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Andréia Shimizu

10 lições que aprendi com a vida

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Título original: 10 lições que aprendi com a vida

Ilustração da capa: Sebastião Milhomem Silva

Copyright© 2018, por Andréia Shimizu

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob

quaisquer meios existentes sem autorização por escrito da autora.

Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou

situações terá sido mera coincidência.

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PREFÁCIO

Creio que ninguém é tão frio ao ponto não sentir nada quando se vive

algo novo, a famosa “primeira vez”! A primeira vez que andei (eu não

lembro, mas minha mãe conta a história), a primeira palavra, o primeiro

beijo, o primeiro amor... Vivi tantas “primeiras vezes” que estas

experiências que me levaram a acreditar que tudo, absolutamente tudo, só

acontece uma única vez na vida!

Foi mal, “eu nem te levei para jantar!” – Essa é uma brincadeira que

faço, mas explicarei depois. E como é a nossa “primeira vez”, vamos

começar do começo: Meu nome é Andréia e meus amigos me chamam de

Déia! Se o ditado “a primeira impressão é a que fica” for verdadeiro, é

fundamental que você saiba que escrevi “isto” com a intenção de realizar

algo que meus alunos pedem com frequência: reunir em um só lugar

algumas histórias que conto para incrementar as aulas. E quem me conhece

sabe que tento ser uma mulher apaixonada por tudo que faço e amo a

liberdade de pensamento. Quem sabe não consigo mudar o mundo? Para não

“me complicar”, afirmo que tudo que foi escrito nesta obra é mera ficção,

acredite você ou não.

Déia

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DEDICATÓRIA

Dedico esta obra para todas as pessoas que conheci no meu caminho, pois

cada uma delas é responsável por me ajudar a ser quem sou hoje. Obrigada.

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CAPÍTULO 1

Problemas. O que fazer com eles?

Quando vejo um aluno infeliz, sempre chego e pergunto se posso fazer algo,

se ele quer conversar. Ah, um aviso: Só estou usando ELE, no masculino, porque

a gramática ordena que, ao falar dos dois gêneros, mesmo tendo mais que dois

para mim devo usar o ELE. Não concordo, mas temos que dançar conforme o

ritmo da música.

Sei que tenho uma carga horária burocrática a cumprir, mas o que custa

parar um pouco a aula e perguntar o que está acontecendo com o humano que

existe dentro do aluno? E o que são 3 minutos se eu conseguir resgatar essa

pessoa? Aliás, foram esses 3 minutos que salvaram minha vida há muitos anos

atrás...

Estava no primeiro ano do ensino médio, tinha quase quinze anos na época

e minha vida estava muito conturbada. Enorme de gorda, discriminada, colégio

novo, o pai perdendo a empresa, problemas em casa e na rua, confusa sobre minha

identidade, em todos os aspectos. Estava tudo girando na minha cabeça. Não

lembro o dia certo, mas era uma ensolarada manhã de março, depois do intervalo

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das aulas. Tinha ficado sabendo na noite anterior que a empresa do meu pai ia

fechar. Falando assim até parece que eu era uma garota riquinha e mimada, mas

só que não, para a cultura japonesa a honra vinha primeiro que o dinheiro, sempre.

A minha metade japonesa foi herdada do meu pai, o Sr. Shimizu. Corajoso

e aventureiro, saiu de seu país aos vinte e um anos de idade para tentar ganhar a

vida em um lugar estranho que ficava do outro lado do mundo. Tudo que ele

possuía, além de seus sonhos, era um baú com roupas. Quando chegou ao Brasil

teve que se sujeitar à um trabalho semiescravo para “pagar” a viagem e a indicação

de emprego. Ele comentava que única comida que não gostava era abobrinha. E

vamos ser sinceros, japonês come de tudo, passaram por muitas privações,

principalmente fome, ainda mais porque ele nasceu em 1939, no começo da 2ª

Guerra Mundial. Nem consigo imaginar as dificuldades que seu povo viveu. Um

dia ele contou o motivo de não gostar de abobrinha: Durante os dois primeiros

anos morando e trabalhando em regime de semiescravidão no Brasil, os

empregadores serviram para o grupo de japoneses apenas abóbora como refeição,

por isso, complementavam o cardápio com qualquer coisa que fosse comestível.

Em uma ocasião seus amigos encontraram um cavalo morto e estavam tão

desesperados e famintos que comeram sua carne.

Até hoje minha família cultiva a amizade com os melhores amigos do meu

pai, o “Tio T.” e sua esposa, a “Tia Y.” (com muito carinho e respeito – essa é

uma homenagem para vocês, meus tios japoneses) e este meu tio comentou que
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meu pai conseguiu um emprego muito bom, mas era um solteirão convicto,

farrista e boêmio, por isso gastava tudo com “diversão”. Meu pai viveu assim até

conhecer a minha mãe.

Em seis anos eles estavam casados e com três filhos para criar. Sou a mais

nova. Minha mãe comentava que meu pai viajava muito, nunca tinha tempo para

ficar conosco, pois ele “construía indústrias que construíam indústrias” e, nesta

época, o Brasil estava vivenciando um momento de grande crescimento

econômico, todo mundo estava ganhando muito dinheiro. A turma de japoneses

aproveitou a oportunidade, criaram uma pequena empresa que acabou se

transformando em uma grande indústria e até obtiveram reconhecimento

internacional. Somente hoje eu consigo compreender a grandiosidade de seu

trabalho, que era montar estruturas colossais, como plataformas de petróleo.

Seu sucesso profissional nos proporcionou uma boa estabilidade financeira

e desde que me lembro sempre íamos para São Paulo por volta do dia 23 ou 24 de

dezembro e por isso nunca fizemos uma ceia de Natal em nossa casa até eu chegar

à adolescência. Claro que a gente montava a árvore, ganhávamos os presentes,

que eram abertos na noite anterior à viagem, mas eu realmente não sabia o que

era o “Natal Tradicional” dos brasileiros. Não tinha festa em casa, não tinha amigo

oculto, não tinha confraternização, não tinha peru e essas coisas típicas.

Eu não sabia porque a nossa família era tão diferente das outras, mas tudo

mudou quando entendi que meu pai adorava viajar porque, para ele, a forma mais
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rápida de adquirir conhecimento era experimentar, apreciar novos sabores,

cheiros, conhecer pessoas. Por isso, a gente sempre viajava e em uma das viagens,

lembro que ficamos em um hotel lindo, o quarto era enorme, tinha um “Ofurô”,

que é um tipo de banheira japonesa, uma geladeira repleta de coisas gostosas e

camas espaçosas e confortáveis. Meu pai sempre gostou de conforto e descobriu

um outro hotel, que era mais novo e muito bem localizado no coração do bairro

da Liberdade. Ficávamos em quartos “conjugados”, ou seja, os cômodos eram

separados por portas internas e isso nos permitia ter privacidade e ao mesmo

tempo proximidade. Claro que este hotel oferecia as mesmas comodidades que o

outro, como a banheira. Lembro que o frigobar estava sempre lotado de coisas

gostosas e ficava à nossa disposição, mas fomos educados a sempre pedir

permissão para fazer qualquer coisa e para consumir os itens da geladeira a regra

era a mesma. A gente sabia meu pai tentava realizar todos os nossos gostos nestas

viagens – eram os únicos momentos do ano que ele ficava descontraído, sorria e

parecia estar plenamente feliz.

No primeiro dia, geralmente gostávamos de ir ao falecido PlayCenter e meu

pai sempre ia conosco nos brinquedos mais radicais: O nosso preferido era o

Barco Viking. Na manhã do segundo dia passeávamos pela Liberdade,

confraternizando com amigos que ele tinha lá, conhecendo as lojas,

experimentando coisas novas. Em cada estabelecimento que íamos, meu pai

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sempre fazia questão de nos apresentar algo diferente, fosse um livro, uma música

ou uma comida, além das pessoas.

Na parte da tarde ele nos levava para o melhor shopping center de São Paulo

e nossa diversão era patinar no gelo, jogar fliperama e depois comer na lanchonete

“do palhaço”, que todos conhecem. Mas nesta época quase nenhuma criança que

frequentava a mesma escola que nós havia experimentado o tal lanche: eles só

viam a propaganda na televisão e comentavam que tinham vontade de saber como

era. O problema é que meus irmãos e eu erámos discriminados demais para

compartilhar nossas experiências com as outras crianças, pois na nossa cidade a

aparência vale mais que a experiência.

Ele sempre nos levava em algum lugar que oferecia uma atração diferente,

e perguntava se a gente queria experimentar e é claro que a resposta era sempre

sim, como aconteceu na vez em que jogamos boliche.

No terceiro dia acontecia uma grande festa no sítio de um de seus amigos e

eles faziam questão que a mesa fosse farta, abarrotada com inúmeros tipos de

comidas japonesas e brasileiras, além das bebidas, que eram diversificadas e

servidas à vontade. Os homens gostavam whisky, mas não tinha só uma ou duas

garrafas da bebida, a fartura era tanta que eles compravam caixas fechadas de

Chivas, Johnnie, Jack, Mac, pelo menos era o que lembro de ter visto. Quem

entende do assunto sabe, só pelo primeiro nome, que eles escolhiam os melhores

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produtos disponíveis no mercado e tudo isso para comemorar o encontro da turma

e o sucesso profissional que conquistaram depois de batalharem tanto por isso.

Um dos convidados trabalhava na empresa que fabricava a mais famosa

marca de sorvete da época e hoje sei que seu cargo devia ser muito elevado, pois

ele sempre levava para a sobremesa os melhores produtos que eram exibidos nas

propagandas de televisão. Ele enchia o freezer com caixas e mais caixas fechadas

de picolés e sorvetes para degustarmos à vontade. Muitas vezes

experimentávamos sabores que ainda nem haviam sido disponibilizados para o

mercado. Acho que era o sonho de consumo de toda criança.

