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PEDAGOGIA DA ESPERANÇA E ARGUMENTAÇÃO EMANCIPADORA

Chapter · September 2023

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Isabel Cristina Michelan de Azevedo Eduardo Lopes Piris


Universidade Federal de Sergipe Universidade Estadual de Santa Cruz
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NAS FRONTEIRAS E MARGENS:
DESENVOLVIMENTO DE PROFESSORES DE LÍNGUAS COMO TERRITÓRIO DE ESPERANÇAS

PEDAGOGIA DA ESPERANÇA E ARGUMENTAÇÃO


EMANCIPADORA1

Isabel Cristina Michelan de Azevedo


Eduardo Lopes Piris

Introdução

O pressuposto da discussão que desenvolvemos, neste texto, é a


situacionalidade, ou seja, toda (e qualquer) temática em torno do ensino e da
escola necessita considerar uma realidade concreta. Assumimos esse ponto
de partida com vistas a não reproduzir a pretensa universalidade das visões
tecnicistas que se arvoram hegemônicas no campo da educação. Assim,
entendemos que a reflexão acerca do ensino escolar e, em especial do ensino
da argumentação, pode ser mais realista e profícua se levarmos em conta as
condições materiais que determinam sócio-historicamente “quem ensina”, “a
quem ensina”, “o que ensina” e “para que ensina”. Com isso, abrem-se
possibilidades de sulear 2 propostas didáticas que tenham em vista a
problematização da realidade de educadoras, educadores, educandas e
educandos da escola pública brasileira no período pós-golpe de 2016.

1 Agradecemos vivamente à Glícia Tinoco Azevedo pelo diálogo durante a escrita deste
texto.
2 Ana Maria Araújo Freire (2021, p. 294-298) relata de que maneira Paulo Freire começou a
usar a palavra “sulear”, em vez de “nortear”, a partir das observações do etnocientista e
educador ambiental Márcio D'Olme Campos em seu artigo “A arte de sulear-se” publicado
em 1991 no livro de Teresa Scheiner intitulado Interação museu-comunidade pela educação
ambiental.

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Materialmente, propomos inscrever o ensino-aprendizagem do que


chamamos de “argumentação emancipadora” num movimento maior de
construção concreta da esperança de um futuro melhor e da transformação
humanizadora das classes oprimidas, que vêm sofrendo os efeitos danosos do
golpe parlamentar-jurídico-midiático ocorrido no Brasil em 2016. Esse golpe
aprofundou as múltiplas crises geradas pelas desigualdades e injustiças sociais
próprias do capitalismo e que foram intensificadas pela implementação da
agenda político-econômica neoliberal que usurpou as conquistas históricas do
povo trabalhador brasileiro (MASCARO, 2018) e, durante a pandemia de
Covid-19, aliou-se à “[...] estratégia institucional de propagação do vírus,
promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da
República” (DIREITOS NA PANDEMIA, boletim no 10, 2021, p. 6)3.

Cunhamos o termo “ensino de argumentação emancipadora” como


uma expressão encapsulada, cujo significado busca compreender, ao mesmo
tempo, uma perspectiva emancipadora da educação e uma concepção de
argumentação como prática social de linguagem. Dessa proposta de ensino,
depreende-se que não basta à educadora e ao educador de boa vontade
planejar o ensino de argumentação com base em práticas de linguagem, se
tal planejamento não materializa a esperança como forma de superar a
situação-limite na qual dada comunidade vê o agravamento de suas
condições de vida (VIEIRA PINTO, 1960) e não vislumbra a tensão entre a
denúncia de um presente intolerável e o anúncio da necessidade de construir
um futuro político, ético e esteticamente melhor (FREIRE, 1992).

A argumentação emancipadora se oferece, assim, como uma prática


social de linguagem caracterizada por um agir no mundo e na história por
sujeitos movidos pelo querer ser mais, isto é, pela ação libertadora
dos processos de desumanização de oprimidos e opressores, a partir da

3 DIREITOS NA PANDEMIA: mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à


COVID-19 no Brasil, São Paulo, boletim no 10, p. 1-42, 21 jan. 2021. Disponível em:
http://cebes.fw2web.com.br/wp-content/uploads/2021/01/Boletim_Direitos-na-
Pandemia_ed_10-1.pdf. Acesso em 12 abr.2022.

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crítica, da reflexão e do diálogo acerca da própria realidade, com vistas ao


agenciamento para a transformação do ser humano e da sociedade. Assim, a
argumentação só é emancipadora, porque os sujeitos lutam por sua
emancipação, problematizando coletivamente sua realidade por meio do ato
de argumentar4.

Dito isso, conduzimos nossa discussão com base em dois pontos


distintos e complementares. Em primeiro lugar, em diálogo com ideias de
Vieira Pinto (1960; 1993), entre outros, propomos um trabalho em torno da
argumentação emancipadora a partir de três eixos: criticidade, reflexividade
e dialogicidade em situações de ensino e aprendizagem, a fim de indicar
como é possível compor práticas pedagógicas alinhadas à transformação
social, para sugerir possibilidades do ensino da argumentação emancipadora.
Em seguida, detalhamos a definição do termo “argumentação
emancipadora”, alinhando a Pedagogia da Esperança de Paulo Freire com a
concepção de argumentação como prática social de linguagem.

