl (1849-1914). 18 Tanto a pessoa corno sua Franz Wickhoff (1853-1909) trouxe à causa de Klimt mais que a
linha de argumentação iluminam a significação de Klimt para a cultura sua autoridade profissional, por grande que fosse. Junto com Alois Riegl

224 225
(1858-1905), Wickhoff vinha desenvolvendo uma nova concepção de tes e o povo tinham continuado a partilhar de um mesmo leque de
.história da arte, particularmente apta para criar urna compreensão das ideais éticos e religiosos, os artistas epatronos avançaram juntos, e jun-
inovações artísticas. O lema que a Secessão gravara na fachada do seu tos tinham-se desenvolvido novas concepções sobre o natural e novos
edifício em 1898 - "A época sua arte, à arte sua liberdade" - podia padrões de beleza. Em tempos recentes, porém, estudos humanísticos e
ter servido igualmente à nova escola vienense de história da arte de clássicos tinham imbuído o público de um sentido de primazia, se não
WickIwff. Assim como Klimt e a Secessão rejeitaram a tradição das superioridade, da arte clássica. Assim surgira urna antítese entre o pú-
Belas-Artes e o realismo clássico da cultura da Ringstrasse, da mesma blico orientado para o passado e o artista em contínuo avanço. Nos
forma Wickhoff e Riegl nos anos 1890 investiram contra o primado da tempos modernos, disse Wickhoff, as classes cultas, levadas pelos indi-
estética clássica. Enquanto seus predecessores de meados do século ti- víduos de erudição - importantes, mas com "mentes de segunda ca-
nham descartado a arte romana tardia e a cristã primitiva corno expres- tegoria" ~, tinham passado a identificar a beleza com a obra do pas-
sões decadentes em comparação ao modelo grego, os novos eruditos sado. Passaram a considerar feias as novas visões imediatas da natureza
viram aí uma arte original justificada pelos novos valores culturais que geradas pelos artistas. Essa devoção histórica hipertrofiada, declarava
lhe deram origem. A "decadência" para eles não estava no objeto, mas Wickhoff, agora estava chegando ao fim. A época atual tem sua própria
nos olhos do observador. Riegl reabilitou o barroco em relação ao gosto vida de sentimentos, que o gênio artístico expressa de forma poético-
anterior pela Renascença, o Biedermeier em relação ao neoclássico. Os física. Os que julgam feia a arte moderna, insinuou ele ao seu público
velhos critérios de perfeição formal foram varridos, e com eles as idéias filosófico, são os que não conseguem encarar a verdade moderna. Wick-
correlatas de progresso e declínio estético. Na história da arte; como na hoff encerrou sua palestra com uma eloqüente interpretação da "Filo-
história geral, o que importava para a nova escola vienense era, como sofia" de Klimt. Destacou a figura de Wissen como alguém que irra-
colocou Ranke, a igualdade de todas as épocas aos olhos de Deus. Para diava uma luz consoladora, "como uma estrela no céu noturno" do
apreciar as formas únicas que cada época produzia, era preciso atentar mundo siderado e opressivo de Klimt.
ao que Riegl chamou de Kunstioollen da sociedade: a intenção e o pro- Embora o debate entre as duas culturas representadas por Jodl e
pósito da arte em todas as culturas. Isso não gerava progresso e regres- Wickhoff - a velha ética e a nova estética - se alastrasse pelas tri-
são, mas eterna. transformação: uma apreciação da pluralidade na arte, bunas e imprensa durante a primavera e o verão de 1900, foi na esfera
para além de qualquer padrão estético único a priori. política que a questão finalmente se decidiu. De fato, a pintura de
Wickhoff e Riegl assim trouxeram à história da arte o sentido li- Klimt só alcançou plena relevância no seu contexto político mais amplo.
beral tardio de um fluxo não-teleológico , tão comum na cultura fin·de- Sempre componente importante na vida pública austríaca, a arte veio a
siêcle, e tão claro na própria "Filosofia" de Klimt. A obra deles, como ocupar, em 1900, um lugar particularmente crucial na política do estado.
disse um dos seus discípulos mais destacados, representava "a vitória De forma bastante irônica, a arte moderna granjeou prestígio oficial no
da concepção psicológico-histórica da arte sobre a estética absoluta"." exato momento em que o governo parlamentar moderno se desfazia.
Ela revelava nas artes do passado e do presente "uma riqueza de novas Por quê?
sensações", e abria múltiplos modos de percepção bloqueados pela esté- De 1897 a 1900, o problema da nacionalidade, com seus conflitos
tica do Iluminismo. Fica-se a imaginar quantos sabiam, quando Wickhoff sobre os direitos idiomáticos na educação e administração, tinha prati-
apareceu para defender Klimt, que ele agora empregaria a favor do ar- camente paralisado o governo. A obstrução parlamentar, liderada ora
tista moderno o método analítico que antes utilizara na mesma obra de por tchecos ora por alemães, finalmente impossibilitara a formação de
Rafael que os adversários de Klimt erguiam contra ele: a pintura da ministérios a partir de representantes de partidos. A monarquia, que
Escola de Atenas." iniciara sua era constitucional em 1867 com um Bilrgerministerium (Mi-
"O que é o feio?': Numa polêmica conferência sobre Klimt com nistério dos Cidadãos), suspendeu-a em 1900 com um Beamtenminis-
esse título realizada na Sociedade Filosófica, Wickhoff sugeriu que a terium (Ministério dos Burocratas). O liberalismo austríaco assim rever-
idéia do feio tinha profundas origens biossociais, ainda ativas nos adver- teu para sua tradição de absolutismo esclarecido e domínio burocrático
sários de Klimt." O homem primitivo achava feias as formas que pare- do século XVIII. A formação do Beamtenministerium em 1900 foi con-
ciam prejudiciais à continuação da espécie. O homem histórico eviden- fiada a um alto funcionário imaginativo e competente, o dr. Ernest von
temente atenuara essa conexão. Na medida em que as classes dominan- Koerber (18.50-1919), que estava resolvido a superar a substância polí-

226 227
tica irremediavelmente dissonante da Áustria e a governar o país por Estado não favorecia nenhuma tendência em particular, e que a arte
decreto pelo tempo que fosse necessário. A estratégia de longo alcance devia se desenvolver sem regulamentações, segundo suas próprias leis,
de Koerber era a de desviar as tensões políticas através de uma dupla o ministro demonstrou uma solicitude especial em relação à arte mo-
campanha de modernização, uma na área econômica, outra na cultural. derna. Insistiu que o novo conselho "sustente [ ... ] a brisa fresca que
Nesses campos, pensava ele, todas as nacionalidades poderiam encontrar . está soprando na arte local, e traga novos recursos a ela". Assim se deu
um interesse comum superior. "Batem aos portões do Império questões que, enquanto os outros governos europeus ainda se afastavam da arte
materiais e culturais", Koerber declarou ao Reichsrat no seu discurso moderna, a velha monarquia habsbúrgica fomentou-a ativamente.
de abertura. "A administração não pode deíxã-los de lado [simplesmen- Wilhelm von Hartel (1839-1907) estava em boas condições, por
te] porque os problemas políticos e nacionalistas ainda não estão re- temperamento, ligações pessoais e convicções acadêmicas, para imple-
solvidos." Empregando "todo o poder do Estado a serviço da cultura e mentar a nova política artística." Em seus tempos de estudante pobre,
da economia", Koerber pôs-se a trabalhar na renovação da burocracia, ele tinha sido preceptor de Karl Lanckoronski, filho de uma poderosa
imbuindo-a de um novo espírito de serviço social, "para transformar família aristocrática polonesa. Lanckoronski tornou-se posteriormente
[a ela] num instrumento moderno"." Para comandar as duas frentes um grande colecionador de objetos de arte, e usou sua influência para
da sua ofensiva, Koerber escolheu dois destacados professores da Uni- promover a carreira profissional e administrativa do seu ex-preceptor.
versidade de Viena. O grande economista Eugen Boehm-Bawerk se tor- Como professor de cultura clássica, Hartel esteve com o professor
nou ministro das Finanças, encarregando-se do desenvolvimento de uma Wickhoff na luta por uma nova história que ultrapassasse as idéias de
tributação progressiva e reformas da política econômica. Wilhelm Ritter progresso e decadência. Em 1895, Hartel e Wickhoff trabalharam jun-
von Hartel, respeitado como importante acadêmico de estudos clássicos tos numa obra que ainda figura como um clássico pioneiro dos estudos
e judicioso administrador na área da educação, terreno delicado quanto interdisciplinares: a edição de um antigo códex cristão, o "Gênesis de
à questão das nacionalidades, assumiu o Ministério da Cultura. Durante Viena". Hartel editou o texto bíblico grego, ao passo que Wickhoff fez
qua tro anos (1900-1904), o ministério de Koerber empenhou-se em sal- uma análise das suas ilustrações romanas, mostrando que o que fora
var a Áustria através do desenvolvimento econômico e cultural," considerado um éco decadente da pintura grega era, na verdade, uma
Nesse quadro de política supranacional, era plenamente coerente o magnífica transformação e adaptação dos estilos e modalidades clássicas
incentivo do Estado ao movimento secessionista. Seus artistas tinham de representação ao sistema de valores romano-cristão em surgimento."
um espírito verdadeiramente cosmopolita, à semelhança da burocracia Assim como Hartel tinha-se dedicado, na vida acadêmica, a ultra-
e da classe média alta de Viena. Numa época em que os grupos nacio- passar os "ideais sacrossantos da arte e concepções de estilo" ,32 como
nalistas vinham desenvolvendo artes étnicas separadas, a Secessão to- executor de uma política cultural também deu todo o respaldo oficial
mara o caminho oposto. Deliberadamente abrindo a Áustria a correntes ao movimento moderno. Através do Conselho de Artes, ele poderia in- '
européias, ela tinha reafirmado em tom moderno o universalismo tradi- duzir secessionistas importantes a formular a política de Estado. O ar-
cional do Império. Uma porta-voz da Secessão explicou seu engajamen- quiteto Otto Wagner, que idolatrava Klimt corno "o maior artista que
to no movimento como "uma questão de defender uma cultura pura-
mente austríaca, uma forma de arte que soldaria todas as características (*) A carreira, de Hartel é modelar para a burocracia liberal culta. Filho de
da grande diversidade de povos integrantes numa nova e orgulhosa uni- um tecelão de linho, ele' ascendeu à burocracia educacional e à nobreza de serviço
público por uma combinação entre capacidade acadêmica, tato e apadrinhamento
dade", o que, em outro lugar, ela chamou de "Kunstoolk" (povo artís-
aristocrático. De 1896 a 1899, foi chefe de seção encarregado das escolas secundá-
tico)." O ministro da Cultura, antes mesmo da formação do ministério rias e universidades. Ele desempenhou um papel central na admissão de mulheres
Koerber, usou termos notavelmente parecidos, ao mostrar as pretensões aos estudos universitários, e no tratamento paciente com a agitação estudantil
do Estado com a criação de um Conselho de Artes, em 1899, como nacionalista. Como muitos outros liberais progressistas, Hartel era um wagneriano
fanático, mas não tolerava o anti-semitismo. Enfrentando ataques anti-semitas no
entidade que representaria os interesses oficiais. Ele ressaltou o poten-
Parlamento, ele defendeu a entrega de um prêmio literário a Arthur Schnitzler,
cial das artes para a superação do conflito de nacionalidade: "Embora A despeito do seu ar de professor severo, era conhecido pela sua disposição
cada evolução se enraíze em solo nacional, já as obras de arte falam espirituosa nos salões da "segunda sociedade", onde homens de negócios e inte-
uma linguagem comum e, entrando numa nobre competição, levam à lectuais ainda se reuniam e se misturavam livremente. Cf. A. Engelbrecht, "Wilhelrn
Ritter von Hartel", Biograpbiscbes [abrbucb für die Altertumswissenschaft, XXXI
compreensão mútua e respeito recíproco"." Ainda que declarasse que o
(1908),7'-107.

