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EV
R.S.M.P.
História do Projeto
Emílio Rodrigué
para armar, como diria Cortazar, sem relação com a trama neurológica. Era preciso
esse artefato para o cálculo metapsicológico. Mas a empresa era prematura para
a época.
Numa recapitulação final, podemos dizer que o dispositivo está montado.
Acontece que o "Engendro" sente, percebe, alucina, lembra - mas ele não fala.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
das quantidades. Essa diferenciação no processo de juízo, deixa um resto que foge
a toda articulação possível. Freud disse: "o que chamamos aí coisas são resíduos
subtraídos ao juízo"2.
A judicação só é possível pela não coincidência entre o complexo desiderativo
e o complexo perceptivo. Sua coincidência interromperia provisoriamente o pro-
cesso de pensamento. Este é representado numa escrita minimal de três letras: a,
b, c. O complexo desiderativo seria hipoteticamente a + b e a percepção a +c,
sendo a, portanto o que permanece constante, a Coisa, enquanto que b é o
elemento variável, que pode faltar, o atributo da Coisa e c aquele elemento que,
no lugar áebéa marca da não coincidência. Dela provém o ato na tentativa de
encontrar o b faltante. Freud exemplifica este processo no lactente:
suponhamos que a imagem mnêmica desejada seja a do peito materno com o
mamilo, visto de frente, mas a primeira percepção real obtida de dito objeto tem
sido uma visão lateral, sem o mamilo. A memória da criança incluirá uma
experiência adquirida casualmente ao amamentar, segundo a qual a imagem
frontal se transforma numa imagem lateral quando se realiza um determinado
movimento cefálico. A imagem lateral percebida agora conduz ao movimento
da cabeça e uma prova lhe demonstrará que este movimento deve efetuar-se no
sentido inverso com o fim de obter a percepção da imagem frontal.
Freud ilustra com esse exemplo o encontro sempre faltoso do lactente com o
objeto seio, inerente a desemelhança no campo do Outro. A identidade de percep-
ção que o aparelho tenta reproduzir encontra um elemento c diferente de b,
impulsor da função do juízo. A Coisa, escrita com a letra a, é o constante, o
inominável, que não se deixa apreender por atributo nenhum e permanece como
causa do desejo e do ato do sujeito.
A Coisa (das Ding) é o que sobra e resta à articulação simbólica dos juízos
primários e secundários. É resto, mas também funciona como causa desses pro-
cessos. Está fora, mas seu destino é ser substituída no aparelho. Está no solo da
simbolização. Todo o sistema de substituição se apoia sobre das Ding que orga-
niza o idêntico e o diferente.
A primeira apreensão da realidade pelo sujeito é através do que Freud deno-
mina Nebenmensch = neben: próximo, mensch: homem. Seria o homem próximo,
o vizinho, o semelhante. É a partir do próximo que Freud articula a função do
Outro nas dimensões nomeadas a partir de Lacan: Imaginário, Simbólico e Real.
Freud reconhece no complexo do semelhante uma parte muda, inassimilável que
permanece imutável: a Coisa (Das Ding). O primeiro Outro, encontra no próximo
um suporte,
é dividido em duas porções, uma das quais dá impressão de ser uma estrutura
constante que persiste como Coisa, enquanto que a outra porção pode ser
compreendida no início da atividade da memória, quer dizer reduzida a uma
informação sobre o próprio corpo do sujeito4.
O OUTRO PRIMORDIAL NO PROJETO FREUDIANO 15
para proteger aí a superfície que é ele mesmo para ver aí desenhar-se a Coisa,
que não tem nome que poderia ser o fim do gozo .
Estas palavras de Lacan destacam que esta imagem do complexo do próximo
já opera como função de separação do gozo do Outro, sendo das Ding o vazio
que está no cerne de sua formação, produzindo o traço diferencial que se inscreve
no Simbólico.
Na relação com o Outro há sempre uma dimensão de perda. Segundo Lacan,
Freud "coloca na origem da conquista da realidade o objeto perdido, que não pode
atingir, pois mesmo presente sua lembrança o situa numa outra cena". Esse resto
que se perde que portanto fica excluído de toda símbolização e de todo revesti-
mento imaginário é o das Ding que, no "Projeto", representaria o Outro absoluto,
aproximando a dimensão real enquanto impossível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FREUD, S., "Projeto para uma Psicologia para neurólogos" in Obras Completas, v.XXII,
Buenos Aires, Santiago Rueda, 1956, p.378.
2. Ibidem, p.410.
3. Ibidem, p.411.
4. Ibidem, p.413.
5. LACAN, J., A ética da psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1986, p.68.
18 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
6. Ibidem, p.91.
7. Ibidem, p.90
8. FREUD, S., "Projeto para uma Psicologia para neurólogos", op.cit, p.438.
9. Ibidem, p.413.
10. Ibidem, p.413
11. LACAN, )., Conference a l'Évolution Psychiatriquete23.7.7962: "De ce que J'enseig-
ne", in Petits Ecrits et Conferences. p.586.
12. Ibidem, p.588.
Sobre a Experiência de Dor
Maria Lessa de Barros Barreto
A idéia em torno da qual gira este trabalho é que, exatamente como Freud
coloca no "Projeto", a experiência de dor faz parte da estrutura e merece estatuto
da mesma importância ao da experiência de satisfação.
A primeira parte reflete o particularismo da experiência, a partir do ouvido-
vivido na clínica, na Psicanálise, e se apresenta como uma reflexão sobre a dor.
É mesmo uma questão de refletir, de espelho, na media em que é o "estágio do
espelho que dá a regra de partição/separação entre o imaginário e o simbólico"1.
A função imaginária é a que "preside ao investimento do objeto enquanto narcí-
sico" . E o simbólico é o "inconsciente enquanto discurso do Outro (A), onde o
sujeito recebe, sob forma invertida sua própria mensagem" . O real surgirá en-
quanto traumático — presença pulsional da dor, incomodando o sujeito.
A segunda parte é a palavra de Freud no que diz respeito à dor, mas enquanto
"além do princípio do prazer" e "masoquismo".
1.
A dor é a melancolia do organismo, um chorar silencioso do corpo, resultado
da incidência do real da separação. O que resta, o que fica da separação. Presença
de das Ding enquanto o irrepresentável, o impossível de dizer, apontando ao
objeto a de um Real que se impõe. Que se impõe sobre o Imaginário, visível na
passagem do esquema L para o esquema R.
19
20 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
2.
Em "Além do princípio do prazer", Freud diz que "existe na alma uma forte
tendência no sentido do princípio de prazer, embora esta tendência seja contrariada
por forças e circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre
se mostre em harmonia com esta tendência"10. Que "as pulsões sexuais são difíceis
de 'educar', e que partindo dessas pulsões, ou do próprio eu, o princípio do prazer
com freqüência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do
organismo como um todo"1 *. E que "há um processo pelo qual o recalque trans-
forma uma possibilidade de prazer numa fonte de desprazer"12.
O fato é que "não se pode recordar a totalidade do que se acha recalcado, e
o que não se é possível recordar, se é obrigado a repetir como se fosse uma
experiência contemporânea"13.0 indivíduo é então obrigado "a reexperimentar
alguma parte esquecida de sua vida"14. É a 'compulsão à repetição' "que deve ser
atribuída ao recalcado inconsciente e que busca evitar o desprazer que seria
produzido pela liberação do recalcado. O esforço é no sentido de conseguir a
tolerância do desprazer pôr um apelo de realidade" .
22 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
2.1
Instados pelo "Projeto" para falar da dor, gostaríamos ainda de nos referir a
outro texto "O problema econômico do masoquismo".
Entendemos que a dor seria um masoquismo da carne, masoquismo não-sim-
bolizado, exibição silenciosa ou mesmo ruidosa do masoquismo. A dor que não
passa é confirmação de que o grito, o masoquismo são estruturantes. Paradoxal-
mente, concordância e manifestação de revolta da estrutura. Indicação precisa dos
pontos erogeneizados pela história do sujeito em questão. A topografia da dor é
a topografia do sujeito, por exemplo, a dor nas articulações aponta o inarticulável,
a dor no estômago o indigerível, etc. A dor seria portanto uma forma "dolorosa"
do indivíduo se reconhecer e de admitir a pulsão de morte. Do não preenchimento
do vazio, portanto aceitação da ausência, da falta Equação do conceito de sexua-
lidade e da hipótese do narcisismo, enquanto masoquismo e 'ferida narcísica'.