Criticidade, reflexividade e dialogicidade no ensino da argumentação


emancipadora

Ao tomar a esperança como uma “necessidade ontológica”, que


precisa se ancorar na prática para se tornar “concretude histórica” (FREIRE,
2021, p. 14-15), Paulo Freire reafirma que este “mundo não se constitui na
4
Assumimos neste texto a expressão “argumentação emancipadora” porque, com Tonet
(2005), não se propõe um conjunto sistematizado de ações, mas alguns requisitos para que o
trabalho com a argumentação aconteça de modo articulado a atividades educativas
emancipadoras. Não se trata de garantir um tipo de ação que seja avaliado como
efetivamente emancipatório, mas de compreender as bases que sustentam a ação docente,
quando se quer promover a emancipação humana, elemento central para a construção de
uma sociedade socialmente sensível e livre. Como é o(a) professor(a) quem faz as escolhas,
fundadas em valores, ele/ela precisa ser capaz de identificar os parâmetros que balizam a
atividade cotidiana e que podem conferir à educação um caráter emancipador. Isso requer a
compreensão do processo histórico real, o conhecimento da natureza essencial de um campo
específico da atividade humana (o campo da educação), o domínio dos conteúdos
específicos e próprios da argumentação a fim de que os saberes e as técnicas possam ser
direcionados aos compromissos políticos e sociais de cada educador(a). Se ele/ela quer
contribuir com a transformação da sociedade, precisa entender o seu papel enquanto
trabalhador/a social (FREIRE, 2016) para que consiga compor uma prática educativa
responsável e consistente.

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contemplação, mas no trabalho” (FREIRE, 1974, p. 10). Tal posição suscita


a demarcação de alguns pontos de referência para caracterizar como a
criticidade, a reflexividade e a dialogicidade são três eixos integrados que
servem de referência ao ensino da argumentação emancipadora. Trataremos
de cada um deles na ordem indicada, mas enfatizamos que os três constituem
uma unidade que pode sustentar as práticas pedagógicas destinadas ao
ensino da argumentação na escola.

Inicialmente, notamos que, para Freire, o esperançar é ontológico e


ético, antes de ser político, porque, para identificar a natureza própria do ser
social, é preciso avaliar as determinações essenciais e gerais do processo de
tornar-se homem. Como “não nascemos geneticamente determinados a
realizar as atividades necessárias à nossa existência” (TONET, 2016, p.
100), somos instigados a entender como se constitui a humanização, tanto de
uma perspectiva ponto de vista axiológico quanto da prática crítica.

Quando assumimos o pressuposto de que a compreensão da realidade


histórica, passa pelo real, o concreto e as condições materiais da vida como
referência, como propôs Marx, notamos que o trabalho promove a mediação
entre o ser humano e a natureza, porque permite a transformação dela e a
produção da existência humana. Toda atividade humana é marcada por uma
teleologia, por propósitos que orientam o agir em um certo sentido e não em
outro. Marcamos, com isso, que as escolhas não são biologicamente pré-
determinadas, mas conscientemente assumidas nas interações sociais. Como
a linguagem é uma atividade social, também é trabalho, e não só organiza a
comunicação como coordena outras atividades. Isso vale para todas as
práticas sociais de linguagem e, especialmente, para a argumentação.

Ao transformar a natureza, pelo trabalho, o homem, além de produzir


os meios de vida, as relações com os demais (relações sociais), transforma a
si mesmo e cria “uma nova realidade, radicalmente diferente daquela

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natural” (TONET, 2016, p. 97). Assim, entendemos que, pela educação


destinada a promover a argumentação emancipadora, podemos compreender
como o par ontológico atividade humana e consciência (LUKÁCS, 2013) se
articula e como orienta os processos de construção de conhecimentos, de
desenvolvimento de capacidades de linguagem, de formação de atitudes
pautadas em valores, entre outros aspectos, para promover a humanização no
ensino da argumentação. Essa proposta de ensino se coaduna à perspectiva
de educação freiriana, segundo a qual:

A primeira condição para que um ser possa assumir um


ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir. É
preciso que seja capaz de, estando no mundo, saber-se
nele. Saber que, se a forma pela qual está no mundo
condiciona a sua consciência deste estar, é capaz, sem
dúvida, de ter consciência desta consciência
condicionada. Quer dizer, é capaz de intencionar sua
consciência para a própria forma de estar sendo, que
condiciona sua consciência de estar (FREIRE, 2016, p.
18-19).

Para colocar em ação essa proposta de ensino, o educador, entendido


como um trabalhador social, “não pode ser neutro frente ao mundo, [...]
frente à permanência do que já não representa os caminhos do humano ou à
mudança destes caminhos” (FREIRE, 2016, p. 63), uma vez que pode optar
por não ficar limitado ao nível de pura opinião (doxa) sobre a realidade
visando a alcançar o logos (saber) e a orientar sua percepção do ontos
(essência da realidade) para se tornar um “agente de mudança” (FREIRE,
2016, p. 68). Essa escolha torna o trabalho do educador uma práxis social,
visto que precisará ler as circunstâncias específicas da escola e as políticas
em disputa, para que possa assumir uma postura múltipla, dinâmica,
reflexiva e crítica das práticas pedagógicas voltadas ao ensino de
argumentação.

Nesse tipo de trabalho, caberá ao educador a enunciação de “juízos


de fato” em relação à vida ou a morte, sendo esse um ato do sujeito ético
(DUSSEL, 2000). Não se trata de produzir/formular juízos de uma razão

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instrumental que procede do cálculo meio-fim, mas de juízos que decorrem


do desenvolvimento da vida humana, uma dimensão material que passa a ser
julgada criticamente.

