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Os franceses no Brasil de D. João

LILIA MORITZ SCHWARCZ

ano de 1808 marca o começo de um novo período para

a colônia luso-americana e para as relações que pas-

saria a travar com os países europeus. Pressionado pelas

duas maiores potências européias – Inglaterra e França –,


o príncipe regente, não sem grandes hesitações, opta pelo

lado inglês, que significava à primeira vista uma garantia

de chegada segura ao Brasil. Mas significou mais: uma

espécie de bloqueio aos franceses, sobretudo, nesses trópi-

cos lusitanos. Assim, se o primeiro decreto promulgado na


LILIA MORITZ
SCHWARCZ Bahia – em 28 de janeiro de 1808 – assegurava a “abertura
é professora do
dos portos às nações amigas”, e o de 25 de janeiro de 1809
Departamento de
Antropologia da dava aos estrangeiros o direito de receber sesmarias, nas
FFLCH-USP e autora de,
entre outros, O Espetáculo mesmas condições que os portugueses, já a França seria ex-
das Raças (Companhia
das Letras). cluída desses primeiros acordos e tratada, desde então, como
inimiga. Em terras brasileiras o regente declararia guerra à

França – em primeiro de maio de 1808 –, assim como seu

exército invadiria a Guiana Francesa, em 3 de dezembro.

Brasil e França não manteriam mais relações diplomáticas

ou comerciais até a assinatura da paz em 1814, na esteira das

demais determinações do Congresso de Viena.

O primeiro tratado – assinado em 30 de maio de 1814

– previa a reparação das Guianas, além de versar sobre demais

pendências deixadas de parte a parte. Além do mais, a 18 de

junho do mesmo ano, D. João mandava publicar que as relações

entre os países eram “amigáveis”, o que implicava franquear

o livre trânsito de franceses em Portugal, mas também no

Brasil. O ministro Antônio de Araújo de Azevedo, o conde

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da Barca, durante todo esse período, e misterioso, com suas gentes de costumes
mesmo antes dele, foi sem dúvida o polí- estranhos. Os franceses pareciam querer,
tico mais empenhado na manutenção das portanto, redescobrir um país conhecido há
boas relações com a França e, se havia sido muito tempo, e o desejo reprimido por tantos
colocado um pouco de escanteio, devido à anos era agora transformado em realidade.
“saída inglesa”, logo após a morte do conde Paradoxalmente, essa era a mais “exótica”
de Linhares, em 1812, e com o reatamento e a mais “civilizada” das colônias america-
entre os dois países, passou a atuar forte- nas: uma monarquia cercada de repúblicas
mente no sentido de obter um clima mais por todos os lados. A colônia portuguesa
favorável aos franceses, até então proibidos era, assim, um imenso desafio a resumir e
de entrar no território. Trabalhou para que reunir as riquezas e imaginários dispersos
novo decreto, datado de 18 de novembro, por toda a América.
abrisse finalmente os portos do Brasil aos Marcados por esse espírito ambivalente
navios comerciais franceses. Por fim, em entraram cientistas como Saint-Hilaire, artis-
dezembro do mesmo ano, o coronel Jean- tas acadêmicos daquela que ficou conhecida
Baptiste Maler foi nomeado cônsul-geral da como a “Missão Francesa” – que contava
França no Brasil, chegando ao Rio de Janeiro com Jean-Baptiste Debret, Nicolas Antoine
em abril de 1815. Data desse momento, Taunay, Grandjean de Montigny e tantos
pois, o começo das novas relações oficiais outros –, ou cronistas como Ferdinand Denis,
franco-brasileiras, assim como se aceleram que se deixariam contaminar, mas, também,
as trocas culturais, econômicas, científicas alterariam, e muito, a paisagem local.
e comerciais entre as duas nações.
Mas projeções existiam de parte a parte.
Se os portugueses entendiam a França como
o berço da “cultura” e da civilização, já os RUMO AO BRASIL
franceses, cuja curiosidade ficara por tanto
tempo represada, viam no Brasil a utopia Seja nas versões mais positivas, seja
da terra edênica, da terra sem males e do nas evidentemente negativas, esse Novo
eldorado possível. E assim a colônia seria Mundo sempre foi lugar da dubiedade:
vista a partir de um novo jogo de espelhos, da semelhança e da dessemelhança. Se-
em que se contrastava a vasta e imaginosa melhança na sua prosperidade, na sua
representação (feita de relatos de viajantes humanidade leal, na sua natureza infinda
de séculos passados), com a nova realidade e nos sonhos de igualdade que permitia
dos viajantes etnógrafos, que agora carre- adivinhar. Dessemelhança diante dessa terra
gavam seu depoimento testemunhal. E os de nomes, produtos e gentes diversas: por
interesses e disposições seriam muitos: se vezes aprazíveis, por vezes não. E é em
algumas missões buscavam as vantagens meio a esse mar de sensações que em 1816
econômicas até então bastante controladas dezessete navios partem do porto de Havre
pelos ingleses1, chegariam, também, outras, com destino ao Brasil. Gendrin, um jovem
que desbravavam o território, imbuídas comerciante especializado em tapetes que
por um “sentimento de natureza”. Afinal, embarcara no barco Antígone, avaliou que
1 Novas pesquisas vêm mostran- o Brasil era para esses novos viajantes a presença da corte do Brasil é que teria
do como os ingleses não tinham
o monopólio do comércio. Se os um país conhecido e desconhecido. Era, atraído “capitalistas e artesãos de arte, que
ingleses interessavam-se pelos por um lado, um “velho amigo”, uma vez a crise da indústria francesa deixara sem
tecidos, comerciantes africanos
mantinham o lucrativo mercado que, através dos relatos coletados durante emprego”. Completa o comerciante: “A
de seres humanos. Ver entre
outros: Luiz Felipe Alencastro, O três séculos – a partir das obras de Thévet, maioria tencionava exercer no Brasil a pro-
Trato dos Viventes, São Paulo, Lery, Goneville, Claude d’Abeville, Du- fissão de joalheiro, fabricante de armas ou
Companhia das Letras, 2002.
guay Trouin, Bouganville e tantos outros de selas; alguns se destinavam à profissão
2 In Jeanine Potelet, Le Brésil vu
par les Voyageurs et les Marins –, o Brasil surgia como o local da grande de alfaiate; outros enfim, que não tinham
Français, 1816-1840, Paris, flora e da fauna diversificada. No entanto, aprendido profissão alguma, contavam com
Éditions L’Harmattan, 1993,
p. 25. a colônia parecia, também, um continente a sorte para fazer fortuna”2. “Fazer fortuna”

