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Corpo segundo Merleau-Ponty e Lacan

As relações tensas entre a fenomenologia e a psicanálise podem fornecer um novo


papel para a filosofia?
Eran Dorfman

A ambigüidade do corpo em Merleau-Ponty


A filosofia de Merleau-Ponty, ao longo de suas diferentes fases, insiste em um
duplo aspecto da existência corporal. Imaginemos que minha mão direita toque minha
mão esquerda. É evidente que a mão que toca é tocada pela outra, o que implica
uma ambigüidade essencial, de modo que não podemos dizer que mão toca e que mão é
tocada. Para Merleau-Ponty, na medida em que o pensamento objetivo se recusa em
aceitar tal equivocidade (pois deve haver sujeito da ação e um objeto), tal recusa se
converte em recalcamento do corpo em geral, reduzido a um mais objeto entre outros –
objeto que, no entanto, não aceita esse estatuto.
De onde vem o recalcamento? E como evitá-lo? O pensamento objetivo é o
pensamento comum, pensamento que sempre implica o outro. Talvez nessa referência à
alteridade poderíamos compreender o recalcamento do corpo próprio. Merlau-Ponty
sempre procurou sublinhar a integralidade do sistema “eu-outro”, nossa inerência a um
mundo comum, que funciona em uma quase-harmonia: “é justamente meu corpo que
percebe o corpo do outro, encontrando nele um prolongamento milagroso de suas próprias
intenções, uma maneira familiar de se relacionar com o mundo”.
Se tudo isso é verdadeiro, de onde vem então a agressão e a violência que fazem
parte do nosso mundo? Por que não posso viver harmoniosamente com o outro? Não seria
por causa do recalcamento da alteridade, do aspecto corporal, interior-exterior, sempre
ambíguo da percepção? Merleau-Ponty não nega essa possibilidade, mas procura
classificar os desacordos entre eu e outro como fenômenos tardios, ocorridos na passagem
da infância à vida adulta. Para Merleau-Ponty, no mundo infantil não há violência, e é
apenas mais tarde, com o pensamento objetivo e com a formação do cogito, que a
hostilidade aparece: “com o cogitocomeça a luta das consciências na qual, como diz
Hegel, cada uma deseja a morte da outra. Para que a luta comece, para que cada
consciência expulse as presenças estrangeiras que ela rejeita, é preciso que todas se
lembrem de sua coexistência pacífica no mundo da criança”.
A criança serve freqüentemente de modelo para Merleau-Ponty
na Fenomenologia da percepção, pois a ela mostra uma percepção mais aberta e mais
ampla, aquém da nossa percepção habitual, objetiva e cristalizada. Merleau-Ponty
convida-nos a reativar essa percepção primordial, na qual a separação entre eu, outro e
objetos cotidianos deixaria de ser tão acentuada. Sob tal perspectiva, é possível conceber
a Fenomenologia da percepção como a tentativa quase terapêutica para desvelar uma
percepção oculta, uma experiência secreta cuja reativação possibilitaria reencontrar a
coexistência harmoniosa das consciências, anterior à hostilidade do mundo.
No entanto, a apresentação dicotômica do mundo infantil pré-objetivo e
harmonioso, por um lado, e o mundo adulto objetivo e violento, por outro, às vezes
impede a compreensão docaminho que é preciso fazer para ir de um a outro. Chegando à
idade adulta, perdemos, ao que tudo indica, nossa inocência, nossa percepção aberta e
encantada, e apenas o filósofo, ou mais exatamente o fenomenólogo, com o sujeito
transcendental destacado da vida cotidiana, poderia reencontrar essa inocência perdida,
voltando “às próprias coisas”, além ou aquém de toda separação entre sujeito e objeto, eu
e outro. Mas a filosofia não poderia nos oferecer também um modelo que seria aplicável
de certo modo à nossa vida cotidiana? Não é apsicanálise, afinal, que deveríamos invocar
para explicitar os laços que habitualmente estabelecemos com a alteridade para então
podermos modificá-los?

