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A EUFORIA PERPÉTUA

PASCAL BRUCKNER

Editorial Notícias

Digitalização e Arranjo

Agostinho Costa

Uma nova droga colectiva invadiu as sociedades ocidentais: o


culto da felicidade. Sejam felizes! Terrível mandamento ao
qual é tanto mais difícil subtrairmo-nos quanto decorre da
vontade de contribuir para o nosso "bem".
Pascal Bruckner lança-se, assim, numa aventura ao mesmo tempo
moral e filosófica, pedagógica e sempre irónica, que o leva a
interrogar esse dever de felicidade que nos assombra e,
através dele, a marginalização de qualquer noção de
sofrimento, ou mesmo de simples irritação. Vivemos, afinal,
num mundo em que, desde os medicamentos que tomamos para o
nosso bem-estar à valorização delirante das performances
sexuais, passando pela indústria dos chamados tempos livres,
tudo parece tender para uma utopia que não admite ambiguidades
nem interrogações. E se abandonássemos a ideologia da
felicidade? E se passássemos a celebrar os estados de graça
ocasionais?
A felicidade? Um novo ópio para o povo. (...) Um livro
apaixonante que, seguramente, vai causar... infelicidade.
Elle

Título Original:

L'Euphorie Pérpetuelle

Tradução de:

António Cruz Belo

A EUFORIA PERPÉTUA

ENSAIO SOBRE O DEVER DA FELICIDADE

Pascal Bruckner
notícias - editorial

Primeira Edição Fevereiro de 2002

A minha Mãe

Existem seres a quem a felicidade se molda como se de uma


infelicidade se tratasse e na verdade é disso que se trata.
François Mauriac

Nota: O texto é interrompido, em diversos casos


abruptamente, por caixas de texto, pelo que pareceu ser
melhor, tendo em vista uma mais fácil identificação e
compreensão do desenvolvimento da obra, referi-las com as
expressões: no início, "Caixa de Texto"; no fim, "Fim da
caixa".

Índice das caixas

Sobre a fórmula: como está? .................. 25


Prazeres irrefutáveis ........................ 44
Os assinantes do azar ........................ 53
A transfiguração da rotina ................... 62
A utopia do fun .............................. 74
Um terror delicioso .......................... 81
As prisões do calendário ..................... 93
Os dois estados da festa ..................... 96
Sensaboria das preces atendidas .............. 110
Um gene da felicidade? ...................... 116
Uma vida inteira bem falhada ................ 120
Fitzgerald ou a salvação pelos ricos ........ 127
A queda das estrelas ........................ 132
Médicos e pacientes ......................... 145
Amor não é compaixão ........................ 150
Sucesso do budismo no Ocidente? ............. 162

Índice dos capítulos

Introdução: A PENITÊNCIA INVISÍVEL ........... 11

Primeira parte: O PARAÍSO ESTÁ ONDE EU ESTIVER 17

I. A vida como ilusão e desilusão ............ 19


Um cristão é um homem do outro mundo (Bossuet) 19
O bem-amado sofrimento ....................... 25
II. A idade de ouro, e depois? ............... 31
Uma maravilhosa promessa ..................... 31
As ambivalências do Éden ..................... 34
Perseverança da dor .......................... 36

III. As disciplinas da bem-aventurança ....... 39


Os encantamentos voluntários ................. 41
Uma coerção caridosa ......................... 45
Saúde, sexualidade, ansiedade ................ 47
O adeus à despreocupação ..................... 49
O calvário da euforia ........................ 53

Segunda parte: O REINO DO TÉDIO OU A INVENÇÃO


DA BANALIDADE ................................ 57

IV. A epopeia agridoce da monotonia ........... 59


A libertação e o fardo ....................... 60
A inércia frenética .......................... 63

V - Os extremistas da rotina ................. 69


Os mártires do fado .......................... 69
O imperador da vacuidade ..................... 71
A paixão meteorológica ....................... 73
As aventuras do corpo doente ................. 77

VI. A verdadeira vida não está ausente ....... 83


Os encontros falhados com o destino .......... 83
O veneno da inveja ........................... 86
A mística dos pontos culminantes ............. 89
Jardinagem ou radicalismo? ................... 92
O divino disparate ........................... 94

Terceira parte: A BURGUESIA OU A ABJECÇÃO DO BEM-ESTAR

VII. Essa obscena e próspera elevação do médio,


ao medíocre ................... 101
É preciso ser monge ou soldado ............... 101
A guerra: porque não? Seria divertido! ....... 104
Amargo triunfo ............................... 108

VIII. A felicidade de uns e o kitsch dos outros


Um abismo sem fundo .......................... 113
As estratégias do usurpador .................. 113
Para um kitsch salvador ...................... 115

IX. Se o dinheiro não dá felicidade, dai-o! . 123


São os ricos o modelo da felicidade? ........ 123
O preferível e o detestável ................. 126
Uma virtualidade sem limites ................ 128
Uma nova moral da frugalidade? .............. 130
Quarta parte: A INFELICIDADE FORA DA LEI? ... 135

X. O crime de sofrer ........................ 137


A propagação do desperdício ................. 138
A caminho de uma cultura do sofrimento? ..... 143
Médicos e pacientes ......................... 145
As vítimas ou os passadores de fronteiras ... 147
Revoluções minúsculas ....................... 149

A EUFORIA PERPÉTUA XI

A impossível sabedoria ...................... 151


Existe um ensino da dor? .................... 151
Os magníficos supliciados ................... 155
Armistícios provisórios ..................... 159
Conclusão: O CROISSANT DA SENHORA VERDURIN .. 165

Introdução

A penitência invisível

Em 1738 o jovem Mirabeau dirige uma carta ao seu amigo


Vauvenargues na qual o repreende por viver para o dia-a-dia,
por não elaborar um programa destinado a alcançar a
felicidade:
"Ora, meu caro, vós pensais continuamente, estudais, nada se
encontra fora do alcance das vossas ideias, e não sonhais, por
um momento que seja, em traçar um plano consistente a fim de
alcançar aquele que deve ser o vosso único objectivo: a
felicidade." E Mirabeau acaba por enunciar ao seu céptico
correspondent os princípios que norteiam a sua conduta:
desfazer-se de preconceitos, preferir a alegria aos humores,
seguir as suas inclinações ao mesmo tempo que as expurga(1).
Podemo-nos rir deste entusiasmo juvenil. Jovem num tempo que
pretendia reinventar o homem e afugentar para sempre as
pestilências do Antigo Regime, Mirabeau preocupa-se com a sua
felicidade como outros antes dele se tinham preocupado com a
salvação das suas almas.
Teremos mudado assim tanto? Imaginemos os Mirabeau de hoje:
rapazes ou raparigas de todas as condições sociais,
professando todo o tipo de opiniões, ansiosos para darem corpo
a uma nova época e de riscar para sempre as ruínas de um
assustador século xx. Lançar-se-iam na existência ávidos de
exercerem os seus direitos e portanto de construírem as suas
vidas como muito bem lhes aprouver, seguros de que uma
promessa de plenitude foi feita a cada um deles. Desde a mais
tenra idade que todos eles ouvem dizer: sede felizes, pois
hoje as crianças já não são feitas para lhes serem
transmitidos valores ou uma herança espiritual, mas sim para
multiplicar o número dos felizes sobre a Terra.
Sede felizes! Sob uma capa tão amável haverá injunção mais
paradoxal e mais terrível? Ela formula um mandamento que é tão
mais difícil de obedecer porquanto não tem objecto.

*1. Citado em Robert Mauzy L'Idée de bonheur dans la


littérature et la pensée française au XVIII siècle, Albin
Michel, 1979, pp. 261-262.

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Como saber se somos felizes? O que determina a norma para o
sermos? Por que razão é preciso sê-lo, por que razão esta
recomendação reveste a forma de um imperativo? E que responder
àqueles que piedosamente confessam: não sei?
Rapidamente este privilégio se transforma num fardo para a
nossa juventude: ao descobrirem-se como os únicos responsáveis
pelos seus próprios reveses e sucessos, verificariam que a tão
esperada felicidade lhes foge à medida que a perseguem.
Sonhariam, como toda a gente, com a síntese admirável, a que
alia sucesso profissional a sucesso amoroso, moral, familiar a
encimar qualquer um deles, qual recompensa, a satisfação
plena. Como se a libertação de si, prometida pela modernidade,
se deva deixar coroar pela felicidade, como um diadema que
remata o processo. Mas a síntese esvair-se-ia à medida em que
vai sendo elaborada pelos jovens. E viveriam a promessa de
encantamento não como uma boa nova mas como dívida contraída
perante uma divindade sem rosto que jamais acabaria de ser
paga. As mil maravilhas anunciadas só chegariam a conta-gotas
e de forma caótica, tornando mais difícil a procura, mais
pesado o sofrimento. Procurariam derrogar a regra, não
corresponder ao padrão estabelecido. Mirabeau ainda podia
sonhar, elaborar planos quiméricos. Cerca de três séculos mais
tarde, o ideal um pouco exaltado do aristocrata das Luzes
transformou-se em penitência. No entanto, temos todos os
direitos, salvo sermos beatos.
Nada de mais vago que a ideia de felicidade, essa velha
palavra prostituída, adulterada, de tal modo envenenada que
bem gostaríamos poder bani-la do vocabulário. Desde a
Antiguidade que nada mais existe que não seja a história dos
seus sentimentos contraditórios e ininterruptos: já no seu
tempo, Santo Agostinho enumerava nada menos que 289 opiniões
diferentes sobre o assunto, o século XVIII consagrou-Lhe cerca
de 50 tratados e nós não cessamos de projectar sobre os tempos
antigos ou sobre outras culturas concepções e obsessões que só
a nós pertencem. É da natureza desta noção ser um enigma, uma
causa para disputas permanentes, uma água que pode tomar todas
as formas mas que nenhuma forma toma. Tanto existe felicidade
na acção como na contemplação, na lama como nos sentidos, na
prosperidade como na penúria, na virtude como no pecado. As
teorias sobre a felicidade, dizia Diderot, mais não explicam
que a história daqueles que as elaboram. É uma outra história
a que nos interessa: a da vontade de felicidade como paixão
própria do Ocidente desde as revoluções Francésa e Americana.
O projecto de ser feliz enfrenta três paradoxos. Versa sobre
um objecto de tal modo fluido que se torna intimidatório
devido a tanta imprecisão.

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Desemboca no tédio ou na apatia a partir do momento em que se
realiza (neste sentido a felicidade ideal seria uma felicidade
sempre saciada, sempre renascida que evitaria a dupla pena da
frustração e de plenitude). Por fim, ilude o soFrimento ao
ponto de se encontrar desarmado perante ele a partir do
momento em que surge.
No primeiro caso a própria abstracção da felicidade explica
a sua sedução e a angústia que origina. Não somente
desconfiamos dos paraísos prefabricados como nunca estamos
seguros de sermos verdadeiramente felizes. Querer saber se o
somos é já sinal de o não sermos. Daí que a predilecção por
este estado se encontre também ligada a dois comportamentos, o
conformismo e a inveja, as doenças conjuntas da cultura
democrática: o alinhamento pelos prazeres maioritários, a
atracção pelos eleitos que a sorte parece ter favorecido.
No segundo, a preocupação com a felicidade é contemporânea
na Europa, na sua forma laica, do advento da banalidade, esse
novo regime temporal que surgiu com o dealbar dos tempos
modernos e viu triunfar a vida profana, reduzida ao seu
prosaísmo, após a retirada de Deus. A banalidade ou a vitória
da ordem burguesa: mediocridade, sensaboria, vulgaridade.
Por último, um tal objectivo, visando eliminar a dor,
substitui-a apesar de tudo no âmago do sistema. Ainda que o
homem de hoje igualmente sofra por não querer mais sofrer,
como também se pode adoecer à força de procurar a saúde
perFeita. O nosso tempo conta-nos üma estranha fábula: a de
uma sociedade dedicada ao hedonismo, para a qual tudo se torna
causa de irritação e de suplício. A infelicidade não é só a
infelicidade: é, ainda pior, o fracasso da felicidade.
Por dever de felicidade, entendo portanto essa ideologia
própria da segunda metade do século xx e que conduz a tudo
avaliar sob o prisma do prazer e do desagrado, esse convite à
euforia que lança no opróbrio e na dor os que não lhe
correspondam. Duplo postulado: por um lado, tirar o melhor
partido da vida; pelo outro, afligir-se, penalizar-se por tal
não ser conseguido. Perversão a mais bela das ideias: a
possibilidade concedida a cada um de ser senhor do seu destino
e de melhorar as suas condições de existência. Como pode uma
das palavras de ordem emancipadoras das Luzes, o direito à
felicidade, transformar-se em dogma, em catecismo colectivo?
Esta é a aventura que aqui procuraremos contar.
Tão múltiplos são os significados do Bem Supremo que nos
iremos fixar então em alguns ideais colectivos: saúde,
riqueza, corpo, conforto, bem-estar, como tantos outros
talismãs sobre os quais deve poisar, qual pássaro atraído pelo
isco. Os meios tomam o lugar dos fins e revelam a sua
insuficiência a partir do momento em que o encantamento
procurado não é alcançado. Se bem que, cruel engano, nós nos
afastemos com frequência da felicidade através dos meios que
verdadeiramente nos deveriam dela aproximar.

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Daí os frequentes equívocos a seu respeito: que deve ser
reivindicado como um dever, aprendido como uma matéria
escolar, construído como uma casa; que se compra, qual moeda,
que outros enfim o possuem de fonte segura e que basta
imitá-los para sermos inundados como eles pela mesma aura.
Contrariamente ao lugar comum sem descanso repetido desde
Aristóteles - mas para ele a palavra tinha um outro sentido -
não é verdade que todos nós procuraríamos a felicidade, valor
ocidental e historicamente datado. Outros existem como
liberdade, justiça, amor, amizade que ganham supremacia sobre
ela. E como saber que todos os homens procurãm desde a origem
os tempos sem cair em generalidades vagas? Não se trata de
estar contra a felicidade mas sim contra a transformação desse
frágil sentimento num pensamento colectivo estupidificante
perante o qual todos se deverão inclinar nos aspectos
químicos, espirituais, psicológicos, informáticos, religiosos.
Os saberes e as ciências mais elaborados devem confessar a sua
impotência para garantirem a felicidade aos povos e aos
indivíduos. Esta, de cada vez que a afloramos, produz o efeito
de uma graça, de um favor, não de um interesse, de uma conduta
específica. E quanto mais conhecemos as bondades do mundo, a
sorte, os prazeres, a ventura, mais abandonamos o sonho de
atingir a beatitude com letra maiúscula.
Teremos desde já desejo de responder ao jovem Mirabeau: amo
de mais a vida para não querer ser feliz!

Primeira parte

O paraíso está onde eu estiver

Capítulo I

A vida como ilusão e desilusão

"Este mundo não é mais que uma ponte. Atravessa-a mas


nela não te detenhas."
Henn. Apócrifos, 35

"Felizes os aflitos porque serão consolados."


Bem-Aventuranças

Um cristão é um homem do outro mundo (Bossuet)

No século xv em França e em Itália, ocorreram autos-de-fé


colectivos onde sobre as achas do prazer os homens e as
mulheres de livre vontade e como sinal de renúncia às vaidades
lançavam às chamas cartas de jogar, livros, jóias, perucas,
perfumes(1). Acontece que nesse fim da Idade Média, marcado
por uma forte paixão pela vida, a dúvida não era permitida: a
plenitude só existia em Deus e fora dEle só havia engano e
dissimulação. Era então necessário relembrar constantemente
aos mortais a insignificância dos prazeres humanos, quando
comparados com aqueles que lhes estavam reservados junto de
Nosso Senhor.
Contrariamente ao célebre aforismo de Saint-Just, a
felicidade nunca foi uma ideia nova na Europa e desde as
origens, fiel à sua herança grega, o cristianismo sempre lhe
reconheceu a aspiração. Simplesmente coloco fora do alcance
humano, no Paraíso Terreal ou nos céus (o século XVIII
contentar-se-á em devolvê-la aqui para o mundo terreno.

*1. Johan Huizinga, Ilutomne du Moyen Age, Petite


Bibliothèque Payot 1975 p.15. (Edição portuguesa: O Declínio
da Idade Média, tradução de Augusto Abelaira, Lisboa, Editora
Ulisseia, Colecção Um Livro Pelicano, p.13.).

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Todos nós recordamos termos sido felizes antes da Queda, diz
Santo Agostinho; e só existe felicidade na reminiscência
porque no fundo da memória é onde encontramos a fonte viva de
Deus. E Pascal dissertando sobre os nossos vãos meios para
aceder ao bem supremo: "Então o que é que nos grita essa
avidez e essa impotência senão que o homem viveu outrora uma
verdadeira felicidade da qual no presente não permanece mais
que a marca e o rasto completamente desfeitos?"
Esta trindade temporal cristã será retomada seguidamente por
todos os autores crentes ou agnósticos: a felicidade é de
ontem ou de amanhã, com nostalgia ou com esperança, mas nunca
de hoje; Se é legítimo tender para este estado, seria
estültícia querer álcançá-la neste mundo. Criatura caída em
desgraça, o homem deve portanto expiar o pecado de existir,
trabalhar para a sua salvação. E a salvação é tanto mais
angustiante quando se alcança uma única vez, como notou
Georges Dumézil: para o cristão não existe uma segunda
oportunidade, contrariamente ao que acontece com o hindu ou
com o budista entregues ao ciclo das reincarnações até que
seja alcançada a libertação. É no intervalo estreito da minha
permanência na Terra que se joga a cartada da eternidade e
essa perspectiva confere ao acidente temporal que eu
represento a marca de um verdadeiro desafio. É típico da
cristandade a excessiva dramatização dessa existência, ao
colocá-la entre a alternativa de Paraíso ou Inferno. A vida do
crente é um processo que se desenvolve integralmente na
presença do Divino Juiz. "Todo o mal praticado pelos perversos
é registado sem que eles o saibam", dizem os Salmos. Os nossos
erros, os nossos méritos inscrevem-se hora após hora no grande
livro da contabilidade com saldo devedor ou credor. Mesmo se
"os pecadores, as mulheres infiéis, os homens corruptos se
cobrirem com todas as sombras da noite, serão descobertos e
julgados" (Bossuet). Terrível desproporção: um pequeno erro
humano pode conduzir a um castigo eterno mas ao contrário
todos os males de que padecemos podem encontrar a sua
recompensa no Além, se de algum modo tivermos levado uma
existência agradável a Deus. Passado ou reprovado: o Paraíso é
estruturalmente uma instituição escolar.
Portanto, a lógica da salvação, ao postular uma relativa
liberdade do crente que se pode aperfeiçoar ou sucumbir às
paixões mundanas, está longe de constituir uma linha recta.
Pertence à classe do claro-escuro e o mais sincero dos fiéis
vive a sua fé como se de uma peregrinação labiríntica se
tratasse. Pois está em simultâneo muito próximo e
infinitamente longe, Deus é um caminho a percorrer, semeado de
ciladas e de ardis. "Deus só é bem conhecido quando é
reconhecido como desconhecido", dizia São Tomás. Torna-se
então necessário permanecer aqui em baixo, obedecendo às leis
de um outro mundo e essa terra que nos seduz com os seus mil
sortilégios é ao mesmo tempo a inimiga e a aliada da salvação.

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É por isso que se essa vida não pode usurpar a dignidade que
somente a Deus pertence, deixa de ter um carácter sagrado,
torna-se numa passagem obrigatória, a primeira etapa da vida
eterna. O tempo para o cristão não constitui uma segurança em
relação ao Além, é antes uma tensão feita de angústias, de
dúvidas, de dilacerações. A esperança na redenção não se
distingue portanto de uma inquietação fundamental. "Nada
compreenderemos das obras de Deus se não tomarmos por
princípio que Ele quis cegar uns e iluminar outros. [...]
Existe sempre suficiente obscuridade para cegar os malditos e
suficiente claridade para os condenar e para não serem
perdoados" (Pascal). E quando Lutero substitui a salvação
mediante obras pela salvação através da fé - só Deus decide
soberanamente se seremos salvos ou condenados
independentemente daquilo que fizermos ou quisermos - faz com
que para os eleitos continue a existir um elemento de
incerteza. Estes que nunca estão seguros de terem sido
eleitos, mesmo se evidenciam o seu fervor através de actos
piedosos. Qualquer que seja a sua conduta, o pecador nunca
pode pagar a sua dívida para com Deus, só pode contar com a
Sua infinita misericórdia. Dito por outras palavras, a
salvação é uma porta estreita enquanto a estrada que conduz à
perdição é larga e espaçosa(2) (Mateus 7,13).
Perante esta exigência terrível, alcançar a eternidade ou
perecer no pecado, que importância têm as pequenas felicidades
da vida? Nenhuma! Não só são efémeras e enganadoras - "O
mundo, parco em feitos, é sempre magnífico nas suas promessas"
(Bossuet) - como nos desviam do caminho certo, nos lançam numa
deplorável servidão relativamente aos bens terrenos. Toda a
opulência que não seja o meu Deus é para mim insuficiente,
escrevia magnificamente Santo Agostinho. Duplo anátema lançado
sobre os prazeres: são risíveis, tendo em conta a beatitude
que nos espera no céu, e transmitem a imagem de uma
perenidade, de uma firmeza que só pode pertencer à ordem
divina. Representam o mal infinito da concupiscência, imagem
invertida da felicidade celeste. No caso, o pecado dos homens
é tomar um não-ser por um ser. Portanto as alegrias mundanas
são pulverizadas pela terrível perspectiva da morte, a qual,
afirma ainda Bossuet, tudo ofusca com a sua sombra(3). É ela
que transforma a saúde em adiamento, a glória em quimera, as
volúpias em infâmia e a vida numa ilusão disfarçada de
desilusão. A morte não chega de longe mas sim do mais íntimo,
insinua-se no ar que respiramos, no alimento que tomamos, nos
medicamentos que ingerimos tentando dela nos proteger. E
Pascal: A morte que a cada instante nos ameaça

*2. Citado por João Paulo II, O Sentido Cristão do


Sofrimento, Pierre Tequi, 1984 p. 68.
3. Bossuet, Sermons et oraisons funèbres, Seuil, prefácio de
Michel Crépu, pp.140-141.

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deve infalivelmente colocar-nos em poucos anos na horrível
necessidade de sermos ou aniquilados ou infelizes.
Desqualificar toda a existência à luz de um túmulo, é
sublinhar que desde o dia do nosso nascimento estamos
mergulhados num torpor do qual a agonia nos tirará. A vida é
um sono de que é preciso despertar: esta metáfora, oriunda da
Antiguidade, e omnipresente no pensamento cristão, transforma
a morte num prazo fatal no verdadeiro sentido da palavra. Logo
existem de algum modo três mortes: o desaparecimento
propriamente dito; a morte em vida para os que vivem em estado
de pecado, o que significa em desunião com Deus, de luto
espiritual (em algumas igrejas bretãs o Inferno é representado
como um local frio, gelado, o lugar da separação); por fim, a
morte como libertação e passagem para os justos. Ela não é
precipício mas antes uma porta que nos conduz ao Reino e torna
a alma capaz de gozar de uma infinidade de alegrias que de
forma alguma se conseguem encontrar nesta vida(4). É absurdo
temer o nosso aniquilamento pois libertarmo-nos do corpo e dos
seus enganos constitui o início de aventura inaudita, a do
Julgamento Final e da Ressurreição para a eternidade.
Este é então o raciocínio cristão: opor ao medo bem natural
do sofrimento e da morte o medo ainda maior da perdição. E
promete uma recompensa para as misérias deste mundo vil
através de uma retribuição na outra vida, única forma de pôr
fim ao escândalo da prosperidade do iníquo e do infortúnio do
justo. Variações sobre o tema de um bem ou de um mal imaterial
- o Paraíso ou o Inferno - para melhor lançar um véu pudico
sobre as provações bem reais dos dias de hoje. Renunciar ao
falso prestígio mundano, é constituir-se no direito de esperar
uma gratificação desmesurada no céu. Raciocínio hábil que
veste a resignação com uma indumentária de luz: dado que
ninguém pode servir a dois amos: Deus e Mamon, troco os
prazeres concretos, imediatos por uma hipotética volúpia
futura. De que serve gozar nesta terra alguns instantes de
alegria se com isso arriscamo-nos a permanecer para sempre
agrilhoados a Satanás? O grande pecado, nisso todos os homens
da Igreja insistem, não é ser-se tentado pelos frutos do
mundo, é a eles estar apegado, é reconhecer que implicam uma
tal escravidão que nos faz esquecer o laço fundamental com
Deus. Se não nos quisermos perder, é perante a eternidade que
todos os usos devem ceder (Bossuet), pois que não existe bem
nesta vida que não seja a esperança numa outra (Pascal). Em
todo o caso o pathos da salvação tem de levar de vencida a
preocupação com a felicidade.

*4. René Descartes, Correpondance avec la princesse Palatine


sur La Vie heureuse de Sénèque, Arlea, 1989, pp.188-189.

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Felizmente, uma tal diligência nem sempre é colocada em
termos de um "preto ou branco" intransigente. É função dos
sacramentos, sobretudo o da penitência, aliviar o fiel de uma
terrível tensão e permitir-lhe alternar o pecado,
arrepender-se, um vai e vem de absolvição que escandalizou não
só Calvino como também Freud(5). Foi sobretudo o génio da
Igreja, ao inventar no século xII sobre a pressão popular e
como resposta aos milenaristas a noção de Purgatório, grande
sala de espera, terceiro lugar entre o Inferno e o Paraíso,
que permite aos que levaram uma vida medíocre, nem muito má
nem muito boa, passar uma esponja sobre as suas contas
atrasadas com o Mais Alto. Esta espécie de recuperação póstuma
proporciona também aos vivos uma forma de agir sobre os
defuntos e de com eles dialogar graças às suas preces. O
Purgatório não somente atenuou a terrível chantagem a que a
Igreja se entregou junto dos crentes ao submetê-los à tenaz da
libertação ou da condenação (é preciso recordar que o Inferno
na sua aterradora e incandescente versão é uma invenção da
Renascença e não da Idade Média). Criou igualmente um sistema
de mitigação das penas(7), introduziu na fé a noção de
regateio
com todos os excessos bem conhecidos e que provocaram a ira
dos reformadores, indignados por verem Roma a entregar-se ao
tráfico das indulgências, o que significa que uma instituição
humana recebe pagamentos por conta da eternidade, forçando de
algum modo a mão de Deus. É graças a ele que a permanência na
terra se adoça, se torna mais amável. A ideia da
irreversibilidade afasta-se: um pecado limitado no tempo deixa
de significar

*5. No prefácio de Os Irmãos Karamazov, Freud, evocando o


moralista que existe em Dostoievski que usa e abusa do
arrependimento, escreve assim: Faz-nos pensar nos bárbaros
invasores que matavam e de seguida faziam penitência,
penitência tornada de uma penada em técnica que permitia o
assassínio (Folio, Gallimard, p. 9).
6. Como lembra Jean Delumeau, La Peur en Occident, Fayard,
1978, capítulo viI sobre o satanismo.
7. Jacques Le Goff, La Naissance du Purgatoire,
Folio-Histoire,
Gallimard, 1981.
8. A partir do século XII, multiplica-se em França o
sistema da penitência tarifada que se traduz em dádivas em
dinheiro, em preces ou em missas. Estas últimas compram-se à
unidade como tantos outros viáticos que por aí andam. Com o
desenvolvimento da piedade indulgenciária florescem as
transacções mercantis mais desenfreadas: peregrinar, fazer
ofertas às ordens hospitalárias, recitar salmos fazem esperar
reduções da pena, dos anos de Purgatório. "Por exemplo, tal
santuário, mediante uma confissão, dádivas e orações, promete
conceder sete anos e sete quarentenas, um outro quarenta vezes
quarenta anos. Um guia do peregrino à terra Santa ensina-nos
que visitas sistemáticas à totalidade dos Lugares Santos
produz, se assim o pudermos dizer, quarenta e três vezes sete
anos e sete quarentenas (in Jacques Chiffoleau, KCrise de la
croyance", Histoire de la France religieuse, Seuil, 1988, u
volume, pp.138 e 142). Lembremos que continua a ser prática da
Igreja Católica, embora gratuitamente, as indulgências para
grande escândalo dos protestantes. A bula papal do ano 2000
concede aos penitentes que se tiverem abstido durante um ano
de beber ou fumar indulgências plenárias que se podem
converter em anos a favor dos mortos do Purgatório...

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uma queda infinita. Ao modificar "a geografia do além", o
Purgatório deixa aberta uma porta para o futuro, evita o
desespero, "refrigera" a história humana. Graças a este
tranquilizante psicológico, o pecador deixa de sentir que as
chamas do inferno o perseguem quando infringe uma proibição. A
expiação torna-se possível e a salvação perde aquilo que tinha
de inumano enquanto dogma. A própria Reforma apesar da sua
intransigência doutrinal desempenhará o papel de uma
reabilitação paradoxal da vida terrestre pela sua vontade de
incarnar aqui em baixo os valores do outro mundo. Lutero
determinava a fuga à ociosidade e que se agisse por forma a
agradar a Deus, pois um homem bom e justo faz boas obras(9) e
confirma assim as suas hipóteses de ser salvo.
Da mesma forma, desenvolveu-se nos séculos XVII e XVIII todo
um cristianismo que comportava quem não queria escolher a
terra contra o céu mas antes juntá-los. Longe de serem
incompatíveis antes se complementam e Malebranche, recusando
as palavras da proposta pascaliana, demonstrará que a
felicidade é um movimento ascensional que parte dos prazeres
mundanos até às alegrias celestes onde a alma viaja sem
sobressaltos até à luz final. Onde outros marcavam uma cesura,
ele restabelece uma continuidade e numa visão muito moderna da
fé descreve o homem como impulsionado pela mesma força quer
para a eternidade quer para a conquista dos bens temporais. No
futuro, Natureza e Graça colaboram harmoniosamente nos
destinos humanos: um cristão pode ser um homem honesto, aliar
a delicadeza à piedade(10), consagrar-se às tarefas
quotidianas sem perder de vista a perspectiva da redenção. A
imortalidade democratiza-se, torna-se acessível a um maior
número. O cristianismo permanece então a doutrina de uma
desvalorização relativa e racional do mundo: ao considerar
esta vida como um local de perdição e de salvação, gera o
obstáculo e a condição da salvação e ergue-o assim ao estatuto
de bem supremo; liberta-nos do corpo mas restabelece-lhe os
seus direitos graças à reincarnação. Em resumo, afirma a
autonomia humana quando a subordina à transcendência divina.
Em todo o caso, exige ao crente, dividido entre os "perigos do
prazer e a recusa da Hencantadora e perigosa doçura da vida"
(Santo Agostinho), que assuma o sensível sem o idolatrar, sem
erigir as coisas do mundo em absolutos.

*10. In Les Grands Écrits réformateurs, Garnier-Flammarion,


prefácio de Pierre Chaunu, p. 222.
11. Citado por Robert Mauzy op. cit., pp.17 e 18 bem como
p.181.

25

(Caixa de Texto)
Sobre a fórmula: como está?
Como vai? Ao longo da história
os homens nem sempre se saudaram desta forma: invocavam para
eles a protecção divina e não se inclinavam perante um
camponês da mesma forma que faziam diante de um cavaleiro.
Para que surja a fórmula "como está?", é preciso abandonar a
relação feudal e entrar na era democrática que implica um
mínimo de igualdade entre os indivíduos entre si, submetidos
às oscilações humorais. Existe uma lenda que nos diz que esta
expressão, pelo menos na língua francesa, tem a sua origem na
medicina: como vos comportais na sentina? Vestígio de um tempo
em que a regularidade intestinal era sinal de boa saúde.
Esta formalidade lapidar, estandardizada, responde ao
princípio da economia e constitui o laço social mínimo numa
sociedade de massas ávida de reunir gentes de todos os
quadrantes. Mas, por vezes, é menos uma questão de rotina que
de intimidação: pretende-se constranger a pessoa encontrada a
situar-se, petrificá-la, submetê-la mediante uma palavra a um
exame aprofundado. Onde estás? De onde vens? Discreta
intimação que determina a cada um para se expor à verdade do
seu ser. Pois isso interessa-nos mesmo que não nos interesse
para onde se vai num mundo que faz do movimento um valor
canónico. Em que o maquinal "vai bem", que não pede resposta,
é mais humano que o "como está?" pleno de solicitude por parte
daquele que nos quer pôr a nu, que nos quer embaraçar com um
balanço moral. É que o facto de ser doravante não decorre mais
de si e necessita de uma consulta permanente do seu barómetro
íntimo. Será que passo assim tão bem, será que não me
sobrestimo? Razão por que muitos iludem a questão e a cortam
cerce, supondo que o outro tem a delicadeza suficiente para
decifrar no seu "vai bem" um discreto desalento. Nesta
perspectiva é terrível esta locução de renúncia: Hvai-se
andandoH como se estivesse reduzido a deixar que os dias e as
horas corram sem neles tomar parte. Mas porque será preciso
que, apesar de tudo, se vá andando? Pela necessidade diária de
nos justificarmos, acontece que frequentemente relevamos de
uma outra lógica. De tal forma opacos para connosco próprios
que a resposta deixa de ter sentido mesmo a título de
formalidade.
"Tens ar de quem está hoje em plena forma." Caindo sobre nós
como uma colher de mel, este cumprimento tem o valor de uma
consagração: no confronto entre radiantes e rabugentos eu
estou do lado bom. Eis que, pela magia de uma frase, sou
colocado no cimo de uma hierarquia subtil e sempre em mutação.
Mas no dia seguinte um outro veredicto cai, impiedoso: "Como
tens mau aspecto." Esta comprovação fuzila-me à queima-roupa,
arranca-me da posição esplêndida onde acreditava ter sido
colocado para sempre. Desmereci da classe dos magníficos sou
um pária que deve andar colado às paredes, esconder de todos o
rosto confundido.
Em definitivo "como vai?" é a questão mais fútil e a mais
profunda. Seria necessário para lhe respondermos com exactidão
proceder a um inventário escrupuloso do seu psiquismo, a
minuciosas ponderações. Que importa: por delicadeza, por
civilidade é preciso dizer sim e passar adiante ou ruminar
sobre a questão uma vida inteira e reservar a resposta para
depois.
(Fim da caixa)
O bem-amado sofrimento

- O que é para o cristianismo a infelicidade? A razão da


Queda, o passivo que devemos liquidar por força do pecado
original.

26
A este respeito, as Igrejas carregaram nas cores: não somente
fustigam aqui na terra, como fazem da existência a reparação
de um pecado que a todos nos verga desde o nascimento porque
contaminou a inumerável prole de Adão e Eva. Todos são
culpados a priori, mesmo os fetos nos ventres de suas mães.
Mas desta miséria ligada à nossa imperfeição, seria
irresponsável desesperar. É por amor que o Senhor entregou o
Seu Filho único a fim de por Seu intermédio livrar a
humanidade do mal. Que o emblema desta religião seja um
crucificado no seu patíbulo significa que inscreveu a morte de
Deus no centro do seu ritual. Jesus agonizando torna-se
proprietário da morte (Paul Valéry) e converte-a em alegria.
Luto e ressurreição: o Filho de Deus na cruz afirma o trágico
da condição humana e ultrapassa-a em direcção à ordem
sobre-humana da esperança e do amor. A Sua paixão permite
assim a cada infeliz revivê-la ao seu nível e de participar
num acontecimento fundador mais vasto que ele próprio. Mesmo
aviltado, deve providenciar o carrego da sua própria cruz e
encontrar em Jesus um guia e um amigo que o ajuda. Nestes
termos, o seu sofrimento tornar-se-á não num inimigo mortal
mas num aliado dotado de um poder de purificação, de renovação
de energia espiritual (João Paulo II). Possui, como afirmou o
filósofo Max Scheler, essa capacidade única de separar o
autêntico do fútil, o inferior do superior, de retirar o homem
da confusão dos seus sentimentos , do jugo grosseiro do corpo
para dirigir os seus olhos em direcção às riquezas
essenciais(12).
Não basta portanto suportar o sofrimento, é necessário
amá-lo, fazer dele a alavanca de uma verdadeira transformação.
Ele é esse revés que conduz à vitória e, como dizia Lutero, é
ao condenar o pecador que Deus lhe garante a salvação. Todo o
homem torna-se no caminho da Igreja especialmente quando o
sofrimento está presente na sua vida (13). No que o
cristianismo
veta e o heroísmo aristocrático e a moral estóica que ordena a
aceitação sem um gemido de dores e doenças e chega mesmo a
convidar o sábio a suportar a tortura com um sorriso. Pascal
fustigava o orgulho de Epicteto perante a infelicidade na qual
via uma afirmação insolente da liberdade humana, inconsciente
da sua precariedade. Impossível como os Antigos de nos
furtarmos ao mal, de o contornar pela utilização de toda a
espécie de estratagemas ou de exclamar de forma sacrílega como
os epicuristas: "A morte para nós não existe." É preciso
confessar o seu calvário, gritar a sua ignomínia e do fundo
desse aviltamento subir até Deus. O sofrimento salva a
existência, dizia Simone Weil, nunca é demasiado forte,
demasiado grande.
*12. Max Scheler Le Sens de la souffrance, Aubier, 1921, pp.
65 e ss.
13. João Paulo II, op. cit., p.

27
Porque nos abre as portas do conhecimento e da sabedoria, ele
é tanto melhor quanto for mais injusto(14) Daí a inevitável
algofilia dos cristianismos protestante, ortodoxo ou católico,
essa preocupação muito real com os infelizes que caminha a par
de um apetite pela infelicidade. Cristo ensinou a alcançar o
bem pelo sofrimento e a fazer o bem àqueles que sofrem.(15)
Dondè essa necessidade compulsiva de fazer mão baixa à
infelicidade dos outros como se o bem não bastasse (assim essa
tentativa do clero polaco em transformar Auschwitz num Gólgota
moderno ou esse aliciamento das almas ao qual, a crer em
certos jornalistas, se entregava Madre Teresa nas casas de
morte de Calcutá, independentemente dos seus grandes méritos).
Sem esquecer esse gosto pronunciado pelo martírio, os corpos
desmembrados, a obsessão por cadáveres em decomposição, a
putrefacção de uma certa arte cristã, o acento posto sobre a
natureza excremencial do corpo, e por fim a estética do
suplício e do sangue dos místicos. Poucas religiões insistiram
tanto como esta na imundice humana, manifestaram um tal
sadismo da piedade(16).
Mesmo se a Igreja Católica a partir de Pio XII se tenha
mostrado mais compreensiva em relação aos que sofrem, para ela
é o sofrimento que constitui a norma e a santidade uma quase
anomalia. Testemunha isso esta reflexão de João Paulo II:
Quando o corpo é profundamente atingido pela doença, reduzido
à incapacidade, quando a pessoa humana se encontra à beira da
impossibilidade de viver e de agir, a maturidade interior e a
grandeza espiritual tornam-se então mais evidentes e
constituem uma lição comovente para quem goza de uma saúde
normal (17). I É preciso amar o homem mas, antes de mais,
humilhá-lo, rebaixá-lo, O sofrimento, ao aproximar-nos e Deus,
é úma oportunidade de progresso, perde o que tem de pior em
si: a gratuidade. À pergunta de Job: "porquê o sofrimento?,
porquê eu?", não encontro resposta, afirma sempre João Paulo
II, que não seja sofrer em Cristo, aceitar o chamamento que
Ele me dirige do alto da cruz: segue-Me.

*13. Então somente na miséria posso encontrar a paz


interior, a alegria espiritual. Aos nossos olhos o mundo
cristão talvez seja cruel mas é um mundo pleno de sentido
(como o budismo que faz da dor o resultado dos pecados
cometidos em vidas anteriores - segundo a fórmula consagrada
são as setas que lançámos que se voltam contra nós. Concepção
bárbara mas eminentemente consoladora). Com a religião o
sofrimento torna-se num mistério que só conseguimos decifrar
sofrendo.

*14. Simone Weil, La Pesanteur et la Grâce, Plon, 1988.


15. João Paulo II, op. cit., p. 91.
16. Jacques Chiffoleau, op. cit., p. 135.
17. Op. cit., p. 73.
18. Ibid., p. 76.

28
Estranho mistério pelo qual aliás tudo se explica(19). E os
teólogos desenvolverão tesouros de casuística e de subtileza
para legitimar a existência do mal sem prestar significado à
bondade de Deus.
Compreende-se então a importância da agonia ostensiva na
idade clássica (e até meados do século xx nos meios rurais).
Outrora era natural quando o habitat era comum, que um homem
não pudesse morrer a não ser em público, perante a vista de
todos, e não sozinho, como hoje, num hospital. Através da
prova última, o crente encontrava a oportunidade para saldar
as suas contas com os seus próximos, de meditar nos seus
pecados, de quebrar os laços terrenos antes de embarcar para o
invisível. "Não é vergonhoso para o homem sucumbir à dor", diz
Pascal, "é sim vergonhoso sucumbir perante o prazer".
A agonia é capital: permite ao fiel pagar um derradeiro
tributo a este mundo terreno, deixar o seu corpo, através da
dor, um pouco como um navio ao qual se cortarão uma a uma as
amarras. Os estertores, as angústias devem ser testemunhas de
uma vida completamente virada para a devoção e para a
caridade.
Assim Bossuet fustiga os tíbios cuja fé desperta na ombreira
do passamento mediante a expressão de um arrependimento
tardio; mas desdobra-se em elogios à pequena Henriqueta de
Inglaterra, duquesa de Orleans, que, com catorze anos, quando
se encontra à morte, manda chamar os padres em vez dos
médicos, abraça o crucifixo, pede os sacramentos e grita: "Ó
meu Deus, não pus sempre em Vós toda a minha confiança?"
"A maravilha da morte", escreve então o pregador citando
Santo António, Hé que, para o cristão, ela não termina a vida,
só acaba com os seus pecados e com os perigos a que estava
exposto. Com os nossos dias, Deus reduz as nossas tentações, o
que significa todas as ocasiões para perder a vida verdadeira,
a vida eterna dado que o mundo mais não é que o nosso exílio
comum.(20) Não é de espantar ler sob a pena de João Paulo II,
evocando a eutanásia e os últimos momentos, um elogio Hda
pessoa que aceita voluntariamente sofrer ao renunciar às
intervenções contra a dor a fim de manter toda a sua lucidez e
no caso de ser crente para participar na Paixão do Senhor
mesmo se, e o matiz é de monta, um tal comportamento heróico a
não puder ser considerado por todos como um dever(21). A
Igreja de Roma, bem o sabemos, aceita os cuidados paliativos
sob condição de não privarem o moribundo da consciência de si.
É preciso acreditar que um tal dispositivo de justificação é
muito pouco convincente, dado ter surgido a pouco e pouco,

*19. A este propósito Marcel Conche é muito claro em


Orientation philosophique, PUF 1990, p. 56: HAtravés de um
mecanismo curioso, graças à ausência de resposta, para tudo se
tem resposta. "A noção de mistério utilizada sem rigor
torna-se num puro sofismo para justificar o injustificável,
nomeadamente o sofrimento das crianças".
20. Bossuet, op. cít., pp.178-179.
21. Evangelium Vitae, Cerf-Flammarion, 1995, pp.103-104.
29
com o decurso do tempo, como o breviário da resignação e do
obscurantismo (incluindo os crentes que sobre esta questão
abraçaram os valores laicos). A descoberta dos alcalóides, o
uso dos anestésicos, a purificação da aspirina e da morfina
varreram as efabulações dos padres sobre a dor como sendo a
necessária punição divina. Em boa verdade, o cristianismo
gerou a partir de si mesmo o protesto que o tornou frágil. Uma
vez colocada a noção de bem-aventurança - seja localizada no
céu - foi desencadeada uma dinâmica que se voltou contra ele.
(E as próprias Bem-Aventuranças nos Evangelhos, ligadas a
maldições, não são uma promessa de apaziguamento mas de
justiça. São um apelo à desordem do mundo, uma oportunidade
concedida aos que caíram, aos pecadores: os poderosos serão
lançados por terra, os miseráveis colocados na primeira
fila(22).) Saber que tal estado nos espera depois da morte
torna os homens impacientes por conhecerem algumas premissas
aqui em baixo. Uma poderosa esperança numa vida melhor surge
para quem extrai a sua energia do próprio texto das
Escrituras. Procurar-se-á apressar o fim dos tempos quando o
Messias regressar e a acumulação de infelicidade se
transformar num radiante Apocalipse, contam-se os anos, os
séculos que nos separam desse fim e os cálculos inflamam os
espíritos. A este respeito o herege ou o milenarista nada mais
são que leitores apressados que tomam as palavras da Bíblia ao
pé da letra e acreditam no seu significado literal. Apoiam-se
na inflexibilidade de Jesus para contestarem as formas
petrificadas da instituição eclesiástica. O tema da felicidade
tem a sua origem no cristianismo mas é contra ele que se
espraiará. Como Hegel notou em primeiro lugar; esta religião
contém si
todos os germes que farão com que seja ultrapassada e que
acabe por sair do religioso. O seu principal defeito para os
homens da Renascença e das Luzes, aliás todos crentes, foi
revestir a infelicidade com as vestes da eloquência, essa
eloquência da Cruz que promete a ressurreição a fim de desviar
os piedosos do dever de melhorarem a sua condição terrena.
Tanto mais que o culto da dor e do sacrifício, como Nietsche o
demonstrou a propósito dos Antigos, não eleva o homem, antes o
lança no endurecimento, na amargura. Desde logo, segundo a
célebre formulação de Karl Marx, "Abolir a religião enquanto
felicidade ilusória do povo, é exigir a sua felicidade real."
A dureza católica ou protestante exercia-se desesperadamente
contra a natureza humana e suas alegrias.
Com as Luzes, o prazer e o bem-estar serão por fim
reabilitados e o sofrimento posto de lado como um arcaísmo.
Poderíamos acreditar que uma página da história foi virada.
Pelo contrário é aqui que começam as dificuldades.

*22. "Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino


de Deus. (...] Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a
vossa consolação, ai de vós os que agora rides, porque
gemereis e chorareis, etc." (Lucas, 6, 20-26 e Mateus, 5-7).

Capítulo II
A idade de ouro, e depois?

Uma maravilhosa promessa - Toda a noção moderna de


felicidade assenta sobre uma célebre frase de Voltaire
retirada do seu poema Le Mondain (1736): O Paraíso terrestre
existe onde eu estiver, fórmula matriz, geradora que doravante
não deixará de ser decalcada ou repetida como garante da sua
verdade(1). Enunciado magnífico, chocante, que demoliu séculos
de distanciamento do mundo, de ascetismo e cuja perturbante
simplicidade ainda é, hoje em dia, objecto da nossa meditação.
Mais tarde, Voltaire, horrorizado como todos os do seu tempo
com o terramoto de Lisboa, recusou este optimismo flamejante,
este elogio que provoca o luxo e a volúpia e, colocado perante
a crueldade gratuita da natureza e dos homens, adoptará uma
atitude mais moderada: Um dia tudo estará bem, eis a nossa
esperança. Hoje tudo está bem, eis a ilusão.(2) Mas para ele o
mal nunca se revestirá de qualquer sentido positivo, jamais
premiará o pecado ou será consequência da Queda e é nisto que
pode ser considerado como um moderno desencantado. As Luzes e
a Revolução Francesa não proclamaram somente o apagamento do
pecado original, entraram na história como uma promessa de
felicidade dirigida a toda a humanidade.

*1. Por exemplo, Heinrich Heine: "Fazer descer o Reino à


terra." Pierre Leroux em 1849: "O Paraíso deve vir até à
terra". Ernst Bloch em 1921: "É impossível que no presente não
chegue o tempo do Reino". André Breton: "HSois vós, Nadja? é
verdade que o além, todo o além se encontra nesta vida?" Paul
Eluard: "Existe um outro mundo mas todo ele se encontra
neste." E Albert Camus: "O meu Reino é inteiramente deste
mundo."
2. Sobre as posições de Voltaire em relação ao mal ver a
obra muito completa de Bronislaw Bazcko, Job mon ami, Essais,
Gallimard, 1997, bem como Ernst Cassirer, La Philosophie des
Lumières, Agora, pp. 207-208.