228
229
já pisou na terra"," e Karl Moll, pintor com boa cabeça para negócios,
tiveram uma participação decidida nas deliberações do Conselho." Uma
I cartolina amarela [ ... ] infelizmente sem [ ... ] a forma triangular dos
cartões que, em tempos anteriores e mais ditosos, distinguia os judeus
série de artistas modernos recebeu encomendas de quadros e projetos dos cristãos" .37
arquitetônicos, além de cargos docentes. Os secessionistas, além de pro- Sem se intimidar com os ataques à sua obra, e encontrando apoio
jetar alguns dos principais edifícios públicos da Áustria, ainda desenha- no barão Von Hartel, que recusara calma e firmemente o protesto do-
ram selos postais e as moedas do país.*35Mas o projeto artístico mais cente, KIímt prosseguiu no trabalho, para concluir a peça que comple-
caro a Hartel, e desde o começo com a firme pressão da Secessão, foi mentaria a "Filosofia". Em 15 de março de 1901, a "Medicina" foi
a criação de uma Galeria Moderna. Ela foi ratificada pelo imperador em apresentada pela primeira vez na Casa da Secessão (figura 46). Nova-
junho de 1902, e abriu suas portas em abril de 1903. Enquanto isso, mente, Klimt contrapunha à cultura do progresso científico uma visão
Hartel dedicou-se ativamente a aumentar, por compra e doações, o acer- estranha e chocante. Ele apresentou o campo de ação da medicina como
vo moderno do Estado. Foi esse contexto de política artística que rece- uma fantasmagoria da humanidade semi-sonhadora, mergulhada numa
beu as pinturas de Klimt para a universidade. serni-entrega aos instintos, passiva no fluxo do destino. A morte ocupa
Infelizmente para Klimt e as' intenções do governo, o patrocínio ',~
o centro desse rio da vida, e seu véu negro gira entre os corpos con-.
oficial dos secessionistas não passou incólume. A linguagem da nova fundidos dos viventes. Como na "Filosofia", há uma figura sacerdotal
arte, longe de atenuar os antagonismos de uma nação dividida, lançou em primeiro plano, intermediária entre os observadores e o theatrum
mais lenha à fogueira. Dos corredores da universidade, o fogo se espa- mundi existencial de Klimt: Higéia, Mulher orgulhosa, alta', poderosa,
lhou para a imprensa, e logo a seguir para a arena política. Uma coisa Higéia é a última representante protetora andrógina entre os tipos -que
era o governo lidar com professores que farejavam uma contracultura marcaram o período médio de Klimt (1897-1901). Como a maioria 'das
subversiva na primeira pintura para forro de Klimt - o ministro Von anteriores - duas das três Palas Atena, a Nuda oeritas e Wissen -
'<;
Hartel e seu Conselho de Artes simplesmente ignoraram a petição de- Higéia encara o espectador de frente, imperiosamente, como que nos
les.36Já totalmente diferente era lidar com a oposição de conservadores obrigando a um reconhecimento da visão existencial às suas costas. O
católicos e a nova direita. A nota mais estridente entre o alarido contra espetáculo das Vfdas suspensas a que Higéia preside está marcado por
a "Filosofia", da parte da imprensa filistina, veio do Deutscbes Volks- um contraste entre a substancialidade plasmada descontínua das figuras
blatt ; órgão dos social-cristãos do prefeito Lueger, e era o grito do individuais e o caráter amorfo de suas relações no espaço. As figuras
anti-sernitismo. O Volksblatt achou jeito de identificar Klimt e Wick- vagueiam ao acaso, ora comprimidas, ora flutuando à parte, mas quase
hoff com os judeus, embora ambos fossem gentios - através da So- sempre impermeáveis entre si. Embora os corpos às vezes se unam, não
existe nenhuma comunhão entre eles. Assim a existência psicoíísica in-
ciedade Filosófica. A Sociedade convidara Wickhoff para falar a favor
dividual da sensualidade e do sofrimento é abstraída de qualquer terreno
de Klimt e, como se isso não bastasse, ela acolheu a sua defesa com
metafísico ou social. A humanidade está perdida no espaço."
"aplausos prolongados e frenéticos". Tal adulação da arte "imoral" não
Klimt não teve a menor preocupação em representar a ciência mé-
era surpreendente, comentou o repórter do Volksblatt, visto que, naque-
dica tal como concebiam-na os seus praticantes. O crítico da Medizin-
le bastião de ativismo liberal, "as carteiras dos membros eram feitas de
ische W ocbenscbrijt podia lamentar com justiça que o pintor tinha
~r ignorado as duas principais funções do médico: a prevenção e a cura."
(*) O edifício da Caixa Econômica e a igreja no Hospital Steinhof, de Otto
Wagner, eram talvez os edifícios monumentais mais radicalmente modernos cons- A sua Higéia simplesmente proclama, em sua postura hierática e atra-
traídos por um Estado europeu desde a Torre Eiffel em 1889. Koloman Moser vés dos símbolos a ela dados pela tradição grega, a ambigüidade da
projetou os selos postais da série 1908·1913. Alfred Roller se tornou o cenógrafo nossa vida biológica. Na lenda grega, Higéia é a ambigüidade por exce-
da Ópera da Corte, sob a direção de Gustav Mahler. Os secessionistas - parti-
cularmente o enérgico Otto Wagner - freqüentemente se queixavam de não ganhar lência; por isso, está associada à serpente, a mais ambígua das criaturas.
concursos ou cargos oficiais, mas, considerando a hostilidade de largo setor do Higéia e seu irmão Asclépio nasceram do lodo telúrico, terra da morte,
público à sua arte, conseguiram se sair notavelmente bem. A instituição de ensino sob forma de serpentes. A cobra, criatura anfíbia, símbolofálico com
que, de 1899 em diante, foi o principal bastião dos secessionistas era a Escola associações bissexuais, é o grande anulador das fronteiras: entre mar e
de Arte e Ofícios. O arquiteto Josef Hoffmann, os pintores Koloman Moser,
A1fred Roller e Felician von Myrbach (diretor), e o escultor Arthur Strasser - terra, entre homem e mulher, entre vida e morte. Esse caráter condiz
todos secessionistas - obtiveram indicações para a universidade. bem com o interesse pela androginia e o redespertar homossexual do [in-

230 23.1
t
~
r

de-siêcle: de um lado, expressões de liberação erótica, de outro, o. medo


masculino da impotência. Sempre que intervinha .a dissolução do ego -
fosse na união sexual ou na culpa e morte -, erguia-se a cabeça da
cobra. Klimt tinha explorado esse simbolismo de modo defensivo em
Palas, de modo agressivo em Nuda ueritas, de modo sedutor em suas
cobras-d'água. Agora, ele o emprega filosoficamente em Higéia, deusa
das polivalências. Higéia, ela mesma uma transformação antropomórfica
da serpente, oferece ao réptil a taça do Letes, para que beba do seu
fluido primordial." Assim Klimt proclama a unidade da vida e da mor-
te, a interpenetração da vitalidade instintiva e da dissolução pessoal.
Essa declaração simbólica pode ser apreendida sem uma compreen-
são racional, como demonstraram os contemporâneos de Klimt. Embora
Higéia suscitasse reações agressivas, a maioria dos críticos hostis de
Klimt não tinha idéia do significado das cobras e do inflexível jogo de
Higéia com elas. A indignação dos críticos dirigia-se principalmente
contra a "indecência" das figuras no segundo plano. Na grande tradi-
ção, a nudez tinha sido legitimada com representações idealizantes. O
que ofendia em Klimt era a concretude naturalista dos corpos, suas pos-
1-.
turas e posições. Foram duas as figuras que mais chocaram as sensibilida-
des convencionais: a mulher nua à esquerda do quadro, flutuando com
seu pélvis à frente, e a mulher grávida no canto superior direito."
Com a "Medicina", o trovão que rugia coma "Filosofia" estourou
numa tempestade violenta, com conseqüências cruciais para a autocons-
ciência de Klimt, como homem e artista." Agora, não eram mais simples
professores, mas também políticos importantes a atacar sua obra. O pro-
curador imperial ordenou o confisco do número de Ver Sacrum que
trazia esboços da "Medicina", alegando "ofensa contra a moral pública".
O presidente da Secessão instaurou e ganhou uma ação legal para sus-
pender a proibição da censura, mas a atmosfera continuou carregada de
cólera."
Ao mesmo tempo, um grupo de deputados da velha e nova direita,
incluindo o prefeito Lueger, pressionou o ministro Von Hartel, convo-
cando-o para prestar contas no Reichsrat. Numa interpelação formal,
eles perguntaram ao ministro se ele pretendia, com a compra de "Medi-
cina", reconhecer oficialmente uma escola artística que ofendia o senso
estético da maioria da população. Dessa forma, a política do governo
Koerber de utilizar a arte moderna para sanar clivagens políticas come-
.~~~ çou, pelo contrário, a aprofundá-las. Von Hartel, pelo seu engajamento
pessoal na nova arte, originalmente elaborou uma resposta desafiadora
aos seus críticos, elogiando a Secessão por revitalizar a arte austríaca e
recuperar sua posição internacional. O rascunho do discurso concluía:
Figura 46. Medicina, pintura para forro da universidade, 1901. "Opor-se a tal movimento seria prova de total incapacidade para enten-