Compreender isso permite perceber que o trabalho constitui uma


síntese entre a subjetividade e a objetividade, entre a consciência e realidade
objetiva, síntese realizada pela atividade prática. Freire (1974) orienta a
observar, em particular, as forças que geram a desumanização, resultante de
uma “ordem” injusta que reproduz a violência de opressores sobre pessoas
obrigadas a ser menos, para que possamos identificar o que distorce nossa
vocação do ser mais. Trata-se de um agir segundo uma radicalização crítica,
que também é criadora e libertadora.
Nesse sentido, ao observar as determinações essenciais do ser social,
voltamo-nos a um contexto de forças, no qual a criticidade propicia
compreender tanto os atos discursivos moldados em cada contingência como
as performances. Isso tanto possibilita a superação da ingenuidade
acadêmico-científica quanto favorece ações de mudança por parte de
docentes que trabalham com discentes, em um movimento de parceria que
não significa perda de autoridade profissional, mas trabalho em colaboração,
ou, conforme diria Freire (1974), uma aprendizagem em comunhão.
Quando se orienta pela consciência crítica, o educador constrói uma
“representação mental do mundo exterior e de si, acompanhada da clara
percepção dos condicionamentos objetivos que a fazem ter tal
representação” (VIEIRA PINTO, 1993, p. 60). Desse modo, articula a
objetividade, que possibilita compreender a totalidade em que se encontra
inserido (o espaço e o tempo históricos) como um processo que define as
condições para o agir.
A consciência crítica é contrária à consciência ingênua, porque a
segunda não inclui a referência ao mundo objetivo como seu determinante
fundamental, por isso se julga um ponto de partida absoluto, uma origem
incondicional, uma unidade a partir da qual tudo é organizado. Apartada da

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totalidade da realidade objetiva, a consciência ingênua é sempre nociva no


campo da educação, “[...] pois engendra as mais equivocadas ideias, que se
traduzem em ações e juízos que não coincidem com a essência do processo
real [...]” (VIEIRA PINTO, 1993, p. 60). Segundo um estudante do ensino
médio: “a consciência para a defesa de um ponto de vista precisa ser
construída a partir das adversidades que aparecem ao longo do caminho, e
por isso varia de pessoa a pessoa pelo acontecimento”5.

Freire explica que a consciência ingênua tende a um simplismo na


interpretação dos problemas e favorece a aceitação de “[...] formas gregárias ou
massificadoras de comportamento [...]”, por isso não permite ao educador
compreender os “[...] princípios autênticos de causalidade [...]”, “livrar-se de
preconceitos”, estabelecer diálogos necessários em uma realidade sempre
mutável e assumir responsabilidades “face ao novo” (FREIRE, 2016, p. 52-54).

Diante da privatização da educação que privilegia os interesses das


classes dominantes, por exemplo, faz-se necessária uma práxis que admita a
totalidade do ser humano e a unidade indissolúvel entre subjetividade
(mundo interno) e objetividade (mundo externo):

Há uma determinação recíproca entre esses dois


momentos, e especialmente uma determinação ontológica
do segundo sobre o primeiro, o que implica a
impossibilidade de desenvolver de maneira integral e
harmoniosa o mundo interno (intelecto, sensibilidade,
valores, comportamentos, etc.) sem, ao mesmo tempo,
configurar um mundo externo de modo integral e
harmonioso. Dito de outro modo, onde há divisão social

5 Depoimento de um estudante (T.), que, em 2018, estava matriculado em uma escola na


qual seria implantado o Ensino Médio Integral (EMI). Na oportunidade, a professora de
língua portuguesa Jussara Matos organizou um projeto de letramento que permitiu aos
estudantes avaliarem diferentes pontos de vista para que pudessem analisar a proposição dos
gestores, considerando os locais e estaduais, visto que estava prevista a implantação do EMI
em outras escolas de Sergipe (ver: AZEVEDO; MATOS, 2000). Após analisar as posições
dos estudantes de diferentes escolas, dos pais, dos professores e até de uma deputada, os
estudantes construíram um posicionamento acerca da questão e o encaminharam aos órgãos
superiores por meio de uma carta aberta. Apesar das oposições, o projeto foi implantado, e
os estudantes que tinham algum impedimento tiveram de procurar outra escola para
continuar os estudos.

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do trabalho, onde há desigualdade social, exploração e


dominação do homem pelo homem, é impossível uma
educação voltada para a formação integral do ser humano
(TONET, 2016, p. 106).

Se queremos realizar atividades educativas em uma perspectiva


emancipadora, precisamos nos apropriar de “[...] um saber que permita a
compreensão desta sociedade como uma totalidade, até a sua raiz mais
profunda [...]” (TONET, 2016, p. 137). Isso se justifica porque propomos
confrontar a fragmentação dos conhecimentos, típica da sociedade de classes
e da sociedade capitalista, e reforçar a necessidade de um caráter coletivo,
social, tanto na produção quanto na apropriação da riqueza e do saber6.

Por aceitarmos que “não é a consciência que determina a vida, mas a


vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2007, p. 94),
assumimos que a prática crítica ou a criticidade constitui o primeiro eixo de
práticas pedagógicas orientadas pela argumentação emancipadora, pois
orienta o entendimento do mundo histórico-social, ou seja, “do mundo de
acontecimentos, de valores, de ideias, de instituições. Mundo de linguagem,
dos sinais, dos significados, dos símbolos. [...] Mundo da ciência, da
religião, das artes, mundo das relações de produção. Mundo finalmente
humano” (FREIRE, 2016, p. 60). Também orienta a avaliação do real, com
todas as mediações necessárias, para haver a “[...] produção de um saber
totalizante e luta pela construção de um mundo unitário e emancipado [...]
(TONET, 2016, p. 138).

Marcamos até aqui que o eixo da criticidade não remete a estratégias


pré-definidas e únicas de ordenação do pensamento acerca dos contextos
sociais, mas indica ser necessário mobilizar um tipo de raciocínio que

6 O saber, alinhado à consciência crítica, “é o produto da existência real, objetiva, concreta,


material do homem em seu mundo (sendo este concebido como uma totalidade concreta em
processo), imprimindo-se em seu espírito sob a forma de ideias ou pensamentos que se
concatenam regularmente (isto é, logicamente)” (VIEIRA PINTO, 1960, p. 65). Esse autor
ainda lista os caracteres do saber são: relativo a cada cultura, concreto, existencial, empírico,
racional, histórico, não dogmático e fecundo, pois um conhecimento é gerador de outro
conhecimento. “O saber crítico é, assim, sempre transformador da realidade” (VIEIRA
PINTO, 1960, p. 67).

