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Versão revista de resenha de O Cálculo do Conflito, de

Wanderley Guilherme dos Santos (Belo Horizonte, Editora


UFMG, 2003), publicada no Caderno de Resenhas (Folha de S. Paulo),
10/5/2003, pp. 1-2.

O GOLPE E O CÁLCULO

Fábio Wanderley Reis

Tenho me empenhado para que haja, nas ciências sociais brasileiras, o


debate real de idéias, incluindo a crítica autêntica de publicações, em vez dos
elogios ocos ao trabalho dos amigos ou do mero confronto de vaidades e das
brigas pessoais. O convite para resenhar este livro de Wanderley Guilherme
dos Santos coloca minha disposição à prova de modo especial, tendo em vista
as características do livro e a estima que me merece o autor (por quem fui
mesmo honrado com a inclusão de meu nome, ao lado dos de outros colegas,
na dedicatória de um volume anterior que é agora incorporado ao atual).

Os méritos do livro são bem claros, sendo condizentes com a reputação


de Wanderley como um dos mais destacados cientistas sociais do país. Em
particular, cabe salientar o atrevimento teórico que orienta o esforço de pensar
o Brasil (e que transforma o país em caso ou instância de regularidades de
operação mais ampla), em contraste com a abdicação “idiográfica” e histórico-
jornalística de muito do que se faz em nossas ciências sociais. Além disso,
esse atrevimento, diferentemente de certas imagens associadas entre nós à
idéia de teoria como uma espécie de jogo “etéreo” e no limite ocioso, articula-
se diretamente com a busca de amarração empírica, e o volume é marcado
pela utilização laboriosa, sistemática e criativa de dados empíricos.
Substantivamente, por outro lado, o livro, empenhado em última análise na
explicação dos eventos de 1964, sem dúvida ajuda a iluminar diversos
aspectos relevantes da dinâmica político-institucional brasileira do último
meio século, em particular no que se refere ao Congresso e ao sistema
partidário, bem como aspectos da crise que culmina no golpe e na implantação
da ditadura militar.

Mas os problemas do livro são vários. Para começar, este é um livro


“difícil”. Por certo aspecto, trata-se de uma dificuldade “boa”, a do trabalho
complexo e denso que advém da aceitação do desafio da reflexão teórica e da
busca de seu respaldo empírico. Mas nem todas as dificuldades são virtuosas,
e provavelmente as maiores não o são. As dificuldades negativas podem talvez

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ser resumidas num déficit de precisão e rigor, em certa “frouxidão”, que surge
como desconcertante diante do empenho científico do autor, envolvendo
mesmo esforços de formalização, e que se manifesta em diversos planos.

Passemos por alto o desleixo que Wanderley se permite quanto à


linguagem: dos barbarismos de inspiração inglesa, como o insistente
“assumir” usado como sinônimo de “supor”, até a sintaxe com alguma
frequência desatenta e ocasionalmente arrevesada, a exigir decifração pelo
leitor. Se tomamos o tratamento e a apresentação dos dados (às vezes afetados
negativamente já pela própria linguagem descuidada: veja-se, na p. 244, a
ininteligível interpretação do significado do índice de fracionalização
nominal), a frouxidão ocorre, por um lado, em coisas de menor importância,
como o repetido uso ritualista e impróprio de coeficientes de significação
estatística (que dizem respeito a erro amostral e expressam a probabilidade de
que determinadas observações se devam a ele) em circunstâncias em que os
dados processados não correspondem a amostras de qualquer “universo” que
se possa precisar. Mas repare-se também, por exemplo, em nível que interfere
com a avaliação das operações analíticas realizadas e seus resultados, na
obscuridade que marca a apresentação e a discussão tanto das tabelas 4.13,
4.14 e 4.15, relativas a renovação parlamentar, quanto da tabela 9.4, relativa
ao ordenamento dos partidos na escala esquerda-direita, cercadas de
informações e leituras imprecisas, confusões e omissões. Ou observe-se (sem
pretender que se trate de algo necessariamente “errado” ou sem sentido de um
ponto de vista técnico) a dificuldade de apreender com segurança o que
Wanderley nos procura dizer sobre competitividade partidária no Congresso e
número de partidos parlamentares efetivos (p. 154/5): definida a
competitividade pela relação entre o número de partidos efetivos e o de
partidos com representação parlamentar, busca-se em seguida a correlação
empírica entre a competitividade e o número de partidos efetivos...