32
Esta não é mais que uma quimera metafísica, uma improvável
esperança a procurar através dos complexos arcanos da
salvação, a felicidade existe aqui e agora, agora ou nunca.
Alteração fundadora, mudança do eixo da história: Bentham, o
pai inglês do utilitarismo, exige que seja promovida a máxima
felicidade para o máximo de gente, Adam Smith vê no desejo dos
homens de embelezarem a sua condição um sinal divino, Locke
recomenda que se fuja do uneasiness, do desconforto. Em
resumo, espalha-se por todo o lado a convicção que é razoável
desejar a instauração do bem-estar sobre a terra. Maravilhosa
confiança na perfeição do homem, na sua capacidade de se
libertar da eterna repetição da infelicidade, na sua vontade
de criar o novo, isto é, algo de melhor. Confiança nos poderes
cruzados da ciência, da instrução e do comércio para fazerem
surgir a idade de ouro do género humano, cuja chegada foi
prevista no prazo de algumas gerações pelo utopista
Saint-Simon em 1814 (aqui fiel à inspiração de Francis Bacon
que desde o século XVII alimentava o projecto de uma cidade
ideal, a Nova Atlântida, governada por sábios). Certeza de que
a humanidade é a única responsável pelos males que a si
própria inflige e que só ela os pode emendar, corrigir sem
recurso ao Grande Relojoeiro ou a uma Igreja que dispõe para o
além. Sentimento entusiasmante de uma alvorada messiânica, de
um recomeço dos tempos que poderão transformar este vale de
lágrimas num vale de rosas. A história deixou de empestar,
aromatiza, o mundo tornado pátria comum cujo futuro é tão
importante como a preocupação com o destino pessoal depois da
morte. Dado que a separação entre a humanidade e o seu Criador
não pára de se aprofundar desde a Idade Média, o homem só pode
contar com as suas próprias forças no sentido de organizar a
vida terrestre. Toda a existência deve ser a demonstração do
bem, segundo uma frase de Dupont de Nemours ao parodiar o
optimismo de Leibnitz.
A esperança da felicidade triunfa sobre o declínio da ideia
da salvação e da ideia de grandeza, mediante uma dupla recusa
da religião e do heroísmo feudal: preferimos ser felizes a ser
sublimes ou salvos. O que mudou a partir da Renascença é a
permanência na terra, no seguimento dos progressos materiais e
técnicos, ter deixado de ser considerada como uma penitência
ou um fardo. Capaz de fazer recuar a miséria e de conduzir o
seu destino, o homem sente atenuar-se o desgosto que sente por
si próprio. Por todo o lado Ho amargo sabor da vida (Huizinga)
que cresce na Europa a partir de meados da Idade Média ordena
que seja lançado um novo olhar, pleno de benevolência, sobre o
nosso habitat, por todo o lado se faz luz sobre a reabilitação
do instinto, "uma conquista do agradável" (Paul Bénichou). O
mundo pode ser um jardim fértil, deixando para sempre de ser
uma tapada estéril, os prazeres são reais e a dor por si só
não encerra o conjunto da experiência humana (o que é disto
testemunha toda a tradição utopista desde Thomas Morus e
Campanella).

33
Sobretudo é necessária a reconciliação com o corpo: deixar de
nele ver o efémero e desgostante revestimento da alma do qual
seria preciso que desconfiássemos e nos desprendêssemos: no
futuro será um amigo, o nosso único esquife sobre a terra, o
nosso mais fiel companheiro que convém envolver, cuidar,
tratar através de toda a espécie de leis da medicina e da
higiene quando a religião prega a sua submissão, desprezo,
esquecimento. Triunfo do conforto: apoteose do estofo, do
acolchoado, do cómodo de tudo o que amortece os choques,
garantidas as nossas comodidades.
Rapidamente as sociedades ocidentais ousaram, contra as suas
próprias tradições, dar como resposta à dor não as consolações
do além mas a melhoria deste mundo. Gesto de uma audácia
inaudita que a Declaração da Independência americana se
apressa a inscrever neste estatuto, ao assegurar que a vida, a
liberdade e procura da felicidade fazem parte dos inalienáveis
direitos do homem. A humanidade deixa de ter contas a prestar
a não ser a si mesma. Como exprime Kant com eloquência,
depende de nós que o presente cumpra a sua promessa de futuro,
promessa que radica menos num prescritivo que num sedutivo,
isto é, uma remodelação do nosso planeta, segundo os desejos
humanos(3). A ideia de progresso suplanta a de eternidade, o
futuro torna-se o refúgio da esperança, o local de
reconciliação do homem consigo próprio. Nele convergem as
felicidades individuais e colectivas, particularmente no
utilitarismo anglo-saxónico que pretende colocar a felicidade
ao serviço da totalidade do género humano, a fim de escapar às
acusações de imoralidade de que era objecto. A nele fazer fé,
a acção justa seria sempre associada ao prazer, a acção
injusta à pena. A humanidade está portanto em peregrinação
constante em direcção ao Bem, podendo por vezes o progresso
moral ser interrompido, mas jamais rompido (Kant). O tempo
humano está prenhe de uma germinação feliz, tudo se torna
possível nele compreendido o que ainda ontem era inconcebível
e é bem esta convicção nova que anima a aspiração a mais
justiça e igualdade. A tenebrosa noite medieval parece-nos
mais que nunca um passado. Para os mais exaltados, por exemplo
um Condorcet, a felicidade é muito simplesmente fatal, é
inerente à marcha triunfal do espírito humano, por seu lado
irreversível e infalível. Um só instante, escreve a propósito
da Revolução Francesa, colocou um século de distância entre o
homem de hoje e o de amanhã. Não se pode deixar de querer a
sua felicidade: é uma lei natural da alma humana idêntica às
leis da matéria no mundo físico, é a réplica moral da
gravitação universal.

*3. Immanuel Kant, Théorie et Pratiques, Garnier-Flammarion,


pp. 34-35.

34

As ambivalências do éden

Mas a terra prometida do futuro recua à medida que é


entrevista e que se assemelha estranhamente ao além cristão.
Evapora-se cada vez que a pretendemos agarrar, desilude os que
dela se aproximam. Daí os equívocos da ideia de progresso:
convite ao esforço, à coragem, esperança em alcançar lá onde
gerações anteriores fracassaram, mas igualmente defesa da
infelicidade presente em nome de um embelezamento adiado por
longínquos encantadores. Amanhã retorna a eterna categoria do
sacrifício e o optimismo histórico cede o passo a uma
interminável purgação. O Éden é sempre adiado. E a posteridade
laica da dor cristã será fértil: hegeliana que vê nos
tormentos sofridos pelos povos no decurso do tempo as etapas
necessárias do Espírito que são necessárias percorrer para que
se cumpra; marxista que celebra na violência o parto da
História e prega o desapossamento das classes exploradoras
para alcançar a edificação de uma sociedade perfeita;
nietzscheniana que exalta a crueldade e o mal como meios para
seleccionar os mais fortes e de melhorar a espécie humana; e
em geral todas as ideologias que determinam a imolação da
parte em benefício do todo. Outras tantas doutrinas para quem
o mal é um momento do bem e que encontram nos tormentos mais
impressionantes uma secreta razão de ser. A partir daí não
importa que calamidade se pode justificar quando ocorre na
economia geral do universo, cada destruição prepara uma
reconstrução posterior e a História é a dos erros que a pouco
e pouco se tornam verdades. Dissipados os pesadelos: os piores
horrores que são infligidos aos homens concorrem
necessariamente para o desenvolvimento de todos. A este
respeito o grito de Hegel: Se por acaso existisse alguma coisa
que o conceito fosse incapaz de assimilar e de resolver, então
seria necessário nela ver a maior cisão, a maior
infelicidade(4), vale para toda a modernidade. Quando a
angústia campeia, todas as explicações e todos os sofismas são
dispensáveis, a pretensão de identificar o real com o racional
é ridicularizada. Em relação ao sofrimento, os Modernos,
quaisquer que sejam, não são menos delirantes que os seus
religiosos antepassados. É que ele inflige ao seu orgulho um
severo desmentido: o da omnipotência. E sabemos que, por
exemplo, em França foi necessário esperar pelos derradeiros
anos do século xx para os médicos serem obrigados a minorar as
dores dos doentes em fase terminal (e a reconhecer a dos
recém-nascidos) quando até ali se contentavam em as minimizar,
em lhes tratar os sintomas evidentes. Mas as argúcias
extraordinárias dos filósofos, dos ideólogos ou dos poderes,

*4. Hegel, La Raison dans l'Histoire, 10/18, introdução de


Kostas Papaioannou, p. 212. (Edição portuguesa: A Razão na
História: Introdução à Filosofia da História Universal,
tradução de Artur Morão, Lisboa, 1995, Edições 70, Colecção
Textos filosóficos. )

35
levadas a cabo para legitimar a infelicidade, esbarram diante
deste facto incontornável: as sociedades democráticas
caracterizam-se por uma alergia crescente ao sofrimento. Que
este perdure ou se multiplique é motivo de escândalo para nós
quando já podemos recorrer mais a Deus para nos consolar. Por
esta razão as Luzes engendraram um certo número de
contradições das quais ainda hoje não saímos.
As exigências morais do cristianismo não pediam para ser
traduzidas aqui em baixo senão de forma embrionária. Neste
mundo não existia mais que imperfeição e mediocridade, a
esperança na redenção era atirada para o além. Para as
criaturas normais a partilha da maldade, do egoísmo, para os
justos e para os santos a obrigação de testemunharem de uma
forma diversa, de prodigalizarem amor e caridade sem conta.
Por outras palavras, as religiões deterão sempre sobre as
ideologias seculares uma vantagem constitutiva: a inutilidade
de fazer prova. As promessas que nos fazem não pertencem à
escala humana ou temporal, ao contrário dos nossos ideais
terrenos que se devem curvar perante a lei da verificação. É
por isto mesmo que o comunismo morreu, do embate fulminante
entre as maravilhas anunciadas e a ignomínia que produziu. Não
é suficiente proclamar o paraíso sobre a terra, é também
preciso materializá-lo sob a forma de algo melhor, de acordo
com o risco sempre possível de decepcionar as expectativas.
A esta primeira contrariedade junta-se uma outra. A religião
desencoraja as representações demasiado exactas do Paraíso:
esse lugar de delícias absolutas onde deixam de existir fome
ou sede, maldade ou tempo, onde os corpos ressuscitarão
dotados de uma eterna juventude no meio da corte
resplandescente dos anjos e dos santos, não poderia dar lugar
a uma figuração demasiado precisa. A Igreja, ao contrário das
seitas milenaristas, interpretou sempre os textos
escatológicos como alegorias; sabedoria religiosa e que vale
para todos os monoteísmos: a presença divina situa-se para lá
de toda a imaginação humana. Constitui um somatório de
encantamentos, uma visão beatífica, elevados a um grau de
incandescência do qual não fazemos ideia nenhuma. Quem pudesse
olhar Deus de frente seria de imediato fulminado: Ele é por
natureza invisível, irrepresentável, inconcebível. Não se pode
dizer aquilo que Ele é, somente aquilo que não é, só falar
pela negação (Dinis, o Areopagita).
A força da ideia de salvação é viver um êxtase inefáveljunto
do Senhor. O pensamento religioso tem por estrita condição que
a salvação não deve em caso algum ocorrer(5), enquanto a visão
laica da felicidade tem por exigência que ela ocorra o mais
rapidamente possível. É a desgraça do mundo profano não
tolerar mais que o vago e os subterfúgios.

*5. Clément Rosset, 1: Objet singulier, Minuit, p.17.

36
Existe talvez a este respeito alguma sabedoria na ideia de
progresso, no reconhecimento tácito que o instante presente
não esgota todas as aprovações possíveis. A desconfiança que o
Paraíso, se descesse à terra, nos pareceria talvez uma
eternidade de aborrecimento, o desejo tácito de jamais ver os
nossos votos completamente realizados pelo medo da desilusão,
explicam também a sedução pelo progresso: possibilidade dada
ao tempo de fazer amadurecer novos prazeres, renovando
completamente os antigos. Outros objectos do desejo cintilam
no futuro, graças aos quais, contrariamente ao célebre
provérbio, a felicidade pode ter uma história. Ela resume-se à
forma como em cada época, cada sociedade desenha a sua visão
do desejável e separa o agradável do intolerável. A felicidade
releva da fruição imediata, enquanto esperança de um projecto
capaz de revelar novas fontes de alegria, novas perfeições.

Perseverança da dor

Quando o fim da vida deixa de ser o dever para passar a


ser o bem-estar, a menor contrariedade fere-nos como uma
afronta. No século XVII, tal como hoje, a persistência do
sofrimento, essa inesgotável lepra da espécie humana,
permanece a obscenidade absoluta. Jamais o cristianismo, na
sua prudência, se propôs erradicar da terra o mal: ambição
demente foi a dos pelagianos e que relevava da idolatria.
Pascal bem qualificou de louca essa vontade do homem de
procurar por ele mesmo o remédio para as suas próprias
misérias. Ora, as Luzes acreditam na regeneração da espécie
humana pelos esforços conjugados do saber, da indústria e da
razão. Nenhum optimismo desabrido nesta crença mas uma mistura
bem doseada de cálculo e de benevolência: é possível chegar ao
fim de todas as infelicidades que enlutam a espécie humana.
Questão de tempo e de paciência. Mas a dor, no seu infatigável
retorno, desmente essa ilusão de uma racionalização perfeita
do mundo. Compete então ao homem, privado do socorro da
Providência, eliminá-la na medida das suas possibilidades;
responsabilidade tão exaltante quanto esmagadora. Existia um
conforto proporcionado pelo pecado original, um optimismo
desse inferno íntimo que todos carregamos dentro de nós:
perde-se na noite dos tempos, partilha-o com o outro e
desonera o indivíduo de um peso que acabrunha por inteiro o
género humano. Por fim, nenhuma tragédia acontece com ele: nas
piores atrocidades da história acaba por confirmar o pecado
primitivo e a necessidade de expiação.
Tudo se altera quando o mal se manifesta sobre o fundo da
crença na bondade humana: torna-se então num fracasso, numa
heresia. Eis-nos então contabilistas de cada infracção ou
falta, culpados por desmoralizar a bela opinião que a espécie
humana tem de si mesma.

37
Esboroamento de pânico! E ainda que alguns venham tentar
acabar de um só golpe com a infelicidade como os
revolucionários ou a pouco e pouco como os reformadores, nasce
a suspeita que uma tal empresa é talvez ilusória e que a
infelicidade acompanhará sempre a experiência humana como uma
sombra projectada. Antes mesmo da Revolução Francesa ter
selado as núpcias da virtude com o patíbulo e não ter
infligido um desmentido ao sonho numa sociedade ideal, todo o
século provou a difícil conquista da felicidade. Quando se
acreditava que a conta tinha sido feita de trás para a frente,
de se ter apagado a iniquidade, voltava a cair-se nos mesmos
trilhos. O velho mundo decididamente não queria morrer. Mesmo
libertado dos preconceitos e da ignorância, o espírito humano
registava sempre uma clivagem entre os valores e os factos.
No entanto, privado dos seus álibis religiosos, o sofrimento
deixa de ter significado, cobre-nos como um terrível conjunto
de indignidades sem que saibamos que fazer. Já não se explica,
constata-se. Torna-se no inimigo a abater pois desafia todas
as nossas pretensões em estabelecer uma ordem racional sobre a
terra. Ontem era gerador da redenção, agora será gerador da
reparação. Mas por um estranho paradoxo do qual retiramos as
consequências, quanto mais o perseguimos mais prolifera, mais
se multiplica. Tudo o que resiste ao claro poder do
entendimento, à satisfação dos sentidos, a propagação do
progresso toma então o nome de sofrimento: a proclamada
sociedade da felicidade torna-se a pouco e pouco uma sociedade
dominada pela angústia, espartilhada pelo medo da morte, da
doença do envelhecimento. Atrás de uma máscara sorridente,
espalha por todo o lado o odor irrespirável do desastre.
Enfim, mal liberto do pelourinho moralizador, o prazer
descobre a sua fragilidade e depara-se-lhe um outro obstáculo
maior: o tédio. Não é suficiente varrer tabus e crenças para
fruir com toda a serenidade. A felicidade responde a uma
economia, a cálculos, a pesagens, tem tanta necessidade de
variações como de contrastes. A satisfação é-lhe tão fatal
como o impedimento. Aí ainda Voltaire, simultaneamente
pioneiro e crítico, parece tudo ter dito. O homem, escreve em
Cândido(*), está dividido entre as convulsões da inquietude e
a letargia do aborrecimento. E Júlia em A Nova Heloísa vai
mais longe: Por todo o lado só vejo motivos de contentamento e
eu não estou contente [...] sou demasiado feliz e aborreço-me
(VI Parte, VIII Carta). Propostas escandalosas que põem em
questão a euforia oficial sem de alguma forma a recusar:

(*). Edição portuguesa: tradução de Maria Isabel Gonçalves


Tomás, Mem Martins, Publicações Europa-América, Colecção
Livros de Bolso Europa-América. (N. do T.)

38
a felicidade é delicada não porque sucumba sob os pesos das
proibições mas porque se esgota em si mesma desde que se lhe
dê livre curso. E é a partir do século XVIII que a felicidade
e a vacuidade caminharão de mãos dadas (segundo um tandem que
a Antiguidade já tinha associado).
Rapidamente e logo que levada à pia baptismal, à felicidade
deparam-se-lhe dois obstáculos: dilui-se na vida comum e
atravessa em todos os sentidos a dor persistente. Sobre certos
aspectos as Luzes destinaram para si mesmas um fim
desmesurado: não desmerecer do cristianismo naquilo que ele
tem de melhor. Furtar às religiões as suas prerrogativas para
fazer melhor que elas, tal foi de resto o projecto da
modernidade. E as grandes ideologias dos dois últimos séculos
(marxismo, socialismo, fascismo, liberalismo) talvez não
tenham sido mais que substitutos terrestres das grandes
confissões, a fim de conceder à infelicidade humana um sentido
mínimo. Sem o que ela se tornaria propriamente insuportável. A
modernidade permanece então dominada por aquilo que ela
própria pretende ter ultrapassado. O que devia ter sido
abandonado, deixado para trás, volta a obcecar as gerações
presentes sob a forma de remorso, de nostalgia. Esta é a razão
por que, como dizia na sua genialidade Chesterton, o mundo
contemporâneo está cheio de ideias cristãs tornadas tolas. A
felicidade é uma dessas ideias. Pelo menos o século XVIII não
foi o século do bem-estar arrogante mas do bem-estar frágil,
da sensibilidade sempre viva que se comove por não reencontrar
no real as expectativas que ali havia colocado. O século xx
não terá esta prudência.

Capítulo III

As disciplinas da bem-aventurança

"Aqui, somos felizes."


Palavra de ordem castrista em Cuba.

"Castorama, parceiro da felicidade."


Publicidade francesa.

"O dalai-lama é feliz e respira felicidade."


Sua Santidade o dalai-lama e Howard Cutler,
L'Art du bonheur, Robert Laffont, 1999, p. 27.

"Quando nos levantamos pela manhã, temos a possibilidade


de escolher entre ficar de bom ou de mau humor. A escolha
permanece sempre. Lincoln dizia que as pessoas podem ser tão
felizes-infelizes consoante o decidam. À força de repetir:
"tudo vai maravilhosamente bem, a vida é bela, optei pela
felicidade". Tornar-se no construtor da sua própria
felicidade, constituir se no dever de ser feliz. Elaborar uma
lista de pensamentos positivos e felizes e repeti-los várias
vezes ao dia. Norman Vincent Peale, La Puissance de la pensée
positive, Edition Voie positive, Marabout, tradução francesa,
1990.
Em 1929, Freud quando publica Malaise dans la civilisation
declara a felicidade possível: ela é a parte sempre crescente
dos desejos que o indivíduo deve abandonar para viver em
sociedade, edificando-se toda a cultura sobre a renúncia aos
instintos. E dado que a infelicidade nos ameaça por todos os
lados, no nosso corpo, na natureza, nas nossas relações com os
outros, Freud daí retira a seguinte conclusão: "De forma
alguma entrou no plano da Criação que o homem seja feliz.
Aquilo a que chamamos felicidade, no sentido mais restrito,

40
resulta antes de uma satisfação passageira das necessidades,
ao ter atingido uma alta tensão que só é possível acontecer,
dada a sua natureza, sob a forma de fenómeno ocasional."(1)
Sendo quimérica para o pai da psicanálise, a felicidade
tornou-se quase obrigatória mal cinquenta anos eram passados.
Ocorreu entretanto uma dupla revolução. Por um lado, o
capitalismo passou de um sistema de produção baseado na
poupança e no trabalho para o consumo que pressupõe despesa e
esbanjamento. Nova estratégia que integra o prazer em vez de o
excluir, apaga o antagonismo entre a máquina económica e as
nossas pulsões, tornando estas últimas o próprio motor do
desenvolvimento. Mas sobretudo o indivíduo ocidental
emancipou-se da inútil figura da colectividade, da primeira
idade autoritária das democracias, para adquirir um pleno
estatuto de autonomia. Sendo no entanto "livre", não tem mais
escolha: desaparecendo os obstáculos que existiam no caminho
que conduz ao Éden, é ucondenado de qualquer das formas a ser
feliz ou, para dizer de outra forma, só se pode culpar a si
mesmo se não o conseguir.
Portanto, a ideia de felicidade conhece no século xx dois
destinos: ainda que nos países democráticos ela se traduza num
apetite pelos prazeres desenfreados - mal são decorridos
quinze anos entre a libertação de Auschwitz e os primeiros
faustos do consumismo europeu e americano -, no entanto, no
universo comunista, ela destrói-se no regime da
bem-aventurança a todos imposto. Quantos ossários foram
cavados em nome da vontade de fazer o Bem, de tornar os homens
melhores contra a sua vontade? Posta ao serviço de uma visão
política, a felicidade constituiu um infalível instrumento de
morte. Face às radiosas cidades de amanhã, nenhum sacrifício,
nenhuma depuração da vérmina humana foram suficientemente
grandes. O idílio prometido tornou-se aterrador.
Não é desta variante totalitária bem conhecida que iremos
aqui tratar nem da coerção do tipo Orwell e muito menos da
engorda compulsiva emocional imaginada por Huxley (ainda que
muitos dos traços das nossas sociedades evoquem o Admírável
Mundo Novo. Estudaremos antes um outro dispositivo próprio da
era individualista que ressalta da sua própria construção como
uma tarefa inacabada. Como se a ordem, tendo deixado de ser
utilizada a linguagem legal, do esforço tivesse decidido
mimar-nos, pôr-se ao nosso serviço; como se uma espécie de
anjo acompanhasse cada um de nós e lhe soprasse na orelha:

*1. Sigmund Freud, Malaise dans la civilisation, PUF p. 20.


(*). Edição portuguesa: tradução de Mário Henrique Leiria,
Lisboa, Livros do Brasil; ou 1984 (edição portuguesa: tradução
de L. Morais, prefácio de José Pacheco Pereira, Lisboa, 1984,
Moraes Editores, Colecção Literatura). (N. do T.)

41
acima de tudo não te esqueças de ser feliz. As
contra-utopias insurgir-se-iam contra um mundo demasiado
perfeito, trabalhando como um relógio; apesar disso existe um
relógio que nos acompanha.

Os encantamentos voluntários

Porque mecanismo perverso um direito custosamente


adquirido se tornou numa lei e a proibição de ontem na norma
de hoje? É que toda a nossa religião da felicidade está
animada pela ideia de posse: seremos donos do nosso destino
como dos nossos enlevos, capazes de os edificar e de os
utilizar à vontade. Eis a felicidade colocada ao lado da
técnica e da ciência na lista das explorações prometeicas: nós
deveremos produzi-la, no duplo sentido da palavra, suscitá-la,
torná-la patente. O que testemunha toda uma nebulosa
intelectual no decurso do século agora findo e que de mil
formas repete um credo idêntico: o contentamento é uma questão
de vontade. É, por exemplo, em França que o filósofo Alain,
nas suas Propôs, redigidas entre 1911 e 1925, campeão de
vendas desde a sua publicação, identifica a alegria do
exercício físico e a melancolia com os humores. Contra as
lamentações e a tristeza, é necessário "jurar ser-se feliz" e
ensinar essa arte às crianças. Os homens que tomam o partido
de serem alegres e de nunca se queixarem deveriam ser
recompensados.
Qualquer que seja a situação, agruras de estômago, dia de
chuva, carteira vazia, "é um dever para com os outros ser-se
feliz"(2). Em Alain esta felicidade voluntária releva antes da
arte do comportamento e da boa educação: "é sintoma de boa
educação ser-se alegre" (Marie Curie), não divulgar as suas
desgraças diante dos outros, de fazer boa figura a fim de
manter uma sociabilidade agradável. É por isso que essa
civilidade do agradável presta-se mais à máxima que à
elaboração de um sistema.
É ainda André Gide que em Les Nourritures terrestres (1897)
lança um verdadeiro manifesto da alegria da carne e advoga uma
ética do fervor que privilegia o desejo sobre a saciedade, a
sede sobre a sua satisfação, a disponibilidade sobre a posse.

*2. Alain, Propos sur le bonheur. A expressão "dever de


felicidade" vem de Malebranche que a identifica com o
aperfeiçoamento espiritual e faz da reabilitação do
amor-próprio um dos instrumentos da salvação. É utilizada por
Kant como um imperativo hipotético que prepara o reino da lei
moral: "Garantir a sua própria felicidade é um dever (pelo
menos indirecto) pois o facto de não se estar contente com o
seu estado, de viver pressionado por inúmeras preocupações e
no meio de necessidades não satisfeitas poderia tornar-se
facilmente numa grande tentação para infringir os seus
deveres" (Fondements de la métaphysique des Moeurs - Edição
portuguesa: Fundamentação da Metafísica dos Costumes, tradução
de Fernanda Dinis, Coimbra 1960, Atlântida). Por fim é
adoptada pelos utilitaristas que colocam em primeiro lugar a
obrigação de cada um maximizar as suas potencialidades em nome
do prazer.

42
Mas em Les Nouvelles Nourritures (1935) este sensualista
militante defende o que se virá a tornar num credo da nossa
época: a era da felicidade como direito, palavra de ordem de
uma geração que sobe completamente armada de alegria em
direcção à vida. "Uma soma de felicidade é devida a cada
criatura de acordo com aquilo que a sua alma e os seus
sentimentos suportarem. Quando dela sou privado, estou a ser
roubado".
É enfim a explosão de Maio de 68 e a sua proclamada
libertação de todos os desejos. O movimento foi precedido um
ano antes pelo livro de um sitúacionista, Raoul Vaneigem, que,
no seu Traité de savoir-vivre à l'usage des jeunes
générations(3), conseguia o feito de anunciar e sintetizar o
espírito desse período. Nessa obra, toda ela fervente de
furor, de exaltação, o autor fustiga a subserviência onde
vegeta a humanidade por culpa de uma burguesia moribunda e
mercantil. Contra essa servidão, defende a livre federação dos
subjectivismos que só por si permitirá "a embriaguez dos
possíveis, a vertigem de todas as alegrias à disposição de
todos". A par de um apelo ao crime e ao banho de sangue para
liquidar os exploradores e os organizadores do tédio, ficamos
a dever a Vaneigem alguns dos mais belos slogans de Maio: "Não
queremos um mundo onde a garantia de não morrer de fome se
transforma em certeza de morrer de tédio", ou ainda este grito
patético: "Nascemos para nunca envelhecer, para nunca
morrer".
É pouco dizer que Vaneigem ao reivindicar a herança de Sade,
Fournier, Rimbaud e dos surrealistas exprime uma concepção
voluntarista da existência: a intensidade alcança-se, segundo
ele, mediante um combate sem tréguas entre o espírito de
submissão e as forças da liberdade. Nada de meios termos: é
necessário travar uma dupla batalha contra o escravo que em
nós existe e os múltiplos amos que nos querem subjugar. Ou a
totalidade da vida ou a completa derrota: Infelicidade para
quem a cada renúncia ponha de lado a sua violência e as suas
exigências radicais [... ], a reacção não prepara outra coisa
que não seja a nossa morte total.
Os actores de Maio de 68 e o próprio Vaneigem recusavam com
desgosto a palavra felicidade que cheirava a pieguice
pequeno-burguesa, aos fados idílicos do consumismo, a
psicologia de pacotilha. Como antes deles beatniks e hippies,
protestavam contra uma certa alegria própria dos anos 50
incarnada no sonho americano, uma família unida recolhida à
volta de uma viatura e de uma barraca de subúrbio, a aliança
do casório com o frigorífico sob o sorriso extasiado da
publicidade. Aquilo a que Henry Miller, num texto de rara
violência contra a América, chamou em 1954 o pesadelo
climatizado. Mas por um dos piscares de olhos em que a
História é useira, essa revolta conduzida em nome do desejo
transformar-se-á, por sua vez, num novo dogma da felicidade:

*3. Gallimard, 1967.

43
insurgimo-nos menos contra ele que contra uma definição
demasiado restritiva dos seus atributos. Renovámos assim o seu
conteúdo sem o matarmos e como acontece inúmeras vezes os
principais adversários do sistema revelam-se os seus melhores
aliados...
Mas os anos 60 reactivam também uma ilusão directamente
saída das Luzes: virtude e prazer, moral e instintos podem
conjugar-se para conduzir o homem sem esforço ao Dever(4). A
felicidade e a Lei são compatíveis, segundo crê o optimismo
racionalista do século XVIII. Quem deseja não se deverá sentir
culpado, proclama-se nos anos 60-70, o pecado só tem a sua
origem nas proibições. Tal foi a quimera de um tempo que
considerou todas as inclinações como sendo igualmente
respeitáveis e acreditou na sua convergência harmoniosa.
Então, nenhuma suspeita que uma tal glorificação do capricho
soberano, do desejo inocente que sozinho decide do bem e do
mal pode justificar as piores violências, o que Sade, mais
lúcido que os nossos modernos libertinos, tão bem compreendeu.
Ao que falta acrescentar essa esperança sublime e grotesca
(propagandeada num ou noutro título por Groddeck, Reich ou
Marcuse) segundo a qual o prazer e o orgasmo são não só as
melhores formas para subverter a sociedade como também para
desafiar a morte e a velhice, as quais, como sustenta
Vaneigem, não decorrem de forma nenhuma da natureza mas sim de
um "gigantesco enfeitiçamento social".
O que tem início em Alain e se acentua, para culminar com o
fim do século, é a ideia de que passamos da felicidade como
direito à felicidade como imperativo. Somos os herdeiros
destas concepções, mesmo que não levemos nenhuma delas à
letra, pois elas cristalizaram-se numa mentalidade comum na
qual nos banhamos hoje em dia. Não somente prazer, saúde,
salvação se tornaram sinónimos, dado que o corpo é por isso o
horizonte inultrapassável mas sobretudo torna-se suspeito por
não ser radioso. Reside aqui a transgressão de um tabu que
impõe a cada um desejar a sua máxima realização.
Pode objectar-se que no século XX existiram outras
concepções mais sombrias da vida, o existencialismo, as
filosofias da angústia, sem contar a literatura, que
mantiveram viva uma visão trágica. Mas estas doutrinas foram
todas elas pouco ou muito doutrinas de libertação, da solidão
do homem entregue à sua própria lei, sem deuses. Ora, o nosso
fim de século, no seguimento de uma tendência já observada no
século XIX, pôs a liberdade ao serviço da felicidade e não o
inverso e viu nesta última a apoteose de uma completa
trajectória emancipadora.

*4. Sobre a forma como a lei natural acaba por se confundir


com o imperativo moral, ver Robert Mauzy op. cit, pp.145 e ss.

44
Benjamin Constant já o havia notado e definia a liberdade dos
Modernos como a segurança nos prazeres privados e a
preocupação feroz pela independência individual. Durante muito
tempo opôs-se o ideal de felicidade à norma burguesa do
sucesso; eis essa mesma felicidade tornada um dos ingredientes
do sucesso. Albert Camus podia ainda defender, nos anos 50, o
perdido gosto pelo prazer e as núpcias com o mundo contra a
vulgata estalinista e a hipocrisia francesa oficial. Vinte
anos mais tarde esse mesmo gosto tornou-se um slogan
publicitário. No entanto, redundante privilégio, devo tanto à
felicidade quanto ela me deve a mim. Este direito do qual sou
o principal garante concede-me um poder sobre mim próprio que
me pode exaltar mas que também me pode ser pesado como um
fardo: se o encantamento depende de uma decisão só minha, só
eu sou culpado pelas minhas contrariedades. Ser-me-ia
suficiente então, para estar bem, de o querer, de decretar ou
de programar à minha maneira o meu bem-estar?

(Caixa de Texto)
Prazeres irrefutáveis

Como nasce a crítica de que a sociedade de consumo


conduziu tão rapidamente a partir dos anos 60 ao triunfo do
consumismo? É que as palavras de ordem então lançadas: "Tudo,
já", "Morte ao aborrecimento", "Viver sem tempos mortos e
fruir sem entraves", aplicam-se mais ao domínio do amor e da
vida que ao comércio. Acreditava subverter-se a ordem
estabelecida, favorecia-se de completa boa-fé a propagação do
mercantilismo universal. É na ordem da fome e da sede que tudo
se torna imediatamente acessível quando o coração e o desejo
têm os seus próprios ritmos, as suas intermitências. A
intenção era libertária, o resultado mostrou-se publicitário:
tem menos liberdade a libido que o nosso apetite pelas compras
sem limite, a nossa capacidade de fazer mão baixa sem
restrições sobre todos os bens. Bela imagem do revolucionário
transformado em prospector preferido do capital, no que se
tornaram por fim o movimento operário, o marxismo e a esquerda
radical, capazes de criticar uma falha do sistema e de
permitir a este reformar-se sem custos de maior. Um pouco como
esses hippies que descobriram os altos locais turísticos da
Ásia ou da África ou no Pacífico, trinta anos antes de toda a
gente, quando eram movidos pelo desejo de fugir, de se isolar.
Absurdo criticar o consumo, luxo de crianças mimadas. Ele
tem isto de atraente porquanto proporciona um ideal simples,
inesgotável, acessível a todos desde que se tenha saldo. Não
exige outra formalidade que não seja ter desejo e pagar. Nele
somos empanturrados, saturados como um bebé alimentado à
colher. Seja o que for que se pense, é muito divertido, pois
que, como na moda, adopta-se apaixonadamente o que nos é
proposto como se tivesse sido escolha nossa. Desde Charles
Fourier que o sabemos: não se refuta um prazer com anátemas,
absorve-se, suplanta-se com um maior. O consumismo repugna-vos
como vos repugnam esses bezerros que pisam o chão dos
supermercados e dos grandes armazéns? Inventai outras
alegrias, criai novas tentações! Mas, por favor deixai-vos de
lamúrias!
(Fim da caixa)

45

Uma coerção caridosa

É uma estranha aventura essa da libertação dos costumes e


embora já seja conhecida de cor, não deixamos de a repetir, de
saborear o seu amargo regresso. Durante séculos o corpo foi
reprimido, esmagado em nome da fé ou das conveniências, a
ponto de no Ocidente se ter tornado no símbolo da subversão.
Ora, quando se libertou surge um estranho fenómeno: em lugar
de fruírem com toda a inocência, os homens transferiram a
proibição para o interior do prazer. Este tornado ansioso de
si próprio, ergueu o seu próprio tribunal e condena-se, não
mais em nome de Deus ou do pudor, mas da sua insuficiência:
nunca é demasiado forte, demasiado conforme. Outrora inimigos
irredutíveis, moral e felicidade fundiram-se; é não ser feliz
que hoje em dia é imoral, o Superego instalou-se na cidadela
da Felicidade e governa-a com mão de ferro. Fim da
culpabilidade em benefício de um tormento sem fim. A volúpia
passou de estado de promessa a estado de problema. O ideal da
plenitude sucede ao do constrangimento, o qual pelo seu lado
se torna constrangedor da plenitude(5). Cada um de nós,
responsável pelo seu tónus, pelo seu bom humor, nada mais tem
para renunciar mas antes adaptar-se de acordo com as vias de
um perfeccionismo que rejeita toda a inércia. A ordem deixou
de nos condenar ou de nos privar, indica-nos os caminhos da
realização com uma solicitude absolutamente maternal.
Não devemos tomar esta generosidade por uma libertação.
Trata-se antes de um tipo de coerção caridosa que engendra a
doença para de seguida se esforçar para dela libertar os
seres. As estatísticas que difunde, os modelos que publicita
suscitam uma nova raça de pecadores, não os sibaritas ou os
libertinos, mas os tristes, os desmancha-prazeres, os
depressivos. A felicidade deixa de ser uma oportunidàde que
nos surge, um momento afortunado alcançado sobre a monotonia
dos dias, passa a ser a nossa condição, o nosso destino.
Quando o desejável se torna possível é imediatamente integrado
na categoria do necessário. Incrível rapidez com a qual o
paradisíaco de ontem se torna no banal de hoje. É uma moral
feita de armadilhas que cerca a vida quotidiana e deixa atrás
dela numerosos vencidos e numerosos humilhados. Portanto,
existe uma redefinição do estatuto social que não se encontra
somente do lado da fortuna ou do poder mas também da
aparência: não é suficiente ser-se rico, é preciso também
estar em forma, nova espécie de discriminação ou de exploração
que não deixa de ser menos severa que a do dinheiro.

*5. Segundo uma lógica já estudada em Pascal Bruckner e


Alain Finkielkraut, Le Nouveau désordre amoureux, Seuil, 1977
(Edição portuguesa: A Nova Desordem Amorosa, tradução de Ana
Silva e Brito, Amadora, 1981, Bertrand), e reelaborada
nomeadamente por Jean-Claude Guillebaud em La Tyrannie du
plaisir, Seuil, 1998, que coloca a questão do lugar que ocupa
a proibição numa sociedade moderna.

46
É sempre uma ética do parecer bem na sua pele que nos governa
e que sustenta na sua embriaguez sorridente a publicidade e o
que há para vender.
"Torne-se no seu melhor amigo, ganhe a sua auto-estima,
pense positivo, ouse viver em harmonia", etc.: a quantidade de
livro.s sobre este assunto faz pensar que não é assim tão
fácil. A felicidade não só constitui, com o mercado da
espiritualidade, a maioria dos dias de hoje, como é também e
muito exactamente a nova ordem moral: daí que adepressão
prolifere, que toda a rebelião contra este hedonismo voraz
invoque constantemente a infelicidade e a angústia. Eis que
somos culpados por não estar bem, mal por que devemos
responder perante todos os outros e perante a nossa jurisdição
íntima. Assim essas fabulosas sondagens dignas dos antigos
países do bloco comunista onde as pessoas interrogadas por uma
revista se dizem felizes em 90% dos casos! Ninguém ousaria
confessar que por vezes fica despido do medo de se
desvalorizar socialmente(6). Estranha contradição da doutrina
dos prazeres quando se torna militante, devolve às proibições
a sua força de pressão, contentando-se em lhe inverter o
curso. É preciso transformar a incerta espera do enlevo
numjuramento e numa admoestação a si mesmo, converter a
dificuldade de estar em doçura permanente. Em lugar de admitir
que a felicidade é a arte do indirecto que chega ou não chega
através de golpes secundários, antes nos é proposto como um
objectivo imediatamente acessível, com receitas de ajuda.
Qualquer que seja o método escolhido, psíquico, somático,
químico, espiritual ou informático (existem pessoas que não
véem na Internet outra coisa que não seja uma ferramenta
genial, "um novo Graal", a "realização da democracia
planetária"(7), o pressuposto é o mesmo em todo o lado: "o
contentamento está ao vosso alcance, basta que se lhe dê os
meios para um condicionamento positivo, uma disciplina ética
que vos conduzirá até ele". Formidável inversão da vontade que
tenta instaurar o seu protectorado sobre estados físicos,
sentimentos tradicionalmente estranhos à sua jurisdição.
Afadiga-se na sua vontade de mudar aquilo que não depende dela
(sob pena de não tocar naquilo que pode ser mudado). Não
contente por ter entrado no programa do Estado-Providência e
do consumismo, a felicidade tornou-se também num sistema de
intimidação de todos para cada um do qual somos em simultâneo
vítimas e cúmplices.

*6. Inquérito da Figaro-Magazine, 10 de Novembro de 1998.


7. Ver a este propósito o pertinente livro de Bertrand
Leclair,
L'Industrie de la consolation, Verticales, 1998.
8 O Dalai-Lama, L'Art du bonheur, op. cit., p. 53. "É
necessário construir um mundo onde as crianças estarão
constantemente emersas numa atmosfera positiva ", afirma ele
por outro lado nas suas conversas com Fabien Ouaki, La Vie est
à nous, Presses-Pocket, 1998, p, 145.

47
Terrorismo consubstancial àqueles que o sofrem pois que só têm
uma forma de lhe travar os ataques: envergonhar por sua vez os
outros pelas suas lacunas, pela sua fragilidade.

Saúde, sexualidade, ansiedade

Existem então dois domínios privilegiados do dever de


bem-aventurança: a sexualidade e a saúde, pois quer uma quer
outra medem-se e são objecto de uma atenção continuada.
Eros tem aqui a particularidade de tornar o amor calculável
e submete-o ao poder das matemáticas; na intimidade do quarto
de dormir os amantes passam no exame da felicidade e
interrogam-se: estaremos nós à altura? É a sua sexualidade,
moderno oráculo, que interrogam sobre as provas tangíveis da
sua paixão. Combinações do modelo escolar e gastronómico: a
boa receita conduz a uma boa nota. Das carícias às posições,
das perversões aos estremecimentos, testam o casamento ou a
união, fazem balanços do prazer, rivalizam com outros casais
em demonstrações estridentes, em efusões exibicionistas,
atribuindo a si próprios as classificações de excelente ou de
"satisfaz bem" e procuram assim assegurar-se do estado dos
seus sentimentos. Sempre vigiado pela indecisão, o amor
acredita então ganhar em evidência e em clareza. O prazer
erótico não é somente uma velha audácia que a libertação dos
costumes acabou por vulgarizar: no seio da usura e das
intermitências do coração, ele é a única coisa sobre a qual os
seres podem fazer fé e que lhes permite converter em
quantidades memoráveis as emoções fugitivas que os cruzam. É
assim que pela magia dos números se avalia a sua harmonia, se
verifica o seu bom rendimento amoroso.
Da mesma forma, a obsessão com a saúde tende para uma
medicalização de cada instante da vida em lugar de nos
autorizar uma agradável despreocupação. Isto traduz-se pela
anexação ao domínio terapêutico de tudo o que relevava até aí
da ordem da arte de bem viver: rituais e compromissos
colectivos são convertidos em preocupações, estimados em
função da sua utilidade ou da sua nocividade. Por exemplo, a
alimentação deixa de ser classificada como boa ou má, passando
a ser sã ou malsã. A conformidade importa mais que o sabor, o
calibre mais que o irregular. A mesa deixou de ser o altar das
suculências, um local de partilha e de trocas, para passar a
ser um balcão de farmácia onde se pesam minuciosamente
gorduras e calorias, onde se mastigam conscientemente
alimentos que não são mais que medicamentos. É preciso beber
vinho, não pelo gosto mas para reforçar a elasticidade das
artérias, comer pão de cereais para acelerar o trânsito, etc.

48
O paradoxo é que o país onde triunfa esta ideia fixa
higiénica, os Estados Unidos, seja também o país da má comida
e da obesidade galopante. Pois o importante deixa de ser viver
plenamente o tempo que nos está destinado, fazendo com que
acabe o mais tarde possível: à noção de vida por etapas sucede
a da longevidade.
A duração torna-se um valor canónico mesmo que a tenhamos de
conquistar pelo preço de terríveis privações: como esse
estudante americano que só faz uma refeição por dia para
atingir a idade canónica de 140 anos e confessa, por detrás de
uma silhueta famélica, uma terrível desilusão. Ou esses
fanáticos do prolongamento que ingerem até 80 moléculas
quotidianamente para ultrapassarem a fatídica barreira dos cem
anos. Ganhar tempo: até ali significava prolongar os momentos
disponíveis antes das tarefas pesadas, extenuantes. No
entanto, significa hoje produtividade encarniçada, acumulação
maníaca de anos suplementares arrancados à cronologia. Não se
coloca sequer a questão de negar os extraordinários progressos
realizados sobre esta matéria, ainda que neste domínio seja
menos a vida que se prolonga e mais a terceira idade a
estender-se interminavelmente sob pena de engrossar uma
população de idosos que daria para encher um continente e dar
do Ocidente a imagem de um serviço de geriatria (esta é razão
por que a ideia de juventude é uma ideologia das nações
envelhecidas). Mas as nossas piedosas excursões á Terra
prõmetida da gran saúde(9) nada ficam a dever às mortificações
dos antigos devotos. Ao querer eliminar toda a anomalia, toda
a fraqueza acaba-se por negar o que constitui a principal
virtude da saúde: a indiferença para consigo ou, como dizia
Leriche, o silêncio dos órgãos (mesmo que este último seja
enganador). Já não se usa mais o silício para refrear os
impulsos da carne rebelde mas sim para punir um corpo
imperfeito que não corresponde ao modelo ideal. Consequência
da velha profecia cristã da imortalidade e da ressurreição dos
corpos gloriosos, incorruptíveis, imputrefactos,
imarcescíveis, da qual toda a ficção científica se fez eco. Os
nossos delírios cientistas entroncam directamente na religião,
pelo que impõem cumprimento.
Só um doente pode considerar que a saúde é a felicidade(10).
Para quem é saudável é, nem mais nem menos, que um estado. Ao
fazer equivalê-la à felicidade é o mesmo que dar a entender
que todos nós somos moribundos sem o sabermos, a quem é
preciso que isso seja dito.

*9. Lucien Sfez desmontou muito bem esta nova utopia da


saúde perfeita acrescida da sua ambição bioecológica de
purificar o homem e o planeta e de recriar um novo Adão
tecnológico e perfeito: La Santé parfaite, Seuil, 1995.
(Edição portuguesa: A Saúde Perfeita: Crítica de Uma Nova
Utopia, tradução de Fernanda Oliveira, Lisboa, 1997 Instituto
Piaget, Colecção Epistemologia e Sociedade.)
10. publicidade da revista Santé Magazine, Janeiro de 2000.

49
No entanto, devemos sempre salvar-nos de alguma coisa, da
tensão demasiado alta, de uma digestão mal feita, de uma
tendência para engordar, nunca se é suficientemente magro,
bastante musculado ou bronzeado. O ideal terapêutico torna-se
uma ideia fixa que está sempre presente e que os meios de
comunicação e quem nos rodeia nos lembram incessantemente. Em
nome desta norma, ainda agravada pela medicina preventiva e
pela despistagem genérica, tornamo-nos todos inválidos
potenciais que espreitam com angústia os quilos a mais, o
ritmo cardíaco, a elasticidade da pele. Estranha propensão
para o auto-exame, para a autofustigação que transforma o
corpo, como anteriormente acontecia com o cristianismo, num
local de ameaça latente (Baudrillard). No entanto, tememos
menos as chamas do Inferno que o enfraquecimento, a ruína da
nossa aparência. E dado que a forma é uma manifestação de
eleição, como a fortuna o era para os calvinistas, a
recompensa para os que em prol dela trabalharam,
negligenciar-se torna-se, pelo contrário, sinónimo de
decadência de ser posto de lado. Daí essa comparação frequente
das nossas salas de musculação e dos seus aparelhos com os
instrumentos de tortura da Idade Média: excepto que aqui somos
todos supliciados voluntários. E o body building revela bem
esse sonho da recriação da sua anatomia pelo próprio, com esse
espantoso paradoxo que um excesso de músculos tende a
assemelhar o corpo ao de um esfolado como se o interior se
depositasse sobre a pele, se virasse do avesso como uma luva e
devesse, por todas as veias e tendões visíveis, testemunhar o
ultraje que lhe foi infligido.