E como esquecer os restaurantes que meu pai nos levava? Em um havia

uma chapa em cada mesa e uma enorme variedade de produtos para que o cliente

ou um cozinheiro tivesse na honra de preparar a refeição. Meu pai, que adorava

cozinhar, fazia questão de nos mostrar suas habilidades culinárias. Um dia vi este

tipo de restaurante em um filme e fiquei maravilhada. Em outro lugar a mesa era

redonda com uma pedra giratória no centro, estilo chinês. Meu pai gostou tanto

que tempos depois comprou uma mesa igual, que a gente usa até hoje. E tinha os

restaurantes japoneses. O serviço era impecável, perfeito. Antes da refeição

vinham “toalhas úmidas e quentes” para higienizar as mãos e depois meu pai fazia

o pedido. Para as crianças eram os “camarões gigantes”, o prato da minha mãe era

uma carne na chapa com legumes e para ele, sempre vinha umas coisas esquisitas.

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Me arrependo de não ter experimentado, mas tudo era muito estranho e até hoje

desconheço o que ele pedia.

Por volta do dia 29 de dezembro voltávamos para casa e começávamos a

fazer os preparativos para a comemoração de Ano Novo, que acontecia com a

nossa “família brasileira”. A festa era linda, tinha amigo oculto, muitas frutas,

comidas, bebidas, risadas. Uma vez, meu avô japonês que tinha vindo nos visitar

comemorou conosco a data. Toda família tem uma tradição para este momento e

a nossa era descer as escadas cantando, abrir as garrafas de espumante e passá-las

de mão em mão para que todos bebessem um pouco, inclusive as crianças.

Foi nesta noite que tomei meu primeiro porre. O espumante era gostoso,

docinho e todos estavam ocupados demais para perceber que eu tinha tomado

mais que um golinho. Lembro que acordei passando muito mal, com os sintomas

clássicos de uma bela ressaca, dor de cabeça, vômito e corpo ruim. Minha mãe

conversou comigo e falei do espumante, ela explicou que eu não devia beber, pois

era criança e aquilo fazia muito mal. Eu tinha sete anos. Prometi que não iria mais

beber, promessa que cumpri até os treze anos de idade.

Na segunda semana de janeiro e no carnaval, viajávamos para a praia com

a nossa “família japonesa”, que eram os sócios da empresa do meu pai e eles

sempre alugavam casas magníficas. Recordo pouco desta época, mas uma das

casas ficou gravada na minha memória para sempre. Lembro que a sala era

gigantesca, pelo menos para mim que tinha uns cinco ou seis anos e lá havia uma
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grande parede de pedra com lareira, mas eu nunca entendi porque ter uma lareira

na casa de praia, pois eles nunca a usavam e sempre fazia calor quando estávamos

lá, mas meu pai me disse, tempos depois, que às vezes fazia frio e era bom ficar

em frente a lareira conversando com os amigos.

Lembro que na sala também tinha uma mesa de sinuca, um bar e uma

grande mesa, que era usada por meu pai e seus amigos para conversar e beber. O

mesmo ambiente ainda comportava alguns sofás de couro, uma mesa de centro e

uma televisão para distrair as crianças. Analisando o lugar hoje, percebo que

deveria ser realmente muito espaçoso. As mulheres ficavam na cozinha

preparando diferentes tipos de comida para os maridos e filhos, mas minha mãe

ficava conosco, éramos brasileiros e todos falavam o idioma japonês, exceto ela,

meus irmãos e eu. Era constrangedor, mas tínhamos tudo do bom e do melhor,

experimentávamos com meu pai as particularidades de sua cultura, que nos era

tão estranha.

Éramos brasileiros em um mundo de japoneses.

Não falo, até hoje, nada do idioma. Conheci as comidas, uma pequena parte

de sua cultura, mas ele não nos apresentou ou não queria que soubéssemos mais

coisas sobre seu povo. Anos depois descobri qual poderia ser o motivo que o levou

a tomar esta atitude, mas essa história eu conto depois.

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A vida em família era muito boa e mesmo com as brigas entre os irmãos,

algo que acredito que aconteça em todos os lugares, éramos felizes. Na rua as

coisas começaram a ficar diferentes para mim depois que eu completei seis anos

de idade. Até então eu era uma criança linda, meiga, carismática, doce, mas em

dois anos sofri uma transformação gigantesca, brutal e me tornei “um monstro”,

pois era assim que me via no espelho. Cresci e engordei muito, o que era anormal

para uma criança e com oito anos, meu corpo já era de uma mulher adulta. Mas

era uma mulher gorda e feia. O meu pescoço, virilhas e axilas começaram a ficar

escuras, escamosas, como se fossem crostas de sujeira e parecia que eu não

tomava banho. Se não bastasse, meu corpo exalava um cheiro muito ruim, mesmo

usando desodorantes e perfumes e tomando de dois a três banhos por dia. Quando

eu entrava no chuveiro, minha mãe, inconformada, esfregava essas partes até

quase chegar à carne viva para tentar tirar aquilo, mas não saía, só piorava mais e

mais a cada dia que passava.

Não era normal e, desesperada, minha mãe começou a me levar em

inúmeros médicos para tentar descobrir o que estava acontecendo comigo. Um

deles chegou a comentar que ela não me dava banho direito e que aquilo era

sujeira. Doutor esta é para o senhor: Não era sujeira e sim um dos sintomas da

Síndrome da Resistência à Insulina, que foi diagnosticada quando eu tinha uns

treze anos. Um dos médicos pediu um exame de mapeamento genético, ele queria

saber a fundo o que eu tinha e parece que no meu caso a doença foi causada por

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mutação genética. Efeito das Bombas atômicas? Vai saber, o Japão é um país

pequeno.

Obviamente tudo isso me afetou profundamente, pois as crianças são

extremamente cruéis e sofri muito na escola. Juntando o fato de ser japonesa, a

situação se tornava um prato cheio para que meus algozes se deliciassem com as

provocações. A música que a turma cantava até hoje ecoa em meus ouvidos:

- Japonês da cara chata, come pão com barata, parafraseando o Hino

da Independência.

A música até era engraçada e isso não me perturbava tanto, o que

machucava mesmo era que todos ou quase todos os alunos do Colégio achavam

que tinham o direito de me rebaixar. Apanhava constantemente e os ataques

vinham de todos os lados. Acredito que fui a criança mais odiada da escola, só

que também fui aquela que ninguém jamais conseguiu esquecer. Eu tinha dez anos

nesta época, era muito medrosa e qualquer um que tivesse o mínimo de coragem

conseguia me humilhar. O pior é que eu permitia, pois fui ensinada a não revidar

em caso de briga e nunca responder às ofensas. As pessoas param uma hora, me

disseram, um dia elas irão cansar e te deixarão em paz! Só que essa foi uma grande

mentira que ouvi. As pessoas não param, elas não se cansam, esse tipo de gente

não respeita quem quer que seja e só conseguem se sobressair ao pisar no outro,

diminuindo-o. Sua grandeza é a desgraça alheia. Isso não muda pelo simples fato

de termos crescido, pois crescer é aprender a ser cínico, a ofender com um sorriso,
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fazer um comentário maldoso e destrutivo como estivesse dando um conselho,

como se estivesse tentando “te ajudar”. E existem pessoas cruéis de verdade, que

não têm brilho próprio e só conseguem se sentir melhor ao rebaixar o outro e

encontramos este tipo de gente o tempo todo, mas temos que aprender a ser forte,

dar um basta na situação e, principalmente, parar de ter medo.

Em uma ocasião, na época da faculdade, estava conversando com uma

colega de turma e ela comentou que estava muito triste porque sempre ouvia

coisas absurdas das pessoas e isso detonava a sua autoestima. E ela falou:

- Esses dias para trás encontrei uma menina dos tempos da escola e

fazia um bom tempo que a gente não se via. Em um momento da conversa a garota

falou que eu estava diferente e respondi:

- Diferente? Você acha? Que bom! Estou fazendo faculdade, cortei o

cabelo, mudei a cor, o estilo de roupa...

A outra interrompeu:

- Ah, sim, isso também, comentou a menina com desdém. Mas sua

roupa, credo, ela não caiu bem, você ficou horrorosa e enorme de gorda. Além do

mais, a cor do seu cabelo te deixou parecida com um rato morto. E, pelo que te

conheço, você escolheu o curso mais fácil que tinha para conseguir passar na

prova do vestibular, né?

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O comentário sarcástico desabou como uma bomba na cabeça da minha

amiga. Detalhe: a gente estudava em uma das melhores universidades públicas do

país. Eu fiquei inconformada com os comentários e falei:

- E o que você fez?

E minha amiga respondeu:

- Não falei nem fiz nada. Só despedi e fui embora para chorar em casa.

Não conseguia acreditar que ela tinha ficado triste, chorado e engolido

aqueles comentários maldosos quieta e, no auge da minha revolta, lembrei da

musiquinha do japonês da cara chata, de todas as humilhações que suportei, do

que sentia dia após dia tendo que viver em um pesadelo interminável e o quanto

desejava morrer para nunca mais ter que acordar. Eu tinha dez anos de idade.

Depois da aula fui seguida por três moleques, dois estudavam na minha sala

e o outro era uns quatro anos mais velho que a gente. Só que desta vez reagi aos

insultos e eles começaram a me agredir: chutaram, cuspiram na minha cara e, não

satisfeitos, ainda tentaram me estuprar. Como não tinha nenhuma chance contra

eles, consegui escapar e corri muito até ver uma casa que estava com o portão

aberto. Entrei e bati na porta desesperada, gritei, chamei por minha mãe e uma

senhora muito idosa atendeu. Ela percebeu minha agonia e não falou nada, só

pegou a minha mão e me puxou para dentro e fechou a porta na cara dos

agressores.