Mas a face mais importante da “frouxidão” apontada tem a ver com a


inconsistência da orientação ou perspectiva geral, que torna mesmo difícil
saber o que é, de fato, que Wanderley pretende sustentar. Nos enunciados
mais explícitos do que seria a tese do livro, o autor se contrapõe ao
“paradigma clássico da análise social e política brasileira”, onde a ênfase
sociológica daria às variáveis e processos políticos um status dependente, e
insiste na tecla da importância de recuperar variáveis propriamente políticas,
dos “processos políticos como variáveis independentes” (p. 20), ou na idéia de
que “é, sobretudo, a estrutura do conflito político, em si, que importa para o
resultado de qualquer outro conflito na sociedade” (p. 179, grifo de WGS). No

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entanto, apesar de Wanderley afirmar a necessidade de “esquemas conceituais
bem elaborados” (p. 170), não se encontra no livro a discussão de qual será o
significado apropriado do “político” em contraste com outras esferas, e a
definição subjacente à perspectiva proposta parece ligar o “político” com
aquilo que diz respeito, sem mais, ao Estado, ou ao plano político-institucional
tomado em sentido restrito: os poderes formalmente constituídos (o Executivo
e o Legislativo, talvez o Judiciário) e a dinâmica de cada um deles e das
relações entre eles, além dos partidos.

Contudo, é claro o caráter pobre e inepto dessa definição (uma definição


adequada do “político” exige antes o recorte analítico que permita apontar o
conteúdo ou significado político ao menos potencial de qualquer conflito),
bem como a impossibilidade de ser fiel a uma perspectiva que nela se assente.
E não só vemos Wanderley reformular sua tese em termos, por exemplo, das
variáveis políticas como “intervenientes” (p. 177) ou do problema da “forma
pela qual as questões da sociedade são traduzidas em formulações de política
– isto é, as consequências de um determinado processo econômico, social ou
cultural” (p. 356), mas o vemos também ocupar-se deliberada e longamente
(pp. 207 e seguintes, 231 e seguintes) dos processos socioeconômicos e de
psicologia coletiva que produzem as condições de radicalização e polarização
“fora do Congresso”, as quais se refletem no plano partidário e no âmbito do
Congresso, eventualmente levando aos indícios daquilo que corresponde à
categoria que o autor acalenta no livro como sua criação conceitual dileta: a
“paralisia decisória”, apresentada como a variável crucial, por si mesma, na
explicação do golpe de 1964. Mas a força dos dados sobre paralisia decisória
não é mais que relativa, e eles são sem dúvida compatíveis com a perspectiva
que destaque a idéia de um conflito social a traduzir-se em enfrentamento
institucional entre a esquerda em avanço e a direita “ameaçada”: vejam-se, no
próprio livro, os dados que mostram o sustentado crescimento parlamentar do
PTB e da esquerda em geral (tabela 9.1 e gráfico 9.1), que tem óbvio substrato
“estrutural”, bem como o registro singelo que faz Wanderley da percepção
pelos militares da ameaça de “subversão constitucional” que Goulart
representaria (p. 336), ou de uma “escalada comunista” a ser detida (p. 215).
Haveria razões para esperar que um Congresso “janguista”, em vez de
“paralisado”, evitasse golpes?

Seja como for, as hesitações de Wanderley não podem senão ter


consequências para a consistência do próprio modelo teórico do “cálculo do
conflito”, objeto de longo exercício formal em apêndice. O modelo é
entendido como aplicando-se a “sistemas em que o resultado das políticas é