232 233
..
li ~"

iJ'
/,

der as responsabilidades de uma política moderna nas artes; apoiá-lo é,


*~'.: Por quatro anos a partir de 1897, quando o corpo docente da fa-
aos meus olhos, uma das nossas tarefas mais primorosas't." ..!:
culdade de medicina da Universidade de Viena indicou pela primeira
No momento em que entrou na Câmara, porém, o ministro já per- vez o nome de Freud para uma cátedra, a promoção se manteve em
mitira que a prudência suavizasse sua retórica direta. Trouxe sua posi- suspenso no Ministério da Cultura. Na época, não se deu nenhuma razão
:~ .
ção a um terreno mais neutro, a saber, dar àprovação oficial a qualquer para o adiamento, e tampouco se descobriu depois. No outono de 1901,
.:'f.
tendência artística estava além do poder do Ministério da Cultura. Os Freud convenceu seus padrinhos universitários a reabrir o processo.
movimentos artísticos, disse o ministro ao Reichsrat, brotavam de "um Freud também se dirigiu pessoalmente ao Ministério da Cultura. Lá,
desenvolvimento progressivo contínuo da vida material e intelectual em consultou um ex-prefessor, Sigmund Exner, funcionário a serviço de Von
sua totalidade". Eles não podiam ser fabricados nem destruídos pelos Hartel. (Quando ainda era professor, Exner também apoiara a petição
governos. Só prosperariam em liberdade, e só sobreviveriam com o $ de JodI contra a "Filosofia" de Klimt.) Exner deu a entender a Freud
apoio do público artisticamente sensível." Hartel, portanto, negou que ~~ que seria necessária alguma intervenção pessoal junto ao ministro, para
fi que sua promoção fosse efetivada. Freud recorreu inicialmente a Elise
a Secessão ocupasse algum lugar especial no patronato do Estado.
Embora o ministro não cedesse à pressão para recusar a "Medi- Gomperz, paciente sua há quinze anos. Ela era a esposa de um famoso
cina" de Klimt, sua interpelação marcou uma virada na atitude do go- classicista liberal, Theodor Gomperz, que tinha sido colega de Hartel
verno para com Klimt. Com as pinturas para forro, o esperado trunfo na universidade." Em 1879, quando ainda era estudante, Freud tinha
político da arte moderna tinha virado um risco político, o que ficou trabalhado para Gomperz, traduzindo "A sujeição das mulheres", de
claro com o pronunciamento cautelosamente modificado de Von Hartel. John Stuart Mill, e outros ensaios para a edição alemã das obras reu-
A partir daí, sucederam-se rapidamente outros sinais de um esfria- nidas de Mill, a cargo de Gomperz." Este não se envolveu pessoalmente
mento oficial. Quando Klimt foi escolhido para uma cátedra na Acade- na promoção de Freud. Sua mulher intercedeu junto ao ministro, mas
mia de Belas-Artes, o Ministério, contra todas as expectativas, não con- sem resultado,"
firmou a indicação." Ao mesmo tempo,' Friedrich JodI, o principal Freud, então, procurou e encontrou outra "protetora", como cha-
adversário de Klimt na universidade, foi indicado para uma nova ca- mava suas Palas Atena de boas relações. Era a baronesa Marie Ferstel,
deira de estética na Universidade Técnica de Viena. O discurso inau- esposa de um diplomata e nora de Heinrich Ferstel, o arquiteto que
gural de Jodl pode ser lido como um grito de vitória sobre Klimt e a construíra a nova universidade. Através de um amigo comum, a baro-
Secessão. Ele atacou as tendências artísticas modernas pelo seu subje- nesa entrou em contato com Hartel, em favor do seu analista, adoçando
tivismo e uso de formas micênicas e outras modalidades primitivas. seu pedido com a promessa de conseguir acóntribuição de um quadro
Defendeu a necessidade de uma crítica científica, para devolver o espí- para um dos projetos prediletos de Hartel, a Galeria Moderna, que logo
rito objetivo à arte. Por fim, Jodl reafirmou o passado como única seria inaugurada. Aparentemente, ela pensava num quadro de Arnold
escola adequada para o crítico e o artista." Bõcklin. Esse artista de meados do século era aceito pelos tradicionalis-
A política da Secessão afetou positivamente uma outra carreira aca- tas como um realista clássico, e reverenciado pelos secessionistas como
dêmica, numa esfera totalmente diferente: a de Sigmund Freud. Em- pioneiro da modernidade, pelas suas pinturas sobre temas ligados à vida
bora, até onde se saiba, Freud fosse estranho a Klimt, seus conflitos e instintiva e à morte. Como sua obra assim servia de ponte entre as
à pintura moderna em geral, ainda assim a aprovação final da sua cá- facções tão agudamente divididas quanto às pinturas de Klimt para a
tedra deveu-se ao envolvimento do ministro Von Hartel com a nova universidade, Bõcklin era um nome que se ajustaria bem às necessida-
arte. A história da demorada promoção de Freud é complexa demais des de Hartel em 1901-2. Infelizmente, a baronesa não conseguiu obter
para ser inteiramente relatada aqui.v" Ela nos afastaria 'de Klimt, para o Bõcklin de sua dona, a tia rica de Marie Ferstel, Mas Hartel já dera
a densa rede de ligações pessoais na elite intelectual-burocrática, que andamento ao processo de promoção de Freud. A baronesa, por seu
Freud resolveu relutantemente explorar para sua promoção, no outono lado, ao invés de um Bõcklin, enviou a Hartel um quadro de Emil
de 1901. Mas um rápido relance nessa trama talvez mostre como as Orlik, um dos pintores secessionistas mais conservadores.P O ministro
vidas e carreiras podiam se entrelaçar na "segunda sociedade" vienense, manteve sua promessa de que a baronesa seria a primeira a saber, quan-
onde convergiam a política e a cultura. do o imperador aprovasse a promoção de Freud. Num dia de março de
1902, conta-nos Freud, a baronesa Ferstel chegou ao seu consultório
(*) Sobre o seu papel na evolução intelectual de Freud, ver o quarto ensaio. "acenando uma carta expressa do ministro" com as boas novas.