O adeus à despreocupação

A saúde impõe-se então em todos os domínios da


existência: já em 1978 em Atlanta, a OMS a tinha definido como
"o bem-estar total, físico, mental e social". Para que tal
aconteça nada deve ser negligenciado, nem mesmo os métodos
espirituais. Reconciliação mágica de todos os valores: "ser
bom, faz bem"(11), a compaixão aumenta a taxa de imunoglobina
A, um anticorpo que ajuda a combater as tensões respiratórias,

*11. "A compaixão que exercito proporciona-me na volta o


bem. É a melhor das protecções, da qual sou o primeiro
beneficiário. Assegura-me paz interior, saúde do corpo, dias
felizes, uma vida longa. Já para não falar das vidas futuras."
[O Dalai-Lama e Jean-Claude Carrière, La Force du boudhisme,
Presses-Pocket, 1998, p.129 (Edição portuguesa: A Força do
Budismo: Viver Melhor no Mundo de Hoje, tradução de Jorge
Pinheiro, Lisboa, 1995, Difusão Cultural, Colecção Oriente:
tradição, arte e saber). Um dos raros livros de entrevistas
com Sua "Santidade" onde o entrevistador ultrapassa de longe o
entrevistado.]
50
aumenta a esperança de vida, atenua a depressão(12); a paz de
espírito atrai a amizade e o dinheiro(13); acreditar em Deus é
excelente para a saúde e os que têm fé conhecem uma
longevidade reforçada, tudo isto cientificamente
verificado(14)! Daí essa procura ilimitada por serviços
médicos, farmacêuticos, estéticos, místicos, a conversão do
medicamento em prótese destinada a melhorar a nossa
satisfação, a travar a degradação dos nossos sentidos, a
atenuar a angústia. Tanta coisa estupidificante perfeitamente
lícita e idêntica ao soma do Admirável Mundo Novo de Huxley,
tal como o Prozac ou a melatonina destinados a regular os
nossos humores, a proteger-nos da adversidade, a manter-nos
jovens até ao fim(15). Com o perigo, inerente aos remédios
miraculosos, de deslegitimar a dor de viver, de marcar a
dificuldade com o selo da enfermidade (é igualmente o risco do
Viagra,

*12. Quando David McClelland, psicólogo em Harvard, mostrou


a um grupo de estudantes um filme sobre o trabalho de Madre
Teresa junto dos doentes e dos pobres de Calcutá, os
estudantes admitiram que o filme tinha despertado neles
sentimentos de compaixão. Após o que a análise das suas
salivas tinha revelado um aumento da taxa de imunoglobina A,
um anticorpo que ajuda a combater as infecções respiratórias.
No quadro de outro inquérito conduzido por James House, do
Centro de Pesquisas da Universidade do Michigan, os
inquiridores puderam concluir que participar regularmente em
missões humanitárias, actuar junto dos outros com calor e
compaixão aumenta de forma acentuada a esperança de vida e
provavelmente a vitalidade em geral. Por outro lado, socorrer
os outros induz um sentimento de felicidade, apazigua o
espírito, atenua a depressão." (O Dalai-Lama e Howard Cutler,
L'Árt du bonheur, op. cit., pp.122-123.)
13. HColoco então a paz de espírito em primeiro lugar: "se
tendes o espírito em paz, seguir-se-á a saúde: os seres
pacíficos atraem os bons companheiros e uma disposição feliz
atrai geralmente o dinheiro. Em todo o caso, aquele ou aquela
que tem o espírito em paz utilizará o dinheiro de forma
correcta." (O Dalai-Lama e Fabien Ouaki, presidente do grupo
de armazéns Tati, La vie est à nous, op. cit., p. 26.)
14. "Recentes inquéritos parecem confirmar que a fé
contribui de forma substancial para a felicidade e atestam que
as pessoas animadas de uma fé, qualquer que seja, se sentem de
uma forma geral mais felizes que os ateus. Segundo estes
estudos, a fé permite enfrentar melhor a idade, períodos
críticos ou acontecimentos traumatizantes. E acresce, as
estatísticas mostram que as famílias onde os indivíduos estão
imbuídos de uma fé poderosa apresentam taxas de delinquência,
alcoolismo, consumo de medicamentos e de fracasso matrimonial
mais baixas. Certos índices tendem mesmo a demonstrar que a fé
beneficia a saúde, mesmo no caso de doenças graves. Centenas
de estudos epidemiológicos atestam uma ligação entre a fé, uma
taxa de mortalidade mais baixa e uma melhor saúde." (O
Dalai-Lama e Howard Cutler, L'Art du bonheur, op. cit., p.
283.)
15. William Regelson, professor da Faculdade de Medicina da
Virgínia e promotor da melatonina, imagina assim o cenário da
felicidade que há-de vir: "É dia do teu aniversário. Adoras o
teu trabalho mas cancelaste as reuniões da tarde para o
poderes festejar. Vaisjogar squash com um amigo, depois irás
encontrar-te com a tua mulher num clube de jazz. Tinhas
reservado a suite Lua-de-mel onde estava instalado um jacuzzi.
No dia seguinte irás para o parque andar de patins em linha
com os bisnetos: este deixa de ser o cenário futurista dos
teus netos para passar a ser o da tua vida." (Citado em Le
Nouvel Observateur, por Sarah Daniel, 1995.)

51
se for mais utilizado para proporcionar bem-estar, que para
minorar os lapsos do desejo em nome de um desempenho erigido
em absoluto, que para negar a fragilidade da carne tanto nos
seus entorpecimentos como nos seus triunfos). Estamos bem
longe da sabedoria clássica que nos prodigalizava os seus
conselhos para nos afastar das nossas confusões quotidianas:
Alain bem multiplicava as recomendações para que se parasse de
tossir, se curassem os soluços, se tirasse um mosquito do
olho, não houvesse aborrecimento durante uma viagem de
comboio. Técnicas eficazes num domínio circunscrito e que de
forma alguma pretendiam abarcar a totalidade de vida. Mas com
a química, tão mais sedutora quando presta enormes e
incontestáveis serviços, são-nos oferecidos "êxtases
positivos" (Thomas De Quincey a propósito do ópio), o supremo
bem sob a forma de um pequeno comprimido.
A saúde tem os seus mártires, os seus pioneiros, os seus
heróis, os seus santos mas, em todos os casos, deve
custar-nos, no duplo sentido da palavra, financeira e
psicologicamente, devido a toda a espécie de controlos, de
vigilâncias. Coloca-nos na posição de nunca esquecermos que
doença e cura cada vez se distinguem menos, sob pena de ser
criada uma sociedade de hipocondríacos, de disfuncionais
permanentes. O único crime que poderemos cometer a seu
respeito, é de nela não pensarmos dia e noite. Desde a
infância que somos ensinados a melhorar as nossas
imperfeições, de nos transformarmos dos pés à cabeça. Este
trabalho para si mesmo, esta interminável inspecção deve
incidir sobre coisas tão fúteis como planificar o bronzeado ou
o emagrecimento na perspectiva das férias, é o equivalente a
uma redenção moral. Pois os nossos professores do bem-estar,
quer sejam religiosos, psicólogos, filósofos ou médicos, são
gentis inquisidores que esgotam em cada um de nós a principal
fonte de alegria: desprendimento, despreocupação, omitir os
pequenos males quotidianos. (É o que chamamos o estado de
graça: esse parênteses de encantamento onde são mantidos à
distância a mole ululante dos tormentos, onde o acaso e a
sorte se coligam para nos inundarem das suas benfeitorias.)
Ainda que na época medieval, cada ser vivo era um morto
adiado, hoje, graças à ciência, a cada um é prometido
tornar-se num imortal em potência; mas que penas, que
sacrifícios para ganhar alguns anos e aceder ao paraíso dos
centenários. Talvez devamos um dia, contra o novo dogma da
imortalidade, reclamar, muito simplesmente, o direito a morrer
como os nossos antepassados.
A angústia reside no medo de não ser capaz de conseguir
manter o seu lugar, de faltar o tónus, com eficácia no seio
deste universo altamente concorrencial. Avaliamo-nos,
punimo-nos com a minúcia de um director espiritual. Há muito
que a felicidade maioritária abandonou os próprios territórios
da frivolidade, do romance cor-de-rosa, da leitura de viagem:

52
tornou-se igualmente dura, exigente, inflexível(16). É uma
mortificação que nos surge sob a máscara da amenidade e da
mansidão e que nos ordena nunca estarmos satisfeitos com a
nossa condição. À fisionomia severa dos antigos pregadores
sucedeu o sorriso omnipresente dos modernos. A terapia pelo
sorriso: é a vantagem incontestável, em termos de mercádo dos
budistas sobre os cristãos. É por isso que os primeiros
progridem tanto junto dos ricos dos países no Norte enquanto
protestantes e católicos convertem talvez mais pobres nos
países tropicais.
Podemos no entanto interrogarmo-nos sobre o sucesso
mediático do dalai-lama, em contraponto com o seu relativo
insucesso político. Ao apostar na popularização do budismo, a
fim de defender a causa tibetana, cometeu talvez um
contra-senso: conseguiu tornar o primeiro numa moda ao
adaptá-lo e ao aligeirá-lo, enquanto a questão do segundo foi
esvaziada. Vindo do exílio, qual Moisés asiático descido do
seu Himalaia para nos revelar as verdades essenciais, portador
de uma história e de uma cultura extraordinárias e de uma
tradição maravilhosa, transformou-se com o tempo num guru
mundano (como antes dele os Rajnesh, os Mahesh-Yogi, como hoje
Deepak Chopra, o mestre pensador das estrelas de
Hollywood(17)), a meio caminho entre o conselheiro
matrimonial, o dietista e o director espiritual,
prodigalizando as suas respostas, pois a tudo responde, com
tolerância e bonomia. Como se, pelo seu lado, se tivesse
tornado num puro produto de marketing numa espécie de
bufarinheiro especializado em sabedoria e serenidade,
pontuando cada uma das suas intervenções com uma risada que se
tornou lenda. Suplemento da alma oficial de um Ocidente
materialista - o coração está antes reservado ao abade Pierre
ou o combate a Madre Teresa - debita amáveis futilidades
exactamente calibradas ao gosto europeu ou americano. O seu
talento próprio terá sido inventar, como Paulo Coelho, um
esperanto espiritual mundial a todos acessível sem barreiras
nem constrangimentos, um discurso camaleónico adaptável a
qualquer auditório. Este campeão do ideal monástico é objecto
de um culto que raia a idolatria sobretudo junto dos
discípulos ocidentais;

*16. Daí que a doença do século seja, como bem observou Jean
Cazeneuve, a crise de ajustamento à felicidade prefabricada, e
não o tédio ou a melancolia mas a úlcera e o enfarte: Bonheur
et civilisation, Gallimard, 1962, p. 202. Igualmente Alain
Ehrenberg demonstrou de forma convincente como depressão,
ansiedade, inibição nascem de uma Fatigue d'étre soi, Odile
Jacob, 1998.
17. Deepak Chopra é o autor, entre outros, de Ageless Body,
Timeless Mind, Harmony Books, Nova Iorque, 1999 (Edição
portuguesa: Corpo sem Idade, Mente sem Fronteiras Lisboa,
Rocco, 1995), onde defende a ideia segundo a qual a
senilidade, a enfermidade e a morte pertencem ao passado,
agora que se abre uma realidade nova centrada na criatividade,
na alegria, na realização e no vigor eterno.

53
estes ardentes e violentos críticos do obscurantismo
judaico-cristão perdem perante ele todo o sentido crítico,
toda a distância, prostrando-se e extasiando-se sem reserva. O
espantoso não é o dalai-lama seduzir - há razão para isso e a
gesta tibetana é tão fabulosa quanto é abjecta a ocupação
chinesa-, mas que sucumba a este sucesso com um júbilo quase
infantil, ávido sempre de mais publicidade, de palanques, de
entrevistas. Estamos bem longe, com este profeta cabotino, da
exigência ética e histórica de um mahatma Gandhi, de um Martin
Luther King, esses grandes apóstolos da não-violência. Ele
veio anunciar o Oriente e nós fizemos um histrião à nossa
imagem. No supermercado da fé, foi alcandorado ao primeiro
lugar destacado, pondo de lado papa, pastores, rabis,
patriarcas, imãs, decididamente demasiado rebarbativos. Sem
querer adivinhar o futuro, não estou muito certo que o budismo
e o povo tibetano tenham muito a ganhar com esta promoção.

(Caixa de Texto)
Os assinantes do azar

"Aqueles que entre duas vias escolhem sempre a pior e


dispõem de um talento inaudito para se atolarem em todos os
vespeiros. Vão de férias? Imediatamente se fazem roubar,
contraem o vírus mais raro que existir na região. Cada dia
festivo, cada dia feriado encontra-os amargos, despeitados
como se sentissem pessoalmente insultados pela alegria
colectiva. Emana deles um engenho tolo que origina que tudo
onde se metem seja mal-sucedido e geram Heles mesmos a sua
própria infelicidade" (Paul Watzlawick) com uma constância e
uma taxa de sucesso dignas de admiração. As suas vidas
assemelham-se rapidamente a um monte de ruínas que os conforta
com a ideia da sua predestinação. Encadeiam os azares com um
automatismo que desperta o riso, um pouco como os doentes que
coleccionam as enfermidades mais atrozes a ponto de se
tornarem eles mesmos numa antologia da morbidez. Artesãos
apaixonados do seu próprio desastre, colocam um refinamento da
descrição do pormenor pungente que releva da joalharia. A sua
morte será tão ridícula como o foram as suas vidas, atroz bem
entendido, mas sem grandeza.
Nevrose do fracasso? Não é muito certo. Pois a infelicidade
crónica visa, como cada um de nós, ser reconhecida; e a
contrariedade é a única assinatura que ela pode apor sobre o
mundo. Adquiriu após árdua luta o direito de dizer mal desta
vida e ela paga-lhe bem! Este pobre diabo só se sente à
vontade na catástrofe: uma boa notícia mergulhá-lo-ia na
confusão. Ao contrário da maioria de nós, que alternamos bons
com maus momentos, a sua constância na amargura enche-o de um
orgulho paradoxal, designa-o como um eleito. É dilacerado
talvez pelo fundo da sua miséria, senta-se num trono
magnífico: o trono dos rejeitados.
(Fim da caixa)

O calvário da euforia

A nova felicidade implacável acumula duas intimidações:


tem o poder discriminador da norma e a potência imprevisível
da graça.

54
É uma bênção tanto mais dissimulada quanto nunca é segura e os
seus titulares provisórios - os belos, os felizes, os
afortunados - podem a todo o tempo dela ser desapossados. A
pequena minoria dos aceites opõe-se à grande massa dos
reprovados, dos hereges estigmatizados como tal. Injunção
tanto mais feroz quanto aproximativa e que se desnuda à medida
que dela nos aproximamos. É preciso sofrer para ostentar o
sorriso carnívoro dos vencedores que bem penaram para o
alcançar, receando serem, por sua vez, destronados. É no
entanto o papel da imprensa pretensamente frívola, masculina
ou feminina, lembrar-nos semana após semana esta receita. A um
tempo recreativa, educativa e coerciva ou para utilizar a sua
linguagem prática, "bem-disposta e simpática", sustenta em
permanência duas coisas contraditórias:
que a beleza, a forma, o prazer estão ao alcance de todos se
estivermos dispostos a pagar o preço. Mas aqueles que os
negligenciarem serão os únicos responsáveis pelo seu
envelhecimento, pela sua fealdade, pela sua falta de prazer.
Vertente democrática: ninguém é mais condenado pelos seus
defeitos físicos, a natureza deixa de ser uma fatalidade.
Vertente punitiva: nunca estejais satisfeitos, podeis fazer
melhor, o menor relaxamento precipitar-vos-á no inferno dos
imbecis, dos barrigudos, dos frígidos(18). Nesta imprensa dita
ligeira, ao ser terrivelmente severa, fervilham página após
página os imperativos categóricos discretos mas pesados: não
contente em nos oferecer modelos de homens e de mulheres cada
vez maisjovens, mais perfeitos, a todos sugere um contrato
tácito: faz como eu digo e talvez te aproximes desses seres
sublimes que povoam cada número. Actua junto dos medos
realmente naturais, envelhecer, desfear, engordar, e só os
apazigua para melhor os despertar(19).
Dado ter permanecido como soberba matéria de fé (Cícero), a
felicidade podia fazer sonhar, tornar-se no ponto de fuga de
um desejo sempre presente e voraz. Tornada no único horizonte
das nossas democracias, suplantando o trabalho, a vontade e o
esforço, tem necessariamente de cair na agonia.

*18. Assim a capa da revista Biba de Julho de 1999:


"Prioridade ao prazer! Sim, sim, podeis fazer melhor!"
19. Um exemplo entre tantos outros: a revista Mens Health
(Maio Junho de 1999) destinada a um público masculino oferece
as seguintes rubricas: cinco truques para emagrecer com
inteligência, como manter o acto sexual mais de três minutos,
como conservar a sua libido em bom estado, como sair vivo de
um desastre de aviação, sobreviver a uma crise cardíaca, a uma
disputa conjugal, como autodiagnosticar o estado da sua
próstata, fazer amor todos os dias até ao último dia, etc. Sob
o humor dos títulos, é preciso perceber uma lengalengazinha
que se transforma em pesadelo. Acredita-se estarmos a folhear
uma revista do coração mas abrimos um catálogo de potenciais
delitos que fazem permanecer a dúvida sobre todos os
instrumentos do prazer. Aqui o divertimento é inseparável da
reeducação.

55
Que a redenção passe no entanto pelo corpo e não somente pela
alma em nada altera a questão: é necessário que esqueçamos
aquilo que somos; em qualquer idade que se esteja o organismo
é sempre uma mecânica enfraquecida a necessitar de reparação.
Em todos os casos a minha felicidade inquieta-me, envenena a
minha existência com toda a espécie de mandamentos
irrealizáveis. Tal como os altos funcionários da casa real da
Tailândia que devem pedir ao rei, quando se encontram
agonizantes, autorização para poderem morrer no meio de flores
e de um bastão de incenso, nós remetemos para os
apresentadores do circo da bem-aventurança que nos digam se
estamos no bom caminho. O nosso hedonismo, longe de ser um
epicurismo de bom quilate ou um culto de Dioniso orgíaco, está
rodeado pela desgraça e pelo fracasso. Por mais bons alunos
que sejamos, o nosso corpo continua a trair-nos, a idade a
marcar-nos, a doença a tocar-nos a torto e a direito, a
fugir-nos a um ritmo que se subtrai à nossa vigilância ou à
nossa capacidade de decisão. Não somos nem amos nem
possuidores das nossas felicidades, as quais não param de
iludir os encontros que lhes marcamos e surgem quando menos
esperamos. E a determinação de expurgar ou de desinfectar tudo
o que seja fraco, friável no corpo ou no espírito, tristeza,
dor, momentos de fadiga e confusão, acerta sobre a nossa
finitude, sobre essa inércia da espécie humana que não se
deixa manipular como um material. Dito de outra forma, depende
de nós evitar e corrigir certos males. Mas da mesma forma que
a paz não é a simples interrupção da guerra, é antes um estado
positivo (Espinoza), a felicidade não é a ausência da
adversidade, é uma outra qualidade de emoção que não depende
nem da nossa vontade nem da nossa subtileza. Podemos não estar
afligidos mas isso não nos obriga a que nos banhemos nas águas
da euforia. Podemos no meio de uma grande devastação conhecer
momentos de êxtase inaudito.
A felicidade vivida como uma maldição: é a vertente
tenebrosa do sonho americano, da qual todas as obras dão
conta. Trabalhar para recriar o paraíso na terra à margem das
desordens do planeta, "descobri-lo por sua vez impuro,
contaminado e que a terra prometida éjá uma terra eternamente
comprometida" (Jankélévitch). Mas este sonho não murcha a não
ser para melhor renascer das suas próprias cinzas: os que o
atacam reactivam a promessa sem quererem. Portanto as nossas
sociedades colocam na categoria do patológico aquilo que as
outras culturas consideram como normal, a preponderância da
dor, e colocam na categoria de normal, mesmo do necessário, o
que para os outros é excepcional. Não se trata de saber se
somos mais ou menos felizes que os nossos antepassados: a
nossa concepção sobre a coisa variou e mudar de utopias é
mudar os constrangimentos. Mas nós constituímos
provavelmente as primeiras sociedades da história a tornar as
pessoas infelizes por não serem felizes.

56
Belo exemplo da desconcertante facilidade pela qual a busca
de um ideal pode desembocar no seu contrário (Isaiah Berlin).
Nós, os danados da Alegria, os condenados às galés do Prazer,
damos connosco a recriar pequenos infernos com as armas do
paraíso. Ao condenar cada üm de nós a ser encarado sob pena
de morte social, transforma-se o hedonismo em castigo, em
chantagem, colocando-nos sob o jugo de uma felicidade
despótica. Nesta configuração, a infelicidade alcança a
dimensão fantástica do que é negado e portanto subsiste: a da
aparição fantasmagórica, do espectro que aterroriza tanto mais
que não lhe conhecemos o nome. Deixemos aos intoxicados do
Éden os seus dogmas e os seus ditados. Nada mais pretendemos
aqui que desculpabilizar, aligeirar a carga: que a cada um
seja deixada a liberdade de não ser feliz sem que isso seja
causa de vergonha ou sê-lo episodicamente quando bem o
entender. Não decidir, não legislar, não impor. Se não
quisermos que uma aspiração legítima degenere em punição
colectiva, é preciso tratar o impiedoso ídolo da felicidade
com a mais extrema das desenvolturas.

Segunda parte

O reino do tédio(1)
ou a invenção da banalidade

*1. Esta expressão pertence a Victor Segalen.

Capítulo IV

A epopeia agridoce da monotonia


e da tristeza

A palha onde o gado feliz dos homens se deitou.

Mallarmé

Segundo parece existe em Londres um clube muito fechado


que exige dos seus membros, sob pena de demissão, só
proferirem lugares-comuns. Quem tentar elevar a conversa ou
emitir um pensamento, por pouco interessante que seja, é de
imediato excluído. Perigoso exercício que não exige menos
agilidade de espírito que a defesa de uma causa ou um combate
oratório.
Não é dessa obrigação de vulgaridade que aqui vamos tratar,
dessa queda dos seres, das coisas e dos discursos num mundo
comum que os torna a todos iguais(2), mas sim de uma outra
banalidade anterior a toda a divisão entre o banal e o
original e que nasce com o fim do mundo medieval: novo regime
temporal que se caracteriza por colocár o mundo em letra de
forma, pela vitória do profano sobre o sagrado. religião, tal
como se exercitava até à Revolução Francesa, preenchia uma
dupla função: orientava a existência terrestre e ampliava-lhe
os aspectos menos reluzentes. O tempo humano encaminhava-nos
para a eternidade através de um certo número de provações: tal
como esse peregrino de John Bunyan que vai da Cidade da
Destruição até à Cidade Celeste, passando por uma enorme série
de situações críticas como sejam a Feira das Vaidades ou o
Pântano do Desespero (The Pilgrims Progress*2, 1678). A
perspectiva do além permitia resgatar os aspectos mais
obscuros, mais miseráveis da condição humana.

*2. Lucien Jerphagnon consagrou a este fenómemo um livro


muito belo, De la banalité, Vrin, 1965.
* Edição portuguesa: O Peregrino ou a Viagem do Cristão à
Cidade Celestial: debaixo da Forma de Um Sonho, tradução de
Guilherme dos Santos Ferreira, 10.a edição. (N. do T)

60

A menor baixeza era salva, todo o universo nas suas torpezas e


no seu vazio prometia a salvação.

A libertação e o fardo

Desde que o homem se substitui a Deus como fundamento da


lei e que a religião se retira do domínio público para se
tornar um assunto privado, o temporal ganha uma certa
autonomia; deixa de ser simplesmente üma via em direcção ao
eterno e depende de nós e só de nós que chegue a algum lado.
Torna-se então o meio onde o indivíduo se pode desenvolver e
construir-se a si próprio mas é também esse nevoeiro onde se
pode enlear, simultaneamente criador e repetitivo. Esta é a
descoberta moderna: que a vida não é assim tão igual como o
dizem, que algo de novo pode ser inventado mas que também se
repete atrozmente. Ao violento pathos da vida medieval
(Huizinga) sucede a indeterminação de um tempo igualmente
fértil e fastidioso.
Boa e má notícia da retirada divina: oportunidade para a
independência humana se manifestar sem tutela mas também peso
do quotidiano que é preciso transportar à força de braços. Só
Deus, através da contínua criação, permitia às coisas
perseverarem no seu ser e evitava-lhes tornarem a cair no seu
primeiro nada (Santo Agostinho). Uma vez afastado ou reduzido
ao papel de Grande Relojoeiro (e a multiplicação das provas da
Sua existência até Kant ter provado até que ponto esta se
tornou problemática), retira a este universo toda a
justificação. Privados do seu conservador divino, as coisas
revelam a sua gratuidade, a sua tenuidade, o facto de serem o
que são (Hegel). Ao sublime medieval sucede o trivial moderno,
ao grande absoluto o pequeno relativo. Terrível vertigem de um
homem de repente liberto dos seus entraves e que sofre mais de
desorientação que de encantamento; acha-se livre mas pigmeu.
Emancipado do poder feudal que o marcava à nascença e da lei
religiosa que o prendia à preocupação com a salvação, passa a
não conhecer nem predestinação nem destino.
Mas com esta libertação nasceu também a banalidade, quer
dizer, a imanência espontânea e total da própria humanidade.
Mais escapadelas excepto para o futuro, o céu está baixo,
pesado. Eis que somos condenados a só pertencer a este mundo,
com residência fixa aqui em baixo. Nada mais que a terra,
poderemos então dizer parodiando uma fórmula de Paul Morand, e
os seus grandes arredores, o cosmos. Deixando de ser fecundado
pela esperança numa vida melhor, o nosso planeta enrola-se
sobre si mesmo. Com a religião, tratava-se de expiar os
pecados para alcançar a salvação. Doravante trata-se de expiar
o facto de muito simplesmente existir. A questão: como de
acordo com Deus, que foi durante mais de um milénio a
interrogação levantada pela humanidade no Ocidente,

61
é substituída pouco a pouco por uma outra que retoma as
preocupações dos Antigos: como viver simplesmente?
Fim do frente a frente patético com o Mais Alto, dessa
dramaturgia bíblica que continha o par amoroso, a cena
doméstica e a comparação. Deixado entregue a si mesmo, o homem
tem tudo para reaprender: o simples facto de nascer, morrer,
envelhecer torna-se problemático. Nada mais existe que nos
salve do prosaísmo que constituía anteriormente essa modesta
parte da existência que orações, fé, rituais podiam emendar.
Se tivermos de nos libertar, é sim desse quotidiano que nos
envenena; e opomos menos o pecado à graça que o trivial ao
excepcional. Um novo campo de batalha abre-se contra o tempo,
mestre tão incontestado quanto inatingível, como se a espécie
humana não se tivesse libertado do desejo de eternidade a não
ser para perecer sob os golpes da dureza profana.
O aparecimento das Luzes é inseparável não de uma face das
trevas, como muitas vezes já se disse, mas de uma zona
cinzenta que as grandes ideologias com a sua transcendência
horizontal não conseguiram nunca apagar. Daí as duas vias que
o prazer vai tomar: ou a exaltação, a busca enlouquecida da
intensidade, ou a monotonia e a tristeza, a fruição paradoxal
do insípido sob as mil formas que pode revestir. Daí que se
associe modernidade e democracia às noções de mediocridade, de
mesquinhez, de trivialidade, as novas divindádes do
pequeno-burguês universal. Aqui reside a aventüra ocidental:
relegar a crença para o foro íntimo, reivindicar o planeta
como única propriedade do homem, dessacralizá-lo para então
permitir a exploração racional e científica. Mas neste
gigantesco estaleiro, neste extraordinário frenesim de
invenções e de descobertas, a poeira da banalidade que por
todo o lado se insinua gripa os mecanismos, envenena as almas
e os destinos. Impõe-se um heterónimo grotesco que já não é o
de Deus mas o dos retalhos mortos do tempo da usura devida à
repetição dos dias que passam. A banalidade é o "destino dos
homens sem destino", tanto um acaso como uma servidão que nos
cabe na sorte das partilhas. É ela quem concilia aqui em baixo
inferno, paraíso e purgatório, que deixa a cada um a
possibilidade de os conhecer sucessivamente ou simultaneamente
no decurso de uma existência.
Enfim a dramatização cristã da salvação e da perdição corre
paralela à dramatização laica do sucesso e do insucesso. Nada
lhe escapa.
Tudo se joga no ínfimo lapso de tempo de uma vida, sem
remissão, sem a consolação da existência de um outro mundo que
consolaria as nossas infelicidades presentes e passadas. Uma
existência, uma única, tanto mais lancinante por ser única,
onde o temporário tem o carácter de definitivo. Mas quem detém
os critérios da derrota ou da vitória,

62

(Caixa de Texto)
A transfiguração da rotina

O que é um hábito? Uma certa técnica para economizar


energia. Nasce do princípio da habituação: não ter de tudo
refazer em cada nova manhã, gerar reflexos para absorver o
incidental, o particular. Uma vida sem regras seria um
pesadelo, mas ao tornar-se uma segunda natureza poupa-nos a
esforços repetidos. É ela que nos permite dominar uma arte ou
um ofício que de outra forma nos seriam penosos. Agarramo-nos
aos nossos hábitos porque eles imprimem o seu ritmo à nossa
existência, da qual constituem a coluna vertebral. Não são um
mero ronrom de gato, atestam também a nossa fidelidade para
connosco mesmos. Renegá-los é renegar-se a si próprio. A
alquimia não consiste em simplesmente quebrar a rotina mas em
jogar com várias para não ficar dependente de nenhuma. E não
são necessários todos os nossos velhos hábitos para um novo eu
ser inventado. A isto chama-se um renascimento.
Existe mesmo uma volúpia da repetição, cuja manha última
consiste em se apagar, a passar despercebida quando reina
totalmente. Nela, o tempo desaparece à força de retornar ao
seu igual. Obcecado pela originalidade, o Ocidente cultiva uma
visão demasiado negativa da repetição. Existem culturas onde o
regresso a um mesmo tema, como na música árabe ou indiana, a
imobilidade de uma nota indefinidamente suspensa acaba por
degenerar em imperceptíveis diferenças. Essas melodias de
aparência estupidamente monótona são trabalhadas por ínfimas
variações. Fazem concorrência ao silêncio e hipnotizam-nos
através dessa forma singular de avançar ficando no mesmo
sítio.
Em definitivo não é a regularidade que mata a vida mas a
nossa incapacidade de a ampliarmos para uma arte de viver que
espiritualiza o que é da ordem biológica e alcandora o mais
pequeno dos momentos às alturas de uma cerimónia. É talvez
aqui que se distinguem as duas partes do mundo ocidental,
mesmo quando tendem a aproximar-se. Os Americanos, como dignos
utilitaristas, acreditam na felicidade, inscreveram-na na sua
Constituição, e estão dispostos a ensiná-la, a prescrevê-la a
todos. Se bem que os mais cépticos a considerem como sendo os
prazeres e sobretudo a tomem pelo saber viver, a qual, moldada
por uma longa tradição, forma uma espécie de civilidade
colectiva que integra alegrias e tristezas.
Vede a oposição entre o fast food princípio da alimentação
apressada, solitária e barata, e a gastronomia princípio da
degustação convivencial e devoradora de tempo. Duas formas de
apreender o tempo: ou matá-lo, resumindo o que se repete, ou
fazermos dele um aliado, elevando-o ao plano de uma liturgia.
Uma releva de uma sociedade de serviços alicerçáda sobre a
comodidade e o imediatismo, a outra de uma sociedade dos usos
que reconhece no seu património e nos costumes tesouros de
inteligência e de refinamento que seria criminoso esquecer. O
encanto do Velho Mundo é a diversidade das suas culturas que
resistem ao nivelamento planetário. O magnetismo do Novo é o
reflexo da inovação sistemática. Aqui, nascer é ser precedido,
deter o saber de um longo tempo; lá, é anular os seus
antecedentes e saltar para a terra prometida do futuro.
A verdade é que as duas soluções nos tentam e que
gostaríamos de beneficiar dos entendimentos do passado sem os
seus constrangimentos, das vantagens do presente menos o seu
empobrecimento. Filhos de uma herança compósita, oscilamos
entre a nostalgia do ritual e os fantasmas da grande
simplificação.
(Fim da caixa)

63
enuncia as normas oficiais? Como diz Dante,
"perdeu-se a via estreita". E quem nos garantirá que uma vida
falhada, nos termos das regras em vigor, não tenha apesar de
tudo sido uma vida feliz? Em rendilhados se perfila então o
mal-estar, afectação das classes abastadas desde o século
XVII, e que, mediante a sua lenta democratização do
descontentamento se propaga ao maior número (talvez seja isto
o destino da democracia: a todos estender os sofrimentos das
elites mas sem os seus privilégios). Como se rendida a ela
mesma e aos seus poderes toda a existência se transforma numa
tarefa sobre-humana. "É muito perigoso viver, nem que seja um
único dia" (Virginia Woolf, Mrs. Dalloway).

A inércia frenética(3)

Em 1998 uma jovem de Washington criou uma página na


Internet que permitia vê-la evoluir vinte e quatro sobre vinte
e quatro horas na sua residência, de a acompanhar na
realização das tarefas mais simples. Pondo de lado o
exibicionismo de um projecto como este, posteriormente
repetido por muitos outros, verificamos o seguinte: só um
contemporâneo poderia conceber filmar-se dia após dia
sobretudo quando essa pessoa leva uma vida rigorosamente
semelhante à de todos os outros. Existe uma austeridade, um
preconceito neste exercício de restituição mecânica. O vídeo
representa aqui o papel anteriormente desempenhado pelo diário
íntimo; mas ali onde a escrita apesar de tudo discrimina, a
câmara tudo regista, um caixote de lixo que se enche, uma
banheira que se esvazia, uma salada que se prepara, um par de
chinelos, sem esquecer os episódios palpitantes do deitar, do
levantar, do sono. O espantoso no caso, é conceder a menor
importância a esta excessiva rotina, é este sufoco pela
inutilidade. Talvez seja preciso ali ver a vontade de
recuperar literalmente as horas e as semanas, colocando-as sob
o olhar colectivo de milhares de internautas mas também de se
assegurar que estamos completamente abrigados debaixo da mesma
bandeira: a bandeira da vida quotidiana. Como se formássemos a
comunidade virtual daqueles a quem nada acontece, a tribo
digital dos ocorrencialmente diminuídos.
Sobre o quotidiano, podemos afirmar duas coisas
contraditórias: repete-se tanto quanto nos extenua.
Submete-nos pelo retorno incessante das mesmas coisas, fazendo
do amanhã a réplica de hoje que ele mesmo tinha reproduzido
ontem com a constância de um disco riscado.
As suas leis são tão rigorosas como as do cosmos ou as da
gravidade.

*3. Retomo aqui sob uma outra perspectiva um tema tratado em


Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, Au coin de la rue
l'aventure, Seuil, 1979.

64

Conformidade, normalidade, uniformidade: prenhes de já


visto, já vivido, triunfo do incolor e do inodoro, volta sem
fim sobre o idêntico.
Traz consigo um eterno presente sem futuro nem passado como
se todos os dias se tivessem fundido num único. O seu paradoxo
é abolir o tempo a partir do próprio tempo, de ser uma
imitação da eternidade, um pouco como o demonstra Gilles
Lapouge, fábrica de eternidade a partir do movimento
perpétuo(4). Dispõe de um poder de erosão que atenua os
acontecimentos mais terríveis; quando a todos devora.
Portanto, é assim que a maioria das metáforas sobre o
aborrecimento são metáforas de afundamento pantanoso,
entupimento ou aderência; navio preso na armadilha dos gelos e
para sempre congelado segundo Baudelaire e Poe, pântano
adormecido para Flaubert, glaciar estéril que paralisa a ave
nos termos de Mallarmé, quente planície no meio da neve de
Inverno nas palavras de Verlaine, depósito calcário que acaba
por entupir as canalizações segundo Moravia, viscosidade de
uma natureza que tudo nela envisca, segundo Sartre. Durante
muito tempo a província, tanto como categoria geográfica como
metafísica - sobretudo nos países fortemente centralizados
tais como a Rússia ou a França -, representou essa vida de
voos rasantes, essa interminável hibernação que a literatura
se afadiga desde há dois séculos em descrever a vacuidade.
Vida infeliz, cinzenta, eternamente sem chispa onde gerações
inteiras se enclausuram como num mausoléu. Estado vegetativo,
luto antecipado pelo qual se renuncia a tudo o que na terra
existe de doce, agradável, comovente, antes mesmo de nada
conhecer, nada ter amado. A palavra província, como bem
sabemos, ela própria caiu em desuso com o fim do modelo
jacobino e a emergência das regiões.
O quotidiano, espaço de uma sempiterna repetição enfadonha,
torna tudo neutro, abole os contrastes, iguala os conteúdos,
constitui esse poder de indeterminação que mergulha amores,
sentimentos, cóleras, esperanças numa gelatina indiferenciada.
É a razão por que contraria toda a esperança de escolher a
felicidade como se escolhe uma refeição: pois dissolve-a,
digere-a, apaga-lhe o sabor mal se manifesta. É uma máquina
que se mantém por si mesma e que funciona sem alimentação
exterior. Implica uma coragem sobre-humana cumprir os gestos
de todos os dias: levantar, vestir, partir para o trabalho.
Conheço um inglês, dizia Goethe, que se enforcou para não ter
de fazer o nó da gravata todas as manhãs. É à atonia dos
dias, à sua massa compacta que é necessário arrancar uma obra,
um projecto do verdadeiro amor é aquele que corre o risco do
quotidiano, que ousa desafiá-lo e não se deixa rapidamente
vencer, lançár no abismo. O quotidiano é desprovido da
atracção patética por excelência: o suspense.

*4. Gilles Lapouge, Utopies et civilisatíons, Albin Michel,


1.a edição, 1973, pp.110 e 111.

65
Nele nada reveste o carácter de uma espera, de um frémito,
pois nele tudo se repisa até ao infinito. Terrível alternância
da pergunta: o que há de novo? e da resposta: nada a
assinalar! Se o remorso, segundo Baudelaire, é a impotência
para desfazer, pelo contrário a banalidade é a incapacidade
para fazer, para inaugurar o novo, para abrir uma brecha na
massa dos instantes todos iguais. A este mundo caseiro não
falta no entanto sedução para quem deseje deixár-se viver, ser
levado como uma barca por um rio abaixo, delegar nas datas do
calendário, à passágem das estações, o cuidado de nos dirigir.
Fruição sedativa desta rotina: com ela tudo é evidente,
reveste de necessidade o que à primeira vista era gratuito.
Nela funciona-se em regime quase automático. A agonia que a
alguns provocam os domingos ou as férias - esse grande vazio
que é necessário preencher - nasce dessa ruptura momentânea de
uma regra que enfada mais que tranquiliza. Para a maioria,
portanto, a maldição do quotidiano é de nos acompanhar 24
sobre 24 horas quando gostaríamos de o desmontar a nosso
bel-prazer, de lhe debicar algumas migalhas, enfim, de o
colocar numa posição crítica.
"Oh vida, amo-te mas não todos os dias" (Cerroli), admirável
frase que tudo resume.
O quotidiano representa também um nada agitado: esgota-nos
pelas suas contrariedades, desgosta-nos pela sua monotonia.
Nada me acontece, mas esse nada ainda assim é demasiado:
disperso-me em mil tarefas inúteis, formalidades estéreis,
conversas fúteis que não fazem uma vida mas que me extenuam. A
isto que baptizámos de stress, essa corrosão contínua no
interior da letargia que nos vai tasquinhando dia após dia.
Como se a própria insignificância reclamasse o seu tributo.
Sob o calmo torpor das nossas vidas descoloridas desenrola-se
uma guerra dissimulada onde a ansiedade, as preocupações nos
mergulham num estado de tensão sem intenção. Risível
infelicidade que corrói qualquer um de nós e não constitui uma
tragédia. "A vida desaparece pelo cérebro e pelos nervos.
[...] O nervosismo moderno é o grito do organismo que luta
contra o meio" (Rosolino Coella). Os mil contratempos
suportados não chegam a formar um acontecimento mas são
suficientes para nos mergulhar nesse estado moderno por
excelência, a fadiga. Uma fadiga abstracta que não é
consequência de esforços particulares pois brota do simples
facto de viver, fadiga que faremos mal em eliminar pelo
repouso visto que ela é em si filha da rotina. O quotidiano ou
a requisição permanente: a intimação para responder sempre
presente, no emprego, no carro, em família, e mesmo nos nossos
sonhos. E que melhor exemplo desta urgência que o telemóvel:
desde o primeiro toque convida cada um a arremessar-se para
dentro da sua mala, dos seus bolsos para alcançar o
animalzinho bruxuleante e zumbidor. É aliás todo o
desenvolvimento tecnológico que intima os que a ele não aderem
a serem afastados do grupo. É necessário aderir ou perecer,
sobretudo com os adolescentes.

66
Tantos apelos, alistamentos que nos desviam de nós próprios,
nos mobilizam em permanência. Armado do seu bip, do seu
telemóvel, do seu walkman, dos seus auscultadores e em breve
de microchips implantados no cérebro, de ecrãs nos olhos, o
novo homem profético, em ligação com o conjunto do mundo,
desembainha a cada instante a espada qual soldado que trava
uma guerra interminável. Esgotamento e fadiga cerebral, os
nossos vícios modernos, dizia Nietzsche. Em lüta contínua
contra os fantasmas, somos vítimas de penas incalculáveis,
grandes feridos da monotonia. E é impressionante o contraste
entre a morosidade da nossa vida e a velocidade trepidante das
imagens e dos meios de comunicação: o comboio rápido do mundo
acentua o ramerrão da nossa existência. Tanto barulho de
explosões e de dramas e a minha vida é chata. É um estranho
paradoxo que pretende que a banalidade venha até nós com as
características da desordem e que a astenia se imponha sob a
máscara da velocidade e do turbilhão.
O stress é o contrário da aventura, a concentração
necessária para manter o quotidiano na sua estiagem.
Debatemo-nos então com uma "inércia frenética" (Steiner), numa
azáfama que não é fonte de imprevisto. Suportamos todos os
inconvenientes da dispersão sem as belezas do acaso, sem os
benefícios de uma verdadeira surpresa. Estagnamos num estado
mediano que não é nem alegria nem sofrimento:
em vez de sentirmos que o tempo nos molda, vimos correr "os
dias como o sangue de uma ferida" (Louis Guilloux). E por
vezes desejamos que nos aconteça um bom, um verdadeiro
desastre, em vez desse entreacto sem fim, dessa vida estafante
que acaba por não se elevar à categoria de um drama. (E
sabemos que o stress, indispensável força de acção, pode em
excesso fazer baixar as resistências à doença.) "It's better
to burn t an to ãde áway", dizia Neil Young citado por Kurt
Cobain. Mais vale arder que ser consumido em lume brando.
Portanto o próprio lume brando impõe custos exorbitantes.
Chega o momento em que é preciso pagar a dívida, mais não se
fez que peregrinar pelo terno e pelo soporífico, onde uma
imperceptível corrupção gangrena os destinos mais estiolantes.
É esta a razão por que a existência é de uma brevidade
interminável, longa até mais não acabar, sempre demasiado
curta em comparação com as possibilidades.
Dispomos de um excesso de tempo que nos acaba por faltar a
partir do momento em que já passou. O gaguejar desconexo das
nossas vidas proíbe que as tornemos em obras de arte; estas na
sua densidade, na sua unidade escapam àquilo que definimos
como obras humanas: a falta de acabamento, a indeterminação. O
soletrar dos nossos dias que passam é tudo menos estético e
ninguém se pode forjar a si mesmo como um quadro, uma
escultura, uma sinfonia.

67
Nós não somos obras-primas reflexas de um mundo perfeito,
somos antes os artesãos que se devem fabricar num mundo
sinuoso e imprevisível(5). Em resumo, da vida à arte, existe
todo o trabalho da forma: é ela que condensa, expurga, ordena,
apazigua as nossas feridas ao estilizá-las, torna o trágico
amável e suportável o intolerável do fracasso. (Talvez seja
tanto verdadeira felicidade como escritura, a vida procurando
tarde de mais realizar com ela a perfeita junção das palavras,
o sentido exacto de uma expressão.) O quotidiano deixa-nos
então acreditar na coincidência da repetição e do perigo.
Quanto menos coisas acontecem, mais fazemos para que elas não
aconteçam. A mera ansiedade de ser gerada uma necessidade
irreprimível de calma e de distensão. Daí ainfinidade de
terapias sob a égide do zen, do budismo, do ioga, daí o abuso
na América e na Europa de estimulantes e tranquilizantes, de
vitaminas e de psicotrópicos. Mesmo que leve a existência mais
inútil e mais embotante, mesmo assim sinto-me presa de uma
borrasca inaudita que me obriga a refrear todos os assuntos
cessantes. Sarar a azáfama nascida do vazio ainda com mais
vazio, tal é o círculo vicioso que nos aguarda. Quando temos
menos necessidade de quietude nas nossas vidas descoloridas
que de actividades autênticas, de acontecimentos que tenham
sentido e peso, de instantes fulminantes que nos assombrem,
que nos transportem. O tempo, esse grande ladrão, rouba
continuamente; mas uma coisa é ser despojado com magnificência
e envelhecer com a consciência de uma existência plena e rica,
outra é ser roído miseravelmente hora após hora por coisas que
de todo não conhecemos. O inferno dos nossos contemporâneos
chama-se monotonia. O paraíso que procúram a plenitude.
Existem aqueles que viveram e aqueles que duraram.

*5. Segundo a distinção feita por Pierre Aubenque entre o


sábio estóico e o sábio aristotélico: La Prudence chez
Aristote, PUF 1997, pp. 90 e 91.

Capítulo V

Os extremistas da rotina

"A minha vida começou com a extinção. É bizarro mas é


assim. Desde os primeiros minutos, quando tive consciência de
mim, senti que me extinguia."
Ivan Gontcharov Oblomov

Os mártires do fado
É a vida monástica, com a sua organização horária
minuciosa, os seus longos tempos reservados à oração, à
meditação que melhor configura a experiência do tempo profano
que nós conhecemos hoje em dia. O monge tem aqui de
particular, se pertence a uma ordem contemplativa, nada fazer,
no sentido da acção e da produção: está completamente
submetido tal como nós, a esse poder desorganizador que dá
pelo nome de quotidiano, o qual pode alterar a sua fé,
desviá-lo de Deus. Os exercícios espirituais a que cada
comunidade está sujeita têm por fim subtrair os religiosos à
dissipação, a fim de os comprometer na única via da adoração
divina. É provavelmente à sombra silenciosa dos conventos e
dos mosteiros que no Ocidente é inculcada uma minuciosa
organização horária (aproveitada de seguida pelo capitalismo).
Aquele que fugiu do mundo para se consagrar ao Mais Alto vive
segundo um quadro regulado pelo relógio de que os sinos são o
símbolo. O monge não é um madraço nem um parasita, como será
mais tarde acusado por Lutero e Calvino (que substituirão a
oração pelo trabalho, tornando este último num acto quase
religioso), é de algum modo um ser esgotado. Como cada um de
nós, dedica-se a uma tarefa essencial e fútil: matar o tempo,
no caso o tempo comum, para alcançar a eternidade. Dado que é
habitado pela fé, é preciosa cada hora que ele possa entregar
totalmente à glória de Deus. Mas ele duvida ou fraqueja,

70
ei-lo invadido pelo assédio (do grego akedia, que significa
"indiferença" e "sofrimento"), esse terrível mal dos ascetas
que os desvia do Senhor e os enchem de tristeza. Fadiga
daquele que dedicou toda a sua vida à oração e que a oração
abandona, que sofre de um desinteresse súbito em relação à sua
salvação, mal terrível contra o qual a Igreja se confessou
impotente:
Quando essa paixão por uma vez se torna dona da alma de um
monge, gera nele horror pelo local onde habita, desgosto para
com a sua cela, desprezo pelos seus irmãos que com ele vivem
ou que se encontram ausentes e que considera como negligentes
ou pouco espirituais. Torna-o mole e sem coragem para todos os
trabalhos que deve executar no interior da sua cela,
impedindo-o de aí permanecer e de se aplicar na leitura. [...]
Finalmente pensa não poder garantir a sua salvação se
permanecer naquele local, se não partir o mais rápido
possível, abandonando a cela na qual deveria perecer se ainda
nela habitasse.(1)
Em resumo, nessas tebaidas onde não deveriam reinar mais que
o fervor e o recolhimento, o tédio reintroduz o humor,
introduz-se como um nevoeiro que corrompe a casa radiosa,
ataca os corações, definha as energias, submete o imutável aos
assaltos do efémero. Pecado de ter a coragem de enfrentar o
tempo (V Jankélévitch), o monge conhece uma espécie de
apodrecimento interno. Daí a necessidade de o ocupar dia e
noite, de enquadrar o seu espaço mental, de preencher os
períõdos mortos do seu tempo, de o sobrecarregar com tarefas
diversas ao mesmo tempo tão absorventes como inúteis para
evitar que o Maligno nele se introduza para apressar o seu
relaxamento. Nas Confissões, Santo Agostinho recomenda a
prática de hinos e cânticos para evitar que o povo "humilhado"
não secasse de tédio. Mais tarde São Tomás abençoará a
obscuridade das Sagradas Escrituras que obrigam o espírito a
um esforço de atenção e recomendará orações nem demasiado
longas nem demasiado curtas acompanhadas de uma riqueza
gestual a fim de poupar os crentes à prova do bocejo. Mesmo
Deus deve estar a divertir-se. O asceta, o cenobita, o ermita
são historicamente os primeiros mártires da banalidade. Porque
a sua vida está reduzida a uma longa invocação do Ausente, ela
está mais exposta à ociosidade, aos miasmas do tempo comum.
Evitemos tudo confundir e remeter o assédio monástico para a
depressão contemporânea. Ele não impede que o recluso
prefigure nos seus tormentos o tédio,

*1. São João Cassiano, Les Institutions cénobitiques, 420 d.


