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Paul R.

Ehrlich Carl Sagan


Donald Kennedy Walter Orr Roberts

O INVERNO NUCLEAR
Tradução João Guilherme Linke

Editora Francisco Alves


1985

Edição para livro eletrônico

Diego Braga Stambuk Dias


2010
SUMÁRIO

Colaboradores

Prefácio

Advertência LEWIS THOMAS

Introdução DONALD KENNEDY

A Atmosfera e as Conseqüências climáticas da Guerra Nuclear


CARLSAGAN

Conseqüências Biológicas de uma Guerra Nuclear


PAUL R. EHRLICH

Painel sobre Conseqüências Atmosféricas e Climáticas

Painel sobre Conseqüências Biológicas

A Conexão Moscou: Diálogo entre Cientistas Norte-Americanos e


Soviéticos

Conclusão

WALTER ORR ROBERTS

Apêndice

Notas

Agradecimentos
Este livro é dedicado à memória de Robert W. Scrivner (1935-1984)

Com firmeza e brandura, a paixão de Robert pela paz idealizou a


conferência e a tomou realidade. Este livro é dele.
Comitê de Orientação, Conferência sobre o Mundo após a Guerra Nuclear
PREFÁCIO

Em junho de 1982, dois executivos de fundações, Robert W. Scrivner do


Rockefeller Family Fund e Robert L. AlIen da Henry P. Kendall Foundation,
tiveram um encontro com Russell W. Peterson, presidente da Sociedade
Nacional Audubon, para tratar de uma crescente preocupação comum: nos
debates públicos sobre a guerra nuclear e os efeitos destrutivos imediatos de
explosões e radiações sobre vidas humanas e cidades, estaria sendo dada
atenção suficiente aos efeitos biológicos de mais longo prazo? O que faria uma
guerra nuclear à atmosfera, à água, aos solos - aos sistemas naturais de que
toda a vida depende?
Allen, Peterson e Scrivner concordaram em que se deveriam buscar meios
de levar o movimento de defesa ambiental a examinar o assunto, e se
propuseram apurar que progressos estaria fazendo a comunidade científica.
Eles conheciam o relatório de 1975 da Academia Nacional de Ciências dos
Estados Unidos, "Efeitos Mundiais à Longo Prazo de Detonações Múltiplas de
Armas Nucleares", e o relatório de 1979 da Comissão de Avaliação Tecnológica
do Congresso dos Estados Unidos, "Os Efeitos de uma Guerra Nuclear".
Haviam também estudado uma edição especial da revista Ambio (voI. XI, no. 2-
3, 1982), órgão da Real Academia Sueca de Ciências, que acabava de ser
publicada e continha dados científicos novos sobre os impactos climáticos e
biológicos de uma guerra nuclear.
Scrivner, Allen e Peterson reuniram alguns cientistas e ecologistas para
tratar da organização de uma conferência pública sobre os efeitos a longo prazo
de uma guerra nuclear. Entre eles estava Carl Sagan, professor de Astronomia e
Ciências Espaciais e diretor do Laboratório de Estudos Planetários da
Universidade Comell. Ele informou que um pequeno grupo de cientistas estava
empenhado num estudo possivelmente importante ligado aos efeitos climáticos
de uma guerra nuclear. Esse estudo, "Conseqüências Atmosféricas e Climáticas
a Longo Prazo de um Conflito Nuclear", por Richard P. Turco, Owen B. Toon,
Thomas P. Ackerman, James B. Pollack e Sagan, ficou depois conhecido como
o relatório TTAPS, iniciais dos sobrenomes dos autores.
O grupo TTAPS começara por examinar os efeitos atmosféricos de
grandes quantidades de poeira, e ampliara o estudo para incluir a fumaça e a
fuligem produzidas por incêndios extensos, depois de verem dados sobre o
tema publicados na Ambio por Paul J. Crutzen, do Instituto de Química Max
Planck de Mogúncia, República Federal da Alemanha, e John W. Birks, da
Universidade do Colorado ("A Atmosfera depois de uma Guerra Nuclear:
Crepúsculo ao Meio-Dia").
O novo e vital fator do estudo TTAPS foi o impacto da enorme quantidade
de pó e fumaça gerada por explosões nucleares e pelos incêndios resultantes;
esse manto de pó e fumaça, imaginaram eles, teria efeitos atmosféricos que
alterariam o clima e se propagariam a grandes distâncias das áreas de
explosão. O estudo quantificava, através de modelos matemáticos, os efeitos
de uma guerra nuclear quanto ao grau em que partículas em suspensão
impediriam a luz solar de alcançar a Terra. Foram utilizados vários cenários
para indicar os níveis de megatonagem e locais de detonação, quer no ar quer
no solo. As respostas que vinham surgindo apontavam para uma série
potencialmente catastrófica de conseqüências atmosféricas, climáticas e
radiológicas. As temperaturas reduzir-se-iam dramaticamente, mesmo no
verão, a níveis bem abaixo do ponto de congelamento da água; a luz do dia
seria na maior parte reduzida; essas condições poderiam durar vários meses e
possivelmente estender-se muito além das regiões atacadas, inclusive ao
Hemisfério Sul.
Allen, Scrivner, Peterson e o seu grupo animaram-se ao tomarem
conhecimento de que havia outro trabalho científico em curso. Um novo estudo
sobre o assunto estava sendo levado a efeito pela Academia Nacional de
Ciências dos Estados Unidos. E o Comitê Científico de Problemas do Meio
Ambiente (SCOPE) do Conselho Internacional de Uniões Científicas planejava
um estudo sobre "Conseqüências Ambientais de uma Guerra Nuclear".
Aquele grupo informal evoluiu para um Comitê de Orientação com o fim
de examinar a conveniência de promover uma grande conferência pública
através da qual o estudo TTAPS e as conclusões sobre as conseqüências
biológicas de uma guerra nuclear pudessem ser conhecidas por educadores,
cientistas, administradores de empresas, autoridades civis e outros líderes
comunitários e representantes de outras nações, bem como por ecologistas.
Entre os quais acederam em formar o Comitê de Orientação estavam vários
cientistas altamente reputados: Paul R. Ehrlich, professor de ciências
biológicas e de estudos populacionais na Universidade Stanford; Peter H.
Raven, diretor do Jardim Botânico do Missouri, em Saint Louis; Walter Orr
Roberts, presidente emérito da Corporação Universitária para Pesquisas
Atmosféricas; Carl Sagan, e George M. Woodwell, diretor do Centro de
Ecossistemas do Laboratório Biológico Marinho de Woods Hole,
Massachusetts. Woodwell foi nomeado presidente da Conferência. O Comitê
designou Chaplin B. Barnes, ex-membro da Sociedade Nacional Audubon e do
Conselho de Qualidade Ambiental, para diretor-executivo da Conferência e
coordenador do empreendimento.
Por sugestão do Dr. Sagan, resolveu-se submeter o relatório TTAPS a
um exame crítico minucioso num simpósio de eminentes especialistas em
ciências físicas. A seguir os dados seriam mostrados a um grande número de
experientes biólogos e ecologistas para que estes se pronunciassem quanto à
extensão dos impactos mundiais à longo prazo sobre a espécie humana e os
sistemas de sustentação de vida do planeta. Ficou entendido que somente se
os dados fossem sancionados nesse exame a conferência pública proposta
seria programada.
Uma Junta Científica Consultiva composta de sessenta e um cientistas dos
Estados Unidos e de mais oito países foi constituída para auxiliar na preparação
da Conferência e colaborar na disseminação de informações após a mesma.
Preparando o programa dos trabalhos, o Comitê de Orientação decidiu que
discussões políticas, referências a desarmamento, controle de armas e fatores
sociais, que de ordinário seriam relevantes num debate a respeito dos impactos
de uma guerra nuclear, não teriam lugar na conferência proposta. Na
organização do programa científico da Conferência, ficou decidido que se
trataria unicamente das conseqüências físicas, atmosféricas e biológicas de uma
guerra nuclear. O Comitê achou que a inclusão de outras considerações como
estratégia nuclear e implicações econômicas, políticas e sociais desviariam a
atenção da mensagem científica central.
Em fins de abril de 1983, cerca de cem cientistas dos Estados Unidos e de
outros países reuniram-se para o processo do exame prévio na Academia
Americana de Artes e Ciências em Cambridge, Massachusetts. Os cientistas
convidados representavam uma grande variedade de campos. Depois da
primeira assembléia, organizada e presidida pelo Dr. Sagan (que ainda
convalescia das complicações quase fatais de uma apendicectomia a que se
submetera no mês anterior), cerca de quarenta físicos e dez biólogos analisaram
e avaliaram a minuta preliminar do estudo TTAPS. Em termos gerais, o grupo
concordou com as conclusões do relatório quanto ao potencial de reduções
consideráveis na quantidade de luz solar que chega à superfície da Terra e de
alterações climatológicas de vulto, embora sugerindo alguns pequenos ajustes.
Em aditamento aos efeitos climatológicos de temperaturas glaciais e virtual
escuridão, o grupo de ciências físicas discutiu agressões como a exposição à
radiação e a precipitações, exposição à radiação ultravioleta da luz solar devida
ao empobrecimento da camada de ozônio e ação deletéria de gases tóxicos
desprendidos pela combustão de materiais sintéticos.
Terminada a reunião dos especialistas em ciências físicas, o Dr. Raven
convocou um grupo de biólogos, juntamente com dez dos cientistas presentes à
reunião anterior, para examinarem os impactos potenciais das condições de
pós-guerra nuclear nos sistemas de sustentação vital da Terra. Foram
considerados a escuridão prolongada e alterações climáticas extremas, e os
respectivos efeitos sobre o fitoplâncton e o zooplâncton, sobre outras formas
vivas vegetais e animais e sobre a agricultura. Trocaram-se idéias sobre os
efeitos sinérgicos das condições de pós-guerra nuclear sobre elementos de
ecossistemas marinhos, de água doce e terrestres. Analisaram-se os efeitos
sobre a vida,animal e vegetal da exposição prolongada a radiação ionizante e à
luz ultravioleta. Outras discussões centraram-se na interrupção em grande
escala dos serviços normais de ecossistemas naturais, imprescindíveis à
sustentação da vida humana e da sociedade, inclusive a produção de alimentos
para o homem bem como para os animais de criação e para os animais
selvagens; clima e condições de tempo; eliminação de resíduos e reciclagem de
fertilizantes; preservação do solo e controle de pragas das lavouras. Ao
deixarem as reuniões de Cambridge, os biólogos estavam todos de acordo em
que esses efeitos sobre a biosfera podiam ser devastadores num grau
anteriormente não previsto, e haviam concluído que não se podia afastar a
possibilidade de os efeitos biológicos a longo prazo de uma guerra nuclear virem
a acarretar a exterminação da humanidade e da maior parte das espécies
selvagens do planeta.
Com a afirmação dos cientistas congregados de que a análise era válida, e
de que as condições tinham de ser encaradas com muita seriedade, o Comitê
de Orientação decidiu levar avante os planos para a Conferência, e trinta e uma
instituições ou organizações científicas, ambientais e populacionais, nacionais e
internacionais, dispuseram-se a contribuir para patrociná-Ia:

Amigos da Terra
Associação das Nações Unidas dos Estados Unidos da América
Associação Nacional dos Professores de Ciências
Causa Comum
Centro de Ligação do Ambiente
Coalizão Global Amanhã
Conselho de Defesa dos Recursos Naturais
Consórcio de Terras Públicas
Crescimento Demográfico Zero
Federação Americana de Paternidade Planejada
Federação Canadense da Natureza
Federação dos Cientistas Americanos
Federação Internacional de Institutos de Estudos Superiores
Federação Nacional da Vida Selvagem
Fundo de Defesa Ambiental
Instituto Americano de Ciências Biológicas
Instituto do Espaço Aberto
Instituto de Política Ambiental
Instituto de Recursos Mundiais
O Instituto de Ecologia (TIE)
Programa do Ambiente das Nações Unidas
Sierra Club
Smithsonian Institution
Sociedade Americana de Microbiologia
Sociedade Ecológica da América
Sociedade do Mundo Silvestre
Sociedade Nacional Audubon
União dos Cientistas Engajados
União Internacional de Ciências Biológicas
União Internacional para a Conservação da Natureza e dos
Recursos Naturais
Universidade das Nações Unidas

Durante o verão de 1983, um grupo de vinte biólogos sob a direção do Dr.


"Ehrlich ampliou a definição dos efeitos das alterações do clima sobre a
biosfera.Nesse mesmo intervalo, o grupo TTAPS aprimorou seus dados e
entregou-os à publicação científica. E nesse ínterim, na União Soviética, o Dr.
Vladimir V. Aleksandrov, do Centro de Computação de Modelagem de Climas
da Academia de Ciências da URSS em Moscou (um dos cientistas que
participaram das reuniões de Cambridge), comprovou as principais projeções
do estudo TTAPS através de modelos de computador por ele próprio
elaborados.
Cerca de seis semanas antes da Conferência, Allen, do Comitê de
Orientação, em conversa com Kim Spencer e Evelyn Messinger da Internews,
desenvolveu a idéia de adicionar uma nova dimensão à Conferência
aproveitando a tecnologia disponível de um link bidirecional de satélite com
cientistas soviéticos em Moscou. Allen, Spencer e Messinger propuseram-se
organizar e produzir um programa de noventa minutos que permitiria a cientistas
de alto nível dos Estados Unidos e da União Soviética debater as teses da
Conferência sobre as conseqüências climáticas e impactos biológicos de uma
guerra nuclear.
Spencer entabulou entendimentos com a Gosteleradio, a única rede de
televisão da União Soviética, e Allen promoveu diversas comunicações pessoais
de alto nível entre cientistas americanos e soviéticos com o fim de obter a
participação de especialistas da Academia Nacional de Ciências da URSS.
Quando da abertura de O Mundo após a Guerra Nuclear, ou Conferência
sobre as Conseqüências Biológicas Globais a Longo Prazo de uma Guerra
Nuclear, em 31 de outubro, no Hotel Sheraton Washington em Washington,
D.C., estavam presentes mais de quinhentos participantes e uma centena de
representantes da mídia. Entre os participantes contavam-se cientistas e
embaixadores ou outros representantes de mais de vinte países, bem como
autoridades civis, educadores, conservacionistas e líderes religiosos, cívicos,
empresariais, filantrópicos, diplomáticos, militares e de controle de armas vindos
de todas as partes do território americano. A Conferência teve ampla cobertura
dos meios de informação dos Estados Unidos, da União Soviética e de outros
países.
A Conferência foi oficialmente encerrada com a fala do Dr. Roberts (ver p.
183), mas quase ninguém deixou o recinto. Pois, naquele ponto, os participantes
se reuniram para o histórico evento subsidiário que foi a Conexão Moscou. Era a
primeira vez que as comunicações por satélite eram usadas para pôr em
contato, ao vivo, um grupo de cientistas de Moscou com um grupo de cientistas
nos Estados Unidos para um amplo intercâmbio de informações científicas.
Às 4h da tarde, hora de Moscou (8 da manhã em Washington), de 1º. de
novembro, as exposições de Sagan e Ehrlich no dia da abertura foram
transmitidas para um grupo de cientistas soviéticos, que a seguir se reuniram
para discutir seus comentários. Às 10 da noite, hora de Moscou, teve início a
Conexão Moscou entre o grupo soviético, reunido num estúdio de TV em
Moscou, e quatro cientistas norte-americanos num salão de conferências em
Washington.
Os participantes do grupo americano eram o Dr. Thomas Malone, diretor
emérito do Instituto de Pesquisas Holcomb, da Universidade Butler, Paul Ehrlich,
Walter Orr Roberts e Carl Sagan. Os principais debatedores em Moscou eram o
acadêmico Yevgeniy Velikhov, vice-presidente da Academia de Ciências da
URSS, Yuri Israel, membro da mesma Academia e chefe da Comissão de
Hidrometeorologia e Controle do Meio Ambiente, Alexander Bayev, especialista
em biologia e genética molecular, secretário do Departamento de Fisiologia
Biofísica, Bioquímica e Química da Academia de Ciências da URSS, e Nikolai
Bochkov, acadêmico da Academia de Ciências Médicas e diretor do Instituto de
Genética da Academia de Ciências da URSS.
Durante os noventa minutos do link de satélite, os cientistas soviéticos e
americanos trocaram perguntas e comentaram trabalhos em curso. E alguns
dados sobre efeitos de uma guerra nuclear obtidos pelos soviéticos
complementaram e ampliaram as exposições feitas na Conferência.
Georgiy Skryabin, primeiro-secretário científico da Academia de Ciências
da URSS, expressou sentimentos "ambivalentes". "Por um lado", disse Skryabin,
"há o sentimento de grande preocupação com respeito à possível tragédia que
nos defronta, que paira sobre todos nós mulheres, crianças, velhos, e sobre toda
a vida da Terra. Por outro, há nesta Conferência um grande motivo de
satisfação, que é o fato de que os grandes cientistas aqui presentes - nossos
colegas americanos e cientistas russos - chegaram a um consenso. Estão todos
unidos na opinIão de que não deve haver uma guerra nuclear, de que esta
significaria desastre e morte para a humanidade. Eu, pessoalmente, sinto-me
contente e confortado com isso, pois hoje em dia a autoridade dos cientistas é
considerável, e todos nós devemos procurar fazer valer nossa influência para
pôr um termo à corrida armamentista, para que não venha a ocorrer jamais uma
guerra nuclear".
Alexander Kuzin, membro correspondente da Academia de Ciências da
URSS, declarou: "É assim responsabilidade direta dos cientistas da União
Soviética e dos Estados Unidos levar ao conhecimento de todos os enormes
perigos que acompanhariam a deflagração de qualquer espécie de conflito
nuclear, de modo a prevenir a própria possibilidade de uma guerra nuclear, que
sem dúvida nenhuma não só resultaria na ruína da atual civilização senão que
ameaçaria a vida como tal neste planeta que amamos." Quando a Conexão
Moscou se aproximava do final, Malone observou que a troca de opiniões
proporcionada pela Conferência "poderá vir a ser vista em anos vindouros -
justificadamente - como a virada decisiva nos rumos da humanidade, e haverá
de elevar o nível de consciência entre os condutores da política".

Como seguimento à Conferência, foi fundado em Washington, D.C., o


Centro de Conseqüências da Guerra Nuclear, com o fim de dar continuidade à
disseminação das conclusões da ciência. Através do Centro, estão sendo
postos à disposição dos interessados materiais impressos e audiovisuais sobre
as conseqüências climáticas e biológicas de uma guerra nuclear. O endereço do
Centro é: 3244 Prospect Street, NW, Washington, D.C., 20007.

ADVERTÊNCIA
LEWIS TROMAS, M.D.

As descobertas científicas descritas neste livro poderão vir a revelar-se,


num mundo que tenha a boa sorte de continuar a sua história, como tendo sido
os mais importantes resultados de pesquisa em toda a longa história da ciência.
A primeira descoberta já é largamente conhecida na comunidade científica
de climatologistas, geofísicos e biólogos aqui e no estrangeiro, e foi confirmada
em detalhe por cientistas soviéticos das mesmas áreas. Modelos de
computador demonstram que uma guerra nuclear envolvendo o emprego de
uma simples fração do total das bombas americanas e russas poderia
transformar o clima de todo o Hemisfério Norte, mudando-o bruscamente do
seu presente estado sazonal para uma longa noite escura e gélida. Esta será
seguida, passados alguns meses, pelo assentamento da poeira e fuligem
nucleares, e depois por uma espécie nova e maligna de luz solar com
proporção aumentada da sua faixa ultravioleta, potencialmente capaz de cegar
muitos dos animais terrestres. O ozônio da atmosfera, que normalmente
protege a Terra da perigosa radiação ultravioleta, seria substancialmente
reduzido por uma guerra nuclear. Nas mesmas pesquisas, novos cálculos da
extensão e intensidade das precipitações radioativas indicam a exposição de
grandes extensões de território a níveis de radiação muito mais altos do que se
julgava. O relatório é conhecido como TTAPS, sigla derivada dos nomes dos
pesquisadores: Turco, Toon, Ackerman, Pollack e Sagan.
O segundo trabalho, elaborado por Paul R. Ehrlich e outros dezenove
biólogos respeitados, demonstra que as predições do TTAPS significam nada
menos que a extinção de grande parte da biosfera terrestre, muito
possivelmente envolvendo o Hemisfério Sul tal como o Norte.
Em conjunto, essas duas descobertas mudam radicalmente as
perspectivas de um conflito termonuclear. Elas foram submetidas a um exame
crítico minucioso por cientistas representantes das disciplinas envolvidas, aqui e
em outros países. Estudos paralelos e suplementares vêm sendo feitos, e já se
evidencia um grau de concordância inusitado com respeito aos pormenores
técnicos e às conclusões tiradas. Na opinião de alguns juízes, o relatório TTAPS
teria até talvez minimizado os danos climatológicos implicados pelos dados. O
relatório dos vinte biólogos, sumariado pelo Professor Ehrlich, representa o
consenso a que chegaram quarenta especialistas em ciências biológicas num
simpósio realizado em Cambridge, Massachusetts, na primavera de 1983.
É um mundo novo, a demandar uma nova diplomacia e uma nova lógica.
Até aqui, a comunidade internacional de estadistas, diplomatas e analistas
militares tem-se inclinado a encarar a perspectiva de uma guerra nuclear como
um problema unicamente dos adversários possuidores das armas. O controle de
armamentos e as negociações intermináveis visando à redução dos explosivos
nucleares têm sido considerados responsabilidade, e até prerrogativa, das
poucas nações em confronto definido. Agora tudo isso mudou. Nenhum país da
Terra está livre do perigo da destruição se duas nações quaisquer, ou grupos de
nações, se aventurarem num reencontro nuclear. Se a União Soviética e os
Estados Unidos, e seus respectivos aliados do Pacto de Varsóvia e da OTAN, se
pusessem a lançar seus mísseis além de um mínimo dúbio e ainda
indeterminado, estados neutros como a Suécia e a Suíça sofreriam os mesmos
efeitos dilatados, a mesma morte lenta que os participantes diretos. A Austrália e
a Nova Zelândia, o Brasil e a África do Sul, têm quase tanto por que se
preocupar quanto a Alemanha Ocidental se uma conflagração em grande escala
se verificar no extremo norte.
Até aqui, todos temos tendido a ver num conflito com armas nucleares um
esforço de um par de opositores de resolver pendências como domínio territorial
ou disputa ideológica. Agora, com os novos conhecimentos diante de nós, ficou
claro que qualquer território conquistado será ao cabo um deserto estéril, e que
qualquer ideologia será consumida na morte da civilização e na perda
permanente da memória humana da cultura.
Até agora, os riscos de uma guerra dessa espécie foram
convencionalmente calculados pelo número de mortos de um e de outro lado ao
final da batalha, soldados e não-combatentes somados. As expressões
"aceitável" e "inaceitável", significando tantos ou tantos milhões de baixas
humanas, têm sido utilizadas para estabelecer julgamentos frios sobre a
necessidade de novos e mais precisos sistemas de armas. Daqui por diante, as
coisas são diferentes. É desnecessário falar da estimativa inquestionável de que
em um conflito total de, por exemplo, 5.000 megatons, algo como um bilhão de
pessoas morreriam imediatamente por ação das explosões, do calor e da
radiação. Por outro lado é desnecessário citar o fato provável de que outro
bilhão viria a morrer depois, em conseqüência dos efeitos retardados sobre os
sistemas de sustentação vital e da precipitação radioativa.
Algo mais terá acontecido ao mesmo tempo, algo em que os seres
humanos deveriam ver um risco igual ao da perda de suas vidas. O complexo,
coerente, belamente organizado ecossistema da Terra - aquilo que alguns
denominam biosfera e a que outros chamam natureza - terá sofrido um golpe
mortal, ou quase. Algumas de suas partes hão de persistir, é razoavelmente
certo, e a vida do planeta irá continuar, mas talvez unicamente em nível
comparável ao que existia por volta de um bilhão de anos atrás, quando os
procariontes (criaturas semelhantes às bactérias atuais) se uniram em
combinações simbióticas e criaram as células nucleadas de que nós somos sem
dúvida os descendentes diretos.
A última grande extinção de vida planetária ocorreu há cerca de 65 milhões
de anos, quando os dinossauros e inúmeras outras criaturas terrestres e
marinhas desapareceram simultaneamente. Supõe-se geralmente que esse
evento tenha sido provocado por uma vasta explosão de pó, que teria
escurecido o sol por um período longo o bastante para deter a fotossíntese,
provavelmente em conseqüência da colisão de um asteróide com a Terra. É
esse gênero de evento que predizem os modelos usados nestes estudos.
A persistência e multiplicação de armas nucleares, a provável proliferação
de tais armas em outros países que hoje não as possuem, e os esforços
bloqueados, adiados e fracassados de livrar-nos dessas ameaças à vida do
planeta, inclusive à nossa própria, parecem-me hoje uma ordem de problemas
diferente do que parecia até recentemente. Já não é um assunto de política, a
ser deixado à sensatez e previdência de uns poucos estadistas e de uns poucos
chefes militares, nuns poucos Estados nacionais. É um impasse global, que
envolve toda a humanidade.
Minha esperança agora é que a comunidade científica internacional em
todos os países analise cuidadosamente os dados e conclusões a que
chegamos, que amplie esses estudos de todas as maneiras que possa imaginar
e que aconselhe seus governos adequadamente e insistentemente. E espero
que os jornalistas do mundo achem modos de informar os cidadãos da Terra,
em detalhe e reiteradamente, sobre os riscos futuros.
Já não temos escolhas a fazer ou as opções de alguns meses atrás a
questionar. Simplesmente temos de parar, e logo, e livrar a Terra de uma vez
por todas dessas armas que na verdade não são armas, senão instrumentos de
pura danação. No pé em que estão as coisas, nós colocamos em perigo muito
mais que a humanidade em si. Arriscamos infligir um dano permanente à vida
de toda a admirável criação.
A coisa mais linda que já vi numa fotografia, em toda a minha vida, é o
planeta Terra visto da Lua, suspenso no espaço, evidentemente vivo. Embora à
primeira vista ele pareça feito de uma multiplicidade de coisas vivas diferentes,
melhor reparando, cada peça que nele trabalha, nós inclusive, está ligada por
interdependência a todas as demais. Segundo um modo de dizer, é o único
ecossistema autenticamente fechado que nos é dado conhecer. Em outras
palavras, é um organismo. Nasceu, calcula-se, há 3,8 bilhões de anos, e eu lhe
desejo feliz aniversário e uma longa existência futura, para os nossos filhos, e
os seus netos, e os netos de seus netos.
Tenho em alta conta a nossa espécie, com todo o seu verdor e
imaturidade como membro da biosfera. Na escala do tempo evolutivo, nós só
chegamos alguns instantes atrás e ainda temos muito que crescer. Se formos
bem-sucedidos, podemos tornar-nos uma espécie de mente coletiva da Terra, o
pensamento da Terra. No momento, apesar da nossa juventude como espécie,
somos sem dúvida a mais engenhosa e inteligente das peças componentes do
sistema. Confio em que teremos a vontade de continuar funcionando, e de
manter o melhor que possamos a vida do planeta. Por isso, vejo estes relatórios
não apenas como uma advertência, mas também, se devidamente divulgados e
reconhecidos a tempo, como uma extraordinária boa nova. Acredito que a
humanidade como um todo, conhecendo a verdade dos fatos, saberá o que tem
de ser feito com as armas nucleares.
Mas se os fatos permanecerem obscuros, ou forem erroneamente tomados
por fantasias teóricas arcanas, que se podem calmamente desprezar, nesse
caso não vejo esperança para nós.

INTRODUÇÃO
DONALD KENNEDY

Este não é um assunto agradável. Em primeiro lugar, as conseqüências


de uma guerra nuclear são realmente pavorosas, e não é nada divertido dizer
às pessoas que são mais pavorosas ainda do que lhes disseram antes. Depois,
infelizmente não existe uma saída simples para as dificuldades em que nos
colocam as armas nucleares - embora alguns teimem que existe. Ao contrário,
há uma necessidade contínua de lidar com o perigo, e de enfrentar uma política
de segurança nacional que se mostra terrivelmente refratária ao raciocínio
lógico. É nessas circunstâncias desanimadoras que se discutem as
conseqüências biológicas a longo prazo de uma guerra nuclear.
Antes de começar, quero levar ao conhecimento do leitor algumas
qualificações que me faltam para o meu papel de introdutor, e em seguida
expor uma ou duas convicções. Não sou um veterano do movimento anti-
nuclear, nem tenho experiência em matéria de desarmamento ou de controle
de armas. Ademais, é com prazer que deixo a outros a proficiência técnica na
disciplina inexata que é a estratégia nuclear - a base tecnológica e aleatória da
détente. Quanto às convicções, devo dizer que conservo a crença antiquada de
que continuaremos a necessitar de um organismo de defesa no país, de que,
queiramos ou não, as armas nucleares continuarão por algum tempo a exercer
uma função integrante na nossa estratégia de segurança nacional e na de
outros, e de que, em vista disso, teremos de seguir nos esforçando em
compreender tais armas se quisermos finalmente controlá-Ias e negociar
racionalmente com a outra parte.
Estas revelações devem mostrar, penso eu, que não sou nem uma fonte
técnica indicada para uma conferência de controle de armamentos, nem um
candidato promissor a chefe de claque num comício pela paz. Este volume não
se destina a refletir nenhum desses propósitos. É, sim, um relatório de análises
científicas sérias das conseqüências de uma guerra nuclear. E para introduzir
esse assunto eu tenho uma perspectiva que imagino relevante. Durante um
período em que prestei serviços ao governo, chefiei um órgão de regulação que
se ocupava em grande parte com os perigos ligados a produtos químicos
tóxicos, e de modo mais geral com as conseqüências da introdução prematura
de novas tecnologias. No curso daqueles anos, e nos tempos imediatamente
precedentes e seguintes, estive intimamente envolvido em atividades de
estimativa de riscos: avaliação das conseqüências do uso de defensivos
agrícolas, definição de tolerâncias para contaminação por poluentes industriais,
estimativa de efeitos de aditivos alimentares, etc. Nessa função, era uma
preocupação considerável a forma de estimar os riscos, tanto mais em
circunstâncias em que os dados são necessariamente incompletos.
Creio que três lições tiradas dessa experiência são aplicáveis ao assunto
em pauta. Primeiro, um dos grandes desafios da metodologia de avaliação de
riscos é formular decisões com o máximo de segurança possível em face de
grandes incertezas. Para levar a bom termo esse princípio, é essencial que se
tenha tanta consciência daquilo que não se sabe quanto daquilo que se sabe.
Esse desafio torna-se muito mais difícil pela atitude do público em relação
ao risco. É esta a segunda lição: as pessoas são ambivalentes com respeito ao
risco. Aplicam-se enormes recursos pessoais e sociais na salvação de uma vida
identificada em perigo, mas consigna-se muito menos para proporcionar uma
proteção estatisticamente muito maior a indivíduos não identificados da
população global. Aprovamos entusiasticamente leis que previnem riscos
involuntários de pequena monta; mas as revogamos prontamente se elas
restringem liberdades pessoais. Em suma, não hesitamos em gastar grandes
somas para tirar uma garotinha do poço em que ela caiu, mas relutamos em
diminuir o limite de velocidade, ou até em proibir certos produtos cancerígenos
se eles são do agrado das pessoas.
Essa ambivalência torna-se ainda mais definida quando a probabilidade e
a gravidade dos riscos são consideradas separadamente. Há uma diferença de
atitudes em relação a riscos estatísticos modestos amplamente distribuídos,
como o aumento de mortes por câncer devido a uma toxina ambiental, e a riscos
de baixa probabilidade com conseqüências desastrosas generalizadas, como
um conflito com armas nucleares. Embora estejamos apenas começando a
desenvolver uma ciência das atitudes humanas com respeito à aversão ao risco,
os resultados até aqui obtidos sugerem que as pessoas tratam eventos de baixa
probabilidade com conseqüências altamente negativas de um modo que se
afasta acentuadamente das opções que seriam de prever com base nas teorias
correntes de "expectativa utilitária". Tais pesquisas podem vir a revelar alguma
coisa de grande utilidade sobre as atitudes da população em relação à guerra
nuclear. E podem ser mais importantes ainda no que toca à questão crucial de
como os responsáveis pelas decisões, nos terríveis últimos momentos, irão
decidir.
A terceira e última lição que me seria dado tirar do domínio mais
convencional da estimativa de riscos tem a ver com a escala de tempo em que
nós reconhecemos as conseqüências. Aqui a analogia com o mundo das
substâncias tóxicas é de fato perfeitamente exata.
Quando, depois da guerra, a revolução da indústria química começou a
causar preocupação com os riscos humanos ligados a substâncias tóxicas, a
preocupação era quase inteiramente limitada aos efeitos imediatos ou "agudos".
Os primeiros programas de ensaios criados para avaliar esses perigos foram os
chamados testes LD50, que mediam a quantidade de um determinado composto
que se constituía em dose letal para 50 por cento dos organismos utilizados no
teste. Mais tarde, foi-se aos poucos chegando à conclusão de que os efeitos
"crônicos" à longo prazo - a possibilidade de produzir câncer, ou de aumentar a
propensão de um indivíduo para cardiopatias e infarto, ou de gerar defeitos
congênitos na prole - eram muito mais importantes, e inteiramente impossíveis
de medir empregando os testes usuais de curto prazo. A subseqüente
experiência confirmou que esses riscos crônicos são muitíssimo mais sérios que
os agudos, e hoje em dia não passa pela cabeça de ninguém avaliar a
segurança de uma substância nova sem realizar experiências de longa duração
para avaliar o seu potencial carcinogênico, efeitos fetais, etc.
É a posição em que nos encontramos com respeito à guerra nuclear:
estamos começando a compreender os efeitos retardados - os equivalentes,
para o ambiente, do câncer, das cardiopatias, do infarto.

Agora quero chamar atenção para um aspecto central na evolução dos


nossos conhecimentos sobre as conseqüências de uma guerra nuclear: é o
caráter errático e acidental das nossas descobertas. O que sabemos hoje, e é
certamente bem menos do que desejaríamos saber, chegou-nos em grande
parte através de revelação não planejada, e não por estudo sistematizado. Em
decorrência das armas detonadas sobre cidades japonesas no final da Segunda
Grande Guerra, tivemos uma triste verificação de efeitos agudos - a devastação
causada pela explosão primária e pelas ondas de choque e o impacto da
radioatividade local em seres humanos. Mas só depois dos testes do Atol de
Biquini em 1954 foi que ficamos sabendo dos perigos de contaminação a
distância por precipitação radioativa após transporte atmosférico. Ainda hoje,
quase três décadas passadas, causa-nos espanto a magnitude e alcance do
fenômeno. Por exemplo, o famoso vazamento de radiação de um reator
avariado em Three Mile Island - incidente que gerou desassossego generalizado
e centenas de páginas de depoimentos no Congresso - depositou menos de um
décimo da quantidade de radiação (em forma de 131 I) depositada na mesma
região da Pensilvânia pela precipitação da nuvem produzida pelo teste de uma
única bomba na China dois anos antes. Entre outras descobertas tardias e
fortuitas estão os efeitos no cinturão de Van Allen, o pulso eletromagnético
(EMP) e seus efeitos nas comunicações eletrônicas e, mais recentemente, a
injeção de NOx (óxidos de nitrogênio) na camada de ozônio. Discorrendo sobre
esses eventos, um observador fez o seguinte comentário: "A incerteza é uma
das principais conclusões... como acentua a derivação acidental e imprevista de
muitas das nossas descobertas." Essas palavras não foram escritas por um
crítico acadêmico da política governamental: são de um atual subsecretário da
Defesa do governo Reagan.
A conclusão é clara, e não muito tranqüilizadora. Nós temos de aprender
a esperar o inesperado. A presente Conferência coloca-nos bem no meio de
outro e ainda mais momentoso conjunto de revelações sobre os riscos crônicos
ligados a uma guerra nuclear. Num sentido importante, a genealogia desta
Conferência começa com o trabalho extraordinário da organização denominada
Médicos pela Responsabilidade Social. Eles fizeram as primeiras avaliações
quantitativas das circunstâncias médicas que prevaleceriam imediatamente
após um ataque nuclear, e demonstraram a insuficiência das atuais
instituições, programas e planos médicos para avir-se com essas
circunstâncias. Tais revelações levantaram sérios questionamentos com
respeito a toda a estrutura da prontidão da defesa civil e lançaram graves
dúvidas sobre as asserções confiantes dos planejadores da defesa de que a
recuperação após um conflito nuclear poderia completar-se num número de
anos relativamente curto.
Os resultados expostos nesta Conferência sumariam análises científicas
mais sérias das conseqüências ecológicas e climatológicas duradouras de um
conflito nuclear. Em particular, anteriormente os riscos ecológicos receberam
pouquíssima atenção na avaliação de estratégias nucleares. Estudos mais
antigos feitos sob o patrocínio do Departamento da Defesa (por exemplo, o de
Mitchell) consistiam em pouca coisa mais que analogias com cataclismos
naturais. O resumo final do estudo Rand de Mitchell é ilustrativo: "Destruições em
grande escala produzidos por incêndios, secas, enchentes e outras catástrofes já
defrontaram o mundo com problemas de reconstrução e reconstituição de
comunidades bióticas, semelhantes aos que se prefiguram para o meio ambiente
de pós-ataque." De que modo essa similaridade possa ser de serventia na
avaliação dos riscos efetivos, deixo ao leitor imaginar.
Na verdade, não é de todo justo condenar aqueles primeiros estudos: nossa
visão atual é mais clara e mais sinistra em virtude de uma série de razões.
Primeiro, certas verificações recentes (por exemplo, a sensibilidade de alguns
ecossistemas a chuvas ácidas, e em particular a sensibilidade das plantas à
radioatividade e à temperatura) foram no sentido de piorar as previsões.
Segundo, nossa visão geral da complexidade e sutileza dos sistemas ecológicos
mudou profundamente ao longo das duas últimas décadas; hoje compreendemos
de forma muito mais completa a sua fragilidade. Por fim, o número e a precisão
dos nossos sistemas de armamentos mudaram de tal modo que podem ampliar o
caráter altamente destrutivo de um conflito armado.
É surpreendente, portanto, que ainda hoje estejamos recebendo
informações tranqüilizadoras baseadas em estimativas há muito superadas.
Órgãos de emergência distribuem ainda hoje um folheto redigido em 1979 pela
Agência de Prontidão da Defesa Civil. Nele lê-se a seguinte conclusão, em
moldes idênticos à da metáfora do relatório de 1963: "Nenhum peso lógico de
ataque nuclear poderia induzir no equilíbrio natural transformações de vulto que
se aproximassem em espécie ou grau das que a civilização humana até aqui já
produziu." Ainda que fosse verdade que a magnitude das transformações
ecológicas provavelmente resultantes do maior ataque nuclear admissível
fossem menores do que as produzidas pela civilização humana ao longo de toda
a sua história, existe certamente uma enorme diferença entre o impacto de
grandes mudanças deflagradas em milissegundos e as que se consumaram ao
longo de milênios.
Em outro trecho, o mesmo folheto cita do estudo de 1963 da Academia
Nacional de Ciências e informação reconfortante de que “não são de esperar
desequilíbrios ecológicos capazes de impossibilitar a vida normal". Não há
qualquer menção a um estudo muito mais recente da mesma Academia sobre
os efeitos mundiais à longo prazo de múltiplas detonações de armas nucleares.
Este último relatório é de 1975, quatro anos antes da elaboração dó folheto da
Agência de Prontidão. Suas conclusões são muito mais sombrias, como era de
esperar: os efeitos dos óxidos de nitrogênio sobre a camada de ozônio foram
reconhecidos, e as perspectivas de alterações climáticas foram mais seriamente
levadas em conta. No entanto, o governo, prestando contas aos seus cidadãos,
contornou a informação mais recente para promover um falso sentimento de
tranqüilidade com base numa fonte ultrapassada. É de preocupar quando se
usam dados obsoletos para informar decisões de política geral.
Por si mesmas, as estimativas ecológicas da Academia dão margem
substancial a uma apreensão ainda maior. Mas parece-me oportuno acentuar
que os dados novos mais impressionantes apresentados nesta Conferência, na
verdade os mais inquietantes dentre todos os efeitos crônicos potenciais de uma
guerra nuclear até hoje enumerados, são as perspectivas de seqüelas climáticas
de vulto. Tais seqüelas são de tal modo profundas que provavelmente
eclipsariam todos os demais efeitos retardados até hoje conhecidos.
Esta nova ótica resulta em parte de um novo paradigma geral de
pensamento científico sobre os processos que influenciaram a história da Terra
e moldaram-lhe a forma atual. No século XVIII e início do XIX, acreditava-se que
as grandes formações terrestres houvessem resultado de processos
catastróficos, infligidos à Terra e seus ocupantes por um Criador iracundo. Uma
revolução importante contra esse modo de ver, encabeçada pelo geólogo inglês
Charles Lyell, reconheceu a importância de processos graduais como a erosão,
a sedimentação e a formação de recifes, e substituiu a concepção catastrofista
por outra, baseada na doutrina do uniformitarismo. Hoje as ciências da Terra
estão passando por uma segunda revolução, deflagrada pelas notáveis
descobertas da tectônica de placas, e o acento voltou a incidir sobre eventos
mais dramáticos. Cresce progressivamente a convicção de que grandes
intervenções descontínuas como erupções vulcânicas e colisões de asteróides
tiveram efeitos profundos na história da Terra e da vida nela existente. Uma
hipótese particularmente cativante, por exemplo, é a de que a colisão de um
asteróide com a Terra há 65 milhões de anos, e a nuvem de poeira atmosférica
que ela produziu, persistindo durante longo tempo, levou a alterações climáticas
que acarretaram as extinções em massa do final do período cretáceo. Quando
pela primeira vez anunciada, a idéia de que os dinossauros teriam morrido no
escuro evocou um grande ceticismo por parte dos biologistas meus
colegas. Hoje, porém, é largamente admitido que eventos significantes da
mesma natureza, ainda que não da mesma magnitude, têm ocorrido no tempo
histórico por obra de erupções vulcânicas. "Anos sem verão" registrados em
anais antigos associam-se no tempo a depósitos glaciais de chuvas ácidas, por
exemplo, e aberrações meteorológicas mais contemporâneas foram ligadas a
erupções como a do EI Chichón, no México, há dois anos.
Conclusões como essas tornaram-nos muito mais cônscios da
sensibilidade do clima do mundo a perturbações repentinas. Sabe-se, faz
algum tempo, que explosões nucleares podem introduzir poeira e aerossóis em
circulação duradoura na alta atmosfera. Cálculos recentes indicam que
incêndios de grandes dimensões acresceriam um efeito sinérgico, suprindo
partículas adicionais e aumentando substancialmente as forças de convecção
que injetam materiais na circulação da alta atmosfera. Essa nova informação
tornou real pela primeira vez a probabilidade de que modificações de
temperatura e luz ambiente, prolongando-se por várias estações no Hemisfério
Norte, podem resultar de um conflito nuclear em grande escala. É uma atuação
de alarmante gravidade.
Consideradas em conjunto, todas essas informações deveriam suscitar
uma mudança radical no modo que nós como cidadãos avaliamos nossos
riscos, e no modo que os nossos estrategistas nacionais os vêem. Já não é
admissível pensar nas seqüelas de uma guerra nuclear em termos de minutos,
de dias, ou sequer de meses. Seria como avaliar um produto tóxico, na época
em que vivemos, em termos do que ele faz a uma pessoa em cinco minutos. O
que ficamos sabendo a partir das coisas que os biólogos e físicos atmosféricos
nos estão dizendo hoje é que a escala de tempo apropriada é anos, e que os
processos que temos de considerar não nos são familiares nem em espécie
nem em escala. As estimativas de risco sobre as quais os nossos estrategistas
vêm trabalhando e que vêm citando aos nossos cidadãos são grosseiramente
otimistas.
Antes de terminar, quero focalizar um outro aspecto da análise de riscos.
É um aspecto que mencionei de passagem mais atrás: a noção de
"racionalidade" por parte dos detentores do poder de decisão ao confrontar
questões de probabilidade e gravidade de um risco. Não apenas há motivos
para duvidar que esses indivíduos, confrontados com riscos de alta gravidade e
baixa probabilidade, se comportem de acordo com padrões utilitários racionais
de opção, como há precedentes históricos explícitos fazendo acreditar que se
comportarão de modo mais político - e humano - do que aquele que o modelo
do "agente racional" indicaria. Em seu excelente livro The Essence of Decision,
Graham Allison analisa o tratamento pelo governo dos Estados Unidos da crise
dos mísseis cubanos em 1962 do ponto de vista de diferentes modelos
comportamentais. Ao lê-lo, é impossível fugir à conclusão de que nenhum chefe
de Estado, nenhuma autoridade do governo, nenhum oficial militar superior se
comporta como "agente racional" ao tomar decisões quando o destino de
países e do mundo pende na balança. Estruturas burocráticas, lealdades
políticas e antecedentes - além de outras não-linearidades comportamentais
que mal estamos começando a sondar - desempenham papéis ponderáveis. No
entanto a estrutura da prontidão militar e o equilíbrio estratégico fundam-se na
expectativa de resposta racional e contra-resposta racional. A racionalidade
será particularmente difícil de manter nos primeiros estágios de um conflito
nuclear quando a incerteza e a necessidade de decisões rápidas predominarão.
É por isso que se afigura tão improvável a chefes militares experimentados e a
outros que uma guerra nuclear possa jamais manter-se limitada.
Seja como for, a avaliação de riscos deveria proceder-se sobre hipóteses
de pior caso. É por isso que os cenários adotados pelos grupos de trabalho
desta Conferência, como a maior parte dos demais, envolvem a detonação de
frações consideráveis do arsenal nuclear do mundo. Mas há também uma
razão adicional: a alta probabilidade de que, no contexto real das decisões de
um confronto nuclear, será tão difícil confinar a retaliação e a reação que o
curso esperado de um conflito dessa espécie é que ele prossiga sem limite.
Finalizando, quero especificar o que é novo e o que não é neste volume. É
de extrema significação que um grande grupo de biólogos ilustres tenha chegado
a um consenso refletido sobre as conseqüências ecológicas de um conflito
nuclear. (Em geral não se faz idéia de como é difícil que biólogos, principalmente
ilustres, concordem nalguma coisa.) O grupo que se ocupou dos efeitos
atmosféricos e climáticos, em seu relatório conjunto, levanta algumas
possibilidades desalentadoras com respeito a esses aspectos de um pós-guerra
nuclear. Mas, como eu tentei ilustrar, essas descobertas são parte de um
processo ordenado na evolução do pensamento científico, através do qual pouco
a pouco viemos deslocando o foco de nossas atenções dos efeitos mais
imediatos e mais óbvios para os mais complexos e duráveis. Essa transição
desloca-nos também para uma zona em que os efeitos são possivelmente ainda
mais sérios, posto que muito mais difíceis de estimar com precisão. De fato, a
história do desenvolvimento da ciência nuclear e a complexidade de muitos dos
efeitos de maior alcance de que aqui se tratará sugerem que a incerteza deveria
ser uma advertência temática para os planejadores de políticas. O que as nossas
projeções mais ponderadas mostram é que um choque nuclear em grande
escala haverá de produzir, entre os seus muitos efeitos plausíveis, as maiores
convulsões biológicas e físicas deste planeta nos últimos 65 milhões de anos –
um tempo mais de 30 mil vezes maior que o decorrido do nascimento de Cristo,
e mais de 100 vezes o tempo de existência até aqui da nossa espécie. É preciso
que a avaliação dos riscos prováveis se constitua num pano de fundo para todos
aqueles que detêm a responsabilidade pelas decisões de segurança nacional,
aqui e em outros lugares.
Assim como existe uma continuidade entre as descobertas atuais e os
resultados de trabalhos científicos anteriores, quero ressaltar que existe
igualmente uma continuidade entre as opiniões dos cientistas aqui apresentadas
e as dos seus ilustres colegas não citados neste livro. E quero encerrar
enfatizando as últimas, já que é fácil muitas vezes rejeitar más notícias
desconfiando do mensageiro. Projeções anteriores sobre os efeitos retardados
de uma guerra nuclear, baseadas nos conhecimentos então disponíveis, foram
feitas em 1975 pela Academia Nacional de Ciências e em 1979 pela Comissão
de Avaliação Tecnológica do Congresso. A Academia, que foi instituída por
Abraão Lincoln para assessorar o governo dos Estados Unidos em assuntos
científicos, é composta por quase mil e trezentos dos mais reputados cientistas
do país. Em aditamento ao estudo de 1975 sobre efeitos a longo prazo, ela está
procedendo a uma análise de conseqüências atmosféricas e climáticas, que
esperamos venha ampliar e manter sob atenção as conclusões descritas nesta
Conferência pelo Dr. Sagan. Em conseqüência dessa iniciativa, os membros da
Academia, em abril do ano passado, aprovaram uma resolução insólita - insólita
no sentido de que rompeu uma reserva habitual da Academia em assuntos que
pudessem ser considerados objeto de controvérsia política. Embora este seja um
livro de descobertas científicas e não de recomendações de conduta, quero levar
ao conhecimento dos leitores o julgamento firmado pelos meus colegas
acadêmicos sobre a matéria, pelo que termino reproduzindo a Resolução da
Academia Nacional de Ciências sobre Guerra Nuclear e Controle de
Armamentos:

Considerando que a guerra nuclear é uma ameaça sem precedentes à


humanidade;
Considerando que uma guerra nuclear total poderia eliminar centenas de
milhões de vidas e destruir a civilização tal como a conhecemos;

Considerando que qualquer emprego de armas nucleares, inclusive em


assim chamadas "guerras limitadas", muito provavelmente redundaria numa
escalada para a guerra nuclear total;

Considerando que a ciência não aponta nenhuma possibilidade de defesa


eficaz contra uma guerra nuclear e mútua destruição;

Considerando que a proliferação de armas nucleares em outros países com


governos instáveis em áreas de alta tensão aumentariam substancialmente o
risco de uma guerra nuclear;

Considerando que por mais de dois anos não houve progressos no sentido
de obter limitações e reduções de armas estratégicas, quer através da
ratificação do SALT II quer da retomada de negociações sobre armas nucleares
estratégicas;
Fica resolvido que a Academia Nacional de Ciências pede ao presidente e
ao Congresso dos Estados Unidos, e aos poderes correspondentes da União
Soviética e de outros países que têm um interesse similar nessas matérias
vitais:

Que intensifiquem de modo considerável, sem precondições e com


urgência, esforços no sentido de alcançar um acordo eqüitativo e comprovável
entre os Estados Unidos, a União Soviética e outras nações que têm um
interesse similar nessas matérias vitais;

Que acionem todos os meios práticos possíveis capazes de reduzir o risco


de uma guerra nuclear por acidente ou erro de interpretação;

Que adotem todos as medidas práticas para inibir a proliferação continuada


de armas nucleares em outros países;

Que sigam observando todos os acordos existentes de controle de


armamentos, inclusive o SALT II; e

Que evitem doutrinas militares que considerem explosivos nucleares como


armas de guerra comuns.