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possibilite confrontar as razões dos acontecimentos, as orientações


temáticas, as finalidades estabelecidas e requer a análise das consequências
das ações. Em outras palavras, a criticidade se articula com uma
reflexividade fundada na práxis, o que permite ao sujeito enfrentar as
relações de poder que geram a dominação e opressão. Por ser um eixo
essencialmente ético-prático, é crítico aquele que se orienta pelo ser mais,
que visa a “produzir vida”, em oposição às práticas alinhadas à sociedade
opressora. Portanto, é crítico aquele que age no sentido da intervenção no
mundo, transformação da realidade concreta objetiva e mudança.

O eixo da reflexividade, então, diz respeito à capacidade de, ao partir


de uma situação de vida que suscita diferenças de perspectivas, identificar o
que está em questão (em discussão) e apresentar razões para apoiar um certo
posicionamento (GRÁCIO, 2009). Assim, na argumentação, a reflexão é
articulada a outras capacidades humanas na composição tanto da análise da
realidade quanto da crítica ao processo social e histórico vigente.

Desde os primeiros estudos sobre retórica na Grécia Antiga até hoje,


é grande o interesse pela reflexividade. Segundo Colombo (2016, p. 16), do
ponto de vista clássico, “[...] o termo reflexividade se refere à capacidade
específica do ser humano de fazer de si mesmo e das suas ações objeto de
análise [...]”. Na modernidade, a reflexividade passou a estar associada à
capacidade de realizar uma análise com base em critérios racionais, o que
possibilitou entendê-la como “[...] o ‘método’ para um conhecimento
objetivo da realidade, um conhecimento mais pontual, preciso, eficaz [...]”, e
uma reflexividade romântica passou a vincular à reflexividade as
interrogações realizadas em âmbito pessoal.

Em contraposição a essas visões, a reflexividade crítica enfatiza “[...]


a necessidade de desconstruir as aparências externas imediatas para
apreender a realidade em seu aspecto mais verdadeiro e duradouro”
(COLOMBO, 2016, p. 18). Desse modo, a reflexividade pode ser tomada
como uma atividade humana que requer avaliação da realidade, do outro e de

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si mesmo, tendo em vista a análise dos variados e dinâmicos contextos


sociais e a compreensão das determinações que constituem a realidade e,
consequentemente, as ações do ser social. Na concepção de Dussel (2000, p.
373), “é ‘criticável’ o que não permite viver”.

Particularmente, por meio da argumentação, observamos que as


determinações que constituem a totalidade podem ser analisadas por meio do
exame das perspectivas que se encontram em jogo na sociedade e dos
objetivos que são próprios de cada atividade. Isso implica ver a
argumentação como um ato de linguagem no qual os pontos de vista são
colocados em interação (GRÁCIO, 2009) e as discursividades podem estar a
serviço da emancipação humana (TONET, 2005). Essa concepção é
parcialmente apontada pelo estudante T., após participar de práticas
argumentativas na escola:

[...] a abordagem de problemas sociais deveria ser vista e


discutida de outra forma nas escolas. A implantação de
um método novo de aprendizagem [...] diretamente pelo
governo não permite uma drástica mudança no
pensamento das pessoas, e principalmente quando o local
de vivência oferece outros meios de educação (T.,
estudante do EM em 2018).

Esse depoimento aponta que os estudantes conseguem avaliar os


problemas sociais e querem participar ativamente das discussões em torno da
articulação entre trabalho e educação. De fato, uma das principais razões
apresentadas pelos estudantes para a oposição ao Ensino Médio Integral
estava relacionada à necessidade de eles precisarem trabalhar e estudar, para
auxiliarem suas famílias. Para aqueles que são excluídos da sociedade
burguesa, o ensino integral é uma possibilidade distante e inviável.

Como ressaltamos anteriormente, ao assumirmos que a reflexão


abrange a construção social da realidade, podemos observar a
interdependência entre as análises e os símbolos utilizados para descrevê-las,
ou seja, compreender que as construções criadas pelos sujeitos estabelecem

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vínculos com as situações concretas de ação. Assim, reafirmamos que a


construção da realidade é um ato social, que tem por base o real, ou seja,
“[...] uma realidade histórico-cultural, humana, criada pelos homens e que
pode ser transformada por eles” (FREIRE, 2016, p. 66).
Para haver a crítica ao sistema existente, por sua vez, exige-se o re-
conhecimento do outro como sujeito autônomo, livre e distinto, o que também
implica responsabilidade. Isso porque, quando olhamos para aqueles que são vítimas
de um sistema opressor e re-conhecemos um vivente a quem foi negada a capacidade
de “pôr-se de pé”, isto é, de estar frente a frente com outros humanos em sociedade.
Desse modo, por exemplo, o “rosto de faminto, de sofredor em sua corporalidade re-
conhecida eticamente, nos ‘prende’ na re-sponsabilidade: nós o ‘tomamos-a-cargo’
antes de podermos recusá-lo ou assumi-lo [...]” (DUSSEL, 2000, p. 375).
Esse tipo de confronto pode ser considerado uma “situação-limite”,
em seguimento à reconceitualização de Vieira Pinto quando descreve o que
se passa em países subdesenvolvidos. Para esse autor, “as situações-limites”
exigem a análise das determinações que constroem a realidade social e
requerem “atos-limite”, entendidos como ações de substituição pela criação
do “inédito inexistente” (VIEIRA PINTO, 1960, p. 283). Esse é o trabalho
que apoia a proposição de Freire (1974) de propor ao educador o empenho
em superar as “situações-limites” pela negação do dado existente e pela
realização do inédito viável.
Em nossa proposta, a reflexividade se constitui como um exercício da
“razão ético-crítica”. Nesse sentido, ela pode ser tomada como um eixo para
que o ensino da argumentação possa ser realizado em perspectiva
emancipadora, visto que a transformação da realidade começa pelo
compromisso assumido pelo educador que observa e age, assumindo a “re-
sponsabilidade da crítica” (DUSSEL, 2000, p. 381).
Entendemos que a reflexividade também colabora com a criticidade à
medida que seria possível a um sujeito reconhecer racionalmente a opressão
capitalista e não se incomodar com isso. Assim, a reflexividade tem sentido

