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TEXTO 1

ENTERROS

O enterro, com perdão da indiscrição, será o seu mesmo?


Sim. Quero deixar tudo pronto para quando chegar a hora. Sou um homem precavido.
Pois não. Aqui está o nosso catálogo. Como o senhor vê, podemos oferecer um enterro Deluxe Classe A, top de
linha. Caixão de madeira nobre com revestimento interno de cetim e travesseirinho bordado. O preço inclui o antes e o
depois do enterro.
O antes e o depois?
Sim. Providenciamos os canapés e o vinho e a participação de um quarteto de corda tocando seleções do barroco,
durante o velório. Além da decoração da capela com motivos da vida do morto, e de manobristas e recepcionistas.
E o depois?
Temos um serviço exclusivo de encomendação da alma que assegura um atendimento VIP no Além, com
garantia de colocação no Céu independentemente da cotação moral do morto.
E funciona?
Até hoje ninguém se queixou.
Não sei... Eu queria algo um pouco menos...
Veja. Nossa linha Deluxe Classe B é quase igual à Classe A, apenas sem os canapés e com água e refrigerantes
em vez de vinho. Também não inclui manobristas e recepcionistas, e o quarteto de cordas é substituído por um duo de
violino e violoncelo. E não tem travesseirinho.
E o atendimento especial, no Além?
Fazemos a requisição, mas não há garantia de que será atendida. Depende muito do trânsito, lá em cima.
Não tem algo mais barato?
Sim. Este aqui é o nosso enterro padrão, Classe C. É o mais procurado. A madeira do caixão e o revestimento
interno são de qualidade inferior, mas perfeitamente aceitáveis e de durabilidade garantida. Não há serviço de copa, nem
manobristas e recepcionistas, e a decoração se resume num arranjo de flores, mas a música quem faz é um acordeonista
com um excelente repertório sacro.
E a recepção, lá em cima?
Por este preço, não podemos prometer tratamento diferenciado.
Ainda não é bem o que eu queria...
Sim. Bom. Esta é a nossa linha popular, que chamamos de Bom Despacho. O caixão é de pinho, não há música
e as flores são de plástico.
E a alma, quando chega no além?
Tem que pegar uma senha como todo o mundo.
Também não é isso que eu quero...
Perdão, cavalheiro. Mas quanto, exatamente, o senhor pode pagar?
Depende. Qual é o seu enterro mais barato?
Tome.
O que é isso?
O que o senhor está vendo. Uma pá.
Uma pá?
Ou faça o seu próprio enterro, ou aceite um conselho.
Qual?
Morra em outro lugar.
(VERISSIMO, Luis F. . Em algum lugar do Paraíso. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009)
TEXTO 2
URSINHO, NÃO

Partos de meninas aumentam 81% no Rio: bichos de pelúcia escoltam barrigas. (Cotidiano, 29.9.98)

Um dia depois que a menina completou 10 anos, a mãe desconfiou de alguma coisa e resolveu levá-la ao médico.
Abraçada ao urso de pelúcia que tinha ganho de aniversário -um ursinho barato; a mãe, faxineira, não tinha dinheiro para
presentes sofisticados- a garota se recusava a ir. Finalmente, e depois de levar uns trancos, concordou. Com uma
condição:
– O ursinho tem de ir comigo. Ele é o meu filho querido.
Foram ao posto de saúde. O médico não teve a menor dificuldade em fazer o diagnóstico: a garota estava com
três meses de gravidez.
A mãe ouviu a notícia em silêncio. No fundo, não esperava outra coisa. Essa havia sido também a sua história e
a história de suas irmãs e de muitas outras mulheres pobres. Limitou-se a pegar a garota pela mão e levou-a para fora.
Sentaram num banco da praça, em frente ao posto de saúde, e ali ficaram algum tempo, a mulher quieta, a menina
embalando o ursinho de pelúcia e cantando baixinho. Finalmente, a inevitável pergunta:
–Quem foi?
A garota disse um nome qualquer. Provavelmente era um dos muitos garotos da vila onde moravam. Chance de
assumir a paternidade? Nenhuma. Tudo com ela, a mãe. E foi o que disse à menina:
– Você vai ter esse filho, e eu vou criar ele como se fosse seu irmãozinho. Você entendeu?
A garota fez que sim, com a cabeça.
– E você vai ajudar?
Nova afirmativa. E aí ela fitou a mãe, os olhos cheios de lágrimas:
– Mas o ursinho eu não dou pra ele, mãe. O ursinho é só meu. É o meu filhinho, ninguém me tira.
Está bem, disse a mãe. O ursinho é só seu.
Levantaram-se, foram para casa, a menina sempre abraçada ao ursinho. Que exibia o eterno e fixo sorriso dos
bichos de pelúcia.
(SCLIAR, Moacyr, folha de São Paulo. 1998).
TEXTO 3
TATUAGEM

Ela não era enfermeira (era secretária), não era inglesa (era brasileira) e não tinha 78 anos, mas sim 42: bela
mulher, muito conservada. Mesmo assim, decidiu fazer a mesma coisa. Foi procurar um tatuador, com o recorte da
notícia. O homem não comentou: perguntou apenas o que era para ser tatuado.
– É bom você anotar -disse ela- porque não será uma mensagem tão curta como essa da inglesa.
Ele apanhou um caderno e um lápis e dispôs-se a anotar.
–"Em caso de que eu tenha uma parada cardíaca" -ditou ela-, "favor não proceder à ressuscitação".
Uma pausa, e ela continuou:
– "E não procedam à ressuscitação, porque não vale a pena. A vida é cruel, o mundo está cheio de ingratos."
Ele continuou escrevendo, sem dizer nada. Era pago para tatuar, e quanto mais coisas tatuasse, mais ganharia.
Ela continuou falando. Agora voltava à sua infância pobre; falava no sacrifício que fora para ela estudar. Contava do
rapaz que conhecera num baile de subúrbio, tão pobre quanto ela, tão esperançoso quanto ela. Descrevia os tempos de
namoro, o noivado, o casamento, o nascimento dos dois filhos, agora grandes e morando em outra cidade.
Àquela altura o tatuador, homem vivido, já tinha adivinhado como terminaria a história: sem dúvida ela fora
abandonada pelo marido, que a trocara por alguma mulher mais jovem e mais bonita. E antes que ela contasse sua tragédia
resolveu interrompê-la. Desculpe, disse, mas para eu tatuar tudo que a senhora me contou, eu precisaria de mais três ou
quatro mulheres.
Ela começou a chorar. Ele consolou-a como pôde. Depois, convidou-a para tomar alguma coisa num bar ali
perto. Estão vivendo juntos há algum tempo. E se dão muito bem. Ela sente um pouco de ciúmes quando ele é procurado
por belas garotas, mas sabe que isso é, afinal, o seu trabalho.
Além disso, ele fez uma tatuagem especialmente para ela, no seu próprio peito. Nada de muito artístico, o clássico
coração atravessado por uma flecha, com os nomes de ambos. Mas cada vez que ela vê essa tatuagem, ela se sente
reconfortada. Como se tivesse sido ressuscitada, e como se estivesse vivendo uma nova, e muito melhor, existência.
(Moacyr Scliar – Folha de São Paulo – 10/03/2003)
TEXTO 4

O MELHOR AMIGO

A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou um passo para dentro
e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe não se voltasse para vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o ar mais natural que lhe foi possível.
– Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça? Sentindo-se perdido,tentou ainda ganhar tempo.
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar – o jeito era procurar comovê-la.Veio caminhando desconsolado
até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
– Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de isso. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só a carinha que ele faz.
– Trate de levar embora esse cachorro agora mesmo!
– Ah, mamãe… – já compondo uma cara de choro.
– Tem dez minutos para botar esse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui em casa. Tanta coisa para
cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação dessas.
O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto, emburrado:
A gente também não tem nenhum direito nesta casa – pensava. Um dia ainda faço um estrago louco. Meu único
amigo, enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa tudo é proibido! – gritou, lá do quarto, e ficou
esperando a reação da mãe.
– Dez minutos – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais ao colégio, não
faço mais nada.
– Veremos – limitou-se a mãe, de novo distraída com a sua costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria apelo: tinha dez minutos para brincar com seu novo amigo, e
depois… ao fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
– Vamos, chega! Leva esse cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! – choramingou ainda: – Meu melhor amigo, não tenho mais
ninguém nesta vida.
– E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se preocupar: meninos nessa idade, uma injustiça
praticada e eles perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa.
– Pronto, mamãe!
E exibia-lhe uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor amigo por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinquenta, tenho certeza que ele dava murmurou, pensativo.
(SABINO, Fernando. A vitória da infância. São Paulo: Ática. P. 35.)
TEXTO 5
OS HOMENZINHOS DE GRORK