A ATMOSFERA E AS CONSEQÜÊNCIAS CLIMÁTICAS DA GUERRA


NUCLEAR

CARL SAGAN

Hoje é o Dia das Bruxas do ano que precede 1984, e sInceramente eu


gostaria que o que irei dizer-lhes em seguida fosse apenas uma histÓria de
fantasmas, apenas algo inventado para assustar crianças por um dia.
Infelizmente, não é uma simples história. Nossas últimas pesquisas revelaram o
fato surpreendente de que uma guerra nuclear pode arrastar em sua esteira
uma catástrofe climática, a que damos o nome de "inverno nuclear", sem
precedentes durante a ocupação da Terra pelo homem.
Foi por acidente que esbarramos com esses resultados, por uma via
tortuosa, por uma dessas circunstâncias não raras na ciência em que estudando
alguma coisa pelo interesse puramente intelectual que ela oferece se é levado a
conclusões de inesperada utilidade prática. Para mim, a coisa começou em
1971, com a exploração de Marte pela Mariner 9. A Mariner 9 foi a primeira
espaçonave a orbitar ao redor de outro planeta. Os engenheiros do projeto
garantiram que ela só funcionaria por três meses após a entrada em órbita.
Chegando a Marte, a nave encontrou o planeta completamente coberto por uma
tempestade global de pó. Ao fim de um mês, durante o qual foi fotografado um
disco quase inteiramente desprovido de detalhes, passamos a alimentar sérios
receios de que quando a poeira assentasse por completo, limpando a atmosfera
marciana, a nave já estaria inoperante. Com efeito, a tempestade levou três
meses para dissipar-se, mas a nave funcionou muito melhor do que disseram os
engenheiros - e por todo o ano seguinte foi-nos dado examinar o planeta de um
pólo a outro no primeiro reconhecimento orbital detalhado de outro planeta.
Durante aqueles três primeiros meses, pouca coisa houve a observar, além
da poeira em suspensão. Havia a bordo da nave um instrumento chamado
espectrômetro interferométrico de infravermelho, capaz de examinar a atmosfera
em vários comprimentos de onda e assim sondar os diferentes níveis da
atmosfera - desde as grandes altitudes até a superfície. Pudemos observar a
temperatura da atmosfera e a da superfície variarem com o tempo. Os
resultados mostraram que a atmosfera estava consideravelmente mais quente
do que é normalmente em Marte, e a superfície consideravelmente mais fria. À
medida que a poeira assentava, a atmosfera foi arrefecendo e a superfície
esquentando - ambas as temperaturas caminhando para os seus valores usuais,
ou "ambientes" - Não foi difícil entender as razões disso. Os ventos haviam
arrastado uma grande quantidade de poeira dos desertos marcianos para a
atmosfera. A luz do sol fora absorvida pelo pó na alta atmosfera, que com isso
se aquecera. Da mesma forma, a luz do sol fora impedida de alcançar a
superfície, e esta esfriara. Um espectador em Marte teria observado, depois que
a tempestade de poeira se desencadeou, o frio e a escuridão se propagando
sobre a face do planeta. Após vários meses (a tempestade começara alguns
meses antes da chegada da Mariner 9 a Marte), quase toda a poeira se
depositara, e as condições voltaram ao normal.
Essas tempestades de poeira são comuns em Marte, e por mais de um
século têm sido observadas da Terra. Caracteristicamente, elas surgem sempre
nos mesmos poucos locais do planeta, propagam-se primeiro em longitude,
depois em latitude, e em questão de poucas semanas no máximo cruzam
tipicamente o equador marciano, passando ao outro hemisfério. Ora, a pressão
atmosférica na superfície de Marte é mais ou menos a mesma da estratosfera
da Terra. Marte gira, como a Terra, uma vez em 24 horas, e o seu eixo de
rotação é inclinado em relação ao seu plano orbital de um ângulo quase igual ao
da Terra. Há, é claro, diferenças entre Marte e a Terra - entre elas a ausência de
mares em Marte e o fato de ele estar mais afastado do Sol. Mas pareceu-nos
que a experiência marciana podia ser relevante para a Terra.
Alguns de nós, tendo pouca coisa a ver nos primeiros três meses depois
da entrada em órbita além da tempestade de poeira, ocupamo-nos em calcular o
grau de aquecimento atmosférico e de esfriamento superficial para uma dada
quantidade de poeira levantada. Um cálculo aproximado não era muito difícil, e
vários diferentes grupos puderam determinar não só qualitativa como
quantitativamente as mudanças de temperatura que a tempestade de poeira
temporariamente produzira em Marte. Meus colegas (e ex-alunos) James B.
Pollack e O. Brian Toon, ambos hoje no Centro de Pesquisas Ames da NASA,
estavam ansiosos por aplicar esse repositório computacional a problemas
terrestres. Aplicamo-nos a tentar compreender o que acontece com o clima da
Terra quando um grande vulcão entra em erupção e distribui aerossóis
estratosféricos à volta do planeta. Em alguns casos, conhecemos a quantidade
de poeira introduzida na alta atmosfera, as dimensões das partículas de pó (em
geral menos de um micro [um décimo milésimo de centímetro]) e a sua
composição (geralmente ácido sulfúrico e silicatos). Como a estratosfera é muito
seca, a chuva não remove esses aerossóis; e como a convecção na estratosfera
é muito atenuada, os movimentos do ar não tendem a transportá-Ios para fora.
Dessa forma, eles descem lentamente pelo próprio peso -lentamente porque as
suas dimensões são muito reduzidas -, levando mais de um ano para que a
estratosfera fique limpa. Ao mesmo tempo, existem medições, para muitas
explosões vulcânicas, de um declínio pequeno porém definido da temperatura
global - para todas as explosões vulcânicas dos últimos poucos séculos, um
esfriamento de um grau ou menos. Verificamos que era possível calcular esses
declínios de temperatura com razoável precisão; os métodos desenvolvidos para
Marte, e desde então consideravelmente ampliados, funcionaram bastante bem
para a Terra.
Foi proposto então por Alvarez e outros que a extinção dos dinossauros e
muitas outras espécies 65 milhões de anos atrás, no limite entre os períodos
cretáceo e terciário, ter-se-ia dado devido à colisão com a Terra de um asteróide
de 10 quilômetros de diâmetro, e a conseqüente efusão na atmosfera de
enormes quantidades de poeira. Com o concurso de Richard Turco da R&D
Associates de Marina deI Rey, Califórnia, Pollack e Toon calcularam que essa
colisão teria acarretado um escurecimento e um esfriamento de grandes
proporções. Devo frisar, no entanto, que a nossa tese sobre as conseqüências
climáticas de uma guerra nuclear não está vinculada a essa explicação das
extinções do cretáceo/terciário. Os dinossauros podem ter morrido de gripe sem
afetar a validade das nossas conclusões.
Nós sabíamos, naturalmente, que explosões nucleares arremessam
grandes quantidades de poeira fina na atmosfera, e durante anos havíamos
falado em calcular os efeitos climáticos prováveis que daí adviriam. Num
seminário realizado no Centro de Pesquisas Ames (dedicado em parte à
questão da origem da vida), em 1981, decidimos dar andamento àquele estudo.
Um ano mais tarde o nosso esforço recebeu novo impulso por obra de um
trabalho muito interessante realizado por Paul Crutzen, do Instituto de Química
Max Planck de Mogúncia, República Federal da Alemanha, e John Birks, da
Universidade do Colorado. Crutzen e Birks tinham feito uma estimativa
preliminar da quantidade de fumaça produzida pela queima de florestas e
cidades que seria descarregada na atmosfera numa guerra nuclear.
Evidentemente esta seria uma importante fonte adicional de partículas finas
capazes de obscurecer a luz do sol.
Chego assim à questão dos efeitos de uma guerra nuclear. As
conseqüências imediatas da explosão de um único artefato termonuclear são
conhecidas e bem documentadas - radiação da bola de fogo, emissão primária
de nêutrons e raios gama, deslocamento de ar e incêndios. A bomba de
Hiroxima, que matou entre 100.000 e 200.000 pessoas, era um artefato de
fissão com potência de cerca de 12 quilotons (o equivalente explosivo de 12.000
toneladas de TNT). Uma ogiva termonuclear moderna emprega um mecanismo
mais ou menos parecido com o da bomba de Hiroxima como detonador - o
"fósforo" que acende a fusão nuclear. Uma arma termonuclear americana típica
pode ter uma potência em torno de 500 quilotons (ou 0,5 megaton, sendo um
megaton o equivalente explosivo de um milhão de toneladas de TNT). Hoje
existem muitas armas na faixa de 9 a 20 megatons nos arsenais estratégicos
dos Estados Unidos e da URSS. A arma mais potente até hoje detonada tinha
58 megatons.
Armas nucleares estratégicas são aquelas projetadas para serem
transportadas por mísseis lançados de bases terrestres ou de submarinos, ou
por bombardeiros, até alvos situados nos territórios inimigos. Numerosas armas
de potência aproximadamente igual à da bomba de Hiroxima são hoje
reservadas para missões militares "táticas" ou "de teatro", ou são designadas
"munições" e relegadas a mísseis ar-ar ou terra-ar, torpedos, cargas de
profundidade e artilharia. Se bem que as armas estratégicas tenham em geral
maior potência do que as armas táticas, nem sempre é este o caso Os
modernos mísseis (por exemplo, Pershing 2, SS-20) e aviões (por exemplo, F-
15, MIG-23) táticos ou de teatro têm raios de ação suficientes para tornar cada
vez mais artificial a distinção entre armas "estratégicas" e ''táticas" ou "de
teatro". Ambas as classes de armas podem ser expedidas por mísseis lançados
de bases terrestres, do mar e de aviões, e por sistemas de alcance tanto
intermediário como intercontinental. Não obstante, pela contagem usual existem
cerca de 18.000 armas termonucleares estratégicas e de teatro e um número
igual de detonadores de fissão nos arsenais estratégicos americano e soviético,
com uma potência total de cerca de 10.000 megatons. O número total de armas
nucleares (estratégicas mais táticas e de teatro) nos arsenais dos dois países
está próximo de 50.000, com uma potência somada de quase 15.000 megatons.
Para simplificar, eliminaremos aqui a distinção entre armas estratégicas e de
teatro e adotaremos, sob a rubrica "estratégicas", uma potência acumulada de
13.000 megatons. As armas nucleares do resto do mundo - principalmente
Inglaterra, França e China - montam a muitas centenas de ogivas e algumas
centenas de megatons de potência total adicional.
Ninguém sabe, é claro, quantas ogivas com que total de potência seriam
detonadas numa guerra nuclear. Em decorrência de ataques a aviões e mísseis
estratégicos, e em decorrência de falhas tecnológicas, é certo que menos que a
totalidade do arsenal do mundo seria detonado. Por outro lado, é geralmente
admitido, mesmo entre a maioria dos planejadores militares, que seria quase
impossível conter uma "pequena" guerra nuclear antes que ocorresse uma
escalada no sentido de incluir grande parte dos arsenais mundiais. (Fatores de
aceleração são mau funcionamento de comandos e controles, falhas de
comunicações, a necessidade de decisões instantâneas sobre os destinos de
milhões de pessoas, medo, histeria e outros fatores referentes a uma guerra
nuclear real, travada por homens de carne e osso.) Basta esta razão para que
qualquer tentativa séria de estudar as possíveis conseqüências de uma guerra
nuclear deva contemplar de preferência um conflito em grande escala, na faixa
de 5.000 a 7.000 megatons - entre aproximadamente um terço e metade dos
estoques estratégicos do mundo -, e é o que várias investigações têm feito.
Contudo, muitos dos efeitos adiante referidos podem ser deflagrados por
guerras muito menores.
Aeroportos estratégicos, silos de mísseis, bases navais, submarinos no
mar, fábricas e depósitos de armas, centros de comando e de controle civil e
militar, instalações de detecção de ataque e alarme antecipado, etc., são
objetivos prováveis ("ataque de contra-força"). Embora se declare com
freqüência que cidades não seriam visadas per se, muitos dos objetivos acima
referidos estão localizados nelas ou nos seus arredores, principalmente na
Europa. Além disso, existe a classe dos alvos industriais ("ataque de contra-
valor"). As modernas doutrinas nucleares requerem que instalações de "apoio
bélico" sejam atacadas. Muitas dessas instalações são necessariamente
industriais por natureza, e empregam uma força de trabalho de dimensões
consideráveis. Quase sempre estão localizadas nas proximidades de grandes
centros de transporte, de modo que matérias-primas e produtos acabados
possam ser eficientemente transferidos para outros setores de indústria ou para
tropas no campo. Assim, essas instalações são, quase por definição, cidades,
ou se encontram perto ou no interior de cidades. Outros objetivos classificados
como de "apoio bélico" podem ser os próprios sistemas de transporte (estradas,
canais, rios, ferrovias, aeroportos civis, etc.), refinarias, depósitos e dutos de
petróleo, usinas hidrelétricas e nucleares, emissoras de rádio e televisão, e
assim por diante. Um ataque cruzado de contra-valor poderia assim envolver a
quase totalidade das grandes cidades dos Estados Unidos e da União
Soviética, e possivelmente a maior parte das grandes cidades do Hemisfério
Norte. Existem no mundo menos de 2.500 cidades com população acima de
100.000 habitantes, portanto a destruição de todas essas cidades está
perfeitamente dentro da capacidade dos arsenais nucleares do mundo.
Estimativas recentes de mortes imediatas por efeito de explosão, radiação
primária e incêndios num conflito de grandes dimensões em que cidades
fossem alvejadas variam de algumas centenas de milhões a - mais
recentemente, num estudo da Organização Mundial de Saúde em que se supôs
que os objetivos não se restringiriam exclusivamente aos países da OTAN e do
Pacto de Varsóvia - 1,1 bilhão de pessoas. É possível, portanto, que algo como
a metade da população do planeta fosse morta ou seriamente lesada pelos
efeitos diretos de uma guerra nuclear. Anarquia social; falta de eletricidade,
combustíveis, transportes, abastecimento de alimentos, comunicações e outros
serviços civis; ausência de atendimento médico; interrupção de medidas
sanitárias; multiplicação de doenças e de distúrbios psíquicos graves - fariam
sem dúvida um número considerável de vítimas a mais. Mas uma série de
outros efeitos - alguns inesperados, alguns impropriamente analisados em
estudos precedentes, alguns por nós só recentemente descobertos - torna o
quadro ainda muito mais sombrio.
A destruição de silos de mísseis, instalações de comando e controle e
outros locais resguardados requer - dadas as atuais limitações de precisão dos
mísseis - armas nucleares de potência bastante apreciável detonadas no solo ou
a pequena altura. Explosões de alta potência no solo vaporizarão, fundirão e
pulverizarão a superfície da área de impacto e propelirão grandes quantidades
de vapores condensados e poeira fina para a região superior da troposfera e
para a estratosfera. As partículas são carreadas principalmente na bola de fogo
ascendente; algumas sobem pela coluna da nuvem em cogumelo. Contudo, em
sua maioria os alvos militares não são muito resguardados. A destruição de
cidades pode ser realizada, como se viu em Hiroxima e Nagasáqui, por
explosões de potência inferior a menos de 1.000 metros acima da superfície.
Explosões de baixa potência no ar sobre cidades ou florestas próximas tenderão
a provocar incêndios extensos, em alguns casos cobrindo uma área total de
100.000 quilômetros quadrados, ou mais. Incêndios em cidades geram enormes
quantidades de fumaça negra que se eleva pelo menos à camada superior da
baixa atmosfera, ou troposfera (Fig. 1A). Se ocorrerem tempestades ígneas, a
coluna de fumaça sobe vigorosamente, como a tiragem de uma chaminé, e
possivelmente (a questão ainda não foi esclarecida) arrasta parte da fuligem
para a parte inferior da alta atmosfera, ou estratosfera. A fumaça produzida por
incêndios em florestas ou capim ficaria a princípio restrita à baixa troposfera.
Figura 1A Representação aproximada da estrutura habitual de
temperaturas da atmosfera da Terra nas latitudes médias norte (ou sul). Na
superfície, aquecida pelo sol, a temperatura média anual é de 13º.C. A
temperatura decresce com a altitude até uma altura (h) de cerca de 13 km, onde
é de -55º.C. Essas baixas temperaturas são conhecidas dos alpinistas e dos
aviadores. A região inferior da atmosfera terrestre, chamada troposfera, é
agitada por ventos e turbulências, e nela ocorre a formação de chuvas. Assim,
na troposfera partículas finas são dissipadas ou lavadas pela chuva com relativa
rapidez.
A troposfera (e as chamadas "variações do tempo") terminam na
tropopausa, a cerca de 13 km de altitude. Acima vem a estratosfera. Nesta, as
temperaturas são mais constantes com a altitude; os ventos verticais e a
turbulência são moderados; não há chuva; e partículas finas se dissipam muito
lentamente.
A fumaça de incêndios fica limitada em sua maior parte à troposfera, e as
partículas de fuligem se depositam em tempo relativamente curto. Já a poeira
produzida por detonações de alta energia no solo - em silos e outras instalações
resguardadas - é injetada em considerável proporção na estratosfera e se
precipita com relativa lentidão. A energia explosiva apenas capaz de injetar
algum material na estratosfera é cerca de 10 quilotons, como mostra a figura. A
bola de fogo e a nuvem estabilizada produzidas por uma explosão de 1
megaton (MT) sobem quase totalmente à estratosfera.

A fissão do detonador (geralmente plutônio) existente em todo engenho


nuclear e as reações no revestimento (geralmente urânio 238) acrescentado
como "reforçador" de energia de fissão produzem uma salada de produtos
radioativos que são também arrastados na nuvem. Cada um desses produtos,
ou radioisótopos, tem uma meia-vida característica (definida como o tempo
necessário para que se reduza à metade, por desintegração, o seu nível original
de radioatividade). A maioria dos radioisótopos têm meias-vidas muito curtas, e
se desintegram em horas ou dias. Partículas introduzidas na estratosfera,
principalmente por explosões de alta energia (Fig. 1A), precipitam-se muito
lentamente - caracteristicamente em cerca de um ano, sendo que ao fim desse
tempo a maior parte dos produtos de fissão, mesmo quando concentrados, ter-
se-á reduzido a níveis bem menos perigosos. Partículas introduzidas na
troposfera por explosões de baixa energia (Fig. 1A) e por incêndios precipitam-
se mais depressa - por coagulação, assentamento gravitacional, lavagem pela
chuva, convecção e outros processos - antes que a radioatividade se tenha
reduzido a níveis relativamente inócuos. Assim, a rápida precipitação de
resíduos radioativos troposféricos tende a produzir doses maiores de radiação
ionizante do que a precipitação mais lenta de partículas radioativas da
estratosfera.
Explosões nucleares de mais de um megaton de energia desprendida
geram uma bola de fogo radiante que sobe através da troposfera e
penetra em cheio na estratosfera (Fig. 1A). As bolas de fogo produzidas por
armas de potência compreendida entre 100 e 1.000 quilotons (1.000 quilotons =
1 megaton) atingem parcialmente a estratosfera. As altas temperaturas da bola
de fogo inflamam quimicamente parte do nitrogênio do ar, produzindo óxidos de
nitrogênio, que por sua vez atacam quimicamente e destroem o gás ozônio da
média estratosfera. Mas o ozônio absorve a radiação ultravioleta do sol,
biologicamente perigosa. Assim, a exaustão parcial da camada estratosférica
de ozônio, ou ozonosfera, por explosões nucleares de alta energia, aumentará
o fluxo de radiação solar ultravioleta na superfície da Terra (depois que a
fuligem e a poeira tiverem assentado). Depois de uma guerra nuclear em que
milhares de engenhos de alta potência fossem detonados, o aumento da luz
ultravioleta potencialmente prejudicial à vida poderia ser de várias centenas por
cento. Os maiores aumentos ocorreriam nas ondas de menor comprimento, que
são as mais perigosas. Os ácidos nucléicos e as proteínas, que são as
moléculas básicas da vida da Terra, são especialmente sensíveis à radiação
ultravioleta. Assim, um aumento do fluxo de radiação solar ultravioleta na
superfície da Terra seria uma ameaça à vida.
Esses quatro efeitos - obscurecimento por fumaça na troposfera,
obscurecimento por poeira na estratosfera, precipitação de resíduos radioativos
e destruição parcial da camada de ozônio - constituem as quatro principais
conseqüências ambientais adversas que se verificariam depois de "terminada"
uma guerra nuclear. É bem possível que haja outras que ainda não sabemos. A
poeira e, principalmente, a fuligem escura absorvem a luz visível do sol,
aquecendo a atmosfera (Figuras 1B e 1C) e esfriando a superfície da Terra.
Figuras 1B e 1C. Quando a alta atmosfera se aquece (pela absorção de
luz do sol por partículas em suspensão levantadas numa guerra nuclear), a
superfície esfria, porque as mesmas partículas impedem a luz de lá chegar. Na
Figura 1B, construída de acordo com os cálculos do TTAPS, vê-se a estrutura
da atmosfera da Terra em latitudes médias norte 30 dias depois de uma guerra
nuclear "de referência" (Quadro 1, Caso 1). Como na Figura 1A, o eixo vertical
representa a altura (h) e o eixo horizontal a temperatura do ar em graus
centígrados. A Figura 1C mostra a estrutura de temperaturas depois de 120
dias. Em ambos os casos a estrutura atmosférica usual (Fig. 1A) se desfez, a
temperatura na baixa atmosfera é mais constante com a altitude, e surgiu uma
nova região de inversão térmica.
Do mesmo modo que acontece com inversões térmicas sobre cidades
como Los Angeles, a estrutura alterada de temperatura é muito estável, e as
partículas que chegaram a essas altitudes se dissipam muito mais devagar do
que seria normalmente o caso. Como a influência dessa inversão térmica não foi
ainda introduzida nos cálculos do TIAPS (os cálculos não são "totalmente
interativos"), os tempos de restauração das condições normais que aparecem na
Figura 2 podem ter sido grandemente subestimados. No caso de 30 dias, a
região em que a temperatura quase não varia com a altitude atingiu o solo, e
nesse sentido pode-se dizer que a guerra nuclear traz a estratosfera à superfície
da Terra.
A comparação entre as três figuras serve também para explicar por que
correntes de partículas finas tendem, depois de algum tempo, a transpor o
equador e invadir o Hemisfério Sul. Considere-se, por exemplo, uma altitude de
10.000 m no Hemisfério Norte. Algumas semanas depois da guerra de
referência, as temperaturas ali são da ordem de 0º.C (Fig. 1B). À mesma altitude,
no Hemisfério Sul por ora livre de poeira e fumaça (Fig. 1A), as temperaturas são
500 mais baixas. Porções de ar, e as partículas nelas contidas, fluirão "declive
abaixo", de regiões mais quentes para mais frias. Em física, fluxos tendem a
seguir gradientes. As grandes diferenças de temperatura induzirão correntes
ascendentes no sentido sul no Hemisfério Norte e correntes descendentes no
sentido norte no Hemisfério Sul. O efeito resultante pode ser o de difundir o ar
carregado de poeira à toda a volta do globo e elevá-Io ainda mais acima da
superfície.

Todos esses quatro efeitos foram considerados em nosso último estudo,


designado pelas iniciais dos seus autores, TTAPS. Pela primeira vez se
demonstra que temperaturas extremamente baixas, o "inverno nuclear", se
sucederiam por um tempo prolongado a uma guerra nuclear. (O estudo também
explica o fato de não terem sido detectados efeitos climáticos do gênero após a
detonação de algumas centenas de megatons durante o período de testes
atmosféricos de engenhos nucleares pelos Estados Unidos e União Soviética,
encerrado pelo Tratado Limitado de Proibição de Testes em 1963: as explosões
se sucederam ao longo de vários anos, virtualmente não simultâneas, e, como
ocorreram sobre descampados, atóis de coral, tundras e áreas desérticas, não
provocaram incêndios.) Os novos resultados foram submetidos a análises
detalhadas, e muitos cálculos confirmativos já foram feitos depois, inclusive pelo
menos dois na União Soviética.
Ao contrário do que se afirmou em estudos precedentes, os efeitos
parecem não limitar-se às latitudes médias do Hemisfério Norte, onde
basicamente ocorreria o intercâmbio nuclear. Existem hoje provas substanciais
de que o aquecimento pela luz solar da poeira e fuligem atmosféricas sobre
objetivos situados em latitudes médias norte alteraria profundamente a
circulação global (ver legenda das Figs. 1B e 1C). Partículas finas seriam
transportadas para o outro lado do equador em questão de semanas, como
acontece em Marte, levando o frio e a escuridão ao Hemisfério Sul. (Além do
mais, certos estudos sugerem que mais de 100 megatons seriam destinados a
objetivos situados na faixa do equador e no Hemisfério Sul, gerando assim
partículas finas localmente.) Embora fossem menores o esfriamento e o
escurecimento superficiais no Hemisfério Sul do que no Norte, também ali
poderiam ocorrer perturbações climáticas e ambientais de grandes proporções.
Em nosso estudo, selecionaram-se algumas dúzias de diferentes cenários,
cobrindo uma ampla gama de guerras possíveis, e em cada parâmetro básico
foi considerada a margem de incerteza (p. ex., ao estabelecer a quantidade de
partículas finas introduzidas na atmosfera). Cinco casos representativos são
mostrados, no Quadro 1, variando de um ataque pequeno, de baixa energia,
contra cidades exclusivamente, utilizando em potência apenas 0,8% dos
arsenais estratégicos do mundo, a um conflito de grandes dimensões com o
emprego de 75% dos estoques mundiais. Os casos "nominais" pressupõem os
parâmetros alternativos mais prováveis; os casos "severos" pressupõem
parâmetros adversos, mas sempre na faixa do plausível.
As temperaturas continentais no Hemisfério Norte previstas variam
conforme as curvas mostradas na Figura 2. A alta capacidade calorífica de água
garante que as temperaturas dos mares cairão no máximo uns poucos graus.
Sendo as temperaturas moderadas pelos mares contíguos, as das regiões
costeiras serão menos extremas que as do interior dos continentes. Contudo, o
acentuado contraste entre os continentes gelados e os mares apenas
ligeiramente esfriados produzirá borrascas contínuas de extraordinária violência
ao longo das costas, e a lavagem e arrastamento preferencial de radioatividade
indicam que nem o interior dos continentes nem os litorais serão poupados. As
temperaturas mostradas na Figura 2 são valores médios para as áreas
continentais do Hemisfério Norte, sem levar em conta até aqui a influência dos
mares nem a descontinuidade inicial das nuvens.
Sabe-se que mesmo quedas de temperatura bem menores trazem
conseqüências sérias. A explosão do vulcão Tambora na Indonésia em 1815 foi
a causa provável de um declínio na temperatura média global de menos de
1º.C, devido ao obscurecimento do sol pela poeira fina propelida para a
estratosfera. O frio verificado no ano seguinte foi de tal ordem que 1816 ficou
conhecido na Europa e na América como, respectivamente, "o ano sem verão" e
"mil-e-oitocentos-e-morrer-de-frio". Um esfriamento de 1º.C acabaria por
completo com as lavouras de trigo do Canadá. Pequenas variações globais
estão geralmente associadas a variações regionais muito maiores. Nos últimos
mil anos, os desvios máximos de temperatura global ou do Hemisfério Norte
foram da ordem de 1º.C. Numa glaciação, uma baixa prolongada típica da
temperatura global em relação às condições preexistentes é de cerca de 10º.C.
Mesmo os casos mais modestos ilustrados na Figura 2 dão baixas temporárias
dessa ordem. O caso de referência é muito mais adverso. Diferentemente,
porém, da situação numa glaciação, as temperaturas globais após a guerra
cairiam bruscamente, e é provável que levassem apenas de alguns meses a
alguns anos para restabelecer-se, em vez de milhares de anos. Não é de se
esperar que um inverno nuclear induzisse a um novo período glaciário, pelo
menos de acordo com a nossa análise preliminar.
Com o obscurecimento do sol, a luz diurna pode cair aos níveis de um
lusco-fusco crepuscular ou pior. Na zona dos objetivos de médias latitudes do
Hemisfério Norte, a escuridão pode ir ao ponto de não se enxergar, mesmo ao
meio-dia. Nos Casos 1 e 14 (Quadro 1), os níveis médios hemisféricos de luz
caem a uns poucos por cento dos seus valores normais, sendo comparáveis aos
que ocorrem na base de nuvens de chuvas densas. Com essa iluminação,
muitos vegetais ficam próximos do chamado ponto de compensação, que é o
nível de luz em que a fotossíntese é apenas suficiente para manter o
metabolismo da planta. No Caso 17, a iluminação média de todo o Hemisfério
Norte cai durante o dia a cerca de 0,1% do normal, um nível de luz em que na
maior parte das plantas a fotossíntese cessará de todo. Nos Casos 1 e,
especialmente, 17, a restauração completa da iluminação diurna normal leva um
ano ou mais (Figura 2).

Figura 2. Nesta figura mostra-se como a temperatura média das áreas


continentais do Hemisfério Norte (afastadas das costas) varia com o tempo após
uma guerra nuclear. A temperatura é indicada no eixo vertical, em graus
centígrados à esquerda e em graus Fahrenheit à direita. A temperatura
"ambiente" é a média calculada de todas as estações e latitudes. Assim,
temperaturas normais de inverno em latitudes norte temperadas serão inferiores
às representadas, e temperaturas normais tropicais serão mais altas que as
representadas. A linha tracejada horizontal superior indica a temperatura média
da Terra (13º.C ou 56º.F) e a linha tracejada horizontal inferior indica o ponto de
congelamento da água pura (0º.C ou 32º.F). O eixo horizontal representa o
tempo em dias a contar do começo da guerra nuclear até quase um ano depois.
Cada curva representa um cenário diferente de guerra nuclear, com a energia
total despendida na guerra variando de 100 megatons (MT) a 10.000 MT. A
influência moderadora dos mares (provavelmente resultando em baixas de
temperatura de 50 a 70% das mostradas) não é considerada, conforme exposto
no texto.
Os casos aqui mostrados, tirados de uma compilação muito maior dos
relatórios TTAPS, são definidos com maior detalhe no Quadro 1. Compreendem
uma mistura de ataques de contra-valor contra indústrias e cidades em que o
principal efeito é a fumaça de incêndios carreada para a troposfera, e ataques de
contra-força a silos de mísseis, nos quais supõe-se (de modo muito otimista) que
não há produção de fumaça, mas grandes quantidades de poeira invadem a
atmosfera a grandes altitudes. Os casos definidos como "nominais" pressupõem
os valores mais prováveis dos parâmetros (como as dimensões das partículas de
pó ou a freqüência de tempestades ígneas) que são imperfeitamente conhecidos.
Os casos denominados "severos" representam valores adversos mas não
implausíveis desses parâmetros.
No Caso 14 a curva acaba quando a temperatura atinge, a menos de um
grau, os valores ambientes. Nos outros quatro casos, as curvas terminam ao fim
de 300 dias, mas simplesmente porque os cálculos não foram levados adiante.
Nesses quatro casos as curvas prosseguirão nas direções indicadas pelas setas.
Em termos aproximados, o Caso 1 é a soma dos Casos 11 e 14. O Caso 16
pressupõe um conflito limitado a explosões no solo, de energia razoavelmente
alta, destinadas à destruição de silos, e alta percentagem de poeira fina
resultante. Segue-se uma descrição mais detalhada de cada um dos cinco
casos:

Caso 1: É o caso de referência do TTAPS, em que 4.000 megatons são


usados pelos dois lados em ataques de contra-força, e 1.000 megatons
destinados a cidades e arredores. O efeito principal é o derivado da fuligem
produzida em conflagrações urbanas. A temperatura mínima de -23ºC (-9ºF) é
atingida algumas semanas após o conflito, e as temperaturas voltam ao ponto de
congelamento em cerca de três meses. Contudo a recomposição das condições
ambientes não ocorre antes de um ano, em razão da lenta precipitação da poeira
atmosférica.

Caso 11: Neste os Estados Unidos e/ou a URSS detonam um total de


3.000 megatons sobre silos de mísseis e outros objetivos afastados de cidades e
florestas. Admite-se (irrealisticamente) que os incêndios sejam desprezíveis. Nas
áreas continentais as temperaturas caem durante um período de três meses, e
como a remoção da poeira estratosférica é muito lenta, levam mais de um ano
para retornar aos seus valores usuais (ambientes).

Caso 14: O conflito é limitado a apenas 100 megatons consistindo


exclusivamente de engenhos de baixa potência detonados no ar sobre cidades.
Neste cAlculo não há produção de poeira - só fumaça das cidades incendiadas,
da qual pouca coisa alcança a estratosfera. A temperatura mínima de -23ºC (-
9ºF) é atingida em poucas semanas, e as temperaturas normais se restabelecem
em cerca de 100 dias. À medida que a fuligem se deposita, a luz do sol volta a
alcançar o solo. Cem megatons corresponde aproximadamente a 0,8% dos
arsenais nucleares dos Estados Unidos e URSS.

Caso 16: Emprego de 5.000 megatons em que os ataques são


principalmente contra silos, com Maior produção de poeira fina por megaton
liberado do que no Caso 11, mais otimista, e em que a queima de cidades é
insignificante. Aqui, as temperaturas mínimas só são atingidas depois de quatro
meses, quando baixam a -25ºC (-13º F). Como as grandes quantidades de
poeira levadas à estratosfera se precipitam muito lentamente, é preciso mais de
um ano para que as temperaturas em terra voltem ao ponto de congelamento, e
muito mais ainda para chegarem aos níveis normais.

Caso 17: Neste caso são empregados cerca de 3/4 dos arsenais
estratégicos americanos e russos, numa combinação de ataques a silos e a
cidades. Depois de mais de dois meses, atingem-se temperaturas mínimas de -
47ºC (-53ºF) - temperaturas típicas da superfície de Marte. A fuligem assenta-se
com relativa rapidez, sendo que a lentidão da recuperação é devida à poeira
estratosférica. As temperaturas não voltam ao ponto de congelamento antes de
um ano.

À medida que as partículas finas precipitam-se na atmosfera, transportando


radioatividade para o solo, os níveis de luz aumentam e a superfície se aquece.
Agora a camada empobrecida de ozônio permite à luz solar ultravioleta chegar à
superfície da Terra em maior proporção. No caso de referência, de 5.000
megatons, verifica-se que a precipitação primária, os penachos de radioatividade
arrastados dos objetivos na direção do vento, distribui em 30% das áreas
continentais de médias latitudes do Hemisfério Norte uma dose aproximada de
radiação de 250 rads. Além disso, uma dose de cerca de 100 rads é
descarregada mais ou menos uniformemente em todo o hemisfério. Esta é uma
combinação de emissores externos e matérias radioativas ingeridas. Os
conhecimentos correntes estabelecem a dose média letal de radiação ionizante
com exposição corporal entre aproximadamente 400 e 500 rads. Isto se
prestados cuidadOs médicos amplos. No caso de crianças e velhos, de doentes
ou vítimas de outras agressões do meio ambiente por causa de uma guerra
nuclear, e especialmente na falta de assistência médica adequada, a dose média
letal é consideravelmente reduzida - talvez a 350 rads, ou menos. Assim, a
precipitação radioativa - particularmente nas médias latitudes norte, que têm a
maior densidade demográfica do planeta - seria, por si mesma, extremamente
perigosa num meio de pós-guerra nuclear. O Quadro 2 mostra o cronograma
relativo das várias conseqüências adversas de uma guerra nuclear.
Talvez a conclusão mais surpreendente e inesperada do estudo que
fizemos seja a de que mesmo uma guerra nuclear de proporções relativamente
limitadas pode ter conseqüências climáticas funestas, no caso de ataques a
cidades (ver Caso 14 na Figura 2; neste, os centros de 100 grandes cidades da
OTAN e do Pacto de Varsóvia são incendiados). Há indicação de um limiar muito
próximo em que conseqüências climáticas severas são desencadeadas - por 100
ou mais explosões nucleares sobre cidades, em razão da fumaça gerada, ou por
2.000 a 3.000 detonações de alta energia no solo ou a pequena altura, em silos
de mísseis por exemplo, em razão da poeira produzida e de incêndios
secundários. Partículas finas podem ser injetadas na atmosfera em proporções
crescentes com efeitos de pequena monta até que esses limiares sejam
transpostos. Daí por diante, os efeitos crescem rapidamente de intensidade.
Essas estimativas são, porém, extremamente grosseiras.
Em cálculos dessa complexidade sempre existem incertezas. Há fatores
que tendem a influir no sentido de efeitos mais intensos ou mais prolongados;
outros tendem a moderar os efeitos. Os cálculos detalhados do TTAPS aqui
referidos são unidimensionais; isto é, admitem o movimento vertical das
partículas finas em conformidade com as leis físicas aplicáveis, mas não levam
em conta a dispersão em latitude e longitude. Quando a fuligem ou a poeira se
afasta do local de referência, as coisas melhoram ali e pioram alhures. Além
disso, partículas finas podem ser transportadas por sistemas meteorológicos
para outros locais, onde são arrastadas mais depressa para a superfície. Isto
atenuaria o obscurecimento não apenas localmente como em termos globais. É
justamente esse afastamento das latitudes médias setentrionais que envolve a
zona equatorial e o Hemisfério Sul nos efeitos da guerra nuclear. Seria
conveniente efetuar um cálculo tridimensional acurado da circulação atmosférica
geral após uma guerra nuclear. Estimativas preliminares sugerem que a
circulação geral poderia moderar a amplitude das variações calculadas para o
interior dos continentes em uns 30%, reduzindo um pouco a intensidade dos
efeitos, mas mantendo-os ainda em níveis catastróficos (p. ex., uma baixa de
30ºC em vez de 40°C). Para estabelecer uma certa margem de segurança,
desprezaremos essa correção em nossa exposição subseqüente.
Depois, existem os claros nas nuvens. Muito poucos alvos acessíveis estão
nos oceanos Atlântico e Pacífico. Se esses claros móveis (um no Atlântico, outro
no Pacífico) aparecessem a intervalos regulares sobre a maior parte dos lugares
do Hemisfério Norte, os efeitos do escurecimento e do frio seriam até certo ponto
amenizados. No entanto, incêndios ateados, por exemplo, no oeste da América
do Norte ou nas taigas eurasianas continuariam a lavrar, alguns talvez por
semanas, e outros novos seriam provocados: lançamentos retardados podem ser
dirigidos contra alvos temporariamente situados sob um claro para facilitar a
verificação por satélite da destruição do objetivo. De mais a mais, em diferentes
altitudes os ventos se movem com velocidades diferentes, e um claro a uma
certa altitude pode estar acima ou abaixo de uma camada espessa de nuvens
em outra. A poeira injetada na estratosfera pelo vulcão mexicano El Chichón, na
erupção de 4 de abril de 1982, levou 10 dias para chegar à Ásia, duas semanas
para chegar à África, e circunavegou o globo em três semanas, deixado atrás de
si uma delgada fita de partículas com cerca de 100 de latitude de largura. (Em
poucos meses, cerca de 10 a 20% dos resíduos estratosféricos foram
transportados para o Hemisfério Sul.) Havendo muitas fontes de partículas em
vez de uma, os claros irão fechar-se ainda mais depressa. Assim sendo, parece
improvável que os claros móveis permanecessem abertos ou descobertos por
mais de uma ou duas semanas, ou que descontinuidades em grande escala
pudessem minorar os efeitos climáticos de modo sensível.
Há necessidade de estudar melhor vários outros aspectos do problema: por
exemplo, possíveis descontinuidades em pequena escala; possibilidade de
quedas rápidas de temperatura (como sugerido por Covey e outros: ver as
observações de Stephen Schneider neste livro, pp. 122-127); o tempo que levam
penachos isolados de fumaça para espalhar-se (em nuvens densas as partículas
coagulam e sedimentam mais rapidamente que em nuvens difusas); circulação
atmosférica local em regiões costeiras e implicações para a lavagem pelas
chuvas (ver as observações de Georgiy Golitsyn neste livro, pp. 120-122);
variações diurnas de temperatura e movimentos induzidos em nuvens de fuligem
nas primeiras fases. Alguns desses efeitos poderiam melhorar em parte as
condições; outros poderiam agravá-Ias até certo ponto.
Há também efeitos que podem piorar em muito os resultados: por exemplo,
em nossos cálculos admitimos que a lavagem de partículas finas ocorreria em
toda a extensão da troposfera. Em circunstâncias reais, pelo menos a alta
troposfera pode ser muito seca, e a poeira ou fuligem inicialmente introduzida
nessa região pode levar muito tempo para ser lavada. Há ainda um efeito muito
importante que deriva da drástica alteração da estrutura atmosférica, promovida
pelo aquecimento das nuvens e esfriamento do solo. Com isso cria-se uma
região em que a temperatura é aproximadamente constante com a altitude na
atmosfera inferior, e encimada por uma inversão térmica de grandes proporções
(Figuras 1B e 1C). Depois disso, em toda a extensão da atmosfera as partículas
seriam transportadas para cima ou para baixo muito lentamente - como na
estratosfera atual. Este é um segundo motivo para que a persistência das nuvens
de fuligem e poeira possa ser muito maior do que a por nós calculada. Neste
caso, as condições extremas de escuridão e frio podem prolongar-se por prazos
consideráveis, possivelmente ultrapassando um ano. Na exposição subseqüente
desprezaremos este efeito, assim como vários outros - por exemplo, fenômenos
de detonações múltiplas em que uma primeira explosão nuclear amplifica a
combustão e a altura de transporte de fuligem de uma segunda explosão
nuclear.
É possível conceber cenários de guerra nuclear muito piores do que estes
por nós apresentados. Por exemplo, se os centros de comando e controle forem
neutralizados logo no início da guerra - por exemplo, por "decapitação" (ataque
inicial de surpresa contra centrais de operações civis e militares e sistemas de
comunicações), é de imaginar que a guerra se prolongaria por semanas, com
comandantes locais tomando decisões independentes e descoordenadas. Pelo
menos em parte, lançamentos retardados de mísseis seriam possivelmente
ataques retaliativos contra cidades inimigas remanescentes. A geração de um
manto adicional de fumaça por um período de semanas ou maior depois do início
da guerra ampliaria a magnitude, e especialmente a duração, das conseqüências
climáticas. Ou é possível, dentro dos limites da plausibilidade, que cidades e
florestas fossem incendiadas em número maior do que o por nós suposto, ou que
as emissões de fumaça fossem maiores, ou que uma fração maior dos arsenais
mundiais (armas táticas e armas estratégicas) fosse empregada. Naturalmente,
dentro dos mesmos limites, também são possíveis casos menos severos.
Portanto, esses cálculos não são, nem poderiam ser, prognósticos seguros
de todas as conseqüências de uma guerra nuclear. Poderão ser aperfeiçoados
em vários aspectos, e está-se trabalhando nisso. Mas parece haver um
consenso quanto às conclusões gerais: na esteira de uma guerra nuclear é
provável que haja um período, com uma duração de meses pelo menos, de frio
intenso e escuridão radioativa, seguido - depois da precipitação da fuligem e
poeira - de um período longo de maior quantidade de radiação ultravioleta
atingindo a superfície.

Tem-se observado uma tendência sistemática de subestimar os efeitos de


armas nucleares e de uma guerra nuclear. A energia liberada na primeira
explosão nuclear perto de Alamogordo, no Novo México, em 16 de julho de 1945,
foi subestimada por quase todos os que projetaram e construíram a arma. A
amplitude da precipitação decorrente dos primeiros testes de artefatos nucleares
foi subestimada; a inutilização ou destruição de satélites por explosões de armas
nucleares no espaço foi uma surpresa; o empobrecimento da ozonosfera por
detonações de alta potência não foi prevista; e o inverno nuclear foi para muitos -
inclusive nós - motivo de assombro. O que mais nos terá passado despercebido?
Um efeito adicional, possivelmente grave, é a produção de gases tóxicos
por incêndios em cidades. Hoje todo mundo sabe que nos incêndios em arranha-
céus modernos mais gente é vitimada pelos gases tóxicos de combustão do que
pelo fogo. A queima de uma grande variedade de materiais de construção,
matérias isolantes e revestimentos gera grandes quantidades de pirotoxinas,
entre elas monóxido de carbono, cianetos, cloreto de vinil, óxidos de nitrogênio,
ozônio, dioxinas e furanos. Devido às diferentes práticas no emprego de
materiais sintéticos, o incêndio de cidades na América do Norte e na Europa
ocidental provavelmente geraria mais pirotoxinas do que na União Soviética, e a
de cidades com grande proporção de construções recentes mais que a de
cidades mais antigas não reconstruídas. Em cenários de guerra nuclear nos
quais uma grande quantidade de cidades são incendiadas, um smog bastante
denso de pirotoxinas poderia persistir por meses. A extensão desse perigo é
ignorada.
Outra conseqüência provavelmente ponderável e dificilmente avaliável de
uma guerra nuclear são os chamados sinergismos. Um exemplo muito simples é
o que diz respeito ao comprometimento do sistema imunológico humano pelo
duplo efeito da radiação ionizante imediata e da radiação ionizante devida à
precipitação, bem como pelo aumento do fluxo ultravioleta após o inverno
nuclear. Ao mesmo tempo que os sobreviventes serão muito mais vulneráveis a
doenças, os serviços médicos terão entrado em colapso; predadores de insetos
como as aves terão sido dizimados preferencialmente pelo frio, pela escuridão e
pela radiação; os insetos terão proliferado desmedidamente porque resistem
melhor a essas agressões ambientais e porque os predadores que restringem a
sua multiplicação terão sido grandemente reduzidos em número; a radiação pode
produzir variedades excepcionalmente virulentas de microorganismos
transmitidos por insetos vetores; e centenas de milhões ou bilhões de cadáveres
estarão começando a se descongelar. Em muitos outros casos a interação de
diversas agressões ambientais entre as relacionadas no Quadro 2 produzirá
conseqüências resultantes adversas muito mais intensas do que a simples soma
dos efeitos componentes. Quase todos os sinergismos são de magnitude
ignorada; no entanto quase todos amplificarão conseqüências adversas.
Visto isto, se o peso da evidência histórica e a natureza dos sinergismos
indicam que as conseqüências de uma guerra nuclear seriam ainda mais graves
do que as deduzidas no presente estudo do inverno nuclear, que dizer da
aplicação de critérios moderados? Considerando a magnitude do que está em
jogo na resposta, qual será a postura adequada? Admitir que os efeitos de uma
guerra nuclear serão menos sérios do que geralmente se supõe, ou mais?
Já não é possível afirmar que os efeitos realmente sérios de uma guerra
nuclear ficariam limitados aos países combatentes. A biologia das latitudes
equatoriais, por exemplo, é muito mais vulnerável a baixas de temperatura,
mesmo pequenas, que a de latitudes maiores, norte ou sul. A agricultura - pelo
menos no Hemisfério Norte, que produz o grosso da exportação de grãos do
planeta - seria devastada mesmo por uma "pequena" guerra nuclear. As
conseqüências ecológicas irradiadas pela Terra inteira seriam provavelmente de
grande envergadura, e se, como agora demonstrado pelo nosso estudo e por
vários outros, o frio e a escuridão se propagassem ao Hemisfério Sul, a guerra
nuclear significaria uma catástrofe global sem precedentes. Já não é possível
conceber que nações distantes do conflito possam assistir de camarote à guerra,
e herdar um ambiente de pós-guerra livre das importunações da política das
grandes potências. Ao contrário, é muito mais provável que não haja em toda a
Terra um único refúgio a salvo da guerra nuclear. Esta é uma das muitas
implicações dos estudos mais recentes no que toca à doutrina, à diplomacia e à
política internacional. A discussão desses temas transcende as metas deste
encontro e o programa desta Conferência, mas em outra oportunidade eu já fiz
uma exposição preliminar dessas implicações.
Se houver ataques a cidades, vemos (Figura 2) que mesmo uma guerra
que envolvesse apenas 100 megatons (em 1.000 detonações de 100 quiIotons
sobre 100 ou mais grandes cidades) pode produzir o inverno nuclear. Mas 100
megatons é menos de 1 % dos arsenais estratégicos globais. A Figura 3 mostra
o crescimento do número de armas estratégicas nos arsenais americano e
soviético em função do tempo. A área hachurada representa, muito
aproximadamente, a zona-limiar em que, ao que agora se afigura, poderia
desencadear-se o inverno nuclear. Bem abaixo desse limiar nenhuma
combinação de falhas de comunicações, erros de computador, interpretações
equivocadas, governantes psicopatas ou outros requisitos deflagraria a
catástrofe climática. Os Estados Unidos cruzaram esse limiar - naturalmente sem
sabê-lo - em princípios dos anos 50. A União Soviética o transpôs - igualmente
sem sabê-Io - em meados dos 60. Durante todo esse tempo os governos dos
Estados Unidos, da União Soviética e de outras nações vêm tomando decisões
fundamentais, envolvendo a vida e morte de cada habitante do planeta, sem
saber das conseqüências de uma guerra nuclear, e na suposição de que essas
conseqüências seriam bem mais brandas do que agora se mostra ser o caso. E
os arsenais globais, hoje cerca de 20 vezes o limiar do inverno nuclear, vêm
crescendo. A Grã-Bretanha, a França e a China têm arsenais estratégicos pelo
menos próximos do limiar. Outros países estão acumulando armas nucleares ou
a capacidade de fazê-Ias. As curvas da Figura 3 tornam-se mais e mais verticais.
Figura 3. A história da corrida de armas nucleares estratégicas (e de
teatro). O diagrama mostra três zonas: uma zona inferior em que o inverno
nuclear não seria provocado, uma superior em que quase certamente ele
ocorreria, e uma de transição, hachurada. Os limites desta são mais incertos do
que os representados, e dependem, entre outras coisas, da estratégia de
seleção de objetivos. Mas o limiar está provavelmente compreendido entre uma
centena e alguns milhares de armas estratégicas contemporâneas.
Entre 1945 e o presente, o crescimento dos estoques soviético e norte-
americano é representado pelas linhas cheias. A linha ponto-traço mostra a
soma dos dois arsenais, que fica próxima da dos arsenais totais do mundo. Se
bem que a distinção entre armas táticas e estratégicas ou de teatro tende a
tornar-se imprecisa, aquelas não são computadas nesta compilação. A redução
dos estoques estratégicos americanos nos anos 60 reflete principalmente a
crescente dominância dos mísseis balísticos sobre os bombardeiros. Nem todas
as fontes publicadas concordam perfeitamente quanto aos números. Os dados
aqui usados foram tirados de Harold Brown (1981), "Relatório do Secretário da
Defesa ao Congresso sobre o Orçamento do Ano Fiscal de 1982, Pedido de
Autorização do Ano Fiscal de 1983 e Programas de Defesa para o Ano Fiscal de
1986" e "Estimativa Orçamentária da Defesa Nacional, Ano Fiscal de 1983",
Gabinete do Subsecretário da Defesa, Contadoria, março de 1982, entre outras
fontes. As linhas tracejadas à direita da figura representam extrapolações das
tendências atuais.

E assim voltamos ao Dia das Bruxas. Este encontro sobre "O Mundo após a
Guerra Nuclear" está sendo realizado, em função de circunstâncias corriqueiras
como a disponibilidade de acomodações de hotel em Washington, num 31 de
outubro. O Dia das Bruxas é comemorado hoje como um festival de duendes e
fantasmas e coisas que sabemos que não são reais. Os horrores da guerra
nuclear, ao contrário, não são fantasias, não são projeções do nosso
inconsciente, mas realidades que temos de enfrentar no mundo das emoções
pessoais e da prática política. A guerra nuclear merece, e muito, a nossa
preocupação, e não somente em 31 de outubro.
De qualquer modo, se devêssemos realizar esta reunião numa data de
significado simbólico, o Dia das Bruxas parece-me uma boa escolha.
Originalmente, na era pré-cristã, era um festival dos celtas chamado Samhain.
Assinalava o começo do inverno. Era celebrado com enormes fogueiras. Tirava o
seu nome do Senhor dos Mortos e era a ele consagrado. O Dia das Bruxas em
sua forma original combinava os três elementos capitais do cenário TTAPS: fogo,
inverno e morte.
As armas nucleares são feitas por criaturas humanas. O confronto
estratégico global entre os Estados Unidos e a União Soviética foi concebido e
executado por criaturas humanas. Não há nisso nada inevitável. Se formos
suficientemente motivados, poderemos livrar a espécie humana dessa armadilha
que insensatamente armamos para nós mesmos. Mas o tempo é muito curto.

AGRADECIMENTOS

Este artigo não teria sido possível sem a alta competência científica e
dedicação dos meus co-autores do relatório TTAPS, Richard Turco, Brian Toon,
Thomas Ackerman e James Pollack. Também sou grato, por estimulantes
discussões e/ou cuidadosas revisões de uma versão anterior deste artigo, a
Hans Bethe, Mark Harwell, John P. Holdren, Eric Jones, Carson Mark, Theodore
Postol, Joseph Rotblat, Stephen Schneider, Edward Teller e Albert Wohlstetter; e
agradeço encarecidamente o incentivo, as sugestões e as apreciações criticas
de Lester Grinspoon, Steven Soter e, especialmente, Ann Druyan. Shirley Arden,
Mary Maki, Mary Roth e Joanne Vago prestaram, com sua habitual e grande
competência, serviços logísticos essenciais à preparação deste trabalho e à
organização da conferencia preparatória de Cambridge, Massachusetts.
Finalmente, minha gratidão aos companheiros do Comitê de Conseqüências
Mundiais à Longo Prazo de uma Guerra Nuclear.

Perguntas

DR. VIKAS SAINI (Junta Diretora, Nuclear Free America): Eu tenho duas
perguntas sobre as suposições do modelo. A primeira é quanto aos efeitos no
Hemisfério Sul: trata-se estritamente da transferência de efeitos de detonações
no Hemisfério Norte, ou o senhor inclui objetivos no Hemisfério Sul?
SAGAN: Não, não estamos supondo nenhum ataque apreciável contra
objetivos no Hemisfério Sul. O cenário da revista Ambio prevê cerca de 100
megatons dirigidos contra alvos no Hemisfério Sul e latitudes tropicais. A poeira e
fumaça produzidas em tais alvos atingiriam o sul mais depressa do que
aerossóis transportados do Hemisfério Norte. Quaisquer ataques contra objetivos
no Hemisfério Sul agravariam ainda mais os nossos resultados.

SAINI: A segunda pergunta refere-se a certos resultados imprevistos da


detonação de armas nucleares em relação com o cinturão de radiação de Van
Allen. Gostaria de saber se o senhor está a par deste assunto e de ouvir seus
comentários sobre o que parece ser um dos aspectos mais inquietantes da
presente conjuntura: a saber, a militarização do espaço.

SAGAN: A iminente introdução de armas no espaço é uma questão política


que foge aos propósitos desta reunião. É verdade que quando um artefato
nuclear é detonado em determinada altitude, partículas carregadas são injetadas
no cinturão de radiação de Van Allen. Mas não creio que isso tenha efeitos
climáticos da magnitude de que aqui estamos falando.

DR. GEORGE B. FIELD (professor de Astronomia Aplicada da Universidade


Harvard e cientista senior do Observatório Astrofísico Smithsonian): Eu gostaria
de pedir um esclarecimento sobre um ponto. Nos últimos minutos o senhor
acenou com uma pequena esperança aos que pensam em termos de controle de
armas. Disse que se pudéssemos limitar a 1.000 o número de armas nucleares
nos Estados Unidos e União Soviética, seriam evitadas algumas das terríveis
conseqüências que acaba de descrever. Por outro lado, numa parte anterior da
sua exposição, o senhor falou de um cenário em que havia a aplicação de
apenas 100 dessas armas, e os efeitos nesse cenário eram ainda mais terríveis.

SAGAN: Lamento se não fui claro. Naquele caso eu falei de 100 megatons,
em armas de 100 quilotons de potência cada. Portanto, falei de 1.000 armas.
Não há incoerência.

FIELD: Na sua opinião esse é o caso marginal?

SAGAN: Mais ou menos. Poderia ser menos em se tratando de ataques a


cidades, e poderia ser bem mais no caso de ataques de contra-força a silos de
mísseis com armas de alta potência. [Isto é discutido com maior detalhe na Ref.
19.]

DR. LARRY SMARR (professor-adjunto de Física e Astronomia


da Universidade de Illinois): Os recentes relatórios da EPA (Agência de Proteção
Ambiental) e da revista Science sobre o efeito de estufa mencionam os efeitos
térmicos devidos ao CO2. Eu presumo que enormes quantidades de CO2 seriam
um subproduto dos incêndios. De que modo o senhor levou em conta esse fato,
e até que ponto poderia o aquecimento devido ao CO2 contrabalançar o
esfriamento decorrente da poeira?
SAGAN: A pergunta é muito oportuna, pois este é um ponto que se presta a
confusão: a saber, dois relatórios, um dos quais afirma que a queima de
combustíveis fósseis lança na atmosfera gases que aquecem a Terra, e outro,
que acabam de ouvir, dizendo que uma guerra nuclear impregnaria a atmosfera
de partículas que esfriariam a Terra. Alguém poderia imaginar que os dois efeitos
se anulam. Mas não é essa a nossa conclusão, por mais de um motivo.
Primeiro, mesmo o CO2 produzido por todos os incêndios em vista não
chegaria a contribuir apreciavelmente para o efeito de estufa. O valor atual de
0,03% de CO2 em volume na atmosfera da Terra representa cerca de três
ordens de grandeza mais CO2 do que o que seria desprendido no incêndio de
cidades e florestas.
Veja-se também que o efeito de estufa devido ao CO2 é uma tendência a
longo prazo. Não há como revertê-Ia num intervalo de décadas. Aqui estamos
falando de um pulso repentino de baixa de temperatura no sistema, provocado
pela guerra nuclear, o qual em seguida se irá amortecendo no curso de alguns
anos, superposto ao lento aumento de temperatura decorrente da queima de
combustíveis fósseis.

DR. ARNOLD W. WOLFENDALE (professor de Física da Universidade de


Durham, Inglaterra): Minha pergunta é relativa ao importante tópico da análise
crítica de resultados. Evidentemente, tudo que é novo e surpreendente deve ser
analisado por muitos especialistas. O excelente relatório de 1975 da Academia
Nacional de Ciências recebeu apreciações mais favoráveis. Eu gostaria de saber
se os autores daquele relatório foram consultados ou solicitados a pronunciar-se
sobre as suas conclusões.