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– e “a América” – era a palavra de ordem, Na colônia portuguesa também faria
sobretudo diante de uma França devastada novos amigos franceses, como o escritor
pela guerra e sem grandes perspectivas. Para Tollenare, a quem conheceu na Bahia.
antigos bonapartistas, perseguidos a partir Denis escreveria um livro sobre o país,
de então, a saída se apresentava como uma junto com Hippolyte, um dos cinco filhos
possibilidade real. Para os mais aventurei- do pintor Nicolas-Antoine Taunay, Resume
ros, essa “terra sem males” era promessa de l’Histoire du Brésil, publicado em 1825.
de boa fortuna. Por outro lado, por mais Em seu prefácio comentaria: “Eu conheci
estranho que possa parecer, a presença de esse país numa época em que ele ainda
uma monarquia parecia significar a garantia andava longe de propiciar esperanças tão
de um governo sem maiores conturbações. brilhantes […]. Pela sua fertilidade e pelas
Nada mais paradoxal para esses filhos da suas riquezas naturais, o Brasil pode ocupar
Revolução e da República, mas que ainda o primeiro lugar na América Meridional
viam a realeza como símbolo de estabilida- […]. Esse país que parece chamado para
de. O próprio Gendrin vinha começar um tão altos destinos”4. Como se pode notar,
negócio com seu patrão no Rio de Janeiro as expectativas eram grandes e o Brasil re-
e tinha a intenção de permanecer na corte presentava uma jovem, promissora e pouco
até 1821, quando resolve morar no Chile, explorada nação. Na abertura do livro de
e retorna à França em 1823. Os caminhos Denis consta a referência a outra obra dele,
eram incertos e as oportunidades também, Cenas da Natureza sobre os Trópicos e Sua
e era melhor agarrá-las quando e onde se Influência na Poesia, cuja epígrafe é de
apresentassem. E, dentre aqueles que chega- Humboldt e assim diz: “Nós não duvida-
vam ao Brasil, havia de tudo. Profissionais, mos que o clima, a configuração do solo, a
curiosos, cientistas, literatos, religiosos, aparência dos vegetais, o aspecto de uma
comerciantes, jovens e velhos. natureza risonha ou selvagem influenciem
Entre os jovens estava, por exemplo, no progresso das artes e o estilo que distin-
Ferdinand Denis, que deixou Havre em 24 gue as suas produções”. Eram os trópicos a
de agosto de 1816. Tinha 18 anos e queria penetrar a imaginação de nossos viajantes
formar um patrimônio para sua irmã: “Eu franceses, que ficavam ou voltavam conta-
vou arrancar da terra do Brasil um dote minados pelos ares do Brasil5.
para a gentil Cisca, e um bem-estar para Mas junto com os comerciantes, artesãos
todos vocês”3. Mais uma vez, no imaginário e jovens de espírito aventureiro chegou ao
produzido ainda no Velho Mundo, a colô- Brasil, também, um bom número de bona-
nia intocada dos portugueses surgia como partistas, constrangidos a emigrar por conta
caminho certeiro para a formação de bom das proscrições estabelecidas entre julho de
pecúlio. A família de Denis fazia parte da 1815 e janeiro de 1816. Tollenare fez alusões
burguesia liberal francesa, mas perdera muito a esses imigrantes, que agora preferiam
da sua estabilidade financeira por causa da utilizar o nome genérico de “jacobinos”6.
situação política local. Seu pai e seu irmão Essa era a época do “Terror Branco” e anti-
haviam sido destituídos de seus postos após gos simpatizantes de Napoleão passavam a
a Restauração, fato que motivou Ferdinand esconder antigas paixões, que muitas vezes
a partir para o Brasil: passaria os primeiros haviam custado a perda do emprego, da
seis meses no Rio de Janeiro e os dois anos situação social e da fortuna. E é por isso
3 Ferdinand Denis, “Lettre de
seguintes na Bahia. Pensava seguir a carreira que a viagem romântica era, nesse caso, Bahia, 9 juin 1817”, in Potelet,
diplomática, mas, já no país, começou a ter remédio, mas também veneno. Remédio, op. cit., p. 25.

outros planos que incluíram a agricultura e pois redimia, como dizia Chateaubriand, a 4 Idem, Résumé de l’Histoire du
Brésil, Paris, Lecointe et Durey
depois a indústria. Denis retornaria à França nostalgia de época; veneno na medida em Libraires, 1825.
no final de 1819; voltava ao Velho Mundo que levava a alterações radicais. 5 Idem, Scènes de la Nature sous
levando uma visão “maravilhada” desse Bra- E no meio desse grupo encontrava-se les Tropique et de Leur Influence
Sur la Poésie, Paris, Imprimerie
sil: uma espécie de revelação da juventude, uma colônia de artistas, contaminada por de Lachevardiere Fils, s.d.

uma grande paixão da vida toda. esses depoimentos, tão reais quanto imagi- 6 Ver Potelet, op. cit., p. 29.

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nários. Na França consumia-se largamente novos livros se apresentam como “novidade
esse tipo de literatura de viagem, e como recente”, mas não passam, na maioria das
boa parte desses artistas provinha de am- vezes, de coleções de generalidades, espé-
bientes letrados devem ter se deparado ou cie de anedotas acumuladas e retiradas dos
com relatos de primeira mão, ou ao menos diferentes relatos.
com compêndios como os de Prévost e Destaca-se nesse sentido a obra de Beau-
Beauchamp, que cantavam louvores a essa champ, um modelo de lirismo panegírico:
nova paisagem. Um reino promissor é o que “Esse possante império tão magnífico, vai
surgia dessas páginas; uma terra em que tudo logo se equilibrar com a força crescente
era possível, uma nova vida até. dos Estados Unidos”9. Nada mais adequado
O viajante Jacques Arago assim definiu para viajantes que se preparavam para cru-
o lugar: “Aqui está o Brasil, terra talvez das zar o Oceano e sonhavam com maravilhas
mais fecundas da Terra; nós diríamos uma sem-fim. Beauchamp, um historiador de
natureza à parte, uma natureza privilegiada. divulgação, escreveu uma coleção sobre
Para se enriquecer, a cobiça precisa apenas a história do Brasil em 12 pequenos volu-
cavocar o solo, para viver o homem não mes. Publicados em 1815, exatamente no
precisa mais do que respirar […]”7. As momento da abertura de relações, os títulos
duas primeiras páginas de Souvenirs d’un representaram a primeira obra geral sobre
Aveugle de Jacques Arago mereceriam ser o país em língua francesa. Beauchamp
citadas na íntegra tal o caráter sintético enaltece a oportunidade da chegada do
da narrativa. Lá estão os lugares-comuns, príncipe regente ao Rio de Janeiro, saúda
as mesmas identificações, os empregos os melhoramentos realizados e termina
laudatórios dos termos sempre evocados exaltando:
quando se falava do Brasil. Suas riquezas
não teriam paralelo, sua natureza seria in- “A transmigração da potência portuguesa
finda, seu clima, o mais agradável, seu mar, dá ao Império Braziliense as mais brilhan-
delicioso. Mesmo o Oriente fabuloso, que tes esperanças; este Império parece ser
durante tanto tempo fez a Europa sonhar, chamado para gozar agora dos mais altos
parecia não ter comparação com essa Amé- destinos. Quem poderá calcular de antemão
rica redescoberta pelos franceses: “Aqui as onde parará a energia de uma nação, por
montanhas abrigam pedras preciosas, os assim dizer ressuscitada? […] Este Império,
riachos pepitas de ouro e diamantes tão belos tão poderoso como magnífico, balanceará
como aqueles de Golconda”8. Comparado dentro em pouco o poder desmedido dos
às ruínas misteriosas e imensas de Golcon- Estados Unidos e terá por si a vantagem
da, na Índia, o Brasil parecia ser o Oriente de um clima aprazível, de um terreno fértil
das Índias Ocidentais. Havia uma evidente em produções úteis e preciosas, e de uma
associação de idéias e a transferência era posição geográfica, dominando o caminho
das mais imediatas: duas maravilhas, dois das duas Índias e de todos os mares do
exotismos – o oriental e o americano – se Globo formando como o nó das comuni-
confundiam. Mas a persistência do mara- cações comerciais de todas as partes do
vilhoso brasileiro estava muito conectada mundo civilizado. Quanto é mais forte e
7 Jacques Arago, Promenade
Autour du Monde, Pendant les
à ignorância da realidade física, econômica inexpugnável este Império do Hemisfério
Années 1817, 1819 e 1820, e humana do país. Diferente das colônias Austral! Quanto é nobre, e independente,
Paris, Leblanc, 1822, T1, p.
77. espanholas, das quais já havia algum co- o seu destino!”10.
8 Ver Potelet, op. cit., p. 18. nhecimento científico acumulado, o Brasil
9 Citado por Potelet, op. cit., p. permanecia como uma lacuna e chamava A vinda da família real é compreendida,
19. pela aventura, pela curiosidade científica e pois, como uma medida quase “natural”;
10 Alphonse de Beauchamp, pelo desejo de fazer fortuna. As primeiras assim como natural parece ser a história
História do Brazil desde Seu
Descobrimento em 1500 até obras que aparecem a partir de 1815 repre- para Beauchamp. O fato é que o Brasil
1810, Lisboa, Officina de J. F. sentam, pois, uma tentativa de animar todo ganhava, na França, uma história com co-
M. de Campos, 1817, tomo
6, pp. 278-9. tipo de comércio entre os dois países. Os meço, meio e fim, e nada mais prático para