Façamos, então, o percurso neste texto de Freud. "Quando dor e desprazer
não são mais sinais de alarme, mas podem ser alvos em si mesmo, o princípio de
prazer é paralizado, o vigia da nossa vida anímica narcotizado"20.
O masoquismo se apresenta sob três configurações: como uma condição da
excitação sexual, como a expressão de ser feminino e como uma norma do
comportamento vital - respectivamente, um masoquismo erógeno, feminino e
moral"21. (O que lembra aquela frase enigmática do "Projeto" de que "o desam-
paro dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais"22.) "O
primeiro, o masoquismo erógeno, o prazer da "dor"... O terceiro, como sentimento
de culpa, inconsciente. O masoquismo feminino, conhecemos a partir das fantasias
masoquistas, cujo conteúdo manifesto supõe as mais variadas atrocidades"23.
"Fantasias que transportam a pessoa a uma situação característica da feminilidade,
expressando também um sentimento de culpa, que supõe ter cometido algo cri-
minoso (mesmo sendo deixado indeterminado), mas que deve ser punido através
de todos os procedimentos dolorosos e torturantes. O masoquismo feminino
baseia-se sobre o primário, erógeno, o prazer da dor"23.
"Após a parte principal da pulsão de morte — pulsão de destruição, pulsão
de domínio, vontade de poder — ter sido transposta para o exterior sobre os
24 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. LACAN, J. "De nossos antecedentes" in Écrits, Paris, Éditions du Seuil, 1966, p.69.
2. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano" in
op.cit, p.822.
3. "A psicanálise e seu ensino" in op.cit, p.439.
4. "O Seminário sobre 'A Carta Roubada" in op.cit., esquema L, p.53
5. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", (1956)
in op.cit, esquema L p.548, esquema R p.553.
6. "A coisa freudiana ou sentido do retomo a Freud em psicanálise" (1955) in
op.cit, p.430.
7. FREUD, S. "Projeto para uma psicologia",(1895) in "Edição Standart das Obras Com-
pletas", v.l, Rio, Imago, 1976, p.409.
8. "Além do princípio de prazer", (1920) in op.cit, v.XVIII, ibidem, p. 46-47,
49-50.
9. CIORAN, E.M. "Silogismos da Amargura", (1952), Rio, Ed. Rocco Ltda., 1991, p.21-22,
24 e 27.
10. FREUD, S. "Além do princípio do prazer", (1920), in op.cit, ibidem, p.20.
11. Ibidem, p.21
12. Ibidem
13. Ibidem, p.31
14. Ibidem, p.32-33
15. Ibidem
16. ibidem, p.32-36
17. Ibidem, p.42-46
18. Ibidem, p.49-50
20. Freud, S., "O problema econômico do masoquismo", (1924), tradução de E.Vidal in
Pulsão e Cozo - Revista da Letra Freudiana, Escola, Psicanálise e Transmissão,
Rio, 1992, p. 119.
21. Ibidem, p.121.
22. FREUD, S., "Projeto para uma psicologia", (1895) in op.cit, p.422.
SOBRE A EXPERIÊNCIA DE DOR 25
BIBLIOGRAFIA
BARRETO, M.LB. Resumo de oito aulas sonbre o "Projeto", abril/junho de 1989, da Letra
Freudiana, no Seminário "O eu na teoria de Freud", não publicado.
"Além do princípio de prazer, a repetição", in op.cit.,
FREUD, S. "Entwurf einer Psychologie" in Aus den Anfagen der Psychoanalyse, Londres,
Imago, 1950.
"Jenseits des Lustprinzips" in Gesammelte Werke, Band XIII, Frankfurt, S.Fischer
Verlag, 1978.
VIDAL, E. "Masoquismo originário: ser de objeto e semblante" in Revista op.cit.
O Ego no Projeto e o Problema da
Ligação
Octávio de Souza
Para a comemoração dos 100 anos do "Projeto para uma psicologia científi-
ca", escolhi abordar algumas reflexões sobre a concepção de ego tal como formu-
lada por Freud neste texto que festejamos.
Antes de abordar a questão do ego, ou do eu, no "Projeto", gostaria de fazer
algumas observações a respeito do entrelaçamento de conceitos psicanalíticos com
significações da língua corrente, entrelaçamento este que, quando é o eu que está
em jogo, ganha um contorno que pode ser útil realçar.
É de se notar que quando se refere ao inconsciente, por exemplo, Freud toma
todos os cuidados necessários para distinguir com rigor o emprego do termo em
sua versão popular do emprego do termo em sua concepção psicanalítica. Vocês
certamente se lembram das primeiras páginas do artigo metapsicológico sobre "O
inconsciente", quando se trata de distinguir o inconsciente em seu sentido descri-
tivo, do inconsciente em seu sentido dinâmico. O mesmo cuidado observamos
quando se trata de definir o que a psicanálise entende por sexualidade, conceito
muito mais amplo para a psicanálise do que o senso comum está disposto a
admitir, pelo menos o senso comum da época em que a psicanálise surgiu.
Inconsciente e sexualidade são apenas exemplos, que tomo ao acaso, de cuidados
de distinção entre conceito e senso comum, que podemos encontrar a cada passo
da teorização psicanalítica. Já quando se refere ao eu, e é isso que quero destacar,
tais cuidados não parecem preocupar Freud além de uma certa medida. Na Con-
ferência XXXI das "Novas conferências introdutórias" sobre a psicanálise, por
exemplo, defendendo-se da acusação de pan-sexualismo feita contra a psicanálise,
e explicando as razões que levaram a psicanálise a estudar em primeiro lugar as
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28 100ANOS DE PROJETO FREUDIANO
pulsões sexuais e o recalcado, deixando para uma etapa posterior o estudo mais
detalhado do eu, Freud diz o seguinte:
Desde o início dissemos que os seres humanos adoecem devido a um conflito
entre as exigências da vida pulsional e as resistências que neles surgem contra
ela; e nem por um momento esquecemos essa agência resistente, repulsora,
recalcante (...) que coincide com o eu da psicologia popular.1
Daí podemos afirmar que, por mais convencido que estivesse sobre as sur-
preendentes novidades que a psicanálise traria sobre o eu, para Freud não havia
nenhum problema, muito pelo contrário, em confundir o eu enquanto conceito
analítico com o eu enquanto noção popular. Tanto a psicanálise quanto o senso
comum, quando falam do eu, se referem à mesma coisa, mesmo que possam
manifestar pontos de vista diametralmente opostos sobre a sua constituição, sobre
sua função ou sobre seu estatuto moral.
Para Lacan, quero arriscar, as coisas também parecem se apresentar mais ou
menos do mesmo modo. Por mais inesperadas que sejam suas concepções sobre
a formação do eu a partir de sua elaboração do estádio do espelho, por mais
contrária ao senso comum que seja sua afirmação do eu como função de desco-
nhecimento, Lacan, quando fala do eu, fala do mesmo eu que cada um considera
como eu. A respeito do eu, portanto, não há confusão a ser desfeita quanto ao
referente, quanto à coisa de que se está falando. Somente uma radical mudança
de juízo quanto à sua função e ao seu valor: onde o senso comum acreditava
encontrar certeza e unidade, a psicanálise denuncia ilusão e divisão. Não se trata
de corte ou descontinuidade em relação à concepção tradicional do eu, somente
de acréscimos e, em conseqüência destes mesmos acréscimos, de mudança na
avaliação do seu valor funcional. Assim, no Seminário II, podia-se ouvir Lacan
dizer:
[o eu na teoria freudiana] Não é uma noção que se identifique ao eu da teoria
clássica tradicional, embora ela a prolongue — mas, em razão do que ela
acrescenta, o eu toma, na perspectiva freudiana, um valor funcional completa-
mente diferente.3
Se alguma diferença podemos encontrar entre Freud e Lacan no recorte da
coisa que é o eu, essa diferença se deve à preocupação de Lacan, patente do início
O ECO NO PROJETO E O PROBLEMA DA LIGAÇÃO 29
Vemos, então, que o ego no "Projeto" se define como um sistema muito mais
lábil do que será, posteriormente, o sistema pré-consciente sistema este concebido
como uma localidade psíquica, distinta do inconsciente, cujos conteúdos são
obtidos por tradução das representações do sistema inconsciente. No "Projeto",
pelo contrário, o ego se justapõe, e mesmo engloba, a totalidade das facilitações
que compõem os próprios caminhos do processo primário. Não é à toa que Lacan,
em uma das passagens em que propõe uma nova tradução para o Wo Es war soll
Ich weráen freudiano, dirá, numa referência explícita ao ego do "Projeto", que o
Ich, nesse momento, é o que sempre foi na pluma de Freud, do princípio ao fim
de sua obra: o sujeito do inconsciente, ou seja, a totalidade da cadeia significante.