SAGAN: A questão da análise crítica é essencial. Foi por isso que


retardamos tanto a divulgação pública desses resultados alarmantes.
Os resultados que os senhores ouviram hoje aqui foram submetidos
durante cinco dias a uma reunião, na Academia Americana de Artes e Ciências
em Cambridge, Massachusetts, em abril de 1983, de quase uma centena de
biólogos, meteorologistas e físicos nucleares - indivíduos de variadas convicções
políticas, entre eles representantes dos laboratórios bélicos do governo.
Tanto o estudo físico que acabei de expor como o estudo biológico de que
irá falar o Dr. Ehrlich passaram igualmente pelo processo de análise crítica para
publicação na revista especializada Science. Além disso, houve mais uns seis ou
oito estudos diferentes - dois deles na União Soviética - buscando confirmar ou
contestar as nossas conclusões. Todos eles corroboram os nossos resultados.

WOLFENDALE: Quer dizer que os autores do relatório de 1975 retrataram


as suas conclusões?

SAGAN: Tenho grandes esperanças de que o novo painel da Academia


Nacional se ocupará dessa importante matéria. Vou explicar em poucas palavras
o motivo das diferenças entre os nossos resultados respeitantes ao inverno
nuclear e os do estudo de 1975 da Academia.
Primeiro, os efeitos climáticos fundaram-se em argumentos tirados da
analogia com a explosão vulcânica do Cracatoa, não na construção efetiva de
modelos. Em 1883, alegou-se, a explosão de um vulcão teve como únicos efeitos
globais um declínio de temperatura de cerca de meio grau, e belos pores-do-sol
em todo o mundo. A energia explosiva total naquele evento foi (possivelmente)
comparável à energia total que estamos considerando para o caso de uma
guerra nuclear; logo, não há o que temer.
Esse argumento deixa de levar em conta vários fatos: primeiro, o grosso do
material ejetado na explosão do Cracatoa caiu por lá mesmo, no estreito da
Sonda. Segundo, ejetos vulcânicos, principalmente silicatos e ácido sulfúrico,
têm coeficientes de absorção muito menores que a fumaça escura produzida
numa guerra nuclear. Terceiro, as funções de distribuição de tamanhos de
partículas são diferentes, e, quarto, trata-se aqui de milhares de fontes
simultâneas de partículas finas. O evento do Cracatoa foi um evento isolado. Há
outras diferenças importantes. Tudo considerado, o evento do Cracatoa é
compatível com os cálculos aqui referidos.

DR. ROBERT EHRLICH (presidente do Departamento de Física da


Universidade George Mason, Virgínia): O fato de que um ataque de 100
megatons, menos de 1% do total dos arsenais, acarrete resultados tão
catastróficos indica que a causa principal do problema climático advém da
fumaça produzida por incêndios das cidades. Eu me pergunto se os senhores
terão considerado - num ataque nuclear que envolvesse todas as cidades de
mais de 100.000 habitantes do Hemisfério Norte - qual a probabilidade de que a
metade da área das cidades se convertesse em fumaça e de que os incêndios se
prolongassem por semanas ou meses. E se a sua estimativa dessa
probabilidade coincide com as de outros.

SAGAN: Sim. Esta é uma das muitas partes do nosso estudo a que o Dr.
Turco emprestou a sua grande competência. Creio que a resposta é,
possivelmente, uma semana; meses, não. As proporções dos incêndios seriam
consideráveis por causa da enorme concentração de depósitos de combustíveis
nas cidades.

RALPH NADER (defensor dos direitos do consumidor): Carl, permita-me


que lhe pergunte sobre as inferências técnicas das suas conclusões. Supondo
um ataque inicial bem-sucedido de um Inimigo A contra um Inimigo B, em que
nível um ataque inicial bem-sucedido, de acordo com os seus cálculos, implicaria
suicídio para o agressor?

SAGAN: Ou, dito de outro modo, haveria um sublimiar de ataque inicial,


abaixo daquele limiar de inverno nuclear de, digamos, 1.000 ogivas? Seria um
ataque inicial eficaz auto-dissuasório? Desculpe, Ralph, mas penso que tenho de
considerar este ponto como pertencente ao domínio da política. Não desejo
estender-me sobre ele; mas creio que para assegurar a neutralização dos
principais objetivos estratégicos fixos, seria preciso ultrapassar o limiar do
inverno nuclear.
NADER: Acho que você está exagerando em suas reservas. A minha
pergunta foi basicamente em termos do efeito de ricochete. Para colocá-Ia de
modo mais simples, qual seria o limiar de um efeito de ricochete no período de
um primeiro lançamento, num ataque inicial?

SAGAN: Há uma grande probabilidade de que se a Nação A atacar a


Nação B com um primeiro ataque eficaz, de contra-força apenas, a Nação A
cometerá suicídio, ainda que a Nação B não levante um dedo em retaliação.

MASON RUMNEY (secretário-executivo da First Steps Foundation): Eu


tenho uma pergunta. Por que supor que o ataque de 100 metagons seria contra
cidades, onde há combustíveis estocados, e não contra bases de ICBM, onde
não há?

SAGAN: Este é simplesmente um entre uma vasta gama de cenários


possíveis.

DR. HERBERT SCOVILLE, JR. (presidente da Associação de Controle de


Armas, ex-diretor-substituto da Agência Central de Inteligência): Que proporção
do efeito de longo prazo requer que a fumaça alcance a estratosfera?

SAGAN: Normalmente a fumaça de incêndios não atinge a estratosfera, e


nós não admitimos que isto ocorra em grau apreciável. Praticamente todos os
nossos efeitos devidos à fumaça são troposféricos. No caso de referência,
admite-se que a fumaça presente na baixa troposfera seja lavada pelas chuvas
em tempo bastante curto.
Na hipótese, provável ou improvável, de um penacho de fumaça alcançar a
estratosfera, os efeitos serão muito piores e muito mais persistentes do que os
calculados. Não foi suposta qualquer proporção apreciável de fuligem
estratosférica. Segundo pelo menos algumas opiniões autorizadas, entre elas a
de George Carrier da Harvard, é um efeito improvável. Eu, pessoalmente, diria
que é ainda uma questão em aberto.

DR. MICHAEL J. PENTZ (deão da Faculdade de Ciência, The Open


University em Milton Keynes, Reino Unido, e presidente da SANA, Cientistas
contra as Armas Nucleares): Tenho uma pergunta relativa ao Quadro 1 do artigo
principal, o conjunto de cenários que os senhores estudaram. Interessaram-me
muito os números 11 e 16. O senhor pode explicar as hipóteses subjacentes, isto
é, com respeito aos ataques de contra-força de 3.000 e 5.000 megatons
respectivamente? O número que me interessa é o da coluna "Percentagem de
energia, objetivos urbanos ou industriais" , que em ambos os casos o senhor dá
como zero.
O motivo por que isso me deixa curioso é que recentemente a SANA
elaborou um modelo de computador de um ataque predominantemente de
contra-força contra objetivos no Reino Unido envolvendo 343 objetivos e uma
energia total de 220 megatons, combinando explosões no solo e no ar. Para nós
era de imediato evidente que uma grande proporção desses objetivos de contra-
força estão situados no centro ou nas proximidades de cidades grandes e áreas
densamente povoadas. Creio que isto é bastante típico da maior parte da
Europa. Por isso me intriga o zero. Talvez haja um ponto decimal que os
senhores possam inserir para incluir no quadro a Grã-Bretanha e a Europa.

SAGAN: Tudo o que o senhor diz, menos no que se refere à omissão do


ponto decimal, é correto. O que nos propusemos fazer está na tradição científica
da separação de variáveis. O que estamos dizendo é: imagine-se um ataque só
de contra-força na faixa de milhares de megatons. Que efeitos se produziriam se
não houvesse a queima de uma única árvore nem de uma única casa? É um
limite inferior para os efeitos.
O que cabe fazer, creio, é examinar o Caso I, o caso de referência, com
5.000 megatons, que leva em conta o incêndio de cidades.

PENTZ: Em 20% apenas?

SAGAN: Sim, de fato.

PENTZ: Entendo que isso possa ser realista com respeito à localização dos
principais objetivos de contra-força nos Estados Unidos e talvez na União
Soviética. Mas não seria realista com respeito à Grã-Bretanha.

SAGAN: Absolutamente certo. Vê-se, portanto, que a situação da Europa é


bem pior do que a que descrevemos. Este é mais um exemplo de como os
nossos cálculos são cautelosos.

SRA. MYRTLE JONES (presidente da Sociedade Audubon de Mobile Bay):


Esta é uma conferência oportuna, e o seu artigo na Parade de ontem [30 de
outubro de 1983] foi muito bem-elaborado e ajudou-me a compreender o que o
senhor disse hoje. O senhor mencionou de passagem o fato de que esteve no
Congresso hoje de manhã. Eu gostaria de saber se em ambas as Casas, e como
foi recebido.

SAGAN: Foi um encontro informal com membros das duas Casas, apenas
para transmitir-lhes uma idéia das últimas conclusões. Eu diria que eles se
interessaram.

SRA. JONES: Interessaram-se positivamente?

SAGAN: Não sei bem o que isso significa. Mas não há dúvida que o inverno
nuclear traz fortes implicações políticas, embora, ao começarmos o estudo, não
tivéssemos idéia de que isto iria acontecer.

J. SALATUN (vice-marechal-do-ar reformado da Força Aérea Indonésia e


membro do Parlamento em Jacarta): Eu tenho duas perguntas.
Primeira: em que pese o pessimismo, não devemos esquecer que se
passaram 38 anos desde a Segunda Guerra Mundial, com bombas nucleares e
sem outra guerra mundial. Minha pergunta é: qual a probabilidade de uma guerra
nuclear?
SAGAN: A arte da profecia é uma arte perdida. Se houvesse um meio
preciso de fazer tal previsão, ela seria extremamente importante. Mas veja como
é precária a nossa capacidade de prever até mesmo os aspectos menores da
política mundial, como, por exemplo, que pequeno país será invadido amanhã.
Portanto, esperar algum prognóstico exato quanto à probabilidade de uma
guerra nuclear, parece-me que é querer demais. É verdade que passamos 38
anos sem uma guerra nuclear. É possível, quem sabe, que venhamos a
sobreviver por um período mais longo. Mas o senhor se disporia a apostar a sua
vida nisso? Não garanto que seja uma perfeita analogia, mas a situação me faz
lembrar um homem caindo do alto de um edifício e dizendo a um funcionário de
escritório, ao passar por uma janela aberta: "Até aqui, tudo bem.”

SALATUN: A segunda pergunta é: o que me diz da possibilidade de que as


suas conclusões venham a incitar um novo esforço e simplesmente forçar a
destruição?

SAGAN: Acho que também esta é uma questão política. Posso perguntar-
lhe, vice-marechal, qual o senhor crê seja a probabilidade, ante o conhecimento
do inverno nuclear e a descoberta de que a Indonésia é fundamentalmente
ameaçada ainda que nem um único engenho nuclear caia em seu território, de
que a Indonésia de repente passe a interessar-se muito mais no confronto
nuclear entre as grandes potências?

SALATUN: Bem, tudo que podemos fazer é rezar a Deus que a coisa não
aconteça. Mas no meio tempo devemos preparar-nos para o pior.

SAGAN: Na minha opinião, os senhores podem fazer mais do que rezar.

Dr. GERALD O. BARNEY (presidente da Barney and Associates, Inc.): No


curso da preparação do Relatório Global 2000 ao Presidente, ficou claramente
evidente para mim, e creio que para muitos outros, que é aconselhável quando
da elaboração de estudos importantes dar acesso aos modelos detalhados
empregados no processo, já que muitas vezes há coisas escondidas nos
modelos de computador que não são de imediato compreensíveis nas
publicações que informam os resultados.
Eu gostaria de saber se o modelo utilizado no trabalho em causa está
disponível, e qual o procedimento para obter fitas ou cópias do programa
detalhado.

SAGAN: É um pedido perfeitamente legítimo e, é claro, acolheremos com


prazer essas solicitações. Está sendo preparada uma exposição bem mais
extensa dos resultados do TTAPS, na qual serão fornecidos detalhes mais
completos. Mas sem dúvida teremos a maior satisfação em atender ao seu
pedido.
Entretanto, faço notar mais uma vez que todos os cálculos
independentemente realizados empregaram códigos completamente diferentes.
Como todos convergiram para a mesma direção, não creio que as nossas
conclusões tenham advindo de algum dado capcioso embutido no programa de
computador. Mas, é claro, cada segmento do programa pode ser investigado.

H. JACK GEIGER, M.D. (professor de Medicina Comunitária do City College


da City University de Nova York): Eu tenho uma preocupação baseada em
alguma experiência da engenhosidade com que aqueles cujo objetivo é defender
a idéia da possibilidade de vitória e de sobrevivência numa guerra nuclear podem
tentar distorcer ou reinterpretar esses dados, particularmente no que toca a
conceitos como limiar. Que elementos determinam o limiar tal como o senhor o
define: número total de armas, potência total, ou uma função mista dos dois?

SAGAN: É uma função mista dos dois, e também envolve fortemente a


estratégia de seleção de objetivos. Note que nas condições atuais de precisão e
de potência estocada, quando se passa muito abaixo de 20 quilotons esbarra-se
em dificuldades significativas para destruir objetivos resguardados. Creio que de
fato existe uma limitação inferior nas condições atuais, se as várias nações estão
pretendendo preservar a opção de um ataque de contra-força plausível.

Dr. ED PASSERINI (presidente da Carrying Capacity, Inc., de Washington,


D.C.; professor de Humanidades e Ambiente da Universidade do Alabama): Esta
pergunta mais ou menos complementa a de Jack. Há uma tendência no sentido
de menores potências e maior precisão de direcionamento. O senhor vê
necessidade de realizar um estudo adicional para verificar qual seria o efeito de
um ataque de sublimiar com direcionamento de alta precisão?

SAGAN: Bem, como eu disse a Ralph Nader, duvido muito da possibilidade


de um ataque de sublimiar, com a presente configuração de precisão e
potências, ter eficácia plausível para um primeiro ataque decisivo contra
objetivos fixos. [Essas possibilidades futuras são discutidas na Ref. 19.]

DR. FRANCIS B. PORZEL (Fundação para a Dinâmica Unificada): Não


posso deixar passar esta oportunidade para dizer-lhe que faz quase exatamente
32 anos que foi detonada a primeira bomba de hidrogênio.
Creio que seria de grande utilidade para o relatório se o senhor fizesse
referência a experiências passadas, aos testes atômicos. Observando os
gráficos, eu noto que houve vários períodos na década de 50 em que a União
Soviética e os Estados Unidos realizaram operações de teste que somadas
chegaram perto da faixa de 100 megatons; só a primeira, Bravo, em 1954,
produziu 14 megatons.
O senhor disse que o modelo é unidimensional e por isso não se aplica ao
caso. Mas eu gostaria que o senhor esclarecesse que precauções deveriam ser
adotadas em relação ao seu modelo se se quisesse aplicá-Io àquela experiência.

SAGAN: Dito de outra forma, o que prediz o modelo para as explosões


atmosféricas de armas nucleares nos anos 50? A resposta é que não prediz
nenhum efeito detectável. O motivo é, lembre-se, que os 100 megatons têm de
ser consagrados em atear uns 100 incêndios urbanos. Não foi o que se fez.
Houve poeira mas não fuligem. A maneira mais fácil de explicar isso é por meio
do conceito de profundidade ótica. A luz transmitida através de uma cobertura
absorvente pura é aproximadamente e, a base dos logaritmos naturais, elevado
a menos profundidade ótica. Quando a profundidade ótica é em torno de um
décimo, a atenuação é um menos profundidade ótica. É muito pequena.
Quando a profundidade ótica chega a um, o que ficou longe de acontecer
nos anos 50, a atenuação passa a ser apreciável. E quando a profundidade ótica
é por volta de 10, a atenuação torna-se critica. Sendo este um processo não-
linear, o que aconteceu na década de 50, deduzimos, não teria quaisquer efeitos
sobre o clima. e de fato não se observou nenhum. Mas o que ocorre pelos
nossos cálculos é uma profundidade ótica de muitas unidades. Os efeitos
conseqüentes são importantes.

SRA. MARION EDEY (diretora-executiva da Liga dos Eleitores


Conservacionistas): Minha pergunta é: quais os efeitos da camada de ozônio
no Hemisfério Sul?

SAGAN: No meu entender, as soluções de continuidade da ozonosfera


deslocam-se rapidamente e se propagam do Hemisfério Norte para o Sul.

PHILLIP GREENBERG: As opiniões hoje manifestadas levam-me a fazer


um breve comentário. Estou levando na devida conta a decisão de evitar debates
de natureza política e, considerando as circunstâncias, acho-a justa e
compreensível.
Ademais, creio que todos entendemos que há certas implicações políticas
que fluem desse estudo, e noto em vários casos, da parte dos interpelantes e da
parte do senhor aí na tribuna, uma tendência a questionar a cautela das
suposições.
Acho que seria um erro mesmo da parte dos senhores da comunidade
científica preocupar-se em demasia com a questão da cautela das suposições.
Pois embora ela seja apropriada num trabalho científico, no campo político,
quando se consideram eventos de grande conseqüência, ainda que de baixa
probabilidade, a questão da cautela se inverte.
Portanto direi simplesmente que acho importante nos debates, e
certamente nas críticas que o senhor terá de suportar dos seus colegas que
defendam pontos de vista diferentes sob o prisma político, ter em mente que
cautela é coisa diferente segundo a consideramos no contexto científico ou no
político.

SAGAN: Concordo plenamente. É um truísmo na administração de crises e


na estatística atuarial que o importante não é só a probabilidade do evento, e
nem só o custo do evento se ele vier a ocorrer, e sim o produto dos dois. Nós
estamos bem conscientes disso e na verdade, até aqui, deparamos com muito
poucas críticas do tipo a que o senhor se refere.

DR THOMAS C. HUTCHINSON (professor do Departamento de Botânica


da Universidade de Toronto, Canadá): Que proporção dos oceanos do
Hemisfério Norte é provável que viesse a congelar-se por efeito de um ano de
menos 25 graus centígrados?
SAGAN: Em sistemas de água doce, a profundidade típica de
congelamento será de um metro, um metro e meio, por aí. Sem dúvida haverá no
mar mais massas de gelo flutuantes, mas não há possibilidade de que os mares
propriamente venham a congelar-se, dada a sua grande capacidade calorífica e
elevada inércia térmica.
Vemos assim que talvez algumas coisas não irão tão mal entre a vasta
ladainha das que irão, se formos insensatos o bastante para permitir que
aconteça a guerra nuclear.

CONSEQÜÊNCIAS BIOLÓGICAS DE UMA GUERRA NUCLEAR


PAUL R. EHRLICH

É um privilégio, ainda que melancólico, poder apresentar-lhes o consenso


de um grande e ilustre grupo de biólogos sobre os efeitos biológicos prováveis de
uma guerra nuclear em grande escala. Esse consenso foi alcançado durante um
simpósio realizado logo em seguida ao dos físicos referido por Carl Sagan, e no
curso da preparação de dois documentos sobre os impactos de uma guerra
nuclear. Aqueles dos senhores que conhecem bem o mundo da ciência sabem
que conseguir o assentimento de mais de 50 cientistas, sem qualquer
divergência de monta, a um amplo conjunto de conclusões é em si mesmo um
fato inusitado. Conseguir que concordem sobre conclusões que dizem respeito a
uma questão de enorme e grave interesse público é extraordinário.
Para os senhores, depois da exposição do Professor Sagan a razão desse
consenso deve ter ficado clara. O ambiente que a maior parte dos seres
humanos e dos outros organismos depois de um holocausto nuclear terá de
enfrentar será tão modificado, e tão maligno, que danos extremos e
generalizados aos sistemas vivos são inevitáveis. Por exemplo, é perfeitamente
possível que os impactos biológicos de uma guerra, sem contar os diretamente
resultantes de explosão, fogo e radiação instantânea, viessem a ocasionar o fim
da civilização no Hemisfério Norte. Para um biólogo é tão fácil concordar com
isso como é para todos nós concordar que o uso acidental de cianeto em vez de
sal de cozinha no molho teria grandes probabilidades de pôr fim a um jantar.
Minha principal missão neste momento é apresentar-lhes alguns
fundamentos técnicos para explicar por que muitos biólogos - especialmente
ecologistas - estão convencidos de que aqueles que em nações diversas detêm
o poder de decisão subestimam grandemente os riscos de uma guerra nuclear.

Efeitos Diretos

Vou-me concentrar de modo especial nas conseqüências indiretas


geralmente ignoradas de uma guerra dessa espécie para o ser humano, as quais
se transmitiriam através de efeitos em sistemas ecológicos. Mas não vou
minimizar os efeitos diretos possíveis, por bem conhecidos que sejam, pois estes
serão realmente horríveis. Vejam o que estudos recentes indicam que
aconteceria numa grande guerra termonuclear, em que entre 5.000 e 10.000
megatons de armas fossem detonados - a maior parte no Hemisfério Norte. (para
pôr essa guerra em perspectiva, consideram que isso equivaleria grosso modo à
explosão de entre meio e três quartos de milhão de bombas atômicas do
tamanho da de Hiroxima, o que representa não mais que uma fração dos
arsenais nucleares atuais dos Estados Unidos e União Soviética.)
Até certo ponto, os efeitos irão depender da dimensão da guerra,
distribuição das explosões, número de explosões no solo e de explosões no ar, e
outros fatores. Mas quero frisar novamente o que o Dr. Sagan tão
bem sublinhou: que os resultados biológicos são pujantes. Isto significa que é
sumamente difícil conceber uma guerra nuclear em grande escala que não
levasse a um desastre ecológico de dimensões sem precedentes.
Em nosso artigo para a revista Science, nós nos concentramos mais que o
relatório TTAPS numa guerra de 10.000 megatons, porque achamos que a
população devia ser informada dos efeitos dessa hipótese plausível. Por isso
demos atenção especial ao caso de 10.000 megatons. Mas as descrições gerais
dos efeitos aplicam-se a todos os cenários de guerra em grande escala.
A previsão, segundo uma das estimativas, é de que somente as explosões
causariam 750 milhões de mortes. Um número de pessoas igual ao que existia
no planeta quando a nossa nação foi fundada seria vaporizado, desintegrado,
esmagado, reduzido a polpa e espalhado na paisagem pela força explosiva das
bombas. Outro estudo prediz que 1,1 bilhão de pessoas seriam mortas e outras
tantas lesadas pelas explosões, pelo calor e pela radiação. Vale dizer, quase a
metade da atual população do mundo - compreendendo a maior parte dos
habitantes das nações ricas do Hemisfério Norte - poderia converter-se em
baixas no espaço de poucas horas.
Também é cristalinamente claro que a própria estrutura da sociedade
industrial seria destruída por um tal tipo de guerra. Praticamente todas as áreas
metropolitanas - que são os centros políticos, industriais, financeiros, de
transportes, de comunicações e culturais das sociedades simplesmente
deixariam de existir. Grande parte do saber da humanidade desapareceria com
elas. Atendimento médico e outros serviços de socorro essencialmente não mais
existiriam - não haveria de onde partir assistência. Os sobreviventes das nações
um dia ricas não somente enfrentariam as cargas psicológicas esmagadoras de
terem testemunhado a maior catástrofe da história humana, como saberiam não
haver esperança de remédio.
Uma situação como essa é de tal modo estarrecedora que muitos a
entenderão como uma estimativa de pior hipótese do mal potencial causado ao
Homo sapiens na Terceira Guerra Mundial. Ao contrário, como veremos a seguir,
eu descrevi somente a ponta visível do iceberg. Os destinos dos dois ou três
bilhões de pessoas que não morressem imediatamente inclusive as de nações
muito distantes dos objetivos - poderiam sob vários aspectos ser piores. Essas, é
claro, sofreriam a ação direta das temperaturas glaciais, da escuridão e da
precipitação radioativa à médio prazo de que falou o Dr. Sagan. Mas os efeitos
de maior alcance à longo prazo seriam produzidos indiretamente pelo impacto
destes e de outros fatores sobre os sistemas ambientais do planeta.

Ecossistemas

Para entender isso, é preciso saber alguma coisa a respeito de sistemas


ecológicos - ecossistemas na forma abreviada da biologia. Um ecossistema é
uma comunidade biológica - todos os vegetais, animais e micróbios que vivem
numa certa área - combinada ao meio físico em que vivem esses organismos. O
meio abrange a radiação solar, os gases da atmosfera, águas correntes,
fragmentos de rocha no solo, e assim por diante. E a essência de um
ecossistema é uma teia de processos que ligam os organismos uns aos outros e
ao seu ambiente físico.
Esses processos incluem um fluxo unidirecional de energia através do
ecossistema e um movimento cíclico de materiais no seu interior. Muitos dos
senhores estão familiarizados com o processo da fotossíntese, pelo qual as
plantas verdes "captam" a energia do sol. Parte dessa energia é a seguir
transferida ao longo de "cadeias alimentares", sendo utilizada primeiro pelas
plantas no seu crescimento e para acionar seus outros processos vitais, depois
pelos herbívoros que comem essas plantas, depois pelos carnívoros que comem
os herbívoros e uns aos outros, e finalmente por agentes de decomposição que
desagregam resíduos e organismos mortos.
A energia do sol alimenta todos os ecossistemas importantes, não apenas
através da fotossíntese como também de processos puramente físicos, como o
de evaporar a água da superfície dos mares e das terras de modo que esta
continue a circular. Assim, vê-se de imediato por que qualquer evento que
impeça o acesso da luz solar à superfície da Terra pode ter efeitos catastróficos
sobre o funcionamento dos ecossistemas.
Mas, e daí? É preciso entender que todos os seres humanos estão
encerrados em ecossistemas e deles dependem totalmente para a produção
agrícola e para uma série de outros "serviços públicos" gratuitos. Esses serviços
incluem a regulação dos climas e manutenção da composição gasosa da
atmosfera; suprimento de água doce; remoção de resíduos; reciclagem de
elementos nutrientes (inclusive os indispensáveis à agricultura e à silvicultura);
geração e preservação de solos; controle da grande maioria das pragas
potenciais das lavouras e vetores de enfermidades humanas; suprimento de
alimentos do mar; e manutenção de uma vasta "biblioteca" genética, da qual a
humanidade já tirou a própria base da civilização - inclusive todas as plantas
cultivadas e animais de criação.
A danificação de ecos sistemas significa a interrupção desses serviços. E
os dois ou três bilhões de indivíduos que sobrevivessem aos efeitos instantâneos
de uma guerra termonuclear precisariam deles mais ainda do que precisamos
hoje.

Agressões aos Ecossistemas

A que espécies de agressões estariam sujeitos os ecossistemas na


eventualidade de um conflito nuclear em grande escala entre os Estados Unidos
e a URSS? O Professor Sagan realçou as duas que provavelmente seriam as
mais importantes - escuridão generalizada e frio intenso nas áreas continentais.
Entre as demais, que não seriam desprezíveis, teríamos incêndios florestais;
neblina tóxica (que poderia engolfar todo o Hemisfério Norte); enriquecimento da
luz solar (quando voltasse a penetrar) em comprimentos de onda da faixa
perigosa do ultravioleta (UV-B), que, entre outras coisas, danificam o material
genético (ADN); níveis acrescidos de radiação nuclear; chuvas ácidas;
contaminação por substâncias tóxicas de águas subterrâneas, superficiais e
litorâneas; assoreamento e poluição por resíduos de lagos, rios e orlas marítimas
e tempestades violentas em regiões costeiras.
Quando da descrição de alguns dos impactos desses fenômenos, convirá
ter em mente que a maioria deles estarão ocorrendo simultaneamente em muitas
regiões. Além disso, em muitos casos os impactos de duas ou mais agressões
simultâneas serão provavelmente sinérgicos - isto é, maiores que a simples
soma dos efeitos isolados. Por exemplo, os níveis de radiação remanescente
provinda de precipitações globais (ou seja, exposição à radiação não atribuível à
precipitação local devida a uma determinada bomba) poderão ser muito mais
altos do que os estimados em análises anteriores, porque as precipitações da
alta troposfera foram de modo geral desprezadas.
Também é importante entender que as conclusões dos biólogos quanto aos
efeitos ecossistêmicos são muito menos dependentes das características
particulares das detonações do que o são as conseqüências diretas de explosão,
calor e radiação inicial. Só no caso de uma guerra nuclear de pequena escala,
realmente limitada, haveria a probabilidade de os nossos cálculos não serem
aplicáveis. Guerras desse tipo são possíveis, mas que uma guerra nuclear, uma
vez iniciada, possa ser contida, é duvidoso; para muitos analistas, guerras
nucleares limitadas são altamente improváveis. Seja como for, os detentores do
poder de decisão devem ser completamente informados das conseqüências
possíveis de conflitos nucleares generalizados, que têm toda a probabilidade de
causar a longo prazo efeitos devastadores.
É bem possível que as nossas conclusões subestimem essas
conseqüências, visto que ainda sabemos muito pouco a respeito do
funcionamento detalhado dos ecossistemas globais para avaliar todas as
interações sinérgicas entre os insultos a que os seres humanos e os
ecossistemas seriam submetidos. O fato é que, mesmo se os efeitos climáticos
não abarcassem todo o Hemisfério Norte ou todo o globo, os impactos de uma
guerra nuclear sobre os ecossistemas do planeta seriam consideráveis.

Gelo e Trevas

Temperaturas reduzidas teriam efeitos dramáticos sobre populações


animais, muitas das quais seriam aniquiladas pelo frio inusitado. Contudo o fator
central dos efeitos nos ecossistemas é o impacto da guerra sobre as plantas
verdes. A atividade destas dá origem à chamada produção primária - a
apropriação de energia (através da fotossíntese) e a acumulação de substâncias
nutritivas necessárias ao funcionamento de todos os componentes biológicos dos
ecossistemas naturais e cultivados. Sem a atividade fotossintética das plantas,
virtualmente todos os animais, seres humanos inclusive, cessariam de existir.
Toda carne é na verdade "erva".
Tanto o frio como a escuridão são adversos às plantas e à fotossíntese. O
Quadro 1 mostra as modificações de luz e temperatura que podem decorrer de
uma guerra nuclear. Note-se que, por exemplo, as temperaturas superficiais nos
continentes, longe das costas, podem ficar abaixo do ponto de congelamento da
água em todo o Hemisfério Norte durante um ano inteiro, e que um frio próximo
desse ponto também pode assolar o Hemisfério Sul durante meses.
Os impactos de temperaturas tão baixas sobre as plantas dependeriam,
entre outras coisas, da época do ano em que ocorressem, da sua duração, e da
tolerância das diferentes espécies vegetais ao resfriamento. Um resfriamento
brusco é particularmente prejudicial. Depois de uma guerra nuclear, prevê-se que
as temperaturas cairiam verticalmente em curto espaço de tempo; assim, é
improvável que plantas normalmente resistentes ao frio se aclimatassem antes
de serem expostas a temperaturas letais. Além disso, mesmo temperaturas bem
acima do ponto de congelamento podem ser nocivas a algumas plantas, e outras
agressões não mostradas no Quadro 1 intensificariam os danos infligidos à
vegetação pelo resfriamento ou congelação. Acresce que plantas doentes ou
lesadas têm uma capacidade reduzida de aclimatar-se ao frio.
Tudo isso se resume em que virtualmente todas as plantas terrestres no
Hemisfério Norte seriam lesadas ou destruídas numa guerra que ocorresse
durante a estação do crescimento ou pouco antes. Provavelmente a maior parte
das culturas anuais seria prontamente exterminada, e muitas plantas perenes
sofreriam igualmente danos graves se a guerra ocorresse no período do seu
crescimento ativo. Obviamente, os danos seriam menores se ela acontecesse na
fase de hibernação.
Se fosse no outono ou no inverno, as fontes principais de alimento para a
humanidade - trigo, arroz, milho e outros cereais - teriam sido colhidas. Mas
provavelmente o tempo permaneceria anormalmente frio por muitos meses,
impedindo o cultivo na primavera e no verão subseqüentes, ainda que outras
condições fossem favoráveis. Outrossim, como as temperaturas de inverno
estariam muito abaixo das mínimas normais, muitas plantas perenes (por
exemplo, árvores frutíferas e componentes importantes da vegetação natural)
provavelmente morreriam. De modo geral, as sementes estocadas de plantas de
zonas temperadas não seriam afetadas pelo frio, mas as de muitas plantas
tropicais o seriam.
Se bem que em latitudes mais setentrionais uma guerra no outono ou no
inverno teria provavelmente um impacto menos violento sobre as plantas do que
na primavera ou no verão, ainda assim poderia haver um sério impacto nos
trópicos, onde as plantas crescem o ano inteiro. As únicas partes do Hemisfério
Norte onde as plantas não seriam devastadas por um frio intenso seriam zonas
costeiras e ilhas, onde a temperatura seria moderada pelos oceanos. As faixas
costeiras, porém, experimentariam condições atmosféricas de extrema
turbulência, em vista das enormes diferenças de temperatura que se criariam
entre a terra e o mar.
Lembrem-se de que o frio é apenas um dos castigos a que as plantas
verdes seriam submetidas. O bloqueio da luz solar, causa do frio, também
reduziria ou eliminaria a atividade da fotossíntese. Isto traria inúmeras
conseqüências, que se transmitiriam em cascata através das cadeias de
alimento, inclusive as que dão sustento à espécie humana. A produtividade
primária diminuiria mais ou menos na proporção da diminuição da luz, ainda que
a vegetação não sofresse outras espécies de danos. Se o nível de iluminação
caísse a 5% ou menos dos níveis normais - como provavelmente aconteceria por
vários meses nas latitudes médias do Hemisfério Norte -, a maioria das plantas
teria o seu crescimento interrompido. Assim, mesmo se as temperaturas
permanecessem normais, a produtividade das culturas e dos ecossistemas
naturais seria enormemente reduzida pela intercepção da luz do sol decorrente
de uma guerra. Combinados, o frio e a escuridão constituiriam uma catástrofe
sem precedentes para esses sistemas.

Luz Ultravioleta

Quando o frio e a escuridão abrandassem, as plantas verdes passariam a


sofrer outro sério insulto. As bolas de fogo nucleares introduziriam na
estratosfera grandes quantidades de óxidos de nitrogênio. A conseqüência seria
uma forte redução do escudo protetor estratosférico de ozônio - da ordem de
50%. Normalmente, o ozônio filtra a radiação UV-B. Nas semanas ou meses
imediatamente seguintes à guerra, a fuligem e a poeira em suspensão
impediriam essa UV-B acrescida de alcançar o solo. Mas a escassez de ozônio
persistiria por mais tempo que a fuligem e a poeira, e, quando a atmosfera
limpasse, os organismos seriam submetidos a níveis de radiação UV-B muito
mais altos que os considerados perigosos para os ecossistemas e para os seres
humanos.
Uma das respostas das plantas ao aumento da UV-B é a redução da
fotossíntese. Além disso, folhas que se desenvolvem em baixa luminosidade são
duas ou três vezes mais sensíveis à UV-B do que as desenvolvidas em plena luz
do sol. Dessa forma, a UV-B irá potenciar os danos antes causados por baixos
níveis de luz. Sabe-se que os sistemas imunológicos do Homo sapiens e de
outros mamíferos são suprimidos mesmo por doses baixas de UV-B. Assim, os
mamíferos submetidos a radiação ionizante acrescida (que também inibe o
sistema imunológico), a doenças e a uma série de outras agressões num mundo
de pós-guerra teriam comprometida uma de suas principais defesas. Há também
indicações de que a exposição prolongada a um excesso de UV-B poderia
provocar de modo generalizado a perda da visão. As pessoas e outros animais
sobreviventes poderiam ver-se novamente em trevas pouco tempo depois que o
céu tivesse clareado.

Precipitação Radioativa

Os ecos sistemas do Hemisfério Norte seriam também submetidos a níveis


muito mais altos de radiação ionizante originada da precipitação radioativa do
que se imaginava antes. Uma estimativa sugere que um total de uns 5 milhões
de quilômetros quadrados estendendo-se dos pontos de detonação na direção
do vento ficariam expostos a 1.000 ou mais rems de radiação, principalmente
nas primeiras 48 horas. Esses níveis de radiação seriam letais para todas as
pessoas expostas e para muitas outras espécies animais e vegetais sensíveis.
Até 30% das áreas continentais de médias latitudes do Hemisfério Norte
seriam expostas a mais de 500 rems de radiação no primeiro dia. Tal dose
causaria a morte de cerca de metade dos indivíduos adultos sadios a ela
expostos. No entanto, submetidos a outros fatores de debilitação, poucos adultos
nessas áreas se manteriam sadios, e a radiação poderia acabar de liquidar
muitos milhões de sobreviventes feridos, doentes, enregelados, famintos e
sedentos. Os que não morressem ficariam doentes por semanas e propensos ao
câncer pelo resto de suas vidas. O número total de pessoas afetadas certamente
passaria de um bilhão, podendo mesmo abranger a totalidade das populações do
Hemisfério Norte - dependendo dos detalhes do conflito nuclear.
Níveis mais baixos de exposição anormal, ainda centenas de vezes maiores
que a radiação normal "de fundo", ocorreriam em metade ou mais do hemisfério,
tornando os sobreviventes mais suscetíveis à doença, acarretando a produção
de câncer e provocando mutações genéticas.
Os efeitos ecossistêmicos de níveis elevados de radiação são mais difíceis
de prever. Organismos não-humanos são diferentemente suscetíveis a lesões
por radiação. Entre os mais vulneráveis estão a maioria das coníferas que
formam florestas extensas nas zonas mais frias do Hemisfério Norte. É possível
que sobreviesse a morte de coníferas numa superfície equivalente a 2% de toda
a área de terras do Hemisfério Norte. Isto, por sua vez, criaria condições
propícias à propagação de incêndios de enorme extensão.
Além das coníferas, aves e mamíferos destacam-se entre os grupos mais
sensíveis. Combinada a outras agressões, a precipitação, em muitas regiões,
poderia agravar a ruptura da mecânica normal de ecossistemas. Além do que,
isótopos radioativos entrariam em ciclos alimentares, ganhando no processo
maior concentração, e talvez somando novos riscos para os sobreviventes
humanos.

Fogo, Smog e Sinergismos

Essa narrativa de modo algum esgota os impactos que os ecossistemas


experimentariam. É claro que muitos deles seriam destruídos ou lesados pelas
explosões, pelo fogo e pela radiação de milhares de detonações de
armas nucleares. Poços de petróleo, jazidas e depósitos de carvão, turfeiras,
etc., poderiam continuar queimando por meses ou anos. Incêndios florestais
secundários, cobrindo talvez 5% ou mais da área continental do Hemisfério
Norte, teriam efeitos devastadores diretos sobre os ecossistemas -
especialmente aqueles não adaptados a queimas periódicas. Explosões
múltiplas no ar sobre a Califórnia no fim do verão ou princípio do outono
poderiam calcinar grande parte do estado, ocasionando enchentes e erosão de
dimensões calamitosas durante a estação chuvosa subseqüente. Assoreamento,
escoamentos tóxicos e chuvas radioativas poderiam causar a mortandade de
uma grande parte da fauna de águas doces e costeiras. Sobreviventes humanos
procurando alimentar-se de mariscos como mexilhões a beira-mar
provavelmente verificariam estarem eles mortos ou com radioatividade
concentrada de tal ordem que seria letal consumi-los.
Há grande incerteza com respeito à extensão de tempestades ígneas,
porque as condições de combustível e de inflamação que as originam são pouco
conhecidas. Em certas circunstâncias, essas conflagrações gigantescas podem
aquecer o solo o suficiente para matar as sementes dormentes nele contidas - os
"bancos de sementes" dos quais depende a regeneração da flora. A tempestade
ígnea relativamente pequena que destruiu Hamburgo na Segunda Guerra
Mundial lançou labaredas no céu a 4.500 metros de altura e fumaça a 12.000
metros. A temperatura do fogo foi suficiente para fundir alumínio, e abrigos
subterrâneos ficaram tão quentes que quando se abriram, dando entrada ao
oxigênio, materiais inflamáveis e até cadáveres explodiram em chamas. Essa
tempestade cobriu cerca de 15 quilômetros quadrados; as muitas tempestades
ígneas produzidas numa guerra nuclear provavelmente seriam cada qual cem ou
mais vezes maior.
Os incêndios e as tempestades ígneas gerariam um smog hemisférico de
espessura variável, enriquecido a sotavento de cidades incendiadas por diversas
substâncias altamente tóxicas, como os cloretos de vinil. Uma provável
conseqüência da injeção na atmosfera de óxidos de enxofre e nitrogênio
produzidos por incêndios seriam chuvas fortemente ácidas localizadas. E a
modificação da dinâmica da atmosfera poderia resultar em estiagens
prolongadas noutras regiões. Em geral, a sujeição de ecossistemas a várias
combinações de escuridão, frio, fogo, radiação ultravioleta, smog, chuvas ácidas
e seca seria de molde a provocar surtos sem precedentes de doenças e pragas
das plantas, os quais poderiam estender-se, no espaço e no tempo, muito além
da devastação direta produzida pela guerra.
Em muitos casos, como dito atrás, o impacto de dois fatores adversos
simultâneos seria muito maior que a soma dos seus efeitos se eles ocorressem
separadamente. Alguns desses sinergismos são fáceis de identificar. Por
exemplo, a falta de luz solar é de molde a intensificar os efeitos de outros fatores
adversos sobre as plantas porque se requereria energia (e portanto insolação)
adicional para resistir a esses efeitos e para reparar os danos por eles
provocados. Não temos meios de quantificar outros sinergismos que sem dúvida
nenhuma ocorreriam em ecossistemas radicalmente alterados em virtude de um
ataque. No entanto tudo indica que podemos prever com segurança que haveria
muitos deles - e que de modo geral eles se revelariam muito mais destrutivos do
que alguns dos efeitos isolados.
O que Aconteceria aos Vertebrados e aos Organismos do Solo

O desastre que acometeria grande parte ou a maioria das espécies


vegetais do Hemisfério Norte por obra dos efeitos de uma guerra nuclear
concorreria para um desastre comparável ou maior para os animais superiores.
Herbívoros e carnívoros selvagens e animais de criação ou sucumbiriam
prontamente ao frio ou morreriam de fome ou de sede porque as águas
superficiais ficariam congeladas. Se a guerra ocorresse no outono ou no inverno,
animais hibernantes em regiões mais frias talvez sobrevivessem, só para
enfrentar condições extremamente hostis numa primavera e num verão de frio e
escuridão.
Os animais necrófagos que resistissem às temperaturas glaciais previstas
teriam condições de florescer no período de pós-guerra, tendo em vista os
bilhões de corpos insepultos de homens e animais. Com as altas taxas de
multiplicação que os caracterizam, depois do degelo, ratos, moscas e baratas
poderiam, pouco tempo decorrido da Terceira Grande Guerra, ocupar o lugar de
espécies dominantes.
Os organismos do solo não dependem diretamente da fotossíntese, e em
muitos casos podem manter-se em estado de vida latente por períodos
prolongados. Esses estariam relativamente imunes ao frio e à escuridão. Mas em
muitas regiões a perda da vegetação de superfície exporia o solo a um intenso
processo de erosão pelo vento e pela água. Com isso, ainda que os organismos
do solo não sejam excessivamente suscetíveis aos efeitos retardados sobre a
atmosfera de uma guerra nuclear, é provável que ecossistemas inteiros do solo
fossem de qualquer maneira destruídos.

Impactos em Sistemas Agrícolas

Os ecossistemas agrícolas seriam submetidos aos mesmos tipos de


impactos que os ecossistemas naturais, mas merecem atenção especial porque
atualmente sustentam populações humanas muito acima das cargas
suportáveis pelos ecossistemas naturais.
As reservas de alimentos básicos nos centros de população humana são
pequenas, e a maior parte da carne e dos gêneros é suprida pela produção
corrente. Somente os cereais são armazenados em quantidades maiores, mas
os locais de armazenagem situam-se geralmente em pontos distantes. Por isso,
depois de uma guerra nuclear, as reservas de alimentos do Hemisfério Norte
estariam destruídas ou contaminadas, guardadas em locais inacessíveis, ou em
pouco tempo esgotadas. As pessoas que sobrevivessem aos outros efeitos da
guerra logo estariam morrendo de fome. Além disso, países que hoje dependem
de grandes importações de alimentos, ainda que intocados por explosões
nucleares, sofreriam a imediata e completa cessação do ingresso de
suprimentos. Teriam de voltar-se para os ecossistemas agrícolas e naturais
locais. Para muitos países em desenvolvimento, isso poderia significar a inanição
de grandes parcelas dos seus habitantes.
A recuperação da agricultura após a guerra seria com certeza muitíssimo
difícil. Em sua maioria as culturas requerem complementos substanciais de
energia e de fertilizantes. Além disso, safras aproveitáveis requerem insolação
integral, água adequada, supressão de pragas e ausência relativa de agentes
adversos como poluição do ar e UV-B. Poucos desses requisitos estariam
presentes no mundo do pós-guerra imediato.
Depois que as condições ambientais voltassem mais ou menos ao "normal"
(exceto pela perda de solos irrecuperáveis), a facilidade da restauração da
agropecuária em escala apreciável iria depender da possibilidade de
reorganização dos sistemas sociais (determinada por fatores como
disponibilidade de energia e condição psicológica da população) e da proporção
em que sementes e animais de criação reprodutores houvessem sobrevivido.
Como as sementes destinadas à grande maioria das culturas norte-americanas,
européias e soviéticas não são colhidas e armazenadas em fazendas individuais,
a variedade genética já limitada de plantas cultivadas seria ainda mais reduzida
por perdas inevitáveis de sementes estocadas. Além disso, é provável que as
variedades que sobrevivessem se adaptassem mal aos meios ambientes de pós-
guerra em que seriam plantadas.
Nas primeiras estações, o mais certo é que o clima permanecesse mais
hostil e imprevisível do que de costume, resultando em colheitas incertas e, com
freqüência relativa, em frustrações de safras. Mesmo alterações climáticas
pequenas podem ter grandes efeitos sobre a agricultura. Por exemplo, uma
simples queda de 3ºC na temperatura média de julho empurraria o limite norte da
produção confiável de milho vários graus de latitude para o sul, até o sul do Iowa
e o centro do Illinois.
Por fim, deve-se observar que os ecossistemas agrícolas dependem
inevitavelmente dos ecossistemas naturais em que estão embutidos. Alterações
causadas nestes pela guerra, especialmente se afetando a sua capacidade de
prestar serviços de suprimento de água doce, controle de pragas e polinização,
também poderiam retardar a recuperação da agricultura.

O que Aconteceria com os Trópicos

Até aqui, concentrei minhas observações nos efeitos produzidos na Zona


Temperada Norte, terreno provável da guerra. Mas o que aconteceria nos
trópicos e no Hemisfério Sul? Naturalmente, isso dependeria em grande parte da
exata configuração dos alvos escolhidos e de quantas tempestades ígneas se
produzissem (pois estas poderiam injetar enormes quantidades de material na
estratosfera, onde ele seria facilmente transportado do Hemisfério Norte para o
Sul).
Em qualquer cenário de guerra, a propagação do frio e da escuridão às
extensas áreas tropicais do Hemisfério Norte é altamente provável, e é pelo
menos possível que se estendesse igualmente às áreas tropicais do Hemisfério
Sul. Ainda que o frio e a escuridão ficassem em grande parte confinados às
regiões temperadas do norte, pulsos de ar frio poderiam penetrar bastante fundo
nas zonas tropicais. Portanto é oportuno mencionar as prováveis conseqüências
de tal propagação.
Muitas plantas de zonas tropicais e subtropicais não possuem mecanismos
de liberação que lhes permitam suportar estações frias. Nessas regiões, danos
em grande escala seriam infligidos às plantas pelo esfriamento, ainda que as
temperaturas não chegassem a cair ao ponto de congelamento. Além disso,
considera-se que vastas áreas de vegetação tropical estão muito próximas do
"ponto de compensação" fotossintético - a quantidade de dióxido de carbono que
absorvem é apenas ligeiramente maior que a que liberam. Se o nível de luz
caísse, essas plantas definhariam, mesmo em ausência de resfriamento. Se a
luz permanecesse escassa por um tempo prolongado, ou se a baixos níveis de
iluminação se combinassem baixas temperaturas, florestas tropicais poderiam
desaparecer em grande parte, levando consigo quase por inteiro um dos
recursos não-renováveis mais preciosos da Terra: suas reservas de diversidade
genética, compreendendo a maioria das espécies animais e vegetais. Animais
tropicais, seres humanos neles incluídos, são também muito mais sujeitos a
morrer de frio que os seus semelhantes das zonas temperadas. Em resumo:
onde regiões tropicais fossem afetadas por alterações climáticas, as
conseqüências poderiam ser muito mais sérias do que as provocadas por
mudanças similares numa zona temperada.
Mais que isso, mesmo na ausência de frio e escuridão, a dependência dos
povos tropicais de alimentos e fertilizantes importados criaria problemas de suma
gravidade. Um grande número de habitantes seria forçado a deixar as cidades e
a tentar cultivar áreas remanescentes de floresta tropical úmida, acelerando a
sua destruição na medida em que os sistemas fossem levados muito além da
sua capacidade de carga.

O que Aconteceria aos Sistemas Aquáticos

Finalmente, o que aconteceria às partes do planeta que são cobertas de


água? Os organismos aquáticos tendem a ser protegidos de variações
dramáticas da temperatura do ar pela lentidão com que as variações se
propagam à água. Assim, em geral, os sistemas aquáticos sofreriam ruptura
menos acentuada que os terrestres. Não obstante, muitos sistemas de água
doce se congelariam a profundidades não pequenas (ou completamente). Por
exemplo, após uma guerra nuclear na primavera, formar-se-ia um metro ou mais
de gelo em todas as massas de água doce, pelo menos na Zona Temperada
Norte. Isto reduziria ainda mais os níveis de iluminação em lagos, charcos, rios e
arroios num mundo escurecido. Haveria baixa de oxigênio, e muitos organismos
aquáticos seriam exterminados. Além disso, a profundidade de congelamento
tornaria extremamente difícil o acesso de pessoas e outros animais
sobreviventes à superfície da água.
Nos mares, a escuridão inibiria a fotossíntese nas minúsculas plantas
verdes (algas) que formam a base de todas as cadeias alimentares marinhas
importantes. A reprodução dessas plantas, conhecidas coletivamente como
fitoplâncton, seria retardada ou interrompida em muitas regiões, e o fitoplâncton
que sobrevivesse seria em pouco tempo devorado pelos pequenos animais
flutuantes (zooplâncton) que dele se alimentam. Próximo à superfície do mar, a
produtividade do fitoplâncton é reduzida pelos níveis atuais de UV-B; depois de
uma guerra, um aumento dessa espécie de radiação seria uma agressão
adicional. No Hemisfério Norte, as cadeias alimentares marinhas poderiam ser
rompidas por um lapso suficientemente longo para causar a extinção de muitas
espécies valiosas de peixes, principalmente após uma guerra nuclear de
primavera ou de verão.
Não apenas a vida marinha seria dizimada em águas costeiras ricas como
as de Georges Bank, como as águas seriam agitadas por tremendos temporais.
Na proporção em que se encontrassem no porto ao ocorrer a guerra, as frotas
pesqueiras e os pescadores de ofício que hoje colhem as riquezas do oceano
teriam sido em grande parte convertidos em partículas dispersas, que
contribuiriam para sombrear os mares. Os sobreviventes aptos e dispostos a
pescar teriam grande dificuldade em encontrar combustível e instalação
portuárias e de processamento utilizáveis. De modo geral, não há muito por que
acreditar que, pelo menos no Hemisfério Norte, as formas de vida marinha que
servem de importante fonte de alimento para o homem fossem acessíveis aos
sobreviventes.

O que Aconteceria com a Terra

Podem-se elaborar cenários de guerra plausíveis em que os efeitos


atmosféricos predominantes, frio e escuridão, se estenderiam virtualmente à
totalidade do planeta. Nessas circunstâncias, a sobrevivência humana se
restringiria quase que exclusivamente a ilhas e faixas costeiras do Hemisfério
Sul, e a população humana poderia reduzir-se aos níveis da pré-história.
Muitos de nós, lendo o livro de Jonathan Schell The Fate of the Earth, nos
comovemos fortemente pelo modo impressionante em que ele apresenta a sua
tese, mas eu desconfio que os biólogos em sua maioria, como eu mesmo,
acharam um tanto exagerado imaginar que a nossa espécie viesse a
desaparecer literalmente da face do planeta. Com base no que sabíamos então,
não parecia verossímil.
Depois, os biólogos tiveram de considerar a possibilidade de que o frio e a
escuridão se espalhassem sobre a Terra inteira e sobre todo o Hemisfério Sul.
Ainda assim pareceu-Ihes improvável que isso resultasse de pronto na morte de
todas as pessoas do Hemisfério Sul. Imaginou-se que em ilhas, por exemplo,
longe das fontes de radioatividade e onde as temperaturas seriam moderadas
pelos oceanos, alguns habitantes haveriam de sobreviver. De fato, é provável
que restassem sobreviventes esparsos em várias partes do Hemisfério Sul, e
mesmo numas poucas partes do Hemisfério Norte.
Mas cabe inquirir sobre a persistência a longo prazo desses pequenos
grupos de população, ou de indivíduos isolados. O ser humano é um animal
social por excelência. Depende em alto grau das estruturas sociais que
construiu. Terá de arrostar um meio enormemente alterado, que não apenas lhe
será estranho senão muito mais adverso do que jamais enfrentou. Os
sobreviventes retornarão a uma espécie de estágio de caçador-apanhador. Mas
os caçadores e apanhadores do passado possuíram sempre um íntimo
conhecimento cultural do ambiente em que viviam; sabiam como tirar o seu
sustento da terra. Depois de um holocausto nuclear, populações sem essa
espécie de bagagem cultural estarão de repente se esforçando por viver num
ambiente que jamais foi experimentado por ninguém em parte alguma. Com toda
a probabilidade, enfrentarão um meio totalmente novo, condições meteorológicas
sem precedentes e altos níveis de radiação. Se forem grupos muito reduzidos,
haverá a possibilidade de cruzamento consangüíneo. E, é claro, os sistemas
sociais, econômicos e de valores serão completamente esfacelados. O estado
psicológico dos sobreviventes não é fácil de imaginar.
É consenso do nosso grupo que, nessas condições, não há como excluir a
possibilidade de os sobreviventes dispersos simplesmente não serem capazes
de reconstruir suas populações, de, num lapso de dezenas ou mesmo centenas
de anos, acabarem por desvanecer-se. Em outras palavras, não há como excluir
a possibilidade de uma guerra nuclear acarretar a extinção do Homo sapiens.