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Mas talvez o autor mais importante para
a vinda de tantos franceses e, sobretudo, da
colônia de artistas chefiados pelo poderoso
secretário da Classe de Belas-Artes do Ins-
tituto de França, Joaquim Lebreton, tenha
sido não um francês, mas o viajante alemão
Alexandre von Humboldt, que percorreu
toda a América espanhola e, em 1811, teve
seu livro Essai Politique sur le Royaume
de La Nouvelle-Espagne traduzido para o
francês. Humboldt era membro do Institut
de France e colega fraterno de Lebreton.
Sabia, pois, que o amigo andava com
problemas políticos desde que se negara a
devolver as peças artísticas conquistadas
na época do Império de Napoleão11. A obra
começava com novo prefácio, em que o
cientista viajante declarava ser a América
a mais “bela porção do globo”12. O livro
descreve a localização dos vários países do
continente, mas é a situação do México que
chama a atenção de Humboldt. Segundo
nossos intrépidos viajantes que, na altura ele, na cidade do México se observaria um
da publicação do livro de Beauchamp, grande movimento intelectual e a presença
tencionavam imigrar. Em um dos volumes de uma “juventude com rara facilidade para
finais, depois de ter narrado a chegada da aprender os princípios da ciência”. Exulta,
família real, Beauchamp interrompe sua ainda, ao confirmar que “nenhuma cidade
monótona seqüência de fatos, tratados do Novo Continente, sem a exceção dos
e batalhas para fazer elogios rasgados à Estados Unidos, ofereceria estabelecimen-
beleza natural e humana do Brasil, assim tos científicos tão grandes e sólidos como a
como apostar num futuro promissor: um capital do México” e menciona, por fim, a
paraíso terrestre, governado por um monar- Academia de Pintura e Escultura. E é nesse
ca parente dos Bourbons, que “finalmente ponto que a narrativa de Humboldt deve ter
haviam voltado ao poder na França”. Como interessado aos pintores e viajantes. A des-
se vê, a monarquia andava novamente em crição de Humboldt vai num crescente:
alta, e os Braganças eram entendidos como
reis irmanados aos soberanos franceses. “Essa academia leva o título de Academia de
Famílias e parentelas compunham laços de las Nobles Artes de México […]. O governo
sangue e de “civilidade”, e a corte tropical designou um lugar espaçoso, no qual se en-
parecia, agora, um porto seguro. Beauchamp contra uma coleção de gessos, os mais belos
resumia, sem saber, os sonhos de nossos e os mais completos que se pode encontrar
artistas, artesãos, viajantes, cientistas ou em qualquer parte da Alemanha […]. É no
comerciantes, que pretendiam ajudar a edifício da Academia […] que se reúnem as
construir este país, introduzindo as luzes, esculturas mexicanas; as estátuas cheias de
11 Para uma visão mais ampla
o progresso, “a cultura” e (por que não) as hieróglifos e que oferecem paralelos com do incidente ver: Lilia Moritz
belas-artes no Brasil. Escravos quase não o estilo egípcio ou hindu. É curioso visitar Schwarcz, O Sol do Brasil, São
Paulo, Companhia das Letras,
existiam nesses relatos, assim como os monumentos da primeira cultura de nossa 2008.
nativos pareciam todos “domesticados”. espécie, as obras de um povo semi-bárbaro 12 Alexandre von Humboldt, Essai
Também sumiram os insetos, as serpentes e que habita os Andes mexicanos, ao lado das Politique sur le Royaume de La
Nouvelle-Espagne, Paris, Chez
as bestas dos primeiros relatos; em seu lugar belas formas que foram nascidas ao céu da F. Schoell, 1811, pp. 1-2.
reinava a natureza edênica do Brasil. Grécia e da Itália”13. 13 Idem, ibidem, pp. 118-9.

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Humboldt demonstra compactuar com tentarão deslocar experiências e rearranjá-las
valores dos naturalistas da época, que re- dentro de seus esquemas interpretativos e das
conhecem a importância de outras culturas, convenções que possuíam. Por essas e por
mas sempre as definem como “bárbaras” ou outras é que o Brasil transformava-se num
inferiores às suas. No entanto, emociona-se grande jogo de espelhos: um país imaginado,
com o paralelo entre elas e as “verdadei- sonhado, desejado e pensado por uma série
ras civilizações”: as gregas ou romanas. de homens que usaram suas lentes corretoras
O autor continua definindo os custos da para descrever essa realidade que sempre foi,
Academia mexicana e mostrando como o por suposto e de partida, maravilhosa. Do
governo, mas também os negociantes da outro lado do espelho, estava a escravidão,
capital arcam com as despesas. Segundo que se espalhava por todo o território, e a
Humboldt, seria grande a influência que realidade dessa corte estacionada em seu
a instituição deveria exercer “no gosto da paraíso tropical. Muitas convenções levavam
nação”. Quase emocionado, descreve uma a uma difícil tradução.
reunião que presenciou: “Nessas reuniões
[…], as cores, as raças de homens se con-
fundem […]. É consolador observar que,
sob todas essas zonas, a cultura das ciências A COLÔNIA LEBRETON:
e das artes estabelece uma certa igualdade
entre os homens, fazendo-os esquecer suas A AMÉRICA COMO UMA NOVA
pequenas paixões em nome da felicidade
social”14. Humboldt, como bom humanista ROMA
e defensor da igualdade, ficara encantado
com o que vira: na Academia mexicana teria Só em 1815 que a colônia seria eleva-
encontrado um recinto onde conviveriam da à condição de Reino Unido, num claro
várias civilizações e onde “a ciência reinaria sinal de que o regente, a despeito das vi-
acima das demais divisões humanas”. radas na política internacional e da queda
A obra de Humboldt inflamou ainda mais de Napoleão, não pretendia retornar para
a imaginação dos franceses, assim como a metrópole. Além do mais, uma série de
seria apreciada por muitos daqueles que melhorias havia sido introduzida no Rio de
se dirigiam ao Brasil. Maria Graham, por Janeiro, assim como toda a pesada estrutura
exemplo, que por aqui esteve entre 1821 e administrativa lusitana fora deslocada para
1823, teria afirmado que a fim de entender o Brasil, de maneira que o local agora, de
esse país pouco conhecido teria lido Hum- fato, parecia como a nova sede do império17.
boldt e seus relatos sobre a América do Sul, Por isso mesmo, seria até “natural” prever
assim como os escritos de Robert Southey, a vinda de especialistas, contratados para
History of Brazil15. representar essa exótica corte tropical. No
A América espanhola já era conhecida, entanto, é hora de olhar essa história por
14 Idem, ibidem, p. 120. mas a portuguesa continuava, na concep- outro lado e estranhar.
15 Ver Maria Graham, Journal of
ção da maioria, praticamente “virgem” e A corte tinha lá seus interesses na che-
a Voyage to Brazil, London, carregava potencial semelhante: grandes gada de um grupo de artistas acadêmicos,
Printed for Longman, Hurst,
Ress, Orme, Brown, and Green, civilizações, uma bela natureza, a convi- que poderia reformular e elevar sua repre-
and J. Murray, Albermarle-street, vência saudável entre os grupos sociais, e sentação oficial, sobretudo nesse momento
1824; e Elizabeth Mavor (ed.),
The Captain’s Wife, London, (assim pensavam) comerciantes abonados. delicado em que a realeza se encontrava.
Weidenfeld and Nicolson,
1993. De toda maneira, o relato dos viajantes seria Diante do Velho Mundo, e pensando nas de-
16 Franz Bôas, Antropologia revisto não mais como miragem: agora, esse mais monarquias que também começavam
Cultural, Rio de Janeiro, Zahar, imenso desconhecido chamado Brasil estava a levantar-se após a queda de Napoleão, era
2004.
disposto bem à frente dos olhos. Mas nem preciso divulgar imagens que destacassem
17 Sugerimos a leitura, entre outros,
de: Lilia Moritz Schwarcz, A todos vêem com olhos livres, e como disse a singularidade dessa realeza lusitana, que
Longa Viagem da Biblioteca dos o antropólogo Franz Bôas: “o olho que vê geria seus negócios aquartelada em sua
Reis, São Paulo, Companhia
das Letras, 2002. é órgão da tradição”16. Os artistas franceses longínqua colônia tropical. Por outro lado,