Lacan e o corpo visto no espelho


Para Lacan, a constituição de si e a constituição do outro estão internamente
vinculadas pelo processo que ele chama de “estádio de espelho”. O bebê inicia esse
processo ainda cedo, quando não pode ficar de pé. Ao se reconhecer no espelho, explica
Lacan, ocorre a transformação no bebê, que passa a se identificar com sua imagem
especular. Neste estádio, ele supera “os entraves de seu apoio”, identificando-se à sua
imagem exterior como Gestalt, “a forma total do corpo pelo qual o sujeito encontra em
uma miragem a maturação de sua força”. Assumindo a própria imagem, o bebê supera
sua carência primordial, sua dependência absoluta em relação ao outros.
No entanto, a imagem refere-se a uma miragem, é apenas a representação do bebê.
Se, por um lado, ela é necessária para unificar as sensações de seu corpo fragmentário,
ou seja, para reconhecer seu corpo e controlá-lo, por outro, ela provoca um efeito
alienante, decisivo para o desenvolvimento ulterior do sujeito. Lacan retoma aqui a idéia
da luta hegeliana do reconhecimento, a mesma luta que Merleau-Ponty atribui à vida
adulta. Para Lacan, todavia, essa luta ocorre com o estádio de espelho, pois a necessidade
de reconhecer a si próprio como imagem exterior participa de toda constituição
individual. Lacan introduz a noção de desejopara afirmar que o desejo do homem é o
desejo de um outro; ou seja, é o desejo de se fazer reconhecer no desejo do outro. A
constituição primordial de cada desejo, efetivada pela mediação de uma imagem exterior,
impõe de uma só vez a alteridade e a alienação no próprio núcleo deste desejo.
Em função da alteridade e alienação, Lacan caracteriza o conhecimento humano
como conhecimento paranóico, sempre acompanhado por uma certa agressividade.
Oreconhecimento da imagem especular de si é necessariamente desconhecimento, pois
se trata de uma imagem exterior, alienante, que ademais permanece necessária para a
constituição estável de si.
Lacan afirma que a “experiência subjetiva deve estar habilitada de direito a
reconhecer o nó central da agressividade ambivalente que nosso momento cultural nos
apresenta sob a espécie dominante do ressentimento”. A psicanálise é justamente esse
trabalho de reabilitação do sujeito como ambivalente, lembrando aqui que não se trata
unicamente de terapia “pessoal”, mas eventualmente também de terapia “de grupo”, pois
a agressividade desempenha um papel ativo “na neurose moderna e no mal-estar da
civilização”.
Essa crítica da sociedade moderna e de seu recalcamento da ambivalência,
inerente ao sujeito, permanece aqui essencialmente negativa. Em obras posteriores
apenas, ela receberá de Lacan um estatuto “positivo”, na apreensão da ordem simbólica
pelo Imaginário. Essa passagem ocorre justamente por intermédio do outro, mas a partir
daí refere-se ao reconhecimento do grande Outro e do pacto simbólico, à Lei que se
constitui pela linguagem e pela palavra. De toda maneira, voltemos a Merleau-Ponty para
vermos porque a fenomenologia não pode reconhecer a impotência humana primordial,
impotência esta que sustenta, para Lacan, toda relação entre eu e outro.