Sumário

Permitam-me uma breve recapitulação. Uma guerra nuclear em grande


escala, ao que nos é dado prever, deixaria quando muito sobreviventes esparsos
no Hemisfério Norte, e esses sobreviventes enfrentariam frio intenso, fome, falta
de água, smog espesso, etc.,etc., e enfrentariam tudo isso na penumbra ou no
escuro, e sem o apoio de uma sociedade organizada.
Os ecossistemas de que em grau extremo eles seriam dependentes
sofreriam fortes distorções, transformando-se em modos que dificilmente
podemos predizer. Seus processos seriam entravados. Os ecologistas não
conhecem suficientemente esses sistemas complicados para poderem prever a
sua exata condição depois de "recuperados". Se a biosfera voltaria a ser um dia
algo parecido ao que é hoje, ninguém é capaz de dizer.
É altamente improvável que a sociedade do Hemisfério Norte perdurasse.
Na zona tropical do Hemisfério Sul, os eventos dependeriam em grande parte do
grau de propagação dos efeitos atmosféricos do norte para o sul. Mas podemos
estar certos de que, ainda que não houvesse essa propagação, as populações
que vivem nessas áreas seriam fortissimamente afetados pelos efeitos da guerra
- pelo simples fato de ficarem isoladas do Hemisfério Norte.
E, repetindo, se os efeitos atmosféricos se alastrassem por todo o planeta,
não podemos ter certeza de que o Homo sapiens sobreviveria.
Figura 1. Deslocamento urbano provável: Uma semana após uma guerra
nuclear, a quantidade de luz solar ao nível do solo a grandes distâncias dos
objetivos do Hemisfério Norte possivelmente se reduziria a uma pequena
percentagem da normal. Os sobreviventes urbanos defrontar-se-iam com frio
intenso, falta de água, falta de alimentos e de combustíveis e pesadas cargas de
radiação, poluentes e doenças. Provavelmente tentariam abandonar as cidades
em busca de comida.

Figura 2. Impacto na agricultura: No caso de uma guerra de primavera ou


de verão, temperaturas abaixo do ponto de congelamento destruiriam ou
comprometeriam praticamente todas as culturas no Hemisfério Norte. Os baixos
níveis de iluminação inibiriam a fotossíntese, e as conseqüências propagar-se-
iam em cascata ao longo de todas as cadeias alimentares. Os animais de criação
morreriam ou se debilitariam grandemente por efeito da radiação: Os que
sobrevivessem em pouco tempo morreriam de sede, pois as águas doces
superficiais estariam congeladas no interior dos continentes.

Figura 3. Vazamentos químicos: Explosões nucleares nas vizinhanças de


cidades incendiariam instalações de armazenagem de petróleo e gás e
romperiam tanques contendo produtos tóxicos, que se derramariam nas águas
correntes, matando os organismos aquáticos.

Figura 4. O frio e a escuridão que se seguiriam a uma guerra nuclear no


Hemisfério Norte provavelmente haveriam de estender-se às zonas sub-tropicais
e tropicais de ambos os hemisférios, causando danos generalizados às plantas e
animais daquelas regiões e afetando seriamente ou destruindo florestas tropicais
úmidas, o grande reservatório da diversidade orgânica da Terra. Em lugares
como a América Central (figura) as populações teriam de perambular à procura
de abrigo e alimento.
Figura 5. Aqui se mostra uma paisagem tranqüila nas matas do norte. Um
castor acabou de construir a sua represa, dois ursos pretos vagueiam à cata de
comida, uma borboleta do gênero Papilio adeja no primeiro plano, um mergulhão
passa nadando calmamente, um martim-pescador espreita um peixe suculento.

Figura 6. Depois de uma guerra nuclear, formar-se-Ia nos si temas de água


doce uma camada de gelo de considerável espessura, acabando com o alimento
dos animais selvagens. A precipitação radioativa mataria as coníferas.

Figura 7. Coníferas mortas e secas serviriam de acendalhas para extensos


incêndios florestais.
Figura 8. Uma vista em corte do oceano em condições normais mostra
representantes da vida marinha em várias profundidades. Entre eles, arraias-do-
mar, cavalas, arenques, meros: atuns, caranhos-vermelhos, jubarte, polvo
gigante e tubarão. As águas rasas da plataforma continental sustentam estrelas-
do-mar e -corais. Um barco de pesca apanha camarões. Os pequenos
organismos do plâncton servem de alimento a outros seres marinhos.

Figura 9. Aqui se vê a mesma seção de oceano da Figura 8 depois de uma


guerra nuclear. Em conseqüência do escuro e da cessação da fotossíntese, o
fitoplâncton em pouco tempo se extingue, as cadeias alimentares se rompem e a
vida marinha degenera. Silte e toxinas drenados da terra contaminam a zona
costeira. O diferencial térmico entre as massas continentais intensamente frias e
os oceanos mais quentes origina violentas tempestades ao longo do litoral. As
fontes marinhas de alimento para a humanidade se perdem e o acesso às
remanescentes é muito dificultado.

Perguntas

DR. OWEN CHAMBERLAIN (professor de Física da Universidade da


Califórnia em Berkeley; Prêmio Nobel de Física de 1959): O senhor pode fazer o
favor de repetir alguns pontos capitais sobre a cultura do trigo? Que queda de
temperatura se requer para eliminá-Ia? Imagino que é fácil perder-se a produção
de um ano simplesmente porque o sol foi insuficiente para operar um ciclo vital
completo do trigo, mas o senhor mencionou alguns dados com respeito à queda
de temperatura.

EHRLICH: Eu me referi ao cenário do Dr. Sagan de 3.000 megatons de


contra-força - creio que algo em torno de 80C de queda. Veja que não se trata.
apenas da temperatura que uma planta em pé pode suportar num dado espaço
de tempo. Por exemplo, se a temperatura média cai, o período de crescimento é
abreviado. Na verdade, é uma questão complicada, a que os ecologistas têm
dificuldades em responder com precisão. Mas eu julgo razoável afirmar que esse
grau de declínio de temperatura, em termos de média em toda a área, é mais
que suficiente para estancar a produção de trigo. Além disso, as variedades hoje
cultivadas são altamente adaptadas às exatas condições em que são cultivadas.
Assim, ainda que fosse teoricamente possível cultivar o trigo, depois da guerra
não haveria tempo para reformular a agricultura e desenvolver e plantar
variedades ajustadas às novas condições.

ARTHUR KUNGLE, JR. (presidente do Library Tree Project): Além dos


problemas de suprimento de grãos, o senhor ou os seus colegas consideraram
os efeitos das modificações de luz, temperatura e radioatividade nos organismos
do solo, nos micorrizos e em diferentes categorias de algas?

EHRLICH: Eu prefiro parafrasear a pergunta: consideramos o que


aconteceria ao sistema ecológico enormemente complexo existente nos solos? A
resposta é sim, consideramos, e estamos convencidos de que haveria uma larga
variedade de efeitos. O solo não é simplesmente rocha decomposta. É um
sistema vivo, que inclui, por exemplo, os fungos micorrízicos, que desempenham
uma função capital no transporte de substâncias nutritivas do solo para muitas
árvores. Quando se olha uma floresta, pode parecer que as plantas dominantes
são árvores. Na verdade, são micorrizos. Se os fungos micorrízicos morressem,
as árvores desapareceriam. Infelizmente, nosso conhecimento dos ecos
sistemas do solo é ainda muito precário. A química é muito complexa, a biologia
é mal compreendida. Não há dúvida de que haveria problemas, mas ninguém
sabe dizer exatamente quais seriam. Esse é um assunto muito sério, e eu
desconfio que é um dos aspectos em que os nossos prognósticos foram
moderados.
WARD MOREHOUSE (presidente da Council on International and Public
Affairs, Inc.): Mesmo num mundo sem guerra nuclear, muitos biólogos, ao que
me consta, estão preocupados com a perda acelerada e aparentemente
irreversível das reservas mundiais de material genético. No caso de uma guerra
nuclear, qual seria o impacto provável sobre essas reservas genéticas, em que
medida elas seriam irreparavelmente perdidas e até que ponto isso afetaria a
capacidade dos ecossistemas agrícolas de se regenerarem?

EHRLICH: Em nossa opinião, haveria a perda de uma grande parte da


variedade genética das plantas de cultivo, obviamente, pela perda de estoques
de sementes, e também, se os eventos se estendessem às zonas tropicais, uma
enorme perda de variedade. Mas creio que cabe observar que na opinião de
muitos - embora neste caso eu fale por mim mesmo - basicamente o que uma
guerra nuclear faria em talvez uma hora e meia é o que o Homo sapiens
aparentemente está em vias de fazer dentro dos próximos 50 a 150 anos. O
efeito de uma guerra nuclear em todas essas frentes é condensar a ação num
tempo muito menor.

DR. GERALD O. BARNEY (Barney and Associates, Inc.): Para levar o


público em geral e os nossos governantes a entenderem a gravidade deste
assunto, é importante examinar as coisas com base na hipótese pior. E a sua
análise, se bem entendo, aplica-se principalmente ao caso de 10.000
megatons...

EHRLICH: Não é verdade.

BARNEY: Poderia dizer-nos alguma coisa sobre a variação de caso para


caso e de que modo as conclusões a que os senhores chegaram variam de um
cenário para outro?

EHRLICH: A conclusão básica dos biólogos é que mesmo o cenário de 100


megatons com ataque a cidades, ou o ataque de contra-força de 3.000
megatons, teriam conseqüências biológicas incrivelmente desastrosas. O ataque
"cirúrgico" de 3.000 megatons, destruindo a agricultura de grãos em grande parte
do Hemisfério Norte, poderia, mesmo que nem uma única pessoa fosse
diretamente morta ou lesada, produzir uma catástrofe sem precedentes na
história da nossa espécie. Alguns números, por exemplo os níveis de radiação,
foram tirados do caso de 10.000 megatons porque nos pareceu conveniente
apresentar aos biólogos as condições-limite, e alertar os detentores do poder de
decisão sobre os riscos máximos plausíveis.
Mas, como observado pelo Dr. Sagan e como agora eu quero sublinhar,
esses resultados subsistem ao longo de uma ampla gama de cenários. Os
detalhes podem variar. Mas, em qualquer cenário, enormes perturbações
afetariam os sistemas ecológicos do Hemisfério Norte pelo menos. E isto por sua
vez afetaria em grau catastrófico os sobreviventes humanos. Para os biólogos a
principal incerteza não é o que aconteceria nas latitudes médias do Hemisfério
Norte, mas que proporção desses efeitos invadiria inicialmente as zonas tropicais
do Hemisfério Norte e em seguida as do Hemisfério Sul. Dada a maneira como
funciona o mundo do ponto de vista biológico, se se considera o comércio de
alimentos e outras coisas, os resultados seriam terríveis mesmo sem a
propagação dos efeitos atmosféricos ao sul do equador.

DR. PETER SHARFMAN (Comissão de Avaliação Tecnológica do


Congresso dos Estados Unidos): Aceitando que a sua conclusão mais importante
é a contestação da afirmativa do estudo de 1975 da Academia Nacional de
Ciências, de que com toda a probabilidade a espécie humana sobreviveria,
parece-me ainda assim que o senhor deveria focalizar melhor algumas das
variações, como aparentemente fizeram o Dr. Sagan e seus colaboradores.
Olhando rapidamente, pois não tive tempo para mais, a família de curvas gerada
pelos relatórios TTAPS, noto que algumas delas são fortemente onduladas, e
outras mais suaves. Evidentemente faz muita diferença para a agricultura
quando o senhor fala de uma guerra no verão, que é provavelmente o pior caso,
ou logo após a colheita, que provavelmente é o melhor. E a simples afirmativa de
que os resultados subsistem para quase todas as variações não é tão
convincente quanto seria a análise de alguns efeitos ou ausência de efeitos em
algumas das variações mais definidas.

EHRLICH: Ninguém disse que não vamos prosseguir aprofundando o


assunto. É claro que, estudando mais, provavelmente encontraremos situações
em que se 5.000 megatons explodissem numa certa época do ano os efeitos
seriam menos graves que se os mesmos 5.000 megatons explodissem em outra
época do ano. Por exemplo, uma guerra de inverno pode ter efeitos piores nos
trópicos, e os desdobramentos podem ser piores, pois na primavera a agricultura
é muito mais sensível que em qualquer
outra época do ano. É certo que haverá variações dos efeitos biológicos. O
que subsiste é que eles serão terríveis, e que haverá tantos, e de tal modo
superpostos, e de tal modo sinérgicos, que é difícil ver em qualquer desses
cenários uma situação em que o impacto sobre as populações por intermédio
dos sistemas ecológicos não fosse pelo menos tão brutal quanto os efeitos
diretos.
Eu não estou dizendo que todos os cenários produziriam os mesmos
efeitos. Nem poderia dizê-lo, pois os próprios físicos não são ainda capazes de
proporcionar-nos todos os detalhes. E ainda que os tivéssemos, o conhecimento
de como funcionam os sistemas ecológicos é tão incipiente que previsões
detalhadas do que aconteceria se eles fossem perturbados de diferentes
maneiras são sumamente difíceis. Afinal, normalmente não podemos realizar
experiências - e no caso da guerra nuclear não desejamos fazê-lo. Desconfio
que este é um desses casos, tanto em relação a efeitos atmosféricos como a
efeitos sobre ecossistemas, em que teremos de nos contentar com
generalidades,. pois nestas próximas décadas não teremos resultados mais
precisos, se é que os teremos um dia.

DR. JACK VALLENTYNE (cientista senior do Centro Canadense de Águas


do Interior em Burlington, Ontário): Desejo fazer um comentário e uma pergunta.
O comentário é que eu acho que muitos aspectos da sua exposição são terríveis,
e não acho que o senhor os tenha exagerado. Mas em diversas passagens o
senhor empregou os verbos no futuro. E isto implica uma certeza que em
realidade não existe.

EHRLICH: Mea culpa. Eu tenho esperança de que as coisas não


"acontecerão". Espero que, com informações como estas, os povos do mundo se
reunirão e encontrarão meios de acertar suas diferenças por maneiras outras
que não a de explodir o planeta. É claro que concordo com o senhor. Não
devemos usar o tempo futuro.

VALLENTYNE: Minha pergunta é que não é para mim intuitivamente óbvio


que o ambiente marinho viesse a sofrer conseqüências tão graves.
Provavelmente uma grande quantidade de substâncias nutritivas é despejada
nele. Existem coisas como os pesqueiros de 16cios no lago Erie que, tão logo
cessasse a pesca comercial, voltariam a multiplicar-se. Da mesma forma os do
Mar do Norte. Os predadores - os pescadores humanos estariam menos
presentes.

EHRLICH: Estou de acordo. A recuperação será provavelmente mais rápida


nos ambientes marinhos. Mas de imediato eles sofrerão muito com a diminuição
da luz, que exterminará o fitoplâncton.
É de presumir que o fitoplâncton não será uniformemente eliminado em
toda parte. Haverá de reconstituir-se, e alguns dos sistemas recompor-se-ão. É
opinião dos biólogos marinhos neste estudo que se perderia um bom número de
espécies, ou pelo menos grandes populações, de peixes comerciais. É provável
que os sistemas marinhos se restaurassem mais depressa, mas não estariam
imunes só pelo amortecimento térmico da água.

INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: Eu gostaria de observar que, se o


senhor não vai discutir política, nós teremos de entregar o assunto à Providência
divina. E não está certo o senhor impor o seu ponto de vista político se nós não
vamos discuti-Io. Os pressupostos referentes ao nível de 100 megatons
envolvem uma série de questões.

EHRLICH: Nós não vamos tratar de política nesta conferência. Mas, pelo
que sei, todos os biólogos que participaram deste estudo, sem exceção, e creio
que todos os físicos igualmente, têm idéias próprias em matéria de política.
Imagino que todos eles teriam muito prazer em discuti-Ias em reuniões
apropriadas. Aqui, não pretendemos impor nenhum ponto de vista político. O
ataque de 100 megatons a cidades não é uma previsão. O grupo TTAPS fez
simplesmente o que os cientistas sempre fazem quando abordam um assunto
muito complicado - tomou alguns casos hipotéticos para analisá-Ios de forma
mais detida. Este é simplesmente um caso hipotético. Ninguém imagina que
haverá uma guerra nuclear em que exatamente 100 megatons (1.000 bombas de
100 quilotons cada) serão distribuídos por exatamente 1.000 cidades como é o
caso no cenário. Nem ninguém imagina que haverá um ataque cirúrgico de
exatamente 3.000 megatons. Mas para elaborar modelos é preciso partir de
algum ponto.
Eu, pessoalmente, acho que a equipe TTAPS fez um trabalho brilhante
selecionando uma série de modelos que cumprem a função dos modelos em
ciência, que é a de proporcionar uma maneira de refletir sobre o mundo, de
raciocinar a respeito de questões complexas, com um certo grau de
simplificação. Na reunião anterior de físicos e climatologistas que examinaram o
estudo TTAPS, basicamente não houve reclamações quanto ao modo como
foram escolhidos os modelos, embora tenha havido uma porção de perguntas
cuidadosamente formuladas a respeito de outros pontos. Mas ao término da
reunião, todos os presentes acharam que o grupo TTAPS realizou um magnífico
trabalho analisando com bom senso, embora com recursos limitados, um tema
de importância capital, com base num conjunto de modelos perfeitamente
razoáveis.
Mas o emprego dos modelos nada tem a ver com política. Eles estão aí,
qualquer um é capaz de entender os resultados, e os condutores da política
podem fazer uso deles e tirar suas próprias conclusões.

DR ROBERT EHRLICH (Universidade George Mason, Virgínia): Pelo que


entendi, os principais danos biológicos são causados pelo frio e pela escuridão.
Mas o senhor disse, em sua exposição, que os demais efeitos - em particular a
precipitação radioativa, a destruição da camada de ozônio, etc. - também seriam,
individualmente, catastróficos para o ambiente. Não é verdade?

PAUL EHRLICH: Em graus variáveis. Depende do efeito e do lugar, mas é


verdade.

ROBERT EHRLICH: Creio que o Dr. Sagan mencionou que o efeito relativo
à camada de ozônio é basicamente o mesmo referido no estudo de 1975 da
Academia Nacional de Ciências, e que naquele estudo o efeito da destruição da
camada de ozônio, ou da fração da mesma que se deduziu seria destruída, foi
dado como significante mas certamente não catastrófico.

PAUL EHRLICH: Eu não vou argumentar com o senhor a respeito de


palavras como significante e catastrófico. Mas não conheço nenhum ecologista
que ache possível expor ecos sistemas naturais a um tal fluxo de UV-B e esperar
que não ocorra toda uma série de graves alterações, muitas das quais ainda não
somos capazes de prever. Esse é um dos efeitos significantes que poderia ser,
por si só, catastrófico.

DR. ED PASSERINI (Carrying Capacity, Washington, D.C.): O senhor deu a


entender que um aspecto favorável era a possibilidade de que algumas árvores
de folhas grandes sobrevivessem. Mas nem o senhor nem o Dr. Sagan, embora
mencionando frio, escuridão e tempestades no mar, falaram muito de chuva.
Ora, considerando os perfis de temperatura em função da altitude que temos
diante de nós, e a quantidade de poeira que teremos, parece lógico que em
pouco tempo haveria lavagem pela chuva. Isto é, que a evaporação dos mares
produziria precipitações locais e grande parte das chuvas que normalmente se
deslocam para terra não chegariam lá. Os senhores analisaram estes aspectos e
qual a sua influência nos efeitos?
EHRLICH: Isso foi examinado e discutido. É certo que algumas árvores
poderiam mudar as folhas e sobreviver por possuírem reservas, por exemplo.
Mas provavelmente seriam castigadas pela seca. Provavelmente seriam
afetadas pelo frio. Quando tentassem lançar novas folhas, é provável que estas
fossem comidas. Não há garantia de que as árvores sobrevivessem muito tempo.
Elas estariam lançando renovos frágeis e delicados num ambiente em que
estariam presentes herbívoros inusitados. Pessoas ameaçadas de morrer de
inanição lançariam mão de brotos tenros. Ratos e coelhos famintos buscariam
alimentos que normalmente não consomem.
Além do mais, a vegetação que não morresse pelo frio, pela falta de luz e
pela radiação enfrentaria uma atmosfera enfumaçada contendo muitos poluentes
fitotóxicos, especialmente nocivos a folhas novas e frágeis. Não cabe muito
conjeturar se a W-B desorientaria tantos polinizadores que os ecos sistemas
passariam a sofrer sérios distúrbios quando a maior parte das plantas tivesse
sido eliminada pelo frio, e o restante pela escuridão e pelo smog. Restariam
muito poucos animais e plantas para serem desorientados, cegados, privados de
defesa imunológica, queimados, etc., pela UV- B.

INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: O senhor arriscaria um palpite


sobre quanto tempo seria necessário, admitindo-se que o homem sobrevivesse,
para que se restaurasse uma civilização comparável, por exemplo, à de 5.000
anos atrás? E depois, possivelmente, uma comparável à de hoje? A minha
impressão é de que isso levaria da ordem de centenas de milhares de anos, se é
que viria a acontecer. Não umas poucas gerações, nem mesmo dez gerações.
Eu gostaria de ouvir a sua opinião.

EHRLICH: Eu diria simplesmente que isso dependeria em grande parte do


cenário, e de coisas que nós não sabemos. O que importa, penso eu, para a
maior parte dos seres humanos, é que o mundo em que vivemos hoje
simplesmente deixaria de existir. Quanto ao que viria substituí-lo e quanto a qual
seria o curso da evolução biológica e social, é matéria de adivinhação, e iria
depender basicamente de quantos artefatos e que parcela de conhecimentos
fossem conservados. Se todos os artefatos, todo o conhecimento e todos os
recursos explorados se perdessem, de fato a humanidade teria recuado, em
tempo evolutivo, centenas de milhares de anos. E uma nova evolução cultural, se
viesse a processar-se, é bem possível que seguisse um curso totalmente
diferente.
Contudo, se alguns centros importantes de estudo fossem preservados, e
se algumas metrópoles organizadas subsistissem no Hemisfério Sul, a cultura
humana poderia retornar bem mais depressa a níveis "adiantados". Mas eu diria
que há nisso uma boa dose de arrogância e atitude pessoal. Eu vivi entre os
esquimós, e poderia demonstrar que em muitos sentidos a cultura deles é bem
mais adiantada do que a nossa hoje.

INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: Eu gostaria de fazer uma pergunta


a respeito do que muitos considerariam um aspecto secundário do modelo. Nos
anos 60 e 70, a maior parte dos estudos sobre ecossistemas naturais não levava
em conta a possibilidade de tempestades ígneas, ou a considerava remota - ou
que não temos dados suficientes, ou que pouco sabemos a respeito de
tempestades ígneas. O senhor comentou que o seu grupo foi cauteloso em
relação a esse ponto. E eu gostaria de saber se essa cautela foi a mesma dos
anos 60 e 70.

EHRLICH: Bem, acho que é basicamente um problema de falta de dados.


Uma questão de como conduzir a experimentação. Há na literatura tentativas de
determinar o volume de combustíveis requerido para produzir uma tempestade
ígnea. Há muitas informações coligidas sobre incêndios florestais em termos de
aquecimento do solo, etc., e sabe-se que mesmo em ecossistemas de chaparral,
que são adaptados ao fogo, em certas circunstâncias, quando o solo é úmido,
pode haver perdas importantes de nitrogênio do solo, destruição de sementes,
etc. Talvez o que realmente nos falte saber é o que acontece se houver incêndio
simultâneo em grandes extensões de território. Ocorreria urna tempestade ígnea
em vez de urna propagação de frentes de fogo? Isto, que me conste, ninguém
sabe.

INTERPELANTE: Mas os melhores exemplos que temos de tempestades


ígneas são as explosões de Hiroxima, Nagasáqui e Dresda.

EHRLICH: Não, isso não é exato. As observações in loco não foram


imediatas nem suficientemente completas em Nagasáqui e Hiroxima. E há
controvérsias quanto à exata natureza dos incêndios nesses casos. As melhores
observações que temos são de Dresda e Hamburgo, onde havia grandes
depósitos de combustíveis e as áreas incendiadas foram relativamente limitadas.
Nós tiramos muito poucas conclusões, em relação ao que seria teoricamente
possível, dos eventos de Hiroxima e Nagasáqui. Até hoje se discute na literatura
a respeito das seqüelas médicas, e se houve de fato uma tempestade ígnea.

VICE-MARECHAL-DO-AR J. SALATUN (membro do Parlamento da


Indonésia): Pouco depois das bombas de Hiroxirna e Nagasáqui, lembro-me de
ter lido nos jornais declarações de cientistas dizendo que nos próximos 75 anos
nada cresceria naquelas duas cidades. A história mostrou que estavam
enganados, pois um ano depois houve colheita de melões, horti-granjeiros e
outras plantas. Em face disto, minha pergunta é: qual o grau de precisão das
suas conclusões?

EHRLICH: Creio que são perfeitamente sólidas. É possível que alguns


cientistas tenham feito declarações como essa, se bem que não consigo
imaginar em que se teriam baseado, considerando o estado da ciência naquela
ocasião. Mas sempre houve cientistas fazendo declarações absurdas,
individualmente, em diferentes lugares. No entanto, o que aqui apresentamos
representa pelo menos o consenso de um grupo muito grande de cientistas. Há
que ter em mente que nada deixa um cientista mais feliz do que mostrar que as
conclusões de outros são falsas. Eu tenho grande confiança nestes resultados.
Nós os estamos expondo e continuaremos a fazê-Io sob rigorosa crítica
científica. Se houver mudanças significativas - o que parece extremamente
improvável -, é assim que a ciência marcha. Mas o fato de terem crescido melões
em Hiroxima e Nagasáqui depois das bombas não tem muito a ver com a
natureza dos efeitos de que estamos falando.

THOMAS M. LEVENSON (repórter da revista Discover): Existe um limiar no


número de extinções de qualquer gênero, além do qual as extinções se
sucederão em cascata ao longo da cadeia alimentar?

EHRLICH: Pelo que sabemos com base em modelos de ecossistemas,


parece provável que haveria limiares em certas extinções. O problema é que não
sabemos onde; não temos como fixar números. Os biólogos ainda não
determinaram se existem no planeta entre 2 e 5 milhões de espécies diferentes,
ou 30 milhões. Nossa ignorância é profunda. Mas, pelo que sabemos a respeito
de sistemas ecológicos, é de supor que haja limiares dessa natureza, e em
sistemas menores nós os encontramos. Se certas espécies chamadas
fundamentais são exterminadas, segue-se de imediato a extinção de outras
espécies na mesma área.

DR. THOMAS C. HUTCHINSON (Universidade de Toronto): De que ordem


seria a acumulação de poeira ou de solo em termos de campo aberto?

EHRLICH: A acumulação de poeira no Hemisfério Norte dependeria, entre


outras coisas, do padrão dos ventos. Evidentemente haveria uma enorme
precipitação de pó em várias áreas, e o pó por si mesmo é muitas vezes biocida,
como o senhor deve saber. Esta seria apenas uma agressão a mais que as
plantas e os insetos sofreriam.

PAINEL SOBRE AS CONSEQÜÊNCIAS ATMOSFÉRICAS E


CLIMÁTICAS

DR. GEORGE M. WOODWELL (presidente da Conferência): Neste


momento tenho o prazer de abrir este tópico a novos debates, como parte do
processo geral de apressar a difusão e verificação das conclusões. Agora será a
vez das perguntas difíceis.
O primeiro painel é presidido pelo meu colega Dr. Thomas F. Malone.

DR. THOMAS F. MALONE (presidente do Painel sobre Conseqüências


Atmosféricas e Climáticas): Em prosseguimento às magníficas exposições gerais
proferidas por Carl Sagan e Paul Ehrlich, passaremos a examinar alguns
detalhes e embasamentos importantes dessas apresentações.
Tendo em vista o impacto quase inacreditável das armas nucleares, vale a
pena relembrar que na Segunda Guerra Mundial a arma de maior poder,
isoladamente, foi a bomba arrasa-quarteirão de 10 toneladas. Quando a bomba
atômica foi lançada em Hiroxima, esse poder explosivo foi multiplicado por mil. A
invenção da bomba H elevou a carga útil outras mil vezes. Agora estamos
falando de uma arma única de poder um milhão de vezes maior que as
empregadas na Segunda Guerra Mundial. É por isso que há conseqüências
globais. Está em jogo a sobrevivência da espécie humana. Ao longo de bilhões
de anos, as espécies da Terra tiveram em média uma duração de 10 milhões de
anos. Este é simplesmente um valor médio, e nós já percorremos a metade dele.
A pergunta é: será que venceremos mais cinco milhões de anos de modo a
cumprir a outra metade?

DR. JOHN P. HOLDREN (membro do painel): Não falo como um dos


autores responsáveis pelas conclusões apresentadas nesta Conferência, mas
como participante convidado, com algum conhecimento de arsenais nucleares,
seleção de objetivos e cálculo de precipitações. Gostaria de abordar aqui duas
questões que talvez lhes tenham ocorrido.
A primeira é se os modelos apresentados constituem uma base verossímil
para a análise das conseqüências de possíveis guerras nucleares, dadas as
dimensões dos arsenais existentes e o conhecimento disponível de como esses
arsenais poderiam ser usados.
A segunda questão é se os vários números que ouvimos com referência a
doses de radiação oriunda de precipitação radioativa são de fato intrinsecamente
coerentes e compatíveis com os calculados por outros analistas.
Em 1983 os arsenais mundiais de armas nucleares estratégicas utilizáveis
consistiam de 19.000 ogivas, ou cerca de 10.000 megatons (Quadro 1). O termo
"utilizáveis" refere-se ao número de ogivas instaladas em mísseis e bombas
carregadas em aviões de bombardeio que poderiam ser lançadas se os dois
lados utilizassem todos os seus projéteis e veículos transportadores uma única
vez. Isto é, recarga de mísseis e vôos múltiplos de bombardeios não são
considerados.

QUADRO 1. ARSENAIS NUCLEARES MUNDIAIS, 1983

Categoria No. De Ogivas Megatons

"Estratégicas" utilizáveis EUA 9.800 4.000


URSS 8.600 6.000
Outro 300 200
Sub-Total 19.000 10.000

Teatro, Navais e Reserva EUA 16.000 2.000


URSS 14.000 3.000
Outro 600 150
Sub-Total 30.000 5.000

Totais 50.000 15.000

Nessa categoria, os Estados Unidos têm 9.800 ogivas somando cerca de


4.000 megatons, a União Soviética tem 8.600 ogivas somando cerca de 6.000
megatons. Os números soviéticos incluem os mísseis de médio alcance SS-4,
SS-5 e SS-20 apontados para a Europa e para a Ásia, pois essas armas têm
funções principalmente estratégicas. Analogamente, os números para os
Estados Unidos incluem os bombardeiros supersônicos FB-111 de asas retráteis,
que são arrolados na parte estratégica das forças nucleares norte-americanas.
Arsenais nucleares menores são mantidos pela França, Reino Unido e
China. Embora sejam arsenais modestos comparados aos das superpotências,
as megatonagens são ainda menores se lembrarmos que mesmo um conflito na
faixa de 100 megatons pode, em certas circunstâncias, produzir as terríveis
conseqüências atmosféricas e biológicas examinadas nesta assembléia.
A segunda categoria inclui armas nucleares "de teatro", de campo de
batalha, de defesa aéreas e navais, bem como as reservas de ambos os lados
não-instaladas no momento em sistemas de lançamento. Nesta categoria estão
16.000 bombas e ogivas dos arsenais dos Estados Unidos, totalizando 2.000
megatons, e aproximadamente 14.000 bombas e ogivas da União Soviética; não
temos dados seguros sobre a megatonagem do arsenal de teatro da URSS, mas
ela deve ser da ordem de 3.000 megatons.
A França, o Reino Unido e a China têm cerca de 600 ogivas com talvez 150
megatons, embora estes sejam números bastante incertos. As somas totalizam
aproximadamente 30.000 ogivas e 5.000 megatons nas várias categorias não-
estratégicas.
Chega-se assim a um total global em torno de 50.000 bombas e ogivas -
representando cerca de 15.000 megatons.
Ora, neste contexto vemos que o cenário de referência apresentado nesta
Conferência nada tem de extravagante. O cenário de referência do relatório
TTAPS, de 5.000 megatons, corresponde ao uso de mais ou menos um terço
dos estoques mundiais totais, ou cerca de metade dos estoques estratégicos.
Está na mesma classe de outros cenários de referência elaborados e usados por
outros grupos há vários anos.
Por exemplo, o cenário do estudo publicado no número "The Aftermath" da
revista Ambio, publicação internacional sobre meio-ambiente da Real Academia
Sueca de Ciências (que é de certo modo um precursor do presente trabalho) era
de 5.700 megatons. Um conjunto recente de cenários organizados no
Laboratório Nacional Lawrence Livermore para análise das mesmas questões
adota como cenário de referência 5.300 megatons.
Pode-se perguntar se números mais altos que também já foram explorados
- por exemplo, 10.000 megatons - são plausíveis, isto é, se há cenários realistas
em que se pudessem atingir totais tão elevados. Infelizmente, a resposta é
afirmativa. Em circunstâncias adversas, pode-se conceber uma guerra nuclear
começando com o emprego de armas nucleares de campo de batalha, ao que se
seguiria uma escalada para o emprego de armas de teatro e finalmente para o
dos arsenais estratégicos. Se isso acontecesse, as piores circunstâncias
poderiam com efeito resultar numa guerra nuclear envolvendo totais da ordem de
10.000 megatons ou mais.

Planos atuais de "modernização" dos arsenais nucleares estratégicos, se


executados, resultarão no aumento do número de ogivas, possivelmente sem
aumento da megatonagem total. Nas duas últimas décadas, a megatonagem
diminuiu enquanto o número de ogivas aumentava, porque a potência média
reduzida das ogivas modernas supercompensa o crescimento do número de
unidades. Seja como for, a multiplicação de incêndios produtores de fuligem é
mais sensível ao número de ogivas detonadas que à megatonagem total.
Outra questão importante que pode ter sido suscitada pela exposição do Dr.
Sagan é a da dose de radiação produzida por precipitação.
As pessoas podem absorver radiação de fontes externas e internas.
Geralmente a dose externa é calculada contando apenas a dose recebida em
todo o corpo de fontes externas de raios gama. A radiação também pode ser
absorvida pela ingestão de alimentos e água contaminados por substâncias
radioativas.

O Quadro 2 mostra algumas estimativas de radiação por precipitação


tiradas do estudo TTAPS e as compara com números obtidos em outros estudos.

QUADRO 2. DOSES DE RADIAÇÃO DAS PRECIPITAÇÕES À MÉDIO


PRAZO

Dose externa
corporal
Estudo Área e Tipo de Radiação (rems)
_______________________________________________________

TTAPS Hemisfério Norte, Média, só gama 20


5.000 megatons Hemisfério Norte, Médias Latitudes
só gama 40-60
Hemisfério Norte, Médias Latitudes
Total 100

Knox, LLNL Hemisfério Norte, Médias Latitudes


5.300 megatons Só gama 20
Hemisfério Norte, áreas críticas
Só gama 40-100
Hemisfério Norte, Médias Latitudes,
Ataque contra instalações de energia
Nuclear +200-300

TTAPS Curto Prazo, 30% da área


Continental de Médias Latitudes Maior 500

(Caso exposto por Ehrlich e outros)

No cenário de 5.000 megatons do TTAPS, a dose externa corporal de raios


gama à médio prazo foi calculada em 20 rems, em média, para o Hemisfério
Norte.
A dose à médio prazo não inclui a dose a curto prazo proveniente das
precipitações isoladas de milhares de explosões nucleares.
Representa unicamente a contribuição da precipitação à médio prazo, definida
como a que ocorreria no período compreendido entre alguns dias e mais ou
menos um mês após o conflito nuclear. A maior parte dos cálculos precedentes
concentrou-se ou na precipitação à curto prazo (dentro dos primeiros dias) ou na
de longo prazo (mais de um mês depois do conflito) vinda da estratosfera. A
precipitação intermediária é produzida pelo material radioativo em partículas
elevado à alta troposfera e baixa estratosfera que cai no intervalo compreendido
entre alguns dias e um mês depois das explosões.
As doses hemisféricas estimadas devem-se à categoria intermediária
anteriormente desprezada, e contribuem adversamente para a dose total a que
os sobreviventes das explosões e dos efeitos térmicos seriam submetidos.
Nas latitudes médias do Hemisfério Norte, ocorreriam precipitações locais à
médio prazo muito mais intensas como resultado da concentração de explosões
nucleares nessa região. O grupo TTAPS estimou que nessas latitudes a dose
externa corporal seria de 40 a 60 rems. E, considerando tudo, não apenas a
exposição corporal aos raios gama mas também a possibilidade de doses
internas fornecidas por emissores radioativos ingeridos com alimentos e água, a
dose média total para os habitantes das latitudes médias chegou à faixa de 100
rems.
Para efeito de comparação, podemos tomar um estudo recente realizado
por Joe Knox no Laboratório Nacional Lawrence Livermore (LLNL). No cenário
de 5.300 megatons do LLNL, a dose de radiação gama para latitudes médias do
Hemisfério Norte foi de 20 rems, a comparar com o valor de 40-60 rems do
estudo TTAPS para as mesmas latitudes.
Temos assim uma concordância bastante aproximada, se considerarmos a
ampla faixa de disparidades possíveis entre os pressupostos adotados com
relação à distribuição das explosões. Os pressupostos dizem respeito ao número
de explosões no solo, a baixa altura e a grande altura, à distribuição de potências
das bombas, etc.
Para mim, esse grau de concordância é bastante expressivo. Ao incluir nos
cálculos as áreas críticas do Hemisfério Norte, o grupo de Knox obteve números
na faixa de 40 a 100 rems. E, em comunidades informais, Knox e seus colegas
do Laboratório Livermore sugeriram que a contribuição das doses internas
poderia ser algo maior do que a admitida pelo grupo TTAPS. Isso tenderia a
reduzir a talvez a metade a discrepância inicial entre os resultados do TTAPS e
os do LLNL com respeito à dose de radiação gama nas latitudes médias do
Hemisfério Norte.
Finalmente, quero colocar em perspectiva o número a que Paul Ehrlich se
referiu ontem ao falar nos estudos dos biólogos. Lembrem-se de que os biólogos
consideraram um cenário de 10.000 megatons, e que o número mais alto a que
chegaram, 500 rems em cerca de 30% da área continental do Hemisfério Norte,
resultou de incluir-se como fator a precipitação a curto prazo oriunda dos
penachos. de explosões isoladas. É claro que um cenário de 10.000 megatons
envolve um grande número de explosões. Esses números são perfeitamente
coerentes em método e em contexto geral com os outros números aqui
mencionados.
Repetindo: tanto os números do TTAPS como os de Knox representam
tentativas de calcular não a precipitação à curto prazo dos penachos individuais
de milhares de armas detonadas, mas a precipitação a médio prazo ocorrente
entre alguns dias e um mês. Esse tipo de precipitação é a que foi mais
desprezada em cálculos anteriores. Essa precipitação da escala intermédia de
tempo contribui substancialmente para a dose total.
Knox e seus colegas calcularam um número terrificante para uma hipótese
não considerada no estudo TTAPS. A do que aconteceria se as instalações de
força nuclear do Hemisfério Norte - reatores, usinas de reprocessamento e
depósitos de rejeitos - fossem deliberadamente alvejados com armas de poder
suficiente para vaporizar esses repositórios de materiais nucleares. A resposta é
uma contribuição adicional à dose de exposição corporal nas latitudes médias de
200 a 300 rems, o que representa uma cifra realmente atordoante.
DR. RICHARD P. TURCO (membro do painel): Tratarei em termos gerais
de alguns aspectos dos incêndios produzidos num ataque nuclear. Um dos
efeitos mais impressionantes de uma explosão nuclear é a sua capacidade de
queimar e carbonizar uma vasta área à sua volta. Cerca de um terço do total da
energia de uma explosão nuclear a baixa altura é emitido pela bola de fogo em
forma de uma intensa pulsação de "luz de bomba". Sob o aspecto espectral,
essa luz é muito semelhante à luz solar, salvo pelo fato de ser altamente
concentrada. Por exemplo, a uma distância de 10 quilômetros de uma explosão
aérea de 1 megaton a baixa altura, o brilho da bola de fogo atingiria 1.000 vezes
o do sol em um ou dois segundos, para em seguida enfraquecer rapidamente.
Mas nesse breve intervalo, tecidos, papel e outros materiais irradiados pela luz
de bomba seriam calcinados e se inflamariam. A pele exposta sofreria
queimaduras de terceiro grau.
O único emprego bélico de armas nucleares ocorreu em Hiroxima e
Nagasáqui em agosto de 1945. Duas bombas relativamente pequenas na faixa
de 10 a 20 quilotons de força explosiva - foram detonadas no ar sobre os centros
daquelas cidades. O que podemos dizer sobre as características dos incêndios
nucleares urbanos com base nas experiências japonesas? Primeiro, as áreas
queimadas foram muito extensas: cerca de 13 quilômetros quadrados em
Hiroxima e de 7 quilômetros quadrados em Nagasáqui. Dentro das zonas de
fogo, a maior parte dos materiais combustíveis foi consumida. Enormes
penachos de fumaça ergueram-se acima dos incêndios, e na direção do vento
caíram chuvas negras oleosas. Segundo uma narração, em Hiroxima "a
temperatura caiu rapidamente em meio à chuvarada, e em pleno verão as
pessoas tremiam de frio". Isso sugere que já de início houve um forte efeito sobre
a luz e o aquecimento, com sensível queda de temperatura sob o penacho de
fumo do incêndio.
As fotografias das duas cidades ilustram graficamente a imensa área que
pode ser reduzida a cinzas e escombros por uma bomba nuclear mesmo
pequena.
Em Hiroxima e Nagasáqui, vários efeitos nucleares concorreram para o
vulto dos incêndios. A luz de bomba provocou em vários pontos a combustão
com ou sem chamas de materiais diversos numa extensa área. O jato de ar da
explosão apagou alguns desses focos primários, mas ateou incêndios
secundários espalhando detritos incandescentes, derramando combustíveis e
produzindo fagulhas. A geração de incêndios em seguida a um terremoto é muito
semelhante à geração dos incêndios secundários produzidos por uma explosão
nuclear. O pé-de-vento também destroçou estruturas, espalhou materiais
inflamáveis e impediu combate eficiente ao fogo causando baixas nas equipes,
estrago de equipamentos, ruptura de encanamentos de água e obstrução de
ruas. A bola de fogo nuclear em ascensão produziu atrás de si uma tiragem, e a
forte circulação assim estabelecida ativou as chamas.
Os efeitos observados das explosões nucleares e incêndios no Japão
corroboram a nossa concepção das conseqüências de um ataque nuclear
maciço. É perfeitamente razoável extrapolar a destruição registrada em Hiroxima
e Nagasáqui para figurar a produzida num ataque contra uma cidade moderna
muito maior. Essa extrapolação também se justifica através de avaliações
teóricas detalhadas - efetuadas por órgãos de governo - dos efeitos de explosões
nucleares em grandes centros urbanos. Deve-se notar que as tempestades
ígneas da Segunda Guerra Mundial em Hamburgo, Dresda e outras cidades
alemãs pressagiam a ferocidade dos incêndios nucleares que ocorreriam em
metrópoles modernas. Contudo os incêndios prefigurados numa guerra nuclear
futura seriam numa escala inédita e muito mais intensos, deixando longe as
conflagrações da Segunda Guerra.
Há cinco estágios na evolução de um incêndio nuclear urbano. No primeiro
estágio, o relâmpago de luz de bomba vaporiza e incendeia matérias inflamáveis
numa extensa área. No segundo - o estágio de sopro - a onda de pressão
explosiva propaga-se pela cidade, derrubando edifícios, ateando incêndios
secundários e criando condições adversas ao trabalho dos bombeiros. Neste
ponto a bola de fogo começa a subir, criando fortes correntes de convecção
sobre a área incendiada. O terceiro estágio do incêndio desenvolve-se na esteira
da explosão. Em meio à devastação geral, muitos dos pequenos incêndios
iniciais crescem de intensidade, produzindo densos penachos de fumaça. Há
certas dúvidas sobre o curso deste estágio. É possível que, na maioria dos
casos, os incêndios continuariam a intensificar-se e a propagar-se, talvez por
vários dias. Essa queima destrutiva acabaria consumindo uma grande parte da
cidade.
Nas cidades mais compactamente edificadas, poderia, ocorrer o quarto e
mais espetacular estágio - uma "tempestade ígnea". Nesta, muitos incêndios
grandes independentes se fundem numa única e violenta massa de fogo que
envolve todo o núcleo da cidade. Numa tempestade ígnea há um rápido
desprendimento de energia térmica e um poderoso fluxo de ar acima do fogo,
com ventos ao nível do solo soprando impetuosamente para o centro com a força
de um furacão. As tempestades ígneas criam gigantescos cúmulos sobre a área
incendiada. e densas chuvas negras na direção dos ventos. No quinto e último
estágio de um incêndio nuclear urbano, só resta o esqueleto abrasado da cidade,
coberto por um manto de fumaça acre.
Estes são apenas alguns rápidos vislumbres do que poderia acontecer logo
após um ataque nuclear. Embora uma grande soma de trabalho já tenha sido
aplicada em estimar os efeitos do fogo nuclear, entre outros por Paul Crutzen,
John Birks e o grupo TTAPS, é necessário ainda muito mais para apurar a nossa
compreensão. Não obstante, todas as informações científicas aqui referidas
levam a crer que a inimaginável destruição imediata de um ataque nuclear pode
ser apenas um prelúdio de conseqüências retardadas ainda mais catastróficas
para os sobreviventes.
DR. PAUL J. CRUTZEN (membro do painel): Meu interesse neste assunto
começou há cerca de três anos, quando fui convidado a escrever um artigo para
a Ambio, a revista internacional de estudos do ambiente da Real Academia
Sueca de Ciências.
Devo confessar que, ao receber o convite para pôr-me a refletir nas
conseqüências atmosféricas de uma guerra nuclear senti uma grande relutância;
até tentei passar adiante a incumbência. Mas a editora-chefe, Jeannie Peterson,
insistiu em que eu escrevesse a respeito, e eu por fim capitulei e passei a
trabalhar no tema, junto com o Dr. John Birks.
Começamos, por reexaminar a questão da perturbação do ozônio. Sabia-se
pelo estudo de 1975 da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos que
haveria empobrecimento de ozônio quando os óxidos de nitrogênio produzidos
por explosões nucleares atingissem a estratosfera. Depois disso, porém, viemos
a verificar que os óxidos de nitrogênio, embora destruam o ozônio na
estratosfera, quando depositados na troposfera têm o efeito oposto, produzindo
ozônio. Foi este o primeiro ponto por nós considerado. Quando NO e NO2
entram em ação, a oxidação do monóxido de carbono com duas moléculas de
oxigênio dá origem a CO2 e ozônio como produtos finais.
Isso constituía uma importante modificação em relação ao que se conhecia
a partir do relatório de 1975. Tendo conseguido assim alguma coisa sobre que
trabalhar, estabelecemos novas estimativas da formação de ozônio na troposfera
pelas reações do smog anteriormente mencionadas nesta Conferência.
Enquanto esse trabalho prosseguia, voltamos também nossa atenção para
a absorção de luz solar pelo dióxido de nitrogênio, que é parte do esquema.
Apuramos que os resultados eram significativos. Entretanto, trabalhando nesse
assunto, ocorreu-nos de repente que no caso de ataques a cidades, pressuposto
no cenário de guerra nuclear elaborado pela Ambio, seriam ateados inúmeros
incêndios. O fumo, naturalmente, invadiria a atmosfera. E assim passamos a
raciocinar sobre a absorção de luz solar pelas partículas de fuligem negra em
suspensão.
A idéia ocorreu-nos apenas três meses antes da data aprazada para a
entrega do artigo à Ambio. Havíamos levantado uma questão momentosa a
respeito da qual tínhamos pouquíssimas informações, elevamos cerca de dois
meses à procura de estudos que tratassem do problema. Não encontramos
nenhum (sabemos hoje que nada existia na literatura). A princípio isso deixou-
nos muito, nervosos. Imaginamos que os militares já deviam ter investigado o
assunto, mas que não teríamos acesso às conclusões. Não somos especialistas
em física de aerossóis e transferência de radiação; mesmo assim, resolvemos
enveredar por esse rumo. Na primeira fase da análise, examinei principalmente
um fenômeno de que possuía algum conhecimento: incêndios florestais.
Juntamente com alguns colegas, eu andara pesquisando efeitos atmosféricos de
incêndios florestais nas regiões tropicais do Brasil.
Estimamos a quantidade de fuligem que seria produzida numa guerra
nuclear. Para grande surpresa nossa, verificamos que a fumaça e fuligem dos
incêndios interceptaria uma grande porção da luz solar que normalmente chega
à superfície da Terra.
Darei ciência aos senhores de alguns resultados de outro estudo que
realizei com o Dr. lan Galbally da CSIRO na Austrália, em que procuramos
estimar a quantidade de fumaça que seria produzida por incêndios urbanos e
industriais. Embora na memória original de Crutzen-Birks esse ponto fosse
mencionado como potencialmente de enorme importância, estes novos
resultados não constaram daquele trabalho.
No novo estudo, o Dr. Galbally e eu consideramos a coagulação e as
propriedades ópticas das partículas de aerossol. As partículas que nos
interessam são principalmente as da faixa compreendida entre um décimo de
micro e um micro. Em sua maior parte, as partículas produzidas por incêndios
florestais têm inicialmente cerca de um décimo de micro de diâmetro. Por
coagulação, elas aumentam de tamanho. Enquanto não ultrapassam um micro,
são eficientes no bloqueio da luz solar; e as partículas dessa faixa de tamanho
são as que persistem por mais tempo na atmosfera. Calculando as propriedades
ópticas efetivas das partículas em função das suas dimensões (relação entre os
tamanhos das partículas e os comprimentos de onda), aplicamos fatores de
eficiência medidos para absorção e dispersão da luz. Consideramos também a
coagulação de partículas, pois quando estas se agregam tornam-se menos
eficientes por grama de material em absorver e dispersar a luz.
Ao calcular a quantidade de material que queimaria no caso de incêndios
em cidades, admitimos que um pulso de calor de 20 calorias por centímetro
quadrado seria suficiente para iniciar incêndios extensos. Pode ser uma
estimativa moderada. Coincide com a experiência no caso de Nagasáqui, mas no
de Hiroxima um pulso de calor da ordem de apenas 7 calorias por centímetro
quadrado foi suficiente para atear incêndios em massa.
Nossos cálculos, baseados no cenário de guerra nuclear da Ambio,
mostram que mais ou menos meio milhão de quilômetros quadrados de cidades
queimariam. Admitiu-se que a massa de matérias combustíveis em cidades fosse
da ordem de 40 quilos por metro quadrado. Parece-me que esse valor foi
consideravelmente subestimado, pois na maior parte das grandes cidades, pelo
menos no leste dos Estados Unidos e na Europa, a massa de matérias
combustíveis deve ser em torno de 200 quilos ou mais por metro quadrado.
Admitiu-se também que só metade do material queimaria, porque o sopro
das detonações apagaria incêndios. Como esse sopro também pode atear outros
incêndios, esta é uma área de incerteza. Em razão dessa indeterminação, é
possível que tenhamos calculado por baixo. Isto reflete uma decisão consciente
que adotamos no trato da questão. Mesmo partindo de hipóteses moderadas, os
resultados são tão impressionantes que não há risco de exagero, principalmente
quando demonstrando a importância de um estudo desse alcance. Nossa
intenção era evitar que as nossas estimativas pecassem por excesso. No total,
nossa análise mostrou uma produção de 300 a 400 milhões de toneladas de
fumaça, das quais 30% seriam de carbono elementar, que absorve fortemente a
luz (Quadro 1).
Nosso estudo indica que na faixa situada entre 30 e 60 graus de latitude
norte, onde de início ocorreriam os incêndios (área total de aproximadamente 6 x
10 elevado a 13 metros quadrados), praticamente nenhuma luz solar penetraria.
A luz solar ao nível do solo seria menos de um milionésimo da normal.
Em seguida, a fumaça seria transportada em grandes extensões, da
troposfera, e depois de um mês cobriria a maior parte do Hemisfério Norte.
Entrando na atmosfera, as partículas têm uma vida de 10 a 30 dias, e quando
alcançam a estratosfera a sua duração é ainda maior, resultando em diferentes
graus de transmissão da luz solar à superfície da Terra.
Nossos cálculos mostram que ao fim de um mês, considerando uma vida de
30 dias das partículas em suspensão na atmosfera, e também o efeito da
coagulação, não mais que 10% da luz solar alcançariam o solo. Com
persistência mais curta das partículas, é claro, a quantidade de luz atingindo a
superfície seria maior. Mas mesmo nesses casos, de 10 a 20% da luz solar
seriam interceptados.
Inversamente, se a persistência das partículas em suspensão fosse maior,
a situação seria muitíssimo pior. Neste ponto eu encerro a minha intervenção,
pois o grupo TTAPS dispõe dos modelos para prosseguir daqui. Eles já
apresentaram os seus impressionantes resultados, e com relação a esse
trabalho eu nada tenho a criticar. São especialistas de alta competência em
pesquisas climáticas, e dispõe dos melhores modelos no campo da radiação. Por
isso, suas conclusões devem ser vistas com grande seriedade.