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quando é orientada pela criticidade (nível ético-prático) e, sobretudo, quando


emerge da necessidade de transformação de uma realidade opressora,
enquanto essa necessidade pode ser vista detalhadamente quando há
compreensão da realidade vigente (nível analítico). Um eixo, portanto, está
associado ao outro em um movimento dialógico.
Em decorrência disso, entendemos que os saberes, como produtos
próprios da faculdade intelectual humana, são criações que enlaçam
procedimentos lógicos (indutivos, dedutivos, analógicos), isto é, raciocínios.
Porém, eles também dizem respeito ao processo social em que cada um está
inserido (VIEIRA PINTO, 1960) e aos atos éticos. Assim, a associação da
criticidade à reflexividade no ensino de argumentação em perspectiva
emancipadora institui-se também como um modo de possibilitar a interação
entre muitas vozes, por meio do diálogo.
Como a reflexividade não se restringe à capacidade de introspecção
nem está limitada a estabelecer uma distância experiencial entre o
observador e o observado (mundo, pessoa, ideia), entendemos que as
condições materiais em que vivemos condicionam a compreensão do mundo
e dos desafios enfrentados a partir das contingências, ao mesmo tempo em
que oferece a oportunidade de se criar um espaço dialógico, que articula
variadas vozes e gera meios para haver uma análise contínua da produção do
conhecimento social e do desenvolvimento de capacidades de cada sujeito na
relação com o outro.
Admitimos, então, que o resultado da interação entre a pluralidade de
perspectivas analíticas, os discursos e as narrativas pessoais, que podem ser
compartilhadas, colabora com a construção do mundo e das percepções dele, porque
nessa situação também se pratica a inclusão da voz do outro em nossas reflexões.
Em vista disso, o eixo da reflexividade se articula ao eixo da dialogicidade.
A abertura de diálogos é sempre um meio que dá ao sujeito a chance de
se abrir ao mundo e aos outros, bem como de se inaugurar “[...] com seu gesto a
relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como

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inconclusão em permanente movimento na História” (FREIRE, 2003, p.


136).
Insistimos em marcar nessa concepção que o mundo é o território no
qual se desenvolvem as atividades humanas, concebidas sempre na estreita
interação com o outro. Logo, ser no mundo compromete cada um de nós a
nos envolvermos em um sistema de relações sociais com os outros, de
maneira imediata e a longo prazo. Como cada ato é único, mas também
responde a outro anterior, os impactos de nossas ações são sempre coletivos.
Nesse contexto, marcado pela filosofia dialógica e pela assunção de uma
postura ética, a palavra se torna um elemento decisivo na consolidação dos
valores implicados nas interações (BUBNOVA, 2015).

A ação dialógica, aliada à reflexividade crítica, colabora com a práxis


libertadora e com a produção do inédito viável, porque o educador
empenhado no ensino da argumentação em perspectiva emancipadora age
como um trabalhador social: “[...] não pode ser um homem neutro frente ao
mundo, um homem neutro frente à desumanização ou humanização, frente à
permanência do que já não representa os caminhos do humano ou à mudança
destes caminhos” (FREIRE, 2016, p. 63). Ele é convidado, então, a exercer
uma “prática educativo-crítica” por meio de propostas pedagógicas alinhadas
à visão de que “[...] a educação é uma forma de intervenção no mundo. Essa
intervenção, além do conhecimento dos conteúdos, [...] implica tanto o
esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu
desmascaramento” (FREIRE, 2003, p. 98, grifos do autor).

Em síntese, reconhecemos que, pelo trabalho, nós nos constituímos


como ser social no mundo – particularmente, o trabalhador social ainda pode
compreender o contexto total e as partes que constituem essa totalidade – e,
pela palavra, lidamos com duas dimensões: a reflexão e a ação. Em um
diálogo, a palavra se torna práxis quando o consciente “percebido-
destacado” é concretizado e pode transformar o mundo (FREIRE, 2021).

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Nesse ato ético7 de comprometimento com o outro, a educação exige


do educador que faça escolhas. Optar por isso implica prever meios para
haver um trabalho articulado entre docentes e discentes no qual há a
integração de cada um no processo de libertação. Isso requer mudanças
significativas nos propósitos pedagógicos da argumentação na escola,
tornando-os vinculados ao que se pode chamar de mais radical 8. O educador
que assume essa posição luta para promover a superação da assimetria na
dialética dominador-dominado (DUSSEL, 2000).

Propomos, portanto, compreender que os eixos da criticidade, da


reflexividade e da dialogicidade não se separam, mas constituem um todo
vinculado à totalidade das relações sociais objetivas. Isso porque é
impossível haver criticidade sem o momento da reflexividade desenvolvido
e, por sua vez, de nada adianta à educadora e ao educador a criticidade e a
reflexividade sem associá-las a um “ato de intervenção no mundo”
(FREIRE, 2003, p. 109), que sempre considerará as relações entre os
sujeitos. Em síntese, esses três eixos da argumentação emancipadora apoiam
uma totalidade prático-reflexivo-educativa que serve de base para o
planejamento do ensino da argumentação.