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A senhora me levou até a cozinha e fez com que eu tomasse um copo de

água com açúcar, comentando que era uma antiga receita para acalmar. Assim que

terminei de beber, ela quis saber o que tinha acontecido e contei tudo. E ela falou:

- Minha filha, tudo passa. Um dia sempre vem depois do outro e como

não sabemos o que nos aguarda, só podemos ter fé que amanhã será melhor que

hoje.

Ela falou com tamanha intensidade que não pude deixar de sentir que aquela

senhora devia ter sofrido muito. Conversamos mais um pouco, mas precisava ir

embora e agradeci muito, despedimos com um grande abraço e segui meu

caminho. Nunca mais a vi e até tentei fazer uma visita umas três semanas depois

do ocorrido, mas um vizinho comentou que a senhora que morava naquela casa

havia falecido na semana anterior. Não lembro seu nome, mas de suas palavras

jamais esquecerei.

Cheguei em casa e minha mãe perguntou o que tinha acontecido, dei uma

desculpa qualquer e ela fez a cara de “não acredito, mas aceito”, dizendo que se

eu quisesse falar ela iria me ajudar, mas ela sabia algumas coisas eu nunca

revelava e não adiantava insistir. Desta vez queria enfrentar a situação sozinha,

pois naquele momento aprendi que as pessoas só te deixam em paz quando você

as coloca em seu devido lugar, só param de te sacanear quando você finca o pé no

seu território e o defende até a morte. Pouco importa se eu for grosseira, turrona

ou o que irão pensar de mim e se a pessoa não quiser mais falar comigo, melhor
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ainda, pois não faço questão alguma de ter este tipo de gente em minha vida. Nas

palavras de Maquiavel, “melhor ser temido do que amado. E devemos aprender a

ser maus e usar essa maldade quando for necessário”. Além do mais, responder

às provocações me fez sentir mais forte e pela primeira vez tive orgulho de mim

mesma. Ainda não tinha coragem para enfrentar todos os xingamentos e ainda

evitava qualquer tipo de conflito, até a “Triunfal Chegada” de um novo colega de

sala: O "João Fortão"!

Em toda escola tem um: É o cara mais forte, mais revoltado, maior que os

outros, geralmente repetente e que adora uma briga. Desde o primeiro dia

começou a me provocar, suportei um mês inteiro de risadinhas e insultos até ele

perceber que as ofensas não seriam suficientes para que eu revidasse. Irritado,

falou que iriamos “resolver problema” depois da aula, o que significava briga. O

“João Fortão” morava em um bairro distante e mesmo tendo que trilhar caminhos

tão diferentes dos meus, ele me seguiu. E não estava sozinho: Vários colegas do

Colégio o acompanhavam, como uma torcida organizada.

Procurei ficar quieta perante as provocações, ressaltei que não queria brigar

e falei que jamais dava o primeiro golpe. Essa é uma regra que sigo até hoje e

aprendi com um grande amigo do meu pai, o “Sensei”, professor de judô. Ao ouvir

isso o garoto não pensou duas vezes e partiu para a agressão com socos e pontapés,

mas o ódio que eu sentia era tão profundo que fiquei cega. Ser gorda não

significava ser forte e eu só tinha uma forma de me defender: Com unhas e dentes.
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Lembro que cai e ele continuou chutando, mas consegui agarrar sua perna

e cravei meus dentes até sentir o gosto de sangue nos meus lábios. O moleque

urrou de dor e neste momento aproveitei sua distração, puxei suas pernas e quando

ele caiu, consegui travar seus braços com minhas pernas. Com as mãos livres,

esmurrei sua cara e exigi que ele pedisse perdão e prometesse que nunca mais iria

mexer comigo. Só parei depois de ouvir o “João Fortão” implorando. Os colegas

que o acompanhavam ficaram em silêncio e incrédulos pelo que havia acontecido.

Então, olhei para cada um e perguntei quem seria o próximo. Ninguém quis

arriscar. Depois da briga, tiveram que levar o “João Fortão” para o hospital.

Em casa tentei esconder da minha mãe o que tinha acontecido, mas os

machucados no meu rosto me entregaram, contei a história e implorei para ela não

tomar nenhuma atitude, afinal, eu tinha vencido a briga e queria sentir o gosto da

minha primeira vitória infantil. E minha mãe acatou meu pedido.

Poucos dias depois me chamaram para “esclarecer os fatos” que

aconteceram fora da escola e fui conduzida para uma sala onde estava a Diretora,

a supervisora do período, o "João Fortão" e o professor de educação física. E em

tom altivo, com aquela voz irritante que parecia sair de seu nariz, a Diretora disse:

- O aluno João está alegando que não pode fazer educação física hoje

porque está machucado e trouxe um atestado médico comprovando isto. Ele disse

que você é a responsável por seus ferimentos. Isto é verdade?

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- Verdade? Ele disse que eu o machuquei? Falei cinicamente. Como a

senhora pode ver, ele é bem maior que eu!

Desconsertada, ela revidou:

- É, realmente, ele é bem maior que você, mas isso não vem ao caso,

pois o que eu quero descobrir é a verdade: Você bateu ou não bateu nele?

E respondi, muito educadamente:

- A senhora e todos no Colégio sabem que eu sempre apanho na rua,

que os colegas me provocam o tempo todo, me chamam de gorda, balão, botijão

de gás, elefante, bola, japonês da cara chata. Já reclamei várias vezes, só que

ninguém nunca fez nada a respeito. Se eu bati nele? Bati sim e vou bater de novo

se ele me provocar. Aliás, vou bater em qualquer um que mexer comigo

novamente.

Sinceramente, não sei de onde tirei tanta força e coragem para falar tudo

aquilo, pois eu nunca fui assim, sempre tinha sido como “as mulheres japonesas

submissas”. E falei com tanta calma e educação, que até hoje não sei como

consegui controlar a raiva gigantesca que sentia. Eu queria gritar, chorar e

machucar todos que estavam ali para que eles sentissem a minha dor.

Pairou um silêncio mórbido no ar. A diretora se remexeu desconfortável em

sua bela cadeira de couro (Colégio particular: Se você tem, SE TEM. Quem

estudou lá sabe o significado), a supervisora saiu discretamente da sala, o moleque


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abaixou a cabeça e eu levantei a minha. Aí o professor de educação física olhou

para o "João Fortão" com muita raiva e esbravejou:

- Olha aqui, moleque: Vê se aprende a ser Homem e nunca mais entra

numa briga se for perder, ainda mais de uma mulher! Vira macho! Agora vai lá

fazer os exercícios porque para mim não tem desculpa.

Sei que foi machismo, mas todos sabiam que esse homem adorava usar a

esposa e filhos como saco de pancadas nas horas vagas. O garoto, constrangido,

saiu da sala com o professor e eu fui liberada. Foi assim que eu defendi, com

unhas e dentes, meu território pela primeira vez. Mesmo depois deste ocorrido,

continuei estudando lá e uma menina da minha sala, que devia ser muito corajosa,

ainda tentou me humilhar ao usar os costumeiros adjetivos que eu ouvia todos os

dias:

- Sua gorda, baleia, japonesa da cara chata que tem o nariz de batata e

come pão com barata!

Olhei bem para a cara dela e respondi, com toda calma do mundo:

- Eu te conheço, aliás, conheço toda a sua família e fiquei sabendo que

seu pai é funcionário da empresa do meu pai! Que mundo pequeno! Você tem

duas opções: Pede desculpas agora e me deixa em paz ou vou pedir para o meu

pai demitir o seu. Você escolhe.

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A garota pediu perdão e nunca mais abriu aquela boca grande para me

ofender. É óbvio que meu pai jamais iria demitir um funcionário por questões

pessoais, mas a menina não precisava saber disso. Se me alguém me provocasse

eu chamava para briga e se amarelasse era covarde. Ninguém queria arriscar a

reputação e as provocações cessaram. Foi assim que os últimos colegas pararam

de me humilhar e fiquei em paz. Mas esta foi apenas uma minúscula vitória

perante os desafios que ainda tive que enfrentar, pois a maior parte das

humilhações que eu sofria partiam dos adultos que deveriam me preparar para a

vida: Os professores. Eu tinha quase onze anos.

A pior era a professora de educação física, mulher grosseira, mal amada,

mal comida e mal resolvida em todos os aspectos. E quando eu tentava fazer os

exercícios, ela berrava:

- Corre mais rápido sua gorda! Vamos acabar com essas banhas

horrorosas que estão balançando na sua barriga. Você é incapaz de ser melhor e

nunca vai conseguir fazer nada direito na vida! Você é só uma baleia inútil!

Essa era a forma carinhosa que ela me tratava em todas as aulas. Eu até

gostava de fazer educação física e esforçava ao máximo para fazer tudo certo, mas

nunca era o bastante para ela. Professora, a senhora se tornou minha musa

inspiradora e sempre que entro em contato com outras pessoas lembro de você e

procuro jamais fazer com outro ser humano o que a senhora fez comigo. E quando

penso em desistir de algo em minha vida lembro de suas palavras e dobro meus
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esforços para conquistar meu espaço no mundo, pois percebi que sou capaz de

fazer o que quiser da minha vida e posso realizar todos os meus sonhos. Obrigada

por me ensinar esta valiosa lição de vida: O que não te mata, fortalece.

Eu gostava muito de jogar bola e hoje sei que não era tão ruim assim como

a professora falava. Até procurava interagir com os outros colegas na hora do

intervalo, ia para a quadra e tentava entrar nos times para jogar, mas ninguém

nunca me aceitava. Mas existia uma regra: “Quem chegasse primeiro na quadra

tinha o direito de jogar”. Naquele dia eu consegui chegar primeiro e mesmo assim

ninguém queria me aceitar em nenhum time, só que fiz valer a regra da quadra e

consegui participar da brincadeira.