234 235
O círculo da política acadêmica se completou. Hartel fora muito prudência" não avançara além da forma preliminar de um esboço a óleo,
temperado pela política das pinturas da universidade para aprovar a in- submetido a aprovação em 1898. Quando Klimt voltou à sua execução,
dicação de Klimt para a Academia de Belas-Artes. Mas a sua posição em 1901, estava pronto para cobrir a obra com toda a sua indignação
da patrono da arte moderna ainda era forte o suficiente para que a e sentimento ferido. O tema — a própria lei, a característica mais re-
promessa de uma aquisição para a sua Galeria Moderna o incitasse ,a verenciada da cultura liberal da Áustria — prestava-se bem à sua von-
elevar Freud à cátedra cobiçada. Talvez Freud, apesar de sua evidente tade ardente de fazer declarações subversivas. Lembramo-nos do espírito
indiferença, pela pintura moderna e suas políticas, entendesse a prudência contrapolítico semelhante com que Freud revestiu suas revelações do
agora mostrada por Hartel, na carta que escreveu ao seu melhor amigo: mundo do instinto em A interpretação dos sonhos. Klimt bem ,/po efra-
"Creio que, se um certo Bõcklin estivesse em sua posse [baronesa ter se apropriado, para a "Jurisprudência", da legenda ameaça ra da
Ferstel] e não com sua tia [E. ] eu teria sido nomeado três meses Eneida que Freud, dois anos antes, colocara na página de ro›..o do seu
antes".53 O mundo da elite vienense era pequeno; a notícia dos humores livro sobre os sonhos: "Flectere si nequeo superas, Acheroka moveba
do ministro realmente circulava. O mesmo vento de fortuna política que [ Se não posso dobrar os poderes superiores, moverei o inferna]". Como
açoitava Klimt soprou a favor de Freud. Freud em circunstâncias parecidas no final dos anos 1890, Klimt pôs
sua experiência frustrante da autoridade social — acadêmica, política e
burocrática — a serviço da percepção sócio-psicológica, através da auto-
revelação.
V Quando Klimt pôs-se a trabalhar na "Jurisprudência" em 1901,"
ele tinha à frente o estudo de composição (figura 47) que submetera à
Kunstkommission em maio de 1898. Esse esboço diferia em espírito e
A experiência do opróbrio público e rejeição profissional, nesse meio estilo das outras peças, "Filosofia" e "Medicina". A sacerdotisa da "Fi-
tempo, afetara Klimt com uma força atordoante. A profundidade de sua losofia" e Higéia na "Medicina" eram figuras misteriosas, divinatórias,
. reação evidencia-se não em fontes literárias — Klimt quase não se ex- ern posturas sglenes e estáticas, ao passo que a figura da Justiça foi
primia verbalmente —, mas na sua arte. Depois de 1901, sua pintura inicialmente concebida de modo vivo e ativo, brandindo sua espada ao
manifestou duas reações emocionais diametralmente opostas, ambas sin- cortar o ar, para aparar a ameaça de um sombrio polvo de males e cri-
tomáticas de um ego ferido e enfraquecido: raiva e retraimento. Klimt mes aos pés. Nessa versão, Klimt nitidamente idealizava a Justiça, tra-
desenvolveu uma linguagem visual específica para cada uma dessas rea- tando-a com as pinceladas enérgicas e luminosas de uma mulher-em-
ções, durante quatro anos de dolorosa oscilação entre luta e fuga. Co- branco de Whistier. A ambientação espacial também difere da presente
nhecemos muito pouco de sua vida pessoal para conseguirmos acompa- em "Filosofia" e "Medicina"; ao invés da atmosfera pesada e viscosa
nhar seu desenvolvimento psicológico com provas biográficas claras. O desta última, a "Jurisprudência" tem um ar brilhante e leve. Assim,
fato de estar nos quarenta anos, quando a crise eclodiu seriamente, pode Klimt originalmente via a Justiça livre das ambigüidades da Filosofia e
ter acrescentado alguns ingredientes pessoais privados à sua desgraça da Medicina. Para destacá-la delas, ele empregou o mesmo contraste de
pública. O que se pode dizer é somente o que sugere a sua pintura: estilo e técnica que empregara nos dois painéis para o salão de música
Klimt passou por um "reembaralJaamento do eu". Isso porque ele criou de Nikolaus Dumba, "Música" e "Schubert" (ver acima, pp. 212-3).
uma arte de cólera e agressão alegorizada que dissolveu seu estilo orgâ- Enquanto transmitira uma realidade psicometafísica através de urna téc-
nico anterior. Ela, por sua vez, deu lugar a uma arte de retraimento e nica substancialista e naturalista, agora usava um meio evanescente e
abstração utópica. O acontecimento externo que selou formalmente sua impressionista para retratar um ideal. Podemos concluir que, em 1898,
ruptura com a autoridade pública foi a demanda judicial, em 1905, para Klimt colocava a Jurisprudência no mesmo âmbito ideal onde estava a
a reaquisição das suas controversas pinturas para a universidade, agora Hau.smusick de Schubert — opção condizente com um filho ainda leal
em posse do Ministério. 54 Mas o contra-ataque aos críticos se iniciou na da cultura da lei.
pintura já em 1901, na esteira da crise sobre a "Medicina". Na terceira Quando retomou o trabalho na "Jurisprudência", em 1901, depois
e última pintura para forro para a universidade, a "Jurisprudência", da controvérsia da universidade, Klimt alterou drasticamente sua com-
Klimt deu a expressão mais veemente à sua cólera. posição. A nova versão (figura 48) deve ser examinada à luz do esboço
Durante a controvérsia sobre as duas primeiras pinturas, a "Juris- anterior da "Jurisprudência", bem corno da "Filosofia" e "Medicina",

236 237
"i'

Figura 47. Jurisprudência, estudo de composiçao Figura 48. Jurisprudência (versão final),
para a pintura para forro da universidade, c. 1897-8. pintura para forro da universidade, 1903-7.

238 239
para se ver quão drasticamente sua visão se modificou. O cenário passou
do Céu varrido por brisas da versão I para um Inferno sem ar. A figura
central não é mais uma Justiça em ascensão, mas uma vítima indefesa
da lei. Ao elaborar a nova imagem, Klimt incorporou três, sugestões
feitas pela comissão de avaliação das pinturas, para o aperfeiçoamento
da versão de 1898. Mas incorporou-as ironicamente, de modo que cada
alteração aumentou o elemento de terror nessa sua apresentação da lei.
A comissão solicitara: (1) "uma caracterização mais nítida da figura
central"; (2) "mais calma no tom da pintura"; (3) um "aperíeiçoamen-
to correspondente no vazio muito perceptível da metade inferior". Em
resposta à primeira demanda, o homem nos tentáculos da lei substituiu
com um realismo excessivamente concreto o impressionismo puro e diã-
fano da Justiça na versão I. Klimt' trocou o céu fresco e agitado da
versão I pela "calma" estática e pegajosa da câmara de execuções da
sociedade. E o "vazio muito perceptível" foi preenchido com o espe-
táculo assustador da lei corno punição impiedosa, a consumir suas víti-
mas. Assim, o pintor obedeceu às três exigências dos seus clientes, num
sentido estritamente literal, zombando dos seus valores com mais agres-
sividade do que nunca.
Klimt também rompeu na "Jurisprudência" com conexões relativas
aos dois outros painéis concluídos. Ele transformou o espaço, inverteu
a estrutura e radicalizou a iconografia. O espaço fictício da "Filosofia"
e "Medicina" ainda fora concebido como um proscênio em três planos
1i
verticais em fuga. A perspectiva do observador situava-se na platéia
frente ao palco. As figuras alegóricas,Wissen e Higéia, ficavam num
segundo plano, na frente inferior do palco, como mediação entre os es-
pectadores e o drama cósmico. O drama propriamente dito ocupava o
terceiro plano espacial, mais profundo, e dominava o conjunto. Na

~
"Jurisprudência", o espaço inteiro se ajunta numa perspectiva unificada
em fuga, mas também se secciona lateralmente num mundo superior e
num inferior. Na versão r, o foco era celestia!, ao passo que na versão n
ele é infernal, subterrâneo, até submarino. Na mundo superior, muito
distantes de nós, estão as figuras alegóricas da Jurisprudência: a Ver-
dade, a Justiça e a Lei. Iconograficamente, são as equivalentes, as irmãs
I
(':

de Hígéia e da sacerdotisa filosófica. Mas, à diferença delas, as primeiras


não desempenham nenhum papel mediador que nos aproxime dos mis- Prancha r. Gustav Klimt, Palas Atena, 1898.
térios de sua esfera. Pelo contrário, recolhidas às suas alturas, elas nos
abandonam ao reino do terror, para partilharmos do destino inominável
da vítima. Assim, as pretensões da lei se expressam apenas na ordenação
"da parte superior da pintura. É o mundo social oficial: um ambiente
desna turado de pilares e muros de pedra ornados com padrões retilíneos
em mosaico. Os juízes lá se encontram com seus rostos secos e miúdos,
>."$ ''f.!i;.::

.~ , '.'.

Prancha Il. Gustav Klimt, Cobras-d'ãgua,


II, 1904·7.

Prancha III. Gustav Klimt, Judith e Holojernes, 1901.


Prancha v. Gustav Klimt,
Retrato de Fritza Riedler, 1906.

Prancha IV.
Gastau Klimt, Retrato de
.argaret Stonborough-W ittgenstein,
1905.

Prancha VI. Gustav Klimt, Retrato de Adele Blocb-Bauer, 1907.


:~;"""~'.,
~~;~', -.;'.
f~!i:
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cabeças sem corpo. As três figuras, alegóricas também sã~ impassíveis,
,f
-,
belas mas exangues, em suas roupagens geométricas estilizadas.
,~ Entretarito, a realidade da lei' não está, nesse reino superior de re-
~ gularidade estilizada e decoro estático, e sim abaixo, no espaço como
'~ que vazio onde é executada a justiça. Não se registra nenhum crime,
~ apenas o castigo. * E o castigo é sexualizado, psicologizado como um
1 pesadelo erótico num inferno viscoso. A iconografia, rica em alusões,
faz uma catexe entre imagens e idéias clássicas e modernas. "A geni-
tália", disse Blake, "é o local do juízo final." A ansiedade da castração
rege a cena central de Klimt: a vítima masculina - passiva, abatida, im-
potente - está presa numa armadilha carnal, uni pólipo em forma de
útero que o envolve. As fúrias que presidem a execução são, ao mesmo
..
~'~'
tempo, [emmes [atales jin-de-siêcle e bacantes gregas. Seus contornos
sinuosos e tranças sedutoras provavelmente se inspiraram nas figuras fe-
mininas do pintor holandês art nouueau Jan roOrOpO.56 Mas Klimt con-
t··
feriu-lhes o caráter cruel das mênades clássicas, semelhantes a Górgonas.
As verdadeiras "oficiais da lei" não são as figuras idealizadas ao alto,
mas essas fúrias serpentinas. E em torno delas, no vazio do inferno,
espirais espessas de cabelos se enredam e
volteiam numa medonha fanta-
sia.sexàal.
O mundo dividido da lei de Klimt, com as três graças ,da justiça
acima e as três t&rias do instinto abaixo, lembra a poderosa decisão da
Ôrest'éia de Esquílc, onde Palas Atena institui o domínio de Zeus pelo
cUreito racional e poder patriarcal, contra a lei da oendetta e da vingança
matriãrcal. Quando Palas monta seu tribunal de justiça socializada, o
Areópago, ela persuade as Fúrias a se tornarem suas padroeiras, e sub-
juga o poder delas integrando-as em seu santuário. Assim a razão e a civi-
lização comemoram sua vitória sobre o instinto e a barbãrie." Klimt
inverte esse sim.bolismo clássico, devolvendo às Fúrias o. seu poder ori-
ginal; e mostrando que a lei não dominou a violência e a crueldade, mas
apenaaocultou-as e legitimou-as. Das "profundezas dos mais distantes
rec§pGj~.Q$;sp~priós~ê;T(:r~a':,.a queb:tena~ enviara as "filhas da noíté";
Prancha IX. Gustav Klimt, Morte e vida, 1916; nax~rsão,~eEsqüilo;Klimt em sua~óleraeangústia invoca-as nova-o
m.efÍ.~~õDt:p<,\lJ~.de'ter afirmado o poder instintivo como força superior •
à pôlftiéa, Klimt não -poderia mais "adorar os restos humildes e muti- :
lados do Templo de Minerva", como fezFreud (ver pp. 198-9). Palas,

~*) Karl Kraus, numa de suas muitas críticas hostis a Klimt, observou
sarcasticaménte que o artista, "que já tinhapintado com, cores luminosas o pálido
sefilblante dos. seus pellsamentos, quispintara 'JtÍti&pr~d~ncia' e [ao invés disso]
sjrnbolizoü~direitopenal". Assim, Kraus'captouaver'dade da pintura de Klimt,
mas sua ,fnténç~otrítica:%e escapou totalmente, Dj~.Fdék~I,·. ri.· '147,21 de.novem-
bro dé'l:903; 10. . .' .