DR. GEORGIY S. GOLITSYN (membro do painel): Há cerca de meio ano,


pediram-me que refletisse nas conseqüências atmosféricas e climáticas de um
conflito nuclear global.
Por muitos anos eu me ocupei de estudos planetários e participei nos
programas espaciais da União Soviética para Marte e Vênus. Dediquei cerca de
um ano e meio ao estudo das tempestades de poeira.
As tempestades de poeira de Marte originam-se numa faixa bastante
estreita, temperada, de latitudes do hemisfério sul do planeta. Em poucas
semanas uma tempestade de poeira espalha-se sobre o planeta inteiro.
Esse efeito de expansão deve-se principalmente à forte realimentação não linear.
A luz solar é absorvida pelas nuvens de poeira, aquecendo a atmosfera no seu
interior, ao passo que nas regiões adjacentes a atmosfera é limpa e permanece
fria. Em conseqüência, cria-se uma circulação local de mesoscala que concorre
para espalhar a nuvem por sobre todo o globo com grande rapidez.
O próximo membro do painel irá mostrar como isso atua nos modelos de
circulação geral. Mas os modelos devem ser verificados, e eu penso que o
exemplo de Marte serve bem para aferir as nossas previsões.
O exame dos resultados do estudo, marciano suscitou esta pergunta: Que
importância tem isso para a humanidade? Vemos agora que eles servem a uma
necessidade básica: têm relação com a nossa sobrevivência. Mostram o que
poderia acontecer.
Durante uma tempestade de poeira a temperatura cai consideravelmente;
isto foi registrado por sondas Viking ao longo de vários anos na superfície de
Marte. Com a chegada de uma tempestade de poeira a temperatura baixa entre
10 e 15ºC. Nosso modelo simples mostra claramente essa queda de
temperatura.
Com o advento de tempestades de poeira, o gradiente vertical de
temperatura da atmosfera marciana torna-se muito estável. A atmosfera torna-se
quase isotérmica. E isso tem uma profunda influência na estrutura da circulação
geral. Com o aumento da estabilidade estática, a chamada instabilidade
baroclínica da atmosfera, responsável pela formação de ciclones, é amortecida.
Na atmosfera limpa de Marte os ciclones são muito regulares, muito mais
regulares que na Terra. Mas quando chega a poeira, os ciclones deixam de
existir, em conformidade com a teoria. É de esperar que o mesmo acontecesse
na Terra, com a nuvem de fumaça e pó cobrindo o nosso planeta.
Como foi mencionado por Carl Sagan, eu tenho algumas concepções sobre
como e por que uma nuvem dessa espécie poderia influir seriamente no ciclo
hidrológico. Esse ciclo é importantíssimo - e não só para nós seres humanos -
porque continuamente recicla o suprimento de água da Terra. E é principalmente
pelas chuvas que a poeira, fuligem e outros aerossóis são eliminados da
atmosfera.
No caso da formação de uma nuvem nuclear de fumaça e poeira, o que
sucederia ao ciclo hidrológico? Haveria muito maior estabilidade estática - um
gradiente quase isotérmico - e até mesmo inversões. Com isso, o ritmo de trocas
de água entre a superfície e a atmosfera por efeito de calor poderia ser
seriamente afetado. Isto está bem claro, porque a micrometeorologia da camada
limítrofe é bem conhecida.
Há uma outra observação que eu fiz quando estudava as tempestades de
poeira, há uns 10 ou 12 anos. A atmosfera, quando carregada , de partículas
pesadas, como poeira, adquire estabilidade adicional porque a poeira é mantida
em suspensão pelas turbulências. Deste modo a estabilidade atmosférica é
aumentada, reduzindo grandemente as trocas de calor e água com a superfície
subjacente.
Por esta simples razão, haverá menos umidade absoluta, isto é, menos
vapor de água na atmosfera. A atmosfera se aquecerá, como foi demonstrado
por Carl Sagan, e como o nosso modelo também mostra. A umidade relativa da
atmosfera diminuirá consideravelmente, e as condições necessárias à
condensação de gotículas de água estariam praticamente ausentes.
As condições de condensação seriam ainda menos favoráveis numa
atmosfera densamente carregada de partículas de aerossol. A competição entre
os centros de condensação, se os dois primeiros efeitos estivessem operando,
impediriam as gotículas de água de atingir as dimensões de gotículas de chuva.
Outro efeito climático potencial que me ocorreu relaciona-se com a
diferença de temperatura entre os mares e os continentes. Os mares não
esfriariam tanto quanto os continentes, e assim se conservariam mais quentes
que estes. Isto poderia resultar numa circulação do tipo da monção, no caso a
monção de inverno.
Eu concordo com as pessoas que disseram aqui haver razões para esperar
muitas outras conseqüências negativas que ainda não nos ocorreram.

DR. STEPHEN H. SCHNEIDER (membro do painel): Eu gostaria de falar-


lhes sobre "solidez". É uma palavra que os senhores ouviram várias vezes nesta
Conferência, principalmente na sessão de perguntas e respostas. Refere-se ao
fato de que os cálculos resistem a críticas.
Os senhores também ouviram Paul Crutzen, Carl Sagan e outros
declararem que houve em cada um dos elementos grandes incertezas, as quais
se traduziram em divergências com respeito a detalhes, mas em concordância
quanto aos princípios gerais. "Como é possível?", ouvi várias pessoas
murmurarem no auditório. Por isso abordarei esse ponto.
Mostrar-lhes-ei também os pressupostos básicos adotados num modelo
tridimensional de cálculo que desenvolvemos. Começamos com o nosso modelo
de circulação geral, e introduzimos nele um aerossol de fumaça. O valor que
aplicamos é de 200 milhões de toneladas métricas, distribuídas uniformemente
entre 300 e 700 de latitude norte. Esse valor baseia-se no "caso de referência"
do último estudo da Academia Nacional de Ciências, presidido por George
Charrier. Essa quantidade de fumaça leva a uma profundidade ótica de absorção
igual a três.
A profundidade ótica é um valor determinado pela quantidade de partículas
em suspensão na atmosfera no trajeto de um feixe luminoso diretamente
incidente. Nossa profundidade ótica de absorção de três foi aplicada a uma faixa
entre 30 e 70 graus de latitude norte. Se a nuvem de fumaça cobrisse o
hemisfério inteiro, a profundidade ótica seria cerca de 1,5. E se certos processos,
de que falarei adiante, fizessem a fumaça espalhar-se globalmente sem
nenhuma forma de eliminação, a profundidade óptica seria da ordem de 0,7.
Diria alguém: "Então o que há de sólido? A profundidade óptica parece
estar diminuindo muito rapidamente." Mas agora deve-se considerar a
quantidade de luz que passaria; é o que se chama transmissão. Como os raios
do sol têm uma trajetória oblíqua, o ângulo típico multiplica o percurso dos raios
por dois. Assim, para uma profundidade ótica de absorção igual a três entre 30ºN
e 70ºN, apenas cerca de 0,2 a 1% da luz do sol atravessaria a nuvem de fumaça
no cenário de latitudes médias, o que quase certamente resultaria em
escurecimento e frio, como foi dito. Em base hemisférica, passariam cerca de 5%
da luz solar, pois no Hemisfério Norte 95% seriam absorvidos pela nuvem de
fumaça. Isto é perfeitamente coerente com o cenário de referência do TTAPS.
Em base global, 200 milhões de toneladas de fumaça resultam em que a
transmissão seria da ordem de 25%, significando que 75% da luz solar seriam
absorvidos acima da superfície. Isto ainda implica um distúrbio climático de
grandes proporções.
Os resultados mostram-se sólidos porque o valor de 200 milhões de
toneladas métricas adotado para a quantidade total de fumaça está longe de
representar o pior caso; um caso pior pode envolver uma quantidade várias
vezes maior de fumaça e pó. Há quem argumente que processos de eliminação
e outros fenômenos poderiam reduzir esse valor. No entanto, dada a natureza
exponencial da profundidade ótica, fica ainda uma boa probabilidade, pelo
menos em extensas áreas do Hemisfério Norte, de que a maior parte da luz solar
seria absorvida acima da superfície durante as primeiras semanas depois dos
incêndios.
O que significam essas profundidades óticas de absorção no cálculo de um
modelo de clima? Existem diferenças entre modelos de uma, duas e três
dimensões, e o tempo não me permite abordar mais que um ou dois detalhes
dessas diferenças. Os modelos unidimensionais usados nos relatórios TTAPS
supõem a atmosfera passiva, isto é, que basicamente ela fica como está e irradia
energia para cima e para baixo. Introduz-se a fumaça, ou a poeira, e calculam-se
as temperaturas com base na troca de energia radiante. O que acontece no
mundo real, é claro, é que a fumaça e a poeira se dispersarão absorvendo
energia solar que modificará as temperaturas atmosféricas, o que, por sua vez,
causará uma perturbação nos movimentos da atmosfera, que transportarão a
fumaça em diversas direções. Isso pode agravar ou reduzir os efeitos climáticos;
isto é, pode produzir realimentação negativa ou positiva dos resultados do
modelo de clima. O que agora podemos fazer com o nosso modelo
tridimensional é contar apenas metade da história. Podemos introduzir a fumaça,
que então perturba os movimentos; podemos observar como os movimentos são
perturbados, como isso influi na temperatura e a probabilidade de a fumaça ser
transportada para fora da zona de guerra. Infelizmente, nem nós do NCAR
(Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas) nem ninguém mais foi ainda capaz
de tomar essa fumaça e transportá-Ia de um lado para outro no modelo de modo
realista, o que, como eu disse antes, poderia melhorar ou piorar a situação.
Falarei agora de alguns resultados de modelo que dão margem a especulações
quantitativas com relação a uma e outra possibilidade.
Trabalhando com um modelo tridimensional, meus colegas Curt Covey e
Starley Thompson e eu consideramos primeiro um caso de julho em que 200
milhões de toneladas métricas de fumaça se distribuíssem uniformemente entre
aproximadamente 30 e 70 graus de latitude no Hemisfério Norte. Verificamos que
haveria perturbações importantes da temperatura da atmosfera. Haveria altas
temperaturas atmosféricas no plano superior da nuvem, e intenso esfriamento
abaixo dela, próximo à superfície, nas áreas continentais. A temperatura na
nuvem aumentaria da ordem de 80ºC, e o ar abaixo da nuvem ficaria mais frio.
Nesse caso a temperatura máxima na alta atmosfera seria de uns 300 graus
Kelvin (27ºC) e ocorreria entre 50 e 70 graus de latitude e a uns 8.000 metros de
altitude. Também isto é coerente com os resultados do TTAPS, ainda que os
números sejam diferentes, porque o nosso modelo é sazonal e tridimensional,
levando em conta os efeitos dos ventos, e o TTAPS é um modelo
unidimensional, com base em médias anuais e sem efeitos dos ventos.
Vejamos agora as temperaturas superficiais, ainda para um caso de julho.
Temos três ilustrações (Fig. 1). A primeira (t = 0) é o caso de controle,
representando as temperaturas normais típicas de um dia de julho. Nas áreas
hachuradas as temperaturas são inferiores a 270 graus Kelvin ou menos três
graus centígrados.
A segunda ilustração mostra o que acontece dois dias depois da injeção de
uma nuvem de fumaça entre as latitudes de 30ºN e 70ºN. Há temperaturas de
congelamento da água no noroeste dos Estados Unidos, bem como em bolsões
na Europa central, no planalto tibetano e numa parte da URSS. O que
aconteceu, naturalmente, é que a luz do sol foi em grande parte interceptada e
as temperaturas de julho caíram abaixo do ponto de congelamento no espaço de
apenas dois dias. A princípio esses resultados nos surpreenderam, até que nos
lembramos de que a diferença de temperatura da noite para o dia é da ordem de
5 a 20ºC. Assim, dois dias sem quase nenhuma luz alcançando a superfície da
Terra equivalem mais ou menos a quatro noites contínuas; portanto não chega a
ser tão espantoso que as temperaturas caiam tão depressa.
Figura 1: Temperatura superficial no modelo NCAR de perturbação por
fumaça: simulação de julho, em três instantes dados. t = 0 dias é o tempo
imediatamente anterior à introdução de fumaça na atmosfera. As isotermas são
traçadas de 10 em 10 graus K. As áreas com temperaturas inferiores a 2700K
(i.e., abaixo do ponto de congelamento da água) são hachuradas. O valor
máximo das isotermas na zona tropical é de 300ºK (27ºC). (Fonte: C. Covey,
S.H. Schneider e S. L. Thompson, "Global Atmospheric Effects of Massive
Smoke Injections from a Nuclear War: Results from General Circulation Model
Simulations", Nature, Vol. 308, pp. 21-25, março de 1984.)

A terceira ilustração representa a situação 10 dias após a introdução da


fumaça na atmosfera do modelo. A essa altura o frio se espalhou e a
temperatura caiu bem abaixo do ponto de congelamento em regiões extensas da
América do Norte e da Eurásia. Na Europa faz menos frio que no Dia 2, em parte
porque a perturbação resultou em ventos mais fortes do mar para a terra, o que
tende a reduzir o efeito de esfriamento. Em média, as temperaturas na superfície
das terras caem 20ºC em julho, e talvez metade disso no caso de abril.
Também usamos o modelo para estudar as alterações dos ventos.
Considere-se, por exemplo, o mês de abril (ver Fig. 2). Em condições normais, o
ar sobe na faixa do equador e zona tropical, depois inflete para fora e desce nas
zonas subtropicais dos dois hemisférios. Essa é a maneira normal, e recebe o
nome de circulação tropical de Hadley. Mas 16 a 20 dias depois do aparecimento
da fumaça, o comportamento dos ventos seria muito diferente. Daqui a pouco,
Vladimir Aleksandrov irá mostrar-lhes uma simulação russa que é bastante
semelhante à nossa no NCAR.
Em contraste com a circulação normal de Hadley, o comportamento
alterado dos ventos de julho, ou de abril, seria como o de um outro planeta. Em
razão das mudanças na circulação atmosférica, provavelmente a fumaça subiria
nas latitudes médias e em seguida seria arrastada para o Hemisfério Sul. Sem
dúvida isto vem reforçar quantitativamente certas especulações do ano passado
de que a fumaça ou poeira seria carreada para o alto, atingindo a estratosfera e
passando para o outro lado do equador. Infelizmente no modelo NCAR a fumaça
não interage com os ventos, de modo que é difícil dizer se a nuvem se espalharia
mais depressa ou mais devagar do que indicam os nossos mapas de ventos
alterados. Também, a resolução do nosso modelo é muito grosseira para permitir
uma simulação realista dos efeitos da chamada "mistura de mesoscala", que
poderiam remover e dispersar a fumaça em tempos diferentes dos previstos.
Nossos estudos também mostram que as mudanças de circulação variam
consideravelmente de uma estação para outra. São muito mais pronunciadas em
julho e menos em janeiro, embora sejamos levados a crer que uma parte da
fumaça poderia ser transportada para fora das latitudes médias do Hemisfério
Norte em qualquer estação. É preciso examinar os resultados obtidos de
modelos tridimensionais com processos interativos de radiação, remoção e
transporte para chegar a um grau razoável de segurança quantitativa. No entanto
tudo que até aqui vimos sugere que, embora os detalhes dos diversos estudos
atmosféricos das conseqüências de uma guerra nuclear variem, o quadro básico
de grave preocupação subsiste. E nós continuamos trabalhando para comprovar
com precisão a solidez dos resultados finais.

DR. VLADIMIR ALEKSANDROV (membro do painel): Eu gostaria de exibir


alguns dos resultados por nós obtidos com emprego de um modelo
tridimensional hidrodinâmico de clima no Centro de Computação da Academia de
Ciências da URSS. O programa de clima que usamos foi criado alguns anos
atrás. O trabalho que vou apresentar foi inspirado pela minha participação num
seminário em Cambridge em abril de 1983, promovido pela Conferência sobre o
Mundo após uma Guerra Nuclear.
Aplicando o cenário TTAPS, nós espalhamos os poluentes - fuligem e
poeira - uniformemente sobre o Hemisfério Norte no tempo zero, isto é,
imediatamente após uma guerra nuclear. A fuligem e a poeira em suspensão
absorvem energia, de modo que a nuvem de poluentes se aqueceria; mas
embaixo, próximo à superfície da Terra, haveria queda de temperatura.
Quarenta dias depois da formação da nuvem de fuligem e poeira (Fig. 3), a
temperatura no Hemisfério Norte teria caído em 20 graus centígrados. E ao fim
de oito meses, 243 dias após o Dia 0, a baixa de temperatura ainda seria da
ordem de 10 graus centígrados.
A taxa de declínio, ou o gradiente vertical de temperatura do ar, mostra
como a temperatura atmosférica varia com a altitude. Nosso modelo demonstrou
que haveria fortes desvios da taxa normal de declínio em seguida a uma guerra
nuclear. Isto poderia alterar a circulação geral, suprimindo consideravelmente o
movimento vertical da atmosfera. O ciclo hidrológico seria interrompido,
impedindo a lavagem natural da poeira e fuligem da atmosfera pelas chuvas.
Figura 2: Circulação atmosférica no modelo do INCAR para a simulação de
abril. As setas indicam a direção do movimento. O tempo médio corresponde aos
Dias 16 a 20. A área da carga de fumaça introduzida é indicada pelo retângulo
tracejado. São mostrados o caso de controle (simulação sem fumaça) e o caso
de perturbação (ensaio de fumaça). O padrão circulatório normal é drasticamente
alterado no caso de perturbação (Fonte: S. L. Thompson, V. V. Aleksandrov, G.
L. Stenchikov, S. H. Schneider, C. Covey e R. M. Chervin, “Global Climatic
Consequences of Nuclear War: Simulations with Three-Dimensional Models”, no
prelo, Ambio).

Figura 3: A variação das temperaturas do ar na superfície (graus


centígrados) com a latitude, do Pólo Norte ao Pólo Sul, nos Dias 40, 243 e 378
após o começo de uma guerra nuclear.
Figura 4: Circulação atmosférica nos Dias 0 (a) e 297 (b).

Figura 5: A mudança de temperatura do ar na superfície no Dia 40. Linhas


cheias – temperatura de 0ºC ou menos. Cada isoterma representa uma diferença
de cinco graus para mais ou para menos em relação à vizinha.
Figura 6: A mudança de temperatura do ar na superfície no Dia 243. As
linhas cheias indicam temperatura de 0ºC ou menos. As linhas interrompidas
indicam temperaturas acima de 0ºC.

Também estudamos a função fluxo; Stephen Schneider já mostrou os


resultados análogos do seu estudo. Verificamos que os padrões de circulação
geral da atmosfera mudariam drasticamente: mesmo 297 dias após a injeção da
fuligem e poeira (Fig. 4b), os padrões de circulação natural ter-se-iam alterado a
um ponto tal que a fuligem e a poeira atmosféricas produzidas no Hemisfério
Norte seriam transportadas para o Hemisfério Sul. Assim, a situação do
Hemisfério Sul, incluídas as zonas tropicais, seria tão má quanto a do Hemisfério
Norte.
Num espaço de 40 dias a contar do Dia O (Fig. 5), a temperatura superficial
na parte ocidental dos Estados Unidos teria baixado em até 30 graus
centígrados, no leste dos Estados Unidos em até 40ºC, na Europa em até 50ºC,
no golfo Pérsico em até 50ºC e no Ártico em até 15ºC.
Oito meses (242 dias) após a injeção de poeira e fumaça na atmosfera, a
temperatura nos Estados Unidos e na União Soviética ainda estaria 30ºC abaixo
da normal (Fig. 6). Na Arábia Saudita estaria 20ºC abaixo da normal; na África,
até 10ºC abaixo da normal. Ao fazermos esses cálculos, nós não levamos em
conta o transporte de fuligem e poeira dos Hemisférios Norte e Sul (embora
devêssemos tê-Io feito). Se tivéssemos considerado esse efeito em nossos
cálculos, a situação no Hemisfério Sul seria ainda mais séria que a mostrada nas
ilustrações.
Eu gostaria de ressaltar a importância de um certo efeito que descobrimos
quando trabalhávamos nessa simulação. Oito meses depois do surgimento da
fuligem e poeira, a parte superior da troposfera torna-se muito quente e altitudes
menores muito frias. Em conseqüência, os sistemas de montanhas altas seriam
submetidos a um aquecimento intenso: o ar no planalto tibetano ficaria até 20ºC
mais quente que o normal, e nas Montanhas Rochosas até 7ºC mais quente que
o normal. Isso causaria a fusão da neve e das geleiras das montanhas,
provavelmente resultando em enchentes de dimensões continentais - repito, para
frisar: de dimensões continentais.
Agora voltamos nossa atenção para a dinâmica da função fluxo da
circulação geral. Devido às perturbações causadas pela fuligem e poeira, o ramo
sul da Célula de Hadley aumentaria de intensidade e Se deslocaria para o sul em
35 dias a contar do Dia 0. Em conseqüência, a fuligem e poeira do Hemisfério
Norte seriam carreadas para o Hemisfério Sul. Ao mesmo tempo, a intensidade
do ramo norte da Célula de Hadley de circulação geral reduzir-se-ia umas 10
vezes. A mesma tendência continuaria até o Dia 70. Até o Dia 105, o padrão da
função de fluxo normal estaria completamente alterado.
Eu gostaria de frisar que as nossas experiências foram extremamente
simples. O meio que estudamos, o ar, é fluido, portanto procuramos calcular
como esse fluido reagiria à variação de densidade ótica induzi da pelas
conseqüências de uma guerra nuclear.
Foi nesta Conferência que vi pela primeira vez as ilustrações apresentadas
por Steve Schneider relativas ao trabalho feito no Centro Nacional de Pesquisa
Atmosférica. Tive grande satisfação em ver que embora os seus experimentos
sejam completamente diferentes dos nossos - os modelos são diferentes e os
computadores também - os resultados são basicamente os mesmos.

Perguntas

DR. THOMAS MALONE: Este painel mostrou que existem análises


científicas amplas e diversificadas que corroboram a apresentação de Carl
Sagan.

DR GEORGE M. WOODWELL: Estamos todos impressionados pelo caráter


óbvio dessas revelações. Ao mesmo tempo que impressionado, sinto-me um
tanto curioso quanto ao porquê de não termos sabido isso antes. É raro alcançar
uma tal unanimidade entre a comunidade científica, e isto deve significar que
estamos tratando de matéria de senso comum. Por que, então, terão sido
precisos 38 anos para que essa brilhante e capacitada comunidade científica se
pusesse de acordo num tema de tanta importância e magnitude?
MALONE: Estávamos à espera de que um Paul Crutzen nos estimulasse as
idéias.

JOHN STEINBACK: Se a temperatura sobe radicalmente, rompendo o ciclo


hidrológico, não ocorreria uma acumulação gradual de evaporação na
atmosfera? E após um tempo, quando as partículas de pó começassem a
assentar, não sobreviriam a certa altura, bem depois do cataclismo, chuvas
torrenciais de grande intensidade que desnudariam por completo a vegetação?

DR. STEPHEN SCHNEIDER: Eu confio muito pouco nas projeções dos


nossos modelos além de uma ou duas semanas, simplesmente porque eles não
são interativos: não misturam a fumaça a outras coisas. Portanto, qualquer coisa
que eu dissesse seria pura especulação intuitiva. E a resposta intuitiva que eu
lhe daria é: "Depende." As temperaturas dos mares não mudariam muito. A
evaporação poderia diminuir. Nosso modelo sugere que as camadas inferiores
da atmosfera teriam maior umidade relativa, mas menor umidade absoluta, e as
camadas mais altas muito pouca umidade e ausência de nuvens. O que
aconteceria em relação a chuvas é muito difícil de prever, se bem que, em
ocorrendo modificações de tamanha envergadura, quase tudo pode acontecer.

DR. ALAN ROBOCK (professor de Meteorologia do Departamento de


Meteorologia da Universidade de Maryland): Recentemente, Cliff Mass e eu
fizemos um estudo que, penso eu, constitui um bom análogo para o que
aconteceria com a nuvem de poeira. Nós examinamos as temperaturas
superficiais depois da erupção vulcânica do Monte St. Helens, quando a
atmosfera ficou saturada de pó por vários dias. Verificamos que as temperaturas
superficiais não baixaram, mas que permaneceram relativamente constantes. As
noites foram mais quentes do que seriam sem a poeira, e os dias mais frios do
que seria de esperar. Interpretamos o fato como significando que a superfície
estava entrando em equilíbrio com a atmosfera saturada de pó, e que,
completamente isolada da radiação solar provinda do espaço exterior, não
esfriava porque era aquecida pela radiação infravermelha da poeira.
Eu perguntaria aos elaboradores do modelo: os senhores levaram em
consideração a radiação de ondas longas em seus cálculos? Porque se se
elimina a radiação de ondas curtas haverá, naturalmente, um efeito de
esfriamento. Mas a camada quente de poeira em suspensão deveria produzir um
efeito de aquecimento na superfície.

SCHNEIDER: Eu gostaria de comentar esse ponto. A situação de pós-


guerra nuclear não seria, a meu ver, análoga à do Monte St. Helens.
As propriedades dos aerossóis de fumaça nuclear, ao que nos é dado
observar, são tais que a opacidade ao infravermelho é uma ordem de grandeza
inferior à opacidade à luz visível. Para uma profundidade ótica de 3 a 5 no
espectro visível, a profundidade ótica no infravermelho é menos de 1. Por isso a
luz solar é bloqueada em grandes altitudes, e a superfície ainda esfria pela
irradiação de energia de infravermelho para o espaço através da camada de
fumaça. Daí resulta uma inversão progressiva, e esta é a explicação para o
esfriamento da superfície.
De fato, se houvesse dez vezes mais fumaça, talvez se evitasse um
esfriamento pronunciado da superfície, pois se a opacidade da atmosfera ao
infravermelho é suficientemente grande, a atmosfera torna-se quase isotérmica,
como no caso da nuvem de cinzas do Monte St. Helens. É irônico que, no caso
peculiar de um excesso de fumaça, o efeito de esfriamento da superfície poderia
desaparecer. (posteriormente, quando parte da fumaça se dissipasse, o
esfriamento ocorreria.) Só quando a opacidade visível da fumaça está na faixa
de 1 a 10 é que a opacidade ao infravermelho é tão baixa que na verdade deixa
de ser um fator importante. Pelo menos é o que mostram os modelos
unidimensionais de radiação-convecção.

DR. PETER SHARFMAN (Comissão de Avaliação Tecnológica do


Congresso dos Estados Unidos): Refletindo a exposição anterior do Dr. Sagan,
não consigo perceber de que forma a quantidade de fuligem na atmosfera
responde a diferentes fatores: número de armas, megatonagem total, ou talvez
megatonagem equivalente total; ou percentagem de explosões sobre áreas
urbanas, florestas ou silos de mísseis; ou explosões de superfície em silos de
mísseis. Alguém do painel poderia explicar como essas coisas se relacionam?

DR. RICHARD TURCO: Os valores relativos à quantidade de fuligem são


função da potência explosiva total sobre áreas urbanizadas e sobre florestas;
naturalmente, isso depende dos cenários. No estudo TTAPS nós levamos em
conta um grande número de cenários e uma ampla gama de suposições com
respeito a ataques dirigidos a cidades ou arredores de cidades. As emissões de
fuligem dependem em alto grau do número de explosões sobre áreas urbanas,
as quais contêm a maior concentração de matérias inflamáveis que produzem a
fumaça mais escura. Não obstante, explosões sobre florestas e pastagens
podem gerar quantidades adicionais de fumaça. Outros fatores importantes são a
carga de materiais combustíveis e a probabilidade de queima, e quanto a isto os
dados disponíveis são limitados.

DR. J. ALLAN KEAST (professor de Biologia da Universidade Queens em


Kingston, Ontário, Canadá): Poderia o Dr. Schneider ou o Dr. Aleksandrov
pormenorizar o mecanismo de transferência de material do Hemisfério Norte
para o Sul? Segundo o Dr. Aleksandrov, uma transferência substancial
começaria em cerca de 35 dias. O Dr. Sagan, se bem entendi, mencionou uma
diferença de temperatura que afetaria em grau considerável esse movimento. De
acordo com o cenário que nos foi apresentado, haveria a formação inicial de uma
frente de fumaça no Hemisfério Norte, que em seguida se deslocaria
rapidamente para o Sol. Que mecanismo determinaria isso, e o deslocamento
não seria de penachos em vez de em massa?

ALEKSANDROV: Nossos enfoques iniciais deste problema mostram que a


transferência deve refletir-se no modelo elaborado. Embora os resultados
possam até certo ponto variar, a variação deve-se a que a transferência da
nuvem de fuligem e poeira para o Hemisfério Sul produziria resultados bastante
diferentes na situação por mim apresentada e na que foi apresentada pelo Dr.
Schneider. Portanto é essencial considerar a transferência para o Hemisfério Sul.
SCHNEIDER: O cavalheiro da Universidade Queens está absolutamente
certo; o mecanismo de transporte que encontramos não é um movimento
meridional médio de baixa velocidade. Lembre-se, também, de que o nosso
modelo não é interativo. Nós verificamos que o movimento médio em direção ao
Sul em abril e julho é da ordem de 3 a 5 metros por segundo no ramo superior da
Célula de Hadley alterada, de modo que levaria três semanas para deslocar a
fuligem das latitudes médias para a zona tropical se fosse esse o mecanismo de
transporte.
O movimento médio é o resíduo de muitos jatos pequenos, e esses jatos
têm velocidades entre 20 e 50 metros por segundo. Isto significa que feixes ou
manchas de fuligem poderiam partir, por exemplo, da costa leste dos Estados
Unidos ou da Sibéria e chegar aos trópicos em tempo bastante curto.
Nós estudamos feixes a 500 e 200 milibares (cerca de 5 e 12 mil metros de
altitude, respectivamente). Aliás, em um dos casos que estudamos, uma mancha
de fumaça poderia ter alcançado a Austrália em mais ou menos três dias. É certo
que isto não bastaria necessariamente para cobrir de fumaça todo o Hemisfério
Sul, mas se grandes nuvens de fuligem fossem transportadas milhares de
quilômetros e persistissem ainda que por poucos dias, poderiam resultar quedas
bruscas de temperatura no espaço de alguns dias. O quadro geral seria a
princípio bastante descontínuo; haveria um grande número de feixes, que
acabariam por misturar-se.

DR. PAUL CRUTZEN: De início, nas nuvens de fumaça, principalmente na


parte superior das nuvens, o aquecimento pela radiação solar seria tão
desmedido que se formariam sistemas locais de circulação intensa. Eu calculei
uma taxa de aquecimento de 40 graus por hora na parte de cima das nuvens.
Pode-se imaginar o que aconteceria então: a fumaça subiria rapidamente para a
alta atmosfera.

ALEKSANDROV: Os penachos projetados da nuvem de pó e fuligem


podem formar gradientes de temperatura fortemente acentuados, dependendo
da latitude. No caso mencionado pelo Dr. Schneider, o quadro será
absolutamente tridimensional, e só modelos tridimensionais podem resolver
essas questões.

DR. MARTIN H. EDWARDS (diretor do Departamento de Física do Colégio


Real Militar do Canadá; ex-presidente da Federação Canadense da Natureza):
Os que não querem acreditar nos resultados destes estudos irão recorrer ao que
esperam seja uma única falha fatal na argumentação, e eu estou certo de que
alegarão o fato de já ter havido milhares de testes de armas nucleares. Houve
até casos de um único teste produzindo 58 megatons, e não ocorreu nenhum
efeito climático catastrófico. Acho que deve ser esclarecida a improcedência
dessa crítica potencial, e pediria ao painel que o fizesse.

DR. JOHN HOLDREN: Como foi dito várias vezes ontem, os testes
realizados, embora somando uma megatonagem bastante considerável,
representam eventos isolados e foram todos levados a efeito em condições que
não produziram grandes incêndios. Um dos pontos capitais que deve ser
repetidamente enfatizado é a fonte primária da diferença entre os cálculos
apresentados nesta Conferência e cálculos anteriores. Os novos cálculos levam
em conta os incêndios em grande escala e a grande produção de fuligem que,
naturalmente, não ocorreu nas circunstâncias de nenhum teste nuclear, mas que
ocorreria numa ampla gama de circunstâncias em caso de uma guerra nuclear
real.

DR. JOSEPH ROTBLAT (professor emérito de Física da Universidade de


Londres; Conferências do Conselho Pugwash sobre Ciência e Assuntos
Mundiais): Que hipóteses foram adotadas com respeito à duração do conflito
nuclear? Levaria uma hora, dias, semanas? E qual a sensibilidade do seu
modelo à duração do conflito?

TURCO: Nossa suposição foi de que uma guerra nuclear duraria um tempo
muito curto, da ordem de dias. Embora haja outros conceitos de guerra nuclear,
em que o conflito se estenderia por meses, consideramos mais realista supor
que a troca de ataques seria bastante breve. O efeito de uma guerra prolongada
dependeria da duração absoluta. Se o conflito durasse uma semana, os efeitos
óticos e climáticos seriam provavelmente piores porque o material seria mais
extensamente dispersado pelos ventos atuantes durante um maior período de
injeção. Se o conflito se estendesse por meses ou anos - se é que um tal
conceito de guerra nuclear sequer mereça ser considerado -, os efeitos do
inverno nuclear seriam possivelmente reduzidos, porque haveria tempo para que
nuvens isoladas de fumaça e poeira fossem eliminadas por processos naturais
antes que outras fossem injetadas, e não ocorreria a acumulação de detritos.

ROTBLAT: Minha observação é que, no seu cenário, 43% das explosões


são no ar. Ora, se se começasse por outras armas que produzissem uma certa
carga de partículas, especialmente na atmosfera, e depois ocorressem
explosões no ar, os produtos seriam aprisionados na troposfera e poderiam
resultar ulteriormente numa precipitação atmosférica maior. Também devemos
considerar as informações apresentadas pelo Dr. Golitsyn, que podem
contrabalançar este aspecto.
Os cálculos aqui apresentados dão um nível de radiação secundária de
cerca de 50 rads. Esses 50 rads, em raios gama externos, distribuir-se-iam por
um espaço de tempo mais longo. Portanto não produziriam sintomas sérios. A
taxa de degeneração das células sanguíneas é maior do que a taxa em que seria
recebida a radiação. Assim, creio que não devemos incluir esse efeito como
causa de afecções iniciais. Por quê? Porque há efeitos sérios à longo prazo -
efeitos carcinogênicos e possivelmente genéticos. A mim me parece que os
efeitos aqui descritos já são tão sérios que a consideração dos efeitos da
radiação pouco acrescenta às conclusões.

TURCO: O comentário sobre a exposição à precipitação radioativa é justo.


Nós só enfatizamos os valores da exposição retardada à radiação porque a sua
ordem de grandeza é maior que a anteriormente estimada. Isto faz ressaltar a
necessidade de contínua reavaliação e atualização dos efeitos potenciais de uma
guerra nuclear.

JOHN A. HARRIS (Clube de Roma): Em sua exposição, o Dr. Sagan disse


que se A atacasse e destruísse B, A seria apanhado em sua própria rede. Eu
gostaria de saber o que o painel pensa a respeito, pois isso tem implicações
políticas tremendas, como os senhores obviamente sabem. Também gostaria de
saber se os soviéticos pensam do mesmo modo.

MALONE: Haverá alguém neste painel que discorde da afirmação de Carl


Sagan de que um primeiro ataque seria de fato suicida? Não foi o que você
disse, Carl?

SAGAN: Alguns primeiros ataques não seriam suicidas. Um primeiro ataque


pode não ultrapassar o limiar. Mas a essência da maioria dos cenários de
primeiro ataque, como eu os entendo, é neutralizar decisivamente uma fração
considerável da capacidade de retaliação do outro lado. De pronto isto sugere o
emprego de grande potência explosiva, que excederia o limiar.
Há pouco, George Woodwell colocou uma questão importante, pois, pelo
que sei, os conhecimentos básicos de física e química necessários à previsão do
inverno nuclear já existiam entre 10 e 20 anos atrás. Afinal, existem grandes
departamentos nos órgãos de defesa dos Estados Unidos e da União Soviética,
com verbas de centenas de milhões de dólares por ano, cuja responsabilidade é
analisar as conseqüências de uma guerra nuclear. Ademais, é função deles
informar ao presidente dos Estados Unidos e ao presidente da União Soviética o
que pode acontecer se tais ou quais linhas de ação forem seguidas.
É portanto uma boa pergunta, para a qual também eu gostaria de ter a
resposta: por que não era tudo isso do conhecimento dos órgãos de defesa 20
anos atrás?

SCHNEIDER: Eu gostaria de responder à pergunta sobre se nós do painel


concordamos com a declaração de que um primeiro ataque seria suicida. Vários
dos doutores meus colegas e eu discutimos este ponto; é o que chamamos de
"cenário de feedback de primeiro ataque", em que o atacante é vencedor durante
duas semanas, até que a nuvem nuclear de fumaça e poeira volta sobre ele.
Mas, naturalmente, a afirmação só vale se a escala do primeiro ataque for
suficientemente grande para ultrapassar o limiar de que falamos aqui. Só que
não devemos tomar o termo "limiar" muito literalmente, pois não existe uma linha
mágica subitamente cruzada quando se passa dos 100 megatons. Como foi dito
ontem, os números correspondentes aos efeitos de super-esfriamento baseiam-
se em toda uma série de suposições; e se estas forem exageradamente
otimistas, o "limiar" para efeitos climáticos sérios pode situar-se abaixo de 100
megatons. Em suma, eu vejo a questão dos efeitos climáticos como um espectro
contínuo com probabilidade decrescente de conseqüências agravadas, isto é,
quedas rápidas localizadas de temperatura no extremo mais favorável do
espectro, e inverno nuclear global prolongado no outro extremo.
Mas se a megatonagem total atingir ou ultrapassar as vizinhanças do
chamado limiar, e muitas cidades forem atingidas, não há motivo para duvidar
que o atacante sofra os mesmos efeitos ambientais de escuridão e frio que o
atacado.

DR. KARL Z. MORGAN (professor-adjunto do Departamento de Física e


Astronomia da Universidade Estadual dos Apalaches; antes, do Laboratório
Nacional de Oak Ridge): Com respeito à radiação, a ênfase parece ter sido
colocada na exposição corporal, talvez em relação direta com a leucemia.
Contudo dever-se-ia dar mais atenção às afecções malignas que atacariam
órgãos específicos, como os pulmões, o cólon e a tiróide.
Eu gostaria de comentar outro ponto relativo à radiação. Ouvimos várias
vezes que a dose letal para 50% dos indivíduos expostos (LD50) seria em torno
de 400 a 450 rems. No entanto, havendo lesão do sistema imunológico ou do
sistema reticular do endotélio, há bons motivos para crer que a LD50 seria por
volta de 50 a 100 rems.
Por enquanto há poucos dados em relação ao homem; só há registro de 10
casos de morte por síndrome de radiação, e num desses casos, a dose estimada
de radiação foi de menos de 200 rems.

HOLDREN: Eu gostaria de frisar que o objetivo central do trabalho


apresentado nesta Conferência não foi analisar as conseqüências relativamente
imediatas de altas doses de radiação, tendo sido este um dos aspectos mais
exaustivamente estudados da guerra nuclear em pesquisas precedentes. Os
novos valores no tocante à exposição à radioatividade surgiram mais ou menos
como um resultado inesperado do estudo dos efeitos retardados. Foi o cálculo da
precipitação à médio prazo, em particular, que concorreu para valores de dose
total maiores que os anteriormente estimados. Um estudo detalhado da adição
da precipitação à médio prazo às conseqüências já bem estudadas da
precipitação imediata exigiria uma grande soma de trabalho.
Eu concordo que as questões que o senhor levantou devem ser
examinadas. E acrescentaria que as doses de radiação são importantes no
contexto deste estudo, não apenas em termos de efeitos diretos no homem -
câncer, alterações genéticas, etc. - como são de alto interesse para o ecologista,
em termos de conseqüências para os sistemas ecológicos de doses de radiação
na faixa de dezenas e centenas de rems atuando em grande escala e em vastas
extensões. Há muitos detalhes a serem estudados no futuro. No entanto
transcenderia os fins deste estudo inicial entrar nos pormenores deste tema.

SRA. MYRTLE JONES (Sociedade Audubon de Mobile Bay): É com grande


satisfação que vejo o comparecimento dos soviéticos aqui e sua participação
neste evento. Minha pergunta é: seria possível uma conferência desta natureza
na Rússia, com pessoas das mais diversas profissões discutindo este tema? E
haveria a possibilidade de os seus governantes e os nossos e os governantes da
China e da Inglaterra se reunirem em tomo de uma mesa, serem cientificados
destas descobertas e chegarem a soluções razoáveis?

DR. GEORGIY GOLITSYN: Em maio último tivemos em Moscou uma


conferência semelhante a esta, em que várias conseqüências - biológicas,
climatológicas e sócio-psicológicas - foram debatidas. Os trabalhos foram
divulgados nas Atas da Academia de Ciências de setembro.

SRA. JONES: Em inglês?

GOLITSYN: Por enquanto só em russo, mas eu tenho comigo algu mas


cópias, caso alguém se interesse. Imaginei que poderiam ser traduzidas neste
país.

PAINEL SOBRE CONSEQÜÊNCIAS BIOLÓGICAS

DR. GEORGE M. WOODWELL (presidente do Painel sobre Efeitos


Biológicos): Em se tratando de problemas complexos como estes, que afetam a
Terra inteira, e em que a experimentação e a própria coleta de dados são
difíceis, requerem-se equipes de especialistas e equipamentos complicados para
incrementos aparentemente insignificantes de progresso. Num mundo cada vez
mais complicado, cada vez mais intensivamente explorado, é essencial que haja
muitas dessas equipes realizando pesquisas redundantes. É esse o custo do uso
intensificado da biosfera: pesquisa e análise constantes de modo a assegurar
que as informações fundamentais, as idéias, os fluxos de perguntas e respostas
se mantenham, e a evitar surpresas, como estamos fazendo no momento. A
matéria é tão nova para os biólogos quanto para os meteorologistas. A
comunidade científica está criando um começo, uma nova partida para um
Grande Problema.
Nós congregamos um grupo de cientistas ilustres para iniciar esse
processo.

DR. JOHN HARTE (membro do painel): Todos nós dependemos dos


ecossistemas que nos cercam como um doente em tratamento intensivo
depende de frascos de soro e equipamentos médicos de sustentação de vida.
Empreender uma guerra nuclear seria como atirar uma banana de dinamite
acesa numa unidade de tratamento intensivo, rompendo as ligações vitais que
garantem a sobrevivência. Entre as funções essenciais de sustentação de vida
exercidas por um meio ambiente natural normal e saudável está a regulação do
ciclo hidrológico, que minimiza a ocorrência de chuvas excessivas e secas
prolongadas; um exemplo são as encostas revestidas de vegetação, que
moderam as enxurradas e abrandam a correnteza dos rios. Outra dessas
funções é a minoração da poluição do ar e das águas e o tratamento de resíduos
sólidos por processos naturais atmosféricos e microbiais. Uma terceira é a
moderação do clima, de novo exemplificada pelo papel das grandes reservas de
vegetação viva, capazes de criar um micro-clima essencial à sua própria
existência.
Nos primeiros três a seis meses após uma guerra nuclear, estas e outras
funções ecológicas seriam virtualmente suspensas. A perda de um ano de
produção agrícola será discutida por outros oradores. Quanto a mim, quero
abordar vários aspectos relacionados à água e em seguida tecer alguns
comentários gerais sobre as perspectivas de restabelecimento à longo prazo de
funções ecológicas prejudicadas.
Ao tomar conhecimento, ano passado, dos resultados do estudo TTAPS
com respeito às baixas violentas de temperatura superficial, ocorreu-me que os
reservatórios de água doce que abastecem as populações humanas e os
animais de criação ficariam congelados. Meus cálculos mostraram que haveria a
formação de uma camada de gelo de aproximadamente um metro nas águas
superficiais de regiões interiores. Sem combustível nem eletricidade para
derreter o gelo ou bombear água de poços para a superfície, muitas pessoas e
animais de criação morreriam de sede. Os níveis reduzidos de precipitação
pluviométrica previstos agravariam o problema. Nesse contexto é oportuno
observar que os sinergismos parecem trabalhar a nosso favor nas situações
normais, e voltar-se contra nós quando nós e a natureza sofremos uma
debilitação. Outro exemplo disto: com as canalizações congeladas, não haveria o
escoamento dos dejetos, exacerbando o problema das epidemias, já agravado
pela redução das resistências às moléstias e infecções induzida pela radiação.
O efeito de um período de escuridão prolongada em organismos aquáticos
foi estimado através de experiências em meu laboratório e de modelos
matemáticos elaborados pelos Drs. Chris McKay e Dave Milne. Os dois tipos de
pesquisa produziram resultados semelhantes. Cadeias alimentares compostas
de fitoplâncton, zooplâncton e peixes devem sofrer grandemente com a extinção
da luz. Com apenas alguns dias de escuridão, o fitoplâncton - base da cadeia
alimentar - morreria ou entraria em estado de vida latente. Na zona temperada,
em cerca de uns dois meses no fim da primavera ou no verão, e em três a seis
meses no inverno, os animais aquáticos mostrariam drásticos declínios de
população, que para muitas espécies poderiam ser irreversíveis. Essas
estimativas (baseadas na redução da luz) provavelmente subestimam as
conseqüências para a vida marinha das condições de pós-guerra nuclear, pois
não levam em conta os efeitos térmicos, nem os do aumento de turbidez das
águas provocado pela erosão das costas e pela deposição de fuligem e poeira. A
sensibilidade da vida marinha à escuridão prolongada seria provavelmente maior
nos trópicos do que na zona temperada, porque nos trópicos as reservas
nutritivas são menores e as necessidades metabólicas maiores. Nas regiões
polares, onde a adaptação a invernos escuros é uma condição de vida, a
sensibilidade seria reduzida. Os lagos de água doce tornar-se-iam altamente
anóxicos depois que a poeira assentasse e a temperatura subisse. Grandes
quantidades de resíduos orgânicos, inclusive cadáveres em decomposição,
tornariam letal a água de abastecimento. Há poucas razões para pensar que as
principais formas de vida aquática que hoje nos servem como fontes de alimento
viessem a sobreviver a uma guerra nuclear de primavera ou de verão em número
suficiente para serem de proveito para o homem, pelo menos nos primeiros anos
do pós-guerra.
Anos depois da guerra, a capacidade de sustentação de vida do
meio terrestre estará ainda grandemente reduzida, ainda que os níveis de luz e
temperatura estejam próximos das condições de antes da guerra. A
favorabilidade do clima local, a arabilidade do solo, a constância e qualidade da
água e a disponibilidade de recursos gênicos seriam seriamente degradadas
pelos meses de condições extremas que se seguiriam à guerra. A destruição de
extensas áreas de vegetação pelo fogo ou pela escuridão resultaria em
condições locais alteradas de clima e de solo que muito dificilmente seriam
propícias ao replantio. Com muitos de seus inimigos naturais exterminados,
pragas de insetos frustrariam as tentativas de retomada da produção agrícola,
como o faria a erosão do solo nas terras escalvadas e desprotegidas. A radiação
ultravioleta provavelmente persistiria como agressão ecológica por bem mais de
um ano.
Seriam os poucos sobreviventes restantes capazes de restabelecer com os
ecossistemas sustentadores de vida as ligações vitais necessárias à
sobrevivência? Esse restabelecimento só poderia ocorrer depois de recuperados
os ecossistemas, e somente se os remanescentes da sociedade fossem capazes
de mobilizar a organização social e a tecnologia requeridas para a exploração
dos ecossistemas restaurados. O tempo necessário para que ocorresse a
segunda condição é difícil de estimar, mas certamente seria no mínimo tão longo
quanto para a primeira, pois sem ecossistemas que assegurem as necessidades
básicas da vida, é impossível uma sociedade tecnológica organizada.
Provavelmente a restauração dos ecossistemas devastados exigiria não menos
de um decênio - estimativa baseada na experiência de ecologistas com dados
tirados de exemplos históricos de ecossistemas muito combalidos. Sendo a
recuperação tão demorada, o mais provável é que a pequena população humana
remanescente continuaria a minguar, aumentando assim as probabilidades de
extinguir-se por completo.

DR. OWEN CHAMBERLAIN (Universidade da Califórnia em Berkeley): O


senhor sabe se existem planos para testar a sensibilidade do fitoplâncton às
mudanças de temperatura?

HARTE: Os únicos planos de que tenho conhecimento, pelo menos para o


futuro próximo, são planos de examinar os efeitos da escuridão prolongada. Os
efeitos das mudanças de temperatura na vida marinha não são de tão grande
interesse em vista da grande capacidade térmica dos oceanos, que impediria
oscilações maiores na temperatura das águas oceânicas.

INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: Os senhores examinaram a


possível proliferação de bactérias, fungos e organismos inferiores, bem como de
insetos?

HARTE: Isso deverá ser feito. Muitos ecologistas estão hoje interessados
em estudar essas questões experimentalmente. Pelo menos com respeito a
pequenos organismos, como o plâncton e os fungos, pode-se iniciar esse estudo
no laboratório. Espero que isso venha a acontecer futuramente, mas por ora não
posso anunciar resultados sobre efeitos de escuridão prolongada em organismos
do solo.

DAVID MCGRATH (diretor-adjunto da Global Tomorrow Coalition em


Washington, D.C.): Até aqui ninguém mencionou especificamente a questão de
se a ausência de fotossíntese por um período longo reduziria de forma apreciável
a quantidade de oxigênio na atmosfera, e quais as conseqüências disso.
HARTE: Isso não nos preocupa muito. Os números sugerem que as
variações do oxigênio, bem como do dióxido de carbono (C02), seriam
insignificantes. São efeitos de importância terciária, por isso não nos
empenhamos muito em analisá-los.

WOODWELL: Eu os promoveria a secundários.

DR. JOSEPH A. BERRY (membro do painel): Minha incumbência aqui hoje


é examinar algumas das bases técnicas da previsão de que a fotossíntese seria
fortemente inibida em escala global pelas condições da atmosfera do pós-guerra.
E eu gostaria de lembrar-lhes que, como foi salientado repetidamente nas
exposições, a fotossíntese constitui o principal suprimento de energia química à
biosfera e a principal força motriz para a operação dos ecossistemas naturais e
cultivados.
Para que se dê a fotos síntese, duas coisas são basicamente necessárias.
Primeiro, a luz tem de penetrar até a superfície da Terra, onde as plantas estão
localizadas. E, segundo, a luz deve ser absorvida pelos
pigmentos fotossintéticos das plantas em condições, sob outros aspectos,
favoráveis. Vejamos a pergunta: de que modo a redução da luz que penetra a
atmosfera afetaria a fotossíntese? Muitas experiências demonstraram que a
fotossíntese total de florestas e culturas é proporcional à intensidade da luz
recebida (Fig. 1). Mesmo em dias normais, a fotossíntese varia com a luz,
atingindo o seu máximo ao meio-dia com céu limpo e decrescendo em períodos
nublados e de manhã ou de noite. A soma total de fotossíntese num dado
intervalo de tempo é proporcional à soma total de luz recebida. Segue-se que
uma redução de luz causaria uma redução proporcional do total de fotossíntese.
Essa relação não leva em conta o fato de que as plantas têm de manter-se a si
mesmas e produzir excedentes que sirvam de alimento para o homem ou
forragem para os animais.
Figura 1: A fotossíntese total de plantas cultivadas (expressa sob a forma
de energia equivalente dos produtos formados, em watts por metro quadrado) é
proporcional à energia luminosa absorvida. Estes dados são de algodoais,
medidos em condições de campo num dia típico de verão sem nuvens.
(Reproduzido de Baker e outros, Crop Science 12: 431 [1972].)

Em geral, requerem-se pelo menos 15 a 20% da fotossíntese total diária


para suprir a demanda respiratória das plantas. Em ecossistemas complexos,
que compreendem grandes quantidades de biomassa permanente e muitos
consumidores neles encerrados, como é o caso das florestas tropicais úmidas,
essa fração ainda é maior, correspondendo quase à fotossíntese total. Sendo a
fotossíntese total proporcional à luz, se a intensidade da luz se reduz a 15 ou
20% da normalmente recebida, a produtividade liquida das plantas cultivadas
cessará. E em florestas úmidas cessará mesmo antes disso. Naturalmente, isso
importa na interrupção do crescimento de brotos, frutos e sementes, que são as
partes mais nutritivas e comestíveis das plantas. Sendo as plantas consumidas
pelos animais, a biomassa vegetal poderia ser drasticamente reduzida por um
período extenso de escassez de luz. Quando os níveis de iluminação voltassem
ao normal, haveria menos biomassa para absorver a luz e portanto menos
fotossíntese até que a cobertura vegetal fosse restabelecida.
Outro fator a influenciar a densidade da biomassa vegetal é o frio extremo
que segundo as previsões se seguiria a um conflito nuclear, já que as baixas
temperaturas podem lesar ou mesmo matar as plantas (Quadro 1). Existem no
mundo regiões térmicas muito diferentes, e as plantas dessas regiões têm
sensibilidades correspondentes a baixas temperaturas. As plantas tropicais, por
exemplo, vivem em áreas onde raramente ou nunca ocorrem temperaturas de
congelamento, e estas podem matá-las. Em áreas de invernos rigorosos, os
gomos dormentes das plantas, quando convenientemente pré-condicionados,
toleram temperaturas de até -80ºC. Em qualquer habitat, a tolerância das plantas
à temperatura corresponde de modo geral às temperaturas mais baixas
passíveis de ocorrerem neste habitat (ver Fig. 2). É provável que as
temperaturas no ambiente de pós-guerra cairiam abaixo das mínimas normais. E
é provável que as baixas temperaturas matassem as plantas, especialmente nas
áreas em que o frio não é um fator ecológico normal.
Nos habitats mais frios, o efeito das baixas temperaturas dependeria de
estarem as plantas em hibernação ou em seu estado ativo de verão. As folhas
ativas das plantas de qualquer região são muito sensíveis às baixas
temperaturas. Temperaturas de 4 ou 5ºC já podem afetar seriamente o
desempenho de plantas tropicais. Espécies de coníferas nativas em regiões
alpinas podem ser prejudicadas no verão, quando estão crescendo ativamente,
por temperaturas de -10ºC. Assim, numa guerra de verão, em que essas
espécies experimentariam um rápido declínio de temperatura, é provável que
suas folhas fossem lesadas, deixando menos biomassa disponível para continuar
a fotossíntese quando a luz voltasse ao normal.
O que aconteceria com a fotossíntese em base mundial nos anos seguintes
a um conflito nuclear? A produtividade fotossintética do mundo tem sido
provavelmente muito constante ao longo do tempo geológico, mais ou menos 5%
do valor de 100%. No primeiro ano, em razão da forte redução da luz que
alcança a superfície da Terra, é de prever que a produtividade fotossintética do
Hemisfério Norte cairia para uns 10-20% da normal. Muito provavelmente, a que
restasse ocorreria nos trópicos. No segundo ano, embora a luz, a força motriz
essencial da fotossíntese, tivesse re tomado, a biomassa - as folhas das plantas,
as algas do oceano - seria menos densa, donde absorveria menos luz e operaria
menos fotossíntese. Com isso, tenho a impressão de que a fotossíntese não se
restabeleceria tão depressa quanto a luz. A continuação de baixas temperaturas
e a presença de luz ultravioleta (UV-B) também retardaria o desenvolvimento de
folhas e algas. Imagino que a cobertura vegetal e a fotossíntese acabariam por
voltar aos níveis normais de antes da guerra, levando talvez entre uma e
algumas décadas. É muito difícil prever como se apresentariam finalmente
os ecossistemas contendo essa biomassa.
DR. THOMAS C. HUTCHlNSON (Universidade de Toronto): Supõe-se que
todas as plantas que existem no momento estariam no lugar, prontas para
recuperar-se?