Mesmo esforçando para jogar bem, ninguém me queria ali e percebi que

uma garota do meu time estava tentando me agredir e perguntei o porquê, mas ela

alegou que estava apenas dividindo a bola e que jogo era jogo. Se era assim, eu

iria seguir suas regras. A menina continuou fazendo seu “jogo”, mas creio que ela

não conhecia a terceira Lei de Newton, que afirma: “Se um corpo A (no caso a

menina) aplicar uma força sobre um corpo B (eu) receberá deste uma força de

mesma intensidade, mesma direção e de sentido contrário”. Ela veio para cima de

mim, jogou seu corpo contra o meu, mas desta vez joguei o meu corpo contra o

dela e mandei de volta sua própria força combinada com a minha. Só que eu era

maior, mais pesada e foi como se ela tivesse se jogado contra uma estrutura

maciça de concreto que avançava em sua direção. Neste momento ela fez valer
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para mim a maior Lei do Universo: Tudo que vai, volta. Ela caiu de mau jeito e

fraturou o braço em vários lugares. Conforme fiquei sabendo depois, ela nunca

mais jogou bola novamente. Juro de coração que foi sem querer, pois mesmo

sentindo tanto ódio, jamais faria, conscientemente, algo tão perverso assim. Fiquei

realmente sensibilizada com sua situação, mas como ela mesma falou, jogo é jogo,

não é?

Obviamente fui considerada culpada pelo ocorrido e a professora de

educação física fez questão de deixar isso bem claro perante a turma na aula

seguinte. Para minha grande sorte, a menina ainda era uma de suas escolhidas, seu

“peixinho”. Este dia realmente foi inesquecível, pois além da costumeira

humilhação semanal, a professora me proibiu de fazer as atividades que foram

destinadas para todas as outras alunas, ordenando que eu ficasse correndo sozinha

ao redor da quadra a aula toda e, para me “incentivar”, tive a satisfação de ouvir

seus xingamentos como a trilha sonora de fundo, que ela devia ter preparado

especialmente para mim. Prefiro não reproduzir suas palavras, mas uma coisa eu

não posso negar: ela era muito, mas muito criativa mesmo para conseguir escolher

um repertório tão diversificado de xingamentos. Na semana seguinte as aulas de

educação física deixaram de ser um problema, pois arrumei um atestado médico

que me liberava da obrigação de estar presente. Eu era gorda, mas tinha honra e

dignidade. Posso contar inúmeras histórias que aconteceram comigo neste

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Colégio, afinal, todos os dias eu vivia um momento novo e desafiador e tive que

aprender a contornar qualquer problema que surgisse.

Foi um ano realmente inesquecível e olha que ainda estávamos na metade

de abril! Neste mês o professor de português promoveu um concurso literário para

todas as turmas da escola, mas aqueles que eram seus alunos foram obrigados a

participar e eu era uma de suas alunas. Os textos seriam analisados pela equipe

pedagógica e eles iriam escolher as dez melhores redações, que seriam publicadas

em um livro e este seria o prêmio para os ganhadores do concurso. Escrevi um

texto, mas não consigo lembrar do conteúdo, é algo que ainda está bloqueado em

minha mente. Duas semanas depois o professor me procurou e comunicou que

meu texto havia sido escolhido entre os dez melhores. Esta vitória me deu forças

para acreditar que poderia ser uma boa aluna e fiquei muito feliz, além do mais,

uma semana antes do meu aniversário de onze anos iria acontecer um passeio fora

da escola, que tinha sido organizado por este mesmo professor. No dia combinado

levei a autorização para o passeio e um belo lanche. Estava muito feliz.

A turma iria sair para o passeio no segundo horário e no começo da aula o

professor avisou que só iriam participar da “excursão” os alunos que haviam feito

o dever de casa. O meu dever estava quase completo, creio que faltavam umas

duas questões para finalizar e vi muitos colegas correndo para completar a

atividade, preenchendo o caderno de qualquer jeito. Eu, que fui criada sob as

rédeas do conceito de honestidade japonesa, acreditei que seria errado fazer o


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exercício na sala, pois dever de casa deveria ser feito em casa e também não queria

fazer mal feito, assim, não completei as questões. O professor conferiu caderno

por caderno e, concluída a tarefa, citou o nome de três alunos, dizendo que o dever

estava incompleto e por isso não haveria excursão naquele dia para essas pessoas.

O meu nome estava entre os três que ele citou.

Fui obrigada a ficar de castigo com dois garotos por horas e sem vigilância

alguma, pois naquele tempo não tinha biblioteca e nem auxiliares, então ficamos

na sala de aula. De tempos em tempos aparecia alguém para checar, creio que era

para ver se ainda estávamos vivos e que não tínhamos colocado fogo na escola.

Só que o destino é estranho e algo aconteceu, pois começamos a conversar,

percebi que eles também eram excluídos e passamos a bolar formas e mais formas

para nos vingar do que fizeram conosco. Ao final da manhã, quando os outros

colegas voltaram extasiados do passeio, nós três havíamos criado um tipo de

amizade que foi originada pelo ódio que sentíamos por ter sido desprezados.

Meu aniversário estava chegando e mesmo assim eu ainda insisti em querer

fazer uma festinha na minha casa no final de semana e convidei todos os colegas

de sala para comemorarem comigo. Convidei trinta e seis colegas de sala, mas

dois compareceram: Os garotos excluídos do passeio. Cheguei a ver alguns

convites para a festa rasgados e jogados no lixo.

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Uns dois meses depois da excursão frustrada ganhei o tal livro que havia

sido prometido pelo professor e ao desfrutar de um solitário momento comigo

mesma, rasguei minha primeira obra em milhares de pedaços e o papel serviu

como combustível para uma bela fogueira, que usei para queimar as cabeças das

bonecas loiras e magras que ganhei de aniversário. O pior é que as pessoas

insistiam em me dar esse tipo de presente em datas comemorativas. Eu olhava

para elas, elas olhavam para mim e percebia como éramos diferentes, mas não

conseguia entender porque elas eram consideradas belas e eu não. Como eu não

conseguia resolver este problema, só me restava sentir o prazer de criar

instrumentos para cortar suas cabeças. Cheguei a construir uma guilhotina uma

vez, que obviamente não funcionou, mas pelo menos eu tentava me divertir de

alguma forma.

Nunca falei sobre o livro com ninguém, até que minha mãe, uns dez anos

depois do ocorrido, disse que tinha conhecido um ex-professor meu e ele

comentou que nunca se esqueceu de mim porque eu escrevia muito bem e tinha

vencido um concurso de redação da escola. Ainda falou que eu ganhei um livro

com minha primeira obra publicada. Minha mãe perguntou sobre o tal livro e falei

o que tinha feito com ele. Ela não me condenou ou julgou, pois entendeu meus

motivos.

Acabei ficando amiga dos meninos e no último mês de aula resolvemos

executar o ato final de nossa vingança. A gente já tinha colocado chiclete e


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tachinha nas cadeiras, explosivo tipo bomba relógio no banheiro, mas ainda não

era suficiente, queríamos fazer algo grande, inesquecível e marcante. Claro que

essas brincadeiras levantaram suspeitas sobre nós, mas ninguém tinha provas para

nos condenar e também não existiam câmeras de segurança, então, fazíamos a

festa. Depois de muito discutir o que fazer, decidimos colocar alguma coisa nas

hélices dos ventiladores e um dos meninos até sugeriu que colocássemos

excrementos, como dizia o ditado, vamos jogar a merda no ventilador, mas

optamos pela farinha. Iria acontecer depois do recreio, pois a gente sabia que os

colegas estariam bem suados por causa do intervalo. Ah, detalhe: Naquela época

o ventilador só poderia ser ligado com a autorização do professor e adivinha qual

aula e professor escolhemos? O de português, claro.

O plano não funcionou conforme o esperado e sujou pouca gente, mas a

gente se divertiu mesmo assim e estava difícil segurar o acesso de riso quando um

olhava para a cara do outro. Mas não podíamos rir e os olhares traduziam o que

estávamos sentindo. Linguagem corporal. Claro que o professor ficou injuriado,

mas como ninguém tinha visto nada, mais uma vez só existiam suspeitas. Uns

vinte minutos depois do ocorrido meus dois colegas foram chamados para

comparecer na diretoria e quando voltaram comentaram que haviam sido

expulsos. A culpa recaiu sobre eles, mesmo não havendo provas de que eles eram

os responsáveis. Falei com o professor, assumi a autoria da brincadeira e pedi

licença para conversar com a diretora, que deixou claro que não acreditava na

28
minha versão, mas como insisti que era responsável pelo incidente, ela foi

obrigada a engolir a minha confissão. Acabei ganhando um belo sermão e uma

advertência.

Os meninos foram inocentados, mas meus pais e eu fomos chamados para

ter “uma conversa” com a diretora. Depois de ouvir tudo que a diretora disse,

minha mãe falou para ela que iria me colocar de castigo. Ao sairmos dali, minha

maravilhosa e magnífica mamãe perguntou, com um belo sorriso no rosto, qual

prato especial eu gostaria que ela fizesse para o almoço de domingo. Esse era o

jeito dela demonstrar seu incondicional apoio e amor por mim, pois ela sabia o

que acontecia comigo no colégio. Mãe, desculpa por demorar tanto tempo para

perceber e demonstrar como te amo e como você é minha inspiração para ser uma

pessoa melhor.