Retornemos à questão da ligação. A ligação da energia propiciada pelo ego
fornece ao aparelho psíquico um critério para distinguir entre memória e percep-
ção, ou seja, uma prova de realidade, mais tarde concebida como função do
princípio de realidade. A ligação da energia se mostra de utilidade para o orga-
nismo, ou para o aparelho psíquico, em duas situações fundamentais, por Freud
referidas como "estado desejante" e "reinvestimento de uma imagem mnêmica
hostil".
No primeiro caso, o do estado desejante, através da ligação da energia,
evita-se a alucinação do objeto de satisfação, o que permite, à posteriori, a
obtenção de uma indicação de qualidade que serve como critério de realidade. No
caso do reinvestimento da imagem hostil, através da ligação da energia, evita-se
a defesa primária, o que permite, à posteriori, a operação do critério de realidade.
Nesse nível de funcionamento, a prova de realidade apenas permite que o orga-
nismo mame na presença de seio, procure o seio na sua ausência, fuja diante da
presença do objeto hostil ou repouse na sua ausência.
É importante ressaltar que a ligação de energia apenas permite que a prova
de realidade seja obtida, mas não se confunde com ela. A questão que fica é a de
se a função da ligação da energia se esgota no propiciamento das condições de
funcionamento da prova de realidade. Como veremos, este não parece ser o caso,
a menos que possamos entender nossa concepção de realidade para toda a reali-
dade psíquica
32 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
fornece para o fato pode ser resumida do seguinte modo: o ego é surpreendido
na medida em que sua atenção é normalmente voltada para a percepção, e não
para a memória por uma memória que desencadeia um excesso de descarga
sexual. A partir daí, a função egóica de ligação é colocada fora de ação. O ego
passa a funcionar do mesmo modo que o processo psíquico primário, com a única
diferença da produção suplementar de uma formação simbólica estável de caráter
compulsivo.
Sem nos determos nem nas complicações derivadas da diferenciação entre
percepção e memória, nem no valor enunciativo que poderíamos atribuir à for-
mação simbólica compulsiva, retenhamos apenas a questão da relação do ego com
o excesso sexual.
Para ir direto ao ponto, coloco a seguinte questão: qual o valor ético que
podemos atribuir à fuga, ou ao rechaço, por parte do ego, do excesso sexual?
Adianto minha resposta: é minha opinião que, neste caso, não podemos nos
contentar em atribuir ao ego o papel de agente do recalcamento, se, por recalca-
mento, estivermos dispostos a compreender apenas o rechaço pelo "moi" do
desejo inconsciente.
Permitam-me fazer o papel de advogado de defesa do ego: o fato do ego se
proteger contra o excesso de sexualidade da situação traumática não pode ser
atribuído, simplesmente, à sua função de desconhecimento em relação ao desejo
inconsciente. Se quiséssemos falar em sujeito desejante, ao invés de ego, seríamos
obrigados a dizer que o sujeito desejante também se protege contra o excesso de
sexualidade, na medida em que este excesso, no vocabulário de Lacan, se chama
gozo, e que a função do desejo, como todos sabemos, não pode se exercer sem
um certo afastamento do gozo. Esse afastamento do gozo é propiciado pelo ego
do "Projeto" em duas etapas. Num primeiro momento, de modo patológico, pelo
recalque. Num segundo momento, após um trabalho de rememoração, que não
posso qualificar senão como analítico, pelo levantamento do recalque, levanta-
mento este que não pode se efetivar de outra forma senão pelo evitamento da
defesa primária, a qual, como vimos, só pode ser levada a efeito com o recurso
do ego. É somente a partir daí que a representação traumática pode ingressar na
atividade do pensamento, e, consequentemente, ser tocada pela palavra.
O ego do "Projeto", para dizer de modo sucinto, é tanto o agente do recalque
quanto o sujeito do inconsciente que pode vir a se enunciar como "je", tal como
nos promete Lacan.
O mecanismo da ligação da energia, como sabemos, é tratado por Freud, logo
depois do "Projeto", como uma função exercida pelo pré-consciente sobre o
inconsciente, pelo processo secundário sobre o processo primário, pelo princípio
da realidade sobre o princípio do prazer.
34 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
É claro que se levarmos em conta tudo o que Lacan pôde dizer sobre a verdade
ao longo do seu ensino, seremos obrigados a concordar que a referência à teoria
da verdade em Lacan, e referência nenhuma, são coisas quase que equivalentes.
Tomo então o Seminário XVII com suas paradoxais afirmações a propósito da
verdade. Apenas duas citações:
Só há verdade a respeito do que esconde o desejo de sua falta.11
Nessa passagem, a verdade pode ser compreendida como desvelamento da
falta constitutiva da castração.
Agora uma outra passagem, do mesmo seminário:
O amor pela verdade é o amor dessa fraqueza da qual nós levantamos o véu, é
o amor disso que a verdade esconde, e que se chama a castração.
Reviravolta na compreensão: agora a verdade é apresentada como velando a
castração.
Talvez seja a partir desta última citação que possamos compreender porque
Lacan afirma que o amor pela verdade pôde levar um Sade a recusar essa mesma
verdade, "caindo assim num sistema tão obviamente sintomático"
A recomendação de reserva em relação ao amor pela verdade pode ser
aproximada à recomendação de desconfiança em relação à ilusão de unidade do
ego. O x da questão parece estar não na possibilidade de enunciar com este mesmo
dito. Nas conferências que proferiu nos Estados Unidos, Lacan deixa entrever que
o dito da verdade, do mesmo modo que o ego, pode se apresentar como uma
totalidade enganosa:
A verdade, diz-se como se pode, quer dizer, somente em parte. Mas do modo
como ela se apresenta, ela se apresenta como um todo. E é aí que está a
dificuldade: é que é necessário fazer com que quem está em análise se dê conta
de que esta verdade não é toda, que ela não é verdadeira para todo mundo, que
ela não é geral, que ela não vale para todos.14
Termino aqui, como se deve em todo início de pesquisa, com uma pergunta,
a mais ingênua possível:
Os paradoxos da verdade em Lacan não parecem rimar, nem que seja de
longe, com os paradoxos do ego no "Projeto" e os paradoxos da ligação ao longo
de toda obra de Freud?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FREUD, S., "The dissection of the psychal personality", Standart Edition, v.XXII: p.57.
2. idem: p.60
3. LACAN, ) . , Le moi dan Ia théorie de Freud et dans Ia technique de Ia psychanalyse:
Paris, Editions du Seuil, 1978, p.23.
4. idem:p.12.
36 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
5. idem: p.14.
6. SAFOUAN, t e transferi et /e désir de 1'analyste: Paris, Editions du Seuil, p.76.
7. FREUD, S., "Project for a scientific psychology", Standart Editon, v,l: p.323.
8. ibidem: p.353.
9. LACAN, ]., L'envers de Ia psychanalyse: Paris, Editions du Seuil, 1991, p.101.
10. "Cest ainsi que le dit ne va pas sans dire. Mais se le dit se pose toujours
en vérité, füt-ce à ne jamais dépasser un midit (comme je nVexpri-
me), le dire ne s'y couple que d'y ex-sister, soit de n'être de Ia dit-mension de
Ia vérité" (Lacan, Vétourdit", Scilicet4, p.8).
11. L'envers de Ia psychanalyse, p.69.
12. ibidem: p.58.
13. Uenvers de Ia psychanalyse: p.76.
14. "Conférences et entretiens dans des universités nord-americaines", Scilicet
6/7, p.43-44.
A Imagem do Desejo
Maria Elisabeth Timponi de Moura
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIBLIOGRAFIA
O atentado sexual o belisco nos genitais através dos vestidos não entra na
consciência e sim apenas outro elemento em qualidade de símbolo, os vestidos.
O significante allein, sozinha, indica o lugar do sujeito na cadeia; ela estava só...
ante o Outro, ante o desejo fisgado no olhar de gozo. No intervalo entre as duas
cenas Emma entra na puberdade e encontra uma abertura para novas possibilida-
des de gozo. O trauma não é o acontecimento pois Emma não experimenta
angústia na cena com o dono da confeitaria. Só há trauma quando o sujeito acede
ao gozo experimentado no seu corpo no tempo do desencadeamento sexual. Freud
reconhece que a sexualidade humana é defasada. O "antes" sem significação do
atentado sexual demanda outro acontecimento que sela o trauma, nachtrâglich ,
só depois. O sujeito se determina nesse intervalo como divisão no gozo. A angústia
emerge ante a excessiva proximidade do "objeto" caído da divisão subjetiva.