C., in Madeleine Bouchez, LEnnui Bordas, 1973, p. 34. Ver
também o belo comentário de Jean-Louis Chrétien in De la
fatigue, Minuit, 1996, pp. 92 e ss., assim como Jean
Starobinski, "LHumeur et son changement, Nouvelle Revue de
psychanalyse, Outono 1985, pp. 71 e ss.

71
esse pecado laico por excelência, já presente desde a
Antiguidade e que após a Renascença se torna na doença da alma
moderna (pelo contrário, algumas poucas excepções, São João
Crisóstomo, São Gregório, Cristina de Pisan, foram raras na
Idade Média).

O imperador da vacuidade

Um homem encarna melhor que ninguém essa febre da


inactividade, um autor suíço pouco conhecido, Henri-Frédéric
Amiel (1821-1881), redactor de um monstruoso diário de mais de
dezasseis mil páginas, monumento ao vazio absoluto, relato
desenfreado do nada, pois que cada dia caracteriza-se ali pelo
facto de nele nada acontecer. Este grande erudito, professor
em Genebra, terá passad o seu tempo a sonhar com os livros
que teria podido escrever, com as mulheres Que não desposou.
Para além da abulia vertiginosa, Amiel interessa-nos na
medida em que promove o insignificante a um nível até aí
inigualável. É insignificante neste contexto não o que não fáz
sentido mas aquilo a que ainda não foi dado um sentido.
Decisão de romancear a partir do noves fora nada o que não é
desinteressante. Pois o seu diário é um santuário de papel
dedicado a uma nova divindade: o infinitesimal a que procura
dar corpo, esclarecer. Humores, anedotas, dores de cabeça,
digestões difíceis, dificuldades respiratórias, todas estas
pequenas histórias acabam por compor uma história. "Explorador
esforçado do íntimo, votado à desordem das suas impressões,
aos defeitos da análise microscópica", inventa literalmente um
novo domínio: a promoção da bagatela como epopeia do psiquismo
moderno, do acidentál como forma de acesso ao essenciál, e
cada dia eXtrai a sua colheita de futilidades, sonha com um
reino inferior que a sua pena lentamente faz emergir,
dando-lhe forma. E deste despojamento retira um orgulho
paradoxal.
Quanto menos Amiel abraça o mundo, mais deve escrever. A
medonha taréfa de não existir e de consignar essa ausência, de
ser um eunuco por vocação, um ser sem sexo, vago e timorato
caminha a par com a verificação de que o quotidiano não tem
fundo, não tem limites. A ideia de que cada minuto está
habitado por uma variedade inesgotável de arrebatamentos causa
a vertigem. A sua apetência pateta pela esterilidade recebe
então um reforço inesperado.

*2. Sobre Amiel ver Georges Poulet, Études sur le temps


humain, Presses-Pocket, volume Iv, pp. 266 e ss., e Roland
Jaccard, Amiel, Du Journal intime, Complexe, 1987.

72
Ao fustigar a sua obra, essa floresta de páginas vãs, essa
reclusão garatujante, entristece-se ainda mais por ter falhado
o seu objectivo: o que em cada noite concentra sobre o papel é
ainda pouca coisa em relação àquilo que viveu, que observou.
Estranho destino de uma penúria que se traduz por uma
pletora. Estes diários íntimos são como uma ilusão. Não
encerram neles a décima parte do que penso sobre um assunto
durante meia hora. Este diário está para o dia como a polpa
de um fruto está para o seu aroma. Recolhe os factos, a fibra
grosseira e efémera da vida mas a parte etérea, o pensamento
ou os sentimentos que atravessam a alma evaporam-se então sem
aí deixarem rasto. Transmutação do fracasso de viver em
acontecimento, do deserto em jardim paradisíaco. A sua
logorreia é impotente não por defeito mas por excesso de
matéria. Pois este interminável solilóquio votado à deusa da
infertilidade peca ainda por defeito: o seu erro não é dizer
demasiado, é não dizer bastante. Esta colossal enciclopédia do
nada é ainda uma plaqueta ao lado dos volumes que ele deveria
encher.
Desde logo de que pode viver se este magro filão já o abate
com a sua profusão? (E a modernidade está cheia destes heróis
da extinção e da dormição que, como Oblomov desenvolvem uma
exorbitante força de inércia, erigem a letargia e a preguiça
em valores absolutos.) A sua vida larvar, reduzida à mais
simples expressão, é ainda uma torrente irreprimível e a sua
língua prolifera sem ter necessidade de ser testada pelos
factos. Inversão singular: não se relata o que se viveu,
escreve-se para se persuadir que se está vivo, narra-se para
se exemplificar, sèjã o mínimo, o exíguo, atordoa se com a
inesgotável riqueza que esconde um destino na aparência tão
medíocre. E o diário íntimo, ou antes, o diário do ínfimo,
inventa assim o seu próprio leitor, irmão da banalidade, que
exulta por ver o autor enceleirar as suas irrisórias
colheitas. Sou abissal, eis o que nos diz Amiel, e conheço em
cada ano 365 destinos diferentes (o dia como drama humano
total foi o grande tema do romance do século xx de Joyce a
Virgina Woolf). Fatigado de viver, o nosso professor
genebrino? Mas esta fadiga é sobreactiva, o nosso esgotado
desenvolve tesouros de energia para que nada lhe aconteça. Não
existem limites para a inconsistência, eis aquilo que ele
descobre assombrado quando mergulha no microcosmos vertiginoso
da sua atonia.
Amiel talvez tenha inaugurado uma forma inédita de
felicidade, a não-vida como ascese, nevrose propriamente
moderna, à revelia da histeria romântica. Destino nulo, de uma
tolice desvairada, de um tédio de tal forma denso que alcança
uma dimensão fantástica. Se o herói é aquele que vive na
urgência e não atravessa mais que os parênteses entre duas
explorações, Amiel não conhece outra coisa que não sejam
tempos mortos que bordejam as longas praias da vida. Como se
tivesse elegido a residência nos limbos, príncipe de um reino
ridículo que tem nome de abstenção, de incumprimento.

73
Vida extraordinária à sua maneira, assenta numa hemorragia
permanente e que invoca uma mística de aniquilamento. A nossa
época está também ela cheia destes extremistas da rotina que
impõem curas de banalidade: tais como esses peregrinos de um
estranho rito que ocorre cada ano em França, numa estação de
caminho-de-ferro abandonada, um Congresso de Banalidades ou
esse desenhador holandês que fez votos de não-informação e
lançou em Abril de 1998 uma revista de dezasseis páginas em
branco, com publicação aleatória destinada a deixar no leitor
uma paz imperial. Lá onde a vida social corre e impõe uma
marcha generalizada, estes desertores retardam e colam-se com
um tal entusiasmo à apatia quotidiana que lhe chegam a
agradecer, retirando-a da sua própria armadilha. Existem por
fim duas formas de sermos arrancados à banalidade: seja dela
fugindo, seja desposando tão estreitamente que a afundamos a
partir do interior.

A paixão meteorológica

Amiel não foi somente o primeiro dos adeptos em levar a


nulidade até ao fim, o partidário lunático da demissão: ele
terá inventado (depois de Rousseau e de Maine de Biran) o que
se vai tornar no leitmotiv do seu século e dos seguintes: a
meteorologia no relacionamento com os nossos humores. Outros
antes dele tinham estudado a influência dos climas sobre os
regimes políticos ou descrito a alma como uma substância
atmosférica cujas variações podem ser medidas(3). Vai
sistematizar este tipo de notações. Não existe nenhuma entrada
na sua obra que não se inicie por uma indicação sobre o tempo
que fazia como se fosse necessário consultar o céu para saber
como nos devemos sentir: Sol brilhante tão glorioso como
ontem, Tempo cinzento, o forno da canícula parece já ter
desaparecido, Céu cinzento, frio, triste, sem chispa, sem
amor, corresponde à vida desencantada daquele que não ousa
estender a mão a uma mulher e dizer-lhe: Pela graça de Deus,
não me quereis acompanhar na travessia e ligar-vos a mim por
um voto? É um céu suportável mas que lembra a cor do claustro
e da renúncia, "Um belo sol inunda o meu quarto, a natureza
está em festa, o Outono sorri. Respondo a estes avanços
conforme posso"(4).
A meteorologia, enquanto paixão democrática, nasceu na
passagem do século XVIII para o século XIX quando deixou de
ser uma ciência da previsão, embora útil à vida rural e
marítima, para se tornar numa ciência.

*3. Ver a este propósito o pequeno livro de Pierre Pachet,


Les Baromètres de 1'dme, Hatier 1990, pp. 37-38.
4. Citações extraídas do volume xiI do Journal, L'Âge
d'Homme, Genebra, 1994.

74

(Caixa de Texto)
A utopia do fun

Descendente longínquo da fleuma britânica, parente


próximo do cool, o fun, essa palavra de origem anglo-saxónica
saída do universo do lazer e da infância, não é uma moral do
divertimento e ainda menos um desregramento de todos os
sentidos. Pelo contrário, constitui um sistema de selecção que
permite isolar no seio da vida comum um puro núcleo de prazer
nem demasiado forte nem demasiado fraco que não tem qualquer
consequência negativa e nos impele em direcção a um universo
de sensações agradáveis. Tudo se pode tornar fun, o que
significa que tudo pode ser objecto de uma efervescência
ligeira, o sexo como a castidade, um casamento como uma
viagem, uma religião como um compromisso político desde que
não se saia chamuscado. O fun é portanto uma disciplina da
escolha que constrói discretas anteparas, instaura uma
atmosfera asséptica de onde desfruto o mundo sem lhe conceder
como contrapartida o direito de me magoar, de me punir.
Dissidência discreta que recusa a histeria da vida intensa
como seja a azáfama e não concebe o divertimento a não ser
filtrado, uma vez interposto entre as coisas e nós uma
almofada amortecedora de choques que nos protege da severidade
e da dureza.
A este respeito o fun é contemporâneo do virtual e
testemunha como ele a mesma vontade de desmaterializar o
mundo, de desorganizar as fronteiras do espaço e do tempo. É
um pouco desta dimensão que se encontra nos desportos
deslizantes: o surf que se casa com as ondas para melhor as
fruir, os patins em linha que transformam o asfalto numa longa
fita direita percorrida por sombras de uma elegância
prodigiosa que borboleteiam entre os peões e troçam dos
obstáculos; o free ride de montanha que torna o esquiador numa
ave capaz de dançar no vazio, de sobrevoar as fragas rochosas,
de acariciar o pó da neve. Maravilha destas proezas: apagar o
corpo por meio do corpo, desafiar a gravidade. Universo de
espíritos e de duendes, de atravessadores de paredes para quem
as leis da gravidade deixaram de existir e para quem a matéria
se torna fluida. Não é necessário ter peso, é preciso planar.
Sonho do homem descomprometido e desassombrado que privilegia
a sensação à experiência, a frivolidade sobre o enraizamento.
O real na sua opacidade não é chamado a não ser para melhor
ser iludido. E da mesma forma que é possível cantar um dueto
com Elvis ou participar num filme de Bogan, graças à
tecnologia virtual, o fun mergulha-nos no encantamento de um
conto de fadas: o desejo triunfa nele a todas as provações e
reencontra sem problema a sua satisfação. O universo perdeu a
sua aspereza, ficou reduzido a uma superfície plana, a formas,
a imagens. Podemos então tudo experimentar sob condição que
nada seja importante. Assim é o fun: a utopia de um
aligeiramento total que permite todas as volúpias, evitando
todas as infelicidades da vida, torna-se um jogo pelo qual não
temos qualquer preço a pagar.
(Fim da caixa)

da intimidade, o que quer dizer do humor. Ora o que é


um humor senão uma relação entre o mundo e nós que coloca
frente a frente seres variáveis e uma natureza sempre em
mutação? Quando nos acostumamos às prestidigitações do
irregular, às pequenas variações, a meteorologia constitui uma
pedagogia da diversidade minúscula: se nada nos acontece,
acontece pelo menos que chove, que faz vento, que faz sol. O
encanto do tempo que faz, é a sua instabilidade, é portanto o
encanto do tempo que passa, de um caleidoscópio sempre em
movimento.

75
Ao aguçar os nossos sentidos e portanto a percepção, constitui
uma ética do meio termo, das meias tintas, do cambiante. E
porque o sentimento da existência se basta com a passagem das
estações, ressuscita a ideia grega do cosmos, da solidariedade
entre os elementos e o coração do homem, comunhão da qual
todos somos nostálgicos.
Pascal nos seus Pensamentos recusava qualquer ligação com o
clima: "O tempo e os meus humores pouco têm em comum. Tenho os
meus nevoeiros e o meu bom tempo no meu interior, o bem e o
mal dos meus assuntos pouco têm a ver com isso." O crente,
intratável na sua fé, não tem estas frivolidades modernas que
se alarmam com uma intempérie ou se regozijam com um raio de
sol. A meteorologia é naturalmente contemporânea da aldeia
global e nela se incluem portanto os valores da Bolsa, as
cotações das matérias-primas, a alta ou a baixa das acções.
Incrustada num canto do ecrã, subindo e descendo ao sabor dos
minutos, o índice bolsista é análogo ao dedo do imperador
romano que agraciava ou condenava os gladiadores. Dado que
interliga os planetas exteriores com os pequenos planetas
interiores, a meteorologia tornou-se desde os anos 50 o
símbolo hedonista das nações desenvolvidas. E as cadeias
televisivas dedicadas ao clima são submetidas a um duplo
constrangimento de exactidão e de euforia. Uma perturbação
deve de preferência ser breve e anunciar uma melhoria, o sol
deve acompanhar os veraneantes com a condição de não degenerar
em canícula ou seca. O tempo ideal deve aliar constância com
moderação. Daí a face pesarosa do jornalista quando predominam
o frio e a chuva - ele é então o portador de más notícias, ou
seja, o seu cúmplice - e a sua fisionomia resplandece quando
volta o bom tempo. Em todas as circunstâncias deve aliar o
sério do científico com a solicitude de uma mãe que nos
transmite: "Se for a Varsóvia esta noite, não se esqueça de
levar um sobretudo! Para quem continua em Moscovo, junte-Lhe
uma grossa camisola de lã..."
Dado que o tempo que faz constitui a pele do mundo, o nosso
vestuário primordial, garante-me de qualquer modo a existência
e indica-me como devo ser. É por isso que falar do clima,
dizia Barthes, é a coisa mais séria que existe. Sabemos que
certos sistemas nervosos captam as variações da atmosfera com
uma sensibilidade quase eléctrica, fazendo da menor alteração
da bruma, da mais ínfima nebulosidade um enorme e cansativo
drama (após 1987 a SAD, seasonal affective disorder, é
registada entre as depressões com carácter cíclico no DSM
II(5)).
Um grande corpo cósmico banha os nossos corpos, arrasto
banha os nossos corpos, arrastus suspiros, nas suas
tempestades;

*5. Manual de diagnóstico e estatística das perturbações


mentais da American Psychiatric Association que lhe faz
referência. Citado no excelente livro de Martin de la
Soudière, Au bonheur des saisons, Grasset, 1999, p. 272.

76
sofremos dos seus males ao mesmo tempo que beneficiamos com as
suas abertas. A luz do Sol enche-nos de um sentimento de
distensão, dilata a nossa alma até aos confins do universo da
mesma forma que o céu cinzento e carregado nos aperta o
coração. O mais longínquo é o mais próximo, os tormentos do
céu são uma tragédia pessoal.
Mal seja portanto colocada a adequação entre o interior e o
exterior está infirmada. Mais que uma ciência a meteorologia
tem tudo de uma cerimónia propiciatória. É uma variante
tecnicista da profecia, a par do horóscopo e da numerologia
mas com um grau de plausibilidade mais elevado. Mediante as
suas previsões, uma divindade caprichosa abençoa-nos ou
castiga-nos pelos nossos pecados: sendo o principal a
desmesura das sociedades industriais que se vêem punidas por
ciclones, maremotos, tufões (a quem alternativamente são dados
nomes masculinos e femininos para não susceptibilizar
ninguém). Existe nos Estados Unidos um caçador de tempestades
e de furacões, surfistas temerários que se instalam no centro
das tempestades na esperança da vaga última que os faça passar
para o outro lado do espelho (assim como esse fotógrafo
mítico, instalado, segundo parece, no olho do ciclone Andrew
que devastou as Baamas e o Sul da Florida em Agosto de 1992. O
homem teria sobrevivido mas perdeu a razão). Existe em toda a
catástrofe climatérica um misto de horror e de júbilo quando o
tempo que faz (tempestades de neve ou tornados) pulveriza o
tempo comum, dramatiza o quotidiano, nos transporta aos
confins do sublime, o que significa a uma grandeza
sobre-humana. É uma alteração que nos toca a todos, mesmo que
individualmente nada nos aconteça. Na sua banalidade, a
meteorologia dissimula algo de um sagrado pagão, é o nosso
último fenómeno sobrenatural (no início dos anos 80, João
Paulo II foi rezar ao Sul de Itália para pôr fim à seca). É a
razão por que figura entre os grandes registos da consolação.
Consolação incerta apesar de tudo, pois o tempo não pode ser
nem controlado nem dirigido. Daí os esgares, as súplicas que
dirigimos a todos os que lá em cima se encontram, espíritos
enigmáticos, divindades versáteis que decidem do nosso destino
e cujos inumeráveis caprichos se podem chamar aguaceiros,
granizos, frio, furacões, ventos, inundações, tantas formas de
torturar os pobres humanos que nós somos.
Em definitivo nós somos tão donos do clima como de nós
mesmos e deciframos o céu com a mesma perplexidade que os
movimentos do nosso coração. Quanto à analogia feita entre a
atmosfera e o humor , ela não é segura: um sol esplendoroso
pode-nos ferir com a sua exuberância, as nuvens cinzentas
podem-nos alegrar, a neve e o nevoeiro podem-nos mergulhar num
júbilo perene. A meteorologia é um oráculo aleatório. Nela se
conjugam duas ideias contraditórias de felicidade, a de não
constituir mais que um todo com o mundo, a de contrariar o
mundo.

77
Por um lado, a osmose entre o homem e o universo é frágil: a
rotação secreta das nossas estações íntimas nem sempre está
ligada aos elementos. Por outro, nós tendemos a libertar-nos
da ordem das estações, sofrendo inteiramente os seus menores
rigores como se de insultos à nossa vontade de autonomia se
tratassem. Nós escandalizamo-nos de ter calor no Verão e neve
no Inverno: conduzimo-nos face ao clima como crianças mimadas
que o quisessem comandar ou despedir a nosso bel-prazer (em
1986, alguns elementos do jornal satírico francês Jalons, no
pico de um mês de Janeiro glacial, desfilaram em Paris,
gritando Inverno demasiado frio, Mitterrand culpado).
Se deslocamentos de terras, inundações, avalanches dão lugar
a processos judiciários, é porque para nós já não existem mais
catástrofes naturais, só existem negligências humanas. Para
cada drama é necessário encontrar um culpado. Passámos de uma
atitude fatalista para um comportamento penalista,
afligimo-nos menos do que inculpamos, sobretudo numa época
onde os bodes expiatórios estão garantidos. Dado que o homem
pretendeu moldar e domesticar a Natureza, é normal que ele se
torne o contabilista dos seus desregramentos. Mas a formidável
potência que adquire de volta surpreende-o e aterroriza-o.
Podemos accionar judicialmente os serviços de meteorologia
devido às suas previsões erradas e em breve intentaremos
processos contra a nossa Mãe Terra por causa do seu mau
carácter, pelos seus estremecimentos calamitosos, pelas suas
exalações malignas. Mas quando na nossa preservada Europa
sobrevém um verdadeiro cataclismo, a primeira reacção é de
sideramento, de desamparo, porque tanto nos falta uma
disciplina das situações extremas (ao contrário dos Estados
Unidos) como abandonámos a noção de risco e de perenidade do
clima. Dupla vontade então de desposar o mundo ou dele nos
libertarmos: a dependência acabrunha-nos, humilha-nos mas a
independência total faz outro tanto pois isola-nos. Por um
lado, necessidade de comunhão, afirmação de si, por outro,
entre os quais a consciência moderna, a meio caminho entre o
seu sonho de domínio e o seu sonho de harmonia, não pode
escolher.

As aventuras do corpo doente

O que vos aconteceu na vida? Muita gente poderia


responder: tive úlceras, enfartes, reumatismo, o meu corpo
contou histórias que posso estampar em pequenos extractos e a
minha vida resume-se a isso. Cair doente é também ter alguma
coisa a dizer de si que sai do trivial, é uma forma de chamar
a atenção dos outros. Com efeito, o que é uma doença? Uma
transformação do organismo que é possível viver como uma
experiência e não somente como uma alteração.

78
Não existe aqui nenhum romantismo da dor, nem muito menos
desse mito ultrapassado que pretende que por detrás de cada
grande obra se encontra uma patologia recorrente, a asma em
Proust, a epilepsia em Dostoievski, a sífilis em Baudelaire, o
que fazia dizer a um Drieu La Rochelle: "Os saudáveis são
ternos exemplos." Toda a gente seguramente já padeceu de
alguma doença e não se trata de negar os arrepiantes tormentos
que ela inflige. Mas não saberíamos lidar com ela como um ser
menor, uma subtracção(6), uma simples alternância de febres e
de sintomas: é também um acontecimento da vida. Se
independentemente da minha vontade ocorre uma alteração na
minha saúde, tenho sempre a possibilidade de a virar a meu
favor, dela me apropriar, de transformar essa excentricidade,
nascida no meu corpo, numa coisa minha. Face às dores mais
atrozes, disponho sempre do recurso à palavra, da liberdade
soberana de as descrever para as manter à distância.
As peripécias do corpo martirizado (corolário dos êxtases do
corpo erótico: o prazer é expansão como a dor é retracção)
testemunham uma existência inteiramente ocupada em se ruminar
a si própria, a não se encarar a não ser a si mesma. Nada de
mais triste que ouvir os idosos no asilo a trocarem
infindáveis confidências sobre o estado das suas próstatas,
dos seus pulmões, dos seus rins, obnubilados pelos disparates
dos seus órgãos, pela epopeia de uma bexiga que se obstrui, de
pés que incham, de veias que se enchem de gordura. Colocam as
suas pequenas misérias na panela comum, rivalizam no horror ,
as provações partilhadas geram laços, forjam tribos efémeras
de diabéticos, de cardíacos, dos que sofrem de dores de
cabeça. Tal é portanto a definição da velhice extrema: esse
momento onde toda a energia se consome na preservação, quando
manter-se vivo se torna de tal forma problemático que cada dia
é um combate ganho contra a deslocação. Derrocada lenta e
silenciosa de uma vida que se extingue e se limita a algumas
funções essenciais, beber, comer, dormir, arrastar-se,
colmatar as fugas, reparar as vias defeituosas: a partir de um
certo momento o tempo desfaz-nos mais do que faz, as perdas
são irreversíveis.
Existem então desde insuflar o romanesco na vida quando nada
nos acontece: pela escuta do seu psiquismo ou pela narração
das suas misérias fisiológicas. Com efeito, Freud, ao inventar
o inconsciente, deu um novo impulso à arte da introspecção.

*6. Em Le Normal et le Pathologique, Georges Canguilhem


sublinha quanto a doença é uma nova dimensão da vida, uma
experiência de inovação positiva do vivo que guarda a
capacidade de ser normativo, PUF 1991, pp.122-123. François
Dagognet, por outro lado, explica quanto a doença é um
andamento da vida do qual cada um é alternativamente vítima e
beneficiário. HQuando se escolhe a vida, escolhe-se a doença.
É a razão por que se chama uma afecção, sofremo-la tanto
quanto a ela estivermos ligados. Pour une philosophie de la
maladie, entrevistas com Philippe Petit, Textuel, 1996.

79

Eis cada existência dotada, graças a essa câmara de eco


inesgotável, de uma profundidade inesperada. Inflação inédita
do comentário: da mesma forma que os sonhos são essa profusão
de intrigas que nos oferece o cérebro somente quando se dorme,
as nossas condutas mais benignas têm um sentido, lapsos e
actos falhados transformam as carreiras mais sauves em
cavalgadas tumultuosas. Cada um pode glosar sobre si mesmo,
mergulhar no subsolo, levar consigo uma provisão de fábulas de
enigmas que instauram uma espécie de embelezamento do trivial.
Deixam de existir indivíduos insignificantes, só existem
grandes personagens que ainda não são conhecidas e detêm a
opulência psíquica de um Miguel Ângelo, de um Bórgia ou de um
Shakespeare...
Paralelamente, a doença pode tornar-se num modo de vida,
numa certa forma de converter o quotidiano em ficção até mesmo
em inquérito policial, pois o nosso corpo abriga um criminoso
potencial, a sua própria morte. Quando nos arrancamos à
evidência do quotidiano ela dramatiza os gestos maquinais que
recebem então uma densidade extrema. Com ela o anódino
junta-se ao perigoso, uma bagatela arrisca-se a preludiar um
desregramento generalizado (muitas patologias graves
instalam-se em nós sem o mínimo aviso). É tragicomédia do
hipocondríaco que ao antecipar tolamente a sua própria queda
que ao ler uma sentença fatal numa dor de cabeça, uma cãibra
num braço antes de um dia cair verdadeiramente doente,
confirma assim os seus diagnósticos mais sombrios. Com certas
afecções, entra-se no universo do risco. E para quem não se
mantém a não ser a custo de uma severa dieta, um copo de
vinho, uma pitada de sal, uma noz de manteiga pode tornar-se
no equivalente da roleta russa. Todo o doente conhece, graças
ao seu mal, uma intensificação paradoxal da existência a qual
se transforma numa estrada semeada de escolhos sobretudo
quando cada desvio se paga por alto preço. Nada no corpo parte
de si, cada parte pode degenerar, cada órgão pode-nos
torturar, a vida quer matar a vida: eis aquilo de que tomamos
consciência nos momentos de exaustão física (segundo a
Organização Mundial de Saúde, a humanidade seria afectada por
quarenta mil doenças, quarenta mil formas de ser despedido
deste mundo rasteiro, sem contar com as combinações e as
complicações).
Cada atentado à integridade física caracteriza-se por uma
parada pontuada de crises, de remissões. As paixões talvez ali
se amenizem mas esse constrangimento é rico em esperanças
minúsculas, em pequenas surpresas. Assim vemos as pessoas
sofredoras preferirem o seu estado a um hipotético
restabelecimento que as recolocaria na categoria dos comuns.
Tal como o Zeno de Italo Svevo que, encantado por não
melhorar, venera como sendo tesouros os defeitos orgânicos:
80
A doença é uma convicção e eu nasci com essa convicção.
[...] A diabetes, confesso-o, constitui para mim grande
doçura. [...] Acarinhava a minha doença. Lembrava-me com
simpatia do pobre Copler que preferia a doença real à
imaginária. Estava de acordo com ele. A doença é muito
simples: basta que nos deixemos levar. De facto quando leio
num livro de medicina a descrição da diabetes, descubro aí
todo um programa de vida, não digo de morte, mas de vida.
Adeus resoluções, adeus projectos! No entanto, nada mais tinha
para intervir: era livre.(7)
Não somente o estado de doente outorga uma personalidade ao
indivíduo - o sofrimento clássico era o destino comum a todos,
o sofrimento moderno é uma identidade e quase uma razão de ser
- como o mal pode ser objecto de uma narração, sobretudo
quando é ultrapassado. E se alguns optam por o ignorar, outros
há que o brandem como um talismã para suscitar misericórdia,
tiranizando os seuspróximos ou simplesmente tornando-se
interessantes(8). A este respeito cada um oscila entre três
escolhos que são quase três narrativas constrangedoras: sofrer
de
um mal benigno que não merece qualquer menção (assim a gripe
que vos obriga a ir à cama mas cujo rendimento em termos de
compaixão é nulo em razão da sua grande frequência), de um mal
crónico que aborrece pela sua duração, de um mal tão terrível
que causa repulsa. E podemos desejar estar doentes para
conhecer o maravilhoso prazer de melhorar, passar ligeiramente
sobre o abismo para dele nos salvarmos. Momento eufórico
quando uma infecção se retira, vos restitui as vossas forças e
a utilização do vosso corpo: é próprio do esgotamento tornar
maravilhoso o bem-estar comum e tão desejáveis os primeiros
dias de uma convalescença. Saímos dela completamente
aureolados com a glória dos conquistadores e as doenças são as
batalhas do cidadão moderno que evoca e relata como
anteriormente o soldado fazia das suas façanhas. E alguns
inventam terríveis padecimentos como outros pecados na
confissão para se tornarem únicos. Alegria, dizia Espinoza,
por saber destruir uma coisa odiosa, de falar de um perigo de
que nos livramos. Como se o facto de ter incorrido num perigo
e dele ter saído vos colocasse de repente numa linhagem
aristocrática, vos dotasse da virtude por excelência do herói
(sobretudo na bacia mediterrânea), a baraka. Nada significa,
bem o sabemos, que as nossas sociedades admirem mais um
sobrevivente, quando escapa a um acidente, a um cancro ou a um
coma, sobretudo quando a ciência o tinha condenado.
Quando se combatem ou quando a elas se sucumbe, as doenças
proporcionam-nos uma história. Algumas marginalizam-nos,
outras projectam-nos

*7. Italo Svevo, La Conscience de Zeno, Folio, Gallimard,


pp. 23 e 511 (Edição portuguesa: A Consciência de Zeno,
Lisboa, Editorial Minerva).
8. Sobre a recusa de melhorar em razão de gratificações
elevadas que o estatuto de doente concede, ver Edouard
Zarifian, La Force de guérir, Odile Jacob, 1999.

81
(Caixa de Texto)
Um terror delicioso

"O medo", afirmava Edgar A. Poe, "é um sentimento que os


homens gostam de provar quando estão certos de estar em
segurança." A instauração da banalidade no Ocidente ter-nos-á
gratificado com duas categorias literárias inéditas, o
policial e o fantástico. Brotam quando termina a era dos
milagres própria da Idade Média, como força de ruptura num
universo abandonado pela magia e pelos deuses e já submetido à
disciplina do trabalho, à ciência e à técnica. É assim que
livros e filmes de horror funcionam infectando o espaço: este
era mágico nos contos de fadas, no futuro passa a estar
envenenado. O banal torna-se horrendo, completamente animado
por poderes ocultos por ameaças reais.
Seria preciso ainda distinguir a narrativa policial clássica
que relata a erupção da desordem numa sociedade policiada e o
seu apagamento perante o romance negro que se une ao curso de
um mundo integralmente caótico onde justiça e claridade
deixaram de existir. A este respeito a cultura americana
inventou dois géneros inéditos: o western que está para além
da lei, o filme policial que se encontra fora da lei ou a seu
lado. Por um lado, selvajaria de uma humanidade nas fronteiras
da civilização barbárie da selva urbana e dos meandros
sociais, por outro.
Tanto no fantástico como no policial vibramos sem
consequências nocivas, sem riscos. Bem sentados numa cadeira,
sem preocupações, deleitamo-nos com as abominações que nos
garantem: prazer do reconhecimento e de estar em terreno
familiar. Este culto do atroz é no entanto um culto de
pantufeiros. Nós só aceitamos tremer porque sabemos estar a
salvo, sucumbimos ao conforto do terror e esse terror
controlado canaliza aqueles outros que habitualmente nos
assaltam. Ter medo para aprisionar o medo, tal é a volúpia do
romance negro, do filme de terror.
Estas ficções mórbidas têm pelo menos o seu quê de positivo
ao contrário das nossas mitologias actuais, não dissimulam nem
o mal nem a morte, pelo que com razão Lhe podemos assinalar
uma conotação religiosa. Temos necessidade, durante os
períodos de calma, de olhar o horror de frente, de saber o que
se trama por detrás do cenário demasiado ponderado das nossas
vidas. Tantos os ritos da valorização do quotidiano que nos
fazem viver na promiscuidade do desastre.
Mas regressado à vida civil, o espectador, o leitor
permanece assediado por todos estes medos que brotaram do ecrã
ou de entre as páginas e que tinham sido provisoriamente
exorcizados. Acompanham-no, puxam-lhe pela manga, sugerem-lhe
que o poderiam talvez atirar na verdade para o mundo real.
Pois a domesticação do horrível pela via artística é frágil: é
à plena luz do dia que germinam as maldições, que formigam os
monstros e os assassinos. É preciso então retomar o caminho
das salas obscuras, mergulhar numa outra intriga diabólica,
injectar se com outra dose de terror a horas certas, a fim de
esconjurar todos os poderes maléficos que pululam nos
interstícios do conforto e da passividade.
(Fim da caixa)

para uma sociedade clandestina com os seus


ritos, as suas tradições. Em todos os casos, testemunham a
nossa faculdade de convivermos com a infelicidade se dela não
nos conseguirmos desembaraçar, de converter as nossas
fraquezas em experiência criadora. Mesmo ferida a vida pode
dar lugar a um mundo, desenvolver-se, pôr em cena as suas
próprias enfermidades. Tão pouco é ainda assim só por si um
cosmos.

Capítulo VI

A verdadeira vida não está ausente

"Acredito tanto na morte em vida como na vida


após a morte."
André Green

"Que se pode fazer quando se tem 30 anos e ao dobrar a


esquina da nossa própria rua nos sentimos, de repente,
invadidos por uma sensação de felicidade, de felicidade
absoluta? Como se tivéssemos acabado de engolir de repente um
pedaço luzente desse tardio sol da tarde que continuará a
brilhar dentro do nosso peito, enviando pequenas girândolas de
estrelas para cada parcela do nosso ser, para cada dedo da mão
ou do pé?" Katherine Mansfield

A Alegria é a passagem do homem de uma mediana a uma


maior perfeição. A Tristeza é a passagem do homem de uma maior
a uma menor perfeição.
Espinoza

Os encontros falhados com o destino

Um homem e uma mulher encontram-se por acaso em casa de


amigos depois de terem estado dez anos sem se verem. Desde a
sua mais tenra idade, o homem, John Marcher, sentiu-se tocado
pela sorte, por uma possibilidade prodigiosa e terrível onde
existia presságio e certeza. Essa coisa imprevisível
esperava-o escondida entre as dobras e redobras dos meses e
dos anos, qual besta selvagem emboscada na selva(1).

*1. Henry James, La Béte dans la jungle, in L'Élève et


autres nouvelles, 10/18, 1983.

84
Cairá sobre ele a todo o momento, quando para isso estiver
preparada. O homem propõe à jovem, Mary Bartram, para esperar
junto a si a ocorrência desse extraordinário acontecimento.
Sendo um eleito, não tem medo de se fundir com o comum da
humanidade , dado que o segredo que guarda no fundo de si o
torna diferente de todos os outros.
Os anos passaram, o homem e a mulher envelhecem juntos,
sempre à espreita. Um dia a admirável amiga cai doente. Antes
de morrer confia ao homem: "Nada mais deveis esperar, a coisa
chegou."
No cemitério onde foi enterrada, John Marcher cruza-se
ocasionalmente com um jovem viúvo devastado por um luto
recente; inexplicavelmente, invejou-lhe o desgosto, a
violência cega da sua dor. O que é que este homem teria tido
então na sua vida cuja perda o pode assim fazer sangrar, logo
viver? De repente John Marcher compreende que a fera na selva
tinha o rosto dessa mulher e que a ele lhe tinha passado
despercebida. Eis que amá-la teria sido a solução; então
teria vivido. Partilhar o afecto que ela lhe votava,
experimentar por fim uma paixão que o devasta ter Lhe-ia
permitido conhecer o sabor da existência. Mas fechado na sua
obsessão, permaneceu aquele a quem nunca nada acontece.
Soberbo apólogo de James: com efeito, o que pode acontecer
de pior é passar ao lado da felicidade sem a reconhecer. E
esperar que um acontecimento miraculoso nos resgate um dia sem
ver que o milagre reside no acontecimento que vivemos. É
acreditar que a nossa vida, de momento mero rascunho, cedo
tombará na intensidade: transferência dos prazeres que
estranhamente se assemelha à ascese religiosa. Como se a uma
pré-história feita de trivialidade devesse suceder uma
transfiguração, um despedimento definitivo das misérias
humanas.
As ocasiões falhadas: uma palavra que não foi pronunciada,
uma mão que não se estendeu, um gesto esboçado mas depois
evitado, tantos momentos onde por medo, timidez, a nossa sorte
não balança. Demasiado cedo, demasiado tarde: existem vidas
que permanecem completamente votadas ao insatisfeito, ao
inacabado. O que poderia ser, é o que não foi: alguns
contentam-se com este condicional e cada um de nós poderia
escrever a história dos seus destinos evitados e que o
acompanham enquanto possíveis fantasmagorias. Brassai conta
como, com a idade de 22 anos, Marcel Proust se sentiu atraído
por um jovem efebo, filho de um magistrado genebrino. No verso
de uma fotografia que este último deu a Proust estava escrito
a seguinte dedicatória extraída de um soneto do pintor
pré-rafaelista inglês Dante Gabriel Rossetti: "Look at my
face; my name is Might Have Been, I am also called No More,
Too late, Farewell."(2)

*2. É Roland Jaccard quem conta a seguinte história (Le


Monde de 24 de Outubro de 1997): "Contempla o meu rosto: meu
nome é O Que Podia Ter Acontecido; também me chamam Nunca
Mais, Demasiado Tarde, Adeus."

85
Cada vida sendo única rejeita e exclui outras. Ou antes,
eleva-se sobre um crime: o das virtualidades que executou e
que não se puderam desabrochar. E é escusado saber que em cada
instante existem novas partidas potenciais, que as jogadas só
estão concluídas no último descarte, o acontecimento é fatal:
o que ocorre anula outras eventualidades. E para aqueles que
não são tocados pela graça de uma segunda vez, para aqueles a
quem a história não oferece de novo uma oportunidade, começa
então o tempo da miséria dos possíveis. As mãos deixam de se
estender, a estrada de bifurcar fica desesperadamente estreita
e lisa.
Existe uma outra vida, mais bela, mais ardente! Que criança
ou adolescente, farto de esperar no seio de uma família sem
chama, não ouviu este apelo com um estremecimento de prazer?
Ninguém é condenado em razão do seu nascimento, do seu meio
social, parentesco ou casamento. O simples facto de pressentir
um destino mais favorável permite muitas vezes derrubar as
paredes que nos aprisionam. É o encanto das partidas, das
rupturas mais que nos lançarmos no desconhecido e tecer na
trama dos tempos uma teia benfazeja. Aos princípios do prazer
e da realidade, será preciso acrescentar um terceiro: o
princípio da exterioridade, enquanto reino da diversidade, do
inesgotável sabor das coisas. A vida procede também por
revelações, quando nos é de repente oferecida a intuição de
outros mundos estupendos, qual Pécuchet galvanizado pelos
folguedos de uma camponesa esplendidamente indecente que
observa escondido atrás de uma sebe. "É preciso deixar uma
porta aberta para o país de fora" (Lewis Carroll), para o
mistério, para o inexplorado e essa porta deve ser franqueada
pelo menos uma vez, responder aos apelos de algures, para uns
o deserto, a África ou o Oriente para outros, para outros
ainda a descoberta de uma nova sexualidade, de uma vocação
abafada. Então tudo se suspende perante a eminência de uma
fuga, de um salto que nos libertará dos poderes asfixiantes da
rotina, da pequenez. Momento luminoso da bela fuga que nos
levará para paragens ainda mais belas.
Mas se podemos colocar a nossa vida emjogo como um dado que
é lançado, navegar em direcção a novos destinos, é falso que
se possa fazer não importa o quê, ser indiferente não importa
a quem, encarnar passo a passo na pele de um pesquisador, de
um artista, de um cosmonauta e que só o céu seja o limite. É a
atitude americana do can do, do tu podes fazê-lo que não fixa
nenhum limite às capacidades de um indivíduo desde que
arregace as mangas, optimismo de uma nação pioneira que crê
nas núpcias da eficácia com a vontade.

86
À violência da salvação no Antigo Regime sucedeu nas
sociedades laicas a euforia dos possíveis e essa escolha causa
a vertigem. Aquele que espera poder abraçar todos os caminhos
arrisca fortemente não conseguir estreitar nenhum; uma coisa é
sair de si, outra acreditar que não se necessita de optar,
quer dizer, de um quadro que, ao restringir-nos, condiciona
também a nossa liberdade.
Talvez seja este o paradoxo: a busca da vida boa deve
obedecer a duas injunções contraditórias. Aproveitar
plenamente aquilo que recebemos, mas permanecer à escuta do
que se passa algures. Sabedoria da miopia imersa no presente,
satisfeita por ser aquilo que é, sabedoria do presbitério que
elabora projectos e não se contenta com o seu estado. De um
lado, filosofia do carpe diem que nos convida a considerar
cada dia como se fosse o último, o outro, a esperança do
melhor, recuo de felicidáde imposta (péla família, pela ordem
social) em nome de uma felicidade desejada. Contracção que nos
volta a fechar em nós mesmos ou expansão que nos dilata para
dimensões universais (este foi o esquema que opôs Rousseau a
Diderot), serenidade ou inquietação, autarcia ou embriaguez,
raramente escapamos a este dilema.
Se bem que existam dois estados do possível: um possível
esmagador que devora o real do alto da sua majestade e torna
miserável tudo aquilo que sentimos (é a infelicidade da
personagem de Henry James). E um possível fecundo que faz luz
sobre tudo o que está dentro dos seres para ser parido.
Possível sarcófago ou possível crisálida: um é portador de uma
tal amplitude que esteriliza as menores iniciativas e me faz
desesperar quando empreendo, o outro faz sinal em direcção a
um tempo mais rico que é em simultâneo ruptura e continuidade
e respeita ao que é doce imaginar, como dizia Kant acerca da
utopia. Num caso a vida sucumbe sob o peso do ilimitado, no
outro liberta tudo o que está latente tal como o sol actualiza
e desperta todas as cores.

O veneno da inveja

Ao invés de todo o optimismo oficial, não existe nada de


mais intolerável que a visão da felicidade de outrem quando
não nos encontramos bem. O espectáculo dessas gentes que
desfilam em parada, gratificadas a centuplicar com os dons da
fortuna, da saúde e do amor, a forma ostensiva como se
empertigam, como se pavoneiam, eis os odiosos! Esta é a razão
por que a contemplação cuotidiana dos horrores do mundo nos
telejornais pode ter um efeito apaziguador: não que nos
alegremos particularmente com a infelicidade dos outros mas
ela permite sentirmo-nos menos sós e mesmo com sorte: "Ver a
que males nós próprios escapamos é uma coisa doce" (Lucrécio).

87
Consolação por comparação: temos necessidade do desastre dos
outros para nos ajudar a suportar o nosso e verificar que
existe sempre algo pior noutros locais, que a nossa condição
não é assim tão cruel. A amargura nasce em geral do contraste
do meu destino com o de outros mais favorecidos e engendra uma
cadeia sem fim de insatisfações. "Ser pobre em Paris, é ser
pobre duas vezes", dizia Zola a propósito da loucura provocada
pela proximidade das riquezas. E poderíamos fazer uma análise
do meio literário e intelectual francês sob os três ângulos do
despeito, da mesquinhez e da calúnia. Quantos ódios sem
expiação, de querelas retumbantes motivadas no entanto pelo
azedume e pelos ciúmes, e travestidas sob a forma de ninharias
políticas ou filosóficas?
Porque são igualitárias, as nossas sociedades democráticas
são invejosas e favorecem a cólera face ao mais ínfimo
privilégio concedido a outro (e é essa forma particularmente
intolerável de privilégio que é a sorte). A inveja pode
incidir sobre um rosto, um pormenor físico, uma marca de
automóvel, um parceiro amoroso, pode mesmo invejar-se a
miséria do outro, as suas doenças quando se acha que elas são
mais elegantes que a nossa miserável condição. Deixa de ser
necessário abater o próximo com a narração dos nossos
infortúnios, não é preciso esmagá-los com as pompas do nosso
sucesso. Cálculo subtil que conduz a calar uma boa notícia, a
vestir modestamente, a mostrar cara de enterro, em resumo,
converter a discrição em estratégia da distinção. Da mesma
forma é preciso simular o desdém em relação às pessoas mais
favorecidas que nós para nos preservarmos dos remorsos do
rancor.
Existe uma origem mais profunda para este sentimento: quanto
mais ele se impõe como finalidade universal, mais a felicidade
se esvazia de todo o conteúdo. O fluxo da sua mensagem
consiste em simultâneo na sua força e na sua maldição: é por
isso que podemos lamentar sinceramente todos os que investem
uma energia desmesurada na constituição desse bem enigmático e
acreditam estar perdidos se não lhe têm acesso imediato. (Mas
se a felicidade foge àqueles que a procuram, isso não
significa de modo algum que favoreça aqueles que a ela fogem.)
Ninguém está verdadeiramente seguro de ser feliz; e ao
interrogarmo-nos, já estamos a prejudicar a resposta. Da mesma
forma que não existiam para os calvinistas critérios certos
que permitissem estabelecer se nos encontrávamos entre o
número dos eleitos ou dos condenados, cada um de nós só retira
da sua convicção íntima o sentimento de estar satisfeito. Mas
é uma convicção que a presença dos outros pode afastar de
imediato: acredito ser o mais afortunado dos homens e eis que
no decurso de uma conversa, fico a saber que um amigo tem umas
férias mais excitantes que as minhas, conhece uma vida amorosa
mais variada, tem perspectivas profissionais mais ricas.

88
Conclusão: não sou mais que um pobre tipo amarrado a um
destino medíocre.
Em resumo, a competição das cobiças pode mergulhar-nos num
tormento perpétuo. Por mais alta que seja a nossa posição de
forma alguma nos previne contra a animosidade perante algo
mais elevado. E coibimo-nos de nada viver de bom pois algures
outros vivem melhor. Desde logo transformamos a nossa
felicidade em estatuto, exibimos os nossos pergaminhos de
felicidade como outros exibem os seus pergaminhos de nobreza.
Não se trata de ser feliz mas que os outros não o sejam e que
os saibamos mortificados. É caso para dizer como Racine: Uma
felicidade tão comum, para mim nada tem de doce. Não é
felicidade se não fizer invejosos. Mas independentemente de
julgarmos os outros mais alegres ou abatidos quando não o
estão, este tipo de triunfo é miserável, arrasta consigo toda
a desordem que pretende evitar. A luta contra os pormenores
irrisórios é infindável, nada apazigua uma vaidade que
apodrece dia e noite a nossa paz e que doravante se transforma
numa preocupação.
Como sair deste círculo vicioso que nos atira do furor para
a desordem? Certamente estragamos a felicidade à força de
acreditar que ela não é boa, que só raros eleitos dela detêm a
chave. Mas as coisas seriam mais simples se nos pudéssemos
satisfazer com aquilo que vivemos. O que torna os tratados
sobre a felicidade tão enfadonhos, é transmitirem uma única e
mesma mensagem: "contentai-vos com a vossa sorte, moderai as
vossas invejas, desejai aquilo que tendes e assim tereis o que
desejais". Sabedoria tão resignada quanto insípida onde se
encontram as espiritualidades de toda a espécie, a imprensa do
coração e os consoladores oficiais. Triste sonho de tréguas
eternas! Ora se existe o perigo de nos perdermos nos caminhos
da bem-aventurança aceite a abraçar a vida profissional,
conjugal, familiar com a certeza que ela nos trará o
encantamento há tanto esperado, privamo-nos também das
melhores coisas do mundo ao ignorar ou ao desprezar os
exemplos dos outros. Este último não é somente um rival, um
censor ou umjuiz: é também um ponto no sentido que a palavra
adquiriu na terminologia teatral. Sugere-nos, sopra-nos mil
formas diferentes de viver, de traçar novos caminhos. O hálito
pestilento da inveja pode então transformar-se em emulação,
curiosidade, podendo o outro tornar-se num condutor de desejos
em lugar de um obstáculo intolerável. Existem algures no mundo
outras veredas de alegria, outras formas de contentamento. Da
mesma forma que uma obra de arte nos revela novos aspectos da
vida e contribui assim para a tornar mais bela, existem à
nossa volta tentadores, seres solitários, radiosos que nos
convidam a deslizar em direcção a outros destinos. São eles
que experimentam artes de viver inéditas, arrancam a
felicidade às suas definições canónicas, abrem-lhe novas
pistas.