Um Objeto Voador Não Identificado que chega à Terra, descendo numa planície do Meio oeste dos Estados Unidos, chama
a atenção por um estranho detalhe: a chaminé.
― Vi com estes olhos, xerife. Ele veio numa trajetória irregular, deu alguns pinotes, tentou subir e depois caiu como uma
pedra.
― Deixando um facho de luz atrás?
― Não, um facho de fumaça. Da chaminé.
― Chaminé? Impossível. Vai ver o alambique do velho Sam explodiu outra vez e sua cabana voou.
― Não. Tinha o formato de um disco voador. Mas com uma chaminé em cima.
O xerife chama as autoridades estaduais, que cercam o aparelho. Ninguém ousa se aproximar até que cheguem as tropas
federais. Um dos policiais comenta para outro:
― Você notou? A vegetação em volta...
― Dizimada. Provavelmente um campo magnético destrutivo que cerca o disco e...
― Não. Parece cortada a machadinha. Se não fosse um absurdo eu até diria que eles estão colhendo lenha.
Nesse instante, um segmento de um dos painéis do disco, que é todo feito de madeira compensada, é chutado para fora e
aparecem três homenzinhos com machadinhas sobre os ombros. Os três saem à procura de mais árvores para cortar. Estão examinando
as pernas de um dos policiais, quando este resolve se identificar e aponta um revólver para os homenzinhos.
― Não se mexam ou eu atiro.
Os homenzinhos recuam, apavorados, e perguntam:
― Atira o quê?
― Atiro com este revólver.
O policial dá um tiro para o chão como demonstração. Os homenzinhos, depois de refeitos do susto, aproximam-se e passam
a examinar a arma do policial, maravilhados. Os outros policiais saem de seus esconderijos e cercam os homenzinhos rapidamente.
Mas não há perigo. Eles querem conversa. Para facilitar o desenvolvimento da história, todos falam inglês.
― Vocês não conhecem armas, certo? ― quer saber um Policial. ― Estão num estágio avançado de civilização em que as
armas são desnecessárias. Ninguém mais mata ninguém.
― Você está brincando? ― responde um dos homenzinhos. ― Usamos machadinhas, tacapes, estilingue, catapulta, flecha,
qualquer coisa para matar. Uma arma como essa seria um progresso incrível no nosso planeta. Precisamos copiá-la!
Chegam as tropas federais e diversos cientistas para examinarem os extraterrenos e seu artefato voador. Começam as
perguntas. De que planeta eles são? De Grork. Como é que se escreve? Um dos homenzinhos risca no chão: GRRK.
― Deve faltar uma letra ― observa um dos cientistas.
― O "O".
― O "O"?
― Assim ― diz o cientista da Terra, fazendo uma roda no chão.
O homenzinho examina o "O". As possibilidades da forma são evidentes. A roda! Por que não tinham pensado nisso antes?
Voltarão para o Grork com três ideias revolucionárias: o revólver, a roda e a vogal. Querem saber onde estão, exatamente. Nunca
ouviram falar na Terra. Sempre pensaram que seu planeta fosse o centro do universo e aqueles pontinhos no céu, furos no manto
celeste. Sua viagem era uma expedição científica para provar que o planeta Grork não era chato como muitos pensavam e que
ninguém cairia no abismo se passasse do horizonte. Sua intenção era navegar até o horizonte.
E como tinham vindo parar na Terra?
Pois é. Alguma coisa deu errado.
Tinham descido na Terra, porque faltara lenha para a caldeira que acionava as pás que moviam o barco. Então aquilo era
um barco? Bom, a ideia fora a de fazer um barco. Só que em vez de flutuar, ele subira. Um fracasso. Os homenzinhos convidam os
cientistas a visitarem a nave. Entram pelo mesmo buraco de madeira da nave, que depois é tapado com uma prancha e a prancha
pregada na parede. Outra boa ideia que levarão da Terra é a da dobradiça de porta.
O interior da nave é todo decorado com cortinas de veludo vermelho. Há vasos com grandes palmas, lustres, divãs forrados
com cetim. Um dos homenzinhos explica que também tinham um piano de cauda, mas que o queimaram na caldeira quando faltou
lenha. Tudo do mais moderno.
― E que mensagem vocês trazem para o povo da Terra? ― pergunta um dos cientistas.
Os homenzinhos se entreolham. Não vieram preparados. Mas como a Terra os recebeu tão bem, resolvem revelar o segredo
mais valioso da sua civilização. A fórmula de transformar qualquer metal em ouro.
― Vocês conseguiram isso? ― espanta-se um cientista.
― Ainda não ― responde um homenzinho ― mas é só uma questão de tempo. Nossos cientistas trabalham sem cessar na
fórmula, queimando velas toda a noite.
― Velas? Lá não há eletricidade?
― Ele quê?
― Eletricidade. Energia elétrica. As coisas lá são movidas a quê?
― A vapor. É tudo com caldeira.
― Mas isso não é incômodo?
― Às vezes. O barbeador portátil, por exemplo. precisa de dois para segurar. Mas o resto...
(Luis Fernando Veríssimo. Ed Mort e outras histórias. (adap). Rio de Janeiro: Círculo do livro, 1987).
TEXTO 6
RECEM CASADO

Encontro um velho companheiro de farras:


— Estou indo para a Cidade — diz ele. — Agora estou trabalhando no setor imobiliário. Olha o meu dedo.
(Mostra-me a aliança no anular esquerdo.) Casei. É, casei. Você lembra como a gente brigava. Pois é, mas acabamos
casando. Ninguém sabe como é isso; depois do casamento, não brigamos mais. Casamos porque todo dia a gente brigava,
se separava, e na semana seguinte tudo recomeçava. Ela chegou à conclusão de que a única maneira de a gente se separar
mesmo era casando… O casamento foi legal. — Nos dois sentidos. Apareceu um juiz togado e ela ficou uma fera. “Ora
vejam!” disse ela. “Por que não me avisaram que o negócio seria à fantasia?” O juiz ficou encabulado. Nós estávamos
um pouco tontos, esta é que é a verdade. A comemoração começou de manhã cedo. Mas o casamento só ficou chato
quando o juiz começou a falar aquelas palavras que todo mundo conhece. Perguntou a ela: “A senhora insiste?” Ela
respondeu que sim. E o juiz perguntou: “A senhora persiste?” E ela respondeu: “Bom, persistir… não chego a tanto.
Insistir, insisto, mas persistir já acho meio forte.” Mas o pior foi quando o juiz nos chamou de nubentes. Ora veja você:
nubentes! Eu tive vontade de dizer que nubente era a vovozinha dele.
— Ela está descansando na serra. Vou subir no fim da semana. Estamos comprando uma casinha lá na serra.
Quando tudo estiver arrumado, vou reunir a turma. Você está convidado. Nós não brigamos mais, porém estou proibido
de contar as histórias nossas, da turma. Ela me disse: “Você nunca me contou uma história de bebedeira que terminasse
bem. Todas as suas histórias terminam com todo mundo brigando ou todo mundo no distrito.” E ela tem toda razão. Fiz
um balanço das minhas histórias com a turma e, de fato, todas terminam em pancadaria. Você se lembra quando fomos
presos em Magé? Pois é. Até hoje não compreendi como é que fomos parar naquela delegacia. E aquele botequim de
Teresópolis? Olha, outro dia estávamos lá e ela quis entrar no boteco para comprar não sei o quê. Eu disse que não
entrava e ela perguntou qual a razão. Mudei de assunto, ela insistiu, acabamos entrando. Na hora de entrar, pensei:
“Pronto, vai começar tudo de novo.” Felizmente, não me reconheceram. Você se lembra do botequim, não é? O tal que
o dono veio contar anedota pornográfica para nós. A gente estava com a Lili e eu resolvi interpelar o camarada. Ele veio
com o revolver e eu disse: “Vem você com o teu revolver e chama mais dois, pois eu sou mais eu.” O cara medrou,
lembra? Pois é. Mas essa história eu não posso contar a ela, pois termina em briga… Quer dizer, a história termina em
briga, e ela acaba brigando comigo por causa das minhas histórias que sempre terminam em briga… Não, não tenho visto
a turma não. Deixei de ir aos botecos. Agora sou um homem direito. Eu agora sou nubente, morou? Nubente… Acontece
cada uma! E você? Casou? Ah, não? Quer dizer que continua na farra? Você é que é feliz…
(José Carlos de Oliveira, Jornal do Brasil. 20 de nov. de 1988).

Texto 7
O HOMEM TROCADO
O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele
pergunta se foi tudo bem.
– Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.
– Eu estava com medo desta operação...
– Por quê? Não havia risco nenhum.
– Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos...
E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez
anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos. Descoberto o erro, ele fora
viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar
o nascimento de um bebê chinês. As E o meu nome? Outro engano.
– Seu nome não é Lírio?
– Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e...
Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não
conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.
– Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.
– O senhor não faz chamadas interurbanas?
– Eu não tenho telefone!
Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes.
– Por quê?
– Ela me enganava.
Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca
alegria, quando ouvira o médico dizer:
– O senhor está desenganado.
Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma simples apendicite.
– Se você diz que a operação foi bem...
A enfermeira parou de sorrir.
– Apendicite? - perguntou, hesitante.
– É. A operação era para tirar o apêndice.
– Não era para trocar de sexo?
(LUIS FERNANDO VERÍSSIMO. In: Comédias para se ler na escola).
Texto 8
A galinha

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava
para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou
magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar
a murada do terraço. Um instante ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve estava no terraço do
vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora
noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa,
lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de
banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula,
escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de
um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os
caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que
fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante
num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade, tinha tempo de se refazer por um momento. E
então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia
dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava
consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no
mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa.
Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda
tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro.
Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim
ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas,
enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal
porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era
nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento
especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém
acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
- Eu também! - jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do
colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E
dizer que a obriguei a correr naquele estado!" - A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam.
Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem,
resquícios da grande fuga - e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo,
embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do
telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas
cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça
se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era uma cabeça de galinha, a mesma que fora
desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.


