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Por uma disciplina para estudar o pensamento

ameríndio nos cursos de filosofia


Filipe Ceppas (Professor adjunto da UFRJ - FE / PPGF)
A proposta de incluir, no currículo da graduação em filosofia, uma disciplina obrigatória dedicada à
filosofia e as culturas ameríndias responde a uma série de questões que vêm se revelando cada dia
mais evidentes e importantes, começando com a do sentido de se falar em uma “filosofia indígena”.
Essa proposta atende à exigência, sempre renovada, de situar nosso fazer filosófico; não o fazer
filosófico como um todo, mas aqueles âmbitos da produção filosófica diretamente implicados no
diálogo com a nossa história e as especificidades de nossa cultura. Não se trata de uma “perspectiva
aplicada” ou “nacionalista”, no sentido do compromisso, que teria o exercício da filosofia entre nós,
com pensar “os problemas brasileiros”, ainda que esta também possa ser uma perspectiva
interessante e conjugada de trabalho. Trata-se, antes de mais nada, de demandas já há muito
explicitadas em meio ao exercício filosófico de modo geral.
A primeira demanda advém da própria história da filosofia “européia”. Como Oswald de Andrade
especulou em seu Manifesto antropófago (e Afonso Arinos de Melo Franco o demonstrou, em livro
eruditíssimo, publicado em 1937, O índio brasileiro e a revolução francesa. As origens brasileiras da
bondade natural): “Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do
homem.” A importância do “encontro” entre europeus e ameríndios para o desenvolvimento da
filosofia ocidental é uma questão já clássica, que vem se complexificando desde os Ensaios de
Montaigne (questão que pode ser vista, ainda, como desdobramento de outra, mais antiga, e não
somente grega, de um sempre renovado conflito entre nós e os outros, os “bárbaros”).
Mas é com o crescente diálogo entre filosofia e antropologia, do final do século XIX para cá, que se
adensa o interesse pelas culturas ameríndias, pelos seus pensamentos, mitos e ritos, interesse que
pode ser dividido em duas dimensões interligadas. De um lado, a filosofia social e política — frente
aos trabalhos de Malinovski, Mauss, Lévi-Strauss, Pierre Clastres, etc. e às análises dos princípios
da organização social, econômica e política dos indígenas — se vê desafiada a reavaliar a
universalidade dos conceitos utilizados para teorizar sobre a coesão social dos agrupamentos
humanos, como contrato, esferas pública e privada, poder, dominação, troca, reciprocidade, etc. De
outro lado, abandonada a crença equivocada de que os indígenas viveriam numa espécie de estágio
“primitivo” (no sentido de “primevo” ou “atrasado”), que seria como que o passado das sociedades
“mais evoluídas”, à filosofia importa confrontar, em suas investigações metafísicas, ontologias e
racionalidades aparentemente distintas. Aqui, novamente, Lévi-Strauss (inspirando-se em
Rousseau) abriu o caminho, ao questionar de modo radical o pressuposto de uma “maior
razoabilidade” dos esquemas conceituais e princípios de racionalidade da ciência e da filosofia
ocidentais. Filósofos “pós-estruturalistas”, como Lyotard, Deleuze e Derrida, também avançaram
neste debate. Entre nós, Viveiros de Castro vem produzindo uma obra cujas implicações-
provocações metafísicas dificilmente podem ser ignoradas.

A importância pedagógica desses debates para a formação dos futuros filósofos e professores de
filosofia é imensa. Começa, por exemplo, por nos convidar a novas abordagens de introdução ao
clássico tema do “nascimento da filosofia”, no embate entre mito e lógos. Entram aqui alguns
“terceiros termos”, que são os mitos, rituais e pensamentos indígenas (Lévi-Strauss, mais uma vez,
desenvolveu importantes comparações entre mitos gregos e indígenas). No outro extremo, a
referência às culturas indígenas esbarra também em questões relativas ao desenvolvimento e à
preservação da natureza, ao esgotamento dos recursos naturais e formas alternativas de produção e
consumo, à biopolítica e ao corpo como uma máquina em contínuos processos de transformações e
canibalizações (enxertos, inseminações, etc).

Esses debates, ademais, nos convidam a revisitar alguns autores brasileiros fundamentais, como
Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda (autor de Visões do paraíso, livro indispensável
acerca das relações entre colonizadores europeus e os indígenas brasileiros), Afonso Arinos, etc,
ampliando a cultura geral por vezes aligeirada de licenciandos e bacharéis, que frequentemente
terminam seus cursos universitários sem terem lido uma linha sequer de alguns dos principais
pensadores brasileiros, incluindo obras de nossos próprios filósofos antecessores mais recentes,
como Gerd Bornheim (que escreveu excelentes textos sobre o tema, de “O bom selvagem como
philosophe e a invenção do mundo sensível” a “O conceito de descobrimento”), Eudoro de Souza,
Vilém Flusser, etc. Neste sentido, seria preciso mencionar, ainda, a possibilidade de um diálogo,
hoje praticamente inexistente, entre nossa produção filosófica e a produção filosófica na América
Latina, a começar pelo conhecimento de clássicos como José Martí, José Carlos Mariatégui ou
Leopoldo Zea, autores que atentaram para a importância das culturas ameríndias na produção
filosófica latinoamericana.

Por fim, e voltando à questão inicial, da existência ou não de uma “filosofia indígena”, será
extremamente auspicioso ampliar o espaço, na universidade, para a afirmação dos pensamentos dos
diversos povos ameríndios (que muitas vezes, e por boas razões, recusam a própria designação de
“indígenas”) narrados por eles próprios; um espaço para leitura e investigação de textos como os de
Davi Kopenawa (A queda do céu, Cia das Letras), por exemplo; espaço que guaranis, xavantes,
krenaks e tantos outros possam um dia ocupar como professores, encontrando acolhida para nele
realizar o difícil exercício de diálogo com as nossas elocubrações filosófico-antropológicas acerca
deles.

ANPOF (biênio 2017-2018)


06 de Fevereiro de 2017

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