89
"Por vezes não é mau ceder ao seu chamamento, segui-los como
as crianças seguem o tocador de flauta porque instilam em nós
novos vícios" (André Breton). Nada seria mais triste que
passar teimosamente ao lado da sua época, do que ela tem de
melhor na sua loucura, nos seus inventos. Duplo impasse: ser
tragado como um camaleão por todas as imagens autorizadas da
felicidade ou permanecer fechado sobre si mesmo, ruminar a sua
vida desinteressante como uma goma sem sabor. Existe um
contágio da alegria, uma atracção irresistível. Aos hipócritas
que adejam em redor da infelicidade com uma tez gulosa,
devemos preferir a companhia dos apaixonados, dos foliões que
só pela sua presença são uma promessa de engrandecimento, de
alegria.
A mística dos pontos culminantes É ao mesmo tempo uma
história patética e reveladora aquela que o jornal diário
britânico The Times revelou nos finais de 1998: um certo
Andrew Park, cidadão inglês, decide em 1993 festejar o Natal
todos os dias. Nem uma única vez, fosse Verão ou Inverno,
quebrou a regra. Cada noite, deposita junto ao pinheiro
decorado com grinaldas três presentes nos seus próprios
sapatos que abre no dia seguinte com embevecimento. O Natal
todos os dias começa a pesar: peru, sherry, chocolate, pudim
noite atrás de noite rebentam com o orçamento e originam um
cardápio que em simultâneo é rico mas monótono. O cerimonial
torna-se num pesadelo. "Tenho necessidade de auxílio", diz
Andrew Park, "gosto do Natal diário. Mas sei que isso se está
a tornar perigoso."(3)
Abolir a vida quotidiana! Quem não acarinhou este sonho num
momento ou noutro? Sob as suas formas mais radicais, esta
utopia foi realizada pelos Estados totalitários do século XX
que conseguiram destruir o statu quo em nome de uma mística do
movimento e da agressividade. Não se encontrou no momento
melhor remédio para a medonha banalidade da vida que
mergulhá-la no terror e na guerra. Sem chegar a estes
extremos, a recusa de pactuar com as condições irrisórias de
toda a existência deste mundo (André Breton) pode originar um
poderoso desejo de romper os diques, de se colocar à margem da
respeitabilidade comum. Já Balzac exaltava esses homens para
quem a vida não era mais que uma sequência de poesias em
movimento e que fazem os romances em lugar de os escrever. Ele
contava na Histoire des Treize as explorações de indivíduos de
excepção, sobreviventes do Império napoleónico, totalmente
motivados pelo culto da energia, pelo horror à monotonia, pelo
frenesim do prazer.

*3. Citado por Pierre Georges, Le Monde de 16 de Dezembro de


1998.

90
Será necessário obedecer a esta alternativa? Não teremos nós a
possibilidade de optar entre desmesuramento e mesquinhez?
Conforme vimos, esta foi a grande utopia dos anos 60 que
mais não fez que decretar a satisfação perpétua, o estado de
felicidade permanente. Tratava-se então de cristalizar o fluxo
desordenado dos dias num único instante de fervor sublime, de
imergir o quotidiano na efervescência. Utopia magnífica e
terrível cujos situacionistas foram os principais
porta-estandartes. Mas os inimigos do tédio, ao repetirem que
"os homens vivem em estado de criatividade 24 sobre 24 horas"
(Raoul Vaneigem), adoptam na ordem da satisfação uma lógica do
rendimento que é a mesma do sistema industrial. Em ambos os
casos é preciso tudo maximizar, tudo submeter ao imperativo da
rentabilidade. As volúpias como a produção não saberiam
tolerar o menor contratempo. Da mesma forma os partidários da
intensidade manifestam a respeito desta existência imperfeita
a mesma animosidade que os cristãos de outrora pela condição
humana. Para eles, como para Bossuet, a vida comum constitui o
pecado por excelência, a própria abominação. É sempre preciso
fustigar os humanos, provocar-lhes vergonha de serem só aquilo
que são. O que a extrema-esquerda e a extrema-direita
reabilitaram na sua aversão pela sociedade burguesa, é muito
simplesmente a ideia de pecado original: a vida é
fundamentalmente culpada de ser quotidiana e quem quer que a
sancione torna-se cúmplice do crime supremo. (As profecias
convulsivas dos situacionistas indiferentes à demonstração, à
verificação deram lugar a belas frases, a sinais impulsivos,
lapidares mas também a um vasto tesouro de inépcias
sentenciosas que um Guy Debord, hoje beatificado e embalsamado
no Museu Grévin da subversão, fez uso desmedido. ) Erigida em
absoluto, a intensidade torna-se de tal forma intransigente
que se converte em calúnia contra a vida. Se o prazer é a
única realidade, confunde-se com a ordem das coisas e não é
então mais prazer (o que a prostituição a outro nível
demonstra ao fazer do acto mais estupendo, o estreitamento
carnal, uma mecânica, um comércio). Chega um momento em que
todas as palavras, utilizadas mecanicamente, "paixão",
"desejo", "prazer", "vontade de vida soberana", se transformam
em estereótipos, em estribilhos: existem sacerdotes da volúpia
tal como existem do mercado ou da revolução e os seus sermões
não são menos redutores. Mas sobretudo são necessários à vida
dias nulos, torna-se necessário preservar a todo o custo as
densidades desiguais da existência, o que somente beneficiaria
o acordo do contraste. As grandes manifestações de exaltação
elevam-se quase sempre sobre um fundo de esperanças, de
preocupações irrisórias que fazem brilhar e das quais se
distinguem. Uma lufada de alegria ilumina um dia que por si
não foi nem bom nem mau, mas que devido a ela recebe uma
coloração particular.

91

Se é pelos dias que nós saímos do tempo e que nos fazemos


tocar pelo dedo de uma espécie de eternidade, não nos
saberíamos apoiar neles para inaugurar uma era de perfeição;
da crista do instante admirável, caímos apesar de nós na
dureza profana ainda abafada pela bem-aventurança entrevista.
Não se consegue abolir o quotidiano, por vezes
ultrapassamo-lo, densificamo-lo. A verdadeira vida não está
ausente, é intermitente, um lampejo na monotonia do qual
guardamos de seguida a nostalgia emocionada. Ou antes não
existe verdadeira vida no sentido de uma verdade e de uma
única mas muitas vidas interessantes possíveis esta é a boa
nova.
Esta foi igualmente a nobreza do surrealismo ao exaltar o
maravilhoso quotidiano(4), ao convidar-nos para uma revolução
do olhar, para ver o que nos rodeia com novos olhos. A poesia
não se esconde nos céus ou num futuro hipotético, é de
imediato acessível a todos. Por exemplo, através da escrita
automática feita de deslocações e de cesuras que permite ouvir
sonoridades inauditas da linguagem mas também pela exaltação
de tudo aquilo que tomamos por estereótipos: objectos usuais,
anúncios, indícios sobre os quais os olhos e o espírito
deslizam maquinalmente. Apreendemos o mundo enquanto cegos,
não sabemos mais distinguir as riquezas escondidas. Sob o
trivial é preciso desvendar uma beleza extraordinária. Nunca é
o real, é o meu olhar que é enfadonho e que devo desinfectar,
lavar das impurezas.
A própria arte moderna não será ela também um processo de
transfiguração do banal(5)? Por um lado, dessacraliza a obra
clássica, a tela, a escultura com objectos, com os mais
modestos materiais;, por outro, sublima esses objectos
triviais, arrancando-os ao seu contexto, desterrando-os,
elevando não importa que produto de consumo à dignidade
artística, como os urinóis de Duchamp(6). Trabalho de sapa,por
um lado, de promoção, pelo outro: toda uma parte da estética
contemporânea consiste nesta inversão. Decadência do nobre e
do pomposo, elevação do feio, do rebotalho.

*4. "Terei por muito tempo o sentimento do maravilhoso


quotidiano? Vejo que se perde em cada homem que avança na sua
própria vida como num caminho cada vez melhor pavimentado, que
avança no hábito do mundo com uma facilidade crescente; que se
desfaz progressivamente do gosto e da percepção do insólito. É
o que desesperadamente nunca poderei saber.," (Louis Aragon,
Le Paysan de Paris.)
5. Arthur Danto, La Transfiguration du banal Seuil, 1989.
6. A ironia é que outros artistas podem devolver a
provocação e, como Pierre Pínoncelli em 1993 em Nimes, por seu
lado aliviar-se na célebre fonte em forma de urinol invertido
criada por Duchamp em 1917 e quebrar o objecto a golpes de
martelo. Pinoncelli, iniciador em França dos happenings de rua
e processado pela justiça, explica que inversamente a Duchamp,
tinha querido transformar uma obra de arte num objecto comum,
iniciativa que ele assimila a uma representação artística.

92

Cabe ao artista mostrar que a vida comum é tudo menos comum,


de nos despertar a sua magia. Uma revolução estética é no
entanto uma revelação que rejuvenesce o mundo, abre sobre ele
perspectivas inéditas. O medíocre é sempre o excepcional
invisível como a excepção é um medíocre exumado. Dito de outra
forma, a vida quotidiana pode ser transfigurada se cada um de
nós, à sua dimensão, se tornar num fazedor de milagres,
criador do Éden, "divino matador dos hábitos" (Pierre-Albert
Birot).

Jardinagem ou radicalismo?

Portanto a existência não se reduz nunca à alternância


entre altitude e planura ou no seu inverso; entre as duas
existe toda uma gama de pequenas delícias que não saberíamos
desacreditar sem equívoco. Existe sobretudo, mais importante
que a felicidade, muito simplesmente a alegria de viver, a
alegria de estar neste mundo para uma aventura efémera e
insensata(7). Podemos rir com os prazeres ínfimos e com alguns
goles de cerveja, achá-los demasiado plebeus, demasiado
minimalistas. Isso não impede que eles abarquem uma ampla
verdade e consagrem a lenda dos séculos dos desqualificados,
dos anónimos. Têm de particular quebrarem um duplo tabu: o do
miserabilismo colado à noção de povo (esse povo que queremos
vítima ou revoltado, mas nunca feliz) e o do ridículo pois têm
culpa de serem gregários, nem originais nem singulares. Esta
felicidade dos simples, "das gentes de pouco" (Pierre Sansot),
que passa pela pesca à linha, pelo campismo, pelo bricolage,
pelas artes do governo da casa, pela jardinagem (e sabemos que
o gosto pelos jardins apossou-se da Europa no momento em que
cessou a crença no Paraíso Terrestre), pode ser varrida de uma
penada, pela troça, passar uma vida inteira a demonstrar que
não existe, que pertence à ordem da ilusão.
Para um pensamento político, a felicidade popular é sempre a
felicidade do escravo acarinhando a sua servidão, é a
ignomínia satisfeita do cevado, espojando-se na sua pocilga,
em simultâneo besta e beato. Dado que o povo é grosseiro, deve
mostrar-se pouco exigente nas suas ambições, risível nos
lazeres, mesquinho nos sonhos. Para os poderosos ficam
reservadas as estratégias subtis da distinção, do domínio
simbólico. Aos humildes a imitação laboriosa, a miséria
recomeçada todos os dias.

*7. Difícil de aceitar uma definição de alegria como


aprovação incondicional da vida, assentimento absoluto a tudo
o que existe, amor fati (Nietzsche). Do assentimento à
resignação vai só um passo e essas proposições assemelham-se
furiosamente às pregações dos ratos de sacristia mais
retrógrados. Inversamente, não há alegria de viver a não ser
na discriminação entre odioso e delicioso na recusa em aceitar
as coisas tal como são. O poder de dizer sim só é válido pelo
poder equivalente de dizer não.

93

(Caixa de Texto)
As prisões do calendário

Porque vamos à escola? Em primeiro lugar para aprender a


permanecer tranquilos e a tornarmo-nos pontuais, dizia Kant. A
boa utilização dos dias e das horas, eis o que é logo
inculcado nas nossas pequenas cabeças louras ou morenas.
Interiorizada desde a infância, esta aclimatação à
regularidade jamais nos deixará. Nós éramos turbulentos e
imaginativos, tornámo-nos sisudos e assíduos.
Este corte horário assegura também que o tempo pode ser
dominado, os dias enquadrados, que se pode pôr um selo sobre a
sua dispersão. Oferece esse prazer muito particular de
converter a vida em pleno. Pois ocupar as horas é difícil; por
defeito, podemos prever que as vamos enxadrezar no próximo
minuto. "A construção de um quadro para o emprego do meu tempo
durante este Inverno ocupou-me quase oito horas de enfiada",
escrevia o veleidoso Amiel. Projecto perverso, prever a vida
para se abster de a viver. A antecipação esgota o acto por
inteiro: atracção de imaginar o futuro de lhe acariciar a
imagem sem o realizar. Encarceramos as semanas no espartilho
rígido de um programa para pelo menos nos assegurarmos que ali
temos lugar, que somos esperados lá no mundo terreno.
É aliás no interior do constrangimento horário, a nossa nova
Tábua da Lei, que florescem as patologias. Existem aqueles que
estão sempre adiantados ou atrasados: duas formas de iludir a
regra, por uma exactidão que raia a insolência, por uma
desenvoltura próxima da malandrice (sobretudo naquela situação
em que cada minuto conta como um século: os encontros
amorosos). Existem esses falsos descontraídos que vivem de
olhos fixos no relógio e parecem estar permanentemente a ser
solicitados para tarefas inadiáveis. Sem esquecer esses
reformados que se levantam com a aurora, de seguida erram
desocupados unidos aos reflexos de uma vida laboriosa; ou a
pose da sobreocupação de alguns ociosos que não podem
conceder-nos mais que um quarto de hora sem vasculharem
freneticamente nas suas agendas.
Na elaboração precisa da utilização do tempo, não basta ler
somente uma formalidade de tipo obsessional. No meio da
subdivisão mais rígida dos dias habita a esperança num golpe
de teatro: como se nos protegêssemos do aleatório só pelo
facto de o aguardarmos, de sonharmos que ele faça explodir as
malhas demasiado apertadas do tempo. Quais guerrilheiros que
improvisam em plena campanha aeroportos ao acaso, traçando no
solo linhas brancas, nós cortamos os nossos dias e as nossas
noites com rigor na esperança de uma surpresa absoluta. Este
cerimonial compulsivo alimenta dois projectos contraditórios:
o ódio doentio pela espontaneidade ou o desejo de um
apocalipse benéfico que varrerá de um só golpe o nosso
acabrunhamento. Podemos sonhar tanto com um calendário como
com o mecanismo de um relógio: são as barras da prisão mas
também a promessa de evasão.

(Fim da caixa)

Não se trata no caso, graças à educação, de elevar


o povo à dignidade de sujeito político. Não, é necessário que
aprenda a lição sobre o seu modo de vida, decretar patéticos
os seus gostos, atrasados os seus costumes, irrisórias as suas
crenças. E a crítica do homem médio e de ideias curtas, dos
frustes, do pequeno Homem Branco para com uma certa esquerda
da moda teria mais credibilidade se reconhecesse que ela
própria faz parte do objecto que procura desacreditar.

94
Não é o povo na sua diversidade que amamos, é o radicalismo,
isto é a mitologia que à força queremos aplicar às camadas
populares, quer lhes agrade ou não. Quando o povo trai esta
vocação e, por outro lado, pende somente para as duas formas
canónicas do combatente ou do gemente, quando se permite
alegrias menores, eis que é maldito, rebaixado à condição de
traidor à sua missão histórica. "O povo desconhece que é
infeliz, vamos ensinar-lhe", dizia Lassalle. Vós sois escravos
que se crêem livres, grita o revolucionário indignado aos que
se deleitam com as suas modestas fantasias. Um pouco como Rosa
Luxemburgo se admirava a cada manhã que os proletários não
pegassem em armas para derrubar a sociedade capitalista, a
turba dos reparadores de injustiças quereria envergonhar as
gentes pelos seus pequenos contentamentos e por viverem a sua
existência de forma minuciosa em lugar de se comportarem como
figurantes de uma grande narrativa histórica. Haverá sempre
intelectuais, políticos para elevar os nossos supermercados,
os nossos subúrbios e a nossa fealdade comum à categoria do
maior dos crimes. É exactamente o trabalho do revisionismo
sobretudo de extrema-esquerda que consiste geralmente em
banalizar o nazismo para nazificar a banalidade capitalista e
liberal.

O divino disparate

Não existe portanto salvação fora da banalidade ou


melhor, constitui contraditoriamente o seu travão e a sua
possibilidade (ao mesmo tempo que repudia toda a esperança
numa salvação definitiva). Sonhar com a sua abolição, é
alimentar sob a capa da veemência um fantasma policial que
quereria disciplinar à força de excitantes o magro rebanho dos
dias para deles extrair o máximo de sensações. Será preciso
qualificar como nula ou anulada a vida dos mais idosos para
quem o círculo dos prazeres se restringiu mas que não
continuam menos, apesar de terem diminuído, a conhecer
inúmeras satisfações? Não somos arrancados à prosa do
quotidiano somente pelas forças da vontade ou da exortação e o
estado mais delicioso tem muitos intervalos fracos , como
dizia a Enciclopédia no século XVIII. Os surrealistas
entendiam reencantar o mundo, os situacionistas elevar a vida
ordinária aos píncaros. Mas apesar do slogan "Viver sem tempos
mortos e fruir sem entraves" se ter convertido da palavra de
ordem do comércio e da informação que circula 24 sobre 24
horas sem pausas nem fronteiras, a transmutação surrealista do
banal degenera muitas vezes em faquirismo quando se contenta
em nos dourar a pílula, em praticar o embelezamento
sistemático. Não é suficiente um pouco de brilho nos olhos e
de muita grandiloquência para que os palácios surjam de
repente dos escombros dos pardieiros.

95
(Resta conhecer a causa por que estes dois movimentos de
insurreição da vida - e o primeiro tinha de qualquer forma
mais génio, mais garbo - caíram muito rapidamente na sombra do
ajuste de contas, da invectiva, da excomunhão como se a velha
pestilência humana se vingasse daqueles que pretendiam dela
ver-se livres.) Por muito que custe aos cruzados da
incandescência, não existe revolução contra o tédio: existem
fugas, estratégias de diversão mas o déspota cinzento resiste
com teimosia. No entanto tem as suas virtudes: abate-nos mas
também nos obriga a empreender, permite-nos aprofundar os
recursos desconhecidos do tempo. No seu torpor, prenuncia por
vezes alterações radicais. Sem o tédio, sem essa sonolência do
tempo onde as coisas perdem o seu sabor, quem abriria alguma
vez um livro, deixaria a sua terra natal? Tudo teríamos a
temer de uma sociedade do divertimento contínuo que saturaria
dia e noite os nossos mais pequenos desejos.
Robert Misrahi: "A vida feliz implica uma experiência
qualitativa que una a satisfação e a significação, quer dizer,
a densidade de uma presença em si de acordo com ela mesma e a
coerência de um sentido efectivamente querido e realizado."(8)
Parece-nos, pelo contrário, que um momento de felicidade é um
momento subtraído à tirania do sentido, uma treva no tempo, a
evaporação provisória da preocupação. Isto não significa mais
que ser alegre, rir ou estreitar contra si os seres amados,
mas isto faz bem. Porque terá a felicidade necessidade de
sentido, como um coxo necessita da sua bengala? É a sua divina
vivacidade de nos gratificar sem razão, de soar como se de uma
fanfarra se tratasse ou de se insinuar de forma sub-reptícia
entre os dias para assim se eclipsar. A maior felicidade, e
talvez aquela que apresenta um grau elevado de ar litrário,
não é objecto de nenhuma eXpectativa, de nenhum cálculo, cai
sobre nós como um dom do céú, suspende o curso do tempo e
deixa-nos desconcertados, encantados, em transe. E podemos
também voltar à humilde morada do seu passado e nele encontrar
muitos dos instantes em que fomos felizes sem o saber.)
Se a felicidade era verdadeiramente, como nos é
constantemente inculcado, o mais caro dos votos, se a
pudéssemos impor por decreto ou apanhar no laço, como explicar
que tantos homens no momento em que a esperam engendrem a sua
destruição, a pisem como se pressentissem que uma tal vitória
seria pior que a derrota? Como se suspeitassem que nada se
assemelha mais ao Inferno que o Paraíso, que este último pode
ser entrevisto mas não realizado (como bem o sabem os
toxicómanos para quem a fruição absoluta do lampejo se torna
rapidamente na sede atroz da carência). Se, por milagre, no
espaço de uma noite,

*8. Robert Misrahi, Le Bonheur, Hatier, 1997, p. 22.

96

(Caixa de Texto)
Os dois estados da festa

Tradicionalmente as festas religiosas ou pagãs


representam esses momentos de embriaguez onde uma sociedade
inverte as suas hierarquias, mergulha na desordem para
reforçar os seus laços, regenerar o tempo. A nossa época
individualista tolera mal estes ressurgimentos programados e
acredita não existir nenhuma necessidade de datas festivas
para que o instinto lúdico se manifeste. Em nome da palavra de
ordem do improviso, cada um entende divertir-se à sua maneira,
despertar lapsos de febre na superfície de uma existência
demasiadamente bem-comportada. Mas não é suficiente recusar os
desenlaces obrigatórios para nos distrairmos a nós mesmos.
Peguemos nas discotecas: essas "casas da ilusão", como
anteriormente eram qualificados os bordéis, formam uma bolha
de efervescência na prosa dos dias e abrem-se para um mundo
onde os seus códigos, ritos e fauna se encontram invertidos.
Mas são também estes espaços histéricos onde o rir e a alegria
são sempre um pouco forçados e que proporcionam muitas das
vezes o festivo mecânico à custa de barulho, confusão, fumo. O
estroina é uma espécie de profissional do imponderável, de
estratego da exuberância.
Deveremos de qualquer modo e sem razão opor a esta avalanche
de artifícios a autêntica festa "sem cerimónia". Sobre toda a
reunião de humanos que bebem, dançam e petiscam paira a ameaça
do fracasso, do entediante como se os deuses tivessem
abandonado a cena. O sucesso deste tipo de reuniões depende de
uma misteriosa alquimia: em todas as assembleias divertidas
existe um contágio irresistível que não tira a não ser dele
mesmo as suas razões de ser. Mas quando a fusão não acontece,
quando as conversas enlanguescem, quando todos os ingredientes
necessários, música, álcool, droga, sexo, não conseguem
realizar o precipitado mágico, então a graça ocasional da
festa resulta em melancolia.
Diferente da ideologia festiva é a simétrica doutrina do
trabalho - é tão preciso o divertimento como laborar a ponto
de importarmos para os nossos países as festas dos outros, tal
como a Noite das Bruxas -, a mística do espontâneo deixa de
garantir o encantamento, restando só a organização mais
rígida. Eterno paradoxo: desde que ela é em si mesma o seu
próprio pretexto e molda as emoções por encomenda, a festa
acontece menos facilmente. A chispa mostra má vontade em
brotar, um gosto a cinza estraga os mais belos festins.
Desforra dos barretes de dormir sobre os assinantes das noites
brancas. Nós não somos donos dos nossos divertimentos, são
necessárias regras para que eles aconteçam e comecem por mimar
o júbilo para o sentirmos. Existe todo um embuste da
espontaneidade que vale bem o cerimonial um pouco rígido dos
carnavais e das celebrações de outros tempos. O fervor não se
encomenda e por vezes faz-nos a má surpresa de se furtar aos
encontros que lhe marcamos.
(Fim da caixa)

todas as nossas vontades fossem realizadas, não teríamos mais


que definhar de pé: é por isso que a imortalidade prometida
pelas religiões promete sobretudo uma eternidade
embrutecedora.
Viver unicamente para a felicidade, é então viver para
alguns instantes e mandar o resto às urtigas. Isto quer
significar também que a infelicidade começa a partir do
momento em que cessa a felicidade ainda que a maior parte da
existência escape a esta alternativa e se desenrole num
interim levemente coxo feito de contrariedades menores,

97
preocupações, pequenos prazeres, esperas, projectos. Eis que
estamos condenados a maldizer a banalidade ao mesmo tempo que
a aceitamos: ela é o abismo que nos engana e a atmosfera
triste e monótona condutora da luz. Faz sinal em direcção ao
maravilhoso que ela encerra na dupla acepção da palavra,
manifesta e dissimula. É ilógica.

Terceira parte

A burguesia ou a abjecção do bem-estar

Capítulo VII

Essa obscena e próspera elevação do médio,


do medíocre...(1)

"Apelido de burgués todo aquele que pensa rasteiro."


Flaubert

"Nós não lutamos para que o povo se torne feliz. Lutamos


para lhe impor um destino."
Ernst von Salomon

É preciso ser monge ou soldado


Em 1995 em Colmar, dois jovens lançaram engenhos
incendiários contra o restaurante elegante da cidade. O
proprietário pereceu no incêndio. Presos alguns anos mais
tarde, os dois rapazes, aliás de boas famílias, explicaram o
gesto pela sua vontade de derrubar um símbolo da ordem
burguesa.
O burguês! Grande ou pequeno, é desde há dois séculos o ser
mais odiado, o mais vilipendiado, uma espécie de protótipo
abstracto da ignomínia que abandonou a sua verdadeira figura
para se instalar no panteão das divindades malditas. Toda a
história da mitologia antiburguesa não é mais que uma longa
declinação de anátemas: desde o mercador do Antigo Regime que
macaqueia a aristocracia, que se maquilha e dança de forma
grotesca até ao capitalista dos séculos XIX e XX que
enriqueceu à custa do suor e do trabalho do povo. Rejeitado
pela nobreza pelo seu prosaísmo, pela classe operária pela sua
cupidéz, pelo artista que despreza o seu modo de vida baseado
no cálculo e na utilidade, o burguês é de qualquer modo
marcado pela baixeza ontológica.

*1. Herman Hesse.

102
Sovina explorador, grosseiro, só faltava juntar a esse
ramalhete de qualidades negativas uma outra: a de criminoso,
pois sabemos desde Hanna Arendt que foram os indivíduos
excessivamente normais que se tornaram nos executantes da
máquina de extermínio nazi(2). O bom pai de família que Péguy
tinha baptizado como o último grande aventureiro do século XX
é no entanto um monstro em potência, disposto às piores
atrocidades para alcançar a garantia de uma pensão ou do
pagamento de um seguro de vida.
A partir dos românticos e de Nietzsche, existem pelo menos
três agravos pelos quais esta classe tem de responder em toda
a linha, a mediocridade, a vulgaridade, a rapacidade, as três
constelações do cosmos burgués. "É preciso ser monge ou
soldado", exclamava Joseph de Maistre resumindo numa fórmula
toda a grandeza do Antigo Regime animado de algumas paixões
fundamentais. Ora é sobre o declínio destas duas figuras, o
guerreiro e o santo, que nasce o burguês, todo entregue ao
doce comércio, a quem as Luzes conferiram o duplo mandato de
exorcizar a violência e de lhe retirar as pulsões mediante uma
acção metódica. É o interesse, diziam os filósofos franceses e
ingleses, que constitui a mais social e a mais serena das
volúpias: pacifica os costumes e regulariza a existência.
Canaliza o desejo para um único objecto, o engodo pelo lucro,
e substitui as condutas desajustadas pela prudência da
compatibilidade, o gosto pela aquisição, o instinto de
propriedade. Combinando virtudes e inclinações, os negociantes
tornaram-se no verdadeiro modelo dos tempos modernos: "O
comércio sana os preconceitos destruidores e é quase uma regra
geral onde quer que existam brandos costumes, existe comércio
e onde haja comércio, há brandos costumes", escreveu
Montesquieu, que fustigará ermitas e conquistadores imbuídos
de dureza pela sua opção pelos extremos.
Mas antes de marxistas e socialistas terem denunciado de
forma adequada a exploração descarada do proletariado, os
românticos viram nessa pacificação um retrocesso terrível do
humano. A moral burguesa tinha reduzido o desejo somente às
dimensões mesquinhas do enriquecimento material. A vida era
talvez mais calma mas, meu Deus, como era pequena sobretudo
para aqueles que tinham vivido os faustos da monarquia e os
furacões da epopeia napoleónica. "Quem não conheceu o Antigo
Regime não sabe o que é a doçura de viver." Este aforismo
célebre de Talleyrand confirma que a entrada no século XIX foi
vivida por muitos como uma queda, uma nova partida do éden.

*2. George Steiner retomou a hipótese de Arendt ao


aprofundá-la no seu muito belo livro Le Chateau de Barbe-Bleue
Folio, Gallimard, 1973 (tradução francesa). (Edição
portuguesa: No Castelo do Barba Azul: Algumas Notas para a
Redefínição da Cultura, tradução de Miguel Serras Pereira,
Lisboa, 1992, Relógio de Água, Colecção Antropos.)

103
O paraíso sobre a terra prometido pelas Luzes tornou-se num
paraíso terrivelmente terra a terra. E uma felicidade sem
brilho que prométe uma nova classe dos empresários e dos
comerciantes: fora da loja e do dinheiro, nenhuma salvação.
Mais extremos, pontos salientes: a humanidade deveria
devotar-se a estas duas actividades com a monotonia febril do
rebanho. Inimigo de todos os excessos, o pequeno-burguês - de
qualquer modo um homem duplamente pequeno - é o ser insípido
por excelência cujas próprias tragédias não têm glória e
exalam o mau cheiro de cozido.
Qual o crime desta nova classe? De ter recriado o destino
onde a Revolução prometia liberdade, igualdade e mobilidade.
IrÃo restaurar colectivamente uma sociedade de ordens através
das desigualdades sociais e individualmente ao forjar um novo
tipo humano dócil e modesto, idêntico em todas as latitudes.
Como antigamente a aristocracia, a burguesia, apesar dos seus
valores progressistas, revela-se a classe fatal por
excelência. Dá origem a um modelo antropológico inédito, o
homem estandardizado, fabricado em série, novo sujeito
colectivo dedicado às mesmas tarefas, partilhando os mesmos
desejos, pensando da mesma forma. Para designar estas
multidões uniformes, das quais verificava a multiplicação na
Rússia do seu tempo, Gogol inventou a maravilhosa palavra
miuçalha, seres que se podem qualificar como acinzentados,
pois o seu vestuário, face, cabelos, olhos têm um aspecto
turvo e cinzento como os seus dias incertos, nem tempestuosos
nem ensolarados onde o contorno dos objectos se esbate na
bruma(3). Esta produção em massa do semelhante faz do homem
uma espécie domesticada onde cada um é a réplica dos outros,
um animal domado que renunciou a todo o vigor, a toda a paixão
em benefício da sua segurança e da sua felicidade de pigmeu.
O que têm de fascinante as obras de Flaubert, Zola e
Tchekov, é colocarem em cena indivíduos aparentemente livres
mas dominados pelos seus grandes constrangimentos que são a
fatalidade, hereditariedade, família, sangue, dinheiro,
respeitabilidade. Numa época de progresso e optimismo, estes
escritores representam aves de mau agoiro: pobres ou ricos,
alcoólicos ou sãos, as suas personagens carregam com elas a
tara que as destruirá. Os mais refractários, os espíritos
fortes acabam um dia por ser apanhados pela lei comum, punidos
sem piedade por terem querido escapar à ordem(4). É, por
exemplo, o génio de um Tchekov que acaba por nos mostrar, com
uma ponta de crueldade, as almas ardentes, revoltadas, muitas
das vezes mulheres cujo sonho de glória, de beleza sucumbe sob
o alietório da vida.

*3. Gogol, Journal d'un fou, Folio, Gallimard prefácio de


Georges Nivat, pp. 20-21.
(Edição portuguesa: tradução de Pedro Reis, Amigos do
Livro.)
4. Ver Jean Borie, prefácio de La Curée de Émile Zola, Folio
Gallimard, bem como Gilles Deleuze, Zola et la félureH,
Logique du sens, Minuit, 1975.

104
Vejam-se as suas peças ou os seus romances. O que para ele é
importante não é o que acontece mas sim o que não acontece:
não nos amamos, não nos casamos, não partimos(5). As Três
Irmãs encerradas na sua pequena aldeia nunca irão a Moscovo
conhecer um destino mais vasto, a Noiva que grita: "Quero
viver [...] ainda sou jovem e haveis feito de mim uma mulher
velha", despede-se dos seus, cheia de alegria, segura de
abandonar a sua aldeola natal para sempre segundo acreditava,
acrescenta o autor, insinuando que se trata de uma falsa
partida. O herói de Tchekov é um ser que se levanta para
caminhar em direcção à liberdade mas que sempre estrebucha e
cai. Os rebeldes estão destinados a ser esmagados como os
outros. É sem dúvida o que Sartre queria dizer quando
comparava burguesia a passividade e mesmo a viscosidade do ser
ou quando Paul Nizan descrevia esta classe como uo mundo das
vidas falhadas toda ela "exposta à morte" (Antoine Bloyé,
1933).

A guerra: Porque não?


Seria divertido!

A esta uniformização geral dos ideais e dos


comportamentos, os séculos XIX e XX responderão com o sonho de
uma catástrofe ruidosa, revolução ou conflito, que
interromperia o curso demasiado monótono do tempo. Antes a
barbárie que o tédio, este grito de Théophile Gautier em 1850
vai iluminar toda uma época de rancores e de desgostos. Pois
que a vida, sob o céu cinzento da ordem burguesa, convida à
letargia mais fétida, sendo preferível optar pela moral
predadora do aristocrata ou pela liberdade do selvagem
orgulhoso do seu corpo e dos seus desejos. É a guerra, a
conflagração geral, que para muitos parecerá munida de todos
os atractivos da novidade e da sensação, sobretudo depois do
longo período de paz que a Europa tinha atravessado até 1914.
Enfastiadas pela uniformidade e pela quietude da sua
existência, as nações europeias acarinharam a ideia de um
divertido apocalipse antes de efectivamente ter ocorrido.
Como o exprime umjovem pensador em 1913: "A guerra: porque
não? Seria divertido."(6) Não contente por ser recreativa, ela
representa para muitos a mais bela das sínteses, a reunião da
energia do bárbaro e da valentia feudal. É o sociólogo Werner
Sombart em 1915 que opõe o espírito de lojista dos Ingleses ao
heroísmo dos Alemães, descendentes dos valentes cavaleiros
teutónicos.

*5. Wladimir Troubetzkoi, prefácio de La Fiancée de Tchekov


Garnier-Flammarion, p.11.
Edição portuguesa: tradução de Augusto Pastor Fernandes,
Lisboa, 1965, Editorial Presença. (N. do T.)
6. Citado por Julien Benda, La Trahison des clercs, Grasset,
p. 211.

105
É sobretudo Adolf Hitler em 1914 ao ajoelhar para agradecer a
Deus por a guerra ter eclodido pois via nela a pátria natural
do homem, a prova suprema que transforma as trincheiras num
mosteiro com as paredes a arder.
Na minha trepidante juventude, nada me afectou mais que ter
exactamente nascido numa época que visivelmente só erigia os
seus em honra dos lojistas e dos funcionários públicos. As
flutuações dos acontecimentos históricos pareciam ter já
acalmado e o futuro parecia na realidade pertencer à
competição pacífica entre os povos, quer dizer, à exploração
recíproca e consentida que eliminava todos os métodos
violentos de legítima defesa. [...] [Também quando o conflito
de 1914 eclodiu] aquelas horas foram como uma libertação das
penosas impressões da minha juventude. Mesmo hoje não tenho
vergonha de confessar que dominado por um entusiasmo
tumultuoso, caí de joelhos e agradeci de todo o meu coração ao
Céu ter-me concedido a felicidade de viver nessa época (7).
À vulgaridade do último homem de Nietzsch unicamente votado
aos seus pequenos prazeres, todo o século XX, do coronel
Lawrence às Brigadas Vermelhas, passando pelos Futuristas e os
Corpos Francos, opôs o romantismo das almas vulcânicas,
impacientes por se perderem nas "tempestades de aço" (Ernst
Jünger) e de espezinhar essa porcaria de culturas. É preciso
ser-se duro ou mole, como se exprimiam os teorizadores do
nacional-socialismo, ter a consistência de um bloco ou a
inconsistência de uma bulimia, cultivar a camaradagem da
máquina que nos dará almas e corações de ferro(9). Bem
conhecemos o fascínio exercido sobre os intelectuais do século
XX, todos de origem burguesa, pela violência e pela
brutalidade, o seu gosto pelas "situações limite" (Jaspers), a
sua inclinação para os políticos maquilhados no pior sentido
com a preocupação de justiça. "Só quero viver no extremo.
[...] Tudo o que é medíocre me exaspera a ponto de me levar a
gritar", exclamava exaltado Drieu La Rochelle em 1935 depois
de ter visitado Nuremberga e Dachau e quando partia para
Moscovo. Nove anos mais tarde, em 1944, anota, no seu Journal,
a sua admiração por Estaline, o novo amo do mundo mais forte
que Hitler.

*7. Adolf Hitler, Mein Kampf, Nouvelles Éditions latines,


pp. 158-159. (Edição portuguesa: A Minha Luta, tradução de
Jaime de Carvalho, comentários de A. H. de Oliveira Marques,
José Martins Garcia, Rolão Preto e Sanches Osório, Lisboa,
Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite, 1976, pp.118 e
121.) s Citado por Hanna Arendt, Le Système totalitaire,
Points-Seuil p. 52. (Edição portuguesa: O Sistema Totalitário,
tradução de Roberto Raposo, Lisboa, 1978, Publicações Dom
Quixote, Colecção Universidade Moderna.)
9. Tratam-se respectivamente de Alfred Hugenberg em 1928 e
Kurt Schuder em 1940. Citados em Peter Sloterdjik, Critique de
la raison cynique, Christian Bourgois, pp. 555, 556.

106
O crime da burguesia? É preferir a segurança à coragem, a
sobrevivência medíocre à morte gloriosa num banho de sangue
redentor.
A felicidade burguesa é duplamente odiosa: para os crentes,
exalta o materialismo que faz bom negócio com a salvação
espiritual; para os revolucionários consagra o triunfo dos
homenzinhos que não ousam pôr a sua vida em jogo perante a
prova do sacrifício supremo. Sim, antes ser um terrorista, um
criminoso, que um modesto funcionário ou um pequeno patrão! E
antes Mao ou Pol Pot, Castro ou Milosevic que a nauseante
dominação burguesa. Mesmo Auschwitz é para alguns preferível
ao pesadelo cibernético das nossas sociedades(10), Graças a
Deus, não temos de escolher entre inferno e enfastiamento.
Como sabemos, a guerra no Ocidente deixou de ser receita; os
nossos exércitos adoptaram - pelo menos para eles - a palavra
de ordem de zero mortos e o século passado talvez nos tenha,
provisoriamente, vacinado contra as matanças colectivas (mas
não contra a violência que ressurge cada vez mais bela). O que
desvalorizou a guerra é a sua muito singular aliança do horror
com o tédio. Com ela é o pavor que raciocina: ao procurar pôr
em causa a monotonia, reconduziu-a a um grau inigualável. E os
nossos contemporâneos, tendo a sua vida pessoal como superior
a todas as coisas, não querem, com razão, nem a rotina nem a
matança e estão imunizados contra a poesia do abismo. Mas
sobretudo o que mudou no Ocidente, a partir dos anos 60, é a
libertação dos costumes. É ela que nos incita a procurar nos
prazeres amorosos ou em certas drogas a intensidade que outros
anteriormente encontravam no risco das empresas bélicas, mas
isto é um outro problema, ver o prazer, por seu lado, anexado
pelo reino da repetição (a grande aventura moderna, é a
aventura íntima, a exploração dos espaços interiores). Dito de
outra forma, adquirimos o direito a viver de outra forma, de
escapar ao agrilhoamento do modelo único. Abalada pela
contestação, a burguesia teve de se questionar e aceitar não
ser a última palavra do homem, a figura canónica da vida
civilizada. Os Anos Loucos, as revoluções artísticas, a
emancipação do pós-Guerra, a erupção do jazz e do rockn roll
marcaram a abertura da sua terrível empresa à sociedade.
A mesma moral da suspeita que lhe tinha permitido arruinar a
sublime aristocracia virou-se contra ela e obrigou-a a
abrir-se, a ver-se permanentemente sob os olhos do outro.
Anteriormente o novo burguês "confia na decência, menospreza
todo o dever de fidelidade à colectividade, é consciencioso de
dia, devasso à noite" (Daniel Bell)
*10. E que lirismo existe também nos massacres de Auschwitz
quando os comparamos com as mãos geladas do condicionamento
generalizado que se estende sobre a sociedade futura e tão
próximo da organização tecnocrática dos cibernéticos. (Raoul
Vaneigem, Traité de savoir vivre..., op. cít., p. 21.)

107
e mistura na sua vida a ética neoliberal com o frenesim dos
prazeres herdado dos anos 60(11). Mas sobretudo tornou-se no
homem da má consciência, o que vomita em pedaços ou na
totalidade o meio de onde é oriundo (toda a obra do sociólogo
francês Pierre Bordieu testemunha por exemplo este ódio que a
pequena burguesia tem por si própria e que a incita por um
lado a espezinhar a sua classe de origem e, por outro, a
mostrar quando face a face com as altas esferas, os donos do
mundo, uma reprovação reverencial, uma hostilidade cheia de
respeito).
Como reconhecer um burguês? Pela forma como maldiz com
desfaçatez a burguesia, pela sua odiosa respeitabilidade, pela
sua atroz hipocrisia. Rapidamente o autodenegrimento se tornou
na forma de estar do burguês: porque pertence a uma classe que
deve constantemente relegitimar a sua existência e não cessa
de espezinhar os princípios que apregoa, é constrangido a
viver dividido, virado contra si e a dar "em parte razão aos
seus adversários" (François Furet). Daí que realmente chocados
quando os conservadores europeus ou americanos, retomando os
assomos de cruzado dos seus antepassados, pretendem de novo
regulamentar os nossos costumes e as nossas intimidades, a
todos impor um modo de vida idêntico. Que contra-senso a este
respeito é ver no Pacs* ou num eventual casamento homossexual
o meio adequado para serem adoptadas as premissas de uma
desorganização da ordem familiar! É exactamente o inverso: é a
nossa ordem familiar que triunfa, seja qual for a capela a que
pertençamos, e não se consegue descortinar em nome de que
argumento, antropológico ou outro, se podem aqui levantar
objecções. Notemos no entanto que o que outrora se chamava a
asneira burguesa, a volúpia da boa consciência, a estreita
auto-adesão, que ainda sobrevive maciçamente na burguesia,
estendeu-se aos seus inimigos e abarca todos os grupos,
categorias sociais, minorias étnicas ou sexuais, que se tornam
orgulhosos de ser o que são e o publicitam com uma arrogância
sem rebuço. Não se declina a sua identidade a não ser para
melhor incitar os outros a curvarem-se e é ruidosamente
exposta talvez por temor de não existir sem ela. Como se
mediante esses movimentos constituísse uma excepção que
desculpa as suas manias e os livrasse das dores de ser posto
em causa, da obrigação de viver fora de si. O conformismo do
anticonformismo vale bem um outro e a polícia dos marginais

*11. Como brilhantemente notou Mark Lilla: La double


révolution libérale: sixties et Reaganomics, Esprit, Outubro
de 1998.
*. Acrónimo de Pacto Civil de Solidariedade. Contrato,
criado em França por lei de 1999, celebrado entre dois
sujeitos solteiros do mesmo sexo ou de sexo diferente,
separados por mais de três graus de parentesco, destinado à
organização da vida em comum, produzindo consequências
jurídicas imediatas (ajuda mútua e material) e diferidas
(fiscais, doações, legados, sucessão, etc.). (N. do T.)

108
nada tem a invejar à dos normais sobretudo quando tem o álibi
da rebelião(12). Hoje o Sr. Prudente diz-se artista e toma a
pose do subversivo, do grande resistente (ao Capital, à ordem
moral, ao racismo, ao fascismo, à censura, etc.). O que os
vitupérios antiburgueses têm de específico é manterem-se à
custa do objecto da sua imprecação. Não vituperam para matar
mas para preservar.
Amargo triunfo Pois por uma ironia maligna ou maldita, como
se quiser, a burguesia não somente sobreviveu à sua destruição
anunciada como proliferou a ponto de se tornar na nova classe
universal, a meio caminho entre os muito ricos e os muito
pobres, mal o proletariado, ex-sujeito messiânico, decresceu
numericamente por todo o lado em benefício do assalariado
precário. Rapidamente o burguês deixa de ser Outro e os seus
detractores mais ferozes, tal como o artista, não representam
senão a sua variante mais ou menos pitoresca. Dado que a
burguesia absorveu os modos de vida que a desafiavam, as
diferenças de classe continuam sempre a existir mas no
interior de um mesmo conjunto e para se desenrolarem numa
esfera única, o que não as torna menos ferozes. E essa mesma
massa dominante opõe-se a todos os excluídos que formam nas
suas fronteiras um agregado turbulento e crítico, tanto mais
amargo quanto não é de momento portador de qualquer projecto.
Se nada escapa ao imenso polvo das classes médias, resta-nos
pelo menos o recurso de as desprezar, quer dizer, de nos
desprezarmos, de nos flagelarmos sem descanso. De políticas,
as críticas antiburguesas tornaram-se com o tempo culturais e
mesmo metafísicas.
Que sejamos de uma forma ou doutra todos burgueses, é o que
prova a nossa religião da economia elevada à categoria de
espiritualidade suprema. No entanto, desempenha o papel do
absoluto, é mediante os seus critérios que se avaliam o nosso
contentamento e a nossa inquietude, em resumo ela é o nosso
destino em lugar de nos prestar um serviço. Daí decorre a
moderna confusão entre conforto, bem-estar e felicidade e a
nossa veneração pelo dinheiro: pois todos nós nos tornamos
protestantes no sentido de Max Weber, todos nós acreditamos
nas virtudes do dinheiro e no dinheiro como virtude,

*12. Segundo Lucien Sfez em 1995, 48% dos estudantes de


literatura em Stanford (Califórnia) declararam-se
homossexuais, número que tem pouco a ver com a realidade. O
autor vê três razões para este fenómeno: é elegante dizer-se
homossexual longe da imagem brutal do heterossexual; os
homossexuais sendo uma minoria são protegidos organicamente e
por fim não podem ser acusados de assédio sexual. La Santé
parfaite, op. cit., p. 65.

109
(mais exactamente, é uma variante puritana do protestantismo
que teve origem na América e que a partir dali se estendeu ao
mundo inteiro). É talvez esta a debilidade das doutrinas
utilitaristas ao postularem um Soberano Bem que deveria por
todos ser seguido e que tornasse possível o acordo das boas
vontades. Têm o mérito de promover uma política progressista
que defende as conquistas do welfare state; mas pendem para a
coacção quando definem de forma discricionária os conteúdos
com risco de excluir quem quer que desafie a regra: quando,
por exemplo, penalizam os fumadores inveterados pelo motivo de
que um homem que destrói a sua saúde não pode ser feliz ou
quando se inquietam gravemente com as repercussões do limite
de velocidade de 55 milhas horárias sobre a nossa felicidade
pessoal(13). Não existe nada de repreensível nestes sujeitos,
antes pelo contrário, e será necessária uma verdadeira
reviravolta política e moral para conceder o direito ao
bem-estar e à comodidade à plebe. Relembremo-nos que no século
XIX os reaccionários acreditavam ser indispensável à
manutenção da paz social que se mantivesse o povo receoso e na
indigência. Mas se os governos podem criar condições óptimas,
favorecer toda a espécie de fins que são bons em si (saúde,
alojamento, educação, segurança) não lhes é permitido decidir
sobre o que deve ser a vida feliz. Os homens não se entendem a
não ser sobre os males que pretendem evitar; não saberiam,
pelo menos em democracia, pôr-se de acordo sobre o lugar que o
bem supremo deveria ocupar quando deixado à apreciação de cada
um. Pode debater-se esta questão até ao infinito, pode
verificar-se com espanto as mil vias de acesso ao
encantamento, cortejar em sede do consentimento de outrem mas
não de impor ou de decretar.
Por outras palavras, existem políticas do bem-estar, não
existem políticas dafelicidade. Se a miséria torna infeliz, a
prosperidade não garante minimamente a euforia ou o deleite. É
o perigo de inscrever o direito à felicidade na Constituição:
seja pela sua diluição numa miríade de direitos subjectivos
que ignoram o interesse comum; seja por se deixar a uma
oligarquia ou a um Estado o cuidado de dizer o que é
preferível sob pena de se cair no autoritarismo.
Villiers de L'Isle-Adam tinha imaginado um aparelho para
recolher os últimos suspiros a fim de tornar menos cruéis os
últimos momentos dos que nos são próximos. Reich tinha
construído uma máquina para acumular a energia orgonótica.
Garantimos que no presente um grupo de cientistas está em vias
de construir um "hedQnómetro" tendo em vista medir a FNB
(Felicidade Nacional Bruta(14), a taxa de bem-aventurança numa
dada população, tal como se mede a taxa de humidade no ar.