Texto 9
Versões

Era uma vez uma donzela que caminhava pela beira de um rio quando ouviu um “psiu”. Era um sapo, que lhe contou que
na verdade era um príncipe amaldiçoado, transformado em sapo por uma bruxa malvada com poderes mágicos. Se a donzela o
beijasse, o sapo voltaria a ser príncipe. A donzela acreditou no sapo, beijou-o, ele se transformou de novo em príncipe e os dois se
casaram e viveram felizes para sempre.
Anos depois outra donzela teve a mesma experiência. Ouviu a mesma história, sobre a maldição da bruxa que transformava
qualquer coisa em outra coisa e fizera o príncipe virar sapo. A donzela concordou em beijar o sapo para livrá-lo da maldição, com
uma condição:
- Beijo de língua, não. E viveram felizes para sempre.
Muitos anos mais tarde, depois da revolução industrial, uma donzela desempregada caminhava pela beira do rio e ouviu a
mesma história de um sapo. Concordou em beijá-lo mas o sapo se transformou num príncipe muito feio, talvez devido à poluição do
rio. A donzela protestou e ouviu do príncipe:
- Ué, pra quem já beijou sapo! Mas casaram-se e tiveram uma vida difícil para sempre, porque o príncipe, inclusive, perdera
tudo com o fim do feudalismo.
Já neste século mesma história. “Psiu”, sapo, bruxa com poderes mágicos, beijo, tudo igual. Com apenas um instante de
excitação até que se esclarecesse um ponto:
- Precisa ser donzela? Não precisava. Casaram-se e viveram etc.
Anos 60. A mesma história, com uma variação: a moça era feminista. Ouviu o que a bruxa com poderes mágicos que
transformava qualquer coisa em outra coisa fizera com o príncipe, e concluiu:
- Alguma você andou aprontando! E solidarizou-se com a bruxa e chutou o sapo.
Jovem empresária caminhando pela beira do rio artificial do seu condomínio fechado ouve o “psiu”, depois a conversa do
sapo, e diante dos protestos do sapo – raciocina em voz alta:
- Um príncipe, hoje, não vale muita coisa. Mas imagina o que eu posso ganhar com um sapo falante, só em cachês! E ela
fez muito dinheiro e viveu feliz com o sapo numa gaiola para sempre.
Anteontem. Jovem ouviu a proposta do sapo, mas não decidiu em seguida. Procurou seu consultor financeiro, que lhe
lembrou que nada é mais valioso no mercado, hoje, do que informação privilegiada como a que sapo lhe passara. E aconselhou:
- Esqueça o sapo e encontre essa bruxa! Com seus poderes mágicos a bruxa poderia transformar moeda fraca em moeda
forte, nominativas em preferenciais... Era a solução para a crise!
(Luis Fernando Verissimo. Versões. Jornal Bom dia. 22 de fev. 09.)

Texto 10
Segurança

O ponto de venda mais forte do condomínio era a sua segurança. Havia as belas casas, os jardins, os playgrounds, as piscinas,
mas havia, acima de tudo, segurança. Toda a área era cercada por um muro alto.
Havia um portão principal com muitos guardas que controlavam tudo por um circuito fechado de TV. Só entravam no
condomínio os proprietários e visitantes devidamente identificados e crachados. Mas os assaltos começaram assim mesmo. Ladrões
pulavam os muros e assaltavam as casas.
Os condôminos decidiram colocar torres com guardas ao longo do muro alto. Nos quatro lados. As inspeções tornaram-se
mais rigorosas no portão de entrada. Agora não só os visitantes eram obrigados a usar crachá.
Os proprietários e seus familiares também. Não passava ninguém pelo portão sem se identificar para a guarda. Nem as
babás. Nem os bebês. Mas os assaltos continuaram.
Decidiram eletrificar os muros. Houve protestos, mas no fim todos concordaram. O mais importante era a segurança. Quem
tocasse no fio de alta tensão em cima do muro morreria eletrocutado. Se não morresse, atrairia para o local um batalhão de guardas
com ordens de atirar para matar. Mas os assaltos continuaram.
Grades nas janelas de todas as casas. Era o jeito. Mesmo se os ladrões ultrapassassem os altos muros, e o fio de alta tensão,
e as patrulhas, e os cachorros, e a segunda cerca, de arame farpado, erguida dentro do perímetro, não conseguiriam entrar nas casas.
Todas as janelas foram engradadas. Mas os assaltos continuaram.
Foi feito um apelo para que as pessoas saíssem de casa o mínimo possível. Dois assaltantes tinham entrado no condomínio
no banco de trás do carro de um proprietário, com um revólver apontado para a sua nuca. Assaltaram a casa, depois saíram no carro
roubado, com crachás roubados. Além do controle das entradas, passou a ser feito um rigoroso controle das saídas. Para sair, só com
um exame demorado do crachá e com autorização expressa da guarda, que não queria conversa nem aceitava suborno. Mas os assaltos
continuaram.
Foi reforçada a guarda. Construíram uma terceira cerca. As famílias de mais posses, com mais coisas para serem roubadas,
mudaram-se para uma chamada área de segurança máxima. E foi tomada uma medida extrema. Ninguém pode entrar no condomínio.
Ninguém.
Visitas, só num local predeterminado pela guarda, sob sua severa vigilância e por curtos períodos.
E ninguém pode sair.
Agora, a segurança é completa. Não tem havido mais assaltos. Ninguém precisa temer pelo seu patrimônio. Os ladrões que
passam pela calçada só conseguem espiar através do grande portão de ferro e talvez avistar um ou outro condômino agarrado às
grades da sua casa, olhando melancolicamente para a rua. Mas surgiu outro problema. As tentativas de fuga. E há motins constantes
de condôminos que tentam de qualquer maneira atingir a liberdade. A guarda tem sido obrigada a agir com energia.
(Luis Fernando Verissimo. Comédias para se ler na escola.)
Texto 11
UMA ESPERANÇA
Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora
mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto. Houve um grito abafado de
um de meus filhos:
– Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma
só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar
diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas
era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não poderia ser.
– Ela quase não tem corpo, queixei-me.
– Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa
que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes
tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha, comentou o menino.
– Sei disso, respondi um pouco trágica.
– Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
– Sei, é assim mesmo.
– Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.
– Sei, continuei mais infeliz ainda. Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se
vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.
– Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim. Andava mesmo
devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre
assim comigo.
Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma
aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar.
Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi
buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a
esperança:
– É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...
– Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.
– Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e
ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e
misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.
O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que
estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão
delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. Uma vez, aliás, agora
é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que
era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o
braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma
flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.
(Clarice Lispector. In: A descoberta do mundo)
Texto12

SIGLAS
– Bota aí: "P"
– “P”
– De "Partido".
– Ah.
– Nossa proposta qual é? De união, certo? Acho que a palavra "União" deve constar do nome.
– Certo. Partido de União...
– Mobilizadora!
– Boa! Dá a ideia de ação, de congraçamento dinâmico. Partido da União Mobilizadora. Como é que fica a sigla?
– PUM.
– Não sei não...
– É. Vamos tentar outro. Deixa ver. "P"...
– "P" é tranquilo.
– Acho que "Social" tem que constar.
– Claro. Partido Social...
– Trabalhista?
– Fica PST Não dá.
– É. Iam acabar nos chamando de "Ei, você".
– E mesmo "trabalhista', não sei. Alguém aqui é trabalhista?
– Isso é o de menos. Vamos ver. "P"...
– Quem sabe a gente esquece o "P"?
– É. O "P" atrapalha. Bota "A", de Aliança. Aliança Inovadora...
– AI.
– Que foi?
– Não. A sigla. Fica AI.
– Espera. Eu ainda não terminei. Aliança Inovadora... de Arregimentação Institucional.
– AIAI... Sei não.
– É. Pode ser mal interpretado.
– Vanguarda Conservadora?
– Você enlouqueceu? Fica VC.
– Aliança Republicana de Renovação do Estado.
– ARRE!
– O quê?
– Calma.
– Espera aí pessoal. Quem sabe a gente define a posição ideológica do partido antes de pensar na sigla? Qual é, exatamente,
a nossa posição?
– Bom, eu diria que estamos entre a centro-esquerda e a centro-direita.
– Então é no centro.
– Também não vamos ser radicais...
– Nós somos a favor da reforma agrária?
– Somos, desde que não toquem na terra.
– Aceitaremos qualquer coalizão partidária para impedir a propagação do comunismo no
Brasil.
– Inclusive com o PCB e o PC do B?
– Claro.
– Não devemos ter medo de acordos e alianças. Afinal, um partido faz pactos políticos por uma razão mais alta.
– Exato. A de chegar ao poder e esquecer os pactos que fez.
– Partido Ecumênico Republicano Unido.
– PERU?
– Movimento Institucionalista Alerta e Unido.
– MIAU?!
– Que tal KIM? - O que significa?
– Nada, eu só acho o nome bonito.
– MUMU. Movimento Ufanista Mobilização e - MMM... Movimento Moderador Monarquista.
– Mas nós somos republicanos.
– Eu sei. Mas por uma boa sigla a gente muda.
– TCHAU.
– Hum, boa. Trabalho e Capital em Harmonia com Amor e União?
– Não, é tchau mesmo.
– Aonde é que você vai?
– Abrir uma dissidência.

(Luis Fernando Veríssimo)