Ensinar e aprender a argumentação em uma perspectiva emancipadora

Planejar o ensino da argumentação como uma prática social de


linguagem capaz de agenciar a ação libertadora de sujeitos oprimidos requer
de educadoras e educadores a mobilização de, ao menos, dois conceitos-
chave que caracterizam o ensino de argumentação em uma perspectiva

7 O ser humano tem necessidades que são socialmente determinadas, mesmo quando
individuais. Assim, para satisfazer a vida, cada um precisa considerar o outro e se
responsabilizar com o coletivo. Essa relação é explicada por Dussel (2000, p. 141): “A partir
do ser-vivente do sujeito humano pode-se fundamentar a exigência do dever-ser da própria
vida, e isto porque a vida humana é reflexiva e auto-responsável, contando com sua vontade
autônoma e solidária para poder sobreviver. Eis aqui a fragilidade, mas ao mesmo tempo a
necessidade da ética, em seu nível deôntico, como normativa!”
8 Para que se entenda detalhadamente as características da “consciência ingênua”,
recomenda-se a leitura de Vieira Pinto (1993) e Freire (2016).

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emancipadora. O primeiro desses conceitos diz respeito à concepção


freiriana de ensino-aprendizagem, segundo a qual ensinar e aprender são
dimensões do ato maior de conhecer, que abrange, de um lado, a
conscientização dos sujeitos em direção ao conhecimento de sua situação-
limite e, de outro, a construção do sonho e da esperança como um inédito
viável. Por sua vez, o segundo conceito-chave concerne justamente à
concepção de linguagem que suleia a seleção e a organização dos conteúdos
de ensino de argumentação numa perspectiva emancipadora da educação.

Comecemos, então, por entender que, na visão de Paulo Freire


(2021), ensinar e aprender são dimensões do processo de conhecer e de se
reconhecer enquanto sujeito, pois o educando só se torna educando à medida
que vai conhecendo os conteúdos, e não à medida que o educador vai
depositando nele a descrição dos conteúdos. Nesse processo, o educando se
reconhece como sujeito capaz de conhecer e, sobretudo, um sujeito que quer
conhecer com o outro.

Nas palavras de Paulo Freire (2021), o ato de ensinar não é “um mero
ensinar os alunos a aprender através de uma operação em que o objeto do
conhecimento fosse o ato mesmo de aprender”, porque o ato de aprender
corresponde a “aprender a razão de ser do objeto ou do conteúdo” (FREIRE,
2021, p. 112), ao mesmo tempo que “ensinar é um ato criador, um ato crítico
e não mecânico”, de modo que “curiosidade do(a) professor(a) e dos alunos,
em ação, se encontra na base do ensinar-aprender”, demandando dos
educandos “a criação e o exercício de uma séria disciplina intelectual”
(FREIRE, 2021, p. 113). Nesse sentido, a educação é um “ato de
conhecimento, não só de conteúdos, mas da razão de ser dos fatos
econômicos, sociais, políticos, ideológicos, históricos, que explicam o maior
ou menor grau de 'interdição do corpo' consciente, a que estejamos
submetidos” (FREIRE, 2021, p. 141).

A visão freiriana de educação impacta o modo de ver o papel que


desempenham educadoras, educadores, educandas e educandos na relação

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pedagógica, exatamente por questionar a assimetria de saber-poder instituída


por aquela escola que se restringe a reproduzir em seu espaço a opressão que
circula na sociedade, bem como a concepção de conteúdo de ensino limitada
à ideia de neutralidade da descrição dos conceitos que devem ser
transmitidos aos estudantes. Assim, afastando-se das posições conteudistas e
espontaneístas e respondendo aos problemas da assimetria de saber-poder e
da natureza dos conteúdos, Freire assinala que “não há educação sem ensino,
sistemático ou não, de certo conteúdo”, pontuando que o problema não é
discutir se existe educação com ou sem conteúdo, mas sim “saber quem
escolhe os conteúdos, a favor de quem e de que estará o seu ensino, contra
quem, a favor de que, contra quê” (FREIRE, 2021, p. 152).
A partir de Freire, podemos afirmar que os conteúdos de ensino-
aprendizagem não são de natureza exclusivamente conceitual (saber saber),
pois tocam igualmente um quefazer (saber fazer) e um querer ser mais
(saber ser), constituindo-se assim de uma tripla dimensionalidade que
demanda de educadores e educandos assumir a prática problematizadora, ou
seja, sua própria situação como problema e como objeto de seu ato de
conhecimento, de modo que os sujeitos “submetidos à dominação lutem por
sua emancipação” (FREIRE, 1974, p. 86).
Quanto à seleção dos conteúdos de ensino, cada escolha implica num
posicionamento político que, no ato de conhecer, pode favorecer a
conscientização dos oprimidos acerca de sua realidade concreta ou a
manutenção de sua alienação em proveito dos opressores. Por isso mesmo a
busca pelo querer ser mais demanda um quefazer democrático que engaje a
comunidade escolar no diálogo sobre a escolha dos conteúdos e de seu
ensino 9 , tal como propõe Freire (2021, p. 152) ao defender “a presença
participante de alunos, de pais de alunos, de mães de alunos, de vigias, de

9 É necessário salvaguardar que a BNCC (BRASIL, 2018) deixa claro que, em matéria
curricular, as competências e as diretrizes pertencem ao básico-comum, enquanto os
currículos concernem ao que é diverso. Em outras palavras, se a BNCC, de um lado,
normatiza as aprendizagens essenciais dos estudantes que a escola deve garantir, de outro
lado, não impõe à escola os conteúdos nem uma metodologia de ensino.

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cozinheiras, de zeladores nos estudos de que resulte a programação dos


conteúdos das escolas [...]”. Esse tipo de participação corresponde a um
processo de escuta coletiva cuja presença das classes populares nas decisões
da escola, enquanto instituição, afigura-se como sinal positivo de que a
democracia anda bem.
Nessa discussão sobre os conteúdos, Paulo Freire (2021, p. 154) alerta
para “a necessidade de jamais nos permitir cair na tentação ingênua de
magicizá-los”, porque a centralidade que o currículo ou o planejamento de
ensino atribuem ao conteúdo é o que lhe confere a feição de objeto neutro e o
leva a ser ensinado de maneira pretensamente neutra, expulsando do ato de
ensinar e aprender qualquer discussão em torno da realidade social, política,
econômica, cultural de um objeto cognoscível, o que impede o diálogo entre
as diferentes e antagônicas leituras do mundo que poderiam circular na escola.