*13. Charles Murray, Pursuit of Happiness and Good


Governement, Simon and Schuster, Nova Iorque, 1988, p.186.
14. Segundo a expressão adoptada pelo Clube de Roma por
oposição a PNB.

110

(Caixa de Texto)
Sensaboria das preces atendidas
As ilusões perdidas: opõem-se normalmente desde a época
romana aos sonhos heróicos dajuventude. A existência seria o
trajecto fatal da esperança em direcção ao encantamento, uma
empresa de entropia perpétua. A esse lugar comum dos sonhos
arruinados, é todavia possível opor um outro modelo: o da
surpresa bem-aventurada, das ilusões reencontradas. Pois o
mundo dos sonhos, contrariamente ao que se diz, é pobre e
mesquinho quando a realidade, desde que a começamos a
explorar, nos sufoca com a sua abundância, com a sua
diversidade. "Chamo embriaguez do espírito", dizia Ruysbroek,
um místico flamengo da Renascença, "a esse estado onde o
prazer ultrapassa as possibilidades que o desejo tinha
entrevisto."
Ao princípio da anterioridade que julga a vida segundo um
programa, é necessário opor o princípio da exterioridade: o
mundo extravasa infinitamente as minhas representações ou as
minhas esperanças pelo que é preciso que façamos o funeral a
estas para que o comecemos a amar. Não é ele que é
decepcionante, são as quimeras que espartilham o nosso
espírito. Sensaboria das preces atendidas: existe algo de
muito profundo nesta sabedoria que nos põe em guarda contra
nunca encontrarmos aquilo que procuramos. Guardai-me daquilo
que quero, guardai-me de viver na Idade de Ouro, no jardim dos
desejos satisfeItos.
Nada de mais triste que o futuro quando se assemelha ao que
havíamos imaginado. Decepção quando os votos coincidem com
aquilo que vivemos ainda que haja uma emoção particular por
ver as nossas expectativas frustradas por incidentes
particulares. (Também a literatura da felicidade é na maior
parte dos casos uma literatura desenganada: seja por a
esperança ter sido traída, seja, mais perturbante, que tenha
sido esperada, o desejo saciado, quer dizer, morto.) Mais que
o projecto realizado, o prazer nasce do projecto desviado cada
vez que uma peripécia o leva para longe. Se o tédio está
sempre ao lado do equilíbrio, existe um transbordar alegre
desde que o imaginário cede em prodígios perante o real:
"Tinha de me pronunciar sobre o pêndulo e o sino, confesso
agora ter sobretudo escolhido o som" (Victor Segalen). Toda a
vida exaltante é em simultâneo realização e derrota, quer
dizer, uma maravilhosa decepção quando acontece aquilo que não
se desejaria e quando nos tornamos sensíveis a tudo o que faz
a existência opulenta, fremente, plena. A derrocada da ilusão
é sempre uma porta aberta para os milagres.
Dito de outra forma, talvez não deixemos de oscilar entre
duas atitudes fundamentais: a do juiz que condena a vida
porque a avalia sob o prisma da utopia ou de uma ideia
preconcebida (o Paraíso, os amanhãs que cantam, a felicidade)
e a do advogado que a defende e a celebra custe o que custar
nos seus dissabores como nos seus atractivos, quando ela
abençoa com crueldade ou quando acaricia com suavidade. E
quando o acusador exclama: fui enganado, o defensor responde:
fui satisfeito.
(Fim da caixa)

Qualquer que seja a engenhosidade do


cálculo, pode apostar-se forte que os números pouco terão a
ver com a "felicidade", a qual não pertence ao domínio da
estatística nem da necessidade.
Mais, desde 1989 o furor do capitalismo, longe de decrescer,
tem-se intensificado dada a ausência de alternativas, onerando
este sistema os destinos do mundo com o peso da fatalidade.

111
Não lhe fazemos o crédito de nenhuma benfeitoria, levando-lhe
a débito todas as infelicidades. Embora tenha triunfado sobre
o comunismo, falhou perante si próprio as promessas que nos
prodigaliza pela voz dos seus teóricos ao deixar partes
inteiras do planeta na penúria e na indigência. A única forma
de o matar seria adoptá-lo em massa e em exclusivo até que
perecesse sob o peso das suas contradições. Mas como não se
alimenta a não ser dos seus críticos, recebe deles um alento
de energia, a garantia da ressurreição permanente. É um
organismo em mutação e em permanente regeneração sob uma forma
que nunca esperaríamos. Por uma estranha distorção, os que o
fustigam não almejam outra coisa que não seja combatê-lo no
seu próprio terreno ou fazer melhor que ele.
Acreditam-se como adversários, mas mais não são que
cortesãos, pensam trabalhar para o seu passamento, mas laboram
para o seu aperfeiçoamento. Daí o lado encantatório da palavra
anticapitalista (ou antiliberal) que contém em si e em
simultâneo o anátema e o serviço, pois que ao sublinhar as
falhas do sistema, permite que se reconstitua sem que se
desmorone.
A execração antiburguesa tem pela frente dias radiosos:
mediante essa figura de retórica, e toda a modernidáde, que
grita o seu ódio por si mesma, que repudia os fracassos e as
suas baixezas, condensa a aversão que carrega em si. Pois a
modernidade não se ama (mesmo quando se designa
pós-modernidade). Elevou tão alto as esperanças humanas que
mais não póde fazer que decepcionar. Vingança despeitada das
religiões: talvez não estejam bem de saúde mas o que se passa
com a burguesia também não é bom. Não sei se devemos
acreditar, como muitos afirmam, no aparecimento de uma
hiperclasse (Jacques Attali) transnacional, dona dos fluxos e
dos saberes e que instauraria uma espécie de apartheid à
escala planetária. Pelo contrário, e tendo em conta a história
próxima, é necessário talvez reduzir estas fracções da
burguesia que, por frustração, horror de si mesmas, estão
prontas como no século XX a fazer alianças com a plebe e a
relançar a aventura totalitária, bem entendido em nome da
justiça social, dos condenados da terra, da raça, da
civilização ou não importa que outra camuflagem. Desconfiemos
dessas elites que se aborrecem, maldizem a pequenez das suas
vidas e olham de soslaio o apocalipse e o caos.

Capítulo VIII

A felicidade de uns é o hitsch dos outros

Um abismo sem fundo


No processo intentado após a Revolução Francesa à cultura
democrática, existe uma palavra que surge sem cessar: a
vulgaridade. Pois ela, de aparição recente, nasceu no momento
em que o povo, de subjugado, se torna, pelo menos
nominalmente, o principal actor da vida política. Propaga-se
com a mobilidade social que desemboca na confusão de classes,
coloca lado a lado o nobre e o vilão, o urbano e o camponês, o
proletário e o patrão, constitui essa terrível dissonância que
brota da agitação de meios diferentes, de castas separadas que
não souberam permanecer nos seus lugares. A vulgaridade
apodera-se do planeta a partir do momento em que, por um lado,
as virtudes aristocráticas e, por outro, a ingenuidade do povo
enquanto classe em formação desaparecem em benefício desse
objecto aleatório, as classes médias, que se mantêm
equidistantes dos extremos, pretendem-se o garante da
moderação e das instituições, de acordo com um esquema que
Aristóteles, esse filósofo da continuidade humana, já tinha
desenvolvido(1). São também uma zona de circulação, um local
de amálgamas impuras onde as divisões anteriores se confundem.
Tudo o que é médio não é forçosamente medíocre: é também
mediação, lugar de confluência e de convergência de
intercâmbios.

*1. "Em todos os Estados sem excepção, existem três grupos


de cidadãos: os muito ricos, os muito pobres e em terceiro
lugar os que se encontram no meio. Se admitimos que nada é
relevante a não ser o que é moderado e o que se encontra no
centro é evidente que tal como para os bens da fortuna o
melhor é possuí-los de forma moderada. Pois é assim que mais
facilmente podemos obedecer à razão" (citado por acqueline de
Romilly Problèmes de la démocracie grecque, Hermann, 1975,
pp.177-178). A classe média, segundo um raciocínio que será
mais tarde o de Michelet e de Rayxnond Aron, não é nem
bastante rica para se permitir a ociosidade nem demasiado
pobre para se revoltar.

114
E as classes médias correspondem à tripla definição do
nivelamento, do equilíbrio e da porosidade.
Que o povo seja naturalmente grosseiro, não é nada de novo.
Antes de ser sinónimo de mártir ou de revoltado na cristologia
socialista, significou então um estado primitivo da
consciência. Platão em A República comparava-o a um grande
animal que era preciso acariciar ao correr do pêlo para o
lisonjear, animal ignorante e estúpido que desempenha o mesmo
papel na condução do Estado que um capitão de navio cego e
surdo em questões de navegação. Durante o Antigo Regime
existiam duas humanidades lado a lado que nunca se misturavam,
barreiras estanques separavam a plebe do resto da sociedade.
Tudo se altera com o desaparecimento do mundo feudal. Mas o
povo, tendo em princípio acedido à qualidade de soberano, é
sempre visto com suspeição quanto aos seus gostos. Kant
explicará assim que o camponês grosseiro, demasiado rústico,
não pode apreciar a beleza dos glaciares ou dos cümes onde não
vê mais que perigos e aflições. O plebeu, o servo, o vilão, de
quem na Idade Média se dizia que a alma lhes saía pelo rabo,
aqueles cuja morte, nas canções de gesta, outrora se prestava
a riso, tornaram-se talvez as personagens principais nos
negócios da cidade, permanecem por natureza impermeáveis ao
sublime. Se pretendessem nela misturar-se, opinar, sucumbiriam
na estupidez.
A vulgaridade não é a falta de maneiras do rústico pouco
polido, objecto clássico de troça por parte dos nobres, tem
início com o Burguês Fidalgo, que mima o aristocrata que nunca
será, marca sobretudo uma etapa decisiva: a intromissão das
massas nas maneiras e nos costumes, dito de outra forma, a
elevação do inferior ao mesmo nível do superior. É uma
consequência da igualdade, sintoma de um tempo que pretendeu
minar as hierarquias, substituir as almas bem nascidas pelos
espíritos merecedores, conceder a todos as mesmas
oportunidades. Os valores são rebaixados, as distinções
apagadas: a mulher mundana pode revelar-se uma devassa, o mais
elevado dos dignitários um aventureiro de baixo estalão. A
vulgaridade, para retomar as palavras de Zola a propósito do
II Império, é a orgia, a mistura dos géneros: é a investida em
direcção aos prazeres fáceis, a amálgama das ordens e das
prerrogativas, a proximidade universal, a desordem dos
apetites e das ambições; é enfim o triunfo do arrivista (e o
seu corolário o pária), do iletrado milionário que trata de
adquirir alguns rudimentos de boas maneiras e de cultura para
lançar um véu pudico sobre as suas origens(2).

*2. Emile Zola, La Curée, resumido por Jean Borie no seu


prefácio, Garnier-Flammarion, pp. 21-22.

115

As estratégias do usurpador

A vulgaridade é uma perversão do mimetismo, uma doença da


legitimação: consiste sempre em dissimular o que se não é. Em
lugar de se submeter a uma aprendizagem paciente, o vulgar
instala-se no lugar daquele que imita e que pretende
igualá-lo, senão mesmo destroná-lo.
A vulgaridade reforça então a história da burguesia como a
sua sombra projectada e lança a dúvida sobre as suas mais
belas conquistas: esta classe não traiu somente a sua missão
ao criar sobre ela um terceiro estado, inclinou-se perante
aqueles que tinha vencido ao tomar lhes as formas e a maneira
de viver. A nobreza fascina o burguês porque é detentora de um
grande estilo que a este sempre faltará: copia-lhe as suas
maneiras com uma aplicação que raia o grotesco pois espera
assim fundir na tradição uma existência de que é desprovido3.
O imitador pretende captar a alma, mas permanece ao nível da
aparência e atola-se na paródia. Combina de uma forma
trapalhona os sinais que não domina e arregimenta-se sob a
forma de pleonasmo à casta que ambiciona pertencer.
O excesso em lugar da simplicidade, a ostentação berrante em
vez e em lugar da distinção, eis o que trai o plebeu desejoso
de se assimilar.
Esta é a razão por que a vulgaridade anda de braço dado com
o dinheiro, quer dizer, com a tentação de comprar a elegância,
a classe, a consideração que não se teve à nascença: no que a
personagem do novo rico é emblemática. Na sua tentativa de
converter a gramática do ter em língua do ser, faz demasiado,
trai as suas origens no próprio momento em que pretenderia que
elas fossem esquecidas. A tudo quanto diga ou faça, falta a
displicência, o a-propósito, o desembaraço dos bem-nascidos.
No seu vestuário de muito bom corte, nos seus propósitos
falsamente descontraídos, tem sempre um ar de endomingado. E
os seus esforços patéticos lançam-no nessas trevas de onde
tanto queria sair. O que o arrivista aprende à sua custa, é
que não se consegue alcançar a distinção pelo facto de se ser
rico e que não se pertence aos ricos porque se tem dinheiro:
basta ser um indivíduo de sucesso para que os mais altamente
colocados o mostrem reconhecer. Há os que têm dinheiro,
existem aqueles que são dinheiro, os herdeiros saídos da nobre
linhagem e os carenciados a quem sempre faltarão educação,
pátina do tempo, refinamento.
Como não reconhecer, apesar de tudo, que a brutalidade do
novo rico é sinal de vitalidade, factor de movimento(4)?

*3. Ver a este respeito o excelente estudo de Philippe


Perrot, Le Luxe, Seuil, 1995, nomeadamente páginas 163 a 167.
4. Se não falta em França uma sociologia do novo dinheiro
[Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot deram um valioso
contributo em Nouveaux patrons, nouvelles dynasties
(Calmann-Lévy 1999)] nada que eu tenha conhecimento foi
escrito sobre o formidável sucesso dos repatriados do Norte de
África, sobre a sua fusão com a antiga burguesia, sobre o luxo
ruidoso que por vezes demonstram e que seduz uns ao mesmo
tempo que horripila outros.

116

(Caixa de Texto)
Um gene da felicidade?

Nos anos 70 um grupo de investigadores de neurofarmacologia,


ao inquirirem sobre os diversos efeitos da cocaína e dos
opiáceos, tentou identificar as substâncias cuja presença
variável no cérebro determina em cada indivíduo o dom do bom
humor e da volúpia(5). Invocando uma Hcapacidade hedónicaH,
descreveram a depressão, a frigidez, a tensão como estados
neurológicos determinados. A investigação sobre estas questões
não mais parou desde então. Que em cada um de nós reside uma
desigual aptidão genética para o prazer, stress, dor,
envelhecimento, ninguém o negará. Mas tratar-se-á de um factor
decisivo? Se efectivamente existisse o gene da felicidade,
como os, igualmente fictícios, do crime, fanatismo,
homossexualidade, que alívio! A vida ao deixar de ser uma
história caótica que nós escrevemos de acordo com as
circunstâncias teria então a linearidade de um programa: já
não escrito como outrora no grande livro divino mas na
arborescência do ADN. Seríamos calibrados para um certo grau
de satisfação, marcados pela nossa carga cromossómica
independentemente do que fizéssemos ou quiséssemos. Haveria,
por um lado, os ansiosos dedicados mais que nunca à adrenalina
e à serotonina, do outro, os beatos de cérebro inundado
permanentemente pela dopamina. Acabadas as preocupações
devidas à liberdade, aos acasos: geneticamente predispostos,
logo predestinados.
Ora o grande mistério da felicidade é não se poder reduzir
aos componentes que lhe permitem ou refreiam a emergência:
podemos reuni-los numa união ideal, ela a todos ultrapassará,
não se deixando nem assediar nem definir e desagrega-se qual
asa de borboleta quando se acredita que a possuímos. Mas
sobretudo a vida tem sempre a estrutura da promessa e não do
programa. Nascer é de algum modo ser prometido à promessa, a
um futuro que palpita diante de nós e que ignoramos. Dado que
o futuro esconde a face do imprevisível e do desconhecido,
esta promessa tem um preço. É apanágio da liberdade só
conduzir a existência até onde ela é esperada, só frustrar as
inscrições biológicas, sociológicas. A excitação de não saber
de que será feito o amanhã, a incerteza do que nos espera é em
si superior à regularidade de um prazer inscrito nas nossas
células. Em todas as hipóteses, é um valor que ultrapassa
infinitamente a felicidade, é o romanesco, essa faculdade
maravilhosa que o destino tem de nos reservar surpresas até ao
fim, de nos surpreender, de nos arrancar dos carris onde
estamos presos. A uma felicidade sem história, não será
preferível uma história sem felicidade mas cheia de
sobressaltos? Nada de pior no caso que essas pessoas
eternamente alegres, em todas as circunstâncias, que colaram
uma máscara radiosa na face como se resgatassem
definitivamente a alegria a uma condenação.
(Fim da caixa)

O que inquieta no arrivista não é tanto a sua insolência mas a


sua insidiosa corrupção dos códigos segundo os quais se vive.
Ser copiado, é ser desapossado, é ser abalado na sua
legitimidade, é quase ser virado do avesso.

*5. Tratam-se de Edward Khantzian, Paul Meehl e Donald


Klein, citados em Giulia Sissa, Le Plaisir et le Mal, Odile
Jacob, 1997, pp. 168,169. (Edição portuguesa: O Prazer e o
Mal: Filosofia da Droga, tradução de Magda Bigotte de
Figueiredo, Lisboa, 1999, Instituto Piaget, Colecção
Epistemologia e Sociedade.)

117
A este respeito a Roma livre da vulgaridade chama-se para
muitos América essa filha transviada da Europa, mas mais
bem-sucedida. Já Schopenhauer o notava no século XIX:
O carácter próprio da América do Norte é a vulgaridade em
todas as suas formas morais, intelectuais, estéticas e
sociais; e não só na vida privada como também na vida pública;
não abandona o Yanhee que se arranja como pode. [...] É esta
vulgaridade que o opõe assim tão absolutamente ao Inglês: este
pelo contrário esforça-se sempre por ser nobre em todas as
coisas; e é por isso que os ianques lhe parecem tão ridículos
e tão antipáticos. Eles são apropriadamente os plebeus do
mundo inteiro.
Resta conhecer a forma como estes plebeus contaminaram o
mundo inteiro com a sua forma de vida e porque a epopeia
americana se espalhou por todo o planeta a ponto de pelo seu
lado se ter tornado objecto de um mimetismo universal. É
preciso dizer então que existe na vulgaridade, quer dizer na
falta de maneiras da macacada, uma energia formidável, um
trabalho cujo resultado é muitas vezes a criação sob uma forma
inédita. É um dos caminhos que serve a novidade para que esta
veja a luz do dia. A força da vulgaridade americana, é estar
imbuída de um espírito de batedor que quebrou todos os laços
com os modelos e que, nos seus decalques desmesurados das
outras culturas, inventou o nunca visto, uma nova civilização.
Para um kitsch salvador Segundo um rumor que corre pelo
menos há século e meio, a modernidade, vitoriosa politicamente
constituiria um desafio estético, o domínio do pequeno pelo
grande, do mesquinho sobre o nobre, do emaranhado sobre a
harmonia. Empanturrado de objectos inúteis, o homem moderno
teria trocado as graças do espírito pelos valores de pacotilha
da distracção. Dado já nenhuma classe ou elite fixar os
cânones ou as normas, foi dado livre curso à subcultura
mercantil e mediática para impor por todo o lado as suas
aproximações, o seu simplismo, a sua patetice. Nem tudo é
falso neste julgamento. A vulgaridade é bem o sintoma de uma
sociedade que nada mais tem que ela mesma e que pretende
conceder legitimidade a todas as manifestações colectivas ou
individuais. É a contrapartida da soberania popular quando
esta, ultrapassando as suas competências, pretende exercer o
seu magistério sobre os modos e as artes. Esta é a razão por
que se não queremos transformar a democracia num fracasso
espiritual se deverá proteger o povo soberano de si próprio,

118
contra as suas manias, contra a massificação que ele impõe
pelo simples facto do número. É preciso colonizar em benefício
da democracia valores tradicionalmente considerados como
travão à sua expansão: fervor, revolta, grandeza,
intransigência. Para que perdure, a democracia tem necessidade
da sua própria antítese que se arrisca a matá-la mas que
também lhe pode servir para revivificá-la. É necessário então
que se lhe injectem doses homeopáticas de virtudes
aristocráticas ou bárbaras que vão ao encontro dos seus
ideais, declarar "a guerra do gosto" (Philippe Sollers),
restabelecer gradações, abater o tolo, o medíocre, reivindicar
por todo o lado a verticalidade do estilo e do talento.
Ao mesmo tempo será preciso reinventar códigos de cortesia
numa cultura do contacto imediato: contra o tratamento por tu
sistemático instaurado como regra em certos meios de
comunicação, vector de conluio tanto quanto de vulgaridade
desdenhosa (Simone Weil, quando era ministra das Cidades e
contrariamente ao seu antecessor, Bernard Tapie, tratava por
você os seus interlocutores, jovens dos subúrbios, o que não
deve ser entendido como um acto de distância mas de respeito).
E também contra o uso vindo do outro lado do Atlântico de
tratar os desconhecidos pelo seu primeiro nome e se possível
pelo seu diminutivo. O paradoxo é a este respeito a América,
contra o formalismo das maneiras herdado da velha Europa, ter
recriado pelo seu lado um formalismo da espontaneidade, da
cordialidade imediata e transbordante que surge para um
estrangeiro como o cúmulo da hipocrisia (sobretudo quando este
niceism, esta gentileza convencional, se torna de imediato em
indiferença). A delicadeza é uma baixa política, um artifício
admitido para enganar a agressividade, clarificar as misturas
humanas, reconhecer ao outro o seu lugar sem ensombrar a sua
liberdade. É urgente reencontrar uma civilidade que saiba
conciliar deferência com subserviência, recriar regras simples
e nelas se incluir, porque não, a velha galantaria, o tacto, o
"princípio da delicadeza". Existem outras formas de vida em
comum para além da rigidez compassada, a pseudoconivência ou a
velhacaria.
Não se pode no entanto negar que existe uma vertigem do
vulgar, um abismo que nos chama e por sua vez nos atrai. Ao
contrário da mediocridade que nivela e do sentimentalismo que
eufemiza, existe na vulgaridade a vontade de ferir, de chocar,
de fazer ouvir as potências inferiores, o sujo, o ignóbil. Com
certeza que existe um uso erótico da vulgaridade que devolve à
carne a maldição que contra ela foi pronunciada, tem prazer em
humilhar tanto o grande como o pequeno, deixa que o fantasma
fale sem freio, e goza deliciado esta humilhação. E bem
sabemos como é perturbante para algumas pessoas a coexistência
da boa educação e do arrebatamento, do angelicismo de fachada
e da canalhice de facto como se a cortesia, a própria timidez
deixassem emergir um fundo de bestialidade acabrunhante.

119
De igual modo existe toda uma estética do kitsch que vai de
Clovis Trouille a Jeff Koons (ex-marido da Cicciolina),
passando por Almodóvar e les Deschiens, toda uma cultura
estúpida e pérfida que usa e abusa do mau gosto para voltar a
tolice oficial contra ela mesma (assim alguns filmes onde o
sangue corre a jorros ou pornográficos que misturam a nudez, o
sangue, o corpo como um pedaço de carne, para fazer o
espectador perder as estribeiras). Sem esquecer a Frente para
a Libertação dos Anões de Jardim que entregam à floresta, o
seu meio natural, os pequenos gnomos de gesso indevidamente
sequestrados pelos seus proprietários. Apesar de tudo, para
lutar contra a patetice burguesa não encontraram nada de
melhor que recopiá-la linha a linha como forma de vingança.
Tal é a vertigem flaubertiana face à asneira, essa forma
moderna de infinito:
para demolir o imbecil feliz, é preciso que nos tornemos nós
próprios em imbecis mas infelizes.
Este acréscimo de vulgaridade salvadora, destinada a
purificar-nos do lodo social, é uma matéria explosiva que se
arrisca pelo seu lado a contaminar os seus utilizadores. O mau
gosto é um sacerdócio não isento de perigos; e da mesma forma
que os amantes podem cair a todo o instante na crueldade da
rotina, quer dizer, no ridículo, é ínfima a fronteira entre a
vulgaridade subversiva e a vulgaridade condescendente que
reconduz aquilo que deveria contestar. (E paralelamente o
segundo grau do estereótipo, tal como foi praticado por Andy
Warhol ou pela pop art, é muitas vezes uma outra forma de o
amplificar, logo de o absolver.) Decorre tanto da vulgaridade
como da idiotia: para a desalojar, é preciso então
reconhecê-la em si, admitir a sua perturbante sedução, não a
rejeitar acima de tudo. Ela marca também a nossa atracção pela
imitação, pelo pechisbeque, pelo dar nas vistas, todas essas
falsidades que se apresentam com o verdadeiro e que acabam por
o corromper (assim a multidão de falsas louras faz-nos duvidar
que ainda existam verdadeiras mas conduz à busca da verdadeira
falsa loura). A única vulgaridade intolerável é a que se
ignora a si mesma, que se mascara sob os ouropéis da elegância
e do bom tom e estigmatiza a grosseria dos outros. Portanto a
vida quotidiana é sempre kítsch, sempre ligada a um
bricabraque de sonhos risíveis, à universal quinquilharia. É a
razão por que a felicidade de uns é sempre o kitsch de outros;
quando um modo de vida é adoptado pelas classes médias, é
imediatamente abandonado pelas classes superiores. Haveria
então aí uma boa utilização da vulgaridade ao actuar como
higiene mental contra a obscenidade do mundo, como um
detergente que fizesse desaparecer a tagarelice quando reveste
as obras sem originalidade para delas retirar novas fontes de
deslumbramento, de novidade; mas ela é também uma armadilha
que pode ser mortal. Essa grandeza negativa da democracia é em
simultâneo sorte e maldição: garante a mobilidade das formas e
dos destinos mas estende sobre todas as coisas o império da
fancaria e da contrafacção.

120 - 121

A luta contra ela é infindável: renasce à medida que a


afrontamos, gangrena aqueles que acreditam estarem precavidos
e reina tanto mais quanto mais a desprezamos. Não é então
redenção, possível evasão em direcção à alta cultura, às
belas-artes, aos pequenos nichos de qualidade, ao puro
estetismo onde se refugiam de boa vontade no nosso tempo as
paixões elitistas. Tudo está já demasiado comprometido:
estamos destinados a suportar a vulgaridade, a combatê-la e a
amá-la, a manejá-la como uma espada que nos protege e que nos
mata. "É preciso fazer uma barragem contra a merda", dizia
Flaubert vociferando contra as jóias de pacotilha do II
Império. Programa sempre actual. Sob condição de admitirmos
que essa merda nos atrai e nela estamos enterrados até ao
pescoço.

(Caixa de Texto)
Uma vida inteira bem falhada*

"Uma vida conseguida", dizia Vigny "é um sonho de


adolescente realizado na idade madura." Os Gregos viam-na
antes como uma vida reflectida, dedicada ao exercício do
pensamento, uma vida que se expandia mediante fins mais vastos
e que podia servir de exemplo a todos. Pelo nosso lado
diríamos que uma vida conseguida é aquela cuja riqueza parte
de si mesma, que se impõe pela evidência da sua realização e
que não gostaríamos de trocar por nenhuma outra - por mais
modesta que seja - porque nos pertence por direito próprio.
Mas de que se valem todos os destinos, convém deduzir que
alguns nada valem, para banir aqueles que não correspondem aos
nossos critérios? Dado os balanços serem sinistros, mesmo os
positivos, ordenam para se tomar para si o ponto de vista da
morte: é ela que saldará as contas e fará de nós a vítima do
julgamento de outrem. "Um homem só se pode dizer feliz nos
derradeiros instantes da sua vida", dizia Solon. Mas enquanto
respirarmos é injusto submeter-nos à alternativa da vitória ou
derrota. Como Cristóvão Colombo falhou as Índias para
descobrir a América, nós estamos continuamente a falhar a
nossa vida ao consumarmos outra coisa, uma aventura singular
que só se completa no último minuto.
Porque toda a vida é uma causa perdida, assim pode ser em
simultâneo boa e nobre numa aliança indissolúvel de glória e
perdição. Não sendo necessária, ela não carece minimamente de
ser bem-sucedida ou de fracassar, pode contentar-se em ser
agradável. Em certas fraquezas mundanas reside uma grandeza,
uma bondade inconfessada ainda que admiráveis carreiras
transportem consigo seca e desolação. As nossas certezas sobre
a matéria são negativas: não sei o que é uma boa vida, sei o
que é a má, aquela que não quero por preço nenhum. Não me digo
o que deve ser uma existência conseguida, contai-me a vossa,
contai-me a transfiguração dos vossos fracassos numa empresa
que faça sentido para todos. Se não podemos impedir-nos de
colocar a questão, é necessário impedir que lhe respondamos
por medo de fechar ajanela, de esterilizar os possíveis.
Conhecemos essas pessoas ajoujadas por honrarias e medalhas
e que sentem essas condecorações como um caminhar antecipado
para a tumba; estão catalogadas para sempre. Evitemos
concluir, deixemos a cada um a possibilidade de cair, de se
levantar, de se transviar sem que seja encarcerado num
julgamento. Há uma verdade na teoria da reincarnação: é na
verdade neste mundo que podemos conhecer várias existências,
renascer, recomeçar, bifurcar. O essencial é poder dizer:
vivi, e não: vegetei. Nós nunca somos nem salvos nem
condenados; e todos morremos "algures no inacabado" (Rainer
Maria Rilke).
(Fim da caixa)

*. Pierre Autin-Grenier, Toute une vie bien ratée, Folio,


Gallimard, 1997.

Capítulo IX

Se o dinheiro não dá felicidade dai-o!*

São os ricos o modelo da felicidade?

Numa passagem impressionante de Em Busca do Tempo


Perdido, Proust descreve a sala de jantar do Grande Hotel de
Balbec como um imenso e maravilhoso aquário diante de cuja
parede de vidro a população laboriosa de Balbec, os pescadores
e também as famílias de pequeno-burgueses, invisíveis na
sombra, se esmagam contra a vidraça para se aperceberem,
lentamente balanceada em turbilhões de ouro, da vida luxuosa
dessas pessoas, tão extraordinária para os pobres como a dos
peixes ou dos moluscos mais estranhos (uma grande questão
social, saber se a parede de vidro protegerá sempre o festim
dos animais maravilhosos e se as gentes obscuras que olham
avidamente na noite não acabarão por as levar para os seus
aquários e comê-las)(1).
Quem não viveu tais cenas em algumas estações balneares da
Europa onde se vêem os veraneantes a aglutinar se em redor dos
iates e devorar com os olhos os milionários em calções que
tomam uma bebida com uma maravilhosa descontracção. É que a
riqueza é portanto um espectáculo que se exibe, regala os
olhos, aguça os apetites, desperta o rancor. Como se os ricos
tivessem também necessidade de serem reconhecidos pelos que
nada têm e devessem tudo arrasar, mesmo as aparências do
plebiscito.
Durante muito tempo as castas superiores das nossas
sociedades encarnaram a aliança do saber viver, da beleza e
das maneiras; não estavam somente libertas da necessidade como
conduziam a espécie humana a um grau de refinamento e de
extravagância jamais imaginado.

*. Jules Renard.
1. Marcel Proust, A L'ombre des jeunes filles en fleurs,
Pléiade, Gallimard, vol. I, pp. 680-681. (Edição portuguesa: A
Sombra das raparigas em Flor, Lisboa, "Livros do Brasil",
Colecção Dois Mundos.)

124
Paralelamente a esta imagem impôs-se um outro lugar-comum: o
da felicidade dos Grandes. Os ricos entediar-se-iam: forçados
à inacção, entregar-se-iam ao vazio e não saberiam como matar
o tempo que gastam na procura inquieta de novas volúpias.
Expiando o crime de uma escandalosa fortuna, seriam
simultaneamente infelizes e culpados: infelizes pela sua
ociosidade, culpados de viver parasitando uma população que
trabalha e sofre. A ociosidade que deveria ser o seu orgulho -
só os rudes estão votados à punição do trabalho - tornar-se-á
a sua maldição. Estes reis sem divertimento morreriam
docemente de inacção no meio dos ouros e dos faustos.
Confessemos que é um lugar-comum cómodo: permite aos
despojados suportar a sua condição, sendo a dos seus amos
infinitamente mais penosa. Inútil invejá-los ou destruí-los:
eles já se encontram no inferno!
A nossa época pôs termo a esta dupla fábula. Por um lado, os
ricos não são infelizes - se o são isso não se prende com a
sua conta bancária - e ainda menos arrependidos. Alguma vez
vimos um milionário pedir perdão de joelhos no Telejornal das
8? Por outro lado, o tédio, ignorando barreiras de classe,
estendeu-se largamente nos dias de hoje ao mundo do trabalho e
o facto de se ser activo não precata, antes pelo contrário, o
bocejo. Neste aspecto uma das perversões do desemprego é
talvez ter emprestado ao trabalho, mesmo ao mais
estupidificante, uma aura que tinha já perdido durante os anos
de prosperidade. Obcecadas pelo pleno emprego, as nossas
sociedades pretendem ocupar as pessoas a todo o custo e
celebram a escravatura salarial sem se interrogarem sobre a
qualidade dessa ocupação. A ponto de a sobrecarga de trabalho
se ter tornado um sinal ostentatório de potência; e ainda que
as classes laboriosas aspirem à ociosidade, as classes ditas
ociosas tornam-se laboriosas, fixando para si próprias semanas
de 60 a 80 horas e brandindo o excesso de trabalho como índice
da sua superioridade.
Como se encontra repartido por muito poucas mãos, o dinheiro
parecia encarnar todas as maravilhas do mundo. A extensão do
conforto e do bem-estar a uma maioria suplantou por sua vez a
miséria e a grande fortuna. A possibilidade aberta a cada um
de enriquecer ou pelo menos conhecer o desafogo acelerou
completamente e de uma só vez o desejo e banalizou um universo
que outrora parecia maravilhoso. O rico é um pobre que foi
bem-sucedido sobretudo quando vemos tantosjovens tornarem-se,
graças às novas tecnologias, milionários aos 30 anos(2).
Continuamos a espiar a vida dos poderosos; no entanto,

*2. É o fenómeno dos million dollar babies. A Grã-Bretanha


contava no início dos anos 90 com sete mil milionários,
contando com catorze mil neste milénio (Courrier
international, Outubro de 1999). Em cada dia nascerão em
Silicon Valley, segundo um autor americano, 64 novos
milionários (David A. Kaplan, Silicon Boys and their Valley of
Dreams, William Morrow Company Nova Iorque, 1999). Em França,
segundo Le Nouvel Economiste, 33 novos multimilionários
surgiriam em 1999.

125
no entanto, duvidamos que a felicidade tenha elegido como
morada exclusiva as suas residências. Podemos admirar a sua
tenacidade, a sua audácia no empreendimento, a ideia de génio
que os atirou da obscuridade para a luz do dia, o seu apetite
pelas conquistas, o seu sentido de oportunidade.
Mas não é junto deles que colhemos a substância das nossas
aspirações. Quem por exemplo sonha com o patronato francês ou
americano, como qualquer gestor de empresa cuja existência
surge tão alegre como a de um carrasco? Estas vidas conjugais
e familiares, programadas, preservadas, à medida dos seus
desejos, não ficam nada a dever à de um qualquer empregado:
são menos senhores que dissipam do que pequeno-burgueses
dotados de elevados meios, por outras palavras, gordos e
tranquilos tubarões.
Existe uma outra razão pela qual o festim dos animais
maravilhosos evocado por Proust já deixou de nos fazer
salivar: é que nos tornamos ricos para permanecer entre eles,
para entrar no clube restrito onde se é admitido a golpes de
símbolos, de troféus. Não é o primeiro gesto dos opulentos
rodearem-se de uma multidão de criados, de interpor entre o
mundo e eles uma nuvem de intermediários? Duplo princípio da
visibilidade e da segregação. Amparados na sua posição por
códigos e por um rigor moral, mantêm com as tradições uma
relação de fidelidade que se espalhou por todo o lado. A plena
acessão ao cimo da pirâmide, se exceptuarmos alguns
excêntricos, engendra o mais das vezes disciplina e
conformismo: o gotha* está destinado ao ghetto. Sem contar com
o medo de não ser amado, a não ser pela sua conta bancária, e
de se tornar presa dos gold diggers, pesquisadores de ouro,
homens e mulheres especializados na caça ao milionário que
desposam para melhor os secarem através de um divórcio
retumbante. Esta é razão por que os locais de residência dos
nababos, por muito espaventosos que sejam, se assemelham a
infernos dourados sobretudo quando estes têm, como na América
Latina, de viver barricados nas suas fortalezas por temor das
agressões ou dos levantamentos. Faltar-lhes-á sempre essa
porosidade, essa abertura que caracterizam os espaços de
criação e de prazer. O que os ricos sentem como um imperativo,
calafetarem-se nas suas zonas residenciais, não se dar com
qualquer que chegue, fechar a porta ao inesperado, parece-nos
o cúmulo do fastidioso. O mundo do capital é triste porque não
é o mundo das trocas mas o do encerramento, do autismo.

*. Trocadilho do autor, pretendendo com a utilização da


palavra gotha significar aquele que é importante, que tem
notoriedade, o que figura no Almanaque Gotha. (N. do T.)
Segundo a análise pertinente feita por Michel e Monique
Pinçon-Charlot sobre a burguesia tradicional da zona leste de
Paris: Dans les beaux quurtiers, Seuil, 1989.

126
Como se o dinheiro, tal divindade insaciável, não devesse
circular dia e noite a não ser para melhor entorpecer e
petrificar aqueles que o possuem.
Se hoje em dia existem meios desejáveis, talvez os devamos
procurar nas margens, junto dessas minorias contagiosas,
anteriormente banidas, e que, pela sua cultura, pela sua
música, dão o tom à maioria. Existe um comportamento das
classes médias digno da Madame de Bovary que as impele a
procurar algures, por vezes nas franjas da legalidade, esse
arrepio que o espelho lhes não devolve. A força do marginal é
o seu exotismo que faz dele um ser simultaneamente perigoso e
atraente: pela sua forma de transgredir as regras, escapa à
uniformidade ambiente. Regra geral, uma sociedade é tanto mais
dinâmica quanto mais inventa estilos de vida que escapam à
atracção dos mais afortunados. E os grandes períodos de
emancipação do século XX em França foram os momentos em que a
felicidade oficial, quer dizer, o conformismo corrente, foi
desvalorizado em benefício de outras fórmulas de viver em
conjunto.
O preferível e o detestável Sem querer entrar num debate
que aqui não tem lugar, digamos que o dinheiro faz parte
dessas imoralidades necessárias a uma sociedade na condição de
o seu reinado ser obstruído e controlado. Pois ele mata todas
as hierarquias ligadas à nascença, ao estatuto social salvo
uma, inultrapassável: a hierarquia do dinheiro. Desconfiemos
então de alguém que apregoa o seu desprezo a respeito do velo
de ouro: podeis ficar seguros que o acarinha no seu coração ou
só sonha com a forma como dele privar os outros. O dinheiro, é
essa a sua vantagem, permanece uma forma de preservar a
liberdade individual, de desinfectar as relações sociais de
toda a aderência afectiva (Philippe Simonnot), de alcançar uma
certa autonomia. Permitiu e permite ainda aos povos
perseguidos sobreviverem na dispersão, no exílio, de ser a
pátria portátil dos que não têm pátria. Enfim, como escrevia
Spengler "uma civilização altamente evoluída é inseparável do
luxo e da fortuna" e esse foi o papel magnífico dos grandes
mecenas, dos Médicis aos Rothschild, aos Camondo, aos Pereire,
transformar o vil metal em obras de arte, quer dizer, numa
forma de beleza e de generosidade. Nada de mais feio, de mais
aberrante que o elogio da pobreza feito por alguns
doutrinadores cristãos como se ela em si mesma fosse dotada de
uma virtude superior. A pobreza sofrida é odiosa para quem
acumula privações e humilhações, reforça as dificuldades pela
vergonha. Em todas as circunstâncias, o dinheiro deve ser
classificado entre os "preferíveis" (Séneca), do qual é
permitido dispor se o destino vos colocar em posição de o ter.

127

(Caixa de Texto)
Fitzgerald ou a salvação pelos ricos

O jazz, o gin, Hollywood, a Côte d'Azur, as


festas-surpresa, a beleza, o espírito, a juventude; e depois o
alcoolismo, a loucura, a miséria, o fracasso, a vagabundagem,
as doenças nervosas. Toda a obra de Francis Scott Fitzgerald
oscila entre estes dois extremos segundo uma tendência que
fascina pela sua vertente inexorável. É que o seu drama está
inscrito desde o início numa crença tão louca quanto
implacável: os ricos são eleitos de Deus e formam no seio da
humanidade uma casta de iluminados de que ninguém se aproxima
sem perigo. Em Fitzgerald a decadência é contemporânea do
sonho de glória: a felicidade é um tesouro guardado por uma
pesada porta que todos pretendem entreabrir. Mas ninguém o
consegue a menos que seja bem-nascido; e a queda é tão mais
radical quanto os intrusos acreditaram ter-se infiltrado na
cidadela. Mesmo o amor, sobretudo o amor, constitui a ilusão
por excelência daqueles que querem transgredir a ordem
rigorosa das classes. No que a beleza feminina é uma promessa
ambígua.
A herdeira encantadora, a que vos fará passar, se for
seduzida, do reino das Trevas ao Paraíso é também a primeira a
expulsar o suspirante de modesta extracção e a reenviá-lo para
as suas origens. A bela da voz full of money, sobre a qual
escreveu: "Os seus modos revelavam uma segurança acrescida
pelo facto de acreditar que as coisas belas deste mundo lhe
pertenciam em virtude de um direito natural e inalienável" é o
paradigma de um universo que não tolera nenhum casamento
desigual, onde se agradece a todos os Gatsby do mundo por
terem divertido a plateia. A conclusão é sem apelo: "Os
rapazes pobres não devem sonhar desposar meninas ricas"; Mal
abandonam Has pessoas do seu meio, isso dá-lhes volta à cabeça
qualquer que seja o bluff de que déem mostras".
Porque o dinheiro para Fitzgerald é um talismã divino e as
barreiras sociais igualmente barreiras metafísicas, o pobre,
culpado pelo simples facto de o ser, deve ser punido pela sua
temeridade, por ter mesmo ousado elevar-se. O desastre
anunciado é destroçante e faz-se acompanhar de uma derrocada
perante o escárnio dos afortunados. A tragédia de Fitzgerald,
a sua "pancada", reside completamente na crença teimosa,
pueril no dinheiro como sinal de eleição, nessa visão
romanesca à maneira de Calvino que separa os predestinados dos
condenados. A miséria é punição e a breve felicidade dos
pobres uma usurpação pois só os ricos têm o direito de
propriedade exclusivo ao prazer e à volúpia. No que o
mal-entendido amoroso em Fitzgerald não está ligado a uma
lógica passional ou sentimental mas socioeconómica. E o
despedido, para sua completa desgraça, não tem outra opção
face aos milionários e às suas montanhas de diamantes que
diluir a sua vergonha em álcool.
Toda a obra de Fitzgerald é uma magnífica alegoria do
American Way of Life, do seu culto frenético pela nota verde,
dos anos 20 e da Grande Depressão. Mas os modernos discípulos
sem o discernimento de Fitzgerald, fascinados tal como ele
pelo poder dos ricos, fazem prova que essa mentalidade
permanece sempre actual. Se além-Atlântico, as classes médias,
como alguns temem, acabarem por sofrer o efeito do salame
deixando cara a cara uma massa a quem nada falta e de
deserdados, então a América do século XXI e talvez a Europa
poderão assemelhar-se ao universo romanesco de Fitzgerald: um
mundo impregnado da teologia glacial do dólar, o selo divino
que separa os eleitos dos condenados.
Sem querer desagradar aos seus detractores, a sua indecência
não reside na sua existência mas sim na sua raridade, na forma
insolente como é confiscado por uma meia-dúzia;

128
o dinheiro é aquilo que falta a quase toda a gente e o seu
principal problema reside na sua desigual repartição. (Um
pressentimento desagradável adverte-nos que a pobreza nos
países desenvolvidos talvez nunca venha a ser vencida muito
simplesmente porque os ricos não têm necessidade dos pobres
para enriquecer. À relação de subordinação que fazia do
trabalho do operário a condição da fortuna do patrão sucedeu
uma relação de inovação e de prospecção pelos territórios
lucrativos da nova economia. À infelicidade de ser explorado
sucedeu a infelicidade ainda pior de não ser explorável.) É
preciso então regressar aos Antigos e admitir como Aristóteles
que beleza, riqueza, saúde são igualmente acessórios úteis à
boa vida, mesmo quando não se confundem com ela. "Ninguém
condenou a sabedoria à pobreza", dizia ainda Séneca. [...]
Nada tendo mais que desprezo pela totalidade do império da
fortuna, se pudesse escolher, ficaria com aquilo que tem de
melhor para me oferecer. "Mesmo se o vil metal é a puta
universal que tudo transforma em mercadoria, incluindo a
pessoa humana, mesmo que seja necessário repetir sem cessar a
existência de valores, de sentimentos que não se compram, a
utopia de um mundo sem dinheiro faz parte desses ideais que o
mundo realmente carece mas que seria perigoso deles fazer a
base e princípio da ordem social" (Leszek Kolakowski). É
importante precisar que os maiores massacres dos finais do
século XX, Argélia, Ruanda, Timor, Bósnia, Kosovo, Chechénia,
encontram-se menos ligados a questões financeiras ou
económicas que a fanatismos religiosos, raciais, imperiais, de
identificação.
(Fim da caixa)

Uma virtualidade sem limites


Posto isto, torna-se necessário confessar um desconforto
fundamental: impossível de desprezar o dinheiro, impossível de
o venerar. Ele tem aqui de comum com a felicidade serem duas
abstracções e representam potencialmente a totalidade dos
prazeres possíveis. Com ele possuo virtualmente as coisas sem
que elas me estorvem com a sua materialidade. Ao que é preciso
juntar a felicidade de ganhar dinheiro, frequentemente
superior à dele poder dispor e que é a felicidade do
curto-circuito: juntar um bom pecúlio queimando etapas. Ganhar
a vida é um fardo, enriquecer depressa um jogo bastante
semelhante à fúria erótica. Mas é o escolho do dinheiro que ao
oferecer-se como um modo de vida em si, substitui todas as
bem-aventuranças. Quando se encontrava elevado à categoria de
ídolo, de fim absoluto, torna-se de tal forma desejável que
torna tudo o mais indesejável. A sua força e a sua tragédia, é
a eliminação de obstáculos; pulveriza-os, torna de imediato
todos os fins acessíveis, mas esta omnipotência desemboca na
indiferença.