TEXTO 13
OS DIAMANTES CHEGARAM

Ubiratan S., funcionário público, 47 anos, casado com Hilda S., prendas domésticas, sem filhos, acordou no meio da noite
de um sonho burocrático. O telefone estava tocando. Ubiratan S. olhou seu relógio de pulso, que nunca atrasava ou adiantava. Duas
e 22. Àquela hora, só podia ser morte na família ou engano. O tio Potiguar, pensou Ubiratan S., levantando-se, tonto. Morreu. Quando
ergueu o fone do gancho, Ubiratan S. já reorganizava, mentalmente, a sua rotina do dia seguinte, quinta-feira, para acomodar o
velório e o enterro do tio Potiguar.
― Alô?
― Os diamantes chegarram ― disse uma voz feminina. Assim mesmo, chegarram, o erre carregado. E não disse mais nada.
De volta à cama, Ubiratan acalmou Hilda S., prendas domésticas, olhos arregalados.
― Era trote. Dorme
No dia seguinte, quinta-feira, Ubiratan S. maldisse várias vezes o telefonema da noite. Tinha lhe roubado cinco minutos de
descanso reparador e ele, sem suas oito horas completas de sono, ficava imprestável. Na repartição, carimbou uma via errada pela
primeira vez na sua vida funcional. Mas o mundo era assim, cheio de gente sem ter o que fazer.
Quase no fim do expediente, chegou o envelope.
Era um envelope branco, comum. Dentro, um guardanapo de papel com o nome de um bar impresso. E, escrito à mão:
"Hoje. Dez horas. Se eu estiver bebendo um Martini é sinal de que tudo está bem. Um drinque longo é sinal de perigo. Helga".
Ubiratan S. amassou o envelope e o guardanapo e jogou na cesta, indignado. Aquilo era coisa do pessoal do Arquivo. Uns
desocupados. Ainda iam ouvir poucas e boas. Mais três ou quatro anos e Ubiratan chegaria a um cargo de chefia e aí aquela folga ia
acabar. Poucas e boas.
À meia-noite, o telefone do seu apartamento tocou. Hilda S., prendas domésticas, acordou assustada. Ubiratan S. jogou
longe o seu Vida Cristã e pulou da cama. O tio Potiguar!
― É a Helga ― disse a mesma voz. ― Esperei você no bar até agora. O que houve?
Ela pronunciava esperrei. Ouviu poucas e boas. Estava pensando o quê? Ele era um homem de respeito, responsável,
trabalhador... A mulher disse "compreendi" e desligou.
Ubiratan S. recuperou o controle antes de voltar para a cama. Não gostava de perder o controle. Era um homem metódico.
Desde os dois ou três anos, quando aprendera a se limpar sozinho, era um homem metódico. Disse para Hilda S., prendas domésticas,
que tinha sido um trote outra vez.
― Dorme, dorme.
No dia seguinte, outro envelope branco. Um bilhete: “Desculpe. Eu devia saber que seu telefone está controlado e você não
pode falar livremente. Mas precisamos nos encontrar logo. Tenho os diamantes e o anão está no meu encalço. Sei que Dombrovski
também chegou de Buenos Aires. O que vamos fazer? Helga”.
Sábado, Ubiratan S. e Hilda S., prendas domésticas, foram visitar o tio Potiguar, que estava ótimo. Aquele não morria tão
cedo. Na volta, entraram numa sorveteria. Hilda S., prendas domésticas, adorava creme russo. Ubiratan notou o anão que entrou atrás
deles e pediu ameixa e coco.
Às quatro horas da madrugada, o telefone tocou. Hilda S., prendas domésticas, acordou em pânico. Era Helga.
― Você está sendo vigiado.
― Eu sei ― disse Ubiratan.
Ubiratan S. não dormiu mais naquela noite. Passou o domingo espiando pela janela. Não poderia descrever o que sentia.
Não era mais indignação. Nem medo. Era assim como um frio de antecipação na barriga. Também não dormiu na noite de domingo
para segunda. Na repartição, carimbou a própria mão várias vezes, distraidamente. E então, na noite de segunda, o telefone tocou
outra vez. Hilda S., prendas domésticas, deu um grito. Ubiratan correu para atender.
― Rápido! ― disse Helga. ― Eles estão rondando o meu quarto. Não sei o que fazer. Venha depressa!
Ela deu o nome de um hotel. E de repente, Ubiratan S. estava correndo dentro do seu apartamento. Vestiu-se como um raio.
Eufórico. Hilda S., prendas domésticas, não entendia nada. O que era? Mas Ubiratan não respondeu. Não saberia o que dizer. Se
abrisse a boca era para dar uma gargalhada descontrolada. Quando saiu pela porta pela última vez, ouviu Hilda S., prendas domésticas,
gritando da cama:
― É o tio Potiguar? Ubiratan, me responde! É o tio Potiguar?
Hilda S., prendas domésticas, nunca mais viu Ubiratan S. Ninguém na cidade e na repartição viu Ubiratan S. Sua mulher
recebe remessas de dinheiro irregularmente de lugares misteriosos. Adis-Abeba. Antuérpia. Macau. Uma vez julgou identificar o
marido junto com uma loira numa foto de revista sobre a temporada de inverno em Saint-Moritz, mas o cabelo, oxigenado e penteado
para a frente, era diferente. Outra vez, um telefonema que parecia vir de muito longe,
― Hilda?
― Ubiratan, onde é que...
― Não se preocupe. Está tudo bem.
― Mas Ubiratan...
― Não posso falar agora. Um beijo.
No fundo, o som de uma orquestra de marimbas. E um dia bateu um negão com sotaque francês na porta do apartamento e
entregou um pacote.
― É de Ubiratan? ― perguntou Hilda S., prendas domésticas.
― Pode ser ― respondeu o negão ― Nós só conhecemos ele pelo codinome. Lê Faucon.

(Luis Fernando Verissimo. Ed Morte e outras histórias)


TEXTO 14
Bons dias!
Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor
nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta Lei de 13 de Maio
estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote
que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil,
perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco
pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto
simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de
champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade
ao meu escravo Pancrácio; que entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o
meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos
meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembleia que
correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro
discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de
admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu
retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado,
um ordenado que...
— Oh! meu senhô! fico. — ... Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo;
tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa
ver; olha, és mais alto quatro dedos...
— Artura não qué dizê nada, não, senhô...
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo.
Tu vales muito mais que uma galinha.
— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem
as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular
o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados
naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou
outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do Diabo; coisas todas que ele recebe
humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que,
antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que
comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples
suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente
políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que
o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para
satisfação do Céu.
Boas noites.
(M. de A.)
TEXTO 15
A METAMORFOSE

Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Começou a mexer suas
patas e descobriu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de articulação difícil. Acionou suas antenas
e não tinha mais antenas. Quis emitir um pequeno som de surpresa e, sem querer, deu um grunhido. As outras
baratas fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis segui-las, mas não coube atrás do móvel. O seu
primeiro pensamento humano foi: que vergonha, estou nua! O seu segundo pensamento humano foi, que
horror! Preciso me livrar dessas baratas!
Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia o seu instinto. Agora precisava
raciocinar. Fez uma espécie de manto da cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu pela casa, caminhando
junto à parede, porque os hábitos morrem devagar. Encontrou um quarto, um armário, roupa de baixo, um
vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para uma ex-barata. Maquilou-se. Todas as baratas são iguais,
mas uma mulher precisa realçar a sua personalidade. Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu que
só um nome não bastava. A que classe pertencia? Tinha educação? Referências? Conseguiu, a muito custo, um
emprego como faxineira. Sua experiência de barata lhe dava acesso a sujeiras mal suspeitadas, era uma boa
faxineira.
Difícil era ser gente. As baratas comem o que encontram pela frente. Vandirene precisava comprar sua
comida e o dinheiro não chegava. As baratas se acasalam num roçar de antenas, mas os seres humanos não. Se
conhecem, namoram, brigam, fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai dar?
Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de cama, mesa e banho. A primeira noite. Vandirene e seu
torneiro mecânico. Difícil. Você não sabe nada, bem? Como dizer que a virgindade é desconhecida entre as
baratas? As preliminares, o nervosismo. Foi bom? Eu sei que não foi. Você não me ama. Se eu fosse alguém
você me amaria. Vocês falam demais, disse Vandirene. Queria dizer, vocês, os humanos, mas o marido não
entendeu; pensou que era vocês, os homens. Vandirene apanhou. O marido a ameaçou de morte. Vandirene
não entendeu. O conceito de morte não existe entre as baratas. Vandirene não acreditou. Como é que alguém
podia viver sabendo que ia morrer?
Vandirene teve filhos. Lutou muito. Filas do INPS. Creches. Pouco leite. O marido desempregado.
Finalmente, acertou na esportiva. Quase quatro milhões. Entre as baratas, ter ou não ter quatro milhões não
faria diferença. A barata continuaria a ter o mesmo aspecto e a andar com o mesmo grupo. Mas Vandirene
mudou. Empregou o dinheiro. Trocou de bairro. Comprou casa. Passou a vestir bem, a comer e dar de comer
de tudo, a cuidar onde colocava o pronome. Subiu de classe. (Entre as baratas, não existe o conceito de classe.)
Contratou babás e entrou na PUC. Começou a ler tudo o que podia. Sua maior preocupação era a morte. Ela ia
morrer. Os filhos iam morrer. O marido ia morrer ― não que ele fizesse falta. O mundo inteiro, um dia, ia
desaparecer. O sol.
O Universo. Tudo. Se espaço é o que existe entre a matéria, o que é que fica quando não há mais
matéria? Como se chama a ausência do vazio? E o que será de mim quando não houver mais nem o nada? A
angústia é desconhecida entre as baratas.
Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado de novo numa barata. Seu penúltimo
pensamento humano foi, meu Deus, a casa foi dedetizada há dois dias! Seu último pensamento humano foi
para o seu dinheiro rendendo na financeira e o que o safado do marido, seu herdeiro legal, faria com tudo.
Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás de um móvel. Não pensava mais em nada. Era puro instinto.
Morreu em cinco minutos, mas foram os cinco minutos mais felizes da sua vida. Kafka não significa nada para
as baratas.
(Luis Fernando Verissimo. Ed Morte e outras histórias)
TEXTO 16
TERROR

O pai volta para a cama.


― Que imaginação tem esse guri...
― O que foi desta vez? ― pergunta a mulher, sonolenta.
― Ele queria ir ao banheiro fazer xixi, mas tinha medo do polvo.
― Polvo?
― Ele diz que tem um polvo embaixo da cama. Assim que ele bota o pé no chão, o polvo pega a perna dele com
um tentáculo. Até me descreveu como é o tentáculo. Frio, pegajoso, gosmento...
― Esse menino...
― Fiz ele olhar embaixo da cama para ver que não tinha polvo nenhum. Mesmo assim, quando voltou do
banheiro ele deu um pulo do meio do quarto para cima da cama. Senão o polvo pegava o pé dele. Mas acho que esta noite
ele não vai incomodar mais.
― Você bateu nele? Olha o que disse a psicóloga...
― Não bati. Só disse que se ele não ficasse quieto, o Bicho Papão vinha pegar.
― O quê?! Um menino com a imaginação dele e você ainda fala em Bicho Papão! A psicóloga disse claramente...
― Pois eu fui criado ouvindo histórias do Bicho Papão. Me ameaçavam com o homem do saco se eu não comesse
tudo, com o boi da cara preta se eu não dormisse cedo... E aqui estou eu, um homem normal, sem traumas. Aliás, no meu
tempo nem existia a palavra trauma.
Do quarto do guri vem uma voz chorosa.
― Mãe...
― Não responde que ele desiste.
― Mãeê...
― A psicóloga disse que era para atender sempre que ele chamasse.
― Então vai você. Ele está chamando “mãe".
― Vai você.
― Desta cama eu não desço.
― Está com medo do polvo?
― Não seja boba. Eu...
O guri entra correndo no quarto. Está apavorado.
― O BICHO PAPÃO QUER ME PEGAR!
― Volte já para a sua cama! ― diz a mãe. Mas o guri já mergulhou entre os dois. Só bota a cabeça para fora das
cobertas para descrever o monstro...
― Ele é enorme. Cabeludo. Tem dois olhos grandes e um buraco vermelho e molhado no meio da cara. Arrasta
os pés no chão.
― Viu o que você fez? ― diz a mulher para o marido. Mas o marido não a ouve. Está com a atenção voltada
para o corredor. E os seus olhos se arregalam. A mulher também pára de falar quando escuta o que o marido está
escutando. O ruído de pés se arrastando no chão. Pés cabeludos.
― Fecha a porta depressa! ― grita a mulher.
― Ele quer me pegar! ― grita o filho.
O Bicho Papão aparece na porta. Tem o tamanho de um gorila. Os olhos grandes e injetados. Em vez de boca,
um buraco carnudo no meio da cara com duas fileiras de dentes afiados em cima e duas embaixo. Aproxima-se lentamente
da cama, arrastando os pés. A mãe desmaia. O pai ergue-se na cama e achata-se contra a parede. Não consegue gritar.
O Bicho Papão arranca a criança debaixo das cobertas e engole, com pijama e tudo. Depois sai, pesadamente,
pela porta.
Meia hora depois a mãe recobra os sentidos. O marido está sentado na beira da cama, mas com os pés recolhidos
sob o corpo. Sacode a cabeça e não pára de repetir: “Eu avisei... Eu avisei...”
A mãe só tem uma preocupação:
― O que é que eu vou dizer para a psicóloga?