Paulo Freire (2021, p. 109) ilustra essa problemática ao criticar certo


ensino de biologia que compreende o fenômeno da vida “fora da trama
histórico-social, cultural e política” como se ela pudesse se realizar de
maneira igual nas distintas condições socioeconômicas. E sua ilustração se
estende ao ensino da linguagem, cujo objetivo é capacitar os estudantes a ler
e a escrever, mas não de forma alienada à sua realidade concreta, e sim
passando pela leitura do mundo, pelo exercício crítico da leitura e da
releitura do mundo rumo ao conhecimento de sua situação-limite e à
construção da esperança como um inédito viável.

Portanto, é neste ponto de nossa explanação que a concepção de


ensinar e aprender como ato de conhecer encontra a concepção de linguagem
que sustenta nossa proposta de ensino de argumentação emancipadora.

Antes, temos de sublinhar a especificidade da linguagem enquanto


objeto de conhecimento, uma vez que o ensino-aprendizagem da linguagem
proporciona a educandas e educandos uma experiência pedagógica ímpar,
pois, ao mesmo tempo que podem compreender o próprio funcionamento da
linguagem em sua realização concreta, podem conhecer objetos e realizar

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ações por meio da linguagem, enquanto se reconhecem como sujeitos de


certo discurso, prática, comunidade, classe social etc., inscritos num dado
tempo-espaço. Podemos dizer que a linguagem é assim um fim e um meio
no ato de conhecer, porque nos referimos aqui não a uma visão normativa da
gramática ou formalista da língua, mas a uma concepção discursiva de
linguagem, tal como podemos encontrar, por exemplo, nos escritos do
Círculo de Bakhtin:

A realidade efetiva da linguagem não é o sistema abstrato


de formas linguísticas nem o enunciado monológico
isolado, tampouco o ato psicofisiológico de sua
realização, mas o acontecimento social da interação
discursiva que ocorre por meio de um ou de vários
enunciados (VOLÓCHINOV, 2017, p. 218-219).

Leitor de Paulo Freire e do Círculo de Bakhtin, João Wanderley


Geraldi (2002, p. 45) afirma que “uma diferente concepção de linguagem
constrói não só uma nova metodologia, mas principalmente um ‘novo
conteúdo’ de ensino”. Assim, ao entender que a linguagem se realiza no
“acontecimento social da interação discursiva”, buscamos os conteúdos de
ensino-aprendizagem de linguagem, os objetos de conhecimento, não no
sistema abstrato da língua, mas nas práticas sociais de linguagem. Essa
proposta de inversão de prioridades na seleção de conteúdos não se trata
apenas de uma opção meramente técnica por certa metodologia de ensino em
detrimento de outra, mas sim de declaradamente politizar o ato de ensinar,
porque nós, educadoras e educadores da área de linguagens, necessitamos
urgentemente entender que “é preciso romper com o bloqueio de acesso ao
poder, e a linguagem é um de seus caminhos”, pois, “se ela serve para
bloquear – e disso ninguém duvida –, também serve para romper o bloqueio”
(GERALDI, 2002, p. 44).

Dito isso, podemos começar a conciliar, como anunciado em nossa


introdução, a perspectiva educativa de caráter emancipador com a nossa
concepção de argumentação como prática social de linguagem.

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Propomos que o planejamento e a realização do ensino de


argumentação como prática social de linguagem tenham como objetivo geral
propiciar a educandas e educandos a vivência em práticas de interação
argumentativa situadas na história, na sociedade e na cultura que sejam
capazes de provocar nos estudantes o senso de necessidade de conhecer sua
situação-limite e se reconhecerem como sujeitos agentes de uma
transformação social. Isso significa romper com a continuidade do ensino
tradicional e da educação bancária. No chão da escola, a questão é sempre
como tirar essas ideias da teoria e colocá-las na prática. Por isso mesmo, a
prática docente necessita de planejamento e, sobretudo, de critérios de
planejamento que sejam coerentes com a tomada de posição que assumimos
em favor da denúncia de um presente intolerável e o anúncio de um futuro
melhor. Desse modo, podemos ver que os preceitos freirianos são bem
acolhidos pelo Letramento Crítico, especialmente neste suleamento de
Angela Kleiman:

Quando a prática social estrutura as atividades da sala de


aula, o eixo do planejamento é a ação [...]. É a
necessidade de agir o que determina o gênero a ser
mobilizado e, portanto, ensinado, não vice-versa
(KLEIMAN, 2008, p. 508).

Assim, o eixo organizador de um planejamento de ensino dedicado


ao ato de argumentar não pode se limitar ao estudo de operadores
argumentativos ou de gêneros argumentativos, mas favorecer a participação
de educandas e educandos em práticas sociais de linguagem que os
desafiem, antes de tudo, a assumir sua voz para falar de sua própria leitura
do mundo e, aprendendo a razão de ser dos objetos de conhecimento, fazer
sua releitura do mundo, então mais crítica de sua realidade e de sua situação-
limite de opressão, o que, porém, “não liberta ainda os oprimidos”, mas
consiste em “um passo para superá-la desde que se engajem na luta política
pela transformação das condições concretas em que se dá a opressão”
(FREIRE, 2021, p. 44).

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Portanto, o ensino-aprendizagem da argumentação emancipadora


apresenta-se para educadoras, educadores, educandas e educandos como
uma das dimensões do ato de conhecer a própria realidade em sua situação-
limite, para que possam denunciar um presente de intolerável opressão
desumanizante e descobrir a necessidade de construir um futuro melhor na
forma de um inédito viável, que é “algo que o sonho utópico sabe que existe,
mas que só será conseguido pela práxis libertadora que pode passar pela
teoria da ação dialógica de Freire” (FREIRE, 2021, p. 278-279).