241

~
.. -' ...
que Klimt tinha pintado em tantos papéis, está simplesmente ausente do mais acabado a mulher grávi-
teatro de justiça que era exclusivamente seu. O retorno do reprimido da que tanto escandaliza o pú-
vem marcado pelo desaparecimento da deusa. Assim, no último painel da blico' na "Medicina". Klimt
série, que devia celebrar "o triunfo da luz sobre: as trevas", Klirnt pro- apresentou o seu tema com
clamou inequivocamente ó primado das sombras, "movendo o inferno" o . máximo de sensibilidade
na medida em que desenterrou e revelou, através do símbolo das fúrias, aos sentimentos ambíguos de
o poder do instinto que subjaz ao mundo político da lei e da ordem. Em uma mulher nas últimas pe-
Ésquilo, Palas entronizara a justiça sobre o instinto; Klimt desfez sua sadas semanas antes do par-
obra to. Os dois quadros aumen-
Embora a "Jurisprudência" de Klimt fosse uma agressiva exposição taram a tensão entre o pintor
de fatos, também tinha o caráter de um cri de coeur. A própria forma e o Ministério da Cultura.
da acusação, com sua ênfase no sofredor individual, supunha uma passa- Em 1903, o barão Von Har-
gem do ethos público para o pathos privado. Não há nenhum amor jati tel convenceu o relutante
nietzscheano na vítima idosa da lei de Klimt — apenas marcas de fra- Klimt a não expor "Expecta-
queza, marcas de infortúnio. A "Jurisprudência" é a única das pinturas ção", a fim de não pôr em
para a universidade que tem uma figura masculina central. Mas o ho- risco a aceitação dos seus
mem é muito diverso da figura alegórica masculina que Klimt pintara murais para a universidade. 59
antes, o Teseu do primeiro cartaz da Secessão, herói simbólico da revolta OMinstéroambeu
edípica dos artistas (figura 37). Lá, o jovem vigoroso mergulha sua es- impedir a mostra de "Peixe
pada no Minotauro da tradição. Agora, a vítima envelhecida sofre um dourado" numa exposição de
castigo particularmente apropriado ao crime edípico : a castração, a re- arte austríaca na Alemanha.w
dução à impotência. Pode-se conjeturar que Klimt esteja expressando, A seguir, não permitiu que a
além—da e da cólera, um outro sentimento típico do ego enfraque- "Jurisprudência" ocupasse o
,cid' a culpa. delito de Klimt contra os antepassados, para seus adver- lugar central na exposição da
1, s acadêmi os e políticos, não era a licenciosidade sexual? Para uma Feira de Saint-Louis de.1904 . 61
revo avor da libertação erótica, as fantasias de punição sexual in- Vinhaumetdofs
fligida pèras fúrias de Klimt eram totalmente adequadas.* 'Assim, a ico- entre as posições categóricas
nografia sugere que Klimt, sob o látego da crítica, mesmo revidando, do artista e amigos e a pru-
internalizou pessoalmente como culpa pessoal a rejeição de sua missão dência dos burocratas do Es-
artística de liberar a vida instintiva da cultura da lei. Seu próprio de- tado.
safio vinha tingido pelo espírito da impotência.
Outras pinturas dos anos 1901-1903 expressaram a mesma disposi- NNak, •••• •
ção desafiante que predominava na "Jurisprudência". Da "Medicina", • 010 VI 411».
Nea, •

Klimt retirou como temas para pinturas independentes as duas figuras


que mais ofenderam a opinião moralista. Com uma vontade deliberada Em 1902, quando ainda
de chocar, ele explorou ainda mais a franca sensualidade delas. Uma, trabalhava na sua desafiante
chamada "Peixe dourado" (figura 49), apresentava um nu a mostrar im- "Jurisprudência", Klimt se
pudente suas nádegas luxuriosas para o observador. Klimt tinha pensado envolveu num projeto mural
em intitular o quadro "Aos meus críticos", mas os amigos o dissuadi- em maior escala igualmente
ram A outra pintura, "Expectação" [Hoffnung], apresentava de modo
. 58

(*) Na mitologia grega, as Fúrias, pelas suas próprias origens, estão associadas
à violência sexual. Elas surgiram do sémen disperso do seu pai castrado, o Titã Figura 49.
Urano. Peixe dourado, 1901-2.

242 243
importante para a sua evolução artística. Era um vasto friso em come- felicidade", mostra os fracos apelando ao "forte em armas" (figura 52).
moração a Beethoven., pela sua transposição da "Ode à alegria" de Schil- Mas a figura forte não é mais o agressivo Teseu que matou o Minotauro,
ler para a Nona sinfonia. A "Jurisprudência" foi a expressão mais ousada do primeiro cartaz da Secessão. O cavaleiro sai de uma torre em forma
da ira narcisista de Klimt; o friso de Beethoven era o seu oposto: uma de , útero, encorajado por dois espíritos femininos, para ganhar a coroa
manifestação de regressão narcisista e júbilo utópico. A luta encontrou da vitória. "As forças hostis" do 'segundo painel (figura 53) são todas
,

aqui o seu análogo na fuga. Enquanto a política trouxera derrota e so- femininas, à exceção talvez do monstro alado, de formas simiescas, no
frimento, a arte oferecia escapatória e consolo. Tanto no estilo como centro. Elas se situam entre os sofredores e a felicidade. Não há nenhum
na idéia o friso de Beethoven marcou um ponto de inflexão na arte embate heróico, nenhum equivalente à selvagem música guerreira turca
de Klimt. da Nona sinfonia. Como o catálogo afirma expressamente, "os anseios e
A ocasião para essa obra veio com a exposição em Viena de urna es- desejos da humanidade voam para longe delas [as Forças Hostis]". Essa
tátua contemporânea de Beethoven, muito festejada, da lavra do artista postura psicológica é clássica na situação do ego enfraquecido, que en-
de Leipzig Max Klinger (figura 50). Os artistas da Secessão decidiram contra na fantasia um substituto para o poder sobre a realidade: o de-
,

transformar todo o edifício do movimento num templo para a consagra- sejo é soberano; o embate é evitado. Podemos ver os desejos em seu
ção da estátua de Klinger. Certamente, este foi o ponto alto de uma das vôo horizontal por sobre as figura da Música (figura 54) — espíritos
tendências secessionistas já observadas: oferecer na arte um sucedâneo
religioso para o refúgio da vida moderna. Na mostra de Beethoven, todos
os grandes artistas da Secessão contribuíram com tempo e trabalho para
celebrar Klinger tal como ele tinha exaltado Beethoven, um Prometeu es-
tético que mantinha acuados os abutres da vida. Se existiu algum dia um
exemplo de narcisismo coletivo, foi este: artistas (secessionistas) cele-
brando um artista (Klinger) celebrando um herói da arte (Beethoven).
O catálogo da mostra falava do "anseio por uma tarefa grandiosa" por
parte da Secessão; daí "a idéia de empreender aquilo que nossa época
exige que o artista ofereça: o desenvolvimento deliberado do espaço in-
terno [Innenraum] ". A mostra de Beethoven foi, de fato, urna Ge-
samtkunstwerk de interioridade estetizada.
O arquiteto Josef Hoffmann, aproveitando o espaço flexível do edi-
fício da Secessão, transformou-o num santuário labiríntico pseudoprimi- Figura 50.
tivo, de textura áspera. O interior foi realmente uma obra pioneira, Max Klinger,
prenunciando o novo brutalismo (figura 51). Ao longo de corredores Beethoven,
solenes, decorados aqui e ali com placas de cerâmica e esculturas neo- exposto na Secessão,
primitivas, o devoto da arte seguia até alcançar um vestíbulo, de onde 1902.
ele via o sanctum sanctorum, onde Beethoven estava sentado em seu
trono. "Tendo sido preparado por todos os meios possíveis para a devo-
ção [Andacht] ", escreveu a Neue Freie Presse, "a pessoa chega perante
[a estátua.] numa espécie de hipnose." Na inauguração da mostra, Gustav
Mahler aumentou o brilho executando a Nona de Beethoven num ar- -
62 ranjocdespilarocã.
Klimt contribuiu com um friso, uma alegoria em três painéis que
ilustram o poder da arte sobre a adversidade. Embora o tema seja pró-
ximo ao do "Beethoven" de Klinger, Klimt extrai dele o máximo de
suas qualidade prométeicas. O primeiro painel, intitulado "Desejo de

244 245
~

1
.. "

Figura 51. [ose] Hoffmann, interior da Secessão,


exposição Beetboven, mostrando o friso de Klimt, 1902.