(Luis Fernando Verissimo)


TEXTO 17
O HOMEM CUJA ORELHA CRESCEU

Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora-
extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi
aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram
moles, como de cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou
só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. Procurou uma tesoura,
ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de
material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um
amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas
de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça,
como se estivesse machucado.
Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para
dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz
de pensar, dormiu de desespero.
Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara
como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a
orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às
quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga
roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.
Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã
seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a
porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a
casa. Os hospedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a
rua. Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e
amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social,
irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham
com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador,
trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.
E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos,
frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos
açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os
outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o
prefeito ao governador. E o governador ao presidente.
E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: "Por que o
senhor não mata o dono da orelha?"
(Ignácio de Loyola Brandão. In: Cadeiras proibidas)
TEXTO 18

O HOMEM NU

Ao acordar, disse para a mulher:


— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas
acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta:
quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater
até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara
lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.
Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos
até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer
ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu
lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que
já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa. Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez,
era o homem da televisão! Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e
voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu! Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares,
vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia
executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu
para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a
subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis
que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado. E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador
e daria com ele ali, em pelo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo
levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se
naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso. Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares,
obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois
experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada:
"Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a
porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra
porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o
embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.
— Imagine que eu... A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu! E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha! Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que
era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois,
restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir. Não era: era o cobrador da televisão.
(Fernando Sabino. In: O Homem nu).
TEXTO 19
O HOMEM QUE ESPALHOU O DESERTO

O homem que espalhou o deserto Quando menino, costumava apanhar a tesoura da mãe e ia para o
quintal, cortando folhas das árvores. Havia mangueiras, abacateiros, ameixeiras, pessegueiros e até mesmo
jabuticabeiras. Um quintal enorme, que parecia uma chácara e onde o menino passava o dia cortando folhas.
A mãe gostava, assim ele não ia para a rua, não andava em más companhias. E sempre que o menino apanhava
o seu caminhão de madeira (naquele tempo, ainda não havia os caminhões de plástico, felizmente) e cruzava o
portão, a mãe corria com a tesoura: tome filhinho, venha brincar com as suas folhas. Ele voltava e cortava. As
árvores levavam vantagem, porque eram imensas e o menino pequeno. O seu trabalho rendia pouco, apesar do
dia-a-dia constante, de manhã à noite.
Mas o menino cresceu, ganhou tesouras maiores. Parecia determinado, à medida que o tempo passava,
a acabar com as folhas todas. Dominado por uma estranha impulsão, ele não queria ir à escola, não queria ir ao
cinema, não tinha namoradas ou amigos. Apenas tesouras, das mais diversas qualidades e tipos. Dormia com
elas no quarto. À noite, com uma pedra de amolar, afiava bem os cortes, preparando-as para as tarefas do dia
seguinte. Às vezes, deixava aberta a janela, para que o luar brilhasse nas tesouras polidas.
A mãe, muito contente, apesar do filho detestar a escola e ir mal nas letras. Todavia, era um menino
comportado, não saía de casa, não andava em más companhias, não se embriagava aos sábados como os outros
meninos do quarteirão, não frequentava ruas suspeitas onde mulheres pintadas exageradamente se postavam às
janelas, chamando os incautos. Seu único prazer eram as tesouras e o corte das folhas.
Só que, agora, ele era maior e as árvores começaram a perder. Ele demorou apenas uma semana para
limpar a jabuticabeira. Quinze dias para a mangueira menor e vinte e cinco para a maior. Quarenta dias para o
abacateiro que era imenso, tinha mais de cinquenta anos. E seis meses depois, quando concluiu, já a
jabuticabeira tinha novas folhas e ele precisou recomeçar.
Certa noite, regressando do quintal agora silencioso, porque o desbastamento das árvores tinha
afugentado pássaros e destruído ninhos, ele concluiu que de nada adiantaria podar as folhas. Elas se
recomporiam sempre. É uma capacidade da natureza, morrer e reviver. Como o seu cérebro era diminuto, ele
demorou meses para encontrar a solução: um machado.
Numa terça-feira, bem cedo, que não era de perder tempo, começou a derrubada do abacateiro. Levou
dez dias, porque não estava habituado a manejar machados, as mãos calejaram, sangraram. Adquirida a prática,
limpou o quintal e descansou aliviado. Mas insatisfeito, porque agora passava os dias a olhar aquela desolação,
ele saiu de machado em punho, para os arredores da cidade. Onde encontrava árvore, capões, matos, atacava,
limpava, deixava os montes de lenha arrumadinhos para quem quisesse se servir. Os donos dos terrenos não se
importavam, estavam em via de vendê-los para fábricas ou imobiliárias e precisavam de tudo limpo mesmo.
E o homem do machado descobriu que podia ganhar a vida com o seu instrumento. Onde quer que
precisassem derrubar árvores, ele era chamado. Não parava. Contratou uma secretária para organizar uma
agenda. Depois, auxiliares. Montou uma companhia, construiu edifícios para guardar machados, abrigar seus
operários devastadores. Importou tratores e máquinas especializadas do estrangeiro. Mandou assistentes
fazerem cursos nos Estados Unidos e Europa. Eles voltaram peritos de primeira linha. E trabalhavam,
derrubavam. Foram do sul ao norte, não deixando nada em pé. Onde quer que houvesse uma folha verde, lá
estava uma tesoura, um machado, um aparelho eletrônico para arrasar. E enquanto ele ficava milionário, o país
se transformava num deserto, terra calcinada. E então, o governo, para remediar, mandou buscar em Israel
técnicos especializados em tornar férteis as terras do deserto. E os homens mandaram plantar árvores.
E enquanto as árvores eram plantadas, o homem do machado ensinava ao filho sua profissão.
(BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Cadeiras proibidas)
TEXTO 20
O PRIMEIRO BEIJO

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam
tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só
a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer. O ônibus da excursão subia lentamente a serra.
Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe
pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase
pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos
companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir,
gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente
engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme
maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo. A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio
dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente
juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes
mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus
olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o
chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu
ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O
primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou
todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma
mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos
lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado
dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido
vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo
estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia.
Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão
agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado,
sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto.
Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu
de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele ...
Ele se tornara homem.
(Clarice Lispector. In : Felicidade Clandestina)
TEXTO 21
ESQUISITICE

Adroaldo acorda num sobressalto. Onde está? Por que está todo mundo ali? Que foi que aconteceu? Sua mulher, Helena, não
lhe dá atenção. Está lendo o que parece ser um script. Adroaldo, ainda zonzo, examina o local em que estão. Parece
um estúdio. E sua família está toda lá. Os filhos, os netos, a filha adolescente Lilica e o namorado Beto. Edineide,a
empregada, e a família da Edineide.
*
Algumas pessoas ele não reconhece. Outras frequentam sua casa. Meu Deus, a Marialva também está ali!
Sua amante, Marialva, e o filho adolescente dos dois, o Maurinho, de cuja existência a Helena nem desconfia! Mas
a Helena e a Marialva estão lado a lado. Desde quando se conhecem? O que está acontecendo? Com o choque de ver
a mulher e a amante juntas, Adroaldo termina de acordar.
*
Helena e Marialva e os outros param de falar quando entra no local um homem que Adroaldo nunca viu
antes. Um homem de cara amarrada. Não dá nem bom-dia. Tem um papel na mão, que abana sobre a cabeça para
todos verem.
– Os últimos números – diz o homem.
–Caímos mais dois pontos.
Há um murmúrio de insatisfação na sala. O homem mostra outros papéis.
– Fizemos uma pesquisa para saber o que o público está pensando. Do que gosta e do que não gosta. O
resultado está aqui. Adroaldo cochicha no ouvido de Helena:
– O que é isso? Quem é esse cara?
Helena diz:
– Para, Veloso.
"Veloso?" Adroaldo não entende. Por que sua mulher o chamou de "Veloso"?
*
– Vai haver mudanças, gente – anuncia o homem.
– Radicais.
Para começar, o público não está gostando muito das cenas de sexo da Lilica com o Beto. Adroaldo quase
dá um pulo. Sexo? A Lilica com o Beto? Quando? Onde? O homem continua:
– Vamos dar uma reforçada no núcleo pobre. O público simpatizou com a Edineide. Zé, arranja uma
complicação da Edineide com a Helena. Uma acusação falsa, qualquer coisa assim, pra Edineide ser demitida e
depois se vingar.
– Certo – diz o Zé, um dos presentes que Adroaldo nunca viu antes.
– Ela pode se juntar com a Marialva para tramar contra a Helena. As duas podem descobrir que a Helena
tem uma ligação homossexual com a Gildinha.
*
Adroaldo não se contém. A Lilica fazendo sexo com o Beto debaixo do seu nariz. A empregada de tantos
anos sendo despedida sem que ele seja consultado. E aquela sugestão de que sua mulher é lésbica! Adroaldo explode:
– Espera aí um pouquinho! Mas o homem o detém com um gesto.
– Peralá, Veloso. Eu ainda não terminei. Depois vocês podem se manifestar. Zé, não acho uma boa a Helena
com a Gildinha. Já temos o Maurinho gay, o público pode reagir a muita homossexualidade.
Adroaldo atônito. Por que "Veloso"? Que história é essa? E o Maurinho, gay?! O homem agora está
apontando para Adroaldo.
– Veloso, o seu personagem Adroaldo não está funcionando. O público não está gostando. Acho que vamos
ter que eliminá-lo.
– O quê?
– E tem mais. Você anda atrapalhando as gravações. Com esses seus lapsos de memória, essa sua
esquisitice... Zé, bola uma boa morte para o Adroaldo.
– Ataque cardíaco, nos braços da Marialva – diz Zé, em meio a gargalhadas, Adroaldo não ri. Adroaldo está
de olhos arregalados. O que está acontecendo? Que história é essa? Que história é essa?!
(Luis Fernando Verissimo. Zero Hora).
TEXTO 22
TEATRINHO