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o Império português era imenso e, apesar E assim, juntando seis com meia dúzia,
de a essas alturas o eixo econômico con- conta a história que, em 1815, D. Pedro José
centrar-se no Atlântico Sul, possessões na Joaquim Vito de Menezes Coutinho, o mar-
África ou mesmo na Ásia andavam carentes quês de Marialva, embaixador extraordiná-
não só de notícias, mas de imagens dessa rio de Portugal na França e estribeiro-mor do
nova administração colonial. Além do mais, Reino – uma espécie de diplomata português
também em Portugal contestava-se cada especializado nas questões internacionais
vez mais a atitude do príncipe, que, apesar –, contando com seu “prestígio e talento”,
dos ânimos serenados após os Tratados teria se encarregado de contratar, por ordem
de Paz de 1815, não dava sinais de querer expressa de seu governo, diversos artistas
deixar sua vida na América. Por fim, nessa reconhecidos em seu meio que, em conse-
sociedade majoritariamente iletrada, uma qüência da queda do Império de Napoleão
iconografia oficial bem que ajudaria na preocupados com as represálias, andavam
conformação de uma simbologia pátria. desejosos de emigrar.
Motivos aparentes não faltavam e assim Mas essa é a versão oficial da “missão”,
amadureceria na historiografia a idéia da que narra tudo reservando para a corte a
formação de uma verdadeira “missão” que proeminência e o controle sobre os atos. O
traria nova representação para uma corte suposto é que essa teria sido uma intenção
imigrada, ainda temerosa e bastante isolada. exclusivamente portuguesa – mais particu-
Segundo essa versão, os artistas contratados larmente do afrancesado conde da Barca –,
tratariam de mostrar como aí estava uma que “convidara” figuras proeminentes do
realeza tão tradicional como as demais e cenário cultural francês a fim de criar uma
cujo passado engrandecido por alegorias da escola profissional para a formação não só de
Antigüidade seria devidamente enaltecido artistas, como de trabalhadores industriais,
e se espelharia no presente. que possibilitassem transformar o Brasil
Para tanto, seria no mínimo adequado num centro independente e autônomo. Mas
ter à disposição artistas acostumados a lidar é de estranhar o motivo de a corte selecionar
com as necessidades do Estado. E justamen- justamente artistas franceses e, ainda mais,
te um grupo de pintores e escultores neoclás- diretamente ligados a Napoleão e a David
sicos franceses – nesse momento isolados – o primo de Debret –, mais conhecido a
politicamente – viria bem a calhar. É certo essas alturas como “o regicida de Luis XVI”.
que esses estavam habituados a consagrar Além do mais, havia no mercado pintores
a glória do antigo imperador Napoleão. No italianos, paisagistas holandeses e famosos
entanto, estavam acostumados, também, retratistas ingleses e até mesmo alguns ar-
com o poder e suas guinadas e bem que tistas portugueses igualmente à disposição,
seriam úteis na tarefa de engrandecimento que, com certeza, trariam menos embaraços
dessa corte. Aliás, essa era uma prática políticos do que nossos artistas franceses.
corrente durante o Antigo Regime: os reis Por outro lado, Marialva mal teve tempo
costumavam contratar “artistas mercená- de tomar conhecimento das tratativas com
rios” habituados à glorificação do poder. E os pintores franceses, uma vez que deixou
nesse caso não seria diferente: assim como seu cargo na França em 1815, sendo subs-
haviam dado um caráter sacro ao Império tituído por Francisco José Maria de Brito, o
de Napoleão, cuidado dos monumentos, “Chevalier de Brito” (conforme costumava
das festas, das moedas, e produzido imen- assinar), como encarregado dos negócios
sas telas, o mesmo seria possível realizar de Paris. Por fim, o conde da Barca, até
nessa nova capital provisória do Império bem perto da chegada dos artistas, estava
português. Por outro lado, nada melhor do pouco inteirado de toda a questão, já que
que aproveitar o “espólio do império na- a vinda dos franceses não fazia parte das
poleônico”, alguns pintores que cumpriam determinações da corte no Brasil.
também o papel de agentes de propaganda Partiu dos artistas, pois, toda a iniciativa
do antigo Estado francês. e a realização do projeto, e o governo por-

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tuguês só apoiou o grupo quando o mesmo absolutamente central e um certo projeto de
chegou ao Brasil. Quem, de fato, acabaria emancipação é anunciado muito antes de
por garantir a viagem dos artistas, pagando sua efetiva realização ou intenção. Que D.
pessoalmente pelos gastos de alguns deles, João e seu governo lucrariam com a estada
seria o ministro português José Maria de prolongada dos franceses não se discute. O
Brito, em Paris, que é quem troca cartas que está em questão é a premeditação do
com Lebreton a respeito da possível vinda projeto e a falta de atenção aos interesses e
de profissionais neoclássicos. Nesse caso, e projeções dos próprios franceses.
visto sob esse ângulo, a iniciativa teria sido Em 1915, Araújo Viana profere e publica
toda de Joaquim Lebreton – o secretário duas conferências no Instituto Histórico e
perpétuo do Instituto de França – e não do Geográfico Brasileiro, intituladas “Das Ar-
Estado português. tes Plásticas no Brasil em Geral e na Cidade
Essa anedota histórica muita polêmica do Rio de Janeiro em Particular”. Vale a
iria gerar. Uma das primeiras fontes está pena anotar que, na primeira conferência, o
nos escritos do próprio Jean-Baptiste De- autor refere-se aos pintores como “ilustres
bret, que, no terceiro volume de sua obra artistas franceses”. No entanto, nas demais
Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, menciona a expressão “missão francesa”;
comenta o caso. O primo de David, que foi primeiro em letras minúsculas e depois mai-
o único artista a elaborar um livro sobre sua úsculas22. O fato é que a “colônia francesa”
experiência no Brasil, capricha na idéia de ou a “colônia Lebreton” ganha – e mantém
como foram “bondosamente acolhidos”, e – o nome de “Missão”, e em maiúscula,
na certeza de que o projeto era do governo poucos anos antes, com a publicação do
português e, nomeadamente, do conde da extenso estudo de Afonso d’Escragnolle
Barca. Melhor ser convidado – e por um Taunay – “A Missão Artística de 1816” –,
príncipe – do que passar para a história na consagrada Revista do Instituto Histó-
como aquele que “se convidou”. rico e Geográfico Brasileiro de 1912. Tal
Araújo Porto-Alegre, o mais conhecido interpretação receberia, então, estatuto de
dos discípulos de Debret – professor da Aca- verdade, sobretudo com a publicação do
demia a partir de 1837 –, também sustentou mesmo ensaio em livro, no ano de 1956.
a tese de que diante da queda de Napoleão, Descendente direto de Nicolas-Antoine
do exílio de David e da reação dos Bourbons Taunay, Afonso introduz a hipótese princi-
“ficaram muitos artistas desgostosos em pal de que, dentre as medidas de D. João,
Paris, os quais foram chamados ao Brasil e influenciado por seu ministro D. Antonio
18 Araújo Porto-Alegre, Belas-artes, para formarem uma Academia”18. Na revista de Araújo, estava a criação de uma escola
no 47 e 48, Rio de Janeiro, s.e.,
p. 193.
Guanabara, Porto-Alegre referia-se àquela real “para o bem do Brasil”. Escragnolle,
“formosa colônia artística”, expressão que em nome de reabilitar a imagem de D. João,
19 Idem, “Algumas Idéias sobre
as Belas-Artes e a Indústria no repete com algumas variações em outros introduz a idéia da “Missão”. Segundo o his-
Brasil”, in Guanabara, Rio de
Janeiro, 1851, s.e., p. 142. textos. Mas o grupo era então definido toriador, “a colônia americana vivia aban-
20 Gonzaga Duque Estrada, A Arte como uma “colônia”, não como “missão”19. donada, esquecida e ignorada pelo mundo
Brasileira, Campinas, Mercado Gonzaga Duque, em A Arte Brasileira, de culto” e só contava com pintores e escultores
das Letras, 1995
1888, acompanha as teses anteriores e usa “medíocres”. Também a iconografia por-
21 Oliveira Lima, D. João VI no
Brasil, Rio de Janeiro, Topbooks, a expressão “colônia de artistas france- tuguesa seria caracterizada como “pobre”,
2007. ses”, e algumas vezes “colônia Lebreton”, sendo que a vinda dos pintores franceses
22 Araújo Viana, “Das Artes Plás- endossando, assim, a interpretação de De- tiraria a colônia “da modorra secular” em
ticas no Brasil em Geral e
na Cidade do Rio de Janeiro bret, que teria se referido à notre colonie20. que se encontrava. Taunay investe pesado
em Particular”, in Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Uma outra versão consagrada sobre o tema na idéia da existência de uma missão e da
Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo surgiria com o livro D. João VI no Brasil, abertura de “uma nova era”23.
78 (1915), parte II, Rio de
Janeiro, 1916, pp. 546-7. de Oliveira Lima, publicado em 1909, que Afonso Taunay, ao mesmo tempo em
23 Escragnolle Taunay, A Missão também apostou no projeto premeditado de que introduz novos dados e documentos,
Artística de 1816, Rio de D. João21. Na descrição desenvolvida pelo retoma e aprofunda argumentos anteriores,
Janeiro, Ministério da Educação
e Cultura, 1956, pp. 1-5. embaixador, a política da corte surge como conferindo total intencionalidade ao projeto.