Até hoje tenho dificuldades com a matemática e creio que não é um

privilégio meu, pois muitas pessoas vivenciam o mesmo problema. No meu caso

devo agradecer a outra professora, que parecia muito com um personagem da

maior emissora de televisão deste tempo: Um vampiro que tinha uns dentinhos

saltados para fora, o cabelo grisalho e mal cuidado, com aquela carinha de

malandro safado: Um vampiro nascido no Brasil. Mais uma homenagem, pois

minha infância não seria a mesma sem você, figura muito conhecida e que não

preciso dizer o nome, quem viu o programa sabe quem é!

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A equipe pedagógica daquele ano parecia ter sido escolhida especialmente

para mim, pois esta professora também fazia parte do exemplar quadro de

profissionais do colégio.

Tinha total consciência que era uma aluna mediana, fazia minhas bagunças,

sentava no “fundão”, mas procurava entregar atividades, deveres ou trabalhos e

estudava para as avaliações. Durante as aulas sempre ficava quieta e prestava

atenção. Ao receber o boletim do primeiro bimestre, vi que tinha perdido média

em matemática por um ponto, pois a professora tinha zerado minha nota de

conceito e participação em aula. Os colegas sempre comentavam as notas e fiquei

sabendo que até a menina mais bagunceira da sala havia recebido pelo menos um

ponto de conceito. Fui conversar com a professora e ela me disse:

- A nota de conceito reflete sua capacidade intelectual.

Fiquei quieta, como eu poderia dar alguma resposta para este comentário?

Eu devia ser muito burra aos olhos desta mulher. Meus pais receberam meu

boletim, ficaram preocupados com a nota vermelha e contei o que havia

acontecido. Minha mãe, que era professora de matemática, comentou que a

“vampira brasileira” havia sido sua aluna e talvez guardasse alguma mágoa do

passado. Mas a situação seria resolvida e no dia seguinte passei a ter aulas

particulares com a melhor professora da cidade: Minha mãe. Nos outros bimestres

continuei tirando zero de conceito, mas como estudava todos os dias, passei a

obter ótimas notas nas avaliações e não havia jeito da professora me deixar de
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recuperação. Passei de ano com um ponto acima da média. Professora, nota não

reflete a capacidade intelectual de ninguém. É mais digno ter dificuldades de

aprendizagem do que ser desonesto e antiético.

Finalmente o ano estava acabando e recebemos o resultado. O BC e o JP,

meus únicos colegas, “tomaram bomba” e mudaram de escola. Eu passei de ano,

mas tinha perdido meus companheiros e estava sozinha novamente. Muitos anos

depois reencontrei o BC, a gente tinha ido se despedir do nosso amigo JP: Era seu

velório. Overdose. Ele morreu com vinte e sete anos de idade e entrou para o

clube.

Mesmo perante tudo isso eu ainda era covarde, tinha medo de mudar e

continuei estudando neste colégio e seria meu terceiro ano frequentando aquele

lugar.

Naquela época, o auge do entretenimento era alugar uma fita cassete e foi

assim que comecei a frequentar uma locadora de vídeo e conheci uma moça que

salvou minha vida. Esta é especialmente para você Roberta, a “Moça da

Locadora”. Ela devia ter uns dezessete anos e, para mim, ela era (e continua

sendo) linda, decidida, corajosa, forte, independente, inteligente, criativa,

sociável, enfim, uma inspiração. Comecei indo uma ou duas vezes por semana e

como ela “me dava atenção”, passei a ir todos os dias à tarde. Eu era muito “chata”

neste período, sentia uma carência imensa e procurava qualquer migalha de

atenção ou carinho que pudesse receber de alguém que não era da minha família
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e a Roberta parecia gostar de mim, o que me proporcionava o prazer de ter alguém

com quem conversar. Ela sempre dava vários conselhos e dicas sobre autoestima,

amor e me ajudava a contornar os problemas que tinha na escola. Considero que

ela foi meu anjo da guarda, mas nossa amizade durou uns três meses, pois ela teve

que sair do emprego e perdemos o contato. Não existia celular e ter telefone fixo

era para poucos.

Dezoito anos depois, num churrasco da vida, um conhecido me

“apresentou” para uma moça e quando a vi, sabia que era a Roberta. Quando

começamos a conversar a primeira coisa que ela perguntou foi se eu era aquela

menina que frequentava a locadora. Eu confirmei e, mesmo depois de tantos anos

e enormes mudanças físicas, nunca esquecemos uma da outra. Depois deste dia,

procuramos retomar nossa amizade. Peço desculpas por não poder te dar a atenção

devida, mas sei que você me entende, minha amiga! Esta é uma prova de que o

tempo pode passar, mas o que é real permanece vivo.

Quando perdi o contato com a minha amiga Roberta, me senti mais sozinha

do que nunca. Na escola, os colegas tinham parado de me provocar, mas passaram

a me ignorar e isso doía mais do que ser provocada, pois era excluída de todas as

atividades feitas em grupo. Mesmo assim, sempre dava um jeito de fazer sozinha,

mas neste dia o professor de ciências foi irredutível e desconsiderou minhas

alegações, me obrigando a fazer o trabalho em grupo. Em uma sala com trinta e

seis pessoas, seriam seis grupos com seis alunos e aquele que tinha cinco membros
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não me aceitou. Fui falar com o professor e ele, que era uma pessoa extremamente

vaidosa e arrogante, respondeu que o problema era meu e exigiu que o trabalho

fosse feito em grupo. Ainda acrescentou em tom irônico:

- Você não é quadrada, é redonda, aliás, é BEM redonda, então se vira!

Engoli as lágrimas. Ele não teria o prazer de me ver chorando.

Ao fim da aula tinha arrumado uma solução para o problema: Tomei

vergonha na cara e criei coragem, falei o que houve para minha mãe e no dia

seguinte comecei a estudar em outra Escola. Eu estava sentindo muito medo do

que iria acontecer neste novo ambiente, só que fui recebida com tanto carinho pela

equipe pedagógica e colegas de sala que jamais esquecerei desta primeira vez.

Lilica, Diná, Tio Emiliano, Juninho, Dona Glória e todos os membros desta

linda “Família”: Foi por causa do amor e carinho com que vocês me trataram que

passei a acreditar que podia ser uma boa aluna e um ser humano digno. Obrigada!

Muitos anos passaram desde o dia que mudei de escola por causa do tal

trabalho de ciências e eu tinha enterrado este fato há muito tempo. Já era adulta

quando abri um restaurante na minha cidade de origem e era o lugar que a “Elite

da sociedade” queria frequentar. Coisas do interior. Naquele dia, creio que devia

ser sábado porque o restaurante estava lotado, um senhor veio conversar comigo

como se fosse um amigo de longa data e disse:

- Oi Andréia, que bom te ver!


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Educadamente respondi sua saudação e ele continuou:

- Fui seu professor de ciências! Você se lembra de mim?

Olhei bem para seu rosto, mas não vi nenhum traço que pudesse me fazer

recordar ou reconhecer quem ele era. E falei:

- Desculpa, mas não lembro em qual escola fui sua aluna.

Ele ficou magoado com meu comentário e falou quando e onde tinha sido

meu professor. Mesmo assim eu não conseguia recordar e pedi desculpas,

alegando ter estudado em várias escolas da cidade. Nos despedimos e fiquei

pensando, demorei uma semana para desbloquear as memórias do passado e

conseguir lembrar: Aquele senhor era o professor de ciências! O belo homem que

tanto me machucou no passado havia se tornado um velho acabado. O tempo não

tinha sido generoso com ele, pois havia perdido sua beleza, a arrogância e a

vaidade. Se a professora de educação física foi minha musa inspiradora, ele foi

meu herói inspirador, pois quando peço que os trabalhos sejam feitos em grupo,

observo com a maior atenção se alguém foi excluído e pergunto o que posso fazer

para resolvermos a situação. Se for o caso abro exceções, como permitir que a

pessoa não apresente a tarefa em público e faça somente a parte técnica ou que

apresente somente para mim. Sempre consigo achar uma solução, pois sei como

dói ser excluído. Obrigada professor, o senhor me ensinou o que é a inclusão

social.

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Voltando ao início da história, quando fiquei sabendo que a empresa do

meu pai tinha falido, estava me sentindo totalmente perdida. Eu iria fazer quinze

anos em breve. Meu pai não tinha uma poupança generosa, ele foi honesto até

demais em um país chamado Brasil e com três filhos adolescentes em casa para

terminar de criar, tínhamos que cortar custos e fazer alguma coisa. Meu irmão

trabalhava, não era problema. Eu e minha irmã que éramos. Cortamos o plano de

saúde, a cota do clube de campo, as viagens e conversamos sobre montar um

negócio. Ninguém tinha medo de trabalhar e era assim que estava minha vida em

casa naquela ensolarada manhã de março, quando comecei o ensino médio. E foi

neste dia que aprendi a técnica “dos três minutos”.

No Colégio chorei durante todo o intervalo e fiquei com o rosto inchado e

vermelho. O sinal tocou e o professor mais carrasco da escola entrou em sala e

fiquei muito tensa quando ele se aproximou de mim e falou que queria conversar

comigo. Em particular. Tremendo, pensei: o que eu tinha feito de tão errado? Ele

saiu da sala e o acompanhei. E falou:

- Tudo passa. Vai lavar o rosto, acalma e a hora que você sentir melhor

volte. Se quiser conversar me procure depois da aula.

Ele falou um pouco sobre a própria história, das dificuldades que passou

para se tornar um homem de bem, honesto e trabalhador. Fiquei sem reação, pois

ele era o professor mais “carrasco” da Escola! Ele mostrou que nos amava, queria

nosso bem, mas era “preciso endurecer, sem perder a ternura”. Fui ao banheiro,
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acalmei e voltei, mas não tive coragem de conversar com ele, só consegui

agradecer ao final da aula. E foram esses três minutos que salvaram minha vida.