A um século das primeiras histéricas, o laço social que elas constituíam foi
substituído pela "doidera psicanalítica"2: basta deparar-se com a banalização das
noções freudianas que configura essa babel da psicanálise no século. Desarticu-
lados e recalcados os conceitos fundamentais, assistimos ao ressurgimento da
função do preconceito que rejeita a alienação essencial do sujeito no significante
e no gozo. Não há de surpreender que aquilo rejeitado retorne nas formas mais
refinadas de segregação de gozo. É do analista considerar a "escroqueria" de sua
prática ao menos no que se refere ao real como ponto de fuga do discurso.
Existiria, nesse horizonte, a hipótese de um discurso que não seria do semblante?
Para o analista, não todo o semblante é fálico; haveria, pois, disjunção entre
semblante e falo. O discurso analítico estaria à escuta de um discurso que não
seria do semblante, ali onde se marca o limite imposto no discurso pela relação
sexual. A invenção do inconsciente, como meio-dito da estrutura de linguagem,
apresenta o gozo como efeito de discurso. "O inconsciente não faz semblante. E
o desejo do Outro não é um querer falho" , diz Lacan. O inconsciente é um saber
que consiste no ciframento. E no ciframento, para além de qualquer utilidade, está
o gozo sexual fazendo obstáculo a que essa parte do real, a relação sexual, possa
se escrever. O analista é encarnado por um semblante dessa abjeção que é o objeto
a. O silêncio do analista corresponde ao semblante do objeto e leva o inconsciente
produzir mais-de-gozar. O analista, na medida em que é um dejeto do dizer,
intervém ao nível do inconsciente.
Há chance, então, de disjunção e ruptura do semblante não sem que se evoque
o gozo como efeito de escritura, uma sulcagem operada no real. É do discurso
analítico manter, nos discursos existentes, a hiância aberta por Freud, o incons-
ciente como um saber que aproxime um pouco mais do real.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FREUD, S. "Entwurf einer Psychologie" - 1895 - London, Imago Publishing Co., LTD,
London.
PROTON PSEUDOS 47
BIBLIOGRAFIA
não é o desejado, pois elas fogem do trilhamento, utilizando vias motoras espe-
ciais. Será esta passagem uma antecipação de toda a questão doagir e da repeti-
ção?
De toda esta exposição sobre erros, o que gostaria de destacar é que neste
ponto de Juro que o aparelho apresenta, o sujeito deposita crédito, tomando sua
conclusão errada como certa, seja porque seguiu o desejo, que não pode parecer
estranho / familiar, seja porque as respostas que deu ao não-sabido do desejo se
chocam numa grande contradição.
Colocamos então uma pergunta: haverá um tema privilegiado, ou mais rigo-
rosamente falando, um ponto, ou cego ou muito luminoso, que lance o sujeito
nesta situação?
No texto freudiano, encontramos algumas articulações que trazem certas
coincidências, como que um vetor que se traça sempre numa determinada direção.
Indicarei três delas: no tema dos sonhos absurdos, no capítulo dos erros e no
mal-estar, cuja causa, o sentimento de culpa inconsciente, se declara o mais
absurdo dos erros.
O erro está onde Freud fala da devoção filial. Mas ao lado desta explicação
notamos que a atrocidade entre filho e pai, a castração, como contrapartida de
uma atrocidade anterior, entre pai e filho, esta devoradora, real. Na borda do real,
o mito se constrói e faz história.
A BOA LÓGICA DO ERRO 55
lado, está escrita sua inconsistência, S (fi.) e por isso eu o odeio. Estão aí, neste
vetor do grafo, o ódio e o amor ao Pai.
O Eu não pode usar agressividade contra o Pai, para vingar-se de suas
proibições e incompetências. O Eu deve amá-lo, como autoridade inatacável.
Degrada o Pai, em fantasia. A agressividade vai para o Supereu, e o Eu se
identifica com o Pai degradado. A culpa ou pecado do Pai recaem sobre o Eu. O
conflito é encenado internamente, só que invertido. A identifiação com o Pai
degradado submete-se ao recalque, manifestando-se no sentimento de culpa in-
consciente, que se expressa no mal-estar. E a agressividade do Supereu para com
o Eu é abafada, subdeposta (unterdrückt)28 na fronteira das representações pré-
conscientes, como interdição e exigência de gozo, apontando sua origem proscrita
no gozo do Pai.
Esta passagem mostra o masoquismo como a resposta do sujeito à inconsis-
tência, ao absurdo das exigências em torno do Pai, mantendo no entanto o Pai a
salvo, fora de questão.
O erro é deslocado, das exigências ao Pai, diretamente para a pele do sujeito,
que, por identificação, se degrada num gozo de vítima. É a presença do real, da
pulsão de morte.
Que outras respostas pode o sujeito produzir neste lugar de erro, de conclusão
errada?
Talvez o sintoma, que com sua vertente significante, traduz esse gozo pela
via simbólica, dando ao sujeito um lugar de certa sofrida garantia. Mas sua
estrutura de retorno mantém viva a pergunta: Pai, não vês que estou queimando?
E continua exigindo cada vez mais...
Se, no entanto, tomarmos o sintoma como real, não pela via da conclusão
errada, mas pela via do equívoco, voltamos ao campo do erro, bem exatamente
no seu ponto de origem, que o texto do "Projeto" nos acena.
Vimos que o erro tem sua razão primeira na cisão que sofrem os processos
do pensar, quando se separa de seus atributos a parte constante, a Coisa, como
não compreensível. E o que permanece constante é o desejado estado-coisa
(gewünschte Ding-Zustand)29
Equívoco30, do latim aequivocu, quer dizer aquilo que tem mais de um sentido
ou se presta a mais de uma interpretação. Na lógica, sofisma verbal que consiste
em dar sentidos diferentes a uma palavra dentro de um mesmo raciocínio.
É curioso que o prefixo latino aeque31, no entanto, quer dizer justamente,
igualmente, como testemunham muitas palavras de nosso vocabulário, como por
exemplo equiparar, equivalência e outras. E vocu refere-se a voco, vocare, que é
um verbo que se traduz por nomear, chamar, invocar.
A BOA LÓGICA D O ERRO 57
Então, o equívoco, nesse lugar do erro, não se produz por igualar os chama-
dos, as vozes, os sentidos, mas por igualar o sentido à voz, ao chamado, pois o
que importa aqui não é o conteúdo expresso nas várias vozes, mas dependendo
da voz, na sua condição de resto, é que justamete se abrirá alguma coisa, talvez
a Coisa, das Ding — coisa inédita, constante, tão desejada.
REFERENCIAS BIBÜOGRFICAS
26. - "Das Unbehagen in der Kultur"-1930 - CW- Band XIV - op.cit, p.488-489
(ESB-vol.XXI-op.cit., p.153)
27. LACAN, J. - Écrits - Paris - Éditions du Seuil - 1966 - p.819.
28. FREUD, S. - Op.cit. - p.489 - (ESB - p.153)
29. - Op.cit. - "Entwurf..." - p.462 (ESB - "Projeto..." - p.502)
30. Novo Dicionário Aurélio - Rio - Editora Nova Fronteira - 1986.
31. Ibidem
Projeto... Texto que Retorna
Maria Cristina Ferraz Coelho
59
60 100ANOS DE PROJETO FREUDIANO
pulsão oral dos "Três ensaios sobre sexualidade", o que, para Lacan, serve para
explicitar que a primeira dialética da relação de objeto apresentada por Freud já
é marcada pela busca do reencontro. Mas é no seminário de 1959-60 que ao
"Projeto" é dado um lugar-chave. Nele Lacan encontra inspiração e fundamentos
para definir uma ética própria à psicanálise, ética do desejo, inscrita no universo
da falta. Talvez, ponto de partida para se pensar a incidência de Lacan no "Pro-
jeto"-texto, no projeto freudiano e no projeto da psicanálise.