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Recuperar a imagem de D. João significava, “Somos inclinados a admitir que, no tocante
nesse caso, garantir a ele a autoria da idéia. à cultura de belas-artes ao invés de dever a
Como veremos, se o projeto pareceu agradar vinda dos professores franceses a qualquer
a alguns elementos da corte, nem por isso o ato de resolução do rei, deve-a o país à
governo teria lhe conferido um caráter oficial. circunstância de um mero movimento de
Tanto que a ambigüidade na recepção do fonte própria sugerido pelos intuitos a que
grupo – sua importância artística ou indus- se entregaram aqueles artistas de buscar
trial – ficaria escancarada mesmo na época em aventuras ultramarinas o remédio ou
da chegada e da instalação dos franceses e lenitivo aos seus males”25.
nunca foi exatamente esclarecida. Por fim,
em 1916, o próprio IHGB promoveria uma Laudelino Freire havia se baseado em
série de comemorações por conta do cente- artigo publicado no Diário Fluminense, de
nário da chegada do grupo de artistas que, 12 de janeiro de 1828, que sustentava, já
nesse contexto, já é chamado, tão-somente, naquela ocasião, que os artistas estrangeiros
de “Missão Francesa”. Juntava-se, assim, o teriam aqui aportado sem ser convidados.
prestígio da família Taunay com a tradição O texto, evidentemente redigido por parti-
de uma instituição, e a “colônia de artistas” dários de Henrique José, refuta a idéia de
passava a ser entendida como uma “missão”. que existiria um interesse real na vinda do
Interessante é que, como mostra Guilherme grupo. Questionando tudo o que havia sido
Gomes, a palavra “missão” pressupõe uma escrito até então, escreve Freire: “Não se
idéia de obrigação, compromisso e dever inspiraram em boa fonte, nem se estribam
por parte dos “missionários”, tarefas essas em documentos e fatos aqueles que primei-
que não se aplicavam a esse contexto preci- ro afirmaram, e os que repetiram – que D.
so. O termo tem origem no mesmo campo João mandara contratar e vir da Europa uma
semântico de “missa”, derivado de minere missão de professores para aqui instituir o
(“enviar”), que indica, como diz o antropó- ensino das belas-artes”.
logo, um mandato, uma incumbência24. Não O estudioso Morales de Los Rios, em
obstante, Afonso Taunay trataria de conferir trabalho de 1942, voltaria à mesma inter-
esse caráter abnegado e até sacrifical aos pretação hegemônica, procurando corrigir o
missionários. que lhe parecia ser “uma espécie de má fé”26.
Mais do que julgar, vale a pena entender Versões viram logo fatos acabados quando
a importância do debate que se efetiva a passam de mão em mão; e assim Morales
partir do centenário da vinda dos artistas de Los Rios basicamente recuperava os
franceses. Ao que tudo indica, não estamos argumentos de Afonso Taunay, mostrando
diante das tertúlias que por vezes a histo- como, no bojo das inovações trazidas pela
riografia trava, mas frente à defesa de uma corte, “faltava uma escola ou instituto te-
certa memória, que dependia da certeza órico-prático de aprendizagem artística e
24 Guilherme Simões Gomes Júnior,
do caráter oficial e dadivoso dos nossos técnico-profissional27. A cada nova versão Sobre Quadros e Livros. Rotinas
– agora – “missionários”. Como mostram a Missão ganhava não só realidade como Acadêmicas – Paris e Rio de
Janeiro, Século XIX, São Paulo,
os termos – que surgem num crescendo –, crescia como empreendimento, se não mes- PUC, 2005.
os artistas se transformavam quase que em siânico ao menos religioso. O próprio Afon- 25 Laudelino Freire, Um Século de
religiosos da arte, portadores de uma nova so Taunay, na sua edição de 1956, trataria Pintura, tomo 1, p. 3. Citado por
Mario Pedrosa, Acadêmicos e
“fé”, que, nesse caso, implicava trazer a de acender novamente o debate, opondo-se Modernos, São Paulo, Edusp,
2004, p. 60. No próximo
própria civilização. frontalmente a Laudelino Freire e mostrando item trataremos especialmente
Em 1916, no artigo chamado “Um Sécu- como o tema era da maior importância para de Henrique José e da disputa
travada por ele e seu grupo
lo de Pintura”, Laudelino Freire recuperaria o entendimento não só da Missão como da pela liderança da Escola de
Belas-Artes.
a mesma história, desconfiando, porém, do própria história do Brasil28.
caráter oficial da missão. Usando as fontes Mas o tema seria novamente retomado 26 Morales de Los Rios, O Ensino
Artístico, Rio de Janeiro, Impren-
legadas por Henrique José da Silva, um sob outro viés. Mário Barata coletou refe- sa Nacional, 1942.

adversário ferrenho dos artistas franceses, rências documentais presentes em arquivos 27 Idem, ibidem, p. 12.
argumenta: brasileiros, e em 1959 publicou na Revista 28 Afonso Taunay, op. cit., p. 21.

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do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio- após o restabelecimento das relações diplo-
nal o original dos escritos de Lebreton. A máticas –, pelo então secretário perpétuo
partir desses ofícios foi possível começar a da Quarta Classe de Belas-Artes do Institut
desconfiar dessa história, tão bem arrumada, de France: Joaquim Lebreton. Até mesmo
e tentar entender quais eram as motivações em Paris a partida do grupo era observada
dos próprios artistas, que não ficaram alheios com curiosidade, sem que se desse “nome
ao imaginário que reinava acerca do Brasil. aos bois”. Um jornal parisiense publicava
Como se dizia, a colônia Brasil andava na a seguinte nota: “Há quatro dias que o Sr.
moda, na França, e boa parte do incentivo veio Lebreton, secretário da 4a classe do Instituto
justamente desse universo de fontes culturais, partiu de Paris com um armador americano,
lentamente acumuladas29. Mário Pedrosa, em para ir ao Havre, onde já estão todas as pes-
1957, seria o primeiro a desconfiar de forma soas que compõem a caravana destinada ao
29 Mário Barata, “Lebreton et direta, e documentada, da iniciativa exclu- Brasil […]. Eles se propõem, chegando ao
l’Organisation d’Une Double-
École des Beaux-Arts et des Arts siva de D. João: “Há hoje uma lenda para Rio de Janeiro, a construir um panorama
Métiers au Brésil en 1816. A o que se convencionou designar de ‘missão representando a cidade e Roma”32. Não se
Propos de la Mission Artistique
Française de 1816”, in Congrès francesa’, ou aquele punhado de cidadãos da sabia o que tal grupo faria no Brasil, e que
International d’Histoire de l’Art,
Paris, Unesco, 1959, pp. 283-
França napoleônica que embarcaram para o tipo de panorama pretendiam construir. Além
307. Brasil em janeiro de 1816, depois de tratos do mais, por que associar o Brasil a Roma é
30 Donato Mello Junior, “Nicolau com o encarregado de negócios de Portugal também tarefa para pensar e imaginar. “Ca-
Antonio Taunay, Precursor da
Missão, Artística Francesa em Paris, e trazendo cartas de recomenda- ravana” é o título indicado como a sugerir
de 1816. Duas Cartas Suas ção do mesmo diplomata para ministros do que esse aglomerado de artistas tinha algo
Inéditas Colocam-no na Ori-
gem Remota da Missão”, in rei”. Trata-se, assim, de retomar a pátina do de errante e de nômade.
Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, n. 327, tempo e da lenda, e de repensar as diferentes Por outro lado, alguns documentos con-
Rio de Janeiro, abril/junho de partes interessadas nesse jogo. Foi em 1980 servados no Arquivo da Torre do Tombo, em
1980. Para um excelente apa-
nhado do tema ver o texto de que Donato Mello Junior descobriu duas Lisboa, iluminam a cena a partir de mais outra
Elaine Dias, “Correspondências
entre Joachim Le Breton e a
cartas escritas por Nicolas Taunay, que, de fresta, evidenciando a liderança de Lebreton
Corte Portuguesa na Europa. alguma maneira, contradizem afirmações na criação da idéia e na formação do grupo33.
O Nascimento da Missão
Artística de 1816”, in Anais de seu bisneto. Nessas missivas o artista, Em uma das missivas, Lebreton menciona a
do Museu Paulista. História e com 60 anos feitos, oferece, ao príncipe e existência de um movimento imigratório de
Cultura Material, vol. 14, n.
2, São Paulo, Universidade de à princesa de Portugal, seus serviços como franceses, receosos com os novos destinos
São Paulo, jul.-dez./2006.
professor das princesas e dos príncipes D. políticos da nação – rumo aos Estados Uni-
31 Ver também tese de Alberto Ci-
piniuk, L’Origine de l’Académie
Miguel e D. Pedro, e também na condição dos, ao Novo Reino dos Países Baixos e em
des Beaux-Arts de Rio de Janeiro, de conservador das coleções de arte da corte direção à Alemanha – e afirma a importância
Paris, thèse presentée pour
l’obtension du grade de Doc- real30. Naquela que recebe Carlota Joaquina, de desviar esse fluxo também para o Brasil.
teur en Philosophie et Lettres, Taunay inclusive vangloria-se de suas rela- O fato é que a primeira tentativa de negocia-
Université Libre de Bruxelles,
1989-90. Nesse trabalho, o ções pessoais com a realeza portuguesa e pede ção intentada por Lebreton é imediatamente
autor demonstra como o grupo
evidentemente havia se convida- para ser contratado como pintor da família posterior a Waterloo, e se deu quando, na
do e não recebido uma oferta real; cargo que – apesar de muito estimado França, ocorreu um movimento conhecido
oficial. Elaine Dias, em sua tese
Félix-Emile Taunay: Cidade e na França – parecia não existir, oficialmente, como “Terror Branco”, quando bonapartis-
Natureza no Brasil (Campinas,
Unicamp, 2005), defende
em Portugal e muito menos no Brasil. tas foram massacrados em Marselha, em
interpretação semelhante. Assim, se a iniciativa do convite não Nîmes, Avignon e Toulose. Era a época da
32 Claudine Lebrun Jouve, Nico- partiu do benfeitor real, nem muito menos desforra: políticos foram desligados, deze-
las-Antoine Taunay, Arthena,
2002, p. 399. das idéias iluministas do conde da Barca, nove generais foram condenados à morte,
33 Ver Elaine Dias, Félix-Emile quem sabe tenhamos que nos voltar para e os convencionais regicidas que aderiram
Taunay: Cidade e Natureza a boa e velha égide das relações pessoais: aos “Cem Dias” seriam banidos enquanto se
no Brasil, pp. 29-30. A autora
reproduz, em sua importante talvez a própria “missão francesa” tenha impunha a “lei da proscrição”. No próprio
pesquisa, cópias dos ofícios
da corte portuguesa e as cor-
se convidado para a festa da qual pretendia instituto, as reviravoltas da política ficavam
respondências trocadas entre participar31. evidentes: além de David, vinte acadêmicos
Francisco José Maria Brito e
Joaquim Lebreton. Arquivo Ao que tudo indica, o projeto teria sido foram excluídos, entre os quais Sieyès, Mon-
Nacional da Torre do Tombo mesmo sugerido à corte portuguesa em Paris, ge e Lakanal, com quem Lebreton colaborara
(ANTT). Ofício n. 21, 3 de
outubro de 1815, ANTT. no ano de 1815 – portanto, imediatamente na época da convenção.