Mauro e Mel eram casados. Faziam teatro e, para ajudar no orçamento, se apresentavam em festas de crianças.
Levavam um pequeno palco e um elenco de fantoches para manipular: Chapeuzinho Vermelho, Lobo Mau etc. Não
ganhavam muito com isso, mas sempre ajudava. Convites para apresentações não faltavam. O teatrinho para crianças
estava indo bem. O que não estava indo muito bem era o casamento dos dois.
Aquele dia já tinha começado mal. O Mauro amargurado, se queixando da vida e da falta de oportunidade para
fazer teatro de verdade. Afinal, era um ator formado, não podia passar o resto da vida fazendo teatro de fantoches. A
Mel, cansada das lamúrias do Mauro, rebatendo que os fantoches pelo menos pagavam as contas, e não deixavam de ser
teatro. Os dois tinham brigado desde o café da manhã, e continuaram brigando no carro, a caminho da festa de aniversário
onde se apresentariam àquela tarde. E só não continuaram brigando enquanto montavam o palco porque a plateia já
começava a ocupar seus lugares, as crianças maiores no chão, as menores no colo das mães, num clima de grande
expectativa.
***
Chapeuzinho Vermelho apresentava o espetáculo.
– Alô, amiguinhos! Meu nome é Chapeuzinho Vermelho e…
A cabeça do Lobo Mau apareceu num canto do palco.
– Chapeuzinho… Isso lá é nome?
CHAPEUZINHO (depois de um segundo de hesitação) – Ih, o Lobo Mau já quer entrar na história. Ainda não é
a sua vez, Lobo Mau. Vá embora e espere a sua deixa.
LOBO MAU – Lobo Mau… Isso não é um nome, é uma sentença. Eu não sou intrinsecamente mau. Posso
decidir ser mau, ou não. A existência precede a essência, segundo Sartre. É a velha questão, to be or not to be.
CHAPEUZINHO – Amiguinhos, vamos dar uma vaia no Lobo Mau para ele ir embora e esperar sua vez? Vamos
lá, todo o mundo… Buuuuuu!
As crianças vaiaram o Lobo Mau, que desapareceu.
***
CHAPEUZINHO – Meu nome é Chapeuzinho Vermelho, e eu estou levando esses doces para a vovozinha. Será
que essa floresta é perigosa? Será que eu vou encontrar um…
Apareceu o Lobo Mau.
CHAPEUZINHO – Lobo Mau!
LOBO MAU – Em pessoa. Mas você, também, está pedindo, hein beibi? Sozinha desse jeito no meio de uma
floresta escura… Você não lê jornal, não?
CHAPEUZINHO – Eu…eu… Eu estou levando esses doces para a vovozinha.
LOBO MAU – E como é que essa vovozinha mora no meio da floresta, em vez de um condomínio fechado? Me
dá esses doces.
CHAPEUZINHO – Não! Por que você quer os doces da vovozinha?!
LOBO MAU – Para a sobremesa, depois de comer você.
CHAPEUZINHO – Você esqueceu? Na história, você primeiro tem que ir até a casa da vovozinha, comer a
vovozinha, vestir a camisola dela e me esperar deitado na cama.
LOBO MAU – Esta é uma versão condensada, sem o travestismo. Prepare-se para morrer!
CHAPEUZINHO (correndo de cena) – Não! Vou chamar o caçador. Socorro!
***
Sozinho no palco, o Lobo Mau dirigiu-se à plateia.
LOBO MAU – Amiguinhos, desculpem-me. Vocês não têm nada com isso. É uma crise pessoal, entendem? Eu
não sou mau. Aliás, não sou nem lobo. Sou um ator. Antes disso, sou um ser humano. Perguntem à mamãe o que é isso.
É uma coisa complicada, é…
Entrou em cena o caçador, carregando uma espingarda, que apontou para o Lobo Mau.
CAÇADOR – Pare!
LOBO MAU – Você interrompeu meu solilóquio, pô.
CAÇADOR – Mãos ao alto!
LOBO MAU – Está bem, atire. Atire! Vamos acabar logo com isso. Aqui está o meu peito. Mire no coração,
que não tem mais serventia. Atire, Mel!
CAÇADOR (fazendo o som do disparo) – Pum!
O Lobo Mau caiu para a frente, quase despencando do palco. Silêncio na plateia. Depois começaram as vaias –
“Buuuuu” – não se sabe se para o desfecho abrupto da versão abreviada, para o fim do Lobo Mau ou para a condição
humana. E depois começou a chuva de brigadeiros contra o palco.
(Luis Fernando Verissimo. Zero Hora).
TEXTO 23
Eis a primavera