Em casa fizemos uma reunião e decidimos que eu iria estudar a noite e

abriríamos um negócio aproveitando um ponto comercial que era da minha mãe

e minha tia, que cedeu sua parte do aluguel para nos ajudar. Montamos uma

pastelaria. Pelo menos daria para pagar as contas mais importantes. Quinze dias

depois saí desta escola e optei por um curso técnico que também era válido como

ensino médio. A ironia da história é que o curso usava o mesmo prédio que o

Colégio que eu estudava de manhã, mas eram mundos completamente diferentes.

Consegui uma bolsa de estudos integral e eu deixei de ser um problema

para meus pais. SE VOCÊ TEVE UM DIA, SE TEVE. Abrimos a pastelaria e vi

meu pai servir seus ex-funcionários, mas sua atitude era sempre educada e cordial,

não importava quem fosse o cliente. Esta foi a primeira lição que aprendi na vida.

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LIÇÃO NÚMERO UM

Tudo passa. Não há mal que sempre dure e nem bem

que nunca se acabe. Por isso, sempre mantenha sua

dignidade. Isso é ter honra: Não importa o que você faça,

mas faça bem feito. Meus pais deram o exemplo.

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Agradeço a este professor e procuro seguir seu exemplo. Mesmo sendo uma

pessoa extremamente rigorosa, ele teve o cuidado de ser amável comigo em um

momento tão delicado da minha vida. Eu realmente estava pensando em deixar de

ser um fardo para minha família e para mim.

Às vezes não há o que fazer com os problemas a não ser dar o melhor de si,

apoiar quem amamos e esperar o tempo agir. Foi isso que fizemos: ficamos ao

lado do meu pai, sempre com minha mãe nos incentivando. Ela é o muro de arrime

da família, quem sempre nos manteve unidos. Como dizemos aqui em casa, “A

matriarca sabe o que é melhor para nós”. Sei que meu pai teria se matado se a

gente tivesse o abandonado. Assim aprendi minha primeira profissão: Pasteleira.

A gente trabalhava muito e tinha que chegar bem cedo, em torno das seis

horas da manhã para que desse tempo de preparar tudo e servir quem estava indo

trabalhar. Tínhamos uma escala de horários, mas muitas vezes era necessário que

meu pai, minha irmã e eu trabalhássemos juntos por causa do grande movimento

que tinha. Meu irmão também ajudava muito, sempre que tinha um tempo

disponível estava lá, equilibrando o outro emprego com a pastelaria e sem falsa

modéstia, ele já cozinhava muito bem naquela época. Desculpa Deza, sei que é

muito 07/05.

Fazíamos nosso trabalho bem feito e o nosso pastel era um dos melhores da

cidade. Muitas vezes nem dava tempo de ir para casa tomar banho e eu ia direto

para a aula, fedendo gordura. Um dia um colega veio tentar me sacanear e


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comentou que eu parecia uma coxinha, pois era gorda e tinha cheiro de fritura.

Muito séria, disse para ele:

- O cheiro que você está sentindo se chama trabalho duro. Antes ter

este cheiro do que feder a vagabundagem. Aliás, você não trabalha, não é?

Eu sabia que ele não trabalhava e que era sustentado pelos pais. O garoto

ficou calado e nunca mais ousou tentar me humilhar. Até hoje não admito que

alguém me diminua para se sentir melhor, não deixo e sou forte o suficiente para

acabar com essa pessoa se ela tentar. Emocionalmente, é claro. Se me ofender vai

levar de volta. Bateu, levou. Eu revido, sempre. A gente perde a razão quando usa

a força física, por isso aprendi a usar a argumentação. Você pode machucar

profundamente uma pessoa só com as palavras, os ferimentos físicos somem, mas

os da alma perduram por um longo tempo. E aprendi muito bem a fazer isso, tive

excelentes professores. E uso isso quando necessário.

Tive uma colega durante a faculdade que era linda, maravilhosa, bonita de

verdade, corpão, bundão, peitão, cinturinha fina, rosto de boneca, enfim, por onde

ela passava, todos olhavam. Krika, seu apelido, porque era CriCri mesmo, chata,

insegura e sempre tentava me diminuir, mesmo que inconscientemente. Ela

sempre pedia para uma das amigas ajudá-la a escolher a roupa que ia usar. Ao

experimentar, olhava no espelho, fazia cara de triste e falava:

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- Ai, amiga, essa roupa... E apertava as banhas que julgava existir,

suspirava e quase chorando, completava: Eu estou gorda! E olhava para mim,

implorando por um elogio. Eu era bem gorda, então, imagina o que eu sentia ao

vê-la.

E cai na conversa dela umas vezes, até que o dia que eu a vi fazendo o

mesmo com outra colega em comum e que também era gorda. A Krika só andava

com mulheres “socialmente mais inadequadas” do que ela.

Dias depois a Krika veio com esse papo e eu falei, usando uma voz de

espanto e horror:

- A-M-I-G-A! ! ! Dá uma volta! Deixa eu ver como essa roupa ficou!

- NOSSA! ! ! NÃO ACREDITO NO QUE ESTOU VENDO!!!

- O que foi? O que aconteceu? O que você viu? Ela perguntou

desesperada.

- Querida! Sua bunda está cheia de celulite, está enrugada, como uma

casca de laranja, sua cintura está enorme, na verdade, nem parece que você tem

uma cintura! Seus seios estão caídos, como se você fosse uma vaca parideira!

Além do mais, sua barriga está lotada de pelancas e banhas! Vai para a academia

URGENTE, toma vergonha na cara e começa uma dieta, porque você só come

porcaria. Aliás, acho que uma lipoaspiração vai te cair muito bem, mas pode ser

que seja tarde demais.


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Ela ficou estática por um bom tempo como se estivesse em transe. Minutos

depois ela voltou para o mundo real e falou que tinha um compromisso, se

despediu rapidamente e foi embora. A Krika, que sempre havia sido tratada como

uma rainha ficou tão assustada com o que eu disse que começou a academia no

outro dia, parou de comer tanta porcaria e o melhor de tudo: Durante todo o tempo

que estivemos em contato, ela nunca, nunca mais mesmo abriu aquela boca grande

para reclamar de sua aparência para mim. Cada um no seu lugar e sou eu quem

põe limites nas pessoas para que elas não invadam meu “espaço sagrado”.

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CAPÍTULO 2

Sem Sexo, mas com muitas drogas e muito Rock and Roll

Uns oito meses depois de abrirmos a pastelaria meu pai recebeu uma

proposta de emprego em São Paulo e fechamos o negócio. Eu estava com quinze

para dezesseis anos. Arrumei outro emprego, era fácil, não tinha muita

fiscalização nesta época. Sempre fui uma pessoa difícil de conviver e digo que

minhas melhores qualidades e ao mesmo tempo meus piores defeitos é ser cabeça

dura, sincera e transparente. O que eu quero eu consigo. O que eu sinto,

demonstro. Minha mãe bem que tentou colocar limites, mas eu nunca aceitei, a

gente brigava muito e com a ausência do meu pai ficou ainda mais difícil para ela

me controlar. Demorei muito tempo para entender o tamanho do amor que ela

sentia por mim. Se a gente não aprende pelo amor, aprende pela dor. E eu iria

sentir isso na pele pouco tempo depois.

Cumpria com minhas obrigações no trabalho e na escola, mas não tinha

limites e, no meu tempo vago, fazia o que eu queria da vida, saía depois da aula e

chegava a hora que tinha vontade. Ganhei a chave de casa quando abrimos a

pastelaria e se eu era adulta o suficiente para ter um emprego e estudar de noite,

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também era adulta para usar minha liberdade conforme queria. Pelo menos era

assim que eu pensava. Minha mãe não conseguia encontrar qualquer argumento

que pudesse me fazer ver a vida de outra forma, pois ganhava meu dinheiro, que

não era muito, mas era meu e tinha a bolsa de estudos, ou seja, eu praticamente

bancava minha vida.

Conheci uma galera barra pesada e como eu já gostava de rock, passei a

viver o “estilo” para ser aceita pela turma: camiseta preta, coturnos e calças

rasgadas. Quando estava com eles, ninguém ousava nos enfrentar. Juntos,

parecíamos que estávamos em um funeral, só aguardando o defunto chegar. E

quem queria ser o defunto? Ninguém arriscava. O mais interessante é que éramos

da paz. Ninguém gostava de briga, a gente era só pressão.

Até então eu sempre tinha sido uma aluna mediana, não era a melhor, mas

também não era a pior e precisava manter a bolsa de estudos, que estava vinculada

ao rendimento escolar. Aprendi a gostar de ler e lia muito, pois este era o recurso

que eu usava por sentir uma solidão extrema. Autodidata e possuindo uma

memória fotográfica, via o mundo de uma forma completamente diferente das

outras pessoas. Mas o que é considerado para muitos como uma benção, pode ser

para outros uma maldição. Para mim era uma maldição, pois como conseguir

entender e aceitar um mundo que não me entendia e só me excluía? Eu não tinha

com quem conversar. Quando começava a falar das coisas que via, as pessoas

achavam que eu estava ficando louca. E pensava se era muita loucura querer viver
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em um mundo melhor. Tudo que eu queria mudar o mundo! Não entendia porque

ser belo ou feio dependia do corpo físico, sendo que existia a beleza da alma. Não

compreendia a miséria e como era possível que poucos tivessem muito e muitos

tivessem nada. Não aceitava ver pessoas morando nas ruas quando existia tanto

espaço disponível. Não acreditava que um pedaço de pano chamado de ‘roupa’ te

tornava melhor ou pior aos olhos do outro. Ninguém me entendia e eu não

entendia o mundo e procurava respostas.