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Com esse tipo de ambiente, era de es- em função da delicada situação política,
perar que bonapartistas tradicionais, como destacar que não existiria qualquer enlevo
Lebreton, os Taunays, os Debrets e os revolucionário na iniciativa: “Uma vez acer-
Grandjeans de Montigny, que até então se tada essa exclusão, eu gostaria de dirigir ao
filiavam às atividades artísticas da família Brasil os talentos práticos que favorecerão
Bonaparte, pensassem em partir. Por isso a indústria. Esta categoria de homens é a
também, Lebreton endereça uma série de mais fácil de governar; ela se acha onde
cartas ao representante português em Paris, quer que esteja e prospera […]”.
todas com a intenção de garantir a vinda de Como se pode notar, a propaganda de
um grupo de especialistas franceses que Lebreton centrava-se na idéia de organizar
auxiliariam nas artes e nas indústrias locais. um grupo “prático e útil”, que trabalhasse na
Em seu primeiro ofício, ainda endereçado indústria e fosse facilmente governado; dito
a Marialva, Lebreton ressalta as recentes de outro modo, que não causasse problemas.
dificuldades encontradas para a emigração É fácil notar como Lebreton destaca mais a
em países americanos de possessão espa- importância da indústria do que das artes:
nhola. O secretário parecia conhecer bem a
realidade, e como os perseguidos políticos “É preciso no Brasil um aumento da in-
preferiam fugir para os Países Baixos e para dústria, porque os países que o cercam as
os Estados Unidos, assim como reconhecia introduzem todos os dias […]. É o acaso
a necessidade de reorientar o movimento que, de alguma forma, dirige os homens
em direção a outras regiões do continente através do mundo. Não é nem a sabedoria
americano, as quais, segundo ele, também dos governos que garante esse acaso; acon-
andavam carentes de desenvolvimento tece, como nos Estados Unidos, que pouco
industrial34. O argumento de Lebreton ca- ou mal se faz. O Brasil não é invadido por
minha no sentido de explicar como o Brasil atos políticos ou religiosos: o governo tem
era ainda uma colônia pouco procurada por o poder de estabelecer um bom sistema de
estrangeiros e que, a exemplo do que acon- colonização”.
tecera no México, seria possível prever a
criação de um novo projeto que promovesse Bem informado, Lebreton menciona o
a indústria e as artes no Brasil35. Iluminista caso dos Estados Unidos, como contraposto
de formação, Lebreton entendia as artes e ao nosso caso, e recupera algumas repre-
a indústria como elementos de civilização sentações já nesse momento recorrentes: o
e pretendia, agora, estender as benesses Brasil era um país promissor, novato para
para outras localidades. Também intenta, a indústria e sem problemas políticos ou
religiosos. Aí estava a velha tópica da terra
do mel e sem males, refeita no contexto da
Restauração. Menciona também, no mesmo
documento, que a política empreendida
pelo duque de Richelieu na Rússia poderia
ser aplicada no Brasil: o que significava
multiplicar a cultura francesa. A situação
34 Ver Elaine Dias, La Circulation
na França parecia de um lado complicada, des Ouvres d’Art, Paris, Presses
e de outro a exportação de especialistas era Universitaires de Rennes, s.d.,
p. 268.
alardeada como uma espécie de “capacidade
35 “Ofício no 21, 3 de Outubro de
francesa”36. 1815”, ANTT. Ver: Elaine Dias,
Félix-Emile Taunay: Cidade e
Por sinal, não se pode esquecer que essa Natureza no Brasil, op. cit.,
era uma época em que a “racionalidade” e p. 28, e “Correspondências
entre Joachim Le Breton e a
“as boas maneiras francesas” passavam a Corte Portuguesa na Europa. O
ser objeto de consumo. Por exemplo, dispor Nascimento da Missão Artística
de 1816”, op. cit.
de domésticas francesas representava uma
36 “Ofício no 21, 3 de Outubro
marca de luxo e distinção. Esse tipo de traba- de 1815”, ANTT.