129
Por querer demasiado agarrá-lo não seguramos mais que o vento,
entra-se numa paradoxal frustração que torna impossível o gozo
do que quer que seja.
Conhecemos essas figuras ridículas a quem nada falta e que
não têm tempo para gastar aquilo que acumulam, do próspero que
possui tantas riquezas que se afasta do mundo e conhece no
meio da abundância uma provação de felicidade. Desejariam que
lhes acontecesse algum revés para poderem recomeçar do zero,
reiniciar a palpitante odisseia da ascensão social. Estas
pessoas que, como se costuma dizer, têm tudo para ser felizes
mas que o não são: como têm tudo, não têm mais nada, o seu
desejo dispersa-se em lugar de se concentrar, sempre desperto,
sempre enganado por uma nova miragem. Não tendo mais a
possibilidade de triunfar, resta-lhes a de fracassarem, de
caírem no abismo como essas grandes dinastias de tal forma
favorecidas que atraem sobre elas infelicidades e cataclismos.
O dinheiro ilustra na perfeição o seguinte paradoxo: todos os
procedimentos postos em marcha para realizar a felicidade
podem igualmente fazer com que ela lhes fuja. Daí que o gosto
pelo lucro até ao delírio se tenha tornado, pelo menos na
América, numa paixão colectiva: "A mais laboriosa das épocas,
a nossa, nada mais sabe que fazer do seu trabalho, do seu
dinheiro a não ser mais trabalho e mais dinheiro" (Nietzsche).
Uma linha muito fina, imperceptível separa nas nossas
sociedades o dinheiro como fim e como meio; e é o trabalho do
consumismo e da publicidade que total e permanentemente mais
não faz que baralhar essa linha. Entra-se então, pelo menos
para os mais opulentos, na esfera do consumo ostentatório que
lhe vem do nome que o sociólogo americano Thorstein Veblen
atribuiu antes da Primeira Guerra Mundial aos costumes da alta
burguesia, a dos Rockfeller, dos Vanderbilt. Mansões, iates,
belos carros, grandes apartamentos: estamos condenados a
competir com as outras pessoas do mesmo nível para as ofuscar
ou pelo menos para as igualar, quer dizer, a sofrer as feridas
da inveja provocadas por alguém mais bem-sucedido e a
desdenhar aqueles cujo nível de vida está prestes a alcançar o
nosso. Quando um director de empresa embolsa uma fonte de
riqueza mil a duas mil vezes superior ao salário dos seus
empregados, tal montante não é fixado devido aos seus méritos,
à sua competência, mas por uma pura vontade de poder que se
manifesta na sua remuneração. A sua alegria provém então do
facto de arrebanhar aquilo de que os outros estão privados e
de deslumbrar os seus pares. A infelicidade destas justas, é
existir sempre alguém mais opulento, existir sempre um magnata
que vos ofusca, que está à vossa frente na classificação da
Forbes ou da Fortune e cujo montante pecuniário vos faz morder
a poeira. A frustração cresce na medida da sua conta bancária
e alegram-se menos com os seus ganhos quando os dos outros
engrossam mais rapidamente.

130
Portanto, relativamente a esta questão é preciso distinguir
os ricos dos super-ricos e dos ultra-ricos, pois não pertencem
todos à mesma categoria. Daí a medonha seca dos homens de
dinheiro, quando não o colocam ao serviço de uma causa, de uma
ideia ou da arte e assim transmitem o sentimento de ter
falhado todos os objectivos das suas vidas.

Uma nova moral da frugalidade?

Em definitivo, existem raros momentos na vida em que o


dinheiro é reconduzido à sua fluidez de puro médium, quando se
dispõe de bastante liquidez para se dispensar de fazer contas,
de se preocupar com o amanhã. Ele acompanha a alegria de viver
quando o esquecemos, quando desaparece enquanto tal e não
interdita nem a posse racional nem a livre vagabundagem do
espírito. Não depender do dinheiro, é saber que não viveríamos
de outra forma se tivéssemos muito mais. Mas a maior parte do
tempo, toda a gente faz contas, nela compreendidos os nababos
(a avareza dos ricos, o medo de não estar presente no seio do
supérfluo é espantoso: tal como Paul Getty, milionário
californiano do petróleo que vivia em Londres numa casa onde
existia um telefone público para utilização pelos seus
convidados e que nunca abandonava uma reunião em primeiro
lugar para não ter de pagar o táxi). Na maior parte do tempo,
para a maior parte das pessoas, o dinheiro é comparável a uma
droga: destinado a libertar-nos de todas as preocupações,
torna-se na preocupação obsessiva, uma finalidade em si.
Persegue-nos com a sua ausência, estorva-nos com a sua
presença, proíbe-nos de ter com ele uma relação justa. O
apetite que suscita impõe-se com uma tal intransigência que
torna o prazer difícil senão impossível. É aquilo que William
Burroughs dizia ter aprendido na escola da morfina: um desejo
insaciável torna a volúpia inacessível. O dinheiro torna-se
uma triste paixão quando suplanta todas as outras e se torna
ruminação. E a loucura que suscita, como podemos observar em
certas formas de especulação, está ligada ao romantismo dos
grandes números: num universo onde tudo se calcula quase ao
tostão, o prazer procura então desafiar o cálculo pela
enormidade dos fluxos colocados em jogo. Surge um momento em
que as contas desenfreadas acabam por ser absolutamente
gratuitas, vazias. Abandonámos a sede do lucro, dançamos sobre
o abismo, exaltamo-nos com a poesia dos números e a própria
Bolsa transforma-se no templo da exuberância matemática. Como
a Web, o dinheiro é uma galáxia em expansão constante onde
novos planetas estão sempre a ser descobertos, um decalque do
cosmos.
Dito de outra forma, se ninguém se pode vangloriar de lidar
à vontade com o dinheiro, é que ele não é seguro e tanto
trabalha a nosso favor como contra nós.

131
Só é necessário então reabilitá-lo - sobretudo num país como a
França onde a hipocrisia a este respeito e o ódio pelo sucesso
profissional continuam a reinar - para melhor nos precavermos
das traquinices com que nos tenta. Além-Atlântico, por
exemplo, num contexto de crescimento das riquezas e das
desigualdades(4) florescem novas morais de frugalidade que
recusam a instituição de crédito, a lealdade profissional, a
obsessão do património em nome de uma gestão razoável das
necessidades(5). Mero efeito mediático, contrição provisória
antes de voltar a dirigir-se cada vez mais em direcção a novas
orgias aquisitivas e consumistas? Talvez. Mas é sintomático
que no centro do sistema financeiro nasça uma dúvida quanto ao
seu bem fundado e a defesa de uma existência mais distendida,
menos escravizada pela lógica dos objectos, pela cupidez
artificial. A verdadeira questão é a seguinte: que preço
estamos dispostos a pagar para ter dinheiro, que lugar lhe
reservamos? Se não quisermos, como diziam os Antigos, ser
possuídos pelo que possuímos, é preferível não limitar as
despesas se isso permitir satisfazer as paixões, aumentar a
parte da verdadeira vida amorosa e espiritual em vez de nos
endividarmos indefinidamente.
Mas é necessário sobretudo restabelecer as hierarquias e às
espécies sonantes e ao excesso de peso do dinheiro opor outras
fontes de riqueza cultural, estética, espiritual. Mesmo o
desejo de glória e de grandeza, mesmo a vaidade são por vezes
preferíveis ao isco do ganho, aos medíocres constrangimentos
que ele implica. E a força das grandes transformações
verificadas no século passado em França, nelas compreendidos
1936 e 1945, foi não somente a redistribuição do bolo social
mas a criação de novas opulências para um maior número:

*4. Segundo um estudo americano, desde há vinte anos que o


desregramento dos lucros não teria cessado de se aprofundar
nos Estados Unidos. No cimo da pirâmide um americano em cada
dez teria visto os seus rendimentos explodirem 115% desde 1977
e no ponto mais baixo da escala um em cada dez viu-os diminuir
no mesmo período. As classes médias só teriam visto o seu
capital aumentar em 8% (International Herald Tribune de 6 de
Setembro de 1999). O desaparecimento dessas mesmas classes,
pouco a pouco proletarizadas, assinalaria seguramente o fim do
regime democrático de que elas formam a base e a vitória do
capitalismo desenfreado, desprovido de todo o contrapeso.
5. Assim o livro provocador de Stephen Pollan e Michael
Levine, Die Broke, Harper Business, 1997. Os autores analistas
financeiros, enunciam assim os mandamentos de uma boa gestão
para o século XXI: "rasgai os vossos cartões de crédito e
pagai em numerário, demiti-vos mentalmente do vosso emprego a
partir do primeiro dia; nunca vos reformeis e sobretudo morrei
arrebatados, distribuí os vossos bens aos vossos filhos
enquanto sãojovens e deles têm necessidade. E passai um cheque
careca às Pompas fúnebres para pagar o vosso enterro...
Provindo de gurus do investimento, uma tal obra marca bem o
desencantamento de uma parte da classe média americana face à
política de emagrecimento sistemático das empresas e pretende
mostrar com factos uma espécie de deserção interna face aos
postulados do sistema.

132 - 133
tempo livre, poesia, amor, libertação do desejo, o sentido da
libertação quotidiana. Não se contentar em só gerar a penúria
mas descobrir por todo o lado bens não contabilizáveis que
escapam à regra do lucro, prolongar o velho sonho
revolucionário do luxo para todos, da beleza oferecida aos
mais humildes. Hoje em dia o luxo reside em tudo aquilo que
rareia: a comunicação com a natureza, o silêncio, a meditação,
a lentidão reencontrada, o prazer de viver contra o tempo, a
ociosidade intelectual, a fruição das obras maiores do
espírito, enquanto privilégios que não se compram porque
literalmente não têm preço. Então a uma pobreza imposta
poderemos opor um empobrecimento escolhido (ou melhor, uma
auto-restrição voluntária) que não é de forma nenhuma uma
opção pela indigência mas a redefinição das prioridades
pessoais de cada um. Talvez despojar-se, preferir a liberdade
ao conforto, de um estatuto social arbitrário em benefício de
uma vida mais vasta, para retornar ao essencial, em lugar de
acumular dinheiro e objectos como que para criar uma irrisória
barreira contra a agonia e a morte. Definitivamente o
verdadeiro luxo, "mas tudo o que é precioso é tão difícil
quanto raro" (Espinoza), é a invenção da própria vida de cada
um, é ser dõno do seu próprio destino.

(Caixa de Texto)
A queda das estrelas

Por que razão perscrutamos com uma curiosidade mórbida as


ligações, rupturas, dores dos que chamamos stars? É que estes
seres fora do comum a quem basta aparecer para serem e que
reconhecemos mesmo não os conhecendo, estes seres que nenhum
tabu, nenhum excesso afecta, só são venerados para de seguida
serem reduzidos a um estatuto comum. Congregando neles a maior
quantidade de desejo social, deveriam ter por função
retirar-nos ao império da monotonia; mas isso não os preocupa
a não ser para melhor o confirmar. E a imprensa do coração
talvez não existisse a não ser para assegurar aos seus
leitores, para lhes garantir a ideia que príncipes, vedetas do
cinema e do espectáculo são as reincarnações ambivalentes da
felicidade, de um ideal que se afadigam em realizar. Daí o
nosso deleite amargo por os vermos atingidos pelos mesmos
males que nos afligem.
Estes happy few destinados a sublimar o nosso destino, a
arrancar-nos às preocupações ridículas, às nossas
infelicidades insignificantes provam-nos que nenhuma casta ou
classe superior conhece a bem-aventurança, "único apanágio dos
deuses", já dizia Aristóteles, quando "os homens são felizes
tanto quanto um mortal o pode ser". Enfim, uma secretária pode
ter a vida tumultuosa e agitada de uma princesa e uma princesa
levar a existência recatada e prosaica de uma dona de casa.
Este é o processo democrático: as orgias e os excessos
licenciosos dos antigos monarcas são portanto acessíveis a
qualquer um. Através das indiscrições dos meios de
comunicação, verificamos com espanto e tristeza que essas
pessoas não têm uma essência diferente da nossa: no que esses
mesmos meios constituem também máquinas de travar o desejo e
preenchem apesar da sua futilidade um papel fundamental. Do
seu panteão de falsos dourados, a star escapa possivelmente ao
anonimato mas sucumbe tal como nós à confusão, à solidão, à
idade (a desaparição progressiva da beleza nas actrizes
sumptuosas é uma figura de retórica obrigatória numa certa
imprensa que a impõe com um sadismo doloroso). Elegemos as
stars como os homens políticos e apagamo-las com a mesma
indiferença, a mesma versatilidade. O nosso apetite pela
bisbilhotice, pelos pormenores não tem a sua origem, como se
diz, na alienação e no despojamento. O culto da celebridade
pesa directa e contraditoriamente nos progressos de
igualização democrática.
(Fim da caixa)

Quarta parte

A infelicidade fora da lei?

Capítulo X

O crime de sofrer

"Ajude-me a suprimir a dor que me faz sofrer mas deixe-a


comigo para que eu possa existir."
Uma doente ao seu psicanalista,
Revue françaíse de psychosomatíque,
n.o 15.

Num romance surgido em 1872 Samuel Butler imagina uma


região, Erhewon (anagrama inglês de nowhere), o país de parte
alguma onde a doença é punida como um crime, a menor
constipação pode equivaler a trabalhos forçados, apesar de a
morte ser considerada como uma doença que merece solicitude e
cuidados.
Com um agudo sentido da premonição, Samuel Butler chega a
precisar que a dor e a aflição, por exemplo, a perda de um
ente querido, são punidas como um delito grave, não sendo o
aflito mais que um delinquente culpado pelo seu próprio
desgosto. A um homem acusado de tuberculose pulmonar, o juiz
explica a sentença que vai pronunciar nestes termos:
"Dir-me-eis talvez que não sois responsável nem do vosso
nascimento nem da vossa educação. Mas responder-vos-ei que a
vossa tuberculose, sejais ou não culpado, é um crime vosso e é
meu dever velar para que a república seja protegida contra os
crimes dessa natureza. Podeis dizer que é por infortúnio que
sois um criminoso; eu replico que o vosso crime é ser
infortunado."
Soberba e irónica intuição que a segunda metade do século XX
confirmou ao dar, mais que qualquer outro período, um
gigantesco passo em frente em direcção à negação da
infelicidade e à proibição de morrer (Philippe Ariès). Como se
todos os tempos quisessem dar razão ao filósofo Alain, o
infatigável bardo do optimismo da III República que, nas suas
Propos sur le bonheur (1911-1923) já citadas, nega qualquer
realidade aos sofrimentos extremos.

138
Como para Epicuro, eles não existem, não são palpáveis, "o
horror é soporífico" e a morte quando chega é instantânea, não
deixando qualquer lugar à imaginação, ao medo. Nesta
escamoteação, vai mesmo ao ponto de sustentar sem ironia que
"um homem que caminha para a guilhotina só tem que me
lamentar; basta-lhe pensar noutra coisa, de contar os
ressaltos ou as esquinas". Quanto a Pascal, a sua excitação
perante as estrelas e o infinito tinha origem sem dúvida em
ter apanhado frio sem disso se aperceber quando estava à
janela (sic).

A propagação do desperdício

A partir do momento em que as nossas sociedades, após as


Luzes, impuseram a si próprias como tarefa instaurar a
felicidade sobre a terra, evoluímos para o espaço do catálogo,
contabilizamos a lista sem fim dos males a erradicar. Mas os
sofrimentos, qual hidra do mito, não param de nos afligir, de
se multiplicarem à medida que os perseguimos, a sua lista
alonga-se de uma forma maligna em cada dia que passa, atirando
para longe a felicidade prometida. Durante muito tempo o
movimento revolucionário divertiu-se a qualificar de fúteis as
preocupações ligadas à angústia da morte e da solidão e não
mostrava mais que desdém pelas doutrinas que ousavam
estudá-las. Para aquele só contava a alteração das estruturas
socioeconómicas e a tomada do poder pelos explorados. Uma vez
o capitalismo derrotado e com ele a fonte de todas as
iniquidades, um novo mundo instaurar-se-ia ao serviço do homem
donde a dor se retiraria pouco a pouco como o mar numa praia
durante a maré baixa. Estas belas contas, como o sabemos,
falharam: não somente o socialismo real multiplicou os
infortúnios por todo o lado onde se impôs, como deixou por
resolver todos os problemas inerentes à condição humana, os
que qualificava como pequeno-burgueses.
Portanto face à mesma questão, as democracias liberais, se
bem que mais prudentes, não deixam de ter uma atitude menos
ambígua. Ao preferirem a demora das reformas às precipitações
revolucionárias, guardaram a esperança de uma conjugação
mágica da ciência, da técnica, do progresso material para
serem bem-sucedidas onde os totalitarismos tinham fracassado.
E na Europa a segunda metade do século xx manifestou uma
embalagem febril, um optimismo desmesurado onde a simples
evocação da infelicidade era reveladora de arcaísmo, mesmo de
obscenidade. Nos tempos presentes foi engendrada contra a
infelicidade a pior das conspirações: a do silêncio.

139
A Antiguidade viveu sobre a esperança de uma refutação do
sofrimento(1), o cristianismo sobre a sua exaltação, nós
vivemos sobre a sua denegação, fugimos dele como de um
flagelo, não querendo mesmo considerar que possa ser real.
Pesar, dor, doenças tornaram-se então na grande benfeitoria
da ideologia laica moderna e adquiriram o estatuto pouco
invejável de resíduos numa sociedade que caminha em direcção
ao futuro: acontecimentos deslocados, proibições da palavra e
de manifestação e dos quais cada um se deve desembaraçar a seu
modo. Ora, não foi o sofrimento que desapareceu mas sim a sua
expressão pública que é proibida (salvo, digamo-lo de novo, na
literatura). É necessário insimuar dinamismo e bom humor na
esperança que a aflição, que deveria ser patente mas que se
encontra dissimulada, acabará por se dissipar por ela mesmo.
Perante ela, faltam-nos as palavras sobretudo quando
acreditamos dispor para a justificar do dogma da explicação
perfeita (pela lógica do mercado, pela miséria sexual, pela
pobreza, etc.) que cobriria completamente o campo da dor
humana. Banimo-la do vocabulário tal como nos libertámos dos
infelizes, dos feridos, dos agonizantes que violentam os
nossos preconceitos, "estragando o ambiente". Para nós que
elevámos a juventude, a saúde, o fun à categoria de ídolos
metafísicos, quando ela se encontra próxima causa-nos repulsa,
a sua mera visão destrói-nos. Desde Tolstoi que bem sabemos
que o sofrimento é uma imundície e a morte uma contrariedade
nauseabunda; o século XIX recusava-o em nome da decência(2), o
século XX rejeitou-o em nome do prazer. Mas seja em nome das
boas maneiras seja de um ideal hedonista, ele permanece a
inconveniência suprema.
Terrível cegueira da felicidade que não vê por todo o lado a
não ser os seus reflexos e pretende tornar-se no único
discurso que vale. Mas, da mesma forma que os resíduos no
universo consumista acabam por invadir todo o espaço e surgem
na nossa lembrança sob mil formas incoerentes,

*1. Sócrates: "Para o homem de bem, não existe qualquer mal


seja durante a sua vida seja quando morre." Epicuro: "A morte
não existe para nós." Ainda Epicuro: "O sábio sorri à
tortura." Zenão: HNão existe outro mal que não seja o vício e
a vergonha." Epicteto: "Na ordem universal não existe lugar
para o mal." Outra vez Epicteto: "Não te interrogues sobre o
que acontece, acontece como desejas. Mas vela para que as
coisas aconteçam como acontecem e serás feliz." Nas
Tusculanas, Cícero escarnece dessas argúcias lexicais e
reafirma a realidade da dor. Construir um santuário
inviolável, fora do alcance das tribulações do mundo, tal foi
a ambição de um certo número de filósofos antigos e de sábios
orientais.
2. "O acto aterrador, horrível que era a sua caminhada em
direcção à morte era, ele bem o sabia, humilhado por todos os
que o rodeavam, ao nível de um desacordo passageiro não
desprovido de indecência (um pouco como se estivéssemos na
presença de alguém que mal entra num salão logo se nota o seu
mau cheiro)." Tolstoi, La Mort d'Ivan Ilitch, Folio,
Gallimard, p.129.

140
o sofrimento, por falta de se exprimir, começou a proliferar,
aumentando a consciência da nossa vulnerabilidade. Sob o
pretexto de o erradicarmos, sacralizámo-lo. Tornado um tabu,
uma zona cinzenta nas nossas sociedades, literalmente
explodiu, qual gás por muito tempo comprimido; invadindo todos
os poros da sociedade, colonizando territórios onde não era
esperado. Pois não poder nomear o mal que nos ataca, quer seja
nos locais de trabalho seja na vida quotidiana, não o ver
aceite pelos outros é a pior das coisas, uma dupla forma de
sofrimento (da mesma forma, notava Philippe.riès, que o
recalcamento das lágrimas em caso de luto agrava o traumatismo
da perda). A injüstiça do Ocidente, na segunda metade do
século XX, foi ter dado aos homens a esperança insensata de um
apagamento próximo de todas as calamidades: fomes, indigência,
doenças, velhice iriam desaparecer no horizonte dentro de uma
ou duas décadas e é uma humanidade purificada dos seus antigos
flagelos que se iria apresentar às portas do terceiro milénio,
orgulhosa por ter vencido os últimos germes do inferno. A
Europa devia tornar-se, segundo a palavra meditada de Susan
Sontag, no único local onde a tragédia deixaria de ocorrer. (E
em cada década, em cada mudança de século, são os
mesmosjuramentos de bêbados que ressurgem, as mesmas
infatigáveis esperanças: as fronteiras vão desaparecer, a fome
será jugulada, as prisões abolidas, as doenças controladas,
etc.) Não só este conto de fadas não se realizou como de certa
forma reforçou aquilo que estava destinado a pôr fim. Clamámos
com razão, nomeadamente no século XIX, contra a cultura da
resignação propagandeada pela Igreja e pela burguesia. Se bem
que o esforço e a resistência fossem vividos como a norma, a
expiação do pecado ou da mortificação, e o prazer como uma
raridade, um jardim privado cercado por altos muros e
interdito ao povo. Mas quando o hedonismo se impôs como valor
absoluto, morte e sofrimento tornaram-se puros dislates,
intoleráveis atentados aos nossos direitos. Às devastações que
provocam acrescenta-se a sua inutilidade, o que os torna ainda
mais amargos. E impacientamo-nos que persistam quando tínhamos
acreditado no seu desaparecimento próximo. "Confessemos a
existência do mal sem acrescentar às baixezas da vida a
absurda complacência de as negar", lá dizia Voltaire. Daí esse
paradoxo já referido: as sociedades actuais nunca falaram
tanto de sofrimentos como quando se começaram a ocupar
exclusivamente da felicidáde. Mediante uma inversão
fantástica, a dor destinada a não ter legitimidade alguma
passou a ocupar um lugar desmesurado, em boa verdade, o
primeiro.
Vede o sombrio brilho de que goza nos nossos dias a palavra
infelicidade. Perante ela toda a gente se inclina: é um
passaporte que abre os corações, suspende qualquer julgamento,
desculpa todas as infracções.
141
Esse foi o génio de um François Mitterrand ao encenar a sua
própria morte, muitos anos antes de ela ocorrer, para fazer
passar mentiras e omissões do seu reinado. Confessar no limiar
da eternidade e quando se enfrenta com coragem uma doença
fatal, que outrora se pecou, tornar a confissão anódina,
destilar as revelações para calar a boca aos críticos. Deixa
de ser um dirigente que fala, é um habitante de além-túmulo
que se nos dirige com a palidez do cadáver e varre ao
confessá-los os pecadilhos dajuventude, as tentações pelo
marechal*, as amizades comprometedoras. Se a agonia clássica
era exemplar, esta foi toda feita de indulgência e permite ao
velho monarca socialista, exímio na arte da mistificação,
oferecer as suas penas presentes como penhor de perdão pelos
seus erros passados. Magnífica saída que fere os princípios da
democracia mas que deve ser observada como um caso de estudo
por todos os dramaturgos(3).
Porque durante muito tempo ostracizado e pudicamente omitido
pelo discurso político, o sofrimento retorna à superfície,
regressa cheio de jactância, adquire uma sacralidade duvidosa:
longe de ser obsceno, está em cena e a partir do momento em
que se exibe, vale como absolvição. A quem dele se puder
reclamar, e apresentar em público os seus estigmas, as regras
da ética comum deixam de se aplicar. É que tem a ambivalência
da democracia face à infelicidade: como a recusa, usa-o como
base de direitos inteiramente novos. Os seus grandes
objectivos são no entanto negativos: reabsorver a miséria, pôr
fim às desigualdades, combater as doenças. Inevitável
contradição que consiste em designar os males que nos
esforçamos por combater. Se todo aquele que sofre abre caminho
ao direito e institui a existência deste último(4) então a dor
física ou psíquica torna-se progressivamente a medida de todas
as coisas. Para com ela acabar é preciso então denunciá-la,
dar-lhe corpo. A modernidade constitui desde as Luzes, o
alargamento crescente do sentimento do insustentável: o que
parecia ser evidente é portanto pensado em termos de
injustiça, de arbitrário. O que mudou, não é a soma dos
flagelos de que somos vítimas em relação aos séculos
anteriores, é o nosso estado de espírito quando estamos
perante eles. Ser moderno, é ser incapaz de tomar o seu
partido tal como ele se apresenta. O ódio ao sofrimento é
então a fonte de todos os progressos do direito,

*. O autor refere-se à colaboração prestada pelo falecido


presidente francês, François Mitterrand, ao regime de Vichy e
por ele confessada nas suas memórias, publicadas ainda em
vida. (Edição portuguesa: Memórias Interrompidas: da Alemanha,
da França, tradução de Gabriela Corte-Real e Mário Correia,
prefácio de Mário Soares, Lisboa, 1996, Temas e Debates.) (N.
do T.)
3. Sobre o fim dos chefes de Estado e o de François
Mitterrand, deverão ser lidos os ensaios de etnografia
comparada publicados pela Gallimard sob a direcção de Jacques
Julliard, La Mort du roi, 1999.
4. Jean Poirier, La Douleur et le Droit, obra colectíva, PUF
1997.
142
neles compreendidos os que dizem respeito aos seres vivos não
humanos como os animais(5). E dado que à modéstia das
tentativas, típica dos tempos antigos, sucedeu o aumento dos
desejos, vivemos numa aspiração constantemente frustrada:
ninguém é suficientemente amado, gratificado, recompensado.
Como a morte para o cristianismo era a paga do pecado, a
felicidade para nós deveria ser a paga da existência, esse
maná caído equitativamente sobre cada um para lhe agradecer
por ter nascido. Mas quanto mais a ambição é desmesurada, mais
o resultado surge como magro e o círculo do insuportável não
cessa de aumentar. A democracia, ao gerar uma insatisfação
perpétua, torna-se no regime do queixume consagrado. É pelo
direito tornado, como dizia um jurista, "um imenso sindicato
contra o sofrimento" que este último retorna ao discurso
colectivo: ser colocado fora da lei assegura-lhe um contínuo
renascimento. No caso, é o caçador que é prisioneiro da sua
presa, e não o inverso.
Chegamos assim a uma confusão preocupante entre adversidade
e infelicidade: o obstáculo já não é a prova normal de que o
mundo se opõe aos meus intentos mas uma ofensa pessoal que
deveria dar lugar a indemnização. Confundimos doloroso com
desagradável, infeliz com penoso; à menor contrariedade,
exclamamos: o mundo não me ama, tudo está contra mim. A
indeterminação crescente das zonas de sofrimento e de não
sofrimento origina que cada dia nasçam novas angústias, qual
caminhante que ateasse incêndios com os seus pés. O que era
admitido deixa de o ser, tudo o que trava ou atrasa a
satisfação é arrumado no catálogo do infortúnio. Uma categoria
tradicional como o esforço físico - a menos que seja sob a
forma lúdica desportiva - é banida; e os trabalhos que
requerem força, as tarefas penosas são deixadas para os
imigrantes (o imigrante é aquele que não mede a sua pena). Mas
o esforço intelectual também ele é adicionado ao domínio da
opressão: é o problema da escola que, ao querer poupar a
criança a todo o vexame, renuncia muitas vezes a transmitir
conhecimentos em nome da sacrossanta liberdade do pequeno:
ensinar é assimilado a perseguição, é preciso ajudar os alunos
a abrirem-se, e não lhes infligir conhecimentos abstractos...
Rapidamente a glória da infelicidade desapareceu, ela
conquista e tudo invade que não seja prazer e estritamente
prazer, progride fagocitando estados, emoções que não lhe
estavam associados até esse momento. De repente, perdemos o
sentido das proporções, elevamos os mais pequenos desaguisados
ao nível de uma tragédia. Entramos na embriaguez do pathos,

*5. Como o demonstra o controverso livro do utilitarista


austríaco Peter Singer, Questíons d'éthique pratique, Bayard,
1997. (Edição portuguesa: tradução de Álvaro Augusto
Fernandes, revisão científica de Cristina Beckert e Desidério
Murcho, Lisboa, 2000, Gradiva, Colecção Filosofia Aberta.)

143
o qual já não é como para os românticos uma estratégia da
distinção relativamente ao burguês mas sim o reflexo da
deploração sistemática, a filosofia do desespero do dia-a-dia.
O inferno contemporâneo é já não se saber onde começa e onde
acaba a dor, a qual está presente em todos os rostos e se
estende ao próprio facto da vida, reactualizando assim um
postulado que se pensava ultrapassado.

A caminho de uma cultura do sofrimento?

Demonstrei numa obra anterior(6) como o estado de vítima


se tinha tornado num estatuto invejável, por vezes
hereditário, originando verdadeiras linhagens de párias
exonerados de todo o dever e beneficiários de todos os
direitos. Como a guerra das consciências, cara a Hegel
se substituiu a guerra dos sofrimentos que se afrontam na cena
pública. Como cada povo, minoria, ou indivíduo se bate para
ocupar o lugar da vítima máxima, quando os oprimidos
tradicionais são designados como aqueles a quem nada falta,
confusão que conduz a uma concorrência vitimária entre todos
aqueles, Curdos, Judeus, Bósnios, Tutsis, Negros, Ameríndios,
mulheres, homossexuais, que disputam a palma do martírio
supremo. Como nos nossos países se desenvolveu um mercada
do sofrimento ligado à extensão do direito, uma verdadeira
demagogia
da desgraça onde cada um rivaliza com o outro e publicita o
seu
palmarés na montra das suas dores. Como esta embriaguez da
infelicidade,
constitui uma perda de confiança nos poderes humanos,
desembocou na promoção desigual da choradeira mas também na
corrupção da linguagem comum, na justaposição nauseada das
nossas pequenas misérias e das grandes atrocidades, o uso
imoderado da palavra genocídio e a invocação sistemática de
Auschwitz são os melhores exemplos desta descaracterização
pela vontade de cobrir as ofertas.
Todo o mal, felizmente, não está destinado a um tal fim. Nós
admitimos a hipótese que de uma forma tacteante as sociedades
ocidentais, a par do direito como instrumento de reparação e o
combate político como factor de justiça, estão em vias de
inventar uma relação com o sofrimento, o que talvez se trate
de uma revolução fundamental. Esta etapa consiste, após anos
de recuo, em reconhecer a infeliçidade como constitutiva da
condição humana, a reaprender a viver com ela para lhe
desmantelar as armadilhas mortais e dela retirar o partido
menos nocivo. Repatriá-la para dentro das nossas existências,
reintroduzi-la na linguagem comum, é libertarmo-nos da
fascinação malsã que exerce quando se encontra oculta, é
também proporcionar os meios para a conter ao integrá-la.
Perante ela dispomos não de uma ausência mas de uma
superabundância de receitas que concorrem entre si.

*6. La Tentation de l'innocence, Grasset, 1995.

144
Além dos dois recursos já mencionados, o dos Antigos e o do
cristianismo, os Modernos multiplicaram as terapias providas
de sentido sem esquecer o arsenal maciço da farmacopeia, assim
como de todos os saberes, medicinas e confissões exóticas que
a nossa época destroçada convoca de forma nublosa e com
desvelo.
Sofisma a este respeito do budismo e de certas correntes
estóicas: oferecer a solução dos problemas pela sua
dissolução. Decretar funestos os nossos apegos, vãs as nossas
preocupações, ilusório o nosso ego. Propor a paz da alma, a
serenidade pela abstracção de si aos tumultos da sociedade. Se
pelo contrário, acreditamos que não é na renúncia mas no apego
apaixonado aos outros e aos sortilégios do mundo que reside a
vida autêntica, então estas doutrinas, ao supor a dificuldade
resolvida mediante a fuga, pouco têm para nos ensinar. Se para
nós a pior das dores é a perda de um ente querido, a ela
reagir, respondendo como Epicteto: "De qualquer modo nunca
digas: Perdi-o. Mas: Entreguei-o. Tua esposa morreu,
entregou-se. Teu filho morreu, entregou-se", é uma pobre
consolação salvo para quem escolheu "o ideal ascético"
(Nietzsche). Entre a insípida ataraxia e as tempestades do
amor, é permitido preferir estas últimas mesmo que então se
multipliquem os riscos de exposição aos golpes de sorte. No
que o amor, se é a fonte das maiores felicidades, não se
confunde em nada com a felicidade pois inclui no seu espectro
uma gama de sentimentos infinitamente mais vasta: o êxtase, a
dependência, o sacrifício, o terror, a escravidão, o ciúme.
Sendo a experiência mais exaltante e mais perigosa, tanto nos
pode precipitar no abismo como nos elevar aos cumes. Pressupõe
sobretudo que aceitemos sofrer com o outro e por ele, a sua
indiferença, a sua ingratidão, a sua crueldade.
Confusão tanto quanto profusão de referências: já não existe
consenso perante o sofrimento, supondo que ele nunca existiu,
pois encontramo-nos então no espaço do menu onde
experimentamos uma após outra as diferentes vias, conforme
disso temos necessidade, simplificando-as. Relativismo total:
cada um que se desembarace do seu mal, segundo as suas
convicções e dos meios que dispuser (e sabemos quanto a
desigualdade socioeconómica agrava a vulnerabilidade de certas
patologias e faz aumentar a discriminação no acesso e à
qualidade dos cuidados). Os costumes perderam-se por suportar
como os outros: era talvez uma réplica imperfeita mas tinha o
mérito de pelo menos ser colectiva e impor um ritual
catártico. E como Freud dizia da psicanálise que ela tinha por
objectivo ensinar-nos a suportar a vida comum, torna-se
necessário reaprisionar o sofrimento, "dele nos avizinharmos",
como dizia Montaigne da morte para reencontrar perante ela um
certo distanciamento, tentar, o que se puder, para a manter à
distância.

145

(Caixa de Texto)
Médicos e pacientes

Nada de mais ambivalente que a figura do médico, em


simultâneo padre e curandeiro, dono da vida tanto quanto da
morte. Durante muito tempo a sua representação oscilou entre
duas imagens extremas: a do prático arrogante, excitado pelo
seu poder, dotado de todos os atributos do saber; e a do
médico de família, divindade tutelar da sociedade francesa e
que sabia aliar o diagnóstico seguro e preciso a conselhos
amigáveis sobre a conduta a levar. Então a relação médica era
bem ao encontro da consciência com a confiança (Louis Ponier)
e alguns destes doutores, à força de fidelidade, tornaram-se
quase em guias capazes de inspirar tanto a higiene do corpo
como a do espírito.
Tudo mudou a partir do momento em que a medicina de uma só
vez se especializou e se liberalizou. Entre as mãos do
especialista não somente a pessoa humana é fragmentada mas,
em cada pedaço, múltiplos concorrentes se enfrentam.
Consequência deste novo estatuto: balançamos face a cada
terapeuta entre a fé e a suspeição absoluta. Devendo tudo
conhecer, este não tem nenhum direito de se enganar. E alguns
doentes, vítimas do nomadismo do hipocondríaco, navegam de
gabinete para gabinete em busca de um conselho ou de um novo
medicamento. O doente contemporâneo é um céptico que não
acredita em tratamento algum mas a todos experimenta,
incluindo homeopatia, acupunctura, sofrologia, alopatia, um
pouco como esses novos fiéis que abraçam várias religiões para
aumentarem as garantias.
Quanto mais se espera da medicina em geral (e hoje em dia
pedimos-lhe tudo, incluindo o impossível, a cura total, a
vitória sobre a morte), mais nos impacientamos com as
limitações dos médicos em particular. A ciência esmaga com as
suas promessas os seus servidores pontuais, os quais se
banalizam, perdendo autoridade, tornando-se meros prestadores
de serviços a quem se ameaça com a justiça, aliás muitas
vezes com razão, no caso de cometerem algum erro. Se o
investigador, o sábio, alguns cirurgiões cuja perícia decorre
de uma verdadeira genialidade artística alcançam imenso
prestígio, o médico, em muitos casos, não é mais que um
reparador que torna a pôr a máquina em funcionamento até à
próxima avaria.
De qualquer dos modos não é certo que estejamos votados a
essa medicina parcelar que muitas vezes se assemelha a um
trabalho de canalizador ou de torneiro. Por vezes, e
felizmente que se escapa uma palavra do doente para o médico
que não somente é útil como permite ao primeiro apresentar o
seu sofrimento, de inserir os seus sintomas numa história
pessoal. Então a relação, em vez de ser desigual, de um
mandarim que ordena e de um paciente que obedece, torna-se
numa permuta e num contrato com dois sujeitos, conscientes
das suas limitações, procurando em conjunto a melhor cura
possível dentro de um respeito mútuo. Talvez o futuro resida
no casamento da competência do especialista com a
inteligência humana do generalista.
(Fim da caixa)

Fazer a ligação pela prova partilhada

O segundo momento desta revolução consiste em unir os


homens nas suas tragédias comuns. Não se pretende destruir a
infelicidade de um único golpe como outrora o socialismo
revolucionário, mas sim decompô-la pedaço a pedaço quando ela
nos espreita.
146
Cada traumatismo, acidente, atentado, epidemia dá lugar a
respostas específicas, a comissões, associações onde se
desenrola um duplo trabalho de auxílio mútuo e de intercâmbio.
Os seres de todos os meios, de todas as origens encontram-se,
por acaso, unidos por uma mesma ferida e, ao comprovar os
limites da medicina e também os da psiquiatria, decidem
associar-se para combaterem em conjunto o seu drama. Esta foi
a grande novidade dos Alcoólicos Anónimos criados nos Estados
Unidos antes da guerra de 1940 e importados para França por
Joseph Kessel que veio a dar início a uma terapia do
comportamento baseada na tomada de consciência pelo bebedor da
sua dependência, auxiliado por tutores que haviam atravessado
o mesmo calvário e que dele tinham saído. Reactiva-se assim,
contra a intemperança, um ideal de cuidar de si mesmo sob o
controlo de padrinhos que protegem e vigiam. Continua-se a
fazer da bebida (ou da droga) o centro da vida mas altera-se
pouco a pouco a relação que com elas se tem. Em lugar de
fazermos o que dizemos, falamos para nada fazer. O que
perdemos com a desintoxicação ganhámos em liberdade e
salvamo-nos com os outros através daquilo mesmo que nos
destruía. Aqueles que pensam encontrar no álcool um amigo,
agora que esse amigo se volta contra eles, descobrem nas
regras do grupo a forma de restaurar a autonomia perdida.
Algo de ínfimo mas de decisivo talvez se tenha alterado na
nossa relação com a doença. Relativizamo-la e dela fugimos
tanto como anteriormente mas já não aceitamos ser dela
desapossados por uma competência exterior, médica ou outra,
exigimos então ser associados, na medida do possível, ao
processo da cura. Neste domínio existe sem dúvida a
singularidade da sida porque durante muito tempo nos
contentámos, à falta de conseguir vencer o mal, em
estigmatizar os doentes, aqueles que, em primeiro lugar os
homossexuais e os toxicodependentes, tiveram literalmente de
criar uma parada social, jurídica, política para resistir ao
ostracismo e ao desprezo, chegando até a recriar ritos
funerários pagãos para enterrar os seus mortos. Exemplo
estupidificante de homens e mulheres submetidos ao mesmo
destino comum e cuja mobilização poderia ter um efeito
benéfico sobre todas as outras afecções. A sida não somente
renovou a velha aliança do sexo com a morte (mesmo que no
início fosse soberbamente mal conhecida, denunciada como uma
conjura contra a minoria gay). Colocou face a face dois
universos que já não se conheciam, ajuventude e o túmulo, e
logo no fim de um século que a todos tinha prometido se não a
eternidade pelo menos o prolongamento da vida até aos 120
anos. Veio escarnecer das nossas esperanças mais loucas,
voltou a mergulhar-nos numa espécie de horror medieval, pois
atrás dela outras gerações de vírus esperam na sombra para nos
ceifar. Mas acima de tudo, quebrou o mito da medicina
toda-poderosa, conferiu um novo sentido terrível à palavra
incurável - e aumentou o nosso pânico perante o regresso de
doenças mortais.

147
Pela mesma razão, adquiriu um estatuto particular, tornou-se
em objecto semipolítico, semimédico: nenhuma pandemia, se
assim se pode dizer, é desejável e esta, pela emoção causada,
tornou-se no objecto que tudo questiona; obrigou os
investigadores a reorientarem os seus trabalhos, os doentes a
modificarem o seu estatuto, a sociedade a considerar sob um
outro prisma as patologias até então confinadas ao segredo e à
vergonha. É talvez graças à sida, esse sinistro golpe de
címbalo desferido sobre uma época despreocupada, que o doente
se tornou num sujeito de direito (e já não um objecto passivo
nas mãos do médico), um actor social que pode exigir justiça,
como vimos no processo do sangue contaminado, que decide de
comum acordo com os doutores a melhor terapia a seguir e, por
vezes, toma assento nos conselhos de administração dos
hospitais. No entanto, co-responsável pelos cuidados que
recebe, o paciente não só em simultâneo aprende medicina como
acede também à maioria, participa a seu modo na sua cura:
assim numa clínica suíça destinada a crianças atingidas por
cancro, desenham-se cada manhã num quadro as células mortais e
fazem as crianças repetir: células, vou matar-vos, não
deixarei que me matem. Ao inserir o seu drama privado nas
redes da amizade, cada pessoa torna-se simultaneamente no
gestor da sua doença e num pedagogo que educa os outros,
ensinando-lhes a utilizarem o saber médico e jurídico. Existe
aqui um acto soberano de reapropriação, uma passagem da
submissão à dignidade reencontrada.
É então a partilha do sofrimento e a vontade de ele se
libertar que criam o laço e provocam um acto de doação dos
sentidos. Qualquer que seja a forma que tomem essas coligações
de dolentes, todas partem de uma verificação única: as
sabedorias mundanas, como as políticas tradicionais, ficam
desarmadas perante a dor e nada têm para oferecer aos que
sofrem a não ser vestígios de um cientifismo impotente ou de
um cristianismo abastardado. Preocupados em ultrapassar a
resignação tanto quanto a deploração, esses seres fracassados
assemelham-se ao não quererem sofrer sozinhos. Tantas
iniciativas minúsculas, por vezes espectaculares ou
sentimentais, que procuram reinserir as doenças na família
humana e esboçam um novo conjunto de lutas, à revelia das
Igrejas, dos partidos, das instituições.

As vítimas ou os passadores de fronteiras

A ser verdade que um terceiro poder emerge da sociedade


civil, o poder das vítimas(8), trata-se de indivíduos que
recusam deixar-se reduzir a esse estado,

*7. Daniel Defert: entrevista com Frédéric Manel, "Face


au sida", Esprit, Julho de 1994.
*8. Antoine Garapon e Denis Salas, La République pénalisée,
Hachette, 1996, p.10.

148
e aspiram, mesmo quando entrados num processo de degradação
física, a reencontrar a liberdade e a responsabilidade.
Afastando a vitimização, ao arguirem o prejuízo para obterem
adiamento, trazem o seu mal para a praça pública a fim de
serem reconhecidos e regressarem à legalidade: como por
exemplo essa jovem aviadora francesa condenada a uma cadeira
de rodas devido a um acidente e que criou um movimento tendo
em vista ser reconhecida a capacidade dos pilotos deficientes.
Ao decidir que um tal abuso não é tolerável nos dias de hoje,
ao traduzirem a sua revolta em termos jurídicos e políticos,
estes doentes modificam a norma, atravessam em nome de todos o
limiar da intolerância. Constrangidos a ultrapassar a
indiferença dos poderes públicos, o cepticismo da experiência
médica ou psiquiátrica, têm de responder a esta questão
crucial: provem-me que sofreis(9). Então e só então,
constituirão jurisprudência, servirão de modelo para outros,
alargarão o círculo das vítimas legítimas.
Mutação fundamental: mediante as interpelações que lhe são
dirigidas pelos hemofílicos, cancerosos, doentes com sida,
deficientes, é toda uma sociedade que tenta acomodar-se a um
novo mal e tomar em mãos as suas calamidades num duplo gesto
de pragmatismo e de voluntarismo. Deixou de ser satisfatório o
que até aqui era admissível. O que relevava do infortúnio é
doravante pensado em termos de preconceito, quer dizer de
"fatalidade modificável" (Ernst Cassirer). Batemo-nos, aliás,
aqui como no mundo do trabalho e da empresa, pela dignidade,
para que não sejamos abatidos pela desgraça (alterar a forma
como o deficiente é visto: é a principal função do Téléthon
através da recolha de fundos destinados à investigação no
combate às miopatias). Doentes profundos, traumatizados,
acidentados, fortalecidos pelas suas fraquezas comuns,
manifestam assim a sua liberdade em relação aos que até aqui
os classificavam da categoria dos cidadãos de segunda, dos
assistidos. Batem-se contra a segregação que fazia deles
pestilentos, portadores da má nova. Lutam para serem inseridos
na comunidade humana(10).

*9. Sobre a forma como a queixa deve ser recebida para ser
admitida uma tradução objectiva pelo médico especialista e ser
confirmada por um quadro clínico e uma escala de dores, ver o
artigo de Gilles Trimaille, "L'expertise médico-legal:
confiscation et traduction de la douleurH, in La Douleur et le
Droit, op. cit., nomeadamente pp. 498-499.
*10. Numa tese de doutoramento em Medicina sobre a evolução
do stress pós-traumático, o doutor Louis Jehel, a propósito
das 56 vítimas que sobreviveram ao atentado cometido em 6 de
Dezembro de 1996 contra a estação RER de Port-Royal em Paris,
revela assim uma grande vulnerabilidade das mulheres e das
crianças a este tipo de acontecimentos dramáticos bem como uma
mais rápida ultrapassagem do stress pelas pessoas feridas
fisicamente e tratadas dentro de um quadro hospitalar. O seu
trabalho pugna para que seja efectivamente levada a cabo em
França uma política de assistência mais eficaz e célere às
vítimas dos atentados. Louis Jehel, Université de Picardie,
Jules-Verne, Faculté de médicine, Novembro de 1997.

149
Revoluções minúsculas

Para que servem as manifestações contra a sida? Pergunta


um filósofo. E quem está a favor? Manifestamo-nos contra o
cancro ou contra o enfarte(11)? A esta poderosa objecção, é
necessário responder que no entanto nos manifestamos para
saber quantos somos, para renovar a mobilização das energias,
para intervir no plano simbólico, para relembrar à sociedade
que todos estamos preocupados. Trata-se neste domínio, como em
tantos outros, de converter os proscritos em vítimas honradas
(e de sublinhar que os honrados cidadãos podem amanhã
encontrar-se na pele dos proscritos). Assim os desfiles do Act
Up com as suas pancartas em forma de anúncio necrológico, os
seus assobios, os seus portes sombrios assemelham-se aos
cortejos de penitentes que atravessavam as cidades medievais
para lembrarem aos homens que eram mortais(12). A modernidade,
cada vez que é confrontada com o essencial, isto é, com a
mórte, reencontra tónicas religiosas. Em suma, o cidadão
moderno é um sujeito sofredor revoltado contra o seu
sofrimento e cuja revolta pode apresentar formas diversas: a
da queixa dirigida ao Estado-Providência(13); a da justiça
visando a reparação; por fim, a da batalha colectiva ou
associativa. Pode acumular estas três respostas mas, em todos
os casos, tem a escolha entre a postura vitimária, que o
confina ao convívio com o seu mal, ou o combate comum que o
obriga a inventar novos mecanismos de resolução, a oferecer
uma saída razoável para a lamentação. Ou o enclausuramento na
sua ferida para aí ruminar sem fim a tenebrosa abjecção ou a
sua reconstrução, obrigação de abandonar o madeiro do martírio
para entrar na ordem da liberdade. Entre estas duas
utilizações do sofrimento, é provável que o nosso tempo nada
venha a decidir. Mas a opção está em aberto. Estas revoluções
minúsculas em nada atenuam a angústia do condenado, a solidão
do moribundo. Podemos curar alguns males mas nunca a própria
infelicidade, a qual renasce sobre novas formas e se encarniça
com uma engenhosidade diabólica que desafia os nossos mais
elaborados recursos. Cada época, ao acreditar ter suplantado a
anterior, nada mais faz que trazer uma nova cruz. Pelo menos a
nossa atitude face à dor apresenta uma nova face que não fica
nada a dever ao optimismo positivista,

*11. Bertrand Vergely La Souffrance, Folio, Gallimard, 1997.