João saiu do hospital para morrer em casa – e gritou três meses antes de morrer. Para não gastar, a mulher nem uma
vez chamou o médico. Não lhe deu a injeção de morfina, a receita azul na gaveta. Ele sonhava com a primavera para sarar do
reumatismo, nos dedos amarelos contava os dias.
– Não fosse a umidade do ar ... – gemia para o irmão nas compridas horas da noite. Já não tinha posição na cama: as
costas uma ferida só. Paralisado da cintura para baixo, obrava-se sem querer. A filha tapava o nariz com dois dedos e fugia
para o quintal:
– Ai, que fedor ... Meu Deus, que nojo!
Com a desculpa que não podiam vê-lo sofrer, mulher e filha mal entravam no quarto. O irmão Pedro é que o assistia,
aliviando as dores com analgésico, aplicando a sonda, trocando o pijama e os lençóis. Afofava o travesseiro, suspendia o
corpinho tão leve, sentava-o na cama:
– Assim está melhor?
Chorando no sorriso, a voz trêmula como um ramo de onde o pássaro desferiu vôo:
– Agora a dor se mudou ...
Vigiava aflito a janela:
– Quantos dias faltam? Com o sol eu fico bom.
Pele e osso, pescocinho fino, olho queimando de febre lá no fundo. Na evocação do filho morto havia trinta anos:
– Muito engraçado, o camaradinha – e batia fracamente na testa com a mão fechada.
– Com um aninho fazia continência. Até hoje não me conformo.
A saudade do camaradinha acordava-lhe duas grandes lágrimas. No espelho da penteadeira surpreendia o vulto
esquivo da filha.
– Essa menina nunca me deu um copo d'água.
Quando o irmão se levantava:
– Fique mais um pouco.
Ali da porta sua querida Maria:
– Um egoísta. Não deixa os outros descansar.
Ao parente que sugeriu uma injeção para os gritos:
– Não sabe que tem aquela doença? Desenganado três vezes. Nada que fazer.
Na ausência do cunhado, esqueciam-no lá no quarto, mulher e filha muito distraídas. Horas depois, quando a dona abria a
porta, com o dedo no nariz:
– É que eu me apurei – ele se desculpava, envergonhado. – Doente não merece viver.
A filha, essa, de longe sempre se abanando:
– Ai, como fede!
Terceiro mês o irmão passou a dormir no quarto. Ao lavar-lhe a dentadura, boquinha murcha, o retrato da mãe defunta?
Nem podia sorver o café.
– Só de ruim é que não engole – resmungava a mulher.
Negou-lhe a morfina até o último dia: ele morre, a família fica. Tingiu de preto o vestido mais velho, o enterro seria
de terceira.
Ao pé da janela, uma corruíra trinava alegrinha na boca do dia e, na doçura do canto, ele cochilava meia hora bem
pequena. Batia a eterna continência, balbuciava no delírio:
– Com quem eu briguei?
– Me conte, meu velho.
– Com Deus – e agitou a mãozinha descarnada.
– Tanto não devia judiar de mim.
Fechando os olhos, sentiu a folha que bulia na laranjeira, o pé furtivo do cachorro na calçada, o pingo da torneira no
zinco da cozinha – e o alarido no peito de rua barulhenta às seis da tarde. Se a mulher costurava na sala, ele ouvia os furos da
agulha no pano.
– Muito acabadinho, o pobre? – lá fora uma vizinha indagava da outra.
Na última noite cochichou ao irmão:
– Depois que eu ... Não deixe que ela me beije!
Ainda uma vez a continência do camaradinha, olho branco em busca da luz perdida, e o irmão enxugava-lhe na testa
o suor da agonia.
Mais tarde a mulher abriu a janela para arejar o quarto.
– Eis o sol, meu velho – e o irmão bateu as pálpebras, ofuscado.
Era o primeiro dia de primavera.
(Dalton Trevisam. O Rei da Terra, Rio, Civilização Brasileira, 1972)
TEXTO 24
RAIMUNDINHA
Só tenho duas filhas, uma de catorze anos chamada Jacqueline e outra de treze de nome Gisele, porque uma das
patroas que tive era uma médica que trabalhava na prefeitura e ela me disse que ia fazer ligadura das minhas trompas mas que
ninguém podia saber porque era proibido fazer aquele tipo de operação num hospital público, o governo e os padres não
deixavam, se soubessem ela perdia o emprego. Então ela fez escondido fingindo que estava tratando uma infecção urinária.
O pai das meninas me deu um pontapé na bunda quando elas ainda eram pequenas, levou tudo com ele, até a televisão,
e eu fiquei cuidando delas sozinha. Tive outros homens, mas eles não puderam fazer filhos em mim graças à santa da minha
patroa, o nome dela era doutora Raquel.
Depois de algum tempo fiquei sem homem dentro de casa, eram todos pessoas muito ruins, teve até uns que batiam
em mim, um deles quebrou esse meu dente da frente com um soco. Então, eu me desiludi de homem e decidi viver sozinha.
Tenho um patrão viúvo legal, que me paga em dia e aumenta sempre o meu salário, e nem quer saber da casa, me dá
o dinheiro das compras e não confere, eu dou a nota do supermercado e ele nem olha. Também não se interessa por comida, o
que eu ponho na frente dele ele come, quase sempre lendo um livro.
Então Jacqueline ficou grávida. Ela sempre foi uma menina que dava muito trabalho, não gostava de estudar roubava
dinheiro da minha bolsa, mas eu perdoava, mãe existe para perdoar. O pai era um garoto um pouco mais velho do que ela.
Jacqueline disse que não queria tirar, que queria ter o filho e depois, se achasse chato, dava o bebê. O menino já fez quatro
anos e ela não deu ele pra ninguém porque quem sempre cuidou dele fui eu, deixava na creche na hora do meu trabalho, e
comprava tudo, fraldas, o leite da mamadeira, o talco para assadura do bumbum, remédios, tudo. Como o meu salário não
dava, eu apanhava dinheiro na carteira do meu patrão, duzentos, trezentos, ele era muito distraído e nem desconfiava. Enquanto
isso Jacqueline passava as noites em festas e eu disse a ela que se ela ficasse grávida de novo eu não ia cuidar do bebê, ia
expulsá-la de casa.
Então conheci o Jeferson. Ele era branco, usava cabelo comprido, tinha quarenta anos. Estava se separando da mulher
e perguntou se podia ir morar na minha casa. Esqueci de dizer que o meu patrão me deu uma casinha com dois quartos. Eu
disse ao Jeferson que sim, é bom ter um homem dentro de casa, e o Jeferson já tinha trabalhado de bombeiro eletricista e sabia
fazer essas coisas que nós mulheres não sabemos.
Jeferson estava desempregado, procurando trabalho, e assim, enquanto ele não conseguia um novo emprego, eu dava
a ele uns trocados para comprar cigarro, mas eu sabia que ele fingia que fumava três maços por dia e fumava apenas um e o
resto do dinheiro era para tomar uma cachacinha, só que eu fingia que não sabia. Ele era um homem forte, mas na cama era
meio frouxo. No início ele me comia nos sábados, depois nem isso. Depois de seis meses sem me comer eu falei com ele,
Jeferson, você não faz nada comigo tem seis meses, você tem outra mulher? Ele jurou por Deus que não tinha mulher nenhuma,
aquilo que estava acontecendo com ele era porque ele estava muito preocupado por não conseguir arranjar emprego, o que
deixava ele nervoso, e um homem nervoso não dá no couro. Eu disse, você passa o dia dormindo e vendo televisão, assim não
vai arranjar emprego nunca. Jeferson respondeu que eu estava sendo injusta com ele, que eu não sabia o quanto ele sofria, que
um homem com vergonha na cara odiava aquela situação, ser sustentado pela mulher. E fez uma cara de cachorro triste que
cortou o meu coração.
Todo dia, quando saía pela manhã para ir para o trabalho, de segunda a sexta — meu patrão me dava folga no sábado
e no domingo —, eu preparava tudo para o Jeferson, ele gostava de sanduíche de queijo e eu deixava os sanduíches prontos e
o café na garrafa térmica para ele e para Jacqueline, ela e o Jeferson gostam de acordar tarde. Então eu levava o menino para
a creche e a Gisele para o colégio e ia para o meu trabalho.
Acho que o meu patrão não dormia, pois a cama dele nunca estava desfeita e ele ficava lendo o dia inteiro ou então
sentado na frente do computador e eu tinha que insistir para ele almoçar, não era fácil. Acho que é por isso que ele era tão
magrelo, eu devo pesar o dobro dele, acho que era porque eu devorava biscoito o dia inteiro, e doce de leite, e chocolate, que
eu comprava fingindo que era para ele, mas que ele nunca comia. Minha irmã, Severina, disse que eu estava muito gorda e que
era por isso que o Jeferson não transava comigo.
No dia em que ela me disse isso pelo telefone eu saí do emprego e quando cheguei em casa o Jeferson estava vendo
televisão e eu desliguei a televisão e perguntei, Jeferson, você não transa comigo é porque estou muito gorda? Ele respondeu,
meu amorzinho, é aquele nervoso que eu falei, passo o dia procurando emprego e não arranjo nada, você não sabe como isso
me faz sofrer. Já estou procurando emprego há mais de um ano, é duro.
Fiquei com peninha dele e liguei de novo a televisão.
“O que vai ter hoje para o jantar?”, Jeferson perguntou.
Respondi que ia fazer costeleta de porco com batata frita, que ele tanto gostava. Você é uma mulher maravilhosa,
disse Jeferson acendendo um cigarro e olhando para a tela da televisão.
Modéstia à parte, eu faço uma costeleta de porco melhor do que qualquer restaurante. Jeferson come umas cinco, no
mínimo.
(Rubem Fonseca. Ela e outras mulheres)
TEXTO 25
COLA

A ideia de reunir a turma 25 anos depois da formatura parecera ótima, mas o César se arrependeu de ter aceito o convite
assim que viu quem sentara ao seu lado na churrascaria.
O Marçal. Logo o Marçal!
– E aí, velho?
– Tudo bem. E você?
– Quero saber tudo. Casado? Divorciado? Filhos? Netos?
– Casado. Dois filhos.
– Grande!
O Marçal o cutucara. Aquilo ele tinha esquecido. O Marçal cutucava.
O "grande" viera acompanhado de uma cutucada no braço. A cutucada doera.
– E você? – perguntou César, tentando se afastar do Marçal.
– Dois casamentos. O que é que eu estou dizendo? Três. Acabei de me divorciar da terceira. Nenhum filho.
– É mesmo?
– Você não pensa que eu esqueci, pensa?
– Do quê?
– Da cola que você não me deu.
– Cola? Eu?
– Você não lembra? Claro que lembra. A cola que eu pedi e você negou. Por princípio. Lembra?
Outra cutucada. Mais forte.
– Não me lembro de nada.
– Lembra, lembra. Você era o primeiro da turma. Não me deu cola por uma questão de princípios. E ainda me deu uma lição
sobre princípios. Por causa dos seus princípios, eu quase rodei no exame. Me formei ali, ali. Com as minhas notas baixas, sem qualquer
recomendação, não tinha nenhuma perspectiva depois da formatura. Fui trabalhar vendendo carros. E sabe o que eu sou hoje? Hein?
Hein?
Cutucada. Cutucada.
– O quê?
– Milionário! Ao contrário de você que é...
O que você é, mesmo?
– Advogado.
– Advogado, claro. Você se formou como primeiro da turma. Todas as portas se abriram para você. Aposto que é um
advogado corretíssimo. Tem uma vida corretíssima, uma mulher corretíssima, filhos corretíssimos. Tudo que merece um homem de
princípios. Grande!
– Pare de me cutucar.
– O quê?
– Não me cutuque!
– Salsichão?
O garçom colocara um espeto entre os dois. César fez um gesto para Marçal.
– Você primeiro.
– Não, não. Você. Quem tem princípios principia.
– Vamos esquecer essa história? Afinal, faz 25 anos.
Marçal ficou em silêncio, olhando para o seu prato vazio. Não aceitou salsichão. Nem coração de galinha. Quando veio a
picanha, virou-se para César e cutucou-o outra vez no braço. Desta vez, de leve. Pediu:
– Me fale da sua família. Da sua vida.
E confessou que quando vira o César na mesa pedira para sentar ao seu lado. Precisava saber tudo a seu respeito. Tudo. Numa
boa. Sem ressentimentos. Como tinham sido os 25 anos com princípios do César, em contraste com os seus 25 anos sem princípios,
em que fracassara em três casamentos, não tivera filhos, não fizera nada de útil, só enriquecera. O César se importava?
– Não – disse César.
– Só não me cutuque.