246 247
""':"H'~

sonhadores em longos camisolões, irmãs sublimadas das sensuais cobras- uterina da Poesia, com as suas delicadas gavinhas, no terceiro painel
d'água de Klimt. .. de Beethoven. As ventosas de sucção do primeiro se convertem em
O último painel, e o mais interessante, representa a realização flores no segundo. Nos dois casos, a figura central é masculina.
(figura 55). Ele traz a legenda: "O desejo de felícídadeseconsuma na No primeiro, a vítima da justiça - um velho curvado, apanhado
poesia". Aqui, diz o catalogo, a arte "nos conduz ao reino ideal, O único numa armadilha carnal-, no segundo, o vencedor da arte - um jovem
onde podemos encontrar. a. alegria pura, a. fêlid-
dade pura, o amor puro". Klirpt concebeu esse
último painel em torno de uma frase da "Ode à
alegria" de Schiller: "Esse beijo para o mundo
inteiro". Para Schiller e Beethoven, o beijo era
político, beijo da fraternidade entre os homens,
"Recebam esse abraço, ó milhões"," era a exi-
gência universalista de Schiller. Beethoven intro-
duz esse verso através de vozes exclusivamente
masculinas, andante maestoso, com toda a força
e dignidade de um fervor fraterno. Para Klimt,
o sentimento não é heróico, mas puramente eró-
tico. Ainda mais notável é que o beijo e o abraço
se dão num útero. O alto "vôo" tão caracterís-
tico das fantasias de onipotência narcisista termi-
na na consumação ·erótica num útero. E mesmo
nesse paraíso, os cabelos da mulher circundam os
tornozelos do seu amante, daquela forma peri-
gosa que viemos a conhecer tão bem em K1imt.
Mesmo na Arcádia, o sexo é uma armadilha.
Para apreender o pleno significado da crise
de Klirnt em 1901, e a separação entre política e
arte nela implicada, a cena de punição na "Juris-
prudência" e a cena de realização no friso de
Bcethoven devem ser consideradas em conjunto.
Elas se relacionam como um par de opostos, cada
qual com um estilo apropriado à sua idéia. O
símbolo central, nas duas alegorias, é o útero e
a relação masculina com ele. O pólipo em for-
ma uterina da Lei, com os seus tentáculos
ameaçadores, contrasta com a árvore em forma

( ») "Seid urnschlungen ihr Millionen."

Figura 52.
Friso de Beetbouen, painel I:
Desejo de felicidade, 1902.

248
em enlevo, contido com sua companheira dentro de uma coluna com a naturalismo plasmado .rrídimensional para a realidade. Os agentes super-
forma inequívoca de um pênis ereto, sob o caramanchão uterino da feli- visores do destino do homem na política, as fúrias, são apresentados
cidade da Arte. Os dois estilos empregados nessas representações acres- organicamente como megeras carnais, dotadas de substância. Elas são
centam um novo grau de antítese à diferença, já observada antes, entre reais. Em contraste, as participantes do coro ce1estial, que cantam "o
um tratamento linear e bidimensional de idéias não realizadas, e um beijo para o mundo Inteiro" de Schiller, compõem o grupo bidirnen-

Figura 53.
Friso de Beethoven,
painel II:
As forças hostis,
1902.
-para Bizâncio". Yeats deixou para trás a política irlandesa, e Klimt mosaicos e folhas de ouro, Josef Hoffmann, em arquitetura e decoração,
afastou-se de todas as tentativas de trabalhar com Hartele o governo. tomara a frente, substituindo as curvas do art noueau, com suas linhas
"Eu quero me livrar [Ich willloskommenJ", bradouK1imt, explicando e formas orgânicas, pelas formas geométricas retilíneas , que logo se tor-
numa rara entrevista sua decisão de recolher as pinturas da universidade naram a marca registrada da arquitetura e artes decorativas vienenses.
em abril de 1905.* O fato de ter abandonado-
Com raras exceções * * - suas explorações sexuais
em grandes obras, em favor de um partido sim-
bólico oblíquo, sugere que da nova evolução de
Klimt fazia parte o sentimento de estar envelhe-
cendo. Como Yeats a deixar a Irlanda ("não é
um país para velhos"), onde todos estão "presos
'ém [uma 1 música sensual" e "negligenciam os
monumentos do intelecto que não envelhece",
Klimt tentou superar a vitalidade temporal pelo
"artifício da eternidade". Certamente não aban-
donou seu interesse pela vida erótica. Mas, como
Yeats, ele se voltou para Bizâncio, em busca de
novas formas para atenuar as pressões de Eras,
para a dor e para o júbilo, e congelar na forma
os instintos que, outrora, tentara tão ousadamen-
te liberar. Da natureza para a cultura estilizada,
da represen tação direta da experiência psicofísica
para a simbolização formal: assim seguiu seu
curso."
Em 1903, Klimt, embora normalmente não
viajasse, foi duas vezes a Ravena, onde viu os
mosaicos de San Vitale.65 Seus colegas mais ca-
pazes da Secessão, os que tinham passado a se
dedicar às artes aplicadas e projetos de in-
teriores, desde 1899 vinham experimentando

(") Na entrevista, Berta Szeps-Zuckerkandl extraiu


9,~Klimt todo o sentimento de opressão que sofrera com
os múltiplos sinais de desaprovação e constrangimento
por parte do Ministério, Suas queixas culminam na von-
tade de se retirar: "Chega de censura, Estou recorrendo
ao meu próprio auxílio. Quero me Iivrar". Strobl, Alber-
tina Studien, lI, 161-3.
("*) Em particular "Danae" (1907) e "Salomé"
(1909). Ver adiante, pp. 260-1.

Figura 55, Friso de Beetbooen,


detalhe do painel III:
O desejo de felicidade se consuma
na poesia, 1902.

254
",.'..,.."
fi!
;v'··
sional mais abstrato que Klimt jamais pintou. As vibrações ondulantes sugere incorporeidade, corno um grupo de anjos bizantinos.f O con-
em suas vestes cintilantes de flores fazem' eco .ãs representações mais traste se estende à disposição espacial: as fúrias estão equilibradas irre-
sensuais do êxtase feminino de Klimt, mas a sua estilizaçâcno plano guIare dinamicamente no espaço, enquanto os anjos da arte estão esta-
ticamente dispostos, em filas, e mesmo os seus [rissons criam um ritmo
métrico linear. A todos os' níveis, as duas obras dramatizam a relação
negativa entre realidade e idealidade, entre o reino da lei e do poder e
o reino da arte e da graça. O fato de a ambigüidade do sexo, enquanto
punição.e satisfação, ter oferecido o elo simbólico para as duas esferas
~' ,
condiz com o conteúdo instintivo da busca libertadora de Klirnt e o seu
','
destino público.
Assim como a "Jurisprudência" marcou o ponto alto do desafio crí-
tico de Klimt à cultura da lei, na procura da verdade moderna, o friso
de Beethoven foi. a sua declaração mais completa do ideal da arte como
refúgio para a vida. moderna. Em "Beethoven", a utopia do sonhador,
totalmente abstraída da concretude histórica da vida, é, ela mesma,
aprisionamento no' útero, satisfação pela regressão. A inversão órfica da
tradição. prOtnet~ie~ se completa. A sepultura que Klimt abrira em sua
"Música"ern norae da verdade reivindicou novamente o que lhe era de-
vido em nomedabeleza .

.::i'
~ VI I ê-:
Depois da crise da universidade, Klimt renunciou quase totalmente à
pintura filosófica e alegórica. Seu recolhimento ao templo da arte na
mostra de Beethoven teve seu análogo numa espécie de recolhimento a
uma elite restrita. Em suas fases anteriores - fosse como colaborador
da cultura historicista da Ringstrasse ou pesquisador filosófico da modero
nídade para a Secessão -, Klimt tinha sido um artista público. Dirigira
suas verdades para o que supunha ser, pelo menos potencialmente, a so-
ciedade inteira. Tinha pretendido e recebido contratos de autoridades
públicas, para formular mensagens universais. Agora, ele se retraía para
a esfera privada, tornando-se pintor e decorador do baut monde refinado
de Viena. As maiores realizações dos últimos quinze anos de Klimt tal-
vez estejam em seus retratos femininos, a maioria para membros de ricas
: ,- .' ~:. faruíliasj'udaica,s: Outros temas da sua última fase são paisagens alegres,
em
'.

.',f-.'. especial jardins bem tratados. O dinamismo orgânico do seu estilo


dq~ll"p.teo período a~t nouueau desapareceu para dar lugar a um orna-
ii{eri;.ta!ís.1lJ;O
estático e cristalino. Tanto na postura como no estilo, a
tràn~cend~ne~a substituiu o. engajarnento,
Aeveíluçãode Klimt depois de 1902 - social, pessoal e artística
Figura 54. Friso de Beetbooen, detalhe do painel IlI: Música, 1902. -:-,t);~ziàtodas·as características que Yeats imortalizou em "Viajando