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lho era, inclusive, bastante significativo em Evidentemente, e mesmo sem ter a carta
termos de volume – documentos de época de resposta de Brito a Lebreton, nota-se
relacionam um total de 150 mil emigra- como os procedimentos andaram rápido.
dos37. Também o culto à razão, terminada Em seis dias o ministro já elabora uma
a Revolução, parecia continuar atrelado à proposta ao soberano, sem destacar que os
imagem positiva desse país, assim como o artistas foragidos eram, de alguma maneira
mundo se tornava uma espécie de província (ou ao menos alguns deles), vinculados ao
cultural francesa. Da mesma maneira, se a ex-governo de Napoleão. Na sua carta, Brito
arte francesa estava no centro do mundo e menciona o talento do gravador Charles
acima das modas provinciais, já a pintura Simon Pradier e do arquiteto Grandjean de
neoclássica vigente durante o império Montigny, mas deixa claro sua preferência
napoleônico (nomeadamente a pintura de pelo agricultor Lelieur. O ministro se oferece
história) serviria como uma espécie de epí- até mesmo para pagar a viagem de Lelieur
grafe para todo e qualquer ensino nas novas e de Ovide, caso o negociante português
academias que então se formavam. José Alexandre Carneiro Leão não arcasse
Mas voltemos ao texto, que continua com as passagens. Com certeza Brito estava
garantindo as vantagens da “aquisição”: mais interessado na indústria do que nas
tudo fácil e sem problemas. É interessante artes, e nunca escondeu suas preferências.
notar que só após ter discorrido sobre as Já Lebreton confiava que os comerciantes
vantagens econômicas e industriais que ad- brasileiros ajudariam no financiamento
viriam da vinda de um grupo de franceses é do grupo, a exemplo do que ocorrera no
que Lebreton menciona que a instituição não México. E o imaginário vencia a própria
seria “suntuosa” como a escola mexicana realidade. O suposto do secretário é que o
– descrita, como vimos, por Alexandre von que valia para o México servia para o Brasil.
Humboldt. Por sinal, Lebreton explica ao A América era uma só América: conhecida
cavaleiro Brito como já teria à sua disposi- ou sonhada.
ção um pintor, um escultor, um arquiteto e Mas em dezembro, em nova missiva,
um bom gravador. Menciona ainda outros Brito desaponta Lebreton, lembrando que
profissionais, como um cirurgião da Ar- não existiria qualquer instrução da corte no
mada, o diretor dos jardins de Versalhes, e sentido de garantir a vinda dos franceses, e
“um hábil construtor vindo da Espanha”: muito menos fundos para pagar a passagem
François Ovide, que já estava de partida desses artistas:
para o Peru e depois rumaria em direção
ao México. No entanto, de todos os nomes “Reiterando-lhe, senhor, que me faltava
mencionados, apenas Ovide e os irmãos informação a esse respeito, eu não poderia
Taunay viriam efetivamente ao Brasil38. nem lhe dar alguma promessa para o futuro,
É só em 9 de outubro de 1815 que o nem assumir um compromisso que poderia
cavaleiro Brito e o marquês de Aguiar es- prejulgar as intenções de meu governo,
crevem à corte, e transmitem ao príncipe apesar de conhecer os seus princípios e sua
regente a intenção de Lebreton: política esclarecida, para não duvidar que
adotem todos os meios de fazer progredir a
“Sem nada lhe prometer, ponderei-lhe civilização e a prosperidade de seus vastos
37 Georges Lefebvre, La Révolution unicamente que as artes liberais e de luxo territórios, uma vez que os meios trazidos
Française, Paris, PUF, 1988,
vol. 2, pp. 133-4. deviam ceder passo às úteis e necessárias do estrangeiro lhe forneçam uma garantia
38 Elaine Dias, Félix-Emile Taunay: à economia interior do país, mas que o de segurança, e de pleno emprego em troca
Cidade e Natureza no Brasil, Governo de S. A. R., sendo tão iluminado dos favores que serão acordados”40.
op. cit., pp. 29-30.
quanto protetor da indústria e das artes
39 “Ofício no 21, 3 de Outubro de
1815”, ANTT, in Elaine Dias, liberais, eu lhe segurava a benevolência Assim, se Brito não descarta a impor-
op. cit., pp. 30-1.
do meu soberano para artistas foragidos tância do projeto, e o vincula à política
40 “Ofício, no 30, 9 de Dezembro que iam buscar de tão longe seu Paternal esclarecida de D. João e a seu apego à
de 1815”, ANTT, in Elaine Dias,
op. cit., pp. 31-2. Amparo”39. civilização, não garante qualquer aporte.

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Por outro lado, caso os profissionais che- que passava o continente europeu, muitos
gassem ao Brasil, o governo concordaria em artesãos ou oficiais especializados poderiam
apoiar a estada durante os primeiros anos. ser aproveitados43.
A repetição era, porém, sempre a mesma: Lebreton pretendia, originalmente,
essa não era nem uma promessa, nem um conseguir verba para o grupo todo, mas,
objetivo do príncipe regente. Além do mais, não sendo possível, passou recibos de 5
o ministro português propõe a Lebreton a mil francos, os quais, segundo ofício de
inclusão de alguns literatos franceses, caso 8 de abril de 1816, seriam “reembolsados
o projeto viesse a vingar. E a resposta de imediatamente” pelo governo português44.
Lebreton não deixa dúvidas: “Os sábios de Jamais foi encontrada a correspondência
literatura francesa são elementos de difícil mencionando a devolução do dinheiro.
amálgama e talvez de uma utilidade bastante De toda forma, como já foi mostrado, em
limitada no estrangeiro, e, portanto, não 9 de outubro de 1815 o cavaleiro Brito e
propus nada nesse sentido […]. Escolhendo o marquês de Aguiar escrevem mais uma
homens trabalhadores e honestos, donos de vez à corte e transmitem a D. João alguns
uma profissão prática, eu acreditei servir à aspectos da troca de correspondência com
sua e à minha pátria e os dois príncipes que Lebreton.
as governam”41. Lebreton é claro em seus O fato é que a “missão” não era ofi-
propósitos e nos ajuda a entender de que cial, nem no Brasil nem na França. Afinal,
maneira, nesse contexto, os franceses se não foram encontrados documentos nos
entendiam únicos e as belas-artes pareciam arquivos da Quarta Classe de Belas-Artes
estar mais afinadas com o Estado e com “a do Institut de France, no período em que
Pátria”. Elas seriam “profissões práticas”, Lebreton fora secretário perpétuo; apenas a
como propaganda da nação. ata de dezembro de 1815, em que Lebreton
Depois dessa troca de correspondên- lê a carta de afastamento de Taunay e, na
cias, Brito passa a apostar, de verdade, no seqüência, engata o seu próprio pedido de
projeto de Lebreton e paga pessoalmente licença. A justificativa de Taunay fala por
as despesas da viagem de Grandjean de si só: “Vou a um país cuja natureza muito
Montigny e de Pradier, junto com suas me inspirará”. Era a natureza do Brasil
respectivas famílias. Também concorda que, mais uma vez, fazia o papel de texto
em financiar os gastos de Lebreton e de e pretexto para a viagem.
Ovide, assim como os custos do envio de A organização do grupo deve ser enten-
algumas máquinas – mais especificamente dida como uma iniciativa pessoal do secre-
três moinhos – ao Brasil. Ao que tudo in- tário, o qual, em 1815, passado o episódio
dica, se o príncipe não financiou a vinda em que discursara contra os ingleses no
dos artistas, alguns representantes por- que se refere à devolução das peças retira-
tugueses residentes na França o fizeram. das dos países conquistados no período de
O “Chevalier de Brito” adiantaria a im- Bonaparte, encontrava-se num momento 41 “Ofício, no 30, Datado de 20
portância de 10 mil francos em ouro para complicado e com seu emprego em risco45. de Dezembro de 1815”, ANTT,
in Elaine Dias, op. cit., p. 32.
que a viagem se realizasse logo, evitando Além do mais, Lebreton era conhecido nesse
42 Gean Maria Bittencourt, A
assim “as delongas naturais em negociações mundo das artes e tinha capital político para Missão Artística Francesa de
1816, Museu das Armas,
de tal natureza, mormente considerando a juntar rapidamente um grupo de artistas em 1967, p. 6.
distância entre Paris e Rio de Janeiro”42. situação parecida com a sua. 43 In Elaine Dias, “Correspondên-
Com tal soma, Lebreton deveria pagar não só Francisco José Maria Brito foi, porém, cias entre Joachim Le Breton e a
Corte Portuguesa na Europa. O
suas despesas, como as passagens de Mon- precavido. Como arcara com parte das Nascimento da Missão Artística
tigny, de Pradier, de Auguste Taunay e de despesas, toma também o cuidado de enviar de 1816”, op. cit., p. 306.

François Ovide. De toda maneira, Lebreton cartas ao “ministro d’Araujo”, apresentando 44 Gean Maria Bittencourt, op. cit.,
p. 7.
parece acreditar que no Brasil existiria uma o grupo de artistas e o projeto que preten-
45 Ver Elaine Dias, “Correspondên-
grande possibilidade de desenvolvimento diam desenvolver no Brasil. Mesmo assim, cias entre Joachim Le Breton e a
dos “ofícios”, assim como apostava que, e já no momento da partida dos franceses, Corte Portuguesa na Europa. O
Nascimento da Missão Artística
dadas as dificuldades políticas e sociais por alerta, uma vez mais, a Lebreton: de 1816”, op. cit., p. 311.