A ética da psicanálise distingue-se das concepções filosóficas e religiosas até
então formuladas, que se orientam na direção de aproximar o prazer à felicidade
e ao bem supremo. Para Freud, o bem supremo está perdido por estrutura, é
impossível de se recuperar, já que o princípio do prazer se funda na exclusão de
um objeto originariamente perdido. Não se trata tampouco do ideal do amor
humano, concluído sob a primazia genital; não se trata do ideal de autenticidade,
nem do ideal da não-dependência, como aparece subjacente a algumas concepções
ditas psicanalíticas. Inscreve a ética da psicanálise fora do âmbito do ideal, para
situá-la em outro lugar, visando a relação do sujeito ao desejo.
A partir de indicações fornecidas por Lacan, a nossa proposta é articular, em
torno da falta, algumas idéias presentes no "Projeto": a experiência de satisfação
e o seu resíduo não assimilável, a série prazer-desprazer e a função do juízo
relacionada à primeira partição do sujeito, que retornam em outros textos da obra
de Freud - capítulo VII de "A interpretação dos sonhos", "Além do princípio do
prazer" e "A negação".
satisfação parcial da pulsão, quando articulada à cadeia significante, via pela qual
se estabelece uma ligadura e o gozo se articula ao desejo.
A segunda ruptura aponta para a perda inaugural do gozo. É introduzida por
Freud na sua indagação sobre a reação frente ao perigo externo. Trata-se da
irrupção do traumático, da energia não ligada, que invade o aparelho psíquico. A
sua insistência está na compulsão da repetição, trabalho do aparelho que busca
fazer ligadura.
No "Além do princípio do prazer", a tensão produzida no funcionamento
energético abre o caminho que Lacan percorreria até "a economia política do
gozo": Produção operada pela ação do significante sobre o corpo, quando se
estabelece a perda da complementaridade sexual, a perda originária do gozo. Perda
econômica que implica uma contabilidade a partir da qual pode-se falar de ganhos
e de uma distribuição que varia segundo a estrutra do discurso - as formas
suplementares de gozo, cuja dimensão é sempre parcial.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. "Projeto" para uma psicologia científica". Obras Completas Ed. Standard Brasi-
leira,. Vol. I - Rio de Janeiro: Imago, 1977
66 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
Um homem como eu não pode viver sem um cavalo de batalha, sem uma pai-
xão devoradora, sem um tirano. Encontrei um. A serviço dele não conheço li-
mites. Trata-se da psicologia, que foi sempre minha meta distante a acenar-
me, e que agora, desde que deparei com o problema das neuroses, aproxi-
mou-se muito mais. Estou atormentado por dois objetivos: examinar que
forma irá assumir a teoria do funcionamento mental, se introduzirmos consi-
derações quantitativas, uma espécie de economia das forças nervosas, e,
em segundo lugar, extrair da psicopatologia um lucro para a psicologia nor-
mal.1 (25.05.1895)
Neste ano de 1895 Freud está no auge de sua transferência à Fliess. Envia ao
amigo várias cartas que revelam uma espécie de ciclotimia, são marcadas por um
tom de angústia, dão a impressão de que algo muito importante está para ser
produzido. Com efeito, no final do ano envia à Fliess o manuscrito do "Projeto".
No biênio 1895/1896 são escritas as obras mais importantes de toda a correspon-
dência: o próprio "Projeto", a carta de 1 de janeiro de 1896, o "Manuscrito K" e
a célebre "Carta 52". A amizade, que começara em 1887, torna-se uma espécie
de amor cego de 1894 a 1896 e, a partir daí, começa a declinar. Como disse muito
bem Mannoni, no seu estudo sobre a "Análise Original", a relação dos dois
produziu do lado de Fliess "um delírio de saber" e do lado de Freud "um saber
sobre o delírio".
É sob a influência dessa relação que Freud vai inventar a psicanálise, estabe-
lecendo os seus fundamentos teóricos e apontando os caminhos do seu desenvol-
vimento futuro. No entanto a relação apresenta caraterísticas, no mínimo, curiosas.
De um lado Freud, educado na disciplina de um pesquisador de laboratório,
desenvolvendo uma teoria a partir da observação de fatos clínicos, decorrentes de
um longo trabalho com pacientes histéricas. De outro, Fliess, um otorrino de
prática limitada, que constrói um delírio paranóico, publicado em 1897, com o
69
70 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O "Projeto" de Freud não era inocente. A estrutura do texto que leva este
nome é demasiado inteligente, demasiado exata para que fosse totalmente igno-
rante de suas conseqüências. À medida em que seus escritos vão avançando, Freud
faz cada vez mais uso daquele truque do narrador, através do qual ele se coloca
no lugar de um suposto interlocutor, usando expressões do tipo, "o leitor atento
poderia objetar", ou "aqui se poderia argumentar...", etc....
Ele é cada vez mais elegante; se tomamos este grau cada vez maior de
elegância como uma das metas essenciais, no sentido ético, do homem Freud,
podemos dizer que o "Projeto" foi bem sucedido. De fato, poderemos dizer, com
Lacan, que o projeto freudiano é de natureza essencialmente ética.
Mas em 1895, Freud é um interlocutor tão rigoroso quanto selvagem. Seu
método é cruel; vamos utilizar as próprias armas do inimigo, até a exaustão.
Levamos os seus argumentos às últimas conseqüências, e a verdade lhe cairá, não
como uma maçã, mas como uma bigorna sobre a cabeça. Ser-lhe-á impossível
dizer que não é a sua verdade. A relação do sujeito à verdade é de constrangi-
mento. As frases são do tipo: somos forçados a, é imperativo admitir... assim ele
leva o positivismo científico, naquela época e agora, ao canto do ringue. Ora,
vocês não querem o materialismo? Então, eu lhes ofereço a pulsão, este é o nosso
Bem material. Mas será forçoso admitir também que a matéria é paradoxal. Em
oposição à toda concepção vigente, esta matéria não tem substância, não carrega
em si uma força positiva inerente, e não é mensurável; ela possui signos que
alertam para o seu excesso.
A pulsão é tão material quanto um buraco pode ser material. As zonas
erógenas são tão fisiológicas quanto a capacidade do organismo de enganar-se
acerca dos seus objetos. E o fato de a matéria poder dar-se a ler, uma vez que é
cientificamente comprovado que ela é entranhada de signos, signos que alertam
sobre a satisfação e a dor, confere uma estranha materialidade ao próprio pensa-
73
74 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
mento. Até aqui, pareceria que Freud apenas antecipou, o que já seria muito, uma
ciência nova, inteiramente assimilável no decorrer do século. Mas a coisa vai
muito além disto.
Pois o que se depreende das suas proposições não é só um novo estatuto do
Eu, aqui definido como um sistema organizado de dendrítos e axônios que faci-
litam ou inibem as descargas. Surge uma questão fundamental; o que é este sujeito
que está entre o prazer e a dor (tanto faz), onde é que ele está, se não está nos
sistemas descritos? O seu lugar anunciado é o de um transmissor de diferenças
entre períodos de excitação. Entre os órgãos do sentido de um lado, e as sensações
conscientes de qualidade por outro, atua uma instância que é, em si, uma lacuna
da excitação. Com relação a um ponto hipotético de saturação, ela é uma conta a
menos, ou um quantum a menos. Mais do que um transmissor de diferenças, que
ainda se poderia substancializar, o sujeito que se anuncia é uma diferença. Não é
ele que promove os atributos ou qualidades, mas terá que participar como um
intervalo entre os períodos, para que então advenham à consciência. Ser uma pura
diferença implica não ter atributos e, nas palavras de Freud, "não ter duração, não
deixar atrás de si rastro algum, e não poder ser reproduzido".
Os juízos, de atribuição e de existência, são os novos agentes infiltrados no
terreno da Ciência, assim como quem não quer outra coisa. Se querem sair do
campo do idealismo filosófico, e submeter a questão ao tratamento da psicologia
científica, então deverão admitir forçosamente que o juízo é um equívoco. Equí-
voco que está na estrutura mesma do juízo, nas informações de que dispõe para
formular suas premissas e conclusões. As informações, geradas a partir das bar-
reiras de contato, chegam truncadas, deformadas, uma mistura palatável da Per-
cepção e da Lembrança. O objeto real é o impossível para o sujeito. O campo da
realidade é praticamente definido aqui como uma cena, cujos enquadres são o
limite da Percepção, que é a alucinação, e o limite da Lembrança, que é o sonho.
Quanto mais der de cara com as Portas da Percepção, o sujeito será um alucinado.
Quanto maior o predomínio da Lembrança, ele será um sonhador. A certeza é
uma solução de compromisso entre o que se percebe e o que se lembra.