BERRY: Não é o que se supõe. É claro que se todas as plantas estivessem


aí e prontas para recuperar-se, a perspectiva seria de que a fotossíntese
retornaria em pouco tempo aos níveis anteriores, já que a previsão é de que a
luz se restabeleceria bastante rapidamente no segundo ano. Acho que
basicamente a demora na recuperação do potencial fotossintético é na verdade a
demora na restauração da cobertura vegetal na superfície da terra.

HUTCHINSON: O senhor sugere então que haveria uma demora de uns


quatro anos no restabelecimento de uma cobertura vegetal?
BERRY: Sim, mas isto é uma simples conjetura. Depende do grau em que
as plantas fossem afetadas no primeiro ano.

MARK A. HARWELL (membro do painel): Esta Conferência concentrou-se


nas conseqüências de médio e longo prazos de uma guerra nuclear, com
atenção especial para as novas e surpreendentes análises das alterações
climáticas previstas para o caso de uma guerra nuclear em grande escala e para
as óbvias e inevitáveis catástrofes biológicas que adviriam de tais agressões à
biosfera global. Uma vez percebidas a natureza e a magnitude das
conseqüências atmosféricas, foi fácil para o grande grupo de ecologistas e
biólogos que se reuniu em Cambridge em abril de 1983, para uma discussão
preliminar dessas questões, concordar com o que diz respeito às conseqüências
biológicas correspondentes. Esse consenso foi apresentado aqui por Paul Ehrlich
e detalhado no artigo composto por um comitê biológico, que trata das
conseqüências retardadas e indiretas em particular. Minha intenção aqui não é
repetir esses relatos, mas enfatizar alguns pontos referentes à interação homem-
ecossistema e apresentar uma breve descrição geral dos impactos totais sobre o
homem, pelos efeitos imediatos de detonações nucleares e no período mais
longo subseqüente a uma guerra nuclear, com base numa série de análises a
que procedi nos últimos meses.
Primeiro, quero assinalar as íntimas vinculações que existem entre o
homem e o meio. Praticamente toda a vida da Terra depende em última análise
da luz solar para obter a energia que passa através dos sistemas ecológicos e
impulsiona a multiplicidade de fluxos de matéria necessários à manutenção dos
organismos vivos. As plantas e os animais são essencialmente máquinas
movidas à energia solar, inclusive a espécie que mais nos interessa, o Homo
sapiens.
O homem depende dos sistemas ecológicos para a maior parte das suas
funções de conservação. Em primeiro lugar, é claro, estão o alimento e a água
incontaminada. Também são essenciais abrigo, energia, melhoramento do clima,
purificação do ar, controle de pragas e doenças e uma série de outros serviços.
Há que fazer distinção entre dois tipos de ecos sistemas - naturais e
manipulados. Estes são principalmente os sistemas agrícolas, mas também
compreendem outros sistemas de manipulação de recursos como as florestas e
os minerais. Em geral, esta classe pode ser definida de modo aproximado como
sistemas de base biológica que são diretamente controlados pelo homem e pelos
sistemas societários. Eu faço essa distinção pelo seguinte: hoje a população do
mundo é de mais de 4,5 bilhões. Embora possa não haver consenso entre os
ecologistas e outros quanto à capacidade de carga da Terra para sustentar a
espécie humana mediante ecossistemas naturais e manipulados, uma coisa é
certa: a capacidade de carga dos ecossistemas naturais, por si sós, é muito
inferior à população humana atual. Quer dizer, os ecossistemas naturais
simplesmente não podem sustentar 4,5 bilhões de caçadores-colhedores; não há
o que caçar ou colher em quantidade bastante para alimentar tantos indivíduos -
mesmo com ecossistemas sadios.
Os sistemas biológicos manipulados que sustentam os seres humanos
dependem totalmente da sociedade humana organizada para manutenção e
reforço. Obviamente, um sistema não produzirá alimentos se o homem não suprir
as sementes, o cultivo, os adubos e em muitos casos a água, além de várias
outras atividades que mantêm produtivos os ecos sistemas manipulados. Além
disso, mesmo com produção adequada de alimentos, a população humana não
poderia ser abastecida sem uma extensa rede de sistemas de transporte e
distribuição. O problema é que esse apoio humano aos sistemas manipulados
deixaria de ser operativo após uma guerra nuclear da escala considerada nesta
Conferência.
Assim, após uma guerra nuclear, o homem perderia o sustento dos
sistemas manipulados mesmo sem as agressões climáticas e outras até aqui
mencionadas. Os sobreviventes humanos seriam obrigados a recorrer ao mundo
natural em busca de um nível de sustento que a Terra não poderia fornecer
mesmo em condições saudáveis, justamente quando os sistemas naturais
estariam padecendo distúrbios sem precedentes. Em suma, os sistemas naturais
hoje só poderiam sustentar uma pequena fração da população do mundo; depois
de uma guerra nuclear, esses sistemas não estariam em boa forma, e sua
capacidade de prover às necessidades humanas estaria drasticamente reduzida.
Um tópico relacionado diz respeito às vinculações entre o homem e o meio
depois de passado o pior, isto é, nos anos subseqüentes ao inverno nuclear do
que falamos. Dependendo de quanto se tenha reduzido o nível de população
humana, e de até que pontos os sistemas ecológicos tenham regredido, é
provável que a recuperação humana não possa operar-se mais depressa que o
ritmo de recuperação dos sistemas naturais, e a dependência acrescida do
homem em relação a esses sistemas naturais pode levar a um retardamento dos
processos de recuperação. Para dar apenas um exemplo, um grupo de
sobreviventes famintos poderia despojar sistemas ecológicos da sua energia
excedente a custo captada para crescimento, reprodução, reservas nutritivas,
etc., dessa forma retardando os processos naturais requeridos para o
restabelecimento e recuperação dos ecossistemas.
Já foram mencionados os problemas que seriam encontrados pelos
sobreviventes que tentassem recorrer aos ecossistemas costeiros para sustento.
Foi dito que as regiões costeiras seriam batidas por tempestades de grande
violência, produzidas pelo acentuado gradiente de temperatura entre as massas
de ar continentais e marítimas; elas receberiam um quinhão desigual de
radionuclídeos e destruição de habitats por várias razões, entre as quais: porque
as áreas urbanas localizam-se predominantemente em regiões costeiras; devido
às táticas de barragem da guerra anti-submarina; e porque os estuários ficam a
jusante da maioria dos sistemas e recebem uma parte desproporcionada das
águas de escoamento. Acresce que os ecossistemas marinhos são
particularmente vulneráveis tanto às reduções de luz como aos aumentos de UV-
B, o que poderia resultar na devastação da base alimentar do fitoplâncton.
Concluiu-se que essas perturbações, conjugadas à insuficiência de energia e de
barcos para pesca ao largo, indicam pequena capacidade de sustentação do
homem depois de uma guerra nuclear. A questão agora é que com os
ecossistemas terrestres as coisas não seriam muito melhores.
Por exemplo, praticamente todos os sistemas de água potável nas áreas
continentais do Hemisfério Norte congelariam por completo, a profundidades de
1 a 1,5 metro. E seriam cobertos por precipitação de radionuclídeos, fuligem e
substâncias tóxicas, de modo que água de beber para os seres humanos e outra
biota seria escassa. Além disso, quando finalmente viesse o degelo, haveria
enchentes de grandes proporções, possivelmente agravadas pelo aumento de
temperatura que ocorreria à médio prazo em regiões de montanha, como
sugerido nesta Conferência por Aleksandrov da URSS.
Entre outros fatores, haveria um impacto desproporcionado nos
componentes comestíveis das plantas terrestres. Por exemplo, o solo congelado
inutilizaria tubérculos e raízes. Frutos, bagas e brotos não seriam produzidos em
condições de pouca luz e baixas temperaturas. Assim, praticamente toda a
biomassa permanente dos ecossistemas terrestres seria constituída por
compostos de celulose. Infelizmente, os seres humanos não podem consumir
nem digerir troncos de árvores.
Tal como o homem, a maior parte dos outros vertebrados terrestres sofreria
mortalidade em massa. Suas carcaças congeladas só temporariamente
forneceriam alimento aos homens. As populações animais, ao se restaurarem,
provavelmente seriam dizimadas para servir de alimento tão rapidamente quanto
se reproduzissem, mantendo muito baixos os níveis de população, já que os
humanos despenderiam quantidades incomuns de energia na obtenção de
carne. Somente as espécies capazes de multiplicação rápida reconstituiriam em
tempo curto as suas populações; mas estas são as espécies nocivas, que não se
prestam a fornecer energia e que trazem consigo uma série de influências
negativas, entre elas a propagação de doenças.
Mesmo sem outras formas de intervenção humana, a recuperação de
ecossistemas poderia levar mais tempo do que à primeira vista pode parecer.
Perda de solos e substâncias nutrientes, perda de sementes, efeitos continuados
de UV-B acrescida, temperaturas relativamente baixas com possível redução de
chuvas, exposição continuada ao ozônio, a radionuclídeos e a outros fatores
adversos, tudo isso tenderia a retardar a recuperação. Reações à longo prazo a
alguns anos de luz e temperatura alteradas poderiam resultar em menor
produtividade florestal e alterações nas composições de espécies durante
dezenas de anos. Numa palavra, os ecossistemas terrestres não
proporcionariam sustento fácil aos sobreviventes.
Vejamos agora um panorama das baixas humanas causadas por efeitos
diretos e indiretos de uma guerra nuclear. Um estudo recente da Organização
Mundial de Saúde prevê 1,1 bilhão de mortes e 1,1 bilhão de lesões diversas em
todo o mundo como decorrência de explosões e outros efeitos imediatos. O
estudo da Ambio indicou três quartos de bilhão de casos fatais em toda a Terra.
Meus colegas e eu analisamos em maior detalhe os efeitos na população
americana.
Utilizando um cenário muito semelhante ao proposto pela Ambio de uma
guerra nuclear representativa em grande escala, envolvendo aproximadamente
5.700 megatons de energia total, eu considerei os efeitos de um ataque
combinado de contra-força (i.e., contra objetivos militares) e contra-valor (contra
alvos civis e industriais) aos Estados Unidos, em que todas as áreas urbanas de
mais de 100.000 habitantes e a maior parte das instalações militares e principais
concentrações industriais fossem alvejadas. Preparei um diagrama sintético dos
efeitos resultantes (ver Quadro 2).
As mortes produzidas pelas explosões poderiam atingir de 50 a 80 milhões
de americanos, de uma população em risco (i.e., dentro das áreas urbanas
atacadas) de 110 milhões, com mais 30 milhões de feridos graves em
conseqüência de explosões. A exposição direta à radiação infravermelha e as
queimaduras resultantes poderiam matar outros 1 a 15 bilhões, e de 1 a 7
milhões poderiam morrer nos incêndios e tempestades ígneas nas áreas
urbanas. A radiação ionizante inicial não aumentaria o número de mortos e
feridos, pois para as armas consideradas no cenário (100 quilotons a 1 megaton
de potência cada) as áreas letais determinadas por explosão e radiação térmica
excedem aquelas em que os nêutrons rápidos e raios gama das detonações
nucleares seriam fatais; os que em outras condições morreriam por radiação
inicial aguda já estariam mortos. No entanto a precipitação local poderia matar
entre 12 e 18 milhões de pessoas que tivessem sido expostas no primeiro dia, e
mais 40 ou 50 milhões seriam expostas a níveis mortais de precipitação nos dias
e semanas subseqüentes.
No total, uns 125 a 170 milhões de americanos morreriam no nosso cenário
de referência, e mais 30 a 50 milhões sofreriam lesões exigindo cuidados
médicos, tudo isso pelos efeitos imediatos e diretos das detonações. Portanto,
restariam entre 10 e 75 milhões de americanos e entre 2 e 3 bilhões de
habitantes do mundo para enfrentar o inverno nuclear e os anos seguintes.
A maior parte dos outros efeitos relacionados no citado Quadro 2 (i.e., a
prazo mais longo e por mecanismos indiretos) já foi referida neste livro e não
será repetida aqui. Alguns outros aspectos devem ser comentados.
A poluição do ar poderia produzir efeitos dilatados; por exemplo, o estudo
TTAPS prevê concentrações médias de ozônio durante vários meses, nas
latitudes médias, de 150 partes por bilhão em volume, próximas dos níveis que
em exposições de apenas duas horas causam lesões evidentes à maior parte
das espécies vegetais.
A escassez de alimentos resultante do inevitável colapso dos sistemas
agrícolas, da paralisação dos sistemas de transporte e distribuição e da
incapacidade das plantas cultivadas de sobreviver às alterações de clima poderia
levar à morte pela fome centenas de milhões ou bilhões de pessoas em todo o
mundo. Isto abarcaria não apenas as nações diretamente envolvidas na guerra,
como também países distantes do conflito direto mas fortemente dependentes
das exportações de alimentos da América do Norte. A demora no
restabelecimento de agroecossistemas, devida a impedimentos físicos e
societários, teria grandes reflexos no ritmo de recuperação das populações
humanas durante muitos anos depois de uma guerra nuclear.
Os sistemas médicos também deixariam de existir, como declarou a
organização dos Médicos pela Responsabilidade Social, e pouca ou nenhuma
assistência restaria para os milhões de indivíduos afetados. Com o passar do
tempo, grandes surtos de moléstias contagiosas matariam milhões,
especialmente nas primeiras fases do pós-guerra, quando as pessoas se
aglomerariam em abrigos para proteger-se das intempéries, da radiação e de
bandos de outros indivíduos, numa ocasião em que sistemas sanitários e água
incontaminada teriam virtualmente desaparecido. Com isso, ocorreriam
principalmente doenças entéricas. Mais tarde, alastrar-se-iam epidemias e
pandemias veiculadas por animais transmissores, como peste bubônica e
hidrofobia.
Finalmente, um fator importante para os sobreviventes humanos seria a
tremenda sobrecarga psíquica que afetaria a todos em todo o mundo.
Concomitantemente, haveria o colapso dos sistemas societários em geral, na
medida em que a civilização organizada deixaria de existir, e em que a espécie
humana, reduzida ao nível do indivíduo ou de pequenos grupos, seria lançada de
repente num mundo de condições extremamente hostis, em que estaria em
competição sem precedentes por recursos drasticamente reduzidos. É quase
impossível prever que condutas os sistemas societários iriam adotar, mas sem
dúvida nenhuma a competição intensa por recursos limitados imporia à espécie
um conseqüente tributo adicional.
O quadro evidente que resulta dessas considerações é que o mundo de
pós-guerra nuclear seria um lugar inóspito para a maioria ou para a totalidade
dos homens da Terra. Uma guerra nuclear de qualquer categoria que não a mais
limitada constitui não simplesmente uma guerra entre os combatentes, mas uma
guerra contra a biosfera e contra todos os seus habitantes humanos. As
conseqüências humanas dificilmente se restringiriam às mortes imediatas nas
proximidades das detonações; ao contrário, uma guerra nuclear afetaria
fundamentalmente todos os seres humanos existentes e todas as gerações
previsíveis que se seguissem, se, aliás, o Homo sapiens não chegasse ao
estado irreversível da extinção.

WOODWELL: Os efeitos aqui descritos como produto inevitável de quase


qualquer uso hostil de armas nucleares constituem não apenas uma
transformação fundamental do habitat do homem, como uma transformação do
habitat de todos os organismos da Terra, uma transformação radical e
irreversível da biosfera. Nós não conhecemos nenhum outro lugar onde ocorra
vida - não há vida em Vênus, nem em Marte, nem em Júpiter, nem na Lua - em
parte alguma. As circunstâncias físicas de cada um desses vizinhos mais
próximos da Terra estão muito além dos limites compatíveis com a sustentação
da vida, em cada um deles por motivos diferentes. E está claro agora como seria
fácil libertar na biosfera uma quantidade de energia suficiente para modificar
radicalmente a Terra, limitando, e talvez eliminando, grandes segmentos da
biota. Que espécies de transformações ocorreriam de início? O que
sobreviveria? O que desapareceria primeiro?
Nós pensamos no homem como ocupando na biosfera um posto
dominante. No entanto a sua agricultura cobre não mais de 10% da superfície
das terras; o resto do planeta é constituído por comunidades naturais, afetadas
mas não manipuladas pelo homem. A biosfera é fortemente influenciada por
essas comunidades. Por exemplo, o teor de dióxido de carbono da atmosfera foi
e continua sendo modulado, talvez determinado, pelo menos dentro de certos
limites, pelo metabolismo das florestas.
Em todas as concepções de como a biosfera opera, as florestas têm papel
preponderante; são elas a principal vegetação da maior parte da porção da Terra
habitada pelo homem; elas contêm de duas a três vezes mais carbono do que a
atmosfera; são elas o principal reservatório de diversidade biótica em termos
globais. As florestas oferecem um foco apropriado para a compreensão do
caráter das alterações bióticas que seriam de esperar. Qual seria esse caráter?
O que representariam tais alterações para o homem, se a essa altura ele ainda
existisse? Apesar da falta de experiência direta, é possível inferir como seria
esse mundo. Paul Ehrlich sugeriu que extinções seriam comuns. Extinção, é
claro, significa a eliminação de uma espécie - a eliminação do pool gênico. As
extinções são irreversíveis; geralmente ocorrem quando o habitat é
drasticamente alterado. A experiência, pelo menos nesse contexto, é limitada.
Que espécies são vulneráveis? Quais são resistentes? Se o homem
sobrevivesse, como se apresentaria o mundo?
Alguns exemplos podem ser usados como base de dedução. Entre elas, as
devastadoras deformações da paisagem produzidas pela fusão de minérios de
cobre e outros em Copperhill no Tennessee, em Palmerton na Pensilvânia e em
Sudbury no Ontário. Mas um dos estudos mais pertinentes e mais facilmente
interpretados é uma análise, ao longo de 15 anos, das mudanças provocadas
numa floresta de carvalhos e pinheiros na região central de Long Island, Estado
de Nova York, por exposição crônica a radiação ionizante. A exposição variou de
alguns milhares de roentgens por dia a níveis residuais, que são de menos de
1/10 de roentgen por ano no meio normal. Exposições de alguns roentgens por
dia produziram alterações drásticas na floresta. Essas alterações, embora
produzidas por radiação ionizante, uma agressão incomum na maior parte da
biosfera, foram semelhantes às observadas em outras partes em resposta a
gradientes de exposição a condições climáticas extremas, como na transição de
floresta para tundra, e à poluição, como em Sudbury e outros lugares. Tais
alterações são hoje reconhecidas como causadas por uma larga gama de
perturbações; constituem o que chamamos de empobrecimento biótico. Em
termos hemisféricos, e talvez globais, os princípios gerais do empobrecimento
biótico, definidos principalmente nesses exemplos, aplicar-se-iam após
praticamente qualquer uso de armas nucleares numa guerra.
O estudo de Long Island, realizado no Laboratório Nacional de Brookhaven,
tinha por fim examinar os efeitos ecológicos da radiação ionizante. Uma fonte
potente de raios gama, que são semelhantes aos raios X, foi colocada no centro
de uma floresta cuidadosamente escolhida. No primeiro ano da experiência
determinou-se o padrão de alteração em torno da fonte. Nos anos seguintes as
alterações simplesmente tornaram-se mais pronunciadas e o círculo de danos,
maior.
A floresta foi afetada sistematicamente. As árvores em geral mostraram-se
mais vulneráveis; o pinheiro, Pinus rigida, de todas as espécies era a mais
sensível, mas pinheiros e carvalhos foram eliminados em conjunto, deixando
intacta uma comunidade de arbustos, ervas e gramíneas, musgos e líquens.
Com exposições mais altas foram eliminados os arbustos lenhosos; depois as
ervas e gramíneas; e com exposições ainda mais altas só restaram certos
musgos e líquen. E no interior de cada um desses grupos houve uma seleção; as
formas de menor corpo e crescimento mais lento mostraram-se mais resistentes.
Líquens crustáceos resistiram mais que as formas eretas folhosas e fruticosas.
Os princípios gerais extraídos dessa experiência e de outras similares com
empobrecimento biótico sistemático são simples mas importantes. Em geral, as
espécies mais vulneráveis a qualquer tipo de alteração crônica ou aguda do
habitat são as de grande corpo e ciclos reprodutivos longos. As mais resistentes
são as de pequeno corpo e alto potencial reprodutivo. Neste grupo
reconhecemos espécies que competem eficazmente com o homem e lhes damos
o nome de "pragas". São as ervas daninhas e os insetos dos jardins, as espécies
de beira de estrada e de outros locais cronicamente perturbados. Todo meio
crônica ou intensamente perturbado é sujeito a esse padrão de alteração - e no
nosso mundo existem hoje muitos desses locais. O olho exercitado percebe
constantemente ao nosso redor essa contínua sucessão de transições.
Uma guerra nuclear acarretaria uma série de transições quase
inimagináveis. Num mundo de pós-guerra as espécies pequenas e de
multiplicação rápida seriam grandemente favorecidas; as grandes se
extinguiriam. O homem é vulnerável a essa espécie de mudança; são-no
igualmente a maior parte dos mamíferos, as árvores, muitos arbustos e muitas
plantas superiores. As mais resistentes são as formas inferiores: bactérias,
fungos, certos musgos, líquens, algas e protozoários.
As florestas seriam raras nesse novo mundo, inicialmente destruídas em
grandes extensões por explosões, fogo e radiação, e mais tarde, em escala
continental, pela escuridão e pelo frio prolongado. É difícil exagerar a gravidade
do desastre, mas é provável que em alguns bolsões as florestas fossem
preservadas e sobrevivessem indivíduos de uma diversidade de espécies:
refúgios, talvez.
A questão é vasta, fundamental e premente, e requer análises muito mais
profundas. Mas, a este primeiro exame, os efeitos possíveis estendem-se muito
além dos limites dos estudos objetivos correntes da ecologia e entram num novo
domínio, suficientemente incerto para levar a supor que as extinções previstas
nessa onda de empobrecimento venham a incluir, pelo menos potencialmente, o
Homo sapiens.

DR. THOMAS EISNER (membro do painel): Inicialmente, minha intenção,


como último expositor deste painel, era apresentar um sumário das
conseqüências biológicas de uma guerra nuclear. Mas isso seria repetitivo, tendo
em vista o que foi dito pelos que me antecederam. Portanto, vou falar de dois
pontos específicos, e terminar fazendo um apelo.
O primeiro ponto diz respeito à conceituação de uma grandeza. Qual a
dimensão do arsenal nuclear do mundo, perguntam-nos com freqüência, e como
é possível "sentir" essa magnitude? Vamos expressá-lo assim. A bomba de
Hiroxima tinha um poder explosivo (equivalente de TNT) de 13.000 toneladas.
Sabemos o que a bomba fez, pois vimos as fotografias. O estoque nuclear
estratégico do mundo, em contraste, tem um poder explosivo potencial de mais
de 13.000 megatons. Quer dizer, nós temos hoje a capacidade de desencadear o
equivalente a um milhão de Hiroximas. Tentem imaginar o que isso significa.
Suponham que eu começasse a largar bombas do tamanho da de Hiroxima, uma
de cada vez, a partir deste momento, à razão de uma por segundo, 60 por
minuto, 3.600 por hora. Quando acabariam as minhas bombas? A resposta
espantosa é: 11,6 dias. Para esgotar o arsenal mundial nas 48 horas de duração
desta Conferência, eu precisaria lançar as minhas bombas num ritmo ininterrupto
de seis por segundo! Não admira que uma guerra nuclear - mesmo uma guerra
limitada em que menos da metade do arsenal do mundo fosse detonada - deva
produzir uma catástrofe de amplitude inaudita.
Meu segundo ponto diz respeito ao grau em que nós, os biólogos
que participamos desta Conferência, concordamos com as conclusões aqui
expressas. Repetidamente têm-me perguntado no curso destes trabalhos se nós
estamos de acordo com os prognósticos dos físicos especialistas em
atmosferologia, e se as nossas opiniões coincidem em todos os aspectos
relativos às implicações biológicas dessas previsões. Em primeiro lugar, deve
ficar claro que não existem divergências quanto aos efeitos à curto prazo de um
conflito nuclear, isto é, quanto aos efeitos das explosões, do fogo e da radiação,
que num conflito de 5.000 a 10.000 megatons devem resultar em mais de um
bilhão de mortes imediatas e em número igual de feridos graves. E, segundo,
deve ficar clara a nossa convicção de que um "inverno nuclear", com todo o seu
cortejo de calamidades biológicas, é sem dúvida nenhuma uma perspectiva bem
real como decorrência de uma guerra nuclear. Estamos convencidos de que um
período prolongado de temperaturas glaciais e baixos níveis de iluminação,
conjugado à exposição acrescida a radiação ionizante e ultravioleta, pode
destruir o sistema de sustentação biológica da civilização, com certeza no
Hemisfério Norte e possivelmente, pelo extravasamento dos efeitos climáticos e
biológicos, em áreas não alvejadas do Hemisfério Sul. Embora estejamos de
acordo nos pontos principais, alguns de nós conjeturam se não estaríamos
subestimando os efeitos biológicos. Sinergismos e efeitos em cascata são uma
conseqüência comum de rupturas ambientais, e tendem a ser imprevisíveis e só
verificáveis a posteriori. O que é previsível em matéria de conseqüências
biológicas de uma guerra nuclear já é bastante mau; não seriam as
conseqüências reais ainda piores? Por 40 anos nós permanecemos na
ignorância da possibilidade de um inverno nuclear. O que mais nos terá passado
despercebido? Chegaremos a ver a extinção da espécie humana como
conseqüência inevitável de uma guerra nuclear? E a essa altura, com a contínua
escalada das armas, não teremos avançado para ainda mais perto do abismo?
O apelo que quero fazer é simples. Há muitos anos tenho pensado na
guerra nuclear, mas não me pareceu que a questão devesse suscitar o meu
envolvimento direto na qualidade de biólogo. Tenho-me ocupado de
conservação, e como ecologista e naturalista entusiasta, tenho dedicado meu
tempo a iniciativas educacionais e a esforços de preservação da Terra. Agora
dei-me conta de que o impacto de uma guerra nuclear é abrangente e
fundamentalmente biológico. Daí o meu apelo, que quero estender aos eleitores
americanos que alguns anos atrás me nomearam presidente da AAAS
(Associação Americana para o Progresso da Ciência), bem como aos biólogos
de todo o mundo. Já não creio que um único biólogo possa permanecer isento de
envolvimento na questão da guerra nuclear. Não importa qual a especialidade ou
quais os cursos ministrados, o envolvimento se impõe, pois tanto a especialidade
como os cursos relacionam-se inevitavelmente a algum aspecto das
conseqüências biológicas de uma guerra nuclear. Nas suas aulas e nos seus
escritos, os biólogos têm de manifestar-se. O que ficamos sabendo sobre o
inverno nuclear precisa ser divulgado, e a preocupação expressa nesta
Conferência tem de ser transmitida ao mundo inteiro. Só pelo esclarecimento
poderemos impedir o "escurecimento" nuclear. A questão não é de confronto
político, mas de sobrevivência biológica. O inimigo não é a União Soviética, nem
os Estados Unidos, mas as próprias armas nucleares.
A CONEXÃO MOSCOU
UM DIÁLOGO ENTRE CIENTISTAS NORTE-AMERICANOS E
SOVIÉTICOS

DR. THOMAS F. MALONE (presidente): A Conferência sobre o Mundo após


a Guerra Nuclear é uma iniciativa científica que visa reunir conclusões existentes
e novas sobre os efeitos atmosféricos e climáticos globais à longo prazo de uma
guerra nuclear e suas conseqüências para a vida. Os organizadores da
Conferência evitaram rigorosamente extrair quaisquer implicações políticas das
suas conclusões. Nosso objetivo é esclarecer questões e não advogar tal ou qual
ponto de vista. Todos os participantes deste programa entendem e concordam
que a Conferência não é um fórum para discutir linhas de ação ou temas de
política. Um compromisso semelhante está subentendido nesta troca de
pareceres entre Cientistas reunidos em Washington e em Moscou.
Comigo na tribuna estão o Dr. Carl Sagan, astrônomo e cientista espacial
da Universidade Cornell; o Dr. Paul Ehrlich, ilustre biólogo da Universidade
Stanford; e o Dr. Walter Orr Roberts, meu velho amigo, astrônomo,
meteorologista e ex-presidente da Associação Americana para o Progresso da
Ciência.
Essa comunhão de preocupações entre cientistas e entre a comunidade
científica e o público é mais um passo num processo que começou há mais de
um ano em Roma, quando os líderes científicos do mundo fizeram em uníssono
esta declaração: “A partir de 1945 a natureza da guerra mudou tão
profundamente que o futuro da espécie humana, de gerações ainda por nascer,
está em risco". O debate das questões científicas relevantes terá prosseguimento
brevemente em Estocolmo, sob os auspícios do Conselho Internacional de
Uniões Científicas.
Agora tenho o prazer de apresentar um velho amigo, o acadêmico Yevgeniy
Velikhov, vice-presidente da Academia de Ciências da URSS.

VELIKHOV (em Moscou): Está aqui comigo hoje o Dr. Yuri Israel, membro
correspondente da Academia de Ciências da URSS e diretor do Comitê de
Hidrometeorologia e Controle do Ambiente. Quero apresentar também o
acadêmico Alexander Bayev, especialista em biologia e genética molecular e
secretário do Departamento de Fisiologia Bioquímica, Biofísica e Química da
Academia de Ciências da URSS; e Nikolai Bochkov, acadêmico da Academia
Médica de Ciências e diretor do Instituto de Genética da Academia de Ciências
da URSS. Agora gostaríamos de ouvir o Dr. Carl Sagan, do outro lado do
Atlântico.

SAGAN: Fui incumbido de recapitular as conclusões físicas e climáticas do


estudo apresentado no início desta Conferência, estudo esse realizado
juntamente com meus colegas Drs. Turco, Toon, Ackerman e Pollack, e
conhecido como TT APS, iniciais dos autores. Nós investigamos uma série de
conseqüências de diversos cenários de guerra nuclear.
Por exemplo, analisamos o perfil atmosférico da estratosfera e da
troposfera (ver Fig. 1A, p. 43). O material injetado na estratosfera por uma
explosão nuclear precipita muito lentamente; o injetado na troposfera precipita
mais rapidamente. Assim, explosões de armas nucleares de alta potência
transportam poeira na bola de fogo ascendente e no penacho da nuvem em
cogumelo e elevam-na à estratosfera, donde ela precipita lentamente, ao passo
que armas nucleares de baixa potência introduzem poeira na troposfera, donde
ela precipita com relativa rapidez. Se uma guerra nuclear resulta na queima de
cidades e florestas, partículas finas partículas de fumaça, fuliginosas, muito
escuras - entram na baixa atmosfera. Essa combinação de poeira levantada por
explosões nucleares de alta potência e fuligem de cidades e florestas
incendiadas por detonações aéreas de qualquer potência produz, segundo os
nossos cálculos, um manto de material em suspensão que escurece e esfria
acentuadamente a Terra. A estrutura do que era anteriormente a troposfera seria
profundamente alterada.
Entre os cenários que estudamos há o caso de referência de uma guerra de
5.000 megatons, em que a temperatura no interior dos continentes cai
abruptamente em poucas semanas a algumas dezenas de graus abaixo do ponto
de congelamento da água, e leva meses para retornar às condições ambientais
(ver Quadro 1, p. 49).
Outro cenário considerado foi um ataque só de contra-força de 3.000
megatons, em que não há queima de cidades. É um ataque bastante modesto no
contexto das doutrinas estratégicas modernas. Nesse cenário a temperatura
baixa uns 7 ou 8 graus e leva cerca de um ano para voltar ao normal.
Uma queda de 7 a 8 graus na temperatura global já é suficiente para
destruir a produção de trigo e milho dos Estados Unidos, Canadá e União
Soviética, e por si só representaria urna agressão extremamente desastrosa ao
meio do planeta. Também estudamos alguns casos bem piores. Talvez o fato
mais interessante a surgir foi que um ataque de 100 megatons, em que armas de
centenas de quilotons sejam detonadas sobre áreas metropolitanas, pode
produzir fumaça suficiente para provocar sérias catástrofes climáticas com a
duração de muitos meses.
Além do escurecimento e da queda de temperatura, uma guerra nuclear
teria outras conseqüências. Haveria gases tóxicos produzidos nos incêndios de
cidades. Haveria a radioatividade, que em grandes áreas do Hemisfério Norte
atingiria níveis perigosos para o homem - 100 rads ou mais. E quando a fumaça
e a poeira se dissipassem, haveria o fluxo de radiações ultravioleta da faixa UV-B
aumentado de duas a quatro vezes, dependendo do total de energia liberada.
Tendo em mente as indicações recentes de que também o Hemisfério Sul
seria gravemente afetado, concluímos que após uma guerra nuclear, ainda que
em escala relativamente reduzida, haveria um conjunto de agressões
simultâneas de magnitude sem precedentes. contra a biosfera (ver Quadro 2, pp.
55-56).
O limiar para produção dos efeitos climáticos situa-se de modo muito
aproximado em torno de mil armas nucleares detonadas, dependendo
principalmente da estratégia de seleção de objetivos. Sabemos que os arsenais
estratégicos somados dos Estados Unidos e União Soviética superam de muito -
cerca de 17 vezes - esse limiar. Sabemos agora que desde o começo dos anos
50 os dirigentes das duas nações têm tomado decisões sobre os negócios
mundiais na ignorância das conseqüências climáticas possivelmente funestas do
emprego de armas nucleares. E agora percebemos pela primeira vez que as
conseqüências de uma guerra nuclear poderiam ser absolutamente arrasadoras
para países muito afastados do conflito. Note-se, finalmente, que essas
conclusões são apoiadas por uma ampla série de estudos, tanto nos Estados
Unidos como na União Soviética.
Agora passo a palavra ao Dr. Paul Ehrlich, ilustre professor de Biologia da
Universidade Stanford.

EHRLICH: É meu desagradável dever informar-lhes algo que imagino não


constituirá surpresa para os meus colegas da União Soviética, a saber, que um
grupo muito grande de proeminentes biólogos nos Estados Unidos, inteirado dos
cenários que o Dr. Sagan acaba de descrever, chegou a urna conclusão
unânime sobre as conseqüências para os sistemas biológicos. Tal unanimidade
é rara em nossa ciência aqui, e estou certo de que na dos senhores também.
Estamos falando do que acontece após uma guerra nuclear, depois que as
bombas explodiram e causaram talvez um bilhão de mortes imediatas. O que
acontece é que os sobreviventes - os sobreviventes humanos, assim como as
plantas e os outros animais do planeta - são submetidos simultaneamente a uma
série de agressões sem precedentes.
A temperatura cai algumas dezenas de graus, descendo abaixo do ponto de
congelamento, mesmo no verão; se a guerra ocorrer no inverno, as baixas
temperaturas prolongam-se pela primavera. Ao mesmo tempo, a luz solar é
bloqueada, de modo que a fotossíntese é reduzida ou eliminada. Os níveis de
radiação alcançam valores suficientes para matar coníferas em grandes
extensões, que podem chegar a 2% da área continental do Hemisfério Norte.
Depois uma névoa tóxica - uma camada venenosa de poluição do ar -
espalha-se por todo o Hemisfério Norte. Quando os efeitos atmosféricos
começam a dissipar-se, quando avança o processo de remoção da fuligem, a
Terra é inundada por um fluxo de luz ultravioleta, de UV-B.
Assim, a base da produtividade do planeta, pelo menos no Hemisfério
Norte, terá sido acometida por uma série de agressões, cada uma delas
extraordinariamente deletéria.
É evidente para todos nós, por exemplo, que a produtividade agrícola após
uma guerra nuclear em grande escala se anularia no Hemisfério Norte por I um
ano pelo menos, e provavelmente por muito mais tempo. Além disso, grande
parte das disponibilidades existentes de alimentos seria destruída. E em muitas
áreas seria difícil obter água porque as massas de água doce do interior dos
continentes estariam congeladas a uma profundidade de talvez 1 a 2 metros.
Em geral, é de prever um colapso dos sistemas de sustentação de vida,
pelo menos nas zonas temperadas do Hemisfério Norte, levando a uma situação
em que a sobrevivência da civilização nessas zonas seria extremamente difícil
ou impossível.
Há menos certeza quanto à propagação dos efeitos ao Hemisfério Sul. É
praticamente certo que a nuvem de fumaça e fuligem penetraria as grandes
áreas tropicais do Hemisfério Norte, o que em si já seria muito grave, visto que
essas áreas constituem o maior reservatório de diversidade orgânica deste
planeta. Plantas, outros animais e microorganismos são uma biblioteca genética
inestimável da qual nós já retiramos a própria base da nossa civilização, e essa
biblioteca seria ameaçada ou em grande parte destruída se os efeitos se
estendessem para o sul.
E se os efeitos se disseminassem generalizadamente no Hemisfério Sul,
nossa conclusão é que por certo alguns grupos humanos sobreviveriam - talvez
em áreas costeiras ou ilhas -, mas enfrentariam uma situação ecológica e social
absolutamente insólita e extremamente maligna. Ao que nos parece, não se
pode excluir a possibilidade de que a espécie humana, após um tal evento,
venha a declinar aos poucos e finalmente extinguir-se.
Achamos que as conclusões biológicas são óbvias e perfeitamente sólidas
para toda a gama de cenários, desde um ataque de 100 megatons a cidades até
um conflito de 10.000 megatons, com ataques de contra-força e contra-valor.
Impressionou-nos muito uma das conclusões óbvias: teoricamente é
possível à União Soviética ou aos Estados Unidos lançar um primeiro ataque de
3.000 megatons contra os silos do outro país e destruí-Ios, sem - em teoria, pelo
menos - lesar um 11nico fio de cabelo de qualquer cidadão do país atacado, não
receber fogo de resposta e, em o fazendo, destruir ambas as nações pela
destruição da sua produtividade agrícola, resultante do escurecimento e baixa de
temperatura. Não é preciso lembrar-lhes que o bastião alimentar do mundo é a
produção de grãos do Hemisfério Norte, principalmente nas planícies centrais
dos Estados Unidos e do Canadá, e que a sua anulação, num só ano que fosse,
seria para a humanidade um desastre nunca visto.
Basicamente, é fácil para um biólogo concluir dos resultados expostos pelos
físicos e climatologistas que uma guerra nuclear oferece quase certamente
perigos bem maiores que os já catastróficos efeitos instantâneos e mortes
imediatas.

ISRAEL: O uso intensivo dos recursos naturais e o desenvolvimento


industrial acelerado em muitos países nas circunstâncias de uma crescente
corrida armamentista já vem criando uma série de problemas ecológicos globais.
É evidente que no caso de uma guerra nuclear a biosfera será comprometida em
proporções multiplicadas, e que isso trará conseqüências catastróficas para a
humanidade e para a biosfera como um todo. Hoje as conseqüências de uma
possível guerra nuclear estão sendo discutidas em todas as partes do mundo. Na
avaliação dos resultados, admite-se que a energia total liberada poderia alcançar
de 6.000 a 15.000 megatons.
Em meu pronunciamento eu gostaria de abordar sucintamente
as conseqüências geofísicas e geológicas de vários fatores de exposição.
Primeiro, uma grande quantidade de produtos radioativos seria
descarregada na atmosfera. Esses produtos radioativos causarão danos por
radiação nos sistemas ecológicos, alterações nas propriedades elétricas da
atmosfera e alterações na ionosfera. E isso acarretará efeitos biológicos
diversos.
O segundo fator é a poluição da atmosfera por uma enorme quantidade de
partículas de aerossol produzidas por explosões nucleares de alta potência, ou
pelo desprendimento maciço de fuligem e poeira dos incêndios ateados pelas
explosões. As partículas em suspensão modificarão as propriedades da
atmosfera e dificultarão a entrada dos raios solares, através da atmosfera. Desse
modo os sistemas ecológicos serão neutralizados, e ha. verá perturbações
meteorológicas e climatológicas.
Terceiro, os produtos gasosos dos incêndios - metano, ozônio troposférico
e outros - também poluirão a atmosfera. Essa poluição influirá nas propriedades
de absorção da atmosfera e por conseguinte no clima. Haverá formação de
óxidos na bola de fogo das explosões, o que destruirá uma parte substancial da
camada de ozônio. O resultado será um aumento de radiação ultravioleta que
trará efeitos biológicos indesejáveis e mudanças climáticas.
Para prever um dos maiores efeitos da produção de aerossóis, é importante
estimar a quantidade de partículas que permanecerá na atmosfera por tempo
prolongado. Os aerossóis troposféricos são de curta duração até duas semanas,
aproximadamente -, portanto é necessário calcular que fração de aerossóis de
alta dispersão alcançará a estratosfera. Pela nossa estimativa, essa fração será
da ordem de 1%. Esse valor é comparável ao dos aerossóis de alta dispersão
que entram na estratosfera por ocasião de erupções vulcânicas de grande
intensidade.
Não há dúvida de que os aerossóis troposféricos levarão a uma queda de
temperatura superficial durante as primeiras semanas após as detonações. E
isso terá conseqüências catastróficas para os ecossistemas e para a produção
das plantações.
Efeitos ainda piores poderiam advir, ao nosso ver, de uma possível
elevação subseqüente de temperatura atmosférica após a precipitação, causada
pela absorção de radiação de ondas longas. Esta resultará da presença na
atmosfera de admistões gasosas, como ozônio troposférico, etano, metano e
outras. A duplicação de CO2 elevará a temperatura em 3 ou 4 graus centígrados.
A duplicação de ozônio na troposfera causará um aumento de temperatura de
quase um grau centígrado. Atualmente, a concentração de ozônio na troposfera
é de cerca de três partes por bilhão, e durante uma guerra nuclear essa
concentração aumentará de três a quatro vezes. Haverá um aumento grande de
metano, e a concentração de etano será 30 ou 40 vezes maior. Só o aumento de
concentração dessas admistões gasosas resultará num aumento de temperatura
de três ou quatro graus centígrados. Haverá um efeito de estufa, que pode levar
a sérias alterações climáticas a longo prazo e ao colapso das atividades
agrícolas da sociedade humana.
Os efeitos da introdução dessas admistões gasosas na atmosfera também
se farão sentir no Hemisfério Sul. Haverá de imediato uma queda de
temperatura, e subseqüentemente um aumento gradual, com conseqüências
ecológicas a longo prazo. No estágio inicial, com temperaturas baixas, haverá
destruição de vegetação. Depois a temperatura subirá e haverá alterações
climáticas duradouras, que destruirão a possibilidade de renovação de recursos
biológicos.
Eu gostaria de lembrar mais uma vez que as propriedades elétricas da
atmosfera serão consideravelmente alteradas, principalmente na primeira fase
após as explosões, devido à radioatividade. A concentração de produtos
radioativos de um nanocurie por metro cúbico modificará a condutividade
atmosférica em cerca de 10%, e isso levará a sérias alterações. Como já foi dito,
haverá danos ecológicos porque a turbidez da atmosfera interromperá a luz
solar. E haverá destruição da camada estratosférica de ozônio.
Sabe-se que num conflito nuclear de 10.000 megatons haverá a produção
de 10 elevado a 32 moléculas de óxidos de nitrogênio por megaton. Dependendo
da altura alcançada pela nuvem na explosão, haveria uma destruição estável de
cerca de 7% do ozônio por meses ou anos depois da explosão. Uma única
explosão nuclear produz destruição na camada de ozônio, a qual em seguida se
reconstitui em alguns dias. Havendo muitas explosões não haverá difusão e o
ozônio não se reconstitui; a mudança na concentração de ozônio fica estável.
Com exposição em altitudes de 25 a 30 mil metros, cerca de 60% do ozônio são
destruídos. Deve ser lembrado que esse efeito se propagaria em pouco tempo
ao Hemisfério Sul, mesmo que as explosões se limitassem ao Hemisfério Norte.
De tudo que foi dito, deve ter ficado claro que explosões nucleares,
principalmente em grande escala, levarão não apenas a conseqüências muito
destrutivas localmente, mas também a destruição e a alterações em escala
global. Levarão a mudanças irreversíveis do clima e à destruição da camada de
ozônio, e comprometerão os ecos sistemas da Terra. Além do mais, os efeitos
serão sinérgicos. Os efeitos ecológicos poderão levar ulteriormente a um número
maior de mortos e vítimas que os efeitos diretos e imediatos, e isto tanto se
aplica aos que forem diretamente envolvidos numa guerra nuclear como aos que
forem envolvidos indiretamente, e mesmo numa guerra dita limitada. Isto
sublinha o fato de que numa guerra nuclear não pode haver vitoriosos nem
vencidos. Em última análise, todos os lados sofrem fatalmente. O Dr. Sagan já
falou sobre isso. Portanto, a questão que estamos levantando é a da própria
existência da vida na Terra.

BAYEV: A opinião de biólogos e médicos especialistas sobre a guerra


nuclear é perfeitamente definida: a guerra nuclear é imoral e inaceitável, tendo
em vista os enormes prejuízos que infligiria à espécie humana. É inaceitável
porque põe em dúvida a própria possibilidade de sobrevivência da humanidade e
a própria continuação da vida da Terra nas formas que conhecemos.
Eu gostaria de dizer alguma coisa sobre a morte de pessoas, a perda de
vidas humanas. No caso de uma guerra nuclear, a avaliação quantitativa dos
nossos cientistas coincide com a dos nossos colegas americanos. As perdas
imediatas entre a população resultantes de um ataque nuclear podem ser
calculadas com bastante exatidão, porque temos a triste experiência de Hiroxima
e Nagasáqui e os testes nucleares até hoje realizados. Temos assim cálculos
teóricos que nos fornecem os números e a possibilidade de estimar que cerca de
um quarto da população na região do ataque nuclear perecerá.
Quanto aos indivíduos queimados, feridos ou expostos à radiação, seus
destinos serão obviamente trágicos. A maioria não sobreviverá, simplesmente
porque não receberá socorro médico; não haverá meios de proporcionar
conforto, nem suprimento normal de alimentos e água e haverá exposição
continuada a fatores altamente hostis, como radiação e as perturbações
meteorológicas que se seguirão. Essas condições resultarão na morte de outro
quarto da população; portanto, perto da metade das pessoas expostas a um
ataque nuclear perecerá quase imediatamente.
Quanto aos que sobreviverem a esses primeiros efeitos, por tudo que
ouvimos dos nossos colegas americanos, e por tudo que sabemos, sua vida
subseqüente será difícil e problemática, e provavelmente a maioria dos
remanescentes não terá como sobreviver. Haverá fome; haverá transformações
meteorológicas; haverá rupturas em toda a estrutura social. Obviamente, isso só
poderá levar a conseqüências desastrosas. Nossa previsão é pois que, na
melhor das hipóteses, as populações de áreas submetidas a um ataque nuclear
só sobreviverão como pequenas ilhas de humanidade num ambiente hostil e
despojado de vida.
Deve-se frisar que todas essas modificações terão efeitos sinérgicos;
haverá exposição simultânea a muitos fatores adversos e nocivos.

BOCHKOV: Quando falamos das conseqüências ecológicas e biológicas de


uma guerra nuclear, é claro que temos em mente a humanidade. Portanto, ao
pensarmos nas possibilidades da sobrevivência humana após uma catástrofe
nuclear, não devemos recuar ante a conclusão de que as condições reinantes
não permitiriam a sobrevivência do homem como espécie. Devemos partir da
suposição de que o ser humano adaptou-se ao seu meio no correr de um longo
processo evolutivo e pagou o preço da seleção natural. Só nos últimos milhares
de anos ele adaptou o meio às suas necessidades e criou, por assim dizer, um
meio artificial para proporcionar-lhe alimento, abrigo e outras necessidades. Sem
este, o homem moderno não pode sobreviver. Em comparação com as
dramáticas transformações do ambiente tecnológico, a natureza biológica não
mudou no passado recente. Nas declarações do Dr. Ehrlich e do acadêmico
Bayev, foram-nos apontadas as muitas limitações que se oporiam à
sobrevivência do homem depois de uma catástrofe nuclear. Como também
temos de considerar o futuro mais distante, cabe observar que a maior parte dos
efeitos de uma guerra nuclear será de ordem genética. Se ilhas de humanidade -
ou como disse o Dr. Ehrlich, grupos de pessoas em alguma parte do oceano -
sobrevivessem, o que iriam defrontar em termos de conseqüências genéticas?
Se a população declinar drasticamente, surge a questão do número crítico de
indivíduos necessário para assegurar a multiplicação. Por um lado, haverá um
número mínimo de seres humanos; por outro, em razão desse pequeno número,
haverá isolamento, Inevitavelmente haverá cruzamento consangüíneo, e com
isso mutações letais se manifestarão devido à exposição fetal e neonatal à
radiação e à precipitação. Novas mutações hão de surgir, genes e cromossomos
serão danificados por obra da radiação, e com isso haverá um ônus genético a
mais a suportar. Haverá deformidades naturais e mortes ao nascer, de tal modo
que o ônus das afecções hereditárias será apenas parte de uma grande
sobrecarga. Certamente isso conduzirá à eliminação da humanidade, porque o
homem não será capaz de reproduzir-se como espécie.
Eu gostaria de frisar que, em termos de reprodução humana, os efeitos
sinérgicos desempenharão um papel particularmente deletério, porque o
cruzamento consangüíneo, as mutações resultantes e as condições de vida
extremamente difíceis não serão de molde a favorecer a sobrevivência do
homem.
Na seqüência de uma guerra nuclear, o futuro da humanidade deve
evidentemente ser visto na perspectiva de um mundo em que os ecossistemas e
os recursos ecológicos terão sido alterados ou destruídos. Assim, as condições
biológicas e sociológicas não seriam de molde a permitir ao homem manter-se
como espécie.
MALONE: Agradeço aos nossos colegas de Moscou. Um dos cientistas
soviéticos que está hoje em Washington conosco é o Dr. Nikita Moiseev, membro
correspondente da Academia de Ciências da URSS e diretor-adjunto do Centro
de Computação da Academia. Eu pediria ao Dr. Moiseev que informasse alguns
dos resultados relevantes obtidos no estudo de computador da Academia
Soviética - resultados que acreditamos confirmarão as conclusões fornecidas
pelos nossos modelos meteorológicos.

MOISEEV: Em primeiro lugar quero agradecer aos nossos colegas


americanos por esta oportunidade de participar desta magnífica Conferência aqui
em Washington. Nós partilhamos as preocupações dos nossos colegas
americanos, e achamos que o estudo das conseqüências possíveis de um
conflito nuclear é um dos principais objetos de interesse para os cientistas de
todo o mundo.
Também nós em nosso país estamos realizando várias pesquisas e
estudos nessa área. No Centro de Computação da Academia de Ciências, que
eu represento, estamos realizando estudos em três áreas principais.
Primeiro, estamos estudando as possíveis conseqüências de uma guerra
nuclear para o clima. Segundo, estamos estudando processos biológicos e
alterações na produtividade da biota. Depois há um terceiro ponto e um terceiro
problema. De modo geral, somos otimistas e esperamos que um dia a
humanidade mostrará suficiente sensatez para abandonar de uma vez por todas
qualquer idéia de empregar armas nucleares. Mas se isso acontecer, novos
problemas e dúvidas irão surgir: como irá a humanidade utilizar o seu novo
poderio e despender a sua nova riqueza? Se formos otimistas, devemos aplicar o
nosso esforço em refletir também neste problema.
Eu disse que esta Conferência é magnífica e falei sinceramente. Ela é
magnífica não apenas pelas questões que levantou, mas também pelas
oportunidades técnicas que nos proporcionou. Aqui em Washington eu vejo na
tela dois dos meus colegas de Moscou que participaram diretamente em alguns
dos cálculos de diferentes efeitos climáticos levados a efeito no Centro de
Computação da Academia de Ciências da URSS: Drs. Georgi Stenchikov e
Valeri Parkhomenko. Nossos estudos indicam que uma catástrofe nuclear global
acarretará uma forte redução da temperatura média da Terra. Só depois de uns
cinco ou seis meses haverá modulação da temperatura em base global. No
entanto localmente as mudanças de temperatura serão muito mais pronunciadas.
Ainda 240 dias (oito meses) após a guerra nuclear, a temperatura permanecerá
em muitas regiões muito abaixo da temperatura anterior à guerra. Os senhores
podem imaginar as conseqüências ecológicas de tal situação.
Também estudamos a perturbação da circulação atmosférica que resultaria
de um conflito nuclear global. Verificamos que o caráter da circulação se
modificaria por completo. Em vez da circulação clássica, restaria uma única
célula, e toda a poluição - todas as impurezas da atmosfera do norte - se
deslocaria em direção ao Hemisfério Sul. Vê-se claramente que não haveria
nenhum lugar da Terra que não sofresse as conseqüências de um conflito
nuclear global.
MALONE: Aos nossos colegas de Moscou quero dizer o quanto as nossas
deliberações foram enriquecidas pelas contribuições dos Drs. Moiseev, Golitsyn
e Aleksandrov. Também apreciamos esta oportunidade de trocar opiniões
através da nova tecnologia de satélites.
O Professor Moiseev colocou um ponto interessante ao mencionar a
dramática alteração do que os meteorologistas chamam de circulação geral.
Alguns de nós pensam ver fortes indicações de que haveria trocas inter--
hemisféricas consideráveis. Esse tema recebeu uma boa dose de atenção nesta
Conferência. Talvez um dos mais destacados meteorologistas do mundo, o Dr.
Israel, queira comentar os pareceres que ele e seus colegas possam ter sobre a
propagação dos efeitos cataclísmicos do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul.
Suas idéias seriam bem-vindas, mesmo que conjeturais, pois é claro que ainda
há um grande trabalho de análise a ser completado.

ISRAEL: De fato, ocorreriam mudanças de temperatura depois de um


conflito nuclear, compreendendo tanto a queda de temperatura logo após as
explosões como, mais tarde, um possível aquecimento devido ao efeito de
estufa. Sem dúvida isso afetaria a circulação da atmosfera. Mas eu concordo
com o Dr. Malone em que são necessários estudos complementares e cálculos
adicionais.
Quanto à troca de massas de ar, e portanto também de poluentes e
admistões gasosas, entre os Hemisférios Norte e Sul, estudos de radioatividade
residual em experiências nucleares mostraram que essa troca entre os dois
hemisférios realmente ocorre. Ocorre num período de meses e às vezes até de
anos, mas ocorre, e eu estou completamente convencido de que, após uma
catástrofe, as alterações verificadas no Hemisfério Norte certamente transferir-
se-iam ao Hemisfério Sul.