O maior problema que eu tinha era comigo mesma e foi um peso que

carreguei por muito tempo. Tudo que queria era ser amada e aceita, mas os gordos

são extremamente discriminados em uma sociedade que vive de aparências. Eu

era a melhor amiga dos meninos, mas nunca a namorada. E estava na fase que

toda garota arruma namorado, quer ser considerada bonita, é paquerada, mas eu...

Eu era só inteligente. Mas tinha uma certeza dentro de mim: Em cinco minutos de

papo podia, pelo menos, conquistar a simpatia do outro e isto já era alguma coisa.

Tinha os ensaios de bandas, festinhas, shows e minha família não entendia

porque eu andava com aquela “galera do mal”. Gostava deles porque eu era

reconhecida e eles tentavam me entender. Mas esta história teve um lado muito

obscuro, pois começamos a estudar e praticar todos os tipos de magia e eu queria

saber qualquer coisa que estivesse relacionado com o lado oculto da vida, assim

aprofundei os estudos sobre magia negra e satanismo. Parecia ser a resposta que

eu procurava, por isso comecei a viver novas experiências, pois tudo que eu queria
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era “abrir as portas da percepção”. Mas só estudar não bastava, queria ir além, ir

cada vez mais fundo e experimentei várias formas de “sair da realidade”, umas

boas, outras amedrontadoras. As drogas prometiam uma vida livre, mas me sentia

cada vez mais presa e perdida dentro de mim mesma. O cemitério era nosso ponto

de encontro e eu adorava ficar entre os mortos, pois sentia que em breve estaria

com eles. Passei a idolatrar a morte e odiar a vida.

Fui resgatada por minha família desta vida antes de esborrachar no fundo

do poço. Essa foi outra lição que aprendi, a número dois.

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LIÇÃO NÚMERO DOIS

Se alguém que te ama de verdade quer te ajudar, aceite

a ajuda. Ou procure alguém sensato que possa te mostrar

um caminho mais seguro. Um dia sempre vem depois do

outro e você não sabe o que o futuro te reserva.

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Eu tenho um primo que sempre gostei muito. Roqueiro como eu, mas ele

andava com uma galera “bem aceita” da cidade e para mim todo mundo era

playboy ou patricinha, tirando minha galera. E os caras que ele andava eram

playboys mesmo, do tipo que tem carro aos dezesseis anos, dinheiro para esbanjar

e pais milionários para comprar a justiça. Tinha me afastado desse primo, mas um

dia encontramos na rua e estávamos perto de sua casa e ele me chamou para tomar

um café. Fui e começamos a conversar. Durante o papo ele colocou para tocar uns

sons bem legais, que eu ainda não conhecia. E de repente ele disse:

- Mesmo que você não faça nada, que não use drogas, que seja careta,

as pessoas vão achar que você é drogada porque demonstra isso. Mantenha um

pouco as aparências, ainda mais em uma cidade como a nossa. Se não for assim,

logo a polícia vai te prender.

Fui embora muito injuriada com o que ele disse, mas analisei a situação

depois. Tudo estava tenso ao meu redor, a polícia estava mesmo de olho na nossa

galera, eu já tinha levado uma geral, um colega havia sido preso, outro morrido

de AIDS, uma amiga estava grávida ao quatorze anos. Mas na hora eu nem pensei

em mudar de vida e mesmo vendo todos os problemas ao meu redor, continuei

andando com a galera.

Meu irmão, sempre companheiro, procurava me ajudar. Ele tinha um

emprego razoável, tentava me tirar da turma e me levava para viajar, bancava tudo

para mim e a namorada dele na época, hoje esposa, que também tentava me ajudar
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de todas as formas. Paty, você é minha amiga e minha outra irmã. A gente brigou

muito, mas entendemos que nos amamos e fomos unidas por causa do nosso Tak.

Eu fui a sogra que você não teve, porque minha mãe sempre foi a mãezona da

galera. Foi mal Paty... E obrigada por tudo.

Um belo dia minha melhor amiga, que era a garota mais descolada da

turma, começou a namorar um cara e ele dizia que era “detetive particular”, mas

na hora eu percebi que tinha algo de errado: Ele perguntava demais, queria saber

de tudo e de todos, onde cada um da turma morava, o que faziam da vida e como

eu odeio fiscalização, fiquei muito desconfiada. Mas eu queria acreditar quando

minha amiga, que vou chamar de “Babsi”, dizia que ele era gente boa e que era

confiável.

Eu sabia que alguns caras da turma “sabiam arrumar as coisas” e para mim

isso não era ser traficante. No meu caso eu sempre gostei mais de beber e fumar

cigarro, que eram drogas legalizadas. Outras substancias que eu usava também

era legalizadas e comprava na farmácia, como os remédios para emagrecer. Ser

gorda me ajudava a conseguir receitas médicas ilimitadas para comprar as

substâncias que eu queria. Mas não foi o fato da garota começar a namorar o

carinha que me fez desistir da turma: Foi ela ter me roubado. Não vou entrar nos

detalhes sórdidos da história.

Eu acredito que tive muita sorte, pois quando a menina me roubou,

discutimos feio, chegamos a nos agredir fisicamente e sua mãe foi à minha casa
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para tirar satisfações. Falou com minha mãe e disse eu tinha acusado a filha dela

de ser ladra, que eu tinha batido nela, enfim, aprontou o maior barraco. Minha

mãe, que sempre odiou confusão, não gostou nada da situação, mas ouviu calada

e disse que iria resolver o problema comigo. Elas foram embora e fui colocada de

castigo por tempo indeterminado. Abaixei a cabeça e aceitei a ‘punição’, mas a

verdade é que eu “queria” ficar de castigo, pois agora tinha uma bela desculpa

para me afastar da garota e da galera. Aceitei a ajuda da minha família, me

aproximei da minha mãe e da minha irmã e começamos a fazer programas juntas.

Minha irmã e eu brigávamos muito, a gente dividia o mesmo quarto, o

nosso relacionamento sempre foi muito complicado e mesmo perante tudo isto,

ela foi uma das pessoas que mais pude contar em minha vida. Sempre, sempre

mesmo quando eu preciso a Deza larga tudo e me socorre. Eu nunca tive coragem

de admitir isso antes, mas eu queria ser como você, é meu modelo de mulher. É

linda, forte, poderosa, decidida. Eu sentia muita inveja de você naquela época,

mas hoje sinto uma admiração profunda. Te amo, Deza!

Também procurei meu primo, agradeci por tudo e voltamos a ser amigos.

Valeu, Lu, você é um cara único e especial para mim.

Foi o amor da minha família que me salvou de ter um destino muito ruim.

49
8CAPÍTULO 3

Sem Sexo, sem drogas nem Rock and Roll

Quando as pessoas que você julga serem suas amigas fazem algo que te

prejudica, elas não te consideram, não se importam com você. Por isso se afaste

o mais rápido possível deste tipo de gente e de situações que posam te lesar. Saiba

ouvir o que o universo está falando, ele sempre dá dicas de como as pessoas são

falsas, mesquinhas e sacanas e como algumas situações podem realmente

encrencar sua vida. O universo mostra mesmo o que é bom ou ruim.

Um dia, a Babsi me chamou para ir num show em outra cidade, mas minha

mãe não deixou e ela sempre me deixava ir para todos os lugares, pois sabia que

eu iria mesmo sem sua permissão. Mas neste dia ela não queria que eu fosse e

falou de uma forma tão profunda e com tanto pesar que fiquei assustada. Resolvi

escutar suas palavras e não fui. Minha amiga foi e horas depois ela apareceu na

minha casa toda machucada. Disse que eles tinham sofrido um acidente na estrada

indo para o evento e ressaltou que, se eu estivesse junto, provavelmente teria

morrido, pois o lugar que eu deveria sentar no carro foi completamente destruído.

50
Lição número dois de novo: escute quem te ama, na maioria das vezes não

é implicância, é premonição. E hoje carrego blusa, guarda chuva e sempre sigo

qualquer outro toque que minha mãe me dá.

Em outra ocasião, aproveitamos a ausência dos pais de um cara da turma,

fomos para sua casa e chapamos a tarde toda. Já estava na hora de irmos embora,

alguém sugeriu que esticássemos o programa e a galera decidiu apreciar o pôr-do-

sol em um lugar que chamávamos de “Céu”. Eu estava de férias, achei que poderia

ficar até mais tarde e fui com eles. Mas dentro de mim eu sentia algo muito ruim,

sufocante, foi horrível e decidi ir embora. Devia ser oito horas da noite. Quem me

recebeu em casa foi meu irmão, que estava muito sério e nervoso, mas eu nem

imaginava o que tinha acontecido e perguntei. E ele falou:

- A mãe saiu para te procurar, falou até em chamar a polícia. Você está

ferrada.

Minha mãe tentou me deixar de castigo, obedeci por um tempo e segui a

rotina: Trabalho, casa. Mas em cidade pequena todos se encontram e fiquei

sabendo o final da história do “Dia do pôr-do-sol”: Uns quinze minutos depois

que eu fui embora, a polícia apareceu no local e a galera tomou geral, mas não

acharam o flagrante. Isso aconteceu uns dois dias antes da briga com a Babsi,

minha “amiga do rock”. Um mês depois que eu afastei, metade da turma foi presa

por tráfico de drogas. O mais irônico é que grande parte daqueles que “rodaram”

eram pessoas honestas, não traficavam e uns nem usavam nada, mas estavam no
51
local e na hora errada. Só que até você provar que não tem nada a ver com a

situação é outra história. O namorado da Babsi era informante da polícia, foi ele

quem entregou todo mundo. Assim aprendi a lição número três.

52
LIÇÃO NÚMERO TRÊS

Ouça e fique atento para o que acontece ao seu redor e

perceba que o universo manda recados para você. Saiba

ouvir. Quando a gente não escuta, se ferra.

53
CAPÍTULO 4

Será que ele realmente me ama?