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função do cálculo plebiscitário da distribuição de poder entre os atores
políticos”, com “plebiscitário” referindo-se (em uso algo arbitrário) ao
processo decisório em que, “dado um conjunto específico de propostas
políticas, a opção por uma delas depende da avaliação de cada participante
relativamente aos recursos de poder de que todos os demais dispõem para
apoiar um determinado conjunto de alternativas” (p. 359, onde se diz também,
explicitamente, que “plebiscitário” não significa “a consulta periódica ou
ocasional às preferências do público em geral”, presumivelmente em
eleições). Deixemos de lado o exemplo de formulação imprecisa que aí se
tem: cabe presumir que cada participante avalia não apenas os recursos de
“todos os demais”, mas também os seus próprios e sua relação com os dos
outros, como o autor mesmo deixa claro em outras passagens. Um aspecto
notável das elaborações de Wanderley a respeito tem a ver com a intensidade
das preferências mantidas pelos atores quanto a diferentes políticas:
salientando insistentemente sua importância, Wanderley não apenas não
destaca o que há de problemático na comparação interpessoal da intensidade
de preferências – ou de “utilidades”, na linguagem dos economistas –, mas
também pretende (apesar de se referir, na p. 364, à “premissa” da
impossibilidade de identificar no mundo empírico a intensidade de
preferências de qualquer ator...) que se possa determinar, o que é mesmo
apresentado como decisivo para os resultados do “cálculo do conflito”, se a
diferença entre as “intensidades” de atores diversos seria maior ou menor do
que a diferença entre seus recursos, sem explicar como se poderia tratar de
realizar essa mensuração comparativa de coisas heterogêneas (p. 193, por
exemplo). Mas outros aspectos são mais importantes do ponto de vista da
consistência geral do modelo.

Assim, um recurso político é definido como o “controle de uma arena


política” (p. 360), enquanto as arenas políticas são caracterizadas como
incluindo “não apenas as legalmente estabelecidas”, tais como o parlamento e
os partidos, mas também os sindicatos operários, a Igreja e até o Exército (p.
359). Para uma perspectiva preocupada em destacar variáveis especificamente
políticas, é bem clara a dificuldade que resulta desse reconhecimento explícito
dos sindicatos, da Igreja e do Exército (“e outros”: p. 359) como arenas
políticas e recursos políticos. Mas a inconsistência se torna mais nítida pelo
fato de que a violência política, da qual a paralisia decisória é apontada como
condição suficiente, é vista como ocorrendo quando haja “uma tentativa de
produzir e implementar uma decisão por quaisquer outros meios que não
sejam as considerações plebiscitárias” (p. 360, grifo meu). Ora, se o caráter
“plebiscitário” se refere apenas ao cálculo ou à avaliação da distribuição de

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recursos e se essa avaliação se aplica até ao controle das Forças Armadas, é
evidente que o sistema relevante vai muito além da esfera parlamentar ou
político-institucional em sentido estreito, e é difícil ver o que será alheio às
“considerações plebiscitárias”. Nesse sistema, não só o uso político das Forças
Armadas não seria “violência”, nos termos da definição fornecida, mas
também a paralisia de decisões, entendida como algo que se dará quando “não
houver ator (ou coligação de atores) com poder suficiente para fazer
prevalecer sua proposta” (p. 360), exigiria para sua ocorrência que as próprias
Forças Armadas não dispusessem desse poder. Mas 1964, segundo a
interpretação de Wanderley, corresponde à intervenção (eficaz) das Forças
Armadas em resposta à paralisia de decisões especialmente no nível
parlamentar, ou na esteira dela.

Não há por que negar a importância, ou mesmo a ocasional


“autonomia”, do que se passa no Congresso ou no plano “institucional”. Mas a
chave maior do problema geral consiste em ver o desafio institucional como
situado na articulação dos mecanismos formais com os processos e conflitos
sociopolíticos subjacentes, permitindo que, com base em certos compromissos
fundamentais e respaldados por normas que contem com adesão efetiva, os
conflitos sejam administrados em termos institucionais (por meio dos
formalismos institucionais). Nessa ótica, cabe falar de uma crise institucional
durante todo o período que vai de 1945 a 1964, ou seja, da vigência (mesmo se
a polarização torna a crise aos poucos mais aguda) daquilo que alguns
designaram como “pretorianismo”, ao qual acaba reduzido o sistema
“plebiscitário” de Wanderley. Trata-se aí da busca do interesse próprio por
categorias político-sociais diversas num prolongado quadro inerentemente
instável de debilidade institucional e de vale-tudo, que, por isso mesmo, tem
os militares como protagonistas decisivos, embora nem sempre ocupem o
proscênio. Em tal quadro, com Guerra Fria, suicídio de Vargas, novembrada
de 1955, Jacareacanga, Aragarças, Cuba, renúncia de Jânio e quejandos,
exercícios como o de contrapor a “instabilidade” do governo Goulart à
“estabilidade” do governo Kubitschek em razão da maior ou menor
movimentação de quadros administrativos envolvem opção analítica
visivelmente empobrecedora, ainda que sempre nos revelem algo.

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