2:52
, Na Wiener Werkstiítte - a oficina de artes aplicadas da Secessão muitís- pousado em ramo de ouro, comouin pãssa-
" •..,..,simo bem-sucedida -, os melhores artistas desde' 1903 abriam o ca- ro, o .que passou e passará e sempre passa."
minho do artdéco, com suas formas metéliease cristalinas."
Por cinco anos, desde 1903, Klimt absteve-se de expor em Viena, A
IClimt foi arrebatado por essa corrente de artes decorativas em
sua paixão pelo trabalho, porém, manteve-se lnabalada, e ein 1908 ele
1904, quando se juntou a Hoffmann e outros artistas da Wiener Werk- revelou ao público os frutos de sua visão reconstituída. Apresentou a
statte, para projetar uma oilla luxuosa em Bruxelas, a casa Sroclet." No
suanova obra-numa mostra çhl1maclaKanstscbaz; i908, uma exposição
seu friso para a sala de jantar de Stodet, KIímt levou ao limite a ruptura;
abr,angentedl;ls realizações de Klírnte colegas, como artistas refinados e
que iniciara em "Beethoven", com o ilusionismo espaéial,d.~;sua,pit,Úura,
estilístas dás belezas da vida, Dez anos antes, no primeiro número de
arquitetônica anterior, Agora tratou a parede corno yerd,!Ideitapatede',
V à Sacrum, Hermann Bahr declarou a guerra da Secessão contra a "ro-
realçando o plano com ricos ornamentos bidimensionais. 'Nó !risode tina inativa e o bizantinismo ossífkado"." Kunstschau 1908 mostrou a
Stodet, ele concebeu sua enorme Árvore da Vida à maneírabízantina,
que ponto os criadores da cultura visual de elite tinham purificado seus
'''..••
enquanto, para revestir suas imagens eróticas, adotou a roupagem estí-
propósitos, escopos e estilos, retirando-lhes movimento e encaminhando-
lizada das figuras religiosas biaantinas." O friso de Stoclet foi a versão
os para uma ordem abstrata e estática,
resfriada, sublimada da utopia erótica do terceiro painel de Beethoven,
em trajes decorosos para servir de decoração para gente próspera. o próprio pavilhão que Josd Hoffmann projetou .para a Kunst-
schau refletia à transfórmação na natureza e fÚl1ção:daarte, forjada por
Embora Klimt tenha entrado no seu chamado período dourado
dez anosde ,de~gaste'político, 'e'prosperidadeeconômica '(figura %), Ao
como participante de um movimento mais amplo rumo à geometri» e
art déco, composto pelos secessionistas das artes apliêal:làl!',~.lêtánipém inv~sdo~~dicaJismo '24biqO" $oleneea.históricodq, tetriplo ,~ecessi()fiista
de', a~té;,o"pavi1hão da K\msviêha:u,.foi concebido"cQn;l'O':ill'!l:gra~~oso
estava retomando os laços com o seu passado pessoal, ao ~e',vqltarpára
LúSt~é~fôss' da época 'de Maria' Ter~s~,50dá.:a'~'eip~0:sição,~'d)J:n' cerâ-
as cores e formas douradas e metálic~s, Seu pai (agora n;'orto)~ um dos
niica~,j;ioj.et.osde jardins, d~seF1h()s~de ,lív.ros;;tiJ'l;ij,Jii,emdbílias - tra-
seus irmãos eram gravadores em ouro, É típico da crise eg6icà de um
. ,,' . zia, à~ã\1=liá\do neGldas~idsti).o,.riJesín.ocoro um- t~at~~eptqdespojado e
" ,,,,,homem de meia-idade que isso só tenha ocorrido nessa épéçaproblemã- contempbfâpeo, quefndícava o retomodo nílturalismo órgAniço do de-
tica." Assim, a história pessoal se acrescentou à influência ártística, dos senho art nouvedupará, uma ~radiç~9e um racionalismo.estãtícos. Em-
seus colegas da Secessão, impelindo-o para a ab~traçãQ eotó,t:~aiismo boraa inscrição sobre a'eritraifa4o pavilhão Kunstschau evocasse o ape-
que respondiam às suas necessidades, quando se faziámaisprem:ente"uma lo se€es$iow§raM)8'98,~'Â, épocasua arte", o.c~tálogóui;,QU como di-
nova forma de se relacionar com a realidade social à sua,~ôlta'. ' visa ,qas,eç~o d~pintura um sentimento totalmeI,1têdiferente~' extraído de
O pintor que, como Freud e Nietzsche, empr!!e,nderasua, busca, da Oscar W11c;l~:~' A 'ár'te mitita ~xp~essanada alêhí-'de simesma"," Não "o
modernidade contra a convenção burguesa clássica, invocánd~ 'as potes- rost<1Ao.~~in~rurrÍpderrid",mas.a:fàce da pr6tirla~ite. o 'que seria isso?
tades instintivas sepultadas da Grécia arcaica ----:-Dioniso.rHigéia, as 'Na abetttmda mostrá, Klimt, num dos seus raros discursos, defi-
Fúrias -, agora se voltava para a outra extremidade d~ histói:i~e cuÍtura niu <;ls"Íímiies'da s~bcultura estética que agora circundavam seu mundo,
grega, Bizâncio. Lá, ele encontrou as formas visuais para fechar nova- A Kpristschau, disse ele, aspirava a uma "Comunidade Artística
,~ """mente a caixa dePandora. Na ordem rígida e inorgânica de Bizâncio, os [Kiiiistlers{;haftl", e comunidade ideal dos que criam e dos que fruem,
instintos e a ameaça da transformação ,social podiam ser mantidos a Klimt deplorou pesarosamente que "a vida pública estava predominan-
distância. Novamente as palavras de Yeats podem exprimir à nova dire- temente preocupada com assuntos econômicos e políticos". Assim, os
ção que Klimt tomou como artista: artis,t.<lsnão poderiam alcançar as pessoas pela via preferível da "exe-
çl'!~~ 'a,l!S .,ta.refas.a".,t(s#~as'pú'hHcíls'"" "mas- tinham', de se resignar ao
Livre da natureza não hei de, assumir .m~!~>&~.e~p'q§lçãti; "'q'únko ~atninho~1Je:~'éi'i:';aijtémahertq para nós" 72
conformaçãode coisa algumanatural, -A.~u~~~~(:'i~~te'g?::,á~~~~tr.'~ çàntp~sy~~b;m.:'a, S~S?~S~9rq~~téten~era re- ,
mas a que o ourives grego soube urdir gepet;l!.t,:a>Ál!lstr~a
~" ..'" .
qlal)chum.-,:l\unstt:lolkcompletó~.
.
'.. ,.."
O' CIrculo
' '. social, que
de ouro forjado e esmaltede ouro em tramas,
para acordar do ócio o sono,imperial; (:';'itiâd~ção de August()de Campos; inUng~aviagem, Companhia das Letras,
ou cantarei aos nobres de Bízâncio e às damas, 1987, p. 1M,

256 257
.
,

~III
.~
'.i*
objetivamente nunca fora amplo, tinha se estreitadoainda mais na men-
···~·ta1idade do grupo deKlimt, reduzindo-se ao decorador-artisra e seus
clientes: seu mundo passou a ser uma elireestetícamente educada.
Um crítico chamou a Kunstschau de "uma roupa de festa em torno
de Klimt".73 Isso porque, lá, os artistas celebl'ara:mo seu líder quase
tanto corno a mostra Beethoven fesrejaraKlinger. Junto' ao centro do
r pr~Jli,41béJ:'cr~; íMestllo na sua pil)tura de figuras anônimas antes de
i19(j3,qil~r,i.cl.d .c;hega~. al\parecer homens,osrostós são .quasesempre
:ev~âdos.) Num.a série de três retratos pintados entre 1904 e 1908,.Klimt
:progreSs~vamenteestendeu o domínio do ambiente para a pessoa repre-
'sentada. Mas o próprio. ambiente em si - sempre um interior fantasia- .
do ~ tornou-se cada vez mais' desnaturado e abstrato, e seus elementos

II
edifício, Hoffmann montou um aposento elegante; como-um fino éstojo servem ora à pura ornamentação, ora a sugestões simbólicas. No retrato
de jóias forrado de cetim, para abrigara grand~ retrospectiva da obra .: , ' de. M.a.r.garet.S..~oPb.orou..Sh.-.W~·tt~.ntrun~filh ..a. de um. rico pa.trono da
dos últimos cinco anos de Klimt. Essa galerianesdã umáamostra dá sua Secessão e irmã do fil6sofo rancha IV), o rosto e as mãos da figura
arte no seu rápido desenvolvimento depois da crise. l~ mostram uma serenjdad~ ~labQ'acla-IHU:B deal de refina~ento. Mas há
Era de se esperar que, ressocializando-se como pintor da elite, Klimt
s~• pouco caráter. Seguindo uma tradição retratista mais antiga, o corpo se
perde completamente entre as roupas; o próprio vestido ainda traz a
.~,..'dedicasse seus talentos. a retratos. Nota-se que seus temas foram sem-
,
i
~
qualidade impressionista sonhadora que observamos na cena de Schubert
de 1898. O segundo plano, porém, é tratado de modo totalmente novo,
\
(
corno um espaço hermético e estilizado, um quadro belo mas irreal para
a vida do sujeito. fi. figura, plasmada e substancial, parece presa entre os
artifícios do desenho bidimensional. As formas criadas para as paredes
conferem ao habitat uma autonomia mais forte do que a personalidade da
sua habitante,
. No retrato de Fritza Riedler,p..s.ti1ização do ambiente estende o
seu poder até o sujeito humano (p.!:anch~ A geometricidade radical,
de .onde é baaido/ qualquer sentid;-riterário, anuncia solidez e estabili-
lidade, mas de gênero estranhamente endausurante. A janela em mosaico
por trás de Frau Riedler refrata o mundo exterior da natureza, trazendo-
o para dentro do desenho, e emoldurando o rosto da pessoa como se
fosse um toucado.* Ela é representada dentro do seu castelo flutuante
ideal.icom uma alusão estilizada, ainda que distante, à história aristocrá-
tica.

=e: A pintura de retr,ato~iais


tensidadeno qu~dro de~le
d imt atinge seu máximo de in-
Bloch-Bauer \prancha VI). Frau Blo:h-
Bauer aparece nao só totalmente separaâããã natureza, como tambem
aprisionada na opulência bizantinarígida do ambiente. O aposento veste
a dama,' e a dama enfeita o aposento. Roupa e habitar se confundem
num continuum único, e ambos reduzem o corpo à bidimensionalidade.
Apenas o rosto sensível e as mãos de veias azuis da figura denunciam a
alma tensamente delicada envolta no tecido de ouro. A qualidade metã-
lica hierática do quadro e o detalhe dos símbolos caleidoscópicos - cír-
culos, volutas, retângulos e triângulos - recordam as três sacerdotisas
da "Jurisprudência". Mas enquanto em 1901 Klimt tratara sua máscara

(*) A semelhança do efeito de toucado com o do retrato da rainha Mariana


da .Áustria,pot Velasquea (1646), foi indicadapor Alessandra Comini, Gustav
Figura 56. Jose! Hoffmann, Pavilhão da Kunstcbau, 1908. Klimt: (l,'{ovaYork, 1975), p. 1.5.