Para dissipar qualquer visão ingênua sobre o sonho, a utopia e a


esperança, Freire (1974, p. 97) alerta que: “Não é, porém, a esperança um
cruzar de braços e esperar. Movo-me na esperança enquanto luto e, se luto
com esperança, espero”. Isso porque Freire (2021, p. 125) compreende que a
luta de classes não é o motor da história, mas é um deles, assim como o sonho
o é, para então afirmar que “não há mudança sem sonho, como não há sonho
sem esperança” (FREIRE, 2021, p. 126), de modo que não há esperançar fora
da tensão entre a denúncia de um presente intolerável e o anúncio da
necessidade de construir um futuro político, ético e esteticamente melhor.

Retomando o planejamento de ensino, sugerimos que “educandas e


educandos participem de uma interação argumentativa, em que tenham
condições de identificar, reconhecer e avaliar os argumentos, as teses, os
pontos de vistas, seus responsáveis, seus lugares de fala” (PIRIS, 2021, p.
142), considerando que “uma capacidade argumentativa importante para a
educação emancipatória do ser humano é aquela de relacionar argumentos e
pontos de vista a posicionamentos ideológicos” (PIRIS, 2021, p. 144). Por
essa razão, entendemos que:

[...] o ensino da argumentação enquanto prática social de


linguagem requer o planejamento de aulas que permitam
educandas e educandos a realizar o ato de argumentar
quer seja para, coletivamente, construir novos
conhecimentos e aprender algo ainda desconhecido
(argumentação epistêmica) ou para tomar uma decisão

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NAS FRONTEIRAS E MARGENS:
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conjunta com vistas a realizar uma intervenção social em


seu grupo (argumentação prática) (PIRIS, 2021, p. 147).

Nesse alinhamento e a título de ilustração, Piris e Calhau (2021)


oferecem alguns critérios para o planejamento de ensino de argumentação
por meio de assembleias de classes, defendendo que é possível “romper com
as práticas de ensino que muitas vezes nem se sabem reprodutoras da
opressão”.

O primeiro desses critérios tem a ver com a construção de uma


cultura de argumentar na escola, ou seja, a regularidade de práticas que
decorrem de necessidades compartilhadas e exigem de todos os implicados
na interação argumentativa a leitura de mundo e o planejamento das ações
que podem acontecer na escola e/ou fora dela. O segundo critério abrange os
passos centrais de um planejamento de ensino, o que implica a escolha dos
objetivos comunicativos dos educandos e os objetivos didáticos do docente,
bem como a seleção dos conteúdos de argumentação enquanto descrições de
um objeto (saber saber), um quefazer (saber fazer) e um querer ser mais
(saber ser).

A proposta de planejamento de Piris e Calhau (2021, p. 157) prevê


que “os educandos possam refletir sobre a forma como os grupos sociais
organizam a discussão pública de seus anseios e inquietações e, então,
refletir sobre a própria condição da turma”. Assim, além de oferecer critérios
e sugestões para planejamento do ensino de argumentação, Piris e Calhau
(2021, p. 160) enfatizam que:

[...] a argumentação é algo que se aprende enquanto se


pratica, alegando que, por mais que os educandos estudem
as técnicas argumentativas, nada se compara à sua prática
quando o objetivo didático é aprimorar as suas
capacidades argumentativas. Por isso, sustentamos que o
diálogo, na acepção de Paulo Freire, é fundamental para a
fase de desenvolvimento do planejamento,
independentemente de sua abrangência.

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NAS FRONTEIRAS E MARGENS:
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Dessa maneira, podemos situar a argumentação como uma prática


social de linguagem voltada para a crítica, a reflexão, o diálogo, a agência e
a transformação do ser humano, de modo que educadoras e educadores
também possam esperançar uma escola em que educandas e educandos
possam argumentar para descobrir o inédito viável e deliberar sobre os
caminhos de uma práxis libertadora.

Considerações finais

Começamos nosso texto sinalizando a preponderância da


situacionalidade em qualquer discussão sobre o ensino, particularmente
quando voltado à argumentação emancipadora, porque vimos defendendo a
necessidade de a escola ultrapassar o mecanicismo e utilitarismo do
treinamento dos estudantes para certas finalidades técnicas e o uso de
exercícios que limitam as ações humanas, pois não permitem observar as
alternativas orientadas para a liberdade, mesmo quando há crise ou as
circunstâncias se mostram opressoras. Insistir na assunção da realidade de
educandas e educandos como objeto de conhecimento é um caminho
mostrado por Paulo Freire para a construção da consciência crítica que
direciona as ações para a superação coletiva de situações-limite,
especialmente quando estão frente a frente oprimido e opressor.

Tomamos o ensino da argumentação como prática social de


linguagem, destacando a necessidade de as educandas e os educandos
vivenciarem o ato de argumentar em situações concretas. Avançamos, neste
texto, buscando aprofundar nossa visão de ensino de argumentação com a
concepção de ensinar e aprender de Paulo Freire como dimensão do ato
maior de conhecer que propõe a realidade concreta de educandas e
educandos como objeto de conhecimento, para chegar ao que Paulo Freire
(2021) chama de inédito viável, ou seja, chegar à consciência da tensão entre
a denúncia de um presente intolerável e o anúncio da necessidade de
construir um futuro político, ético e esteticamente melhor.

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Em suma, a categoria do inédito viável de Paulo Freire acaba por


definir o objetivo de todo e qualquer planejamento de ensino de
argumentação que pretende inscrever educandas e educandos - e por que não
educadores e educadoras - em um agir no mundo e na história rumo a um
querer ser mais, ou seja, uma argumentação emancipadora, na qual os
sujeitos lutam por sua liberdade.

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