DR. KIRILL KONDRATYEV (membro correspondente da Academia de


Ciências da URSS e ex-reitor da Universidade de Leningrado): Eu gostaria de
juntar algumas observações às interessantes conclusões dos estudos sobre os
efeitos retardados de explosões nucleares sobre o clima. Elas dizem respeito à
análise de observações da luz solar. Medindo a radiação solar por meio de
balões em altitudes de até 30 mil metros e em seguida analisando os dados, nós
verificamos que um dos fatores importantes no enfraquecimento da radiação
solar era o NO2, formado na atmosfera após explosões nucleares de grande
potência nos testes realizados em 1962 e 1963. Ficou demonstrado que o NO2
contribuía em grau considerável para impedir a penetração da radiação solar até
o nível do solo. Procuramos estimar o esfriamento produzido pelos testes de
1962-63 e verificamos que a contribuição do NO2 pode ter sido responsável por
meio grau de esfriamento. Depois utilizamos o cenário publicado pela Ambio
em 1982 e extrapolamos para ver o que aconteceria no caso de uma guerra
nuclear. Os resultados mostraram um esfriamento global de 9,5 graus
centígrados, o que, naturalmente, é em si mesmo significativo. Mas ainda mais
significativo a meu ver é o fato de que o NO2 é um gás, e nós estamos falando
da estratosfera, portanto esse é um fenômeno a longo prazo, muito mais longo
que partículas de smog ou poluição na troposfera. A transferência desse efeito
ao Hemisfério Sul é muito grave, e pode significar que as conseqüências
retardadas serão tão nocivas para o Hemisfério Sul quanto para o Hemisfério
Norte. Nós percebemos esse efeito do NO2 observando a radiação solar em
1963, e também o percebemos muito claramente em 1964 e 65. E isso foi em
circunstâncias de circulação normal da atmosfera. No entanto nossos colegas
mostraram que se houver circulação transequatorial, o efeito será ainda mais
sensível.

MALONE: Evidentemente nós inauguramos uma era em que é possível


exprimir através de métodos de análise científica a impressão intuitiva que
muitos de nós vínhamos tendo há vários anos. Agora temos a oportunidade de
trocar pontos de vista sobre os modos de prosseguir nos caminhos abertos por
esta Conferência e através desta Conexão Moscou. Espero que agora possamos
ter alguns debates.

EHRLICH: Eu pediria ao Dr. Kondratyev que esclarecesse um biólogo sobre


um ponto de física. Pelo que entendi, o senhor disse que o efeito do NO2 na
camada de ozônio criaria um esfriamento superficial de 8 a 9 graus centígrados?
KONDRATYEV: Não, não foi disso que eu falei; eu me referi ao fato de que
o NO2 tem uma raia de absorção muito intensa em aproximadamente meio
micro, de modo que o NO2 atmosférico absorve radiação solar muito
intensamente na banda de absorção do NO2 . É exatamente onde está o
máximo no espectro da radiação solar. Portanto, isso nada tem a ver com o
ozônio. É um aspecto diferente da ação do óxido de nitrogênio na atmosfera.

SAGAN: Talvez eu possa levantar uma questão de ordem geral. Antes,


permitam-me dizer que é muito gratificante ver que pesquisas mais ou menos
independentes nos Estados Unidos e na União Soviética chegaram a conclusões
tão semelhantes sobre um assunto tão grave como as conseqüências retardadas
de uma guerra nuclear. Existe nesses estudos uma série de incertezas: nos
cenários escolhidos, na questão da quantidade de fuligem introduzida na
atmosfera pelos incêndios e da quantidade de poeira produzida por explosões de
grande potência no solo, nas questões da aglomeração de partículas na
atmosfera e do tempo que elas levarão para precipitar, questões de circulação
atmosférica e questões das doses de radiação, instantânea e a médio e longo
prazos. Em parte elas dependem de critérios de cálculo, e em parte dos dados
introduzidos. Dependem, por exemplo, dos dados relativos à distribuição de
dimensões das partículas resultantes de incêndios ou da explosão de armas
nucleares, e do coeficiente de absorção e índice de refração dessas partículas.
Nossos colegas soviéticos acham possível fornecer-nos dados sobre a função de
distribuição de dimensões de detritos, obtidos nos testes soviéticos de armas
nucleares antes do Tratado limitado de Proibição de Testes de 1963, e
informações sobre dimensões e coeficientes de absorção de partículas
produzidas em grandes incêndios na União Soviética? E mais, estariam
dispostos a eventualmente transmitir-nos uma gama de cenários de guerra
nuclear que consideram prováveis?

ISRAEL: Acho que o nosso diálogo e o debate dessas importantíssimas


questões devem ter prosseguimento, provavelmente por ocasião de encontros de
cientistas em conferências. De minha parte, tenho muitas perguntas a fazer a
colegas americanos com respeito aos dados iniciais empregados na construção
dos seus modelos. Em particular, tenho perguntas relativas à distribuição de
partículas por dimensões, e a quantidades e dimensões de partículas de
aerossol injetadas na atmosfera. Por exemplo, posso dizer que em nossos
cálculos da quantidade de partículas de aerossol de alta dispersão nós
calculamos em cerca de 1% ou pouco menos a proporção de partículas de
menos de um micro. Esse número, provavelmente próximo do que o senhor, Dr.
Sagan, citou no seu trabalho - creio que o senhor adotou 0,5% de aerossóis de
alta dispersividade (pequenas dimensões) - é inferior a 1%. Esses são aspectos
estritamente científicos, e certamente o senhor desejará discuti-Ios no futuro com
maior detalhe. Também concordo com o Dr. Sagan em que um aspecto muito
interessante deste nosso encontro é o fato de que os cálculos feitos, de forma
basicamente independente, levaram-nos a conclusões muito semelhantes com
respeito às linhas gerais das conseqüências ecológicas, geofísicas e biológicas
de uma guerra nuclear.

ACADÊMICO ROALD SAGDEYEV (diretor do Instituto de Estudos


Cósmicos da Academia de Ciências da URSS): Eu gostaria de dizer que a
elaboração de cenários da evolução da biosfera e da atmosfera após uma guerra
nuclear, que se vem fazendo nos últimos 20 anos, deu-nos finalmente um
modelo muito sério, cujos resultados foram relatados por dois grupos
independentes, o representado pelo Dr. Sagan e o formado pelos nossos
cientistas. A seriedade que vemos nesses modelos hoje atesta o fato de que nós
aprendemos a aplicar o enfoque planetário - um enfoque interdisciplinar - no
desenvolvimento dos modelos. Acho que devemos concordar em manter estreita
cooperação no desenvolvimento adicional desses modelos. Talvez os dados que
nós obtivemos em testes nucleares nos últimos 10 anos, por exemplo sobre a
dispersão e composição de aerossóis, possam ser utilizados nesses estudos.
Agora temos a tecnologia espacial à nossa disposição. Temos também alguns
fenômenos naturais que, embora ocorram em pequena escala, podem ser úteis
para modelar as conseqüências de uma guerra nuclear. Temos observações não
só de atividade vulcânica, que ejeta partículas de aerossol, como também de
erupções solares que provocam modificações na estratosfera - por exemplo, a
formação de óxidos nitrosos. Acredito que se fizermos disso uma atividade
conjunta e empregarmos novos métodos planetários, especialmente usando a
tecnologia espacial, será muito proveitoso.

MALONE: Haverá oportunidade no futuro para intercâmbio de dados e


desenvolvimento conjunto de cenários, para os quais muitos países podem
contribuir, como ponto de partida no estudo das conseqüências de uma guerra
nuclear. Eu aguardo com grande interesse um encontro com o acadêmico
Scriabin, primeiro-secretário científico da Academia da URSS, e com o Professor
Velikhov no fim deste mês, quando cientistas de muitos países se reunirão em
Estocolmo para tratar justamente das questões que foram aqui levantadas com
respeito à permuta de dados.
SAGAN: Foi um grande prazer para mim ouvir as observações
do acadêmico Roald Sagdeyev. O acadêmico Sagdeyev é diretor do Instituto de
Pesquisas Cósmicas da Academia de Ciências da URSS, e responsável pelo
programa soviético de exploração não-tripulada. Parece-me um fato
extremamente interessante que um campo aparentemente tão distanciado das
nefastas questões de vida e morte suscitadas pela guerra nuclear tenha
desempenhado um papel tão importante na iniciativa destes estudos.
Tanto o nosso trabalho, que começou pelo estudo da tempestade de poeira
de 1971 em Marte, observada pela Mariner 9, como alguns dos trabalhos aqui
mencionados pelo Dr. Golitsyn, foram estimulados por explorações planetárias
não-tripuladas. Se é que existem dúvidas quanto ao valor prático da exploração
planetária, penso que este trabalho basta para dissipá-Ias.

EHRLICH: Desejo agradecer ao acadêmico Bochkov por abordar a questão


genética, que nós não enfatizamos, em parte pelo fato de os efeitos biológicos
imediatos e à curto prazo (um período de meses ou anos) serem tão
esmagadores, pelo menos para os sobreviventes do Hemisfério Norte, no que se
refere aos riscos enormemente aumentados de câncer e de anomalias genéticas
em gerações futuras.
Mas parece-me que ele tocou num ponto que também nós consideramos
importantíssimo. A saber: os sobreviventes dispersos poderão sofrer sérios
efeitos do cruzamento consangüíneo e incidência acrescida de câncer. Outro
fator importante podem ser os efeitos das alterações genéticas . nos sistemas
ecológicos. Não é claro para nós a que condições eles retornarão após uma
guerra nuclear. As populações que os compõem terão sido submetidas a toda
espécie de novas pressões seletivas, de modo que os pequenos grupos de
sobreviventes humanos irão se deparar com um meio totalmente novo, com o
qual talvez não tenham os recursos culturais para avir-se. Eles não serão como
as antigas civilizações de caçadores e colhedores, que conheciam intimamente o
meio em que viviam e eram capazes de extrair o seu sustento à nível de
subsistência com grande facilidade. Os sobreviventes serão em sua maioria
indivíduos afeitos a uma existência "civilizada", que tentarão subsistir num
ecossistema radicalmente transformado. Isso deverá tornar os seus problemas
extremamente difíceis, tanto econômica como psicologicamente.

BOCHKOV: Eu gostaria de complementar o que disse o Dr. Ehrlich. Esperar


uma renovação da humanidade para uma nova espiral de evolução seria.
ingênuo, porque o homem entrará nessa nova era com as mesmas qualidades
biológicas que tinha antes, mas haverá deficiências. As pessoas do pós-guerra
nuclear terão deficiências somáticas e psíquicas, e o meio a que terão de
adaptar-se será muito mais hostil que em qualquer tempo precedente.

ACADÊMICO GEORGIY SCRYABIN (primeiro-secretário científico da


Academia de Ciências da URSS): Meu velho amigo Professor Malone disse que
voltaremos a ver-nos. Mas eu gostaria de dizer uma coisa hoje. Meu sentimento
em relação a esta Conferência é um tanto ambivalente. Por um lado, há um
sentimento de grande preocupação em face da possível tragédia que nos
ameaça, que paira sobre todos nós - sobre crianças, mulheres, velhos, e todos
os seres vivos da Terra. É uma tragédia potencial terrível, que não pode deixar
de incomodar e desassossegar qualquer ser humano normal.
Por outro lado, há nesta Conferência um grande motivo de satisfação: é o
fato de que os grandes cientistas neste momento reunidos - nossos colegas
americanos e cientistas russos - chegaram a um consenso. Estão unidos em sua
opinião de que não deve haver uma guerra nuclear, de que esta representaria
desastre e morte para a humanidade. Eu pessoalmente sinto-me satisfeito e
confortado com isso porque, hoje em dia, a autoridade dos cientistas é grande, e
todos nós devemos procurar fazer valer nossa influência no sentido de pôr fim à
corrida armamentista e para que jamais venha a ocorrer uma guerra nuclear.

VELIKHOV: Talvez algum dos nossos colegas americanos queira


acrescentar alguma coisa.

EHRLICH: Que mais podemos dizer senão que todos nós aqui partilhamos
esse desejo ardentemente? Esperamos que os povos do mundo e os dirigentes
do mundo prestem atenção ao fato de que o confronto Leste-Oeste ameaça não
só a União Soviética, os Estados Unidos e seus aliados diretos, como ameaça
todos os seres humanos do planeta, pelo menos com grandes sofrimentos e
provavelmente, para a grande maioria, com a morte.
Acho que esta deve ser a base de considerações para os chefes polí ticos
do mundo.

MALONE: Eu tenho a impressão de que esta Conferência e esta troca de


idéias poderão vir a ser vistas em anos futuros - justificadamente - como a virada
decisiva nos rumos da humanidade.
Lembra-me o incidente de 1954, quando as cinzas da explosão
experimental de uma bomba de hidrogênio caíram no Dragão Feliz - um
barco pesqueiro japonês. Criou-se em todo o mundo uma onda de grave
preocupação porque os testes nucleares estavam pondo em risco a atmosfera,
que é propriedade comum de todos os povos do mundo. Pouco depois
adotaram-se medidas políticas no sentido de estabelecer um controle mais
rigoroso sobre a realização de testes.
Espero portanto que esta Conferência, que teve por finalidade o
esclarecimento dessas questões e um intercâmbio cordial entre colegas, elevará
o nível de conscientização dos faze dores de política e marcará a mudança de
rumos que todos com tanto empenho esperamos.

DR. ALEXANDER KUZIN (membro correspondente da Academia de


Ciências da URSS): Como radiobiólogo, eu gostaria de chamar a atenção dos
senhores para outro problema. Se uma catástrofe nuclear vier a acontecer,
naturalmente haverá uma séria precipitação global de radionuclídeos e uma
elevação do nível de radiação residual. Como radiobiólogo, eu sei como varia
entre espécies diferentes a sensibilidade à radiação. O homem é uma das
espécies mais sensíveis. A maior exposição à radiação provocará muitas
mudanças; o sistema imunológico do homem será destruído. Ao mesmo tempo,
microorganismos patogênicos que nós classificamos geralmente como pestes
são muito resistentes a essa espécie de radioatividade. Com isso haverá um
novo desequilíbrio ecológico, que contribuirá para a exterminação da pequena
população humana que haja sobrevivido às conseqüências imediatas de uma
catástrofe nuclear.
É assim responsabilidade direta dos cientistas da União Soviética e dos
Estados Unidos levar ao conhecimento de todos, os grandes perigos que seriam
desencadeados por qualquer espécie de conflito nuclear, de modo a prevenir a
própria possibilidade de uma guerra nuclear, cujo desfecho não apenas seria
certamente o fim da civilização, senão que ameaçaria a vida como tal neste
planeta que amamos.

EHRLICH: Há mais um ponto. Se os efeitos se propagarem ao Hemisfério


Sul e nós nos reduzirmos a pequenos grupos, e Caso alguns desses pequenos
grupos consigam, a longo prazo, sobreviver a todos os efeitos de que aqui
falamos, inclusive os apontados pelo Dr. Kuzin, devemo-nos lembrar - e
devemos alertar os nossos governantes - de que uma vez perdida a civilização
tecnológica, é altamente improvável que jamais venhamos a recuperá-Ia.
Quando a humanidade se tornou civilizada e enveredou pelo caminho da
industrialização, havia grande quantidade de minérios ricos à flor da terra, e para
furar um poço de petróleo bastava enfiar uma vara no chão. Hoje temos de fundir
minérios de baixíssimo teor metálico, e perfurar milhares de metros para extrair
petróleo. Se as conseqüências de uma guerra nuclear se prolongarem por um
tempo tal que a tecnologia se perca, e os estoques de ferro e de outros recursos
importantes sejam destruídos pela corrosão e dispersados, é altamente
improvável que um grupo de caçadores-colhedores ou lavradores de
subsistência possa jamais refazer o 'caminho que 'leva à civilização tecnológica.

VELIKHOV: Parece-me haver um consenso de que a Conferência é um


passo importantíssimo; talvez ela dê de fato um novo impulso no sentido do
desarmamento nuclear. Ela forneceu conclusões científicas, dados e
informações a todos nós. Atualmente, todos deveriam ser capazes de tirar
conclusões práticas dessas informações.
Quanto a mim, penso que uma das conclusões importantes da nossa
Conferência é que mesmo o emprego de uma pequena parte dos arsenais
nucleares teria resultados catastróficos, não apenas pela morte imediata de
multidões de inocentes como pelas drásticas transformações que causariam no
meio e no clima, que poderiam trazer conseqüências infinitamente negativas.
Falando em geral, mesmo hoje a humanidade existe num siso tema ecológico
muito instável, de modo que qualquer desvio porá em risco a continuação dessa
existência.
Portanto, todas as colocações políticas que falam de guerras locais ou ditas
"limitadas", de guerras "controladas", de reação flexível ou de guerra prolongada,
são conceitos que, à luz do que agora sabemos, carecem de base totalmente.
Todas elas trazem consigo os resultados horríveis e catastróficos que acabamos
de ver.
Entendemos que nenhum armamento militar ou psicológico - e há muitos -
pode refutar esses resultados. A meu ver, a única conclusão possível é que os
nossos artefatos nucleares não podem ser usados como armas de guerra ou
como instrumentos de guerra; nem como instrumentos de política. São
instrumentos de suicídio.
Eu diria que as análises aqui apresentadas não se basearam no pior caso
possível, pois não levaram em conta alguns fatores possivelmente envolvidos
num conflito nuclear. Por exemplo, nós não consideramos os imensos depósitos
de resíduos tóxicos e não calculamos o impacto resultante no caso de eles
serem atingidos. Não consideramos os efeitos de serem atingidas usinas
nucleares. Certamente isso viria agravar os resultados, principalmente à longo
prazo. Conclui-se assim que a própria superioridade nuclear é uma ilusão, tendo
em vista a enorme quantidade de armas nucleares que já acumulamos.
Sabemos agora que as armas nucleares não são músculos do Estado moderno.
São, sim, uma excrescência cancerosa que ameaça a própria vida do planeta.
Assim como o doente de câncer não tem chance de viver uma vida longa e feliz,
também a humanidade não tem chance de continuar coexistindo com a bomba
para sempre. Ou nós destruímos o câncer, ou o câncer nos destruirá.
Essa é uma decisão fundamental, e todas as decisões provisórias só
podem ser provisórias. A meu ver, essa é a principal conclusão desta
Conferência, e a mais fundamental.

ROBERTS: Para mim é uma grande honra participar deste evento. Partilho
com Tom Malone a impressão de que este debate com nossos colegas da União
Soviética pode marcar uma mudança de rumo nos nossos modos de pensar e de
agir com relação à guerra nuclear. Foi um diálogo muito produtivo, acadêmico
Velikhov, e eu lhe agradeço e aos seus colegas por se juntarem a nós.
Durante a nossa Conferência sobre o Mundo após a Guerra Nuclear, o Dr.
Ehrlich fez um comentário muito interessante para o grupo aqui de Washington, a
saber, que o que vier a acontecer como conseqüência de uma guerra nuclear
pode incluir alguns perigos e possibilidades não previstos. Ouvi com grande
interesse a exposição do Dr. Israel sobre a possibilidade de ocorrer um
aquecimento subseqüente ao esfriamento. Parece-me que poderia ser mais um
efeito imprevisto. E, considerando a perspectiva de uma guerra nuclear,
lembramos as palavras do Dr. Sagan:
"O que mais teremos deixado de levar em conta?”
Mas mesmo deixando de levar em conta algumas outras conseqüências, é
claro para mim que temos diante de nós evidências bastantes para demonstrar o
imperativo que é para a humanidade evitar a guerra nuclear. E eu sinto que o
debate aberto e franco que tivemos aqui em Washington, na Conferência sobre o
Mundo após a Guerra Nuclear, e neste importante diálogo com nossos colegas
soviéticos foi extremamente útil e gratificante.
Todos nós temos consciência de que muitas questões científicas ainda não
foram completamente resolvidas. É minha esperança sincera que possamos
pensar juntos e combinar nossos esforços para esclarecer algumas dessas
questões, reduzir as incertezas e assegurar que o que possamos ter esquecido
não é tão importante, na perspectiva das coisas que sabemos. Entretanto, já
sabemos o suficiente para nos darmos conta de que é imperioso, em nome de
toda a humanidade, acelerar a busca da segurança do mundo no domínio da
política, assim como no domínio da ciência.
Como cidadãos de nossas nações, e como residentes desta frágil
espaçonave que é a Terra, devemos conceber e pôr em prática novas políticas
que garantam um futuro estável para o planeta e para todos os seus habitantes.
Agradecemos aos nossos colegas soviéticos a sua participação neste debate de
hoje.

MALONE: Muito obrigado. Com essas palavras prudentes, declaramos


encerrada esta Conexão Moscou. Eu me despeço com um pensamento. Nosso
desafio é o da razão. Duzentos anos atrás, Emanuel Kant disse que a razão
humana tende a centrar-se em três perguntas: "O que posso saber?" (ou o que
me é possível conhecer), "O que devo fazer?" (ou quais são os imperativos
morais) e, fInalmente, "O que posso esperar?" Nesta troca de idéias, eu vejo
uma base de esperança.
Levemos conosco esses pensamentos, principalmente o de que esta troca
de idéias proporciona uma base de esperança.

CONCLUSÃO
WALTER ORR ROBERTS

William D. Ruckelshaus, diretor da Agência de Defesa Ambiental dos


Estados Unidos, em recente artigo na revista Science, disse que o debate de
questões ambientais é freqüentemente dominado por um clima de medo. Ele
recomenda aos cientistas que façam maiores esforços no sentido de explicar ao
público de modo simples e fundamentado as conclusões subjacentes das
pesquisas, incluindo a exposição das incertezas das noções fundamentais, e
portanto dos riscos estimados. Entre as opções com que a humanidade se
defronta, nenhuma ilustra melhor essa recomendação que as conseqüências
biológicas de uma guerra nuclear em escala mundial. Nenhum prejuízo
ambienta! para a vida do planeta representa uma ameaça potencial maior,
principalmente quando combinada à consideração da destruição e da perda de
vidas diretamente decorrentes de uma guerra nuclear.
Em seu artigo, Ruckelshaus cita estas palavras de Thomas Jefferson: "Se
julgamos [o povo] insuficientemente esclarecido para exercitar o seu controle
com discrição razoável, o remédio não é arrebatá-Io dele, mas informar a sua
discrição.”
Esse propósito norteou magnificamente a Conferência sobre o Mun . do
após a Guerra Nuclear. Nosso objetivo foi informar os povos do mundo, na
convicção de que o esclarecimento levará ao exercício de uma discrição
universal razoável. Nós nos propusemos ater-nos estritamente a questões
científicas, explicar algumas descobertas novas, não previstas, de alta relevância
para a higiene do planeta, e reexaminar, na perspectiva de trabalhos mais
recentes, algumas das pesquisas precedentes sobre o assunto. Basicamente
estamos de acordo no que diz respeito aos temas físicos e biológicos tratados na
Conferência.
Provavelmente há menos unanimidade quanto a como lidar com as
questões políticas levantadas por essas verificações científicas. Estou certo de
que muitos de nós divergem quando se trata de optar entre as alternativas
sociais, econômicas, políticas e mesmo éticas que nos defrontam como
membros que somos de nações-Estados e da comunidade universal dos povos.
Por isso evitamos propositalmente o debate de questões e opções de ordem
política nesta Conferência. É claro que as questões políticas são de suma
importância, e devem ser profundamente meditadas, extensamente discutidas e
finalmente aplicadas à ação. E o que é mais, há urgência em mudar para um
novo terreno na área da política.
Thomas W. Wilson, Jr. enfatizou recentemente a prioridade dessas
questões políticas numa excelente análise intitulada "Conceitos Modificados de
Segurança Nacional", da qual citarei uma breve passagem:

Finalmente esse tema [segurança nacional] corre solto no domínio público -


mais ou menos fora dos limites estritos do isolamento burocrático, do sigilo oficial
e da complexidade esotérica dos cálculos estratégicos... ainda estamos nos
estágios preliminares de um reexame cabal das nossas crenças, teorias,
tradições, doutrinas e idéias feitas em que se baseiam a política e a estratégia no
campo da segurança das nações e dos povos. e provável que este venha a
revelar-se um processo doloroso, demorado e turbulento - às vezes, talvez,
raiando pelo trauma - pois o que está em jogo é muito grande, e os temas muito
emocionais...
No mundo real de hoje os interesses nacionais dos diferentes Estados
convergem na necessidade de suster e defender os sistemas vivos do planeta
Terra - e isso nos inclui. O que vale dizer que o único modo de salvar a nossa
própria pele a tornar a Terra segura. E assim a segurança do mundo é uma
política para pragmáticos - e também para poetas. Oferece uma estratégia
talhada para santos e também para soldados.

É importante, na medida do possível, que esse "processo doloroso,


demorado e turbulento" de debate nasça de um terreno comum de compreensão
dos conhecimentos físicos e biológicos subjacentes. Foi o que o Comitê de
Orientação desta Conferência definiu como nosso objetivo, e eu louvo os
participantes e o auditório por sua adesão a essas normas básicas.
O cenário principal de referência de guerra nuclear envolve um intercâmbio
de 5.000 megatons, que projeta uma porção considerável da poeira e da fuligem
produzidas por incêndios de cidades e florestas na alta troposfera (parte superior
da baixa atmosfera) e na baixa estratosfera (parte inferior da alta atmosfera),
acima do nível normal das nuvens. Essa tonelagem é bem menos da metade dos
arsenais somados dos Estados Unidos e URSS. É também aproximadamente a
escala de conflito nuclear analisada no relatório publicado em junho de 1982 pela
revista Ambio, da Real Academia Sueca de Ciências, e em vários outros estudos
preliminares.
Conflitos nucleares mais limitados parecem produzir da mesma forma
grandes perturbações ambientais e grandes danos biológicos, além e acima dos
causados pelas explosões e pela radiação. Parece que as perturbações
ambientais não guardam muita proporção com a escala da guerra, desde que a
tonelagem seja suficiente para provocar grandes incêndios. Estudaram-se
modelos com tonelagens de apenas 100 megatons, e mesmo nestes
demonstrou-se a probabilidade de efeitos adversos importantes no caso de
ataques a concentrações urbanas. Muitos dos efeitos descritos no cenário de
5.000 megatons fizeram-se presentes em conflitos bem menores.
Com o cenário de 5.000 megatons para definir as condições iniciais, pelo
menos três grupos analisaram modelos meteorológicos globais na tentativa de
estimar as conseqüências do ponto de vista da meteorologia e climatologia.
Esses modelos matemáticos alcançaram um tal nível de sofisticação que a
maioria dos cientistas dedicados ao problema inclina-se a acreditar que eles
simulam de forma realista as características gerais do mundo real da
meteorologia quando as hipóteses básicas são bem compreendidas. As últimas
conclusões são bastante alarmantes. As enormes tempestades ígneas
produzidas numa guerra nuclear desempenham um papel considerável nos
danos ambientais, em função do smog e da fuligem transportados às camadas
altas da atmosfera. Essas nuvens de partículas alteram dramaticamente o
equilíbrio da radiação na atmosfera. Podem não apenas produzir "trevas ao
meio-dia" como primeiro sugerido por Crutzen e Birks em 1982, mas também
modificar radicalmente os padrões globais dos ventos, das chuvas e das neves.
O cenário utilizado representa uma guerra em grande escala no Hemisfério
Norte (mas não numa escala implausível, em termos dos arsenais mundiais de
armas nucleares). Em conseqüência de uma guerra como essa, como os
senhores ouviram, é quase certo que a quantidade média de luz solar a atingir a
superfície da Terra no Hemisfério Norte será drasticamente reduzida, talvez a
uma diminuta percentagem dos níveis diurnos normais. Nesse cenário, as
tempestades cairão bruscamente nos primeiros dias seguintes à guerra. O tempo
de recuperação para a radiação solar, temperatura, chuvas e ventos será de
alguns meses a alguns anos.
O principal estudo físico apresentado nesta Conferência por Carl Sagan
baseia-se no modelo construído por Turco, Toon, Ackerman, Pollack e Sagan -
designado como modelo TTAPS. Na primavera passada um grupo de físicos
debateu e criticou uma primeira minuta do relatório TTAPS. O principal estudo
biológico foi apresentado por Paul Ehrlich, e também se baseia num amplo
consenso de um grande grupo de eminentes biólogos que se reuniram na
primavera passada, logo após o seminário dos físicos.
O modelo TTAPS nos diz que se a guerra ocorrer no verão do Hemisfério
Norte, as temperaturas cairão muito abaixo do ponto de congelamento em
extensas áreas de cultura de latitudes médias como os cinturões de trigo e milho
da América do Norte, principal fonte mundial de exportação de grãos. Segundo o
modelo, um conflito nuclear limitado de apenas 100 megatons que envolvesse
centros urbanos poderia produzir, mesmo no verão, temperaturas continentais
abaixo do ponto de congelamento durante vários meses.
A energia solar necessária à fotossíntese de matéria vegetal será
radicalmente reduzida - a maior parte das plantas cultivadas simplesmente
não produz na sombra, mesmo que haja calor suficiente. Ao que parece, a
fumaça responsável pelo escurecimento pode ser rapidamente transportada para
o outro lado do equador. Assim, os efeitos meteorológicos e os efeitos sobre a
vida vegetal produzidos pela guerra nuclear podem propagar-se globalmente em
tempo relativamente curto.
Mesmo em áreas tropicais, como a bacia amazônica, segundo modelos
paralelos e suplementares trabalhados por Schneider, Covey e Thompson do
NCAR, que usaram o mesmo cenário, é provável a ocorrência de temperaturas
glaciais já nos primeiros dias após a guerra. Suas conclusões, como as do
TTAPS, indicam frio extremo em regiões agrícolas de latitudes médias mesmo
após uma guerra de verão. No seu modelo, o rápido esfriamento dos dias
imediatamente seguintes à guerra é sucedido em tempo relativamente curto por
urna recuperação da temperatura nas vizinhanças das costas ocidentais
produzida pelo efeito moderador dos oceanos, termicamente estáveis, na medida
em que ventos fortes transportarão o calor dos oceanos a grandes distâncias
terra à dentro. Mas danos sérios já terão sido causados às lavouras e a outras
fontes de alimentos.
É provável que grande parte da produção de alimentos agrícolas e
silvestres no Hemisfério Norte seja quase anulada no período de um ano, e
também nos trópicos e no Hemisfério Sul a produção de alimentos pode ser
consideravelmente reduzida. Mesmo com reservas normais de alimentos, é
possível que um terço da população do mundo venha a morrer de doenças
ligadas à desnutrição, somando-se ao terço que pode morrer pelos efeitos
diretos das explosões e da radiação local instantânea numa guerra nuclear
mundial em grande escala. Novas calamidades serão provocadas pela escuridão
e pelo frio intenso. Perdas adicionais resultarão da falta de água potável e outros
serviços em virtude do congelamento, estrago ou poluição de sistemas naturais
de suprimento e falta de apoio infra-estrutural humano. Mesmo as populações de
países em desenvolvimento situados em zonas tropicais distantes dos cenários
da guerra enfrentarão terríveis problemas de alimentação. A região africana do
Sael, que já sofre grave escassez de alimentos e depende em alto grau da
importação de produtos agrícolas, não escapará aos efeitos adversos de uma
conflagração remota.
Além do mais, com toda a probabilidade as bolas de fogo da guerra nuclear
gerarão óxidos de nitrogênio (NOx) em quantidade suficiente para reduzir a
camada de ozônio e com isso aumentar várias vezes a radiação solar ultravioleta
durante vários anos, impedindo a recuperação de plantas e animais por um longo
período. Até o plâncton marinho pode ser afetado, e por conseqüência os
alimentos tirados do mar. Pode haver grande incidência de cegueira em homens
e animais em razão de cataratas e lesões da córnea induzidas pela radiação
ultravioleta. Outro perigo ê a redução das defesas imunológicas do homem e de
outros mamíferos, e conseqüente alastramento de doenças. A multiplicação de
insetos e outras pragas adaptadas de forma oportunista às novas condições
ambientais é uma possibilidade definida.
Ehrlich explicou que "todos os sistemas humanos estão contidos em
ecossistemas e dependem totalmente deles para a produção agrícola e para
uma série de outros 'serviços públicos' gratuitos. Esses serviços incluem a
regulação dos climas e manutenção da composição gasosa da atmosfera;
suprimento de água doce; remoção de resíduos; reciclagem de elementos
nutrientes (inclusive os indispensáveis à agricultura e à silvicultura); geração e
preservação de solos; controle da imensa maioria das pragas potenciais das
lavouras e vetores de enfermidades humanas; suprimento de alimentos do mar;
e manutenção de uma vasta 'biblioteca' genética da qual a humanidade já tirou a
própria base da civilização - inclusive todas as plantas cultivadas e animais de
criação". E fez notar que uma guerra nuclear truncaria esses serviços gratuitos
prestados pela natureza numa ocasião em que as pessoas mais precisariam
deles.
Em todos os modelos meteorológicos e climáticos existem incertezas. O
modelo TTAPS, o do NCAR e o apresentado pelos nossos colegas da URSS
diferem em alguns detalhes - como se viu nos debates do painel. Por exemplo, o
modelo soviético mostrou que depois do esfriamento brusco as temperaturas
poderão subir acima do "normal" anterior. Mas todos eles mostram o esfriamento
imediato e desastroso. Além disso, as conseqüências biológicas não somente
guardam dependência dos modelos físicos, que têm suas limitações, como têm
igualmente suas incertezas próprias. Mas as conclusões gerais são sólidas
mesmo em face dessas diferenças e incertezas, e quando menos dão o que
pensar. Se é que ainda precisamos de outros incentivos para prevenir um
holocausto nuclear além dos que encontramos nas conseqüências diretas da
guerra, eles nos dão dados em abundância. Esta Conferência não tratou das
medidas políticas necessárias ao controle do confronto nuclear global. Mas
forneceu evidências de que as ameaças à sobrevivência dos sistemas biológicos
são maiores do que anteriormente se supunha, e que realmente podem pôr em
risco tudo quanto conquistamos em milênios de civilização.
Como disse Carl Sagan, "é possível que a população do Homo sapiens se
reduza a níveis pré-históricos ou a menos ainda, e a própria extinção da espécie
humana não pode ser excluída". Paul Ehrlich disse mais ou menos a mesma
coisa em palavras um pouco diferentes.
Donald Kennedy abriu a nossa Conferência com uma exposição brilhante.
Nela, ele observou que há grandes incertezas no que foi apresentado, mas
também que "estas descobertas são parte de um processo ordenado na
evolução do pensamento científico, através do qual pouco a pouco viemos
deslocando o foco de nossas atenções dos efeitos mais imediatos e mais óbvios
para os mais complexos e duráveis". Disse a seguir que esses novos efeitos são
ainda mais sérios, posto que muito mais difíceis de estimar com precisão. E
disse mais, que "... a incerteza deveria ser uma advertência temática para os
planejadores políticos. O que as nossas projeções mais ponderadas mostram é
que um choque nuclear em grande escala haverá de produzir, entre os seus
muitos efeitos plausíveis, as maiores convulsões biológicas e físicas deste
planeta nos últimos 65 milhões de anos - um período mais de 30 mil vezes maior
que o tempo decorrido do nascimento de Cristo, e mais de 100 vezes o tempo de
existência até aqui da nossa espécie". "É preciso que a avaliação dos riscos
prováveis", disse ele, "se constitua numa base de considerações para todos
aqueles que de têm a responsabilidade pelas decisões de segurança nacional,
aqui e em outras partes." Esperamos que as nossas apresentações venham
contribuir definitivamente para o objetivo da exortação de Thomas Jefferson no
sentido de informar a discrição do povo, para que ele possa exercitar tal discrição
de modo esclarecido e razoável.
As questões científicas, é óbvio, ainda não foram plenamente resolvidas. Eu
tenho a satisfação de saber que organismos internacionais como o SCOPE,
Comitê Científico para Problemas do Ambiente, entre outros, têm planos para dar
continuidade seriamente ao estudo desses pontos. A parte científica do processo
deve prosseguir, para que as incertezas se reduzam. Mas nós já sabemos o
suficiente com respeito aos riscos para compreender que é imperioso, em nome
da humanidade, acelerar a busca da segurança do mundo no campo da política.
Como cidadãos de nossos Estados nacionais, e como residentes da
"espaçonave Terra", devemos de fato conceber e praticar políticas que
assegurem um futuro estável ao planeta, aos seus pragmáticos, poetas, santos,
soldados e enfim, a todos os seres vivos sencientes.

APÊNDICE

O INVERNO NUCLEAR:
CONSEQÜÊNCIAS GLOBAIS DE EXPLOSÕES MÚLTIPLAS
NUCLEARES

Tem-se manifestado Uma preocupação com respeito às conseqüências a


curto e a longo prazos da poeira, fumaça, radioatividade e gases tóxicos que
seriam produzidos numa guerra nuclear. A descoberta de que nuvens densas de
partículas de solo podem ter desempenhado um papel importante em extinções
em massa ocorridas na Terra no passado incentivou a reconsideração dos
efeitos de uma guerra nuclear. Também, recentemente, Crutzen e Birks
sugeriram que grandes incêndios ateados por explosões nucleares poderiam
gerar quantidades de fumaça fuliginosa que atenuariam a luz solar e
perturbariam o clima. Essas circunstâncias levaram-nos a calcular, utilizando
novos dados e modelos aperfeiçoados, os possíveis efeitos ambientais globais
de nuvens de poeira e fumaça (daqui por diante designadas poeira nuclear e
fumaça nuclear) geradas numa guerra nuclear. Provavelmente a maior parte da
população do mundo sobreviveria ao conflito nuclear inicial e herdaria o meio de
pós-guerra. Dessa forma, os efeitos retardados e globais de uma guerra nuclear
poderiam vir a revelar-se não menos importantes que as conseqüências
imediatas da guerra.
Para estudar esses fenômenos, nós utilizamos uma série de modelos
físicos: um modelo de cenário de guerra nuclear, um modelo de microfísica de
partículas e um modelo de radiação-convecção. O modelo de cenário de guerra
nuclear especifica a poeira, a fumaça e a radioatividade em função da altitude, e
as injeções de NOx para cada explosão num conflito nuclear (supondo a
potência, número e tipo das detonações, inclusive altura de explosão, local
geográfico e fração de energia de fissão liberada). O modelo-fonte de fixação de
parâmetros é explicado adiante e numa memória mais detalhada. O modelo
físico unidimensional prediz a evolução no tempo das nuvens de poeira e
fumaça, que por hipótese se dispersariam rápida e uniformemente. O modelo
unidimensional de radiação-convecção (1-D RCM) aplica as distribuições
calculadas de dimensões de partículas de poeira e fumaça, as constantes óticas
e a teoria de Mie para calcular propriedades óticas nas faixas visível e
infravermelha, fluxos de luz e temperaturas do ar em função do tempo e da
altura. Como as temperaturas do ar calculadas são sensíveis às capacidades
térmicas superficiais, elaboram-se simulações distintas para meios terrestres e
oceânicos, para definir possíveis contrastes de temperatura. As técnicas
empregadas nos cálculos do nosso 1-D RCM estão bem documentadas.
Os modelos por nós empregados, embora podendo fornecer estimativas
aproximadas dos efeitos médios de nuvens de poeira e fumaça disseminadas em
grandes extensões, não permitem prever com precisão efeitos locais ou a curto
prazo. A aplicabilidade dos nossos resultados depende da velocidade e da
extensão da dispersão das nuvens de explosões e dos penachos produzidos por
incêndios. Logo após um conflito nuclear de grandes dimensões, milhares de
nuvens isoladas de poeira e fumaça distribuir-se-iam em toda a faixa de latitudes
médias setentrionais e em altitudes de até 30.000 metros. Difusão horizontal
turbulenta, arrastamento vertical pelo vento e emissão continuada de fumaça
poderiam espalhar as nuvens de detritos nucleares pela zona inteira, tendendo a
preencher os claros entre as nuvens em uma a duas semanas. As simulações
desse período inicial de dispersão das nuvens com base em valores espaciais
médios devem ser vistas com cautela; os efeitos seriam menores em certos
locais e maiores em outros, e variariam com o tempo em qualquer local
determinado.
Os presentes resultados também não refletem a forte conjugação entre os
movimentos atmosféricos em todas as escalas de extensão e as taxas
modificadas de aquecimento e esfriamento atmosféricos por radiação solar e
infravermelha computadas com o 1-D RCM. É quase certo que os padrões de
circulação global se alterariam em resposta às grandes perturbações das forças
agentes aqui calculadas. O 1-D RCM, embora só possa predizer condições
correspondentes a valores horizontais, diurnos e sazonais médios, é capaz de
estimar as respostas climáticas de primeira ordem da atmosfera, que constituem
o objeto deste estudo.

Cenários

Um balanço dos arsenais nucleares do mundo mostra que as armas


primárias estratégicas e de teatro representam 12.000 megatons (MT) de
potência transportados por 17.000 ogivas. Em potência explosiva esses arsenais
equivalem aproximadamente a um milhão de bombas de Hiroxima. Embora o
número total de ogivas de alta potência esteja diminuindo com o tempo, cerca de
7.000 MT ainda correspondem a ogivas de mais de 1 MT. Existem também
30.000 ogivas táticas e munições de baixa potência, que não são consideradas
nesta análise. Os cenários de emprego possível de armas nucleares são
complexos e discutíveis. Historicamente, os estudos dos efeitos à longo prazo de
uma guerra nuclear têm-se concentrado num conflito em grande escala, na faixa
de 5.000 a 10.000 MT. Esses conflitos são possíveis, tendo em vista os arsenais
atuais e a natureza imprevisível de uma guerra, particularmente de uma guerra
nuclear, em que poderia ocorrer uma escalada maciça do conflito.
O Quadro 1 mostra um sumário dos cenários adotados neste estudo. Nosso
cenário de referência supõe um conflito de 5.000 MT. Os demais casos cobrem
uma gama de potência total de 100 a 25.000 MT. Muitas instalações industriais e
militares de alta prioridade localizam-se nas vizinhanças ou dentro de zonas
urbanas. Em vista disso, a fração da potência total atribuída a objetivos urbanos
ou industriais (15-30%) é modesta. Tendo em vista a grande potência das ogivas
estratégicas (em geral mais de 100 quilotons [KT]), ataques "cirúrgicos" contra
objetivos isolados são difíceis; por exemplo, uma explosão aérea de 100 KT
pode arrasar e queimar uma área de 50 km2, e uma explosão aérea de 1 MT,
uma área 5 vezes maior, o que implica estragos colaterais extensos em
quaisquer ataques de "contra-valor", e em muitos dos de "contra-força".

As propriedades da poeira e da fumaça nucleares são fatores críticos para


a presente análise. A fixação dos parâmetros básicos é mostrada nos Quadros 2
e 3, respectivamente; detalhes podem ser encontrados na Ref. 15. Para cada
cenário de detonações, as quantidades fundamentais que têm de ser conhecidas
para efeito de previsões óticas e climáticas são as injeções atmosféricas totais
de poeira fina (raio menor ou igual a 10 u) e fuligem.
Explosões nucleares no solo ou próximas do solo podem gerar partículas
finas por vários mecanismos: (i) ejeção e desagregação de partículas de solo, (ii)
vaporização e renucleação de terra e rocha, e (iii) assopramento e arrastamento
vertical de poeira e fumaça da superfície. Análises de dados de testes nucleares
indicam que aproximadamente 1 x 10 elevado a 5 a 6 x 10 elevado a 5 toneladas
de poeira por megaton de potência explosiva são contidas nas nuvens
estabilizadas de detonações superficiais em terra.
Além disso, a análise de dimensões de amostras de poeira recolhidas em
nuvens nucleares indica uma fração submicrométrica substancial. Detonações
nucleares na superfície podem ser muito mais eficientes em gerar poeira fina do
que erupções vulcânicas, que foram impropriamente utilizadas no passado para
estimar os impactos de uma guerra nuclear.

A intensa luz emitida pela bola de fogo nuclear é suficiente para iniciar a
combustão de matérias inflamáveis numa extensa área. As explosões sobre
Hiroxima e Nagasáqui atearam incêndios de grandes proporções. Em ambas as
cidades, a região pesadamente destruída pelo sopro foi também consumida pelo
fogo. Avaliações feitas nestes últimos 20 anos sugerem fortemente que
ocorreriam incêndios extensos na maior parte dos casos de detonações sobre
florestas e cidades. O Hemisfério Norte tem 4 x 10 elevado a 7 km2 de áreas
florestais, que contêm matérias combustíveis na proporção média de 2,2 g/cm2.
As zonas urbanas e suburbanas do mundo cobrem uma área de 1,5 x 10 elevado
a 6 km2. Os centros de cidades, que ocupam entre 5 e 10% da área urbana total,
contêm entre 10 e 40 g/cm2 de matérias combustíveis, enquanto as áreas
residenciais contêm entre 1 e 5 g/cm2.
A emissão de fumaça de incêndios florestais e de incêndios urbanos de
grandes proporções situa-se provavelmente na faixa de 2 a 8% em massa do
combustível queimado. A fração fuliginosa, de alto coeficiente de absorção
(principalmente carbono grafítico) pode chegar a 50% da emissão em peso. Em
incêndios florestais, e provavelmente em incêndios urbanos, mais de 90% da
massa de fumaça são constituídos de partículas de menos de 1u de raio. Nos
cálculos relativos à faixa de luz visível, atribuiu-se à parte imaginária do índice de
refração da fumaça o valor 0,3 elevado a 50.

Simulações

De modo geral, as previsões de modelo aqui referidas representam efeitos


médios no Hemisfério Norte (HN). As explosões nucleares e incêndios iniciais
seriam na maior parte circunscritos às latitudes setentrionais médias (30º a
60ºN). Assim sendo, a opacidade média prevista por efeito da poeira e fumaça
poderia ser duas a três vezes maior nas latitudes médias, e menores em outras
partes. As profundidades óticas médias hemisféricas nos comprimentos de onda
visíveis para as nuvens mistas de poeira e fumaça nucleares correspondentes
aos cenários do Quadro 1 são mostradas na Figura 1. A profundidade ótica
vertical é um diagnóstico útil das propriedades da nuvem nuclear, e pode ser
utilizada de modo aproximado para calcular os níveis de luminosidade e
temperatura atmosféricas para os diversos cenários.
No cenário de referência (Caso 1, 5.000 MT), a profundidade ótica inicial no
HN é 4, sendo 1 devido à poeira estratosférica 3 à fumaça troposférica. Depois
de um mês a profundidade ótica ainda é 2. Ao fim de dois a três meses, a poeira
domina os efeitos óticos, pois a maior parte da fuligem é arrastada ou lavada
pela chuva. No caso de referência, cerca de 240.000 km2 de áreas urbanas são
parcialmente queimados (50%) por 1.000 MT de explosões (apenas 20% da
energia total liberada). Isso corresponde aproximadamente a 1/6 da área
continental urbanizada do mundo, a 1/4 da área desenvolvida do HN e à metade
da área dos centros urbanos de mais de 100.000 habitantes dos países da
OTAN e do Pacto de Varsóvia. A quantidade média de matérias combustíveis
consumidas na área incendiada é1,9 g/cm2. Incêndios florestais ateados pelos
restantes 4.000 MT de energia queimam outros 500.000 km2 de árvores, campos
e pastos, consumindo dessa forma 0,5 g/cm2 de matérias combustíveis

Figura 1: Profundidades óticas verticais (dispersão mais absorção, médias


hemisféricas) de nuvens de poeira e fumaça nucleares no comprimento de onda
de 550 nm, em função do tempo. Profundidades óticas menor ou igual a 0,1 são
desprezíveis, 1 são significativas, e maior que 2 implicam a possibilidade de
conseqüências de vulto. Em profundidades óticas maior ou igual a 1 a
transmissão da luz solar torna-se altamente não-linear. São mostrados
resultados para vários casos do Quadro 1. Profundidades óticas calculadas para
a nuvem da erupção do El Chichón em expansão são mostradas para efeito
comparativo.

A emissão total de fumaça no caso de referência é de 225 milhões de


toneladas (desprendidas no correr de vários dias). Em comparação, a emissão
global anual de fumaça hoje é estimada em 200 milhões de toneladas, mas o
grau de perturbação da atmosfera por ela produzido é provavelmente menos de
1% do da fumaça nuclear.
As simulações de profundidade ótica para os Casos 1, 2, 9 e 10 na Figura 1
mostram que uma gama de energia liberada entre 3.000 e 10.000 MT poderia
produzir efeitos semelhantes. Mesmo os Casos 11, 12 e 13, ainda que menos
severos em seu impacto absoluto, produzem profundidades óticas comparáveis
ou superiores às de uma grande erupção vulcânica. É interessante notar que
erupções como a do Tambora em 1815 podem ter causado perturbações
climáticas significativas, mesmo com uma redução média de temperatura
superficial inferior a 1ºK.

Figura 2: Variações da temperatura superficial (médias hemisféricas) após


um conflito nuclear. São mostrados resultados para vários casos do Quadro 1.
(Note-se que, diferentemente da Fig. 1, a escala de tempo é linear.) Em geral, as
temperaturas aplicam-se ao interior das massas continentais. Somente nos
Casos 4 e 11 são desprezados os efeitos dos incêndios.

O Caso 14 representa um ataque de 100 MT a cidades, com 1.000 ogivas


de 10 KT. No ataque, 25.000 km2 de áreas urbanas construídas são incendiados
(essa área corresponderia aproximadamente a 100 grandes cidades). A emissão
de fumaça é calculada com parâmetros de incêndios diferentes dos do caso de
referência. A carga média de matérias combustíveis em áreas urbanas centrais é
de 20 g/cm2 (contra 10 g/cm2 no Caso 1) e o fator médio de emissão de fumaça
é 0,026 g de fumaça por grama de material queimado (contra o valor moderado
de 0,011 g/g adotado para incêndios em centros de cidades no caso de
referência). Cerca de 130 milhões de toneladas de fumaça urbana são injetadas
na troposfera em cada caso (no Caso 14 nenhuma fumaça alcança a
estratosfera). No caso de referência, só cerca de 10% da fumaça urbana se
originam de incêndios em áreas urbanas centrais (Quadro 3).
O limiar de injeção de fumaça para perturbações óticas importantes em
escala hemisférica parece situar-se em 1 x 10 elevado a 8 toneladas. Com base
no Caso 14, pode-se esperar o desprendimento de 1 x 10 elevado a 6 toneladas
de fumaça de cada uma das 100 grandes cidades incendiadas, consumindo 4 x
10 elevado a 7 toneladas de matérias combustíveis por cidade. Esses incêndios
podem ser ateados por 100 MT de explosões nucleares. Inesperadamente,
menos de 1% dos arsenais estratégicos existentes, se empregado contra
cidades, poderia produzir distúrbios óticos (e climáticos) muito maiores que os
anteriormente associados a um conflito nuclear maciço de 10.000 MT2.
A Figura 2 mostra a perturbação da temperatura superficial em áreas
continentais do HN calculada a partir das profundidades óticas de poeira e
fumaça para diversos cenários. O mais Impressionante são as temperaturas
extremamente baixas que ocorrem em três a quatro semanas após um conflito
em grande escala. No caso de referência de 5.000 MT, prediz-se uma
temperatura mínima em áreas continentais de 250ºK (-23°C) ao fim de três
semanas. Temperaturas abaixo de 0ºC persistem por
Figura 3: Perturbações das temperaturas troposféricas e estratosféricas no
Hemisfério Norte (em graus Kelvin; 1ºK = 1°C) após o conflito nuclear de
referência (Caso 1). A área hachurada indica esfriamento. Também são dadas.
as pressões ambientes em milibars.
vários meses. Entre os casos mostrados, as menores quedas de
temperatura em terra são de 5º a 10ºC (Casos 4, 11 e 12), suficientes para
transformar o verão em inverno. Assim, são de esperar conseqüências climáticas
severas em todos esses casos. O cenário de 100 MT de explosões aéreas sobre
cidades (Caso 14) produz um intervalo de dois meses de temperaturas abaixo de
0ºC em terra, com um mínimo também aqui, próximo de 250ºK. O
restabelecimento da temperatura neste caso é acelerado pela absorção da luz
solar em nuvens de fuligem remanescentes oticamente tênues (ver abaixo).
Cenários comparáveis com e sem emissão de fumaça (p. ex., Casos 10 e 11)
mostram que as camadas troposféricas de fuligem causam um esfriamento
superficial abrupto de curta duração, ao passo que a poeira fina estratosférica é
responsável por esfriamento prolongado, durando um ano ou mais. (Do ponto de
vista do clima, um esfriamento superficial de apenas 1ºC já é significativo.) Em
todos os casos, a poeira nuclear age no sentido de esfriar a superfície da Terra;
a fuligem também tende a esfriar a superfície, salvo quando a nuvem de fuligem
é oticamente tênue e localizada próximo à superfície (um caso pouco importante,
pois com isso não se obtêm mais que pequenos aquecimentos transitórios de
menos de 20K).
As variações preditas de temperatura do ar sobre os oceanos ligadas às
alterações do transporte atmosférico de radiação são sempre pequenas
(esfriamento inferior a 3ºK) por causa do grande conteúdo de calor e rápida
mistura das águas superficiais. No entanto, variações nos padrões de circulação
atmosférica zonal (ver abaixo) podem alterar de modo considerável as correntes
e vagas marinhas, como ocorreu há pouco tempo em menor escala no leste do
Pacífico (El Niño). O reservatório oceânico de calor também moderaria os
declínios preditos de temperatura continental, principalmente em regiões
costeiras. Esse efeito é difícil de estimar em vista da probabilidade de distúrbios
da circulação atmosférica. Os declínios efetivos de temperatura no interior dos
continentes poderiam ser uns 30% menores que os aqui preditos, e ao longo dos
litorais uns 70% menores. No caso de referência, portanto, as temperaturas
continentais podem cair a 260ºK antes de voltar aos níveis ambientes.
As variações preditas no perfil vertical de temperaturas para o cenário de
referência são Ilustradas em função do tempo na Figura 3. As características
dominantes da perturbação de temperatura são um grande aquecimento (até
80ºK) da baixa estratosfera e alta troposfera, e um grande esfriamento (até 400K)
da superfície e baixa troposfera. O aquecimento é causado pela absorção da
radiação solar na parte superior das nuvens de pó e fumaça; persiste por um
período longo em razão da residência prolongada das partículas na alta
atmosfera, da sua baixa emissividade de infravermelho e das temperaturas
inicialmente baixas nas grandes altitudes. O esfriamento superficial é o resultado
da atenuação do fluxo solar incidente pelas nuvens de aerossol (ver Figura 4)
durante o primeiro mês da simulação. O efeito de estufa deixa de ocorrer em
nossos cálculos porque a energia solar é depositada acima da altura em que a
energia de infravermelho é irradiada para o espaço.
A Figura 4 mostra os declínios de insolação para vários cenários de guerra.
O caso de referência indica fluxos solares médios hemisféricos no solo Inferiores
a 10% dos valores normais durante várias semanas (não considerando
descontinuidades nas nuvens de pó e fumaça). Além de causar as quedas de
temperatura acima mencionadas, a insolação atenuada pode afetar o ritmo de
crescimento das plantas e o vigor das cadeias alimentares marinhas, litorâneas e
terrestres. No caso "severo" de 10.000 MT, os níveis médios de luz ficam abaixo
do mínimo requerido para a fotossíntese por cerca de 40 dias em grande parte
do Hemisfério Norte. Em vários outros casos a insolação pode cair durante mais
de dois meses abaixo do ponto de compensação em que a fotossíntese é
apenas suficiente para manter o metabolismo vegetal. Dada a probabilidade de
as nuvens nucleares se manterem descontínuas nas primeiras uma ou duas
semanas após o conflito, a passagem da luz solar por claros nas nuvens pode
permitir a atividade de crescimento das plantas acima do nível predito para
condições médias das nuvens; no entanto, é provável que em pouco tempo os
claros se fechem.