12. Seja o que for que por outro lado se pense desta
organização que utiliza a provocação como outros a prosa, usa
e abusa de uma retórica revisionista - a sida comparada à
Shoah -, exige a convocação de um tribunal de Nuremberga para
esta doença e que se entrega, em nome da inviolabilidade do
paciente elevado à categoria de uma figura crística, a
práticas duvidosas em que a preocupação publicitária se
distingue mal da causa defendida.
*13. Ver a este propósito o estudo de J. F. Lae,
L'Instance de la plainte. Une histoire politique et juridique
de la souffrance, Descartes et Cie, 1996.

150
aos postulados religiosos ou ao atordoamento hedonista que é
uma outra forma de capitulação.
"Os que recusam o combate estão mais gravemente feridos que
os que nele tomam parte" (Oscar Wilde).

(Caixa de Texto)
Amor não é compaixão

"Alcançámos um imenso progresso ao elevar a compaixão,


aessa repugnância inata por ver sofrer o seu semelhante"
(Rousseau) ao nível da virtude democrática, forma de viver a
humanidade inteira, nela compreendida o reino animal, como um
único corpo dolente cujos menores ferimentos nos afectam. É o
horror que provoca em nós o mal feito aos outros e aos nossos
irmãos inferiores, os animais, que faz progredir o domínio do
direito. Todavia quando Rousseau escreve em substância: "Todo
o ser que sofre é meu semelhante", estende sem qualquer dúvida
o sentimento de igualdade e de solidariedade ao conjunto dos
povos e das espécies. Assim, ele coloca o sofrimento no centro
da experiência humana, e não a alegria ou a felicidade.
Podemos então ler a sua verificação a contrario: só o que
sofre é meu semelhante (e o que saboreia a vida, meu
inimigo?).
Desconfiemos dos necrófagos da infelicidade que a nossa
prosperidade excita mas que, ao primeiro golpe de infortúnio,
acorrem para junto da nossa cabeceira e regalam-se com os
nossos infortúnios. Desconfiemos de todos os que fazem
profissão de fé na sua adoração pelos pobres, os perdidos, os
excluídos. Existe na sua solicitude algo de desprezo
disfarçado, uma forma de reduzir os miseráveis ao seu
infortúnio, de nunca os considerar como iguais. É então que
sobre a máscara da caridade triunfa o ressentimento: amor pela
infelicidade, ódio aos homens. Não se lhes perdoa existirem
quando são capazes de suportar.
"Ser tocado pela piedade", dizia Cícero, Himplica então que
o sejamos pelo desejo pois se sofremos as infelicidades de
outrem, igualmente poderemos sofrer a sua felicidade. Rousseau
inventou a compaixão como participação afectiva na dor do
outro, marca da universalidade das criaturas. Seria tempo de
lhe opor o co-deleite, a co-fruição, forma de nos tornarmos
familiares com o prazer do outro, em lugar de lhe cortarmos na
casaca quando é mais bafejado que nós. Então e só então surge
a autêntica face do amor: não a duvidosa comiseração mas o
júbilo perante a existência do outro. "Delectactio in
felicitas alterius", dizia Leibniz, alegria experimentada pela
felicidade do nosso próximo. Existe mais nobreza de alma em
nos alegrarmos com a felicidade dos outros que nos afligirmos
com a sua infelicidade.
(Fim da caixa)

Capítulo XI

A impossível sabedoria
"Nunca houve filósofo algum que suportasse bem uma dor de
dentes."
Shakespeare

"A morte não encerra nenhum mistério. Não abre qualquer


porta. É o fim de um ser humano."

Norbert Elias

"O que é magnífico é que, para dar segurança às pessoas, basta


negar a evidência."
Robert Bresson

Existe um ensino da dor?

Conhecemos a célebre alternativa em que Voltaire nos encerra


em Cândido: o homem teria nascido para viver nas convulsões da
inquietação ou na letargia do tédio. Não teríamos então outra
escolha que não o horror da aflição ou a monotonia do repouso.
Terrível tenaz! Na realidade são necessárias ao nosso apetite
pela vida adversidades à nossa medida, que testem a nossa
liberdade sem que a matem. São necessários obstáculos que
possamos ultrapassar e nos evitem a dupla experiência do
fracasso repetido e da infelicidade inultrapassável. Aí reside
o paradoxo: os bens alcançados sem esforço não têm qualquer
valor (é a razão por que a gratuidade absoluta de algumas
mercadorias provoca não o desejo mas a reacção. Mesmo o ladrão
paga com a sua pessoa o acto de roubar os outros). Ao sonho
pueril de uma existência onde os mais elevados fins seriam
alcançados sem dor, deve responder-se que demasiada felicidade
mata o prazer quando desaparece o sal da resistência e tudo se
obtém de imediato.

152
Para a satisfação ser completa, é preciso que se caminhe com o
tempo, amadurecer longamente os projectos, evitar a
precipitação que arruina os mais belos impulsos. Não chamemos
sofrimento ao que releva do nosso insucesso, chamemos-lhe
acaso, feliz surpresa, sorte por nos abrir ao nosso
aperfeiçoamento, digamos dele o que Platão dizia a respeito da
fealdade, que é electrizante na repulsa que inspira quando a
beleza nos entorpece. Todo o obstáculo vencido e ultrapassado
atribui um preço ao objecto visado, há um cansaço pelo
trabalho despendido que pode ser desagradável mas acaba por
libertar um prazer sem igual. A dor que desencoraja uns
galvaniza os outros.
Pois constitui um alarme salutar para o corpo, uma função
vital que nos confronta com as nossas limitações e é a última
antpara antes da loucura e da morte(1). As piores doenças,
como sabemos, insinuam-se o mais das vezes sem ruído, "no
silêncio dos órgãos". Da mesma forma as grandes questões, as
reviravoltas decisivas brotam muitas vezes de um revés que
eventualmente permitirá transformar a desordem num trunfo, as
desvantagens em vantagens. Todo o drama do herdeiro é
encontrar o caminho desbastado e aplanado antes mesmo de saber
falar, é tudo estragar antes de nada ter podido provar. Dado
que os valores não acontecem de repente e não sou de imediato
aquilo que devo ser, o acesso à verdade é uma via caótica que
implica tensão e perseverança. Só nos molda aquilo que nos
repugna e os nossos projectos abrem para o mundo um campo de
actividades, logo de fracassos ou de sucessos potenciais. É a
razão por que toda a educação, mesmo a mais liberal, é
ruptura, subtracção a um estado de ignorância bem-aventurado,
violência infligida a uma criança para encarnar na dimensão da
palavra e dos saberes. Em resumo, uma vida sem combate, sem
fardo, sem pena de qualquer espécie, uma vida que seria uma
linha direita em lugar de uma "encosta escarpada" (Xenofonte2)
constituiria um monumento à languidez.
Mas se o homem não acede à humanidade a não ser através da
provação, convém então distinguir esta da penitência.
Contrariamente ao mito segundo o qual seria preciso muito
sofrer para conhecer os homens (Elias Canetti teria dito a
George Steiner: "Jamais escrevereis grandes livros se um dia
não conhecerdes uma derrocada mental total"), a infelicidade
não educa os homens, torna-os infelizes e amargos. É preciso
amar muitopouco a humanidade para pensar que é por nos
magoarmos que a vida progride.(3) Por outras palavras,

*1. J. D. Nasio, Le Lívre de la douleur et de l'amour,


Payot, 1996.
2. Citado no livro de Paul Demon, L'Idéal de tranquilité,
Les Belles-Lettres, 1990, p. 287.
3. Bertrand Vergely op. cit., p. 71.

153
só são benéficos os dissabores aos quais possamos atribuir um
sentido e que originem um alargamento, desde que saiamos
fortalecidos de uma experiência que parecia destinada a
tragar-nos (mas contrariamente ao aforismo de Nietzsche
tornado estribilho mediático, o que não me mata não me torna
necessariamente mais forte: posso sobreviver a um enfarte, a
um cancro sem que recupere a minha saúde anterior, sem disso
tirar a menor lição). O que apaixona nas biografias das
pessoas comuns ou célebres, com a sua alternância de
ascensões, de quedas, de ressurreições é colocarem em
evidência quaisquer indivíduos capazes de, em situações
desesperadas, fazer prova de uma coragem excepcional, de
inventar uma solução(4). O herói contemporâneo é um herói de
circunstância projectado independentemente da sua vontade para
fora das normas habituais, um aventureiro do aleatório não um
profissional da bravura. Da mesma forma o desporto fascina-nos
por ser umjogo contra o destino: sublinha tanto a precariedade
da vitória como da derrota, põe em causa títulos e troféus num
turbilhão sem fim. Imagem da fragilidade das praças
conquistadas, constitui uma esperança para os perdedores, um
aviso para quem ganha.
Já Cícero salientava o caso dos soldados tomados pelo
orgulho e a paixão que eram capazes de suportar mil males mas
que se afundavam perante uma doença sem importância(5). Só
amamos os constrangimentos que impomos a nós mesmos, tendo em
vista um fim superior, quando estamos dispostos a expor-nos
aos piores perigos para alcançar os nossos fins (é a razão por
que, ao encontro do que nos repisam várias religiões
orientais, é preciso reabilitar o ego, o amor-próprio, a
vaidade, o narcisismo, tudo coisas excelentes quando postas ao
serviço do reforço do nosso poder). Observai os calvários,
muitas vezes desumanos, a que se submetem os atletas de alto
nível para vencerem uma competição quando o mundo ocidental
está completamente dominado pela cultura da anestesia. A cada
um cabe fixar o limite da penosidade para além do qual não
vale a pena ir (que seria então de uma vida que pelo menos uma
vez não tenha corrido risco de morte, que não tenha conhecido
a sua proximidade inebriante para a desprezar?). Este é então
o projecto moderno, aliar a vontade à autonomia, graças ao
qual o desumano se torna humano, porque assim o quero e só eu
estabeleço a escala das dores que estou disposto a suportar.

*4. Evocando o caso dessas crianças que souberam triunfar de


provas imensas e que se tornaram homens para a vida, Boris
Cyrulnik forjou a palavra "resiliança", conceito que designa o
que nos faz levantar face aos golpes da sorte mas não designa
automaticamente uma aptidão para a felicidade. Un merveilleux
malheur, Odile Jacob, 1999.
5. Cícero, Devant la Souffrance, II e III Tusculanes, Arlea,
p. 56.

154
O bom sofrimento é aquele que decreto como necessário ao meu
desenvolvimento, que posso converter em poder ou em
conhecimento.
É bem conhecido o exemplo dessa mulher alpinista que
percorreu a pé o Pólo de ponta a ponta para provar a ela mesma
que era capaz e ao mesmo tempo ajudar crianças doentes. Ou o
daquele francês que atravessou o Atlântico a nado em homenagem
a seu pai morto por um cancro e dedicou uma parte dos fundos
angariados para esta expedição à pesquisa contra a doença.
Como se pudéssemos opor uma vontade a uma fatalidade, como se
a pena que infligimos a nós mesmos devesse compensar aquela
que suportamos! Desafio lançado à finitude, teimosia que faz
recuar os limites psicológicos e fisiológicos do corpo ao ser
submetido a um terrível exercício. Estes guerreiros do inútil
acreditam nas leis da simetria, pensam que um martírio
controlado e desejado resgatará por magia todos os outros.
Esta moral da resistência que pára de bater recordes é
sobretudo uma moral da conjura: restabelece o cenário do
ignóbil, do mal extremo a fim de melhor o conjurar, impõe um
acréscimo de praxes, de perigos para exorcizar os que
diariamente nos apoquentam.
Pobre de mim, nós não escolhemos os golpes que nos dão vida,
o infortúnio não nos ataca a pedido mas irrompe de uma forma
tonitruante, sobretudo nessa forma moderna e irrisória da
catástrofe que é o acidente. A existência ameniza-se quando a
parte da adversidade anónima a conduz em direcção à
adversidade livremente consentida, quando não ousamos mais
arriscar, saltar os precipícios por medo de apressar a data
limite ou de atrair sobre nós mil flagelos. Não haveria
tormento, desolação se para todas as feridas pudéssemos
encontrar uma razão ou um sentido. Ora, não o podemos, razão
por que a dor permanece inominável, atroz, não nos desbrava,
nada nos ensina. E que ilusão na prática estóica da
praemeditatio, da previsão dos maus futuros para melhor os
frustrar! Acreditar que podemos tornar mais doce a morte, a
doença, a privação se nos prepararmos para isso dia e noite é
sobretudo uma forma de envenenarmos a vida, de malbaratar o
menor prazer ao imaginarmos o seu fim(6). Pois não é sempre
por inadvertência que a infelicidade nos atinge, que a morte
nos surpreende e que a doença nos atormenta mesmo se pensarmos
em as antecipar para as despoletarmos. Estranha forma de
conceder a esses flagelos plenos poderes sobre nós quando não
pertencem ao nosso meio.

*6. "Eles não se curvam perante os golpes da sorte porque


calcularam antecipadamente os ataques, pois entre as coisas
que acontecem sem que as desejemos, mesmo as mais penosas, são
aligeiradas pela previsão, quando o pensamento não encontra
mais nada de inesperado nos acontecimentos mas que lhe embota
a percepção como se se tratasse de coisas velhas e inúteis."
(Fílon de Alexandria, 40 d. C., citado em Pierre Hadot,
"est-ce que la philosophie antique?", Folio-Essais, Gallimard,
pp. 212-213.)

155
Que maior lucidez na imprevisibilidade! Não é verdade que
viver seja a preparação para a morte e a ruína: é esgotar
todas as possibilidades que nos são oferecidas por esta estada
na terra em detrimento das vicissitudes e da conclusão
inelutável, é agir como se fôssemos imortais. Na mesma ordem
de ideias, um Cioran que livro após livro cantava o suicídio
morreu estupidamente, se assim se pode dizer, de senilidade; o
que demonstra que nem sempre é fácil pôr os nossos actos de
acordo com os nossos pensamentos.

Os magníficos supliciados

Nada de mais chocante e mais instrutivo, num tempo de


embriaguez positivista, que ouvir os grandes doentes
explicarem-nos que têm o seu mal por amigo e que o tentam
aprisionar. Para o dizer de outro modo, alguns seres por
excepção encontram no horror da doença a ocasião para
explorarem uma dimensão inédita da existência e para alguns
mesmo se alegrarem. Chamo como testemunha quatro escritores
contemporâneos que são na realidade os nossos novos
escandalosos, os nossos loucos furiosos que deveríamos pregar
ao pelourinho se três deles não tivessem já morrido enquanto o
quarto tem a morte adiada à custa de transfusões. O primeiro é
Fritz Zorn, jovem burguês de Zurique atingido por um tumor que
descreve com "lágrimas reprimidas":
"Sou jovem, rico e culto; e sou infeliz, nevrótico e só.
Descendo das melhores famílias da margem direita do lago de
Zurique a que também chamam a Margem Dourada. Tive uma
educação burguesa e toda a minha vida fui bem-comportado. A
minha família é sofrivelmente degenerada, razão pela qual sem
dúvida tenho uma pesada hereditariedade e estou arruinado para
o meu meio. Naturalmente também tenho um cancro, o que não é
de admirar se o julgarmos à luz do que acabei de dizer. Posto
isto, a questão do cancro apresenta-se de uma dupla forma: por
um lado é uma doença do corpo que com sérias probabilidades me
matará proximamente mas talvez também seja capaz de o vencer e
de sobreviver; por outro, é uma doença da alma da qual só
posso dizer uma coisa: é uma sorte que por fim se tenha
declarado. Com isto quero significar que com o que recebi da
minha família no decurso da minha pouco rejubilante
existência, a coisa mais inteligente que fiz, é ter enganado o
cancro. [...] Desde que estou doente, passo muito melhor que
anteriormente a ter caído doente."
É ainda o escritor Hervé Guibert, atingido pela sida e que,
biógrafo da sua própria morte, em pânico tanto quanto
apaixonado pelo que lhe acontece, proclama:
156
*7. Fritz Zorn, Mars, Folio, Gallimard, 1979, pp. 33, 34.

156
"Beijarei as mãos do que me dará a conhecer a minha
condenação", antes de se maravilhar com a incrível perspectiva
de inteligência que a sida abria na minha vida e de concluir
que esta tem algo de suave e de deslumbrante na sua
atrocidade, pois "é uma longa escadaria que seguramente conduz
à morte mas em que cada degrau representava uma aprendizagem
sem par, era uma doença que dava tempo para morrer e que dava
à morte tempo para viver, o tempo de descobrir o tempo e de
descobrir a vida, era de algum modo uma genial invenção
moderna que nos foi transmitida por esses macacos verdes
africanos"(8). Vejamos agora o extraordinário testemunho de
Jean-Dominique Bauby, este jornalista atingido, na sequência
de um acidente vascular, pelo locked in syndrome (o que se
encontra encerrado no seu próprio interior) e que, incapaz de
se mexer, de falar ou mesmo de respirar sem assistência, só
comunica com o mundo mediante batimentos da sua pupila
esquerda. Transformado num "espanta pardais", descobrindo o
universo da paralisia total, ele que "parece ter vivido num
tonel de dioxina" rebenta a rir:
Uma estranha euforia invadiu-me então. Não somente me
encontrava exilado, paralisado, mudo, meio surdo, privado de
todos os prazeres e reduzido a uma existência de alforreca,
mas sobretudo era pavoroso ao olhar. Perdi-me num riso nervoso
que acabou por provocar uma acumulação de catástrofes quando,
depois de um último golpe de sorte, decidiram tratá-lo como se
fosse uma brincadeira.(9)

Ainda para terminar, esta alucinante reportagem do


romancista inglês Paul West sobre as suas misérias
fisiológicas. Atingido por toda uma panóplia de calamidades,
acidente cerebral, enxaquecas atrozes, diabetes, arritmias
ventriculares, sinais cutâneos, paralisia, descreve a sua
doença como um acidente milagroso que lhe permitiu aceder ao
conhecimento de si e o introduziu na "magia biológica" da qual
de outra forma teria permanecido ignorante.
Ter nascido, é ser-se transformável para o melhor e para o
pior enquanto se espera pelo pior. Ao observar que todo o meu
corpo se curva perante algumas das suas disfunções finais,
consegui fazer muito trabalho, nem sempre por desafio, e penso
por vezes que o seu caótico afundamento me inspirou, quer
dizer, me projectou para além do quotidiano.

*8. Hervé Guibert, A L'ami qui ne ma pas sauvé la vie,


Gallimard, 1988, pp. 46, 181, 182. (Edição portuguesa: Ao
amigo que não me salvou a vida: romance, tradução de João Luíz
Gomes, Lisboa, 1993, Livros do Brasil, Colecção Vida e
Aventura.)
9. Jean-Dominique Bauby Le Scaphandre et le Papillon, Robert
Laffont, 1997, p. 31. (Edição portuguesa: O Escafandro e a
Borboleta, tradução de Clarisse Tavares, Lisboa, 1999, Livros
do Brasil, Colecção Dois Mundos.) Jean Jacques Beineix
realizou um documentário magnífico sobre o caso Bauby,
L'Alphabet du silence, apresentado na emissão do HBouillon de
cultureH de 14 de Março de 1997.

157
Devo dar graças pelo que me aconteceu, pelo estfmulo que isso
provocou. [...) A minha grande sorte terá sido poder dizer ou
escrever sobre o meu mal enquanto sofria, contrariamente a
outros cuja doença lhes varreu as capacidades intelectuais ao
mesmo tempo que o corpo. Por esta ajuda, muchas gracias mesmo
que não se trate mais que um acaso.(10)
Amador apaixonado do seu próprio mal, descreve de forma
poética as crises de fibrilação, espanta-se com a acção de
cada medicamento, compara as intervenções cirúrgicas a obras
de arte, os doppler, as ecografias às obras de Kandinsky ou de
Dufy, vangloria-se de ter roçado ao de leve a morte e de ter
passado a dois passos das Fúrias, celebra a jóia esotérica do
jargão médico graças ao qual as línguas mortas, o grego e o
latim, se tornam furiosamente vivas. Através da doença, forma
suprema da arte, entrou tal como Fritz Zorn, Jean-Dominique
Bauby e Hervé Guibert numa outra realidade. Tendo-se tornado
em parte um ser biónico que carrega consigo um pace maker, uma
Kplaca de titânio, um homem-máquina construído mediante
artifícios, perscruta os seus sintomas com "um fervor de
filatelista", orgulha-se perversamente do que o aflige e fica
acima de tudo satisfeito por pelo menos ter alguma coisa a
dizer acerca do (seu) destinoH.
Provocações, fanfarronas de desesperados que se enfeitam
para melhor esconder o seu terror? Sem dúvida. Mas também
porque não os levar a sério, não escutar o que têm para dizer?
O que existe de precioso no testemunho destes escritores, é
banirem os três comportamentos canónicos que o Ocidente
determinou face à dor: humildade, heroísmo ou revolta.
Recusando posar como vítimas ou de se esconderem por detrás da
beatice, subtraem-se através do humor aos códigos habituais da
infelicidade, ao ultrapassarem-nos. Estes seres sem rótulo
cuja única riqueza é uma tentadora abertura para responder à
questão fundamental: que fazer quando já não há nada a fazer,
quando o corpo desaparece na noite? Pelo menos resta a
possibilidade de se escreverem livros, de construir através da
escrita uma morada precária. "Dado que já se encontram
vencidos, dado na realidade terem caído no fosso" (Fritz
Zorn), nada mais têm a provar e confessam, de forma deslocada,
um certo à-vontade com o abominável. Formam com as respectivas
doenças um duo desconfiado e amoroso onde se alimentam com
aquilo que os mata. Oferecem assim uma exemplaridade
apavorante que nos deixa sem saber se nos devemos deixar
alegrar ou abater. Através desta aventura, de tal modo
impensável, que os força a pegarem na caneta ("Foi preciso que
a infelicidade nos caísse em cima. Que horror foi preciso,
para que o meu livro visse a luz do dia", disse Hervé
Guibert), tornam-se à sua maneira exploradores das novas
possibilidades humanas.

*10. paul West, Un accident miraculeux, Arcanes, Gallimard,


1998, p. 11.

158
"Ninguém até agora determinou o que pode o corpo", afirmou
Espinoza. Ora, estes quatros, com excepção de Fritz Zorn, são
igualmente filhos da tecnociência, mantidos à força de braço
pela medicina, sobreviventes que atravessam uma dupla prova
existencial e química. Se atingem uma forma de sublime
paradoxal que não exclui nem o medo nem o auto-escárnio, é por
terem transformado a sua impotência em actividade e desbravam
a via de um novo domínio onde anteriormente só existia pânico
e opacidade.
Tendo atingido um nível de frémito terrificante, tentam
fixar a sua decadência física sob a forma de um pesadelo e
desafiam o monstro que os devora, aceitando olhá-lo nos olhos.
Estes doentes extremos são experimentadores, homens de
fronteira que assentam arraiais no limite da espécie onde o ar
é quase irrespirável. Na sua solidão vertiginosa, tornam-se
mutantes que se distanciam, queimam as suas naus, abandonam as
margens habituais. O que neles nos toca, é a ausência de
presunção: nem a confusão pós-romântica cara a Thomas Mann e a
Dostoievski da doença como distribuidora de génio nem a visão
nietzschiana do super-homem que o sofrimento esculpe qual
martelo divino e purifica. Nenhum embelezamento ou pathos: não
há nada a dizer, é assim. Estes seres comuns falam-nos com
ironia da sua situação desesperada: a provocação delirante de
um Fritz Zorn: Antes o cancro que a harmonia(11), a
teatralidade infantil de um Guibert, tragédia estupefacta de
umjovem transformado em esqueleto, num bebé de Auschwitz, o
narcisismo desolado de um Paul West e sobretudo o riso
silencioso de um Dominique Bauby, são fundamentais. No seu
sobressalto, na sua forma de conquistar ao terror momentos de
serenidade, eles são embaixadores de todos os que jazem em
luta contra a abjecção. Tendo esperado "o extremo do possível"
(Bataille), poupam-nos a declamações fáceis: a partir dos
campos de concentração ficámos a saber que existe um ponto a
partir do qual a infelicidade deixa de ser possível, onde a
tristeza e as lágrimas se tornam um luxo inútil de tal forma
se desceu tão baixo até ao abismo. A sua língua portadora de
uma bênção análoga à do corpo abre-se então e floresce como o
único elemento que lhes sobreviverá.
*11. É aberrante a partir do caso de Fritz Zorn querer
elaborar uma abordagem nova do cancro como se este fosse um
julgamento sobre a sociedade, um protesto contra condições de
vida intoleráveis. Mesmo se Zorn multiplicou não sem
grandiloquência as interpretações sobre o seu mal, o seu livro
nada nos ensina sobre o cancro mas muito sobre o seu ódio à
classe a que pertence. Quis-se com esta obra polemizar contra
a Suíça. Porque não? Mas entra na abominação que certos
escritores helvéticos dediquem ao seu país uma complacência
que faz sorrir. Estes privilegiados pretenderiam persuadir-nos
do carácter diabólico da Confederação: talvez nos aborreçamos
na Suíça mas a monotonia não é o inferno nem o gulag. Mesmo
quando repudia os seus brinquedos uma criança mimada é sempre
uma criança mimada.

159
Cadáveres em suspenso evoluem numa atmosfera de alta
densidade, apresentam o seu mal sob o ponto de vista do que
dele fez uma nova forma de existir na devastação. As suas
narrativas não são um hino à glória do homem conquistador ou
resistente mas ao homem poeta e malicioso até ao fim do seu
aviltamento e que por um instante transforma o seu suplício em
triunfo, numa aventura interior. Talvez sejam místicos, mas
sem Deus, sem revelação; e experimentam à felicidade de
contrariar por uma última vez a natureza no momento em que
esta os quer eliminar do mundo, não consolando nem nada nos
ensinando. Talvez os leiamos para conjurar a maldição que
sobre eles se abateu; mas também para verificar que é possível
uma morte sem esperança no além, na reencarnação. Expropriados
deles mesmos, estes estóicos trocistas dirigem-nos uma
última saudação antes do desaparecimento. Não nos curam dos
terrores obsessivos da noite; projectam sobre as trevas mais
espessas um frágil raio de luz. Dão nomes aos novos
sofrimentos e é isso que perturba: estes cosmonautas do íntimo
falam-nos a partir de um distante planeta que já é nosso e de
que eles são os primeiros exploradores.

Armistícios provisórios

Para terminar evitemos um contra-senso: não existe para


nós, já não existirá provavelmente mais sabedoria face ao
sofrimento que aquela que nos foi oferecida anteriormente
pelos Antigos, como o propõem ainda os budistas pela simples
razão que a sabedoria importa equilíbrio entre o indivíduo e o
mundo e este equilíbrio desde há muito que se rompeu, pelo
menos desde os alvores da Revolução Industrial. Curvamo-nos
perante a doença, o envelhecimento mas essa docilidade
completamente provisória será desmentida a partir do momento
que o engenho humano permita o conjunto normativo até aí
aceite. (E a ciência é na verdade a nossa última aventura, a
nossa última grande narrativa, portadora tanto de sonhos como
de pesadelos, a única capaz de combinar poesia, acção e
utopia.) Que tristeza, por exemplo, pensar que se vai morrer
de uma infecção, de um vírus que será curável dentro de alguns
anos, que partimos demasiado cedo (e, pelo contrário,
conhecemos casos de doentes com sida que, graças à triterapia,
hão-de fazer o enterro ao seu luto e voltar a viver). A dor é
um facto, não temos necessidade de ela fazer uma fé e com o
fatalismo só concluímos armistícios provisórios. Vimos
desaparecer tantas infelicidades que não nos podemos resignar
a sofrer aquelas que temos de suportar. Se os poderes do homem
se "detêm diante das portas da morte" (Aristóteles) está pelo
menos ao seu alcance trancá-los o mais longamente possível (e
sabemos bem que a pesquisa neste domínio avança a passos de
gigante).

160
Existe no mundo uma grande impaciência perante o infortúnio,
pois os progressos realizados tornam odiosa a imensidade do
que está por fazer. "A bestialidade da aflição" (Pavese) só
permite que com ela se estabeleçam relações caóticas e
contraditórias, proibindo qualquer relação justa. Toda a
serenidade nesta matéria não seria nada mais que o argumento
da fadiga.
Se mais não podemos fazer que admirar a nova cultura do
acompanhamento dos moribundos que se desenvolve no Ocidente e
lhes poupa o terrível fardo da solidão e da dor ao
"conduzi-los como um navio seguro pela noite escura" (Marie de
Hennezel), não saberemos portanto aí descobrir as premissas de
uma nova arte de morrer, se é que ela alguma vez existiu.
Desconfiemos do lirismo da Morte que transforma a morte dos
outros num romance idílico. Encontramos na obra de alguns
propagandistas cuidados paliativos, uma espécie de embriaguez
que os leva a tudo eufemizar, a tornar cor-de-rosa um
acontecimento dramático. Estes prosélitos da agonia divertida
manifestam por vezes, por detrás da sua gentileza, um
fanatismo que mete medo sobretudo quando os incita a
recusarem, aos que lhes pedem ajuda, apressar a hora final em
virtude de a agonia ser um momento de verdade do qual ninguém
poderá ser privado. (A este respeito nem sempre dispomos de um
estatuto de moribundo, como já há quase trinta anos o havia
reclamado Philippe Ariès, sobretudo nos casos de eutanásia,
ainda proibida em França embora seja "praticada de forma
clandestina e administrativa"12).
Sob o pretexto que a escamoteação moderna da morte tem algo
de escandaloso - por exemplo, já existem cemitérios virtuais
na Net onde os funerais de um ente próximo pode ser seguido no
ecrã - será portanto preciso transfigurá-la numa ocasião
miraculosa, qualificar a morte dos outros como um momento de
alegria? Com risco de cair numa espécie de vontade de poder
ser exercida sobre gente extenuada, a quem se prestam
sentimentos positivos?
Mas poder-se-á talvez tratar, por exercício de
ventriloquismo funerário, de nos assegurarmos junto dos
jacentes, de verificar pelo seu contacto que a morte não é
assim tão grave, de nos imunizarmos contra ela pela
contemplação gulosa dos outros?

*12. Como muito bem explica Jacques Pohier (La Mort


opportune, Seuil, 1998), (edição portuguesa: A Morte Oportuna:
o Direito de cada Um Decidir o Fim da Sua Vida, tradução de
Gemeniano Cascais Franco, Lisboa, 1999, Editorial Notícias,
Colecção Ciência Aberta). Nos casos de extrema decadência
física, a escolha deixa de ser entre a vida e a morte mas sim
entre duas formas de morrer. O corpo encontra-se já deslocado
mas o encarniçamento terapêutico mantém-no a viver
artificialmente. Sobre o mesmo tema ver a muito completa
documentação coligida por Anita Hocquard, L'Euthanasie
volontaire, PUF 1999.

161
Estes implacáveis amadores dos últimos suspiros são por vezes
possuídos por lufadas de alegria inexplicáveis no momento em
que os pacientes se finam(13), como se estes, empoleirados no
cume onde se resolve completamente um destino, se tornassem
timoneiros, professores de verdade que entreviram a luz, como
se numa palavra nos fossem encher de informações sobre o
além(14). Ainda que a ideia de acompanhar o sofrimento dos
outros seja uma ideia duvidosa dado "estarmos sempre atrasados
para o encontro com o próximo" (Catherine Challier), com a
morte, por princípio, podemos dissertar sem fim dado ninguém
saber o que a seguir vai ser de nós. As religiões, dizia
Kierkegaard, são agências de viagens que nos prometem uma
passagem garantida com destino ao céu, mas nunca ninguém
regressou para nos dizer se estava satisfeito com o transporte
e com a estada. A única forma de sobrevivência sobre a qual
todos estamos seguros, é a da lembrança que deixamos aos
nossos próximos, é a única imortalidade precária que está
garantida aos mortais. Tudo o mais é pura especulação. Todas
as crenças são respeitáveis: mas é uma petição de princípio
fazer da morte uma porta em direcção a um mundo melhor,
transformar a grande infelicidade numa grande felicidade (o
que é uma outra forma de negação). Perante ela, dizia com mais
que modéstia Jankélévitch, não existe nem vitória nem derrota,
pois não é um adversário que se possa derrotar ou domesticar.
Ora os nossos amigos da Ceifeira, os nossos famosos moribundos
dão a ilusão de deterem o viático, a solução para os
derradeiros instantes incontornavelmente transformados em
happy end. Existe na sua profissão de fé um ódio pela vida,
uma aberrante gulodice pela infelicidade que lembra as páginas
mais sombrias do cristianismo. Que bizarra proposta, em todo o
caso, afirmar que o luto, a dor, as doenças incuráveis são
enriquecimentos! Mesmo que isto se aplique a alguns indivíduos
que o proclamam a título estritamente mente pessoal, como os
quatro
autores anteriormente invocados, é uma afirmação intolerável
desde que generalizada. Nós não vivemos uma revolução do
morrer, antes levamos em consideração o moribundo como ser
vivo de pleno direito e isso é já de capital importância.
Se nos devemos curar da vontade de tudo curar e libertar o
homem da sua fragilidade, da sua imperfeição, é absurdo
exigir-lhe
que se curve perante o Minotauro do sofrimento e que se
resigne aos seus limites devido à espécie humana não ser um
material infinitamente moldável. que tudo não seja possível
não
significa que nada seja permitido. E a fronteira entre as
fatalidades inultrapassáveis e as injustiças alteráveis não
tinha sido antes considerada por já ser descabida. Não podemos
fazer tudo mas podemos intervir nos domínios que dependem de
nós, aliar-nos com a natureza para a combatermos quando ela
visa eliminar-nos. Esta é a atitude pragmática das nossas
sociedades que, por não possuírem a chave da angústia humana,
procedem a consertos terapêuticos, a solidariedades pontuais,
aliando assim humildade e determinação. Somos livres de
quebrar os nossos laços, não de nos destruirmos infinitamente
e todos nós só estabelecemos retas para melhor as ultrapassar.
A cada geração cabe retomar o combate onde a precedente o
deixou, sabendo que cada progresso origina por sua vez novos
recuos, que a eliminação de um flagelo é de imediato seguida
de um outro. Esta guerra acende tantos fogos como aqueles que
extingue. Jamais seremos assim derrotados pelas calamidades da
existência se soubermos que não existe solução para o
infortúnio dos homens. Desta forma a infelicidade regressa;
aliás com outras roupagens: não como uma fatalidade ou um
vestígio mas como um duplo inseparável, entrelaçado com as
nossas vidas e que se tenta expulsar mesmo que se adivinhe uma
luta sem precedente. O que hoje se inventa, com imperícia e às
apalpadelas, é uma arte de viver que inclui em si a
inteligência da adversidade sem cair no abismo da renúncia, é
uma arte de paciência que nos permite coexistir com o
sofrimento e contra ele.

*13. "Ao deixar Danièle (uma pessoa em fim de vida), tive


desejo de ir correr descalça sobre a erva como uma louca.
Embriagar-me com movimento. Entrei no meu carro e fui até ao
parque de Sceaux. [...] Sobre o grande relvado que se estende
em frente ao castelo, tive um imenso prazer em correr, em
rodopiar, em sentir a terra quente e húmida. Agradeci à vida e
a Danièle por este intenso momento de prazer consciente."
(Marie de Hennezel, La Mort intime, Laffont, 1995, prefácio de
François Mitterrand, pp. 161-162.) (Edição portuguesa: Diálogo
com a Morte: os que Vão Morrer Ensinam-nos a Viver, tradução
de José Carlos González, prefácio de François Mitterrand,
Lisboa, 1999, 3.a edição, Editorial Notícias, Colecção Ciência
Aberta).
14. Encontramos assim em Elizabeth Kubler-Ross, pioneira
americana dos cuidados paliativos, um elogio acima de tudo
embaraçoso das doenças graves e sobretudo da sida como
acelerador colectivo da nossa humanização, mal aparente que é
um bem profundo. Quando esta médica nos conta nas suas
Memórias que dialoga em directo com Jesus, que tem conversas
quotidianas com fantasmas e considera a morte como o último
porto de paz, estamos então fora do domínio das ideias para
entrar no insondável, na fantasmagoria.

162

(Caixa de Texto)
Sucesso do budismo no Ocidente?
Tudo é sofrimento, nascer é sofrimento, envelhecer é
sofrimento, estar unido ao que não ama é sofrimento, estar
separado do que se ama é sofrimento. Para escapar a esta
maldição, é preciso aprender a destacarmo-nos do mundo, matar
a cobiça em si, sair do ciclo das reincarnações ou pelo menos
encontrar o meio de renascer para um destino melhor. Teremos
reconhecido, grosso modo resumido nestas poucas linhas, um dos
fundamentos do budismo. O espantoso é que esta doutrina que
faz do ego uma ilusão funesta tenha reencontrado no nosso
Ocidente hedonista e individualista um tão largo eco.
O budismo tem isto de singular, em relação às nossas
religiões monoteístas, não é dogmático, não determina, antes
indica uma via para sair da errância, convida cada um a
encontrar uma senda que conduz à salvação. Sobretudo refaz o
laço há muito desaparecido no Ocidente entre teoria e prática:
ao contrário do filósofo ocidental, puro espírito votado à
especulação, o mestre budista, como o antigo mestre, é então
mestre de vida. Nada enuncia que não tenha experimentado e
alimenta o seu ensinamento com a fonte viva da experiência.
Mas, enfim, há mais: ao apelar à extinÇão do ardorda sede, à
renúncia dos desejos, o budismo reencontra e desperta üm dos
axiomas centrais do cristtanismo: o carácter efémero e vão da
nossa existência sobre a terra. Ainda como o cristianismo,
considera o sofrimento como a forma de apagar um mau karma,
quer dizer, expiar os pecados cometidos numa vida anterior.
Como ele, retira o seu prestígio pelo facto de se situar
fora da vida. Na verdade será bem-sucedido lá onde as nossas
Igrejas fracassam: como doutrina da contrapartida que vem
refrear os apetites pelas riquezas, os erros provocados pelo
egoísmo. A sua sedução partirá então da sua proximidade e não
do seu distanciamento e da sua muito rica tradição cultural.
Permitirá que ouçamos sob uma máscara asiática as verdades
que não toleramos às nossas próprias confissões. Não virá
contestar nem ojudaísmo nem o cristianismo, confirmará deles
alguns axiomas. Será menos um rodeio que um regresso.
Nada é portanto menos seguro. Se exceptuarmos um bem pequeno
número de eruditos e de letrados, não é o budismo que triunfa
no Ocidente, é uma religião feita por medida e vestida de
exotismo. Nem sequer é mesmo uma espiritualidade,
uma terapia, um escudo contra o stress que promulga um credo
que abre todas as portas aceitáveis pela maioria. Como pode
uma doutrina da renúncia seduzir a sociedade da implicação
mundana? Ao renunciar à renúncia, ao servi-la numa forma
ligeira e fácil de digerir pelos nossos estômagos delicados,
pelos nossos egos no paradoxismo da excitação. Então bem aí
podemos procurar como numa caixa de chocolates, ficando com os
melhores, rejeitando os outros. O essencial é que a embalagem
permaneça tibetana, zen ou tãntrica.
Talvez se jogue uma outra coisa nesta predilecção pelo
Oriente: a invenção de um sincronismo inédito, a
reconciliação mágica dos contrários, da serenidade e da
inquietude, do apego e da indiferença, do desenvolvimento
pessoal e da ilusão do ego pela acção indirecta de uma crença
minimal. O que será este neobudismo? O complemento espiritual
da globalização sem espírito, a religião do fim das
religiões? Talvez. Deste abraço louco entre o Leste e Oeste,
contemporâneo da era das doutrinas fáceis, surgirá algo que
não se assemelhará a nada já conhecido: sobretudo ao budismo
autêntico, ainda demasiado rígido, demasiado disciplinado, que
será desfigurado, espezinhado, vítima do seu sucesso. Nascerá
daí um gigantesco contra-senso, a eterna forma da novidade na
História.
(Fim da caixa)

Conclusão

O croissant da Senhora Verdurin

"Acreditai nos que buscam a verdade, duvidai dos que a


encontraram."
André Gide

Quando em 1915 a Senhora


Verdurin tomou conhecimento do desaparecimento do Lusitania,
esse paquete britânico atingido por um submarino alemão,
estava em vias de degustar o seu primeiro croissant da guérra.
A brutalidade desta notícia em nada atenuou o prazer de
reencontrar esse gosto tão familiar.
A Senhora Verdurin, sofrendo de enxaquecas por não mais ter
tido croissants para ensopar no seu café com leite, tinha
acabado por obter de Cottard uma autorização que lhe permitia
que os mandasse fazer naquele restaurante.de que já vos falei.
A autorização dada pelos poderes públicos tinha sido tão
difícil de obter como a nomeação de um general. Ela pegou no
seu primeiro croissant na manhã em que os jornais narravam o
naufrágio do Lusitania. Ao ensopar o croissant inteiro no café
com leite e dando piparotes no jornal para que se pudesse
manter inteiramente aberto sem que tivesse necessidade de
retirar a sua outra mão das sopinhas, dizia: "Que horror, isto
ultrapassa em horror as mais horrendas tragédias." Mas a
morte de todos esses náufragos não lhe devia parecer senão
reduzida à milionésima, pois ao fazer, com a boca cheia, estas
reflexões desoladas, o ar que pairava sobre a sua figura,
produzido provavelmente pelo sabor do croissant, tão precioso
contra a enxaqueca, era antes o de uma doce satisfação.(1)

*1. Marcel Proust, Pléiade, Gallimard, ui volume, pp.


772-773.

168
a senhora Verdurin? Não!
Simplesmente humana, terrivelmente humana e não é preciso
deixar-nos aqui apanhar pela ironia proustiana. Pois nós nunca
somos felizes a não ser no meio da desgraça dos outros, na
omissão provisória do que nos consome, em retirar a pesada
preocupação que oblitera as frontes. Rimos e amamos no momento
em que milhões de homens sofrem e agonizam da mesma forma que
na hora do nosso passamento, do nosso sofrimento, milhões de
indivíduos que não nos conhecem nem nos amam divertir-se-ão e
serão felizes. Somos todos Senhoras Verdurin quanto a esta
questão, pois não existe concordância de tempos entre as
diferentes partes da humanidade nem mesmo no interior de um
simples grupo humano: a alegria dos nossos amigos quando somos
presas de uma dor ou de um luto pode ferir-nos como um
insulto. E a difusão instantânea das notícias em redor do
globo em nada muda este aspecto: a visão de uma fome no
Telejornal das oito horas nunca impediu ninguém de comer com
apetite.
Evitemos o contra-senso tão frequente do contágio positivo
que fará depender as nossas felicidades das de outrem e por
extensão de toda a sociedade. É necessário introduzir aqui uma
alteração de escala: não vivemos isolados mas sim em
companhias restritas, as nossas famílias, os nossos próximos,
a nossa aldeia, a nossa região que são quem determina os
nossos humores e as nossas alegrias. O que nos define,
afirmava Hume, não é a universalidade, é a parcialidade(2),
uma
combinação de egoísmo e de simpatia, um ângulo muito
particular de observar a vida tanto mais imperioso quanto se
ignora enquanto tal. A nossa percepção funesta ou alegre do
estado das coisas é muitas vezes condicionada por este meio
ambiente estreito que nos intluencia tanto quanto a ele o
influenciamos. Existe então uma felicidade suscitada pelos
outros mas cujo círculo se limita a alguns íntimos e nunca se
expande até aos confins da terra. O ideal seria, bem
entendido, conciliar a concordância pessoal com a colectiva e
realizar-se num mundo de onde toda a opressão e miséria
tivessem sido banidas. Que no horizonte de cada momento de
alegria houvesse um desejo de tornar a humanidade melhor, que
fosse justo partilhar esse regozijo com todos. Mas se fosse
preciso que as injustiças se esbatessem para acedermos ao
unirvana>>, os nossos lábios não poderiam mesmo esboçar um
sorriso. O horror, a abominação rodeiam-nos, mas nós vivemos,
prosperamos e temos razão, pois esta insensibilidade é
indispensável ao equilíbrio. Sob qualquer ângulo por que a
tomemos, não existe felicidade a não ser na indiferença, na
inconsciência e na inocência, esse raros momentos subtraídos à
inquietude, aos alarmes.

*2. Citado por Philippe Raynaud em Politesse et Sincérité,


Éditions Esprit, 1984, p. 85.

169
Não somos felizes a não ser por
despeito: a despeito de um amigo que sofre, de uma guerra que
mata, de um mundo doente e não há lugar à vergonha de o ter,
pois existirão sempre calamidades, massacres que atirarão o
estado social para as calendas.
Daqui, no entanto, decorre uma consequência: porque é a
expressão de um desprendimento salvador, que pretende escapar
aos malefícios do tempo, congelar o devir, a felicidade não
saberia ser o fim último das sociedades humanas nem o
fundamento da acção. É necessário, tal como o sofrimento, que
seja subordinada à liberdade. Estes momentos de coincidência
consigo mesmo e de harmonia com a natureza, essas páginas de
luz que transfiguram a nossa existência, não podemos nelas
basear nem uma moral, nem uma política, nem um projecto. Se é
preciso ensinar aos homens a forma de resistirem às suas
inclinações, é porque todos os fins não são compatíveis e é
preciso hierarquizá-los, excluindo alguns que nos eram caros.
Há circunstâncias em que a liberdade se pode mostrar mais
importante que a felicidade, o sacrifício que a
tranquilidade. A ideia específica de Condorcet de uma cadeia
indissolúvel
entre virtude, justiça, razão e prazer não é sustentável.
Mesmo se nós pudéssemos postular que todos os bens estão
ligados através da unidade de uma vida (Charles Taylor), eles
entram necessariamente em conflito a partir do momento em que
tentássemos realizá-los. Esta é razão por que a política
pertence à ordem da prudência e não do sublime, é por isso que
a história permanece trágica e a todos nos suja, qualquer que
seja o nosso comprometimento pessoal. Sonhar com um
desabrochar simultâneo dos ideais humanos é uma amável
quimera: o desmembramento é o nosso destino, estamos votados à
dissonância, . à competição pelos valores últimos que se
revelam inconciliáveis.
Enfim, é talvez tempo de dizer que o segredo de uma vida boa
é troçar da felicidade, nunca a procurar e enquanto tal,
acolhê-la sem que nos interroguemos se é merecida ou contribui
para a edificação do género humano; não a retermos, não
lamentar a sua perda; deixar com ela o seu carácter
fantasmagórico que lhe permite surgir no meio dos dias comuns
ou de se ocultar nas situações grandiosas. Em resumo, tê-la
sempre e por todo o lado por secundária, pois ela só surge a
propósito de qualquer outra coisa.
A felicidade propriamente dita, podemos preferir o prazer
como um breve êxtase roubado ao curso das coisas, a
vivacidade, essa embriaguez ligeira que acompanha o
desenvolvimento da vida, e sobretudo a alegria que implica
surpresa e elevação. Pois nada rivaliza com a irrupção na
nossa existência de um acontecimento ou de um ser que nos
destroça ou que nos encanta. Existe sempre demasiado a
desejar, a descobrir, a amar. E abandonamos a cena sem mal ter
provado o festim.

Pascal Bruckner nasceu em 1948, em Paris. Mestre em filosofia


e doutorado em letras, foi professor convidado nas
universidades de San Diego (1986) e Nova Iorque (1987-95).
Autor de uma vasta obra de ficção e ensaio, escreveu, em
colaboração com Alain Finkielkraut, um dos livros charneira da
década de 70: A Nova Desordem Amorosa (1977). Em 1995, ganhou
o Prémio Médicis de ensaio com A Tentação da Inocência; dois
anos mais tarde, o romance Ladrões de Beleza valeu-lhe o
Prémio Renaudot. Lua de Mel, Lua de Fel (1981), adaptado ao
cinema por Romain Polanski, é um dos seus romances mais
famosos.

Data da Digitalização

Amadora, Julho de 2002

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