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“Assim, senhor, nesse empreendimento franceses e que os mesmos chegaram pro-
que é todo seu, espero que reconheça que tegidos. Pode-se perceber mais: como o
não lhe fiz nenhuma promessa, nem me Brasil continuava fazendo parte dos mapas
comprometi por conta do meu governo. imaginosos dos franceses.
Compete somente a ele conceder-lhe uma Foi apenas no Rio de Janeiro, em 1816,
acolhida hospitaleira e que os talentos e a e contando finalmente com o apoio de D.
indústria sempre encontraram entre nós, João, que o conde da Barca deu início aos
na sombra das leis sábias e paternais que primeiros preparativos para a recepção
tantos estrangeiros devem abençoar por do grupo de artistas franceses. D. Araújo
gratidão”46. apoiaria, então, efetivamente o projeto de
Lebreton e animaria D. João com a idéia
Além de registrar que o projeto era da criação de uma “escola ou instituto
“todo” de Lebreton, Brito não faz qualquer prático de aprendizagem e técnico-profis-
promessa, assim como reitera não existir sional”, que viria a complementar a série
engajamento oficial. Há um verdadeiro de “excelentes iniciativas”, que “teriam
silêncio por parte da Coroa no Brasil, e ela sido favoráveis a nosso país”47. Projeções
só entra nessa história quando a “colônia irmanadas faziam agora com que o projeto
francesa” efetivamente chega ao Brasil. Por desse certo.
sua vez, na carta final que Lebreton envia a
Brito, em 20 de dezembro de 1815, já com
tudo acertado, o secretário lembraria que
só pretendia ser útil nesse “país respeitado FECHANDO E ABRINDO ESSA
e promissor”. A idéia de uma terra de pro-
missão está outra vez presente, mostrando HISTÓRIA: COINCIDÊNCIAS E
como o imaginário francês era mesmo um
bom ticket de viagem. MUITA IMAGINAÇÃO
Hora de juntar as cartas: artistas de-
sempregados ou em vias de ser; uma moda Quando a “colônia Lebreton” aportou
francesa nas artes; uma monarquia européia no Brasil a corte já estava resolvida a levar
estacionada nas Américas; uma colônia até em frente a idéia de contratar esses artistas
então fechada aos estrangeiros – sobretudo vacantes no mercado. Não se pode esquecer
franceses – e com imensas possibilidades também que nessa época a França parecia
de comércio, mercado e artes, e um prín- simbolizar a civilização e a cultura, e os
cipe carente de representação oficial. É pintores vindos daquela nação valiam,
preciso, pois, combinar isso tudo e ainda sem dúvida, mais no mercado das artes.
adicionar mais dois elementos: o papel do Marialva, que, como vimos, fora até 1815
Brasil no imaginário francês e o fato de ministro na França, teria pedido a interme-
nossos viajantes saberem que a língua culta diação de Humboldt, nesse contexto, um
da realeza e de uma parte da elite da corte dos homens mais conhecidos no ambiente
era justamente o francês. Com todos esses das instituições científicas. Por outro lado,
argumentos reunidos, talvez o mais correto conforme explica Debret, Humboldt pos-
seja pensar que, juntando a fome com a suía influência também junto à corte portu-
vontade de comer, os viajantes decidiram guesa e pode ter sido dele a idéia de indicar
46 “Ofício no 30, 9 de Dezembro partir: alguns financiados, outros não. Por o nome de Joaquim Lebreton a Marialva
de 1815”, ANTT, in Elaine
Dias, “Correspondências entre seu lado, a Coroa só daria seu apoio com o como possível articulador de um projeto
Joachim Le Breton e a Corte
Portuguesa”, op. cit., p. 33 fato consumado. Aí sim pagaria pela estada no Brasil. Além do mais, sabia, também,
47 Afonso de Escragnolle Taunay,
dos artistas em território americano. Con- que Lebreton havia sido subscritor da École
“Documentos sobre a Vida e vidados ou não, o fato é que a partir dessa Royale du Dessin, de Bachelier, em Paris,
Obra de Nicolau Taunay”, in
Revista do Instituto Histórico e troca de correspondências pode-se atestar desde 1788, e que presidia o Conselho de
Geográfico Brasileiro, tomo 78, que existiram relações entre a oficialidade Administração desde 1881, tendo, por-
parte II, Rio de Janeiro, 1916,
pp 7-8. da diplomacia portuguesa e os artistas tanto, experiência no desenvolvimento de

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projetos artísticos no âmbito institucional. estar aportando em território virgem em dois
É preciso lembrar, ainda, que nessa época sentidos, no mundo das artes e da natureza.
Lebreton, continuava com sua função de Mas não se pode apostar na idéia de que
administrador das Obras de Arte no Mu- formar uma academia, com artistas profis-
seu do Louvre (cargo que ocupava desde sionais, fosse um projeto totalmente novo
1798), e se transformara em colaborador e original. Exemplos parecidos existiam, e
de Vivant Denon na organização das co- não poucas nações da América espanhola,
leções em 180248. Parecia ser, portanto, o como o México, começavam a conformar
homem certo para o lugar certo. O papel acervos oficiais com o intuito de criar ver-
de Humboldt seria, assim, destacado em dadeiras iconografias de Estado.
muitos aspectos: partiria dele a indicação Foi assim, juntando muitos interesses,
do nome de Lebreton e sua visão da Amé- cruzando vários imaginários e algumas
rica influenciaria o líder do grupo, mas coincidências, que em 26 de março de 1816
também os demais participantes. o pequeno barco norte-americano a vela
Toda a operação seria realizada às pres- aporta no Brasil. Foram dois meses de trans-
sas; tão depressa como o mundo mudava lado, e como o navio não podia passar pela
naquele contexto. Fernando VII voltara a barra da Baía da Guanabara, fechada por
reinar na Espanha – revogando as medidas causa do tráfico marítimo durante a noite,
de Cádiz e do governo napoleônico – e a o Calphe teve que jogar suas âncoras ainda
América espanhola entrava na fase final das no mar. Já nesse momento os passageiros
lutas pela independência. Em meio a esse ouviram tiros que eram, na verdade, sauda-
ambiente convulsionado, o Rio de Janeiro ções fúnebres em honra de D. Maria I, que
parecia uma espécie de ilha de sossego, havia acabado de falecer. Tendo diante dos
ainda mais garantida pela presença da olhos uma paisagem tropical exuberante,
monarquia portuguesa. Assim, munida de aportados em frente ao Pão de Açúcar, e
vários temores, da incerteza política e do contando com a luz inesperada dos fogos
ânimo recobrado pelos relatos que prome- de artifício, projetados por causa das exé-
tiam, de fato, um Novo Mundo, partiu a quias da rainha, os artistas passaram a noite
“colônia Lebreton”. Por certo, pensavam fazendo uma série de projetos, e sonhando
que conseguiriam dinheiro fácil, junto a com realizações, que, infelizmente, não
uma corte imigrada e de um povo sem chegariam a bom termo.
educação artística formal. No entanto, o Os fogos de artifício eram rituais e não
país era distante, desconhecido e só re- indicavam a entrada na guerra, mas entre
centemente o príncipe declarara o final da sustos e muita esperança os franceses
guerra com Napoleão. Além do mais, co- imaginavam uma nova pátria para adotar,
nheciam muito pouco acerca dessa colônia, para sempre ou por período breve. Debret,
descrita apenas nos relatos dos viajantes no seu livro Viagem Pitoresca, descreveu
e compiladores franceses. Provavelmente o ambiente: “O ardor natural dos artistas
imaginavam estar chegando numa terra de franceses despertava as ilusões gloriosas
clima tropical, coberta de matas, papagaios, que deviam conformar nosso primeiro
serpentes e macacos; povoada por índios, passo rumo a uma terra desconhecida
negros e mestiços. Mas pensavam, ainda, […]. Será fácil acreditar que foi o sonho
que a fortuna morava por lá e que a cultura universal a embelezar o sono de cada 48 Ver Elaine Dias, “Correspondên-
cias entre Joachim Le Breton e a
estava para ser semeada. um dos artistas, na sua última noite de Corte Portuguesa na Europa. O
Nascimento da Missão Artística
O fato é que havia muitas expectativas de viagem”49. Cada um com seu sonho, cada de 1816”, op. cit.
parte a parte: a corte entendia a chegada dos um com sua própria imaginação, à espera, 49 Jean-Baptist Debret, Viagem
artistas franceses como a própria entrada da ainda no navio, de que algo de muito novo Pitoresca e Histórica ao Brasil, 2
vol., São Paulo, Martins/Edusp,
civilização. Já nossos artistas acreditavam finalmente surgisse. 1972, vol. 1, t. II, p. 25.

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