Figura 4: Fluxos de energia solar ao nível do solo no Hemisfério Norte após


uma guerra nuclear. São mostrados resultados para vários casos do Quadro 1.
(Note-se que a escala de tempo é linear). Os valores são médios para o ciclo
diurno e para o hemisfério. Nos Casos 4 e 16 desprezam-se os incêndios.
Indicam-se também o nível de fluxo aproximado para o qual a fotossíntese deixa
de acompanhar o ritmo respiratório da planta (ponto de compensação) e aquele
em que a fotossíntese cessa. Esses limites variam para espécies diferentes.

Figura 5: Profundidades óticas verticais (absorção mais dispersão em 550


nm) de nuvens nucleares em função do tempo, numa análise de sensibilidade.
As profundidades óticas são valores médios para o Hemisfério Norte. Todos os
casos mostrados correspondem a variações de parâmetros do modelo em
referência (Caso 1) e consideram a poeira aplicável a cada qual: Caso 3, não há
tempestades ígneas; Caso 4, não há incêndios; Caso 22, tempo de lavagem
pelas chuvas reduzidos de um fator 3; Caso 25, fumaça inicialmente confinada
aos primeiros 3.000 m da atmosfera; Caso 26, fumaça inicialmente distribuída
entre 13.000 e 19.000 m em todo o globo; e Caso 27, parte imaginária do índice
de refração da fumaça reduzida de 0,3 para 0,1. Para efeito de comparação, no
Caso 4, só se considera a poeira do modelo de referência (não se consideram os
incêndios).
Testes de Sensibilidade

Um grande número de testes de sensibilidade foi efetuado como parte


deste estudo. Os resultados são resumidos a seguir. Variações razoáveis nos
parâmetros da poeira nuclear no cenário de referência produzem profundidades
óticas médias hemisféricas iniciais de poeira que variam aproximadamente de
0,2 a 3,0. Assim, a poeira nuclear por si só poderia produzir um impacto climático
importante. No caso de referência, a opacidade da poeira é muito maior que a
opacidade total de aerossol associada às erupções do El Chichón e do Agung;
mesmo quando se atribuem aos parâmetros de poeira os seus valores menos
adversos dentro da faixa plausível, os efeitos são comparáveis aos de uma
grande explosão vulcânica.
A Figura 5 compara profundidades óticas de nuvens nucleares para
algumas variações dos parâmetros de fumaça do modelo de referência (com a
poeira incluída). No caso de referência, admite-se que tempestades ígneas
injetem somente uma pequena fração (5%) da emissão total de fumaça na
estratosfera. Assim, os Casos 1 e 3 (sem tempestades ígneas) são muito
semelhantes. Numa digressão extrema, toda a fumaça nuclear é injetada na
estratosfera e rapidamente difundida a toda a volta da Terra (Caso 26);
profundidades óticas elevadas podem persistir por um ano (Fig. 5). Também se
obtém um prolongamento dos efeitos óticos no Caso 22, em que o tempo de
eliminação troposférica das partículas de fumaça aumenta de 10 a 30 dias
próximo do solo. Em contraste, quando a fumaça nuclear se mantém inicialmente
próximo do solo e se supõem processos dinâmicos e hidrológicos de remoção
inalterados, a eliminação da fumaça ocorre muito mais depressa (Caso 25). Mas,
mesmo neste caso, parte da fumaça ainda se difunde para a alta troposfera e ali
permanece durante vários meses.
Num grupo de cálculos ópticos, fez-se variar o índice de refração imaginário
da fumaça entre 0,3 e 0,01. As profundidades ópticas calculadas para índices
entre 0,1 e 0,3 praticamente não mostram diferenças (Casos 1 e 27 na Fig. 5).
Com um índice de 0,05, a profundidade ótica de absorção se reduz em apenas
50%, e com 0,01 em 85%. Por outro lado, a opacidade total (absorção mais
dispersão) aumenta em 5%. Esses resultados mostram que a absorção de luz e
o aquecimento nas nuvens de fumaça nuclear permanecem elevados até que a
fração de carbono grafítico da fumaça caia abaixo de uns poucos pontos
percentuais.
Um dos testes de sensibilidade (Caso 29, não figurado) considera os efeitos
óticos no Hemisfério Sul (HS) da poeira e fuligem transportadas da estratosfera
do HN. Nesse cálculo, a fumaça do Caso 13 (300 MT, HS) se soma à metade da
poeira e fumaça estratosféricas do caso de referência (com dispersão global
rápida na estratosfera). A profundidade ótica inicia! é 1 no HS, caindo para 0,3
em três meses. As temperaturas médias preditas nas superfícies continentais do
HS caem 8ºK em algumas semanas e permanecem pelo menos 4ºK abaixo do
normal por quase oito meses. No entanto, a influência sazonal deve ser levada
em conta. Por exemplo, as piores conseqüências para o HN resultariam de um
conflito de primavera ou de verão, quando as plantações são vulneráveis e o
perigo de fogo é maior. O HS, que estaria então no outono ou no inverno, seria
nesse caso menos sensível ao escurecimento e esfriamento. Não obstante, as
implicações deste cenário para as regiões tropicais de ambos os hemisférios
parecem sérias e merecedoras de uma análise suplementar. Fatores sazonais
também podem modular a resposta atmosférica às perturbações pela fumaça e
poeira, e devem ser consideradas.

Figura 6: Profundidades óticas verticais (absorção mais dispersão em 550


nm) em função do tempo para casos ampliados de energia explosiva ou
produção de poeira e fumaça nucleares. As condições são detalhadas noutro
lugar. As quantidades de energia explosiva liberada são as mesmas dos casos
nominais de igual total constantes do Quadro 1 (os Casos 16 e 18 também estão
relacionados). Os casos “severos” consideram geralmente um aumento de seis
vezes na injeção de poeira fina e de duas vezes na emissão de fumaça. Nos
casos 15, 17 e 18, a fumaça é responsável pela maior parte da opacidade
durante os primeiros um, dois meses. Nos casos 17 e 18, a poeira contribui com
a principal parcela para os efeitos óticos depois de um, dois meses. No Caso 16
desprezam-se os incêndios e toda a opacidade é produzida pela poeira de
explosões na superfície.

Alguns testes de sensibilidade para casos mais severos foram levados a


efeito com liberações de energia variando de 1.000 a 10.000 MT e valores mais
adversos, mas não implausíveis, atribuídos aos parâmetros de poeira e fumaça.
Os efeitos preditos são consideravelmente piores (ver abaixo). As menores
probabilidades desses casos mais severos devem ser pesadas contra os
desfechos catastróficos que eles pressupõem. Seria política prudente medir a
importância desses cenários em termos do produto das suas probabilidades
pelos custos dos efeitos respectivos. Infelizmente, não temos meios de
quantificar com precisão as probabilidades aplicáveis. No entanto, pela sua
própria natureza, os casos mais severos devem ser os mais importantes a
considerar com vistas ao emprego de armas nucleares.
Com essas reservas, apresentamos na Figura 6 as profundidades óticas
para alguns dos casos mais severos. Opacidades elevadas podem persistir por
um ano, e temperaturas superficiais continentais podem cair a 230-240ºK, ou
seja, cerca de 50ºK abaixo do normal. Combinados a baixos níveis de luz (Fig.
4), esses cenários severos levantam a possibilidade de conseqüências
ecológicas catastróficas e generalizadas.
Dois testes de sensibilidade foram efetuados para determinar
aproximadamente as propriedades óticas da aglomeração de aerossol nas
nuvens em início de expansão. (As simulações já levam em conta a coagulação
contínua das partículas nas nuvens dispersas.) Admitiu-se uma dispersão muito
lenta nas nuvens iniciais estabilizadas de poeira e fumaça, levando cerca de oito
meses para cobrir o HN. A coagulação de partículas reduziu a opacidade média
ao fim de três meses em cerca de 40%. Quando a eficiência adesiva das
partículas em colisão também foi maximizada, a opacidade média ao fim de três
meses reduziu-se em 75%. Na situação mais provável, porem, a aglomeração e
coagulação imediata reduziria as profundidades óticas médias hemisféricas das
nuvens em 20 a 50%.

Outros Efeitos

Foram considerados também, com menos detalhe, os efeitos à longo prazo


da precipitação radioativa, do NOx gerado pelas bolas de fogo, e dos gases
tóxicos e pirogênicos. A física da precipitação radioativa é bem conhecida.
Nossos cálculos referem-se principalmente à acumulação externa na escala
intermediária de tempo da precipitação devida ao arrastamento e deposição seca
da poeira nuclear dispersa. Para estimar níveis possíveis de exposição,
adotamos uma fração de energia de fissão de 0,5 para todas as armas. Quanto à
exposição apenas à emissão gama da poeira radioativa, que no cenário de
referência (5.000 MT) começa a precipitar depois de dois dias, a dose total média
hemisférica acumulada por humanos em alguns meses seria de 20 rads,
supondo-se ausência de abrigo e de remoção da poeira por agentes
meteorológicos. Durante esse tempo a precipitação ficaria restrita principalmente
às latitudes médias do HN; ali, portanto, a dose poderia ser 2 a 3 vezes maior.
Considerando a ingestão de radionuclídeos biologicamente ativos e exposição
ocasional a precipitação localizada, a dose crônica total média nas latitudes
médias de radiação ionizante no caso de referência seria mais de 50 rads de
radiação gama externa no corpo inteiro, somados a mais de 50 rads em órgãos
internos específicos, provenientes de emissores internos de radiações beta e
gama. No caso de 10.000 MT, com as mesmas suposições, as doses médias
seriam multiplicadas por dois. Estas doses sõao mais ou menos uma ordem de
grandeza maiores que as das estimativas precedentes, que desprezaram o
arrastamento e precipitação na escala intermediária de tempo de resíduos
nucleares troposféricos produzidos por detonações de baixa potência (menos de
1 MT).
O problema do NOx produzido nas bolas de fogo das explosões de alta
potência, e da resultante redução do ozônio atmosférico, foi tratado em vários
estudos. No nosso caso de referência, encontrou-se para o
empobrecimento médio hemisférico de ozônio um valor máximo de 30%. Este
seria bem menor se as potências das ogivas individuais fossem todas reduzidas
a menos de 1 MT. Considerando a relação entre o acréscimo da radiação UV-B e
o decréscimo de ozônio, são previstas doses de UV-B aproximadamente iguais
ao dobro do normal no primeiro ano após o conflito no caso de referência (depois
de dissipadas a poeira e a fuligem). Efeitos maiores de UV-B resultariam de
ataques com ogivas de maior potência (ou artefatos multidetonantes).
Os incêndios nucleares gerariam uma grande variedade de gases tóxicos
(piratoxinas), inclusive CO e HCN. Segundo Crutzen e Birks, uma densa capa de
poluição atmosférica, incluindo concentrações aumentadas de ozônio, poderia
recobrir o HN durante vários meses. Preocupam-nos também as dioxinas e os
furanos, compostos extremamente tóxicos e persistentes que são liberados na
combustão de substâncias orgânicas sintéticas de largo emprego. Num conflito
nuclear poderiam ser geradas centenas de toneladas de dioxinas e furanos. As
conseqüências ecológicas à longo prazo dessas pirotoxinas nucleares merecem
estudos mais aprofundados.

Perturbações Meteorológicas

Variações horizontais da absorção de luz solar na atmosfera e na superfície


são as forças impulsoras básicas da circulação atmosférica. Em vários dos casos
considerados neste estudo são indicadas modificações de vulto nessas forças.
Por exemplo, desigualdades de temperatura superiores a 10ºK entre áreas
continentais do HN e os oceanos contíguos podem induzir uma forte circulação
do tipo monção, análoga em certos aspectos ao padrão de inverno nas
vizinhanças do subcontinente Indiano. Do mesmo modo, o contraste de
temperaturas entre regiões atmosféricas carregadas de resíduos e regiões
adjacentes ainda não ocupadas pela fumaça e poeira deve produzir novas
modalidades de circulação.
Assim, pois, as nuvens de poeira e fumaça nucleares poderão ocasionar
perturbações climáticas de monta e efeitos correspondentes, através de
mecanismos variados: reflexão de radiação solar para o espaço e absorção de
luz solar na alta atmosfera, resultando em esfriamento superficial generalizado;
modificação dos padrões de absorção da luz solar e aquecimento que promovem
a circulação atmosférica em pequena escala e em grande escala; introdução de
maior quantidade de vapor de água e de núcleos de condensação de nuvens,
que afetam a formação de nuvens e o regime de chuvas; e alteração do albedo
superficial por incêndios e fuligem. Esses efeitos conjugam-se intimamente para
determinar a resposta atmosférica geral a uma guerra nuclear. Por ora não é
possível prever em detalhe as alterações nos campos combinados da circulação
atmosférica e da radiação, e no comportamento do tempo e dos microclimas, que
resultariam das injeções maciças de poeira e de fumaça aqui analisadas.
Portanto, a especulação tem de limitar-se a considerações muito gerais.
A evaporação dos oceanos é uma fonte contínua de umidade para a
camada marinha Iimítrofe. Uma camada densa semipermanente de bruma ou
nevoeiro poderia recobrir grandes porções de água. As conseqüências para a
precipitação pluviométrica marinha não são claras, principalmente se os ventos
dominantes normais forem grandemente alterados pelo agente solar perturbado.
Algumas regiões continentais poderiam sofrer nevadas contínuas durante vários
meses. As chuvas podem promover a remoção da fuligem, se bem que o
processo possa não ser muito eficiente no caso de nuvens nucleares. É provável
que, em média, as taxas de precipitação pluviométrica fossem em geral menores
que na atmosfera ambiente: a principal fonte restante de energia para a
formação de tempestades é o calor latente da evaporação oceânica, e a
atmosfera superior fica mais quente que a inferior, o que elimina a convecção e a
formação de chuvas.
Apesar da possibilidade de grandes nevadas, não é provável que uma
guerra nuclear desencadeasse uma glaciação. O período de esfriamento (menos
de um ano) provavelmente é curto demais para vencer a considerável inércia do
sistema climático da Terra. O reservatório de calor que são os oceanos haveria
de forçar o clima no sentido dos padrões contemporâneos nos anos seguintes à
guerra. Do ponto de vista climatológico, a introdução de CO2 pelos incêndios
nucleares não é expressiva.

Transporte Inter-Hemisférico

Em estudos anteriores foi admitido que um transporte inter-hemisférico


significativo de detritos nucleares e radioatividade demandaria um ano ou mais.
Isto com base em observações de transporte em condições ambientes, inclusive
a dispersão de nuvens de detritos produzidas por testes nucleares atmosféricos
isolados. No entanto, nuvens densas de poeira e fumaça produzidas por milhares
de explosões quase simultâneas seriam de molde a provocar distúrbios
dinâmicos intensos em seguida a uma guerra nuclear. Podo-se estabelecer uma
analogia aproximada com a evolução das tempestades de poeira de escala
global em Marte. A baixa atmosfera marciana assemelha-se em densidade à
estratosfera da Terra, e o período de rotação é quase igual ao da Terra (embora
a insolação seja apenas metade da terrestre). As tempestades de poeira que se
formam em um dos hemisférios de Marte não raro se intensificam e se propagam
rapidamente ao planeta inteiro, cruzando o equador num tempo médio de 10
dias. Aparentemente, a explicação está no aquecimento da poeira levantada, que
passa a suplantar outras fontes de calor e a determinar a circulação. Haberle e
outros empregaram um modelo bidimensional para simular a evolução das
tempestades de poeira em Marte e concluíram que a poeira em baixas
latitudes, no núcleo da circulação de Hadley, é o fator mais Importante de
modificação dos ventos. Num conflito nuclear, a maior parte da poeira e fumaça
seria injetada em latitudes médias. Entretanto, Haberle e outros não conseguiram
encaixar em seus cálculos as ondas de escala planetária. Perturbações da
amplitude de ondas planetárias podem influir consideravelmente no transporte de
detritos nucleares entre médias e baixas latitudes.
Efeitos atmosféricos de vulto poderiam produzir-se no HS (i) pela injeção de
poeira e fumaça resultante de explosões em objetivos do HS, (ii) pelo
transporte de detritos do HN através do equador meteoro lógico por ventos do
tipo monção 4, e (iii) por transporte inter-hemisférico na alta troposfera e na
estratosfera, promovido pelo aquecimento solar das nuvens de poeira e fumaça
nucleares. Observações fotométricas da nuvem produzida pela erupção do
vulcão El Chichón (origem 14ºN) pelo satélite Solar Mesosphere Explorer
mostraram que 10 a 20% do aerossol estratosférico foram transportados para o
HS após 7 semanas.

Discussão e Conclusões

Os estudos aqui esboçados sugerem efeitos climáticos sérios à longo prazo


como conseqüência de um conflito nuclear de 5.000 MT. Apesar das incertezas
no que se refere às quantidades e propriedades da poeira e da fumaça
produzidas por explosões nucleares, e das limitações dos modelos usados para
análise, podem tirar-se em primeira aproximação as seguintes conclusões:

(1) Em desacordo com a maior parte dos estudos anteriores (p. ex., Ref. 2),
nós concluímos que uma guerra nuclear global produziria um grande impacto
sobre o clima - manifestado em escurecimento considerável da superfície
durante muitas semanas, temperaturas continentais glaciais persistindo por até
vários meses, grandes perturbações nos padrões de circulação global e
alterações dramáticas de condições meteorológicas locais e regimes de chuvas -
um rigoroso "inverno nuclear" em qualquer estação. Transporte inter-hemisférico
acelerado de detritos nucleares na estratos fera também poderia ocorrer, embora
se façam necessários estudos de modelo para quantificar esse efeito. Com a
rápida mistura inter-hemisférica, o HS poderia sofrer grandes injeções de detritos
nucleares pouco tempo depois de um conflito no HN. Antes, supunha-se que os
efeitos no HS seriam de pouca monta. Embora se preveja que os distúrbios
climáticos durem mais de um ano, parece improvável que fosse deflagrada uma
transformação climática de vulto à longo prazo, como uma glaciação.

(2) Efeitos climáticos relativamente grandes poderiam resultar mesmo de


um conflito nuclear relativamente pequeno (100 a 1.000 MT) se os ataques se
concentrassem em áreas urbanas, pois 100 MT já são suficientes para arrasar e
incendiar algumas centenas de grandes centros urbanos do mundo. Um limiar
tão baixo de energia para emissões maciças de fumaça, embora dependendo do
cenário, implica que mesmo conflitos nucleares limitados podem deflagrar
conseqüências graves. Tanto menos provável é que a liberação de 5.000 a
10.000 MT tivesse apenas efeitos leves.

(3) Prevê-se que o impacto climático da fumaça negra de incêndios


nucleares ateados por explosões aéreas será mais importante que o da poeira
levantada por detonações na superfície (quando os dois efeitos ocorrerem). A
fumaça absorve eficientemente a luz solar, ao passo que a poeira de solo é
geralmente não-absorvente. As partículas de fumaça são extremamente
pequenas (tipicamente raio inferior a 1 u), o que prolonga o seu tempo de
residência atmosférica. Há também uma alta probabilidade de que explosões
nucleares sobre cidades, florestas e campos ateariam incêndios de grande
extensão, mesmo em ataques limitados a silos de mísseis e outros alvos
militares estratégicos.

(4) A fumaça de incêndios urbanos pode ser mais importante que a de


incêndios florestais colaterais por duas razões pelo menos: (i) num conflito em
grande escala, é provável que cidades contendo grandes depósitos de matérias
combustíveis sejam diretamente atacadas; e (ii) tempestades ígneas intensas
poderiam bombear fumaça para a estratosfera, onde o tempo de residência é de
um ano ou mais.

(5) A poeira nuclear também pode contribuir para o impacto climático de um


conflito nuclear. O efeito climático da poeira é muito sensível à maneira de
condução da guerra; é de esperar um efeito menor se forem empregadas armas
de menor potência e se houver predominância de detonações aéreas sobre
detonações no solo. A ocorrência de detonações múltiplas poderia agravar os
efeitos climáticos da poeira nuclear, mas não há dados suficientes para avaliar
esta questão.

(6) A exposição à precipitação radioativa pode ser mais intensa e


generalizada do que o predito por modelos empíricos de exposição que
desprezam a precipitação intermediária, a qual pode estender-se por dias e
semanas, tanto mais se grandes quantidades de detritos de fissão fossem
bruscamente liberadas na troposfera por explosões de potência abaixo de 1 MT.
Num conflito de 5.000 MT, podem verificar-se em latitudes médias do HN doses
médias de raios gama (exposição corporal) de até 50 rads; doses maiores
podem ocorrer nos penachos de precipitação que partindo dos objetivos se
estenderiam centenas de quilômetros na direção do vento. Essa estimativa deixa
de levar em conta uma dose provavelmente não insignificante de radiação
interna devida a radionuclídeos biologicamente ativos.

(7) Sinergismos entre efeitos à longo prazo de uma guerra nuclear - como
baixos níveis de luz, temperaturas glaciais, exposição à precipitação radioativa
intermediária, alto grau de poluição pirogênica do ar e fluxo acrescido de UV-B -,
agravados pela supressão de socorros médicos, suprimento de alimentos e
serviços civis, poderiam aumentar em muito o número de baixas e afetar
seriamente o ecossistema global. Uma avaliação das possíveis conseqüências
biológicas à longo prazo dos efeitos de uma guerra nuclear quantificadas neste
estudo foi feita por Ehrlich e outros.

Nossas estimativas dos impactos físicos e químicos de uma guerra nuclear


são necessariamente imprecisas porque nós utilizamos modelos
unidimensionais, porque os dados básicos são incompletos e porque o problema
não é passível de investigação experimental. Também não nos é possível prever
a natureza exata das alterações da dinâmica atmosférica e da meteorologia
apontadas pelos nossos cenários de guerra nuclear, nem o efeito de tais
alterações na manutenção ou dispersão das nuvens iniciais de poeira e fumaça.
Não obstante, sendo tão grande a magnitude dos efeitos de primeira ordem, e
tão sérias as implicações, esperamos que as questões científicas aqui
levantadas sejam enérgica e criticamente examinadas.

CONSEQÜÊNCIAS BIOLÓGICAS À LONGO PRAZO DE UMA


GUERRA NUCLEAR

Estudos recentes de uma guerra nuclear em grande escala (liberação de


5.000 a 10.000 MT) estimaram que haveria 750 milhões de mortes imediatas
somente por ação das explosões; um total de 1,1 bilhão de mortes provocadas
pelos efeitos combinados de explosões, fogo e radiação e aproximadamente
outro tanto de feridos necessitando cuidados médicos. Assim, as baixas
imediatas de uma guerra nuclear poderiam representar de 30 a 50% da
população do mundo. A grande maioria das baixas ocorreria no Hemisfério
Norte, principalmente nos Estados Unidos, URSS, Europa e Japão. Esses
números enormes têm sido tipicamente citados para definir em toda a sua
magnitude o potencial catastrófico de uma guerra dessa espécie. No entanto
elementos novos aqui apresentados sugerem que os efeitos biológicos à mais
longo prazo resultantes de alterações climáticas podem ser pelo menos tão
graves quanto os imediatos. Nossa preocupação neste artigo é com os dois ou
três bilhões de pessoas não imediatamente mortas, inclusive as de países
situados a grandes distâncias do conflito nuclear.
Consideram-se principalmente os resultados de uma guerra nuclear em que
poeira e fumaça são injetadas na atmosfera em quantidade bastante para
interceptar a maior parte da radiação solar incidente, possibilidade esta
inicialmente sugerida por Ehrlich e outros, e inicialmente quantificada e divulgada
por Crutzen e Birks. Numa ampla gama de cenários de conflito nuclear, com
liberação de energia variando de 100 a 10.000 MT, sabemos agora que a luz
solar poderia ser absorvida e dispersada em grau suficiente para provocar
escuridão e frio em áreas extensas, (esses trabalhos são coletivamente
designados TTAPS). Em todos os casos as computações indicam conseqüências
biológicas de extrema gravidade. Todos os cenários estão perfeitamente
enquadrados nas possibilidades atuais, e do ponto de vista estratégico não
parecem improváveis. Além disso, é possível que a probabilidade de uma guerra
nuclear com altíssima liberação de energia tenha sido de modo geral
subestimada. Examinam-se também as conseqüências da propagação de efeitos
atmosféricos ao Hemisfério Sul.
Consideramos como caso de referência o Caso 17 dos cenários estudados
no TTAPS. É o caso de um conflito de 10.000 MT em que aos parâmetros que
definem as propriedades dos aerossóis de poeira e fuligem são atribuídos
valores adversos mas não implausíveis, e em que 30% da fuligem são carreados
por tempestades ígneas a altitudes estratosféricas. As perturbações ambientais
resultantes, com as respectivas margens de incerteza, estão relacionadas para
os Hemisférios Norte e Sul no Quadro 1, A e B.
Tomando valores médios para o Hemisfério Norte, independentemente da
estação do ano, os fluxos calculados de luz visível reduzir-se-iam a
aproximadamente 1% do normal, e as temperaturas superficiais no interior dos
continentes poderiam cair a aproximadamente -40°C. Seria necessário no
mínimo um ano para que a luz e a temperatura retornassem às condições
normais. Em zonas de objetivos, de início a escuridão poderia ser total, mesmo
ao meio-dia. Uma porção estimada de 30% das áreas continentais de latitudes
médias do Hemisfério Norte receberia uma dose de radioatividade superior a 500
R imediatamente após as explosões. Essa dose, produzida por emissores gama
externos da precipitação radioativa, igualaria ou excederia a dose aguda média
letal (LD50) para adultos sadios. Nos dias e semanas seguintes, a precipitação
contribuiria uma dose externa adicional superior a 100 R em 50% das latitudes
médias norte. Doses internas contribuiriam outros 100 R ou mais concentrados
em sistemas orgânicos específicos como a tiróide, os ossos, o trato
gastrointestinal e o leite das lactantes. Após o assentamento da poeira e da
fumaça, o fluxo superficial de radiação solar ultravioleta (UV-B, 320 a 290 nm)
seria aumentado várias vezes durante alguns anos em virtude do
empobrecimento da ozonosfera por ação do NOx gerado pelas bolas de fogo. Os
efeitos no Hemisfério Sul envolveriam níveis mínimos de luz inferiores a 10% do
normal, temperaturas mínimas continentais na superfície inferiores a -18ºC e
aumentos de UV-B de dezenas de pontos percentuais durante anos. Os
impactos potenciais das alterações climáticas induzidas por uma guerra nuclear
são sumariados no Quadro 2.
Evidentemente são possíveis guerras termonucleares menos adversas para
o meio, mas efeitos climáticos semelhantes aos aqui delineados poderiam
resultar de conflitos muito mais limitados, de não mais de algumas centenas de
megatons, no caso de ataques a cidades. Mesmo que não houvesse efeitos
climáticos globais, as conseqüências regionais de uma guerra nuclear poderiam
ser sérias (Quadro 3). Achamos, no entanto, que os detentores do poder de
decisão devem ser plenamente informados das conseqüências potenciais dos
cenários mais prováveis de desencadear efeitos prolongados. Por isso,
concentramo-nos; neste artigo, no caso "severo" de 10.000 MT, em vez de no
caso de referência de 5.000 MT do TTAPS. De qualquer modo, por causa dos
sinergismos, as conseqüências de qualquer dado cenário de guerra nuclear
podem ser mais graves que as que abaixo se descrevem. Nosso conhecimento
do funcionamento detalhado dos ecossistemas globais é ainda muito incompleto
para podermos avaliar todas as interações, e por conseguinte os efeitos
cumulativos, dos muitos fatores adversos a que as populações humanas e os
ecossistemas seriam submetidos. Cada sinergismo não avaliado é
provavelmente um fator negativo multiplicador.
Temperatura

O impacto de temperaturas dramaticamente reduzidas sobre as plantas


dependeria da época do ano em que elas ocorressem, da sua duração e dos
limites de tolerância de cada espécie vegetal. Particularmente importante é a
queda brusca de temperatura. O trigo de inverno, por exemplo, pode suportar
temperaturas de até -15º a -20ºC quando pré-condicionado a baixas
temperaturas (como ocorre naturalmente nos meses de outono e de inverno),
mas uma temperatura de -5ºC pode matar as mesmas plantas se expostas
durante o crescimento ativo de verão. Até plantas de regiões alpinas, como por
exemplo o Pinus cembra, que toleram temperaturas de até -50ºC no meio do
inverno, podem ser mortas por temperaturas de -5ºC a -10ºC ocorridas no verão.
Os cálculos do TTAPS indicam que as temperaturas cairiam em tempo curto aos
seus níveis mínimos (Quadro 1); nessas circunstâncias é improvável que plantas
normalmente resistentes ao frio pudessem "endurecer" (desenvolver tolerância
ao congelamento) antes de alcançadas temperaturas letais. Outros traumas
infligidos às plantas pela radiação, por poluentes do ar e por baixos níveis de
iluminação imediatamente após a guerra multiplicariam os danos provocados
pelo esfriamento. Além disso, plantas doentes ou danificadas têm reduzidas a
sua capacidade de suportar condições de frio extremo.
Mesmo temperaturas bem acima do ponto de congelamento podem ser
danosas para certas plantas. Por exemplo, a exposição do arroz ou do sorgo a
uma temperatura de apenas 13ºC na época crítica pode inibir a formação de
grãos porque o pólen produzido é estéril. O milho (Zea mays) e a soja (Glycine
max), duas culturas importantes na América do Norte, são muito sensíveis a
temperaturas de menos de 10ºC.
Se bem que uma guerra nuclear no outono ou no inverno teria
provavelmente efeitos menores sobre as plantas do que na primavera ou no
verão, a vegetação tropical é vulnerável às baixas temperaturas em todas as
épocas do ano. As únicas regiões em que as plantas terrestres poderiam
escapar à devastação pelo frio extremo seriam aquelas situadas junto às costas
e em ilhas, onde as temperaturas seriam moderadas pela inércia térmica dos
mares. Contudo, essas áreas experimentariam condições meteorológicas
excepcionalmente violentas devido ao forte gradiente lateral de temperatura
entre os oceanos e o interior dos continentes.

Luz Visível

A ruptura da fotossíntese pela atenuação da luz solar incidente teria


conseqüências que se propagariam em cascata ao longo das cadeias
alimentares, muitas das quais incluem o homem como consumidor. A
produtividade primária se reduziria mais ou menos na proporção do grau de
atenuação da luz, mesmo na hipótese pouco realista de que a vegetação não
fosse afetada de outros modos.
Vários estudos têm examinado os efeitos do escurecimento sobre o ritmo
da fotossíntese, o crescimento das plantas e o rendimento das safras. Embora
folhas individuais possam ser saturadas por níveis de luz abaixo da metade da
luz solar normal, plantas inteiras, que têm várias camadas de folhas orientadas
em diferentes ângulos em relação ao sol e sombreando parcialmente umas as
outras, geralmente não são saturadas. Assim, uma redução de luz de apenas
10%, ainda que não reduzisse a fotossíntese numa folha inteiramente exposta,
poderia reduzi-la no conjunto da planta devido à presença de folhas não
saturadas no folhame. Aliás, visto que as plantas também respiram, é provável
que na maioria dos casos todo crescimento seria interrompido se o nível de luz
caísse uns 5% abaixo dos níveis ambientes normais do habitat (ponto de
compensação). Nos níveis previstos para os primeiros meses seguintes a um
conflito nuclear de vulto, as plantas seriam seriamente afetadas e muitas
morreriam pela redução substancial de sua produtividade causada unicamente
pela redução de luz.
Radiação lonizante

A exposição à radiação ionizante num conflito nuclear seria o resultado


direto do fluxo de nêutrons e raios gama da bola de fogo, dos detritos radioativos
depositados na direção do vento. e da parte dos detritos que seria transportada
pelo ar e circularia globalmente.
O grau de dano dos organismos dependeria do tempo e intensidade da
exposição, sendo os efeitos tanto mais graves quanto maiores o tempo e a
exposição total. A exposição letal média para o homem é geralmente calculada
em 350 a 500 R recebidos no corpo inteiro em menos de 48 horas. Para a maior
parte dos outros mamíferos e para algumas plantas a exposição letal média é
inferior a 1.000 R. Se o tempo de exposição diminui, a dose letal média aumenta.
A área submetida à radiação intensa produzida pela bola de fogo também
seria diretamente afetada pelo sopro e pelo calor. O raio dentro do qual a
pressão do sopro ultrapassa cinco libras por polegada quadrada é definida como
a zona letal de sopro, e a área em que o fluxo térmico ultrapassa 10 cal/cm2,
como a zona letal de calor. O raio dentro do qual se calcula que a radiação
ionizante da bola de fogo seria letal para o homem é menor que os raios de
letalidade definidos pela pressão ou pelo calor. Não se deu aqui atenção especial
adicional aos efeitos da radiação ionizante produzida pelas bolas de fogo.
Uma estimativa, baseada no cenário da revista Ambio e parecida com o
caso de referência do TTAPS, envolve a liberação de 5.742 MT e cerca de
11.600 detonações, sem superposição de campos de precipitação; sugere que
cerca de 5 x 10 elevado a 6 km2 seriam expostos a 1.000 R ou mais em áreas
situadas na direção do vento. Cerca de 85% dessa exposição total seriam
recebidos em 48 horas. Essa exposição é letal para todas as pessoas expostas,
e pode causar a morte de espécies vegetais sensíveis como a maioria das
coníferas - árvores que formam florestas extensas na maior parte das zonas
mais frias do Hemisfério Norte. Se reatores, depósitos de rejeitos radioativos e
usinas de reprocessamento de combustível nuclear fossem atingidos num
ataque, a área afetada e os níveis de radiação ionizante poderiam ser ainda
maiores.
Na hipótese de que mais ou menos a metade da área afetada por radiação
de precipitação na faixa de 1.000 a 10.000 R fosse coberta de florestas, seriam
aproximadamente 2,5 x 10 elevado a 6 km2 dentro dos quais ocorreria extensa
mortalidade de árvores e muitas outras plantas. Com isso criar-se-ia a
possibilidade de incêndios de grandes proporções. A maior parte das coníferas
morreria numa área equivalente a cerca de 2,5% de toda a superfície terrestre do
Hemisfério Norte.
A possibilidade de até 30% da área continental de latitudes médias ser
exposta a 500 R ou mais de radiação gama acentua a escala e a gravidade do
perigo (Quadro 1A). Uma exposição total de 500 R, embora tivesse pouco efeito
sobre a maior parte das populações vegetais, provocaria mortalidade
generalizada entre todos os mamíferos, seres humanos inclusive. Os
sobreviventes expostos ficariam doentes por semanas, e mais propensos ao
câncer pelo resto de suas vidas. O total de pessoas afetadas excederia um
bilhão.
Radiação UV-B

Nas semanas seguintes ao conflito, a poeira e fuligem troposféricas e


estratosféricas absorveriam o fluxo de UV-B que sem isso seria transmitido pela
ozonosfera parcialmente destruída. Mas quando, alguns meses passados, a
poeira e a fuligem se dissipassem, os efeitos da rarefação de O3 far-se-iam
sentir na superfície. No Hemisfério Norte, o fluxo de UV-B aumentaria
aproximadamente duas vezes no caso de referência do TTAPS e quatro vezes
no da guerra de 10.000 MT considerado no Quadro 1A. Tal como acontece no
caso de uma ozonosfera inaIterada, a dose de UV-B seria bem maior nas
latitudes equatoriais do que nas temperadas.
Mesmo empobrecimentos bem menores de O3 são considerados perigosos
para os ecossistemas e para o homem. Se a banda inteira de UV-B aumentasse
em cerca de 50%, a quantidade de UV-B no extremo de energia mais alta da
banda, em torno de 295 nm, aumentaria umas 50 vezes. Essa região tem
importância biológica especial devido à fone absorção de energia nesses
comprimentos de onda pelos ácidos nucléicos, pelos aminoácidos aromáticos e
pela ligação peptídica. Em grandes doses, a UV-B é muito destrutiva para as
folhas, enfraquecendo as plantas e reduzindo a sua produtividade. Sabe-se que
a produtividade do plâncton marinho próximo à superfície é consideravelmente
deprimida por níveis ambientes atuais de UV-B; aumentos mesmo pequenos
poderiam ter "conseqüências profundas" para a estrutura das cadeias
alimentares marinhas.
Em pelo menos quatro outros modos, níveis acrescidos de UV-B são
sabidamente prejudiciais aos sistemas biológicos: (i) sabe-se que os sistemas
imunológicos do Homo sapiens e de outros mamíferos são suprimidos mesmo
por doses relativamente baixas de UV-B18. Particularmente em condições de
radiação ionizante aumentada e outras sobrecargas fisiológicas, essa supressão
dos sistemas imunológicos conduz a um aumento de incidência de doenças. (ii)
Folhas que atingem a maturidade sob baixas intensidades de luz são duas ou
três vezes mais sensíveis à UV-B do que as que se desenvolvem sob iluminação
intensa. (iii) A sensibilidade das bactérias à UV-B é aumentada por temperaturas
baixas, que suprimem o processo normal de reconstituição do ADN, processo
esse que depende da luz visível. (iv) Exposição prolongada a doses excessivas
de UV-B pode induzir danos da córnea e cataratas, produzindo cegueira no
homem e em mamíferos terrestres. Assim, os efeitos do aumento de UV-B
podem estar entre as mais sérias conseqüências antes não previstas de uma
guerra nuclear.

Efeitos Atmosféricos

Numa guerra nuclear, grandes quantidades de poluentes do ar, entre eles


Co, O3, NOx, cianetos, cloretos de vinil, dioxinas e furanos, seriam liberadas
junto à superfície. Haveria smog e chuvas ácidas em extensas áreas depois do
conflito. Talvez essas toxinas não tivessem efeitos imediatos significativos sobre
uma vegetação já devastada; entretanto, dependendo da sua persistência,
poderiam certamente obstar a sua recuperação. Por outro lado, o seu transporte
pelos ventos para ecossistemas mais distantes, de início não afetados, poderia
ser um importante efeito adicional. Incêndios em grande escala conjugados a
uma interrupção da absorção do CO2 fotossintético produziriam um aumento a
curto prazo da concentração atmosférica de CO2. A quantidade atual de CO2 na
atmosfera equivale à que é consumida por vários anos de fotossíntese e recebe
a influência estabilizadora das reservas de carbono inorgânico dos oceanos.
Dessa forma, se o clima global e a produtividade fotossintética dos ecossistemas
se restabelecessem em níveis próximos do normal no curso de alguns anos, é
improvável que viesse a ocorrer uma alteração de longo prazo na composição da
atmosfera. Contudo, não é fora dos domínios do possível que um evento
abrangendo os dois hemisférios, com os conseqüentes danos aos organismos
fotossintéticos, causasse um brusco aumento de concentração de CO2 e assim
alterações climáticas duráveis. Para efeito de comparação. o tempo de
reciclagem de O2 através da biosfera é de aproximadamente 2.000 anos.

Sistemas Agrícolas

As reservas de alimentos básicos nos centros de população humana são


pequenas, e a maior parte da carne e dos produtos frescos é suprida diretamente
pelas fazendas. Somente grãos de cereais são armazenados em quantidades
expressivas, mas os locais de armazenagem situam-se com freqüência em
pontos distantes dos centros urbanos. Em seguida a uma guerra na primavera ou
no princípio do verão, as safras do ano seriam quase certamente perdidas. Numa
guerra de outono ou de inverno os grãos teriam sido colhidos, mas como o clima
permaneceria extremamente frio por muitos meses, a época seguinte de plantio
seria também desfavorável ao crescimento das plantas.
Em suma, após uma guerra nuclear as fontes potenciais disponíveis de
alimentos no Hemisfério Norte seriam destruídas ou contaminadas, ou estariam
em locais inacessíveis, ou logo se esgotariam. Nos países diretamente
envolvidos na guerra haveria escassez de alimentos em muito pouco tempo.
Outrossim, países que hoje precisam de grandes importações, ainda que não
atingidos por explosões nucleares, sofreriam uma pronta interrupção de
abastecimento, o que os obrigaria a contar unicamente com seus ecossistemas
agrícolas e naturais locais. Este seria um seríssimo problema para muitas
nações menos desenvolvidas, principalmente nas regiões tropicais.
Em sua maior parte, as principais culturas são anuais, e dependem em alto
grau de subsídios energéticos e nutritivos fornecidos por sociedades humanas.
Além disso, a fração da sua produção utilizável para consumo humano requer a
fixação de um excesso de energia acima das necessidades respiratórias das
plantas, o que exige insolação abundante e minimização de agressões
ambientais por pragas, insuficiência de água, partículas em suspensão no ar,
poluição, etc. Depois de uma guerra nuclear, proporcionar tais condições seria
muitíssimo difícil, se não impossível, na maior parte da Terra ou possivelmente
em toda ela. Portanto, para todos os efeitos práticos, a agricultura tal como a
conhecemos deixaria de existir.
Como na maior parte das culturas norte-americanas, européias e soviéticas
as sementes são colhidas e armazenadas não em fazendas individuais mas
predominantemente em áreas-objetivos ou em seus arredores, os estoques de
sementes para anos subseqüentes seriam quase com certeza seriamente
desfalcados, e é provável que a variabilidade genética dessas culturas, já
limitada, fosse drasticamente reduzida. Além do mais, as áreas potenciais de
cultura experimentariam modificações climáticas locais, altos níveis de
contaminação radioativa e solos empobrecidos ou erodidos. A recuperação da
produção agrícola teria de ocorrer na ausência de subsídios maciços de energia
(especialmente sob a forma de combustível de trator e de fertilizantes) aos quais
a agricultura das nações desenvolvidas veio a adaptar-se.
Exceto ao longo das costas, os regimes continentais de chuvas reduzir-se-
iam substancialmente durante algum tempo após um conflito nuclear. Mesmo
hoje, a precipitação pluviométrica é o principal fator condicionante da produção
agrícola em muitas áreas, e a irrigação, com seus requisitos de energia e de
sistemas de suporte humano para bombeamento de água do solo, não seria
exeqüível depois de uma guerra. Ademais, nos meses seguintes à guerra a
maior parte da água disponível estaria congelada, e o restabelecimento das
temperaturas em seus níveis normais seria lento.

Ecossistemas Terrestres Temperados

Na medida em que decaísse a agricultura organizada, os 2 ou 3 bilhões de


sobreviventes aos efeitos imediatos da guerra seriam obrigados a voltar-se para
os ecossistemas naturais. E justamente quando estes seriam solicitados a prover
sustento a uma população humana muito acima da sua capacidade de carga, o
funcionamento deles próprios seria entravado seriamente pelos efeitos da guerra
nuclear.
A ação sobre os ecossistemas de baixas temperaturas, fogo, radiação,
tempestades e outras agressões físicas (muitas delas ocorrendo
simultaneamente) resultaria em sua maior suscetibilidade a surtos de pragas e
doenças, provavelmente prolongados. A produtividade primária reduzir-se-ia
dramaticamente nos baixos níveis de luz reinantes; e, por causa da UV-B, do
smog, dos insetos, da radiação e de outros fatores adversos, é improvável que
voltasse em pouco tempo aos níveis normais, mesmo depois de restabelecidos
os valores de luz e temperatura. Ao mesmo tempo em que teriam o seu
suprimento de alimentos vegetais seriamente limitado, quase todos, se não
todos, os vertebrados não imediatamente mortos pelas explosões e pela
radiação ionizante ou morreriam congelados, ou enfrentariam um mundo de
escuridão em que sucumbiriam de fome ou de sede, já que as águas superficiais
estariam congeladas e portanto inaproveitáveis. Muitos dos sobreviventes
estariam isolados, e em muitos casos doentes, resultando na extinção
ligeiramente retardada de muitas outras espécies.
A par de alimento e abrigo, os ecossistemas naturais suprem a civilização
de uma série de serviços essenciais. Entre estes, a regulação da composição
atmosférica, a moderação do clima e das intempéries, a regulação do ciclo
hidrológico, a geração e preservação de solos, a degradação de resíduos e a
reciclagem de substâncias nutrientes. Do ponto de vista humano, entre os papéis
mais importantes dos ecossistemas estão a sua função direta no fornecimento de
alimento e a manutenção de um vasto acervo de espécies do qual o Homo
sapiens retirou as bases da civilização. A perda acelerada desses recursos
genéticos pela extinção seria uma das conseqüências potenciais mais sérias de
uma guerra nuclear.
Incêndios florestais seriam um efeito importante nos ecossistemas
temperados do norte, sua escala e distribuição dependendo de fatores como o
cenário de guerra e a estação do ano. Outra incerteza ponderável é a extensão
das tempestades ígneas, que poderiam aquecer as camadas profundas do solo
em grau suficiente para lesar ou destruir bancos de sementes, principalmente em
tipos de vegetação não adaptados a queimas periódicas. Detonações aéreas
múltiplas em áreas sazonalmente secas como a Califórnia no fim do verão ou
princípio do outono poderiam calcinar grande parte das áreas de mata e de
campo do Estado, ocasionando inundações e erosões catastróficas na estação
chuvosa subseqüente. Aluvionamento, escoamentos tóxicos e chuvas radioativas
poderiam matar grande parte da fauna de águas doces e costeiras, e níveis
concentrados de radioatividade em populações de mariscos sobreviventes
poderiam tornar perigoso o seu consumo por períodos prolongados.
Outras conseqüências importantes de uma guerra nuclear para
ecossistemas terrestres compreendem (i) desintoxicação mais lenta do ar e da
água, como resultado secundário dos danos em plantas que são hoje
importantes eliminadores metabólicos de toxinas; (ii) evaporação-transpiração
reduzida nas plantas, contribuindo para uma taxa menor de entrada de água na
atmosfera, principalmente em regiões continentais, e portanto para um ciclo
hidrológico mais lento; e (iii) alterações consideráveis da superfície do solo,
resultando em erosão acelerada e, provavelmente, grandes tempestades de
areia.
A recuperação da vegetação poderia assemelhar-se superficialmente à que
se segue a incêndios locais. No entanto, os efeitos da radiação, do smog, da
erosão, da poeira e das chuvas tóxicas sobrepor-se-iam aos do frio e da
escuridão, prolongando e modificando a sucessão do pós-guerra de modos que
retardariam a restauração das funções ecossistêmicas. É provável que as
alterações de ecossistemas fossem em sua maior parte, passageiras. Certas
alterações estruturais e funcionais, porém, poderiam ser mais duradouras, e
possivelmente irreversíveis, na medida em que os ecossistemas sofressem
mudanças qualitativas para estados alternativos estáveis. As perdas de solos por
erosão seriam sérias em áreas de ocorrência de incêndios extensos, morte das
plantas e condições climáticas extremas. Tudo dependeria em grande parte
das características de ventos e chuvas que se desenvolvessem durante o
primeiro ano após a guerra. A diversidade de muitas comunidades naturais seria
quase com certeza substancialmente reduzida, e numerosas espécies de
plantas, de animais e de microorganismos se extinguiriam.

Ecossistemas Terrestres Tropicais

O grau em que as regiões tropicais seriam submetidas a condições dos


gêneros acima descritos dependeria de fatores como a seleção de objetivos,
prevalência de tempestades ígneas, ruptura da distinção entre troposfera e
estratosfera e taxa de mistura inter-hemisférica em função da altitude. A
propagação de nuvens densas de poeira e fuligem e de temperaturas glaciais às
regiões tropicais do norte é altamente provável, e ao Hemisfério Sul pelo menos
possível, portanto é propositado examinar as conseqüências prováveis dessa
propagação (Quadro 1B).
Por exemplo, as sementes das árvores de matas tropicais tendem a ter vida
bem mais curta que as das zonas temperadas. Se a escuridão ou as baixas
temperaturas, ou ambas, atingissem os trópicos em grande escala, as florestas
tropicais poderiam desaparecer em grande parte. E isto redundaria na extinção
da maioria das espécies vegetais, animais e microbianas da Terra, com
conseqüências prolongadas da maior importância para a adaptabilidade das
populações humanas.
Se a escuridão se estendesse aos trópicos, vastas áreas de vegetação
tropical, que se consideram muito próximas do ponto de compensação, entrariam
em definhamento. Além disso, muitas plantas de climas tropicais e subtropicais
não possuem mecanismos de dormência que lhes permitam suportar estações
frias, mesmo em temperaturas bem acima do ponto de congelamento. Ainda que
a escuridão e o frio se limitassem principalmente às regiões temperadas, ondas
de ar frio e fuligem poderiam induzir quedas bruscas de temperatura em grandes
extensões da faixa tropical. Isso corresponderia a uma intensificação do
fenômeno conhecido como "friagem", termo empregado para descrever os
efeitos de frentes frias, originadas na América do Sul temperada, que penetram
na Bacia Amazônica equatorial, onde produzem a morte de grandes quantidades
de aves e peixes. Pelos indícios existentes dos efeitos de esfriamento no
plistoceno e suas conseqüências, pode-se prever que áreas continentais de
baixas latitudes seriam seriamente afetadas por baixas temperaturas do ar e
redução de chuvas.
A dependência de populações tropicais em relação a alimentos e
fertilizantes importados teria conseqüências graves, mesmo que os trópicos não
fossem diretamente afetados pela guerra. Grandes números de pessoas seriam
forçadas a abandonar as cidades e a tentar cultivar as áreas remanescentes de
floresta, acelerando a sua destruição e conseqüente velocidade de extinção. Tais
atividades também aumentariam grandemente a quantidade de fuligem na
atmosfera pela prática improvisada de derrubada e queima em grande escala.
Não importa qual a exata distribuição dos efeitos imediatos da guerra, ao cabo
todos os habitantes da Terra seriam profundamente afetados.

Ecossistemas Aquáticos

De modo geral, os organismos aquáticos são protegidos contra oscilações


extremas de temperatura do ar pela inércia térmica da água. Não obstante,
muitos sistemas de água doce congelariam a profundidades consideráveis ou
totalmente em virtude das alterações climáticas causadas por uma guerra
nuclear. O efeito da escuridão prolongada em organismos marinhos já foi
estimado. Produtores primários na base da cadeia alimentar marinha são
particularmente sensíveis a níveis baixos de luz demorados; níveis tróficos
superiores sofrem com retardo efeitos propagados de menor intensidade. Além
disso, a produtividade do plâncton marinho próximo à superfície é
consideravelmente deprimida pelos níveis atuais de UV-B; mesmo pequenos
aumentos de UV-B podem ter conseqüências profundas para a estrutura das
cadeias alimentares marinhas. Muitos imaginam que as margens Oceânicas
seriam uma fonte importante de sustento para os sobreviventes de uma guerra
nuclear; no entanto, os efeitos combinados da escuridão, da UV-B, das
tempestades litorâneas, da destruição de navios na guerra e da concentração de
radionuclídeos em sistemas marinhos de águas rasas lançam fortes dúvidas
sobre essa possibilidade.

Conclusões

Os prognósticos de mudanças climáticas são bastante sólidos, e indicam


que, qualitativamente, de uma guerra limitada de 500 MT ou menos em que se
atacassem cidades decorreriam os mesmos tipos de agressões que de uma
guerra em grande escala de 10.000 MT. Em essência, todos os serviços de
suporte dos ecossistemas seriam seriamente comprometidos (Quadros 2 e 3).
Acentue-se que os sobreviventes, ao menos no Hemisfério Norte, enfrentariam
frio extremo, escassez de água; falta de alimentos e de combustíveis, fortes
cargas de radiação e poluentes, doenças e enormes tensões psíquicas - tudo
isso em penumbra ou em completa escuridão.
Existe a possibilidade de que o escurecimento e as baixas temperaturas se
propagassem ao planeta inteiro. Se isso acontecesse, poderia resultar um
processo acentuado de extinção, que deixaria uma Terra grandemente
transformada e biologicamente empobrecida. Poder-se-ia esperar a extinção da
maior parte das espécies vegetais e animais tropicais, da maior parte dos
vertebrados terrestres das regiões temperadas do norte, de um grande número
de plantas, de muitos organismos de água doce e de alguns marinhos.
Parece, entretanto, improvável que mesmo nessas circunstâncias o Homo
sapiens fosse de pronto levado à extinção. Quanto à possibilidade de alguns
indivíduos persistirem muito tempo em face de comunidades biológicas
grandemente alteradas, de climas modificados, de sistemas agrícolas, sociais e
econômicos desfeitos, de tensões psíquicas inusitadas e de todo um séquito de
outras dificuldades, é uma questão em aberto. É evidente que os efeitos de uma
guerra termonuclear em grande escala sobre os ecossistemas seriam por si sós
suficientes para destruir a civilização presente, pelo menos no Hemisfério Norte.
Somada às baixas diretas, em número superior a um bilhão, a combinação dos
efeitos intermediários e a longo prazo de uma guerra nuclear sugere que ao fim
de algum tempo poderiam não restar sobreviventes no Hemisfério Norte. Além
do mais, o cenário aqui descrito não é em absoluto o pior que se possa imaginar,
tendo em vista os arsenais mundiais existentes e os previstos para um futuro
próximo. Qualquer conflito nuclear em grande escala entre as superpotências
seria de molde a produzir modificações ambientais globais suficientes para
causar a extinção de uma fração considerável das espécies animais e vegetais
da Terra. Nesse caso, a possibilidade da extinção do Homo sapiens não pode
ser excluída.

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