Não se trata mais de ensaio e erro, gerando uma ética do tipo, conhecer o erro
para não repeti-lo. É impossível não repeti-lo. Trata-se antes de errar com uma
nova convicção! Recebem aqui o golpe, simultaneamente, a razão idealista e a
razão científica. E qual o sujeito que resta aí? Além de alguém sempre mais ou
menos alucinado ou sonhador, ele é aquele que garante esta solução de compro-
misso. Ele é a própria falta de correspondência entre o signo do que se percebe e
do que se lembra. Ele é novamente, e não poderia deixar de ser, um intervalo,
uma diferença, um entre-signos: e tem algo a sustentar. Do que assume como
verdade, não há outra garantia senão a sua decisão, que é a sua aposta. E Freud
demonstra que a aposta do juízo é a aposta do desejo. A pergunta fundamental
que Lacan propõe ao sujeito encontra um eco: foste fiel ao teu desejo? Aqui se
A IDEOLOGIA DA (IN)SATISFAÇÃO 75
Contudo, para que tal "aprendizagem" seja possível, "o desprazer permanece
como o único meio de educação" . Se ao seio alucinado sempre se superpusesse
um seio idêntico no real, como poderia o aparelho reter alguma tensão — ou seja,
como poderia constituir-se um sujeito capaz de discernir alguma alteridade?
Em "A Negação", Freud indica que "uma condição essencial para o estabe-
lecimento da prova de realidade é que se tenham perdido objetos que outrora
trouxeram satisfação real"2. No "Projeto...", Freud faz intervir a perda deste objeto
já na inscrição mnêmica da experiência de satisfação. O complexo perceptivo do
objeto satisfatório terá um registro heteróclito, desdobrável entre uma certa porção
constante (o "neurônio a", referente à "coisa") e outras porções variáveis ("neu-
rônios b, c, d", "atributos da coisa"). Ora, a "coisa" em si mesma já é conotada
por Freud como um "resto substraído ao juízo".
Temos aqui um paradoxo: o complexo perceptivo inscrito na memória é
desigual a si mesmo. Pelo menos uma parte dele fica fora do pensar, do lembrar,
do julgar e do reconhecer. E é a esta "porção constante do complexo perceptivjo"
crivado pelo sistema psi que Freud fará corresponder "o núcleo do eu".
A inscrição do objeto da satisfação primeva é, assim, o registro de sua perda,
memorial de sua 'ex-sistência". O "um" do traço se faz acompanhar do zero, do
conjunto vazio, lugar desertado por Das Ding. A presença desta ausência será a
sombra de todo reencontro futuro com qualquer objeto, por mais satisfatório que
ele seja. O "núcleo do eu" vem a ser onde a Coisa se perde: "Wo Es war, soll Ich
werden."
Daqui para frente, nunca mais será possível um completo escoamento da
tensão do aparelho. A repetição da experiência satisfatória, lida pelo crivo da
inscrição primordial, por mais que se encaixe nos traços desta inscrição, portará
uma desigualdade no cerne de sua identidade mesma. Entre a satisfação obtida e
a satisfação esperada restará doravante uma diferença, que fará do desejo indes-
trutível o núcleo de nosso ser (Freud, "Interpretação dos Sonhos").
Assim, a permanência da tensão "ligada" no sistema psi pareceria correspon-
der à expulsão da Coisa do campo das inscrições — ou melhor, à sua constituição,
por este campo, como resto excluído. Ora, a rede das "recordações conceituais"
assim organizada intermediará doravante toda passagem de quantidade entre per-
cepção e consciência; tenderá a traduzir toda representação do objeto em termos
de "um pálido incubo da relação com o mundo, de um gozo extenuado" —
inscrevendo uma ausência em toda a presença. Só assim o aparelho poderá fazer
uso dos signos de qualidade provenientes da percepção, distinguindo entre os
objetos presentes aos sentidos (mas "esvaziados" em relação aDas Ding, devido
à intermediação do sistema psi) e os objetos ausentes aos sentidos, presentificados
de modo ainda mais tênue pela pura reativação do traço mnêmico.
DAS DINC OU O LUGAR DO ANALISTA NA CULTURA 79
Se "a linguagem, mesmo a do Mestre, não pode ser outra coisa senão demanda,
e demanda que fracassa"16, este fracasso é de alguma forma camuflado pelo êxito
do mecanismo de acumulação da mais-valia, pelo totalitarismo do mercado em
sua lógica impessoal.
Marx denuncia o arrebentamento dos limites tradicionais à exploração dos
dominados, que se seguiu à prevalência do Mercado como ordenador das trocas
sociais. Em "O Capital", descreve com indignação as diversas manifestações e os
efeitos perversos da superexploração do trabalho que observa, ao vivo, em sua
sociedade. É verdade que esta face obscena do sintoma social contemporâneo —
um "rosto de Medusa", no dizer de Marx — recebeu maquiagens e plásticas nos
128 anos que nos separam da publicação do "Capital". Hoje, por exemplo, a
maioria dos Estados modernos limita a exploração do trabalho através de legisla-
ção trabalhista e previdenciária. Mas isto resultou de lutas sociais penosas, muitas
delas inspiradas nos significantes-mestres do próprio Marx, que chegaram a de-
sembocar em revoluções socialistas. Presentemente, alguns autores sugerem que
a derrocada do chamado socialismo real representa uma séria ameaça às conquis-
tas sociais dos trabalhadores nos países capitalistas (por ex., Hobsbawn, 1992).
Neste cenário atual, mesmo no entender de cientistas políticos marxistas como
Hobsbawn, "por enquanto não há nenhuma parte do mundo que apresente com
credibilidade um sistema alternativo ao capitalismo" . É com os efeitos subjeti-
vos de um laço social marcado pela instabilidade de todos os limites, onde a cada
dia "tudo o que era sólido e estável se esfuma", que lidamos como psicanalistas
desde Freud.
Ora, toda a lógica de nossa ordem social gira em torno do imperativo primário
do Mercado: expandir e acumular riqueza abstrata, multiplicar e diversificar as
mercadorias, gerar demanda para as mesmas via publicidade. Este mecanismo
corporifica um Outro dotado de um saber cumulativo — a ciência e a tecnologia
modernas — que comanda, sem rodeios: goza, compra, consome. A felicidade é
prometida por este saber, oferecida no corpo de cada mercadoria. Todo este
movimento, porém, não faz mais que exasperar a entropia do gozo e a falta-de-
gozar — afinal, como Freud já indicara em seu "Projeto", qualquer objeto de
satisfação é impotente para restituir-nos Z)as Ding. A sucessão de experiências
de prazer com os mais diversos bens só faz sublinhar a distância que os separa
do Bem Supremo que é a Coisa? do Bem Supremo que é a Coisa.
Assim, Lacan descreve a dinâmica do capitalismo como uma ciranda retro-
alimentada pelo alargamento progressivo da insatisfação, que ela mesma catalisa:
"(...) a mais-valia é a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio:
o da produção extensiva, por conseguinte insaciável, da falta-de-gozar. Por um
lado se acumula para acrescentar os meios desta produção a título de capital.
Por outro estende o consumo, sem o qual esta produção seria vã, justamente
DAS DINC OU O LUGAR DO ANALISTA NA CULTURA 83
por sua incapacidade para produzir um gozo como qual ela pudesse desacele-
rar-se"18.
Nossa cultura não parece capaz de prover, em sua ideologia dominante, uma
nominação estável para a falta no Outro. Os antigos viam nos males do mundo
um efeito insondável da vontade dos deuses — fora de cogitação podermos
cooptá-los ou compreendê-los; o certo é que deles, definitivamente, não teríamos
a chave da felicidade. O cristianismo relegou para o Além a satisfação do desejo
junto ao Pai; o mundo, vale de lágrimas, era um lugar onde o sujeito deveria dar
provas de sua virtude pela fé e pelas obras, cercado pelo mistério e pelo silêncio
de Deus. Ora, na cultura tecnológica moderna, somos induzidos a crer que tudo
o que nos aflige tem, ou terá um dia, solução pelo progresso da Ciência. Ninguém
precisa, e nem deve, conformar-se com a falta, que perdeu todo o valor de lastro
moral.
Assim, o mal-estar na nossa cultura deriva de uma insatisfação que só tem
como traduzir-se em termos de frustração. A dificuldade em barrar o imperativo
"goza!" traduzido em "consome!" pode levar à delinqüência os que se sentem
excluídos; já a insatisfação que se acumula no usufruto da ciranda de bens, se não
encontra um derivativo capaz de ancorar o sujeito, pode levá-lo a diversas formas
de desespero.