(Luis Fernando Verissimo)


TEXTO 26
UMA VELA PARA DARIO

Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo
até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na
pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se
ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode
pede aos outros que se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando
lhe tiram os sapatos, Dario ronqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.
Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam de
uma porta à outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada,
soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Mas não se vê guarda-chuva ou
cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina.
Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância.
Dario conduzido de volta e recostado à parede – não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do
quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o
rosto, sem que faça um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora , comendo e bebendo, gozam
as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados – com vários objetos – de seus bolsos e alinhados
sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra
cidade.
Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a
polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete
vezes.
O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo – os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a
aliança de ouro, que ele próprio – quando vivo – só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar
o rabecão.
A última boca repete – Ele morreu, ele morreu. E a gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas
para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não
consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se espalha, as
mesas do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver, Parece morto há
muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora
na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta
a cair.
(De Cemitério de Elefantes, Rio, Civilização Brasileira, 6. ed. , 1980)
TEXTO 27
A MOÇA TECELÃ

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora
a claridade da manhã desenhava o horizonte
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do
algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos
rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça
tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a
moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na
mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de
lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo
e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um
marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no
tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto
barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos,
quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando
em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a
sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha
descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
– Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que
escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que
fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve
caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia
e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto
da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as
estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas
de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus
tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para
não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado
para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois
desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para
o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve
tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as
pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os
fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
(Marina Colasanti. In: Um espinho de marfim)
TEXTO 28
O PSICOPATA AO VOLANTE

David Neves passava de carro às onze horas de certa noite de Sábado por uma rua de Botafogo, quando um guarda o fez
parar:
— Seus documentos, por favor.
Os documentos estavam em ordem, mas o carro não estava: tinha um dos faróis queimado.
— Vou Ter de multar– advertiu o guarda.
— Está bem– respondeu David, conformado.
— Está bem? O senhor acha que está bem?
O guarda resolveu fazer uma vistoria mais caprichada, e deu logo com várias outras irregularidades:
— Eu sabia! Limpador de para-brisa quebrado, folga na direção, freio desregulado. Deve haver mais coisa, mas para mim
já chega. Ou o senhor acha pouco?
— Não, para mim também já chega.
— Vou Ter de recolher o carro, não pode trafegar nessas condições.
— Está bem– concordou David.
— Não sei se o senhor me entendeu: eu disse que vou Ter de recolher o carro.
— Entendi sim: o senhor disse que vai Ter de recolher o carro. E eu disse que está bem.
— O senhor fica aí só dizendo está bem.
— Que é que o senhor queria que eu dissesse? Respeito sua autoridade.
— Pois então vamos.
— Está bem.
Ficaram parados, olhando um para o outro. O guarda, perplexo: será que ele não está entendendo? Qual é a sua, amizade?
E David, impassível: pode desistir, velhinho, que de mim tu não vê a cor do burro de um tostão. E ali ficariam o resto da noite a se
olhar, em silêncio, a autoridade e o cidadão flagrado em delito, se o guarda enfim não se decidisse:
— O senhor quer que eu mande vir o reboque ou prefere levar o carro para o depósito o senhor mesmo?
— O senhor é que manda.
— Se quiser, pode levar o carro o senhor mesmo.
Sem se abalar, David pôs o motor em movimento:
— Onde é o depósito?
O guarda contornou rapidamente o carro pela frente, indo sentar-se na boleia:
— Onde é o depósito…O senhor pensou que ia sozinho? Tinha graça!
Lá foram os dois por Botafogo afora, a caminho do depósito.
— O senhor não pode imaginar o aborrecimento que ainda vai Ter por causa disso — o guarda dizia.
— Pois é — David concordava:
— Eu imagino.
O guarda o olhava, cada vez mais intrigado:
— Já pensou na aporrinhação que vai Ter? A pé, logo numa noite de Sábado. Vai ver que tinha aí o seu programinha para
esta noite…E amanhã é Domingo, só vai poder pensar em liberar o carro a partir de Segunda-feira. Isto é, depois de pagar as multas
todas…
— É isso aí– e David o olhou, penalizado: — Estou pensando também no senhor, se aborrecendo por minha causa, perdendo
tempo comigo numa noite de Sábado, vai ver que até estava de folga hoje…
— Pois então? — reanimado, o guarda farejou um entendimento:
— Se o senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…O senhor sabe, com boa vontade, tudo se arranja.
— É isso aí, tudo se arranja. Onde fica mesmo o depósito?
O guarda não disse mais nada, a olhá-lo, fascinado. De repente ordenou, já à altura do Mourisco:
— Pare o carro! Eu salto aqui.
David parou o carro e o guarda saltou, batendo a porta, que por pouco não se despregou das dobradiças. Antes de se afastar,
porém, debruçou-se na janela e gritou:
— O senhor é um psicopata!
(Fernando Sabino)
TEXTO 29 - (Texto de Luis Fernando Verissimo)
BRINCADEIRA
Começou como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:
– Eu sei de tudo. Depois de um silêncio, o outro disse:
– Como é que você soube?
– Não interessa. Sei de tudo.
– Me faz um favor. Não espalha.
– Vou pensar.
– Por amor de Deus.
– Está bem. Mas olhe lá, hein?
Descobriu que tinha poder sobre as pessoas.
– Sei de tudo.
– Tudo o quê?
– Você sabe.
– Mas é impossível. Como é que você descobriu? A reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:
– Alguém mais sabe?
Outras se tornavam agressivas:
– Está bem, você sabe. E daí?
– Daí nada. Só queria que você soubesse que eu sei.
– Se você contar para alguém, eu…
– Depende de você.
– De mim, como?
– Se você andar na linha, eu não conto.
– Certo.
Uma vez, parecia ter encontrado um inocente.
– Eu sei de tudo.
– Tudo o quê?
– Você sabe.
– Não sei. O que é que você sabe?
– Não se faz de inocente.
– Mas eu realmente não sei.
– Vem com essa.
– Você não sabe de nada.
– Ah, quer dizer que existe alguma coisa pra saber, mas eu é que não sei o que é?
– Não existe nada.
– Olha que eu vou espalhar…
– Pode espalhar que é mentira.
– Como é que você sabe o que eu vou espalhar?
– Qualquer coisa que você espalhar será mentira.
– Está bem. Vou espalhar.
Mas dali a pouco veio um telefonema.
– Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre nada daquilo.
– Aquilo o quê?
– Você sabe.
Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximava dele e sussurrava:
– Você contou para alguém?
– Ainda não.
– Puxa. Obrigado.
Com o tempo, ganhou uma reputação. Era de confiança. Um dia, foi procurado por um amigo com uma oferta de emprego.
O salário era enorme.
– Por que eu? – quis saber.
– A posição é de muita responsabilidade – disse o amigo. – Recomendei você.
– Por quê?
– Pela sua descrição.
Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a boca para falar de ninguém. Além de bem
informado, um gentleman. Até que recebeu um telefonema. Uma voz misteriosa que disse:
– Sei de tudo.
– Co- como?
– Sei de tudo.
– Tudo o quê?
– Você sabe.
Resolveu desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu desaparecimento repentino. Investigara. O que
ele estaria tramando? Finalmente foi descoberto numa praia remota. Os vizinhos contam que a voz que uma noite vieram muitos
carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos. Os vizinhos contam que mais se ouvia era a dele,
gritando:
– Era brincadeira! Era brincadeira! Foi descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado. Mas as pessoas
que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo. Sabia demais.
TEXTO 30
ANIMAL

Ele contou na roda que tinha sido preso por questões políticas mas não tinha sido torturado. Pelo menos não fisicamente.
Ninguém lhe tocara um dedo. Mas o colocaram numa cela com um homem enorme, que tinha mais de peito do que ele de altura.
O nome do homem, e a razão para ele estar preso, nunca ficara sabendo. Só lhe disseram que o apelido do homem era Animal.
E que ele gostava de ouvir histórias.
Histórias? É. O Animal gostava de histórias. Ele deveria contar histórias ao Animal e só parar quando o Animal dissesse
"Pare". Se parasse antes, ó...E lhe mostraram o que o Animal faria com o seu crânio, apertando-o entre suas mãos. Se parasse
de contar histórias por mais de um minuto, seu crânio viraria um tomate entre as mãos gigantescas do Animal.
Mas que tipo de histórias deveria contar ao Animal? Se vire, disseram. E o trancaram na cela com o Animal. Ele ensaiou
um bom-dia. O Animal quieto. Ele disse seu nome, esticou a mão para apertar a mão do Animal. O Animal imóvel. Olhando
fixo para um ponto na sua testa. Talvez, pensou ele, calculando a pressão que precisaria para esmagar sua cabeça. Quando o
Animal deu um passo na sua direção, ele disse, rápido:
– Era uma vez...
O Animal recuou e sentou-se no seu catre para ouvir a história. Ele continuou, tentando desesperadamente improvisar
uma narrativa:
– ... uma princesa que morava num castelo. Um dia, um passarinho chegou na janela da princesa e...
Seria aquele o tipo de história de que o Animal gostava? A cara impassível do Animal não lhe dizia nada. Só o que
mudara era que ele agora olhava para a boca do outro, em vez de um ponto na sua testa. O narrador continuou improvisando.
Durante muitas horas, contou sua história, tentando adivinhar o que agradava e não agradava ao Animal. Mais romance ou mais
ação? Mais ou menos sangue? O Animal não fazia um som.
Entrou de tudo na história. Príncipe. Madrasta. Lobo. Sapo. Dragão. Anão. Vovozinha. Várias vezes o narrador sugeriu
que a história tinha terminado.
– E viveram felizes para sempre...
Mas o Animal não dizia nada. E ele, apavorado, emendava outra história.
– Enquanto isso, em outro castelo, longe dali...
Contou todas as histórias de fada que conhecia e inventou mais algumas. Quando não sabia o que mais inventar,
começou a contar filmes, romances, todos os enredos de que conseguia se lembrar. O dia raiou e o Animal continuava olhando
para a sua boca, sem dizer uma palavra. Ele espremia a própria cabeça, metaforicamente, para se lembrar de mais histórias. Já
esgotara todos os enredos possíveis. Recorrera à Bíblia, às Mil e uma Noites, a Dom Quixote, a Homero, a Janete Clair.
Começou a recontar histórias, variando alguns detalhes para o Animal não desconfiar. Na nova versão, a vovozinha
comia o lobo. Misturou histórias. Sinbad e Peter Pan contra invasores de Marte. Pinóquio, o Rei Arthur e o Capitão Nemo
juntando-se aos Três Mosqueteiros nas estepes numa emboscada para o mensageiro do Tzar... Os dias passavam e o Animal
não desgrudava os olhos da sua boca. E ele não tinha mais voz!
Decidiu contar histórias com mais conteúdo psicológico do que ação, para ver se o Animal se aborrecia e dizia "Pare".
Ou se dormia. Mas o Animal nem piscava. Finalmente, ele se atirou contra as grades e gritou – ou sussurrou, com a pouca voz
que lhe sobrava – que não aguentava mais, que o tirassem dali, que confessaria tudo. Confessaria o que quisessem!
E ele contou que mais tarde, depois que o soltaram, encontrara alguém que estivera preso na mesma época e este lhe
perguntara:
– Também botaram você na cela com o surdo-mudo?
(Luis Fernando Veríssimo, Zero Hora)

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