A atitude natural na fenomenologia e na psicanálise


Vimos o modo pelo qual Merleau-Ponty descreve a harmonia do mundo infantil,
uma harmonia que Lacan procura refutar ao criticar suas ilusões. Lacan nos revela que a
criança não percebe inicialmente a si própria (nem aos outros) como corpo vivo,
como Leib, mas, ao contrário, como corpo estático, objetivado, Körper. Posteriormente o
sujeito deve enfrentar sua própria imagem cristalizada, utilizando a ordem simbólica a
fim de trocar a imagem de si e de ter um contato mais dinâmico com seu corpo. A
constituição harmoniosa do outro que Merleau-Ponty atribui à criança revela-se então um
mito.
De onde vem esse mito e que papel ele poderia ter em uma fenomenologia atenta
à concepção lacaniana da constituição de si e do outro? Parece que a concepção
harmoniosa da fenomenologia emana da redução fenomenológica, quer dizer, emana de
uma suspensão da atitude natural. Inicialmente, a atitude natural está definida em Husserl
como nossa crença ingênua e cotidiana no mundo existente. Entretanto, este é apenas o
aspecto formal da atitude natural, um aspecto que oculta muitos outros que se podem
deduzir da máxima husserliana: “de volta às próprias coisas”. Estas “próprias coisas” não
são as coisas da percepção cotidiana. Apenas a redução fenomenológica, suspendendo a
atitude natural, possibilita que elas sejam atingidas, vistas e enfim descritas. O objetivo
principal da fenomenologia é livrar-se de superestruturas naturalistas, de objetivações que
mascaram a percepção primordial. De fato, todos os discípulos de Husserl, de Fink a
Heidegger, de Merleau-Ponty a Levinas, sempre desejaram repetir o mesmo gesto.
Os críticos de Merleau-Ponty afirmam freqüentemente que a Fenomenologia da
percepçãonão é “radical” o suficiente, pois ainda mantém a distinção “adulta”,
“racionalista”, entre consciência e mundo, sujeito e objeto. Desse ponto de vista, qualquer
hesitação diante das dificuldades dessa percepção envolveria o risco de nos conduzir mais
uma vez ao mundo objetivo da atitude natural. Ora, aquilo que impede a fenomenologia
de atingir a verdadeira essência dessa atitude natural não é justamente o desejo de voltar
às pretendidas origens dessa atitude?
De fato, a fenomenologia freqüentemente se contenta em descrever somente duas
atitudes extremas em relação ao mundo: a percepção de um mundo completamente
estático e objetivado (a ser questionada pelo trabalho de desvelamento da filosofia); e a
percepção primordial, rica e prolífica, que supera todas as falsas distinções como aquela
entre eu e outro. Mas o campo entre estes dois pólos ideais não recebe nenhuma descrição
satisfatória, e assim o caminho de uma atitude a outra, de uma percepção a outra,
permanece obscuro.
Assim, vimos o papel decisivo desempenhado pelo recalcamento da ambigüidade
do corpo no pensamento objetivo, pensamento que está bastante próximo da atitude
natural. Esse pensamento, longe de ser uma superestrutura tardia, opera na percepção
desde o início: “nossa percepção resulta em objetos, e o objeto, uma vez constituído,
aparece como a razão de todas as experiências que nós tivemos dele ou que poderíamos
ter dele”. Merleau-Ponty reconhece portanto a presença obstinada da atitude natural na
percepção, mas não reconhece o fato de que ela não é um “acidente” que ocorre quando
se chega à idade adulta, pois essa atitude exerce um papel fundamental já na constituição
de si e do outro.
Para Lacan, como vimos, é somente por intermédio da imagem exterior que a
criança adquire uma identidade estável de si própria e do outro. A objetivação das
imagens e sua fixação fazem parte da atitude natural, e a alienação ocorre desde o início
da vida subjetiva. A atitude natural encontra-se não apenas no núcleo de toda a percepção
do mundo; ela é também essencial para a formação de um mundo estável.
Reconhecimento, estabilidade e identidade só podem ser adquiridos ao preço do
desconhecimento, da alienação e da agressão, e é essa verdade que a fenomenologia omite
quando procura atingir de qualquer jeito o mundo pré-objetivo, o mundo anterior às
imagens estáticas, o mundo que ela descreve como harmonioso, atribuído à infância. Mas
esse mundo de fato possui realidade ou se trata antes, como diz Paul Ricoeur, de um
paraíso perdido?
É talvez pela noção lacaniana da imagem original que poderíamos compreender
melhor tudo isso. A origem é imaginária, mas não é falsa. É uma origem que, por um
lado, explica o vínculo inevitável à imagem exterior fixa, mas que, por outro, indica os
modos necessários, ainda que sempre parciais, para se fugir dela, para transformar e
superar essa imagem estática. Lacan propõe assim uma terapia na qual a origem
imaginária é reconhecida, com o intuito de permitir o desencadeamento de um processo
simbólico de criação. Esta criação está sempre cercada por imagens, mas são imagens
desta vez menos estáticas, mais aptas a mudanças e transformações; imagens que não
reclamam o estatuto de uma origem cronológica ou real, mas sim de uma originalidade
contínua e renovada, que coloca a percepção em movimento.
Certamente, essa tentativa terapêutica é paralela à intenção de Merleau-Ponty
naFenomenologia da percepção, obra em que o filósofo nos convida à revitalização da
percepção: não só da percepção da filosofia, mas sobretudo do homem. Entretanto, para
descobrirmos essa função terapêutica da fenomenologia, precisamos antes reconhecer a
atitude natural como o ponto de partida ao qual sempre devemos retornar. Aplicando
desse modo as noções lacanianas de Imaginário e de Simbólico (e também de Real) à
fenomenologia, a atitude natural pode finalmente evoluir em direção a um novo caminho,
oscilando entre o que é estático e o que é dinâmico, entre um mundo onde reina a
alienação e um mundo compartilhado.
Sem dúvida, não é fingindo a superação da atitude natural (como faria uma
fenomenologia dogmática) nem se submetendo totalmente a ela (a exemplo de um certo
pós-estruturalismo) que a filosofia poderá fornecer explicações pertinentes aos problemas
da subjetividade moderna. A única maneira para que a filosofia retome sua pertinência na
cultura contemporânea é mantendo-se vigilante quanto às origens do mal-estar da nossa
civilização. A fenomenologia poderia de fato ser esta filosofia vigilante, graças a seu
projeto de retornar às próprias coisas, àquilo que vai além das nossas crenças cotidianas
estabilizadas. Mas, ao mesmo tempo, é preciso levar em conta que tais crenças participam
da essência da vida humana. A fenomenologia não deve portanto negligenciá-las; deve,
ao contrário, estabelecer um contato crítico com elas, para que consiga enfim retornar às
próprias coisas: não às próprias coisas do melhor dos mundos, mas as próprias coisas
do nosso mundo.
(Tradução: Eduardo Socha)
Eran Dorfman
é doutor em Filosofia pela Université de Paris VII e autor do livro Réapprendre à voir le
monde: Merleau-Ponty face au miroir lacanien (Éditions Springer, 2007)

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