Ao grito de "Não é isto!", com que saudámos o atendimento de cada demanda,
a economia do consumo de massa responde: então será aquela, e mais aquela, e
mais aquela mercadoria. É como se a ordem social vigente corporificasse um
Outro que se recusa a separar-se do seio "e, em lugar do que não tem," sufoca-nos
"com a papinha asfixiante do que tem".
Ora, "É a criança alimentada com mais amor que rechaça o alimento e joga
com sua recusa como um desejo (anorexia mental)"19.
Seria a drogadicção, epidemia expansionária na moderna sociedade de con-
sumo, uma variante desta "anorexia mental"? Numa primeira abordagem, o toxi-
cômano parece antes encarnar documente a obediência em sua aparente rebeldia,
— submete-se ao Outro que empanturra, que não falta, que satisfaz. Como observa
Charles Melman,
"(...) o que se chama para nós a 'sociedade de consumo' repousa sobre um ideal,
mas ignora que este ideal é o toxicômano que o realiza. Com efeito, o sonho
de todo publicitário, de todo fabricante é de realizar o objeto do qual ninguém
poderia mais passar sem; objeto que teria qualidades tais que apaziguaria, ao
mesmo tempo, as necessidades e os desejos, que necessitaria de uma renovação
permanente, uma perfeita dependência .
Por outro lado, a conduta do drogadicto pode ser também lida como uma
sucessão de actings voltados a "retificar a dimensão da falta no campo do Outro",
como observa Ligia Bittencourt num escrito onde, justamente, discute o caso
clínico de uma toxicômana21.0 buraco no Outro, o drogadicto procuraria cega-
mente construí-lo, escrevê-lo, com seu corpo devastado, caído, ou mesmo morto.
84 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FREUD, S. "Projeto para uma Psicologia Científica" in Obras Completas, v.l, Biblioteca
nova, 1981, p.237.
2. "A negação" in Obras Completas, op.cit., p.264
3. LACAN, J. A Ética da Psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1988, p.79.
4. "A significação do falo" in Ecrits, S.Paulo, Perspectiva, 1978, p.268
5. Seminário XVII, O Avesso da Psicanálise, Rio, Jorge Zahar, 1992, p.44.
6. Ibidem, p.46
7. Ibidem, p.47-48
8. Ibidem, p.46
9. Ibidem, p.48
10. LACAN, J. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no Inconsciente Freudiano" in
Escritos, op.cit., p.296-297.
11. Os complexos familiares, Rio, Jorge Zahar, 1987, p.60.
12. Ibidem, p.61
DAS DING OU O LUGAR DO ANALISTA N A CULTURA 85
13. MARX, K. "Manifesto do partido comunista" in Textos, v.ll, S.Paulo, Ed.sociais, 1977,
p.2.
14. O capital, livro I, Rio, Ed.Civilização Brasileira, 1968, p.265-266.
15. Ibidem, p.266
16. LACAN, J. Seminário XVII, op.cit, p.117
17. Hobsbaun, E. "Adeus a tudo aquilo" in Depois da perda, Black hurn, S.Paulo, Ed.Paz
e Terra, 1992, p. 104
18. LACAN, J. Radiofonia, Barcelona, Ed.anagrama, 1977, p.59.
19. "A direção da cura e os princípios de seu poder" in Escritos li, México D.F.,
SigloXXI, 1985, p.608.
20. MELMAN, C. Alcoolismo, delinqüência, drogadição: uma outra forma de gozar,
S.Paulo, Ed.Escuta, 1992.
21. BITTENCOURT, L. "A paixão triste ou a narcose do desejo" in A vocação do êxtase,
Rio, Imago, 1994, p.63.
22. LACAN, J. Seminário X Angústia, inédito.
23. Ibidem.
24. Seminário XVII, op.cit., p.138.
25. Ibidem, p.144.
26. LACAN, J. Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio, Jorge
Zahar, 1985, p.258.
De Projetos e de Máquinas
Carlos Eduardo Estelita Lins
sistema de inscrição imaginado por Freud tem suas peculiaridades. Jacques Der-
rida, em um texto seminal sobre o assunto, "Freud e a cena de escritura", sustenta
que a concepção freudiana da escrita ainda não estava formulada naquele momen-
to. Passemos então ao problema, sem que tenhamos que admitir necessariamente
sua hipótese.
4. Redes e Topologia
Mas, então, se não podemos facilmente dizer que uma máquina age, o que
seria uma máquina? Questão colocada ao hardlsoftware e também ao rizoma.
Teremos possivelmente no que chamo de "dispositivo de "Entwurf" uma infini-
dade de máquinas virtuais, onde também deve ser incluída a máquina de escrever
(nem que seja para contrariar Derrida). Porém, o que salta aos olhos é que na rede
DE PROJETOS E DE MÁQUINAS 95
RERERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. "das Originalmanuskript trãgt Keinen Titel." cf, nota e introdução dos editores, Gesam-
melte Werke, Nacgtragsband, 1987: 375 e sq.
2. Poderíamos aproximar o sentido de meta do termo projeto (Entwurf), o que permitiria
inclusive agrupar os títulos com que Freud batizou outros textos fundamentais,
que funcionam como matrizes metapsicológicas: "Para além de" (Janseits),
"Meta-psicologia" {Metapsychologie). Este texto é um disfarce para a metapsico-
logia geral ou generalizada que propõe.
3. DERRIDA, J., "Freud e a cena da escritura", A Escritura e a Diferença, p.183.
4. Traduziríamos as Bahnungen, com a ajuda de Guimarães Rosa, por "aviamentos",
hiperveredas, "descaminhos do Demo". Lacan utiliza a expressão sirgagem rela-
tiva ao rastro de deslocamento marítimo do casco de uma embarcação.
5. A memória é representada através das diferenças de facilitações entre os neurônios
Por sua vez, entre as fobias, distingue dois grupos caracterizados pelo objeto
do medo. As fobias comuns: um medo exagerado das coisas que a todo mundo
aborrece um pouco (a noite, a solidão, a morte, etc). As fobias ocasionais: um
medo de condições especiais que não inspiram temor ao homem sadio (por
exemplo, a agorafobia e outras fobias de locomoção).
A FUNÇÃO DA ANGUSTIA 103
No dia 8 de janeiro, minha própria mulher sai para passear com ele para ver o
que acontece. Leva-o a Schõnbrunnn, lugar aonde ele gosta muito de ir. De
A FUNÇÃO DA ANGÚSTIA 109
novo começa a chorar, não quer seguir caminho, tem medo. Acaba indo, mas
é visível que sente angústia No caminho de volta de Schõnbrunnn diz à mãe:
tive medo de que um cavalo me mordesse. (De fato, em Schõnbrunn inquietou-
se quando viu um cavalo.) Quando anoitece me dizem que teve um ataque
parecido ao do dia anterior, com pedido de agradar a mãe. Tranqüilizam-no.
Diz chorando: sei que me levarão de novo para passear e depois o cavalo
entrará no quarto.
Esse mesmo dia, a mãe pergunta-lhe: Você passa a mão pelo faz-pipi? E sobre
isso, ele diz: Sim, cada anoitecer, quando estou na cama. No dia seguinte, 9
de janeiro, recomendam-lhe, antes da sesta, que não passe a mão pelo faz-pipi.
Interrogado ao acordar, ele diz que passou durante um tempinho. 25
não medo. Hans (no começo) não pode saber do que tem medo. E quando, nesse
primeiro passeio com a babá, não quer dizer do que tem medo é porque ele
também não sabe. Diz o que sabe: que na rua lhe falta a mãe com quem pode se
acariciar, e que não quer se apartar dela. Para Freud, deixa vislumbrar assim o
sentido primeiro de sua aversão a andar na rua.
Por outro lado, seus estados angustiados — duas vezes repetidos antes de
deitar-se — e, não obstante, de nítida coloração terna provam que no começo
da doença não existe uma fobia ao andar na rua ou a passear, nem tampouco
aos cavalos.
Como explicar, então, o estado ao anoitecer?
A angústia corresponde, então, a uma nostalgia recalcada, mas não é o mesmo
que a nostalgia; o recalque conta também em algo.
uma reminiscência sobre um comércio sexual entre os pais, observado por ele
no quarto .
O fenômeno do terror introduz, então, um novo perigo tão exterior como esse
perigo exterior, fazendo confluir, por um instante, angústia neurótica e realista.