258 259
de beleza pela perspectiva da verdade dos instintos; situada no reino gtegos.p~rit-ej(pressar- o estado do homem.râcdeme, Essa última mulher
inferior dos infernos, aqui, ele aceita corno legítimaa supetffde desnàtu- ~re~a'de;'K1ímt n.ã~ tçm nada-elllcomum"com asprecedentes-Palàs,
'~""
rada da beleza civilizada. Assim, a-missão cúlturâlradical'deKlimtde- Niké, Higéia ou as Fúrfas, tódasmJi~hetes fálkasandrógirras. Klimt pa-
saparece com o aplacarnento de suacóleranàteisista.O pintor da ,frustra- récéter superadoo seumedo à mulher; Raras vezes' os lineamentos do
ção psicológica' e do' mal-estarrnetafísico tornou-se' o: pintordé- vida bela desêjo satísfeito foram traçados com mais intensidade do .que na sua
da classesuperior, afastada eisolada dodestlno cornumnume bela casa Danáe, a carne tingidà pêlo matiz 'do mel" co~rehtedourada do
geométrica. amor de Zeus. Klimt encontrou sua paz - a~não ameaça mais
Os retratos de Klimt constituem o equivalente social da utopia es- como ser insaciável, mas curva-se ditosa como ser receptivo. Novamente,
tético-erótica do friso de' Beethoven. POis o que é oaltoestilo
senão' uma afirmação estética socialmente convencionada dos desejos sa-
sibarita Klimt contrapõe dois meios de expressão. Enquanto emprega o natura-
lismo para representar a paixão passiva de Danae, o simbolismo domina 1---'
ciados? Mas seria um erro identificar o retraimento social e o recolhi- a ação. À chuva dourada do mito, Klimt confere formas biológicas cro-
mento psicológico de Klimt com uma decadência artística. Pelo con- mossômicas, acrescentando finalmente um símbolo totalmente seu: o re-
trário, seu eu reembaralhado forjou novas formas artísticas, para a sua tângulo vertical corno princípio masculino, inflexivelmente anguloso e
couraça contra a dor da existência. As duas características principais da negro como a morte. É um detalhe forte e díssonante na harmonia do
nova pintura de Klimt, que surgem de modocada vez mais predominante coito entre eros e riqueza,
nos retratos que citamos, são a abstração e o simbolismo. A abstração "O beijo" (prancha VIII) levou o estilo áureo de Klimt ao ápice.
liberou as emoções da realidade externa concreta, conduzindo-as para A mais popular das pinturas de Klimt, desde a Kunstschau, aumenta a
um âmbito formal forjado pelo eu, umambiente idealpostulado heuristi- intensidade do efeito sensual expandindo o simbólico, em detrimento do
carnente," Mas, dentro dessas formas mais amplas, rígidas ti tectônicas, campo realista. No painel da "Consumação" do friso de Beethoven (fi-
as pequenas partículasfracamente luzidias respondiam a funções :simbóli- gura 55), e ainda mais em "Danae", o efeito er6ticoera transmitido por
cas e também ornamentais. Assim" no retliatode Bloch-BauçJ;'j,I<).imt po- corpos nus plasmados; em "O beijo", a carne está coberta, mas o efeito
dia sugerir abstratamente, com as pardcuhis, ,~stados psicoJógJ:GOS, sem sensual é reforc;á"'dó pela linha gestual acariciante, Nas vestes e na base
representar diretamente oconteúdo,sensfvel''dessesestado$:;cú1110 fizera de flores onde os amantes se ajoelham, os elementos ornamentais tam-
~1I:1ti;n"
anteriormente. A tensão ':ntl:e volut~s,.f9~t'e1'p.~!lJee'spiralâdas 'e serenos bém funcionam como símbolos. O tecido masculino e o feminino se des-
alvéolos em mosaico, enttesl)gestivosf0tlJj~tosde ()lhos;~Hp'ses seccio- tacam definidamente pelos seus desenhos ornamentais. O retângulo úni-
nadas semelhantes a vulvas, e trr&o,&ülosneiltralizadol'e:s-',';-tódos esses co que, em "Danae" é o símbolo fálico de Zeus, prolifera em "O beijo"
elementos individuais formalizados;nasü~-justapdsiçãb,Gl'iam a idéia no manto do homem, ao passo que a roupa da mulher viceja com símbo-
de uma força explosiva em suspenso, imoBilizada d;entrodesse quadro los ao mesmo tempo ovulares e florais. Não são símbolos tradicionais, e
abstrato. Como na arte bizantina,a força, prgân.ka éne.ll.tralizadà pela sim criações retiradas do reservatório inconsciente de Klimt. Os dois
combinação de.fragmentes cristalizados e pela simetria bidirp.ens!p:nal do campos definidos de símbolos sexuais chegam a uma ui;lião de opostos,
conjunto. pelo vibrante tecido de ouro que é comum' a ambos. Tendo passado de
Quando Klimt, em sua última fase, ccãsionalmente volt()ua pÍptu- uma arte do movimento e alusões literárias para a abstração estática,
ras alegóricas e figurativas, amenizou e até,empeIezoJ,1 .os. elementos de Klimt, em "O beijo", adaptou a alusividade da colagem simbólica à re-
conflito dos seus temas. Ou, colocando suas realizações em termos mais presentação, uma vez mais, de um sentimento erótico vigoroso, ainda
positivos, ele neutralizou o seu potencialdean~ú;stilléatravés de um dis- que agora harmonioso.
tanciamento. estético. A, mesma traje"t6ti~ 'd~ natural1smoornámentaélo Em "Morte e vida" (prancha IX), Klimt se aferra novamente ao
até a transcenclência estética; que ele percérreu: nos três retratos (Witt- tipo de tema filosófico que lhe interessara 'sempre, desde que a Nuda
genstein, Riedler e Bloch-Bauer), pode se): vista em três quadros concei- ueritas ergueu o seu espelho para o homem moderno." Tanto na estru-
tuais: "Danae", "O beijo"e:"Morte e vida", Como cada um deles se tura como no terna, "Morte e vida" se parece com a "Medicina", com
relacionava com temas que vimos Klirnt explorarcabalmenreem perío- uma massa humana agrupada à direita contra urna figura solitária domi-
dos anteriores, eles podem nos ajudara apreendera relitç.ãoentre estilo nante à esquerda (cí. figura 46). Na "Medicina", a errante grávida so-
e postura existencial, que se modificou em sualÍltimafase.
nolenta está à esquerda. A Morte, irradiando destruição, está em meio
Em "Danae" (prancha VII), Klimt novamente invocou os deuses
à humanidade em seu fluxo tortuoso e emaranhado, Na pintura da
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Kunstschau, é a Morte que está separada da massa. Ela olhapara uma


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humanidade imersa na felicidade dossentidçs, É;,\lil!a,cena estátíca ago- l~
ra,' assentada e envolta por um manto colorido deflores. O amor está na r
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humanidade, e a Morte. fora dela, como Í:l1Ila: força êstra.tt~a...~~ brilhan- ~.
tes cores de bombom do mosaico pintado de Klitpt -resolvem a tensão §
estrutural numcontraste agradãvel. Enquaritono~murais da universi-
dade Klimt tinha criado uma misteriosaprorunciJda!il<::at-ffiosféríca,aqui ~...
lAIlífi ..
ele oferece apertas uma bidimensionalidade ornàmental,que::;,emsi mes-
ma indica a complacência utópica a que o.lev:oul'lla .."adaptação" à rea- ibt
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!idade. O terror rende-se ao decoro, a verdade existencial à beleza de ,,;;~
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Poliana.
Em 1908, afastando-se do trauma do seu confronto com a socie- 6
dade como subversivo psicofílosófico, Klimt tinha voltado à função de f:i
~::
pintor-decorador do início de sua carreira na Ringstrasse. Mas o rompi-
mento com a história como fonte de sentido, e com o realismo físico
A TRANSFORMAÇÃO DOjARDIM
como modo apropriado de representação, foi definitivo, tanto para ele
como para a classe ludibriada pelas suas expectativas .quanto .à história e
à natureza. Ele tinha+passado irreversivelmente dazeinc. d\lhistória,
do tempo e da luta para o reino da-abstração estética e'res~gflação.sccial,
No seu voyage intérieur secessionista, porém, Klimtd.~s,bravo,u novos
mundos de experiência psicológica, muitas vezes tendo como guia icono-
gráfico a mitologia grega. Ficou a cargo dos-espíritos mais jovens domo- "É ç:!ifíçilenfrentar uma ordem social existente, mas mais difícil ainda
vimento expressionista a tarefa de aprofundar as explorações que Klimt é postular uma que não existe." I Essas palavras de Hugo von Hof-
'»'n, • abandonou, ao optar pelo seu refúgio estético ao f(ágil abrigo do haut tI!anlmhal tr~~eD?.a ressonânciaprópria do século xx, quando ~ mente
monde vienense. . eiltçpélà. pei'~elJ sua capaCidádêdé projetar utopias satisF~tÓrí~s.Antes,
nasSteira da R!!v()~uçã6Francesa, a maioria. dos .escritores t\!ria invertido
a frasc:ide' J~(jfrri;imi.sthal.Eles achavam mais'clifíCii enfrentar a ordem
socialexistente do. que.esboçar Os contornos. de uma ordem ideal.
. Et;lqu~p:t()Q attísta soube quais eram os s~u~ ~a.Jores,e. soube que
e1eq~ri~rp.aapr()yaçãge· oapçio d\l sua sociédade, e. taJ~~zllté um po-
qe::t.~eBe~e~raÇãóne1~,a,r,eaficlàd\!,sóçialp6cle: shvlr dt:.forja onde ele
f~~,~~'~'~~'~s
:;~r~~fal?'s..!t~e~.~.ripsi.
Nóçrí~,aN0" .quán~()!a§ !!;;w~,ctat~yashis-
tcSl'[çátfotalll'de.i#;t!tda~!.pêM;acon:t~elmentos, ouquandó os valores dos
a~ti~t~s"privados cle,a,poi,o.social, tornaram-se abstratos, ..a dificuldade
de;pwtular.uma ordçm~o'Çjal que não existia, conforme disse HOf-
mannsthâl, paSSOU'a dominar o problema mais' tradid!J,(lal de se lutar
com ~sócíedãde existente. Inevitavelmente, o papeldo artista se rede-
finiu: ele não se Iimítava simplesmente a exprimir a' relação entre va-
leres tradicionalmente aceitos e a realidade social, mas deveria expressar
verda4e::~pa~,auma humanidade que desesperava da ordem social enquan-
to tal. Meu tema consiste nos estágios de aparecimento dessa função da
literatura em relação à ordem social; o seu enquadramento é a cultura
da Áll~trialjb.ê.~al..

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