Antecipa com a pulsão, um objeto-borda que escapa àquele da reversibilidade da
libido. E prepara, junto com a inquietante estranheza, iniciando uma mudança,
esse horror da satisfação que clama por um ponto de exterioridade para o aparelho
psíquico, diferente do princípio do prazer.
Na conferência volta novamente à angústia. Para o núcleo do afeto se refere
à "repetição de uma determinada vivência significativa . Uma impressão muito
cedo que situa, como conseqüência das lacunas da verdade individual"38, na
pré-história. Dito estado afetivo adota a mesma construção que um ataque histé-
rico e aponta, como este, à "decantação de uma reminiscência"39.
A "Carta 52" nos orienta neste ponto. O ataque histérico é ação (Action) e
não mera descarga e, como tal, retém o caráter original de toda ação: ser um meio
para a reprodução do prazer. "Dirige-se ao outro, mas acima de tudo a esse outro
pré-histórico, inesquecível, a quem nenhum posterior igualará"40.
Desde esta perspectiva: o que se repete? De que impressão se trata? O que
decanta?
Sobre o fundo daquelas lacunas, essa impressão precoce volta em inibição,
como lugar da angústia com a indefensão e como fenômeno com o terror: esse
Outro — pré-histórico — está irremediavelmente perdido. Ali onde a primeira
satisfação mítica se repete como falha, o enfrentamento com um perigo, que não
é recebido com disposição para a angústia, reproduz em 1926, introduzindo uma
mudança, o "prazer" do horror, e deixa a insuficiência do lado do Outro que não
pode ser garante desse gozo.
Na conferência, por outro lado, o acento se desloca em outra direção. A
impressão precoce que em qualidade de repetição reproduz o afeto de angústia,
introduz o ato do nascimento.
Esta versão inicial do ato, com o enorme incremento dos estímulos que
sobrevém no nascimento, situa esta primeira angústia como uma angústia tóxica.
"O nome angústia (Angst) — angustiar, estreitamento (Enge) — destaca o rasgo
da falta de ar, que nesse momento foi conseqüência da situação real, e hoje se
reproduz quase regularmente no afeto".
Fica como antecipação que o dito primeiro estado de angústia se origina na
separação da mãe. No entanto, ainda não aparece a comparação, como ocorrerá
em 1926, com a castração da mãe. A separação se ordena em outra direção: leva
a que nenhum sujeito possa se subtrair a esse efeito (esse primeiro estado de
angústia profundamente incorporado), por mais que, "como o legendário Macduff,
tenha sido arrancado prematuramente do seio materno, e por isso não tenha
experimentado por si só o ato do nascimento".
A FUNÇÃO DA ANGUSTIA 115
A função da angústia.
Não se trata da libido de objeto, nem da libido narcisista. Esse resto reafirma
a importância da experiência sexual que, por tal causa, se denomina traumática e
inaugura o que não pode ser ligado: o gozo pulsional como satisfação substitutiva.
Tal dita experiência sexual confronta o sujeito, pela primeira vez com a
indefensão, ou ainda, com a angústia traumática, pois tampouco conta com "esse
outro pré-histórico e inesquecível" que possa ser garante desse gozo parcial e
intransferível.
A relação angústia-perigo exterior, em 1926, redefine o "perigo pulsional
interior".
Por um lado, "a exigência pulsional não é um perigo em si mesma; o é
somente porque compreende um autêntico perigo exterior: o da castração"48. Na
fobia — retorna o pequeno Hans — só se substitui um perigo exterior — o da
castração — por outro perigo também exterior: o do cavalo que morde.
Por outro, quando intervém o fator traumático, esse mesmo cavalo com o
Krawallmachen — como em 1916 — introduz, com o terror, um novo perigo que
situa de outra maneira a exterioridade da pulsão: reaparece, como antecipamos,
fora-de-representação e fora-do-corpo especular, a dimensão da voz.
No "Complemento" diferencia a situação traumática da indefensão, da situa-
ção de perigo e introduz uma novidade esperada: a angústia pulsional.
Esta angustia pulsional, que se apropria do fenômeno do horror, que releva a
angustia traumática e que recorta o núcleo da perturbação econômica, se sustenta
na "reação originária frente à indefensão no trauma"49.
Dita reação originária permite situar a angústia como função.
Enquanto a função da angústia — como assinala Lacan — é anterior à cessão
do objeto, o perigo está ligado ao caráter de cessão do momento constitutivo do
objeto a.
Com a função da angústia, logicamente anterior ao desprendimento do objeto,
o momento de indefensão alcança o Outro. Retorna a castração na mãe: "o ponto
de angústia está a nível do Outro".
A angústia original — o lugar da angústia — se situa a nível do Outro que
nada pode fazer com isso que lhe escapa, nada o une a esse grito, já que a cessão
do objeto é um "entre-dois"; situa-se entre o Outro e o sujeito.
Daí que "quanto à causa de seu desejo o ser humano está ante tudo submetido
a tê-la produzido num perigo que ele ignora"50.
A série freudiana angúsúa-pengo-indefensão aponta para o sujeito: um voltar
a passar por esse "entre-dois" como indefensão no trauma, ou seja, por esse
momento de constituição subjetiva. Retorna, então, neste voltar a passar — nosso
ponto de partida — o fenômeno da angústia.
118 100 ANOS DE PROJETO FREUDIANO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Introdução
Logo acrescentará:
de qualquer maneira é lícito afirmar que as análises das neuroses da infância
podem oferecer um interesse particularmente grande. O serviço que prestam na
compreensão da neurose dos adultos eqüivale mais ou menos ao que os sonhos
das crianças brindam a respeito dos sonhos dos adultos [...] O que ocorre é que
neles vem à tona de maneira inequívoca o essencial da neurose porque estão
ausentes as estratificações que se depositaram depois.2
Tomei dois sonhos da análise de uma criança que caracterizo como sonhos
de angústia.
Sonhos que constituem um momento privilegiado da cura. Por um lado, como
via de acesso à própria interrogação sobre o sintoma manifesto de sua neurose
infantil: uma neurose secundária. Por outro, o esboço de certos pontos de fixação
fantasmática, cujo destino na constituição subjetiva terá ficado por ora suspenso.
A respeito dos sonhos, Freud nos ensina que, se bem é função dos mesmos
atuar como guardiões do sono, há sonhos — como neste caso os sonhos de
angústia — que contrariando o princípio do prazer fracassam na tentativa de
elaboração do desejo inconsciente, interrompem o sono e provocam o despertar.
Despertar para o encontro traumático com a sexualidade, sexualidade marcada
por uma falta.
Cada sujeito tentará de uma maneira peculiar velar dito trauma, o real da
castração. Sintoma, angústia, vicissitudes do fantasma, são montagens que o
dispositivo analítico permitiu levar a cabo, desdobramento em transferência, dos
momentos peculiares de uma análise.
Para orientar a exposição do caso recordarei as palavras de Freud ao referir-se
aos sonhos de angústia:
"A angústia nos sonhos, me seja permitido insistir, é um problema de angústia
e não um problema de sonho."3
SONHOS DE ANGÚSTIA 123
Frente à castração cede fazendo xixi na cama. O que nomeia como objeto a,
o xixi, é o gozo, o gozo autoerótico.
"Fazer xixi na cama" é o sintoma, "chupar" o verbo ao redor do qual se ordena
o sintoma e o fantasma e que abre à dimensão pulsional da oralidade, colocando
em jogo um objeto: o peito. Há articulação entre o sintoma e o fantasma. Estabe-
lece-se a equivalência no inconsciente entre o peito e o pênis, entre o chupar e o
fazer xixi na cama.
São as teorias sexuais infantis que no dizer de Freud
resultam indispensáveis para a concepção das mesmas neuroses, nas quais estas
teorias conservam vigências e cobram um influxo que chega a comandar a
configuração dos sintomas .
E acrescenta:
o que há nessas teorias de correto é explicado por sua proveniência dos com-
ponentes da pulsão sexual, já em movimento dentro do organismo infantil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FREUD, S., "Da história de uma neurose infantil. O.C v.XVII, Buenos Aires, Amorrortu
Ed.
2. Ibidem
3. FREUD, S., A Interpretação dos Sonhos. O.C, V, op.cit
4. LACAN, J., O Seminário, livro 10, A angústia. Inédito.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. Ibidem.
8. FREUD, S., "Da história de uma neurose infantil". Op.cit.
9. Ibidem.