Ele foi o meu primeiro amor correspondido, o primeiro namorado e era a

melhor desculpa que eu podia ter arrumado para afastar de vez da galera. Conheci

este garoto e a conversa fluiu, dois dias depois demos o primeiro beijo. Ele era o

meu “Lennon” e eu a sua “Yoko”, aconteceu tudo tão rápido que em uma semana

a gente já estava namorando. Comecei a gostar de verdade dele e ficamos cada

vez mais próximos. Nesta época os hormônios de uma adolescente estão no auge

e tudo que eu queria era finalmente experimentar o tal amor carnal. Com quase

dezessete anos eu era virgem e queria ultrapassar mais este limite. Tem coisas que

não dá para voltar atrás e acabei ficando mais apaixonada, até que aconteceu e,

como diz o ditado, o homem faz qualquer coisa antes de “ter” a mulher e a mulher

faz qualquer coisa depois de “ter” o homem. Não foi do jeito que eu tinha lido nas

revistas para adolescentes, mas também não foi ruim. Tive experiências bem

melhores e muito piores depois.

Os problemas começaram depois que transamos, ele passou a me esnobar,

a me tratar mal, sumia, deixou de ser carinhoso e acredito que tenha ficado com

54
outras garotas. O pior era saber que antes dele começar a namorar comigo as

meninas nem o olhavam, pois era discriminado também. Durante o namoro eu o

ajudei a mudar de visual, a escolher roupas descoladas, um corte de cabelo legal,

bons perfumes e ainda ensinei a usar o computador, que era uma novidade, poucos

tinham porque era muito caro. Eu fazia programação de dados em um tempo que

ninguém tinha Internet, então, entendia muito do assunto.

Ficamos juntos por uns meses e foi muito intenso para mim e um belo dia,

ele chegou e terminou tudo. Não queria falar o motivo, insisti muito e ele disse

que estava terminando porque estava sendo chantageado pela mãe. Sem entender,

pedi por uma explicação melhor e ele disse:

- Minha mãe comprou um computador para mim e parcelou, mas ela

só vai continuar pagando as próximas prestações se eu terminar com você.

A bruxa da mãe dele me odiava, ele foi covarde e me trocou por um

computador. Fiquei péssima, me sentia como uma mercadoria usada e jogada no

lixo. Aconteceu próximo das férias de julho e para esquecê-lo fui visitar meu pai

em São Paulo. Que homem sábio! Percebeu que eu estava triste, mas jamais tinha

comentado nada da minha vida pessoal com ele, a gente não conversava esses

papos tipo pai e filha. Coisas de japonês. Só que uma noite ele me perguntou por

que eu estava tão triste e contei a história do ex-namorado. Foi neste momento

que percebi o paizão que tinha e suas palavras me fizeram aprender a quarta lição

de vida.
55
LIÇÃO NÚMERO QUATRO

Arrume três ou quatro namorados: se um te der o pé

na bunda você tem os outros para te consolar. Mas quando

você encontrar alguém que realmente valha sua fidelidade,

seja fiel: A pessoa que você ama de verdade merece isto. Eu

amo sua mãe e ela é uma Deusa para mim. Sou fiel até a

morte por ela.

56
Este foi o conselho que segui desde então. De tempos em tempos eu sou

fiel, mas não costuma durar muito, pois meus relacionamentos são passageiros,

como as cerejeiras em flor. No meu caso acho que posso ser comparada com

algum elemento extremamente instável e volátil. Mas se eu prometer fidelidade

serei fiel até a morte. Se o parceiro começar a questionar minha fidelidade, com

certeza terá motivos reais para afirmar que foi traído.

57
CAPÍTULO 5

Será que eu sou lésbica, gay, trans ou algo indefinido?

Sem namorado, galera ou amigos, fui procurar fazer algo útil da vida. Já

estava começando o terceiro ano noturno e eu tinha que pensar no futuro. Comecei

a fazer cursinho preparatório para o vestibular no período da manhã, acabei

reencontrando uma garota que andava comigo na época da “Galera do Mal”, fazia

muito tempo que a gente não se via, pois ela tinha saído da turma alguns meses

antes que eu e tivemos a mesma sorte de não sermos presas. Sempre admirei a

“Dê”, para mim ela é uma mulher linda, maravilhosa, corajosa, poderosa,

inteligente e, desafiando o tempo e a distância, ainda mantemos contato.

Estudávamos no mesmo prédio, mas frequentávamos cursos diferentes, por

isso a gente só encontrava durante o intervalo e ela comentou que antes de nos

reencontrarmos, costumava passar este tempo com um rapaz de sua sala. Eles

eram amigos desde o ano anterior e ela insistiu para que eu o conhecesse. Aceitei

a proposta com a ressalva de que ela me mostrasse quem era a pessoa antes de

sermos apresentados. A Dê apontou justamente para um menino que havia sido

meu melhor amigo na primeira escola que estudei. A gente tinha uns sete anos e

58
eu iria fazer aniversário, mas discutimos uns dias antes e convidei todos os colegas

da sala para irem à minha festa, menos ele. É óbvio que ele nunca mais conversou

comigo depois disso. Eu o via no clube de campo que frequentávamos e tinha

muita vontade de pedir desculpas, mas meu orgulho não permitia. Mas o destino

é implacável e aconteceu a mesma coisa comigo alguns anos depois, quando um

colega de sala fez uma festa, convidou todas as pessoas do Colégio, menos eu.

Tudo que vai volta. E volta em dose tripla.

Eu não quis conhecê-lo, pois minha visão de mundo ainda era tão fechada

nesta época e tudo que vi foi um cara ‘riquinho’ e mimado, pois ele era lindo,

andava muito bem vestido e perfumado. A minha amiga insistiu e aceitei conhecê-

lo, também eu não tinha mais nada para perder. Fomos “reapresentados”, o Rique

foi um perfeito cavalheiro e comentou que a gente já se conhecia desde a infância,

mas tínhamos perdido o contato e não citou o motivo. Começamos a conversar e

o mundo ao meu redor parou, ele era um “gênio”, extremamente inteligente,

gostava de ler, de estudar e conseguia ver o mundo como eu via.

Ficamos o intervalo todo juntos, encontramos de novo no segundo intervalo

e depois da aula. Trocamos telefone e sempre que possível a gente encontrava e

conversava. Não desgrudamos mais. Falo hoje, seguramente, que o Rique e não

‘riquinho’ é o meu presente de Deus, pois quando estou com ele tudo é real e

consigo compreender a magnitude da vida e quase consigo sentir o que é a

eternidade. Só que eu não acreditava em Deus, mesmo tendo abandonado os


59
estudos sobre magia negra e satanismo. Foi assim que entendi a nossa amizade

infantil: ele me enxergou com os olhos da alma, viu em mim a pessoa que eu

mesma não conseguia enxergar: O lindo reflexo da moça que se olha no espelho.

Eu vivia três vidas ao mesmo tempo: Na parte da manhã eu andava com a

galera do Colégio e era a menina estudiosa, “nerd”, que sonhava em fazer uma

faculdade pública um dia. À tarde eu era a moça responsável e batalhadora, pois

trabalhava meio período em um escritório. De noite eu frequentava o curso técnico

em programação de dados e o papel que desempenhava era o de roqueira

revoltada, mesmo tendo deixado de andar com a galera do mal, ainda botava medo

em todo mundo, começando pelo meu visual. Por causa do que aconteceu com a

turma, deixei de usar camisetas de banda, mas mantive a calça jeans rasgada, o

coturno cano longo, o cabelo preso num rabo de cavalo, sem brincos, anéis,

adornos ou maquiagem. Além disso, eu sonhava em ser hacker e era uma das

melhores alunas do curso e uma das poucas pessoas na cidade que possuía acesso

à Internet. Este meu lado masculino era e ainda é muito forte e naquele tempo foi

o que me ajudou a manter a sanidade, pois eu sentia que as pessoas me

respeitavam, temiam e isto elevava minha autoestima.

No curso técnico, fiz amizade com uns meninos, a “Hilda” e a “Tila” e sim,

os apelidos são femininos, eles eram gays assumidos e sofriam muito preconceito

por isso. Uma noite, estávamos na aula de estatística e um garoto, o Kiko (ele

60
parecia mesmo com este personagem) fez um comentário muito infeliz e, olhando

para meus amigos, falou algo mais ou menos assim:

- Para mim todos os gays e sapatões deveriam ser jogados em uma

câmara de gás, precisam tomar vergonha na cara, com certeza não apanharam o

suficiente na infância para serem assim. Se fosse meu filho ou filha, eu matava.

Eu não aceitei as ofensas e comprei a briga. Saí da minha carteira, fui em

direção ao garoto, o levantei pela camisa e perguntei se ele tinha coragem de

repetir o comentário olhando nos meus olhos. O menino ainda tentou

desconversar, falando que era só brincadeira e eu disse, muito séria e brava:

- Para mim não foi brincadeira. Se você quer matar gays e lésbicas

pode começar comigo.

E chamei o moleque para resolver a situação fora da escola, mas ele não

quis e a galera o apelidou de KIKOVARDE. Mesmo sendo mulher eu era mais

homem que o cara. Depois deste dia nunca ouvi nenhum comentário sobre nossa

sexualidade. Eu era “Geração Coca-Cola: Só pressão”, só ameaçava, mas sempre

funcionou muito bem. A situação fez com que ficássemos muito mais íntimos e

eles me convidaram para conhecer os amigos que tinham fora da escola: A turma

do teatro, os “Amigos inesquecíveis”! Esta é uma homenagem para vocês, que me

ensinaram a amar as pessoas como elas são de verdade. Obrigada pelos

maravilhosos momentos que passamos juntos.

61
Em meados de junho, eu desisti do cursinho pré-vestibular, mas o Rique

continuou sendo meu grande amigo, nós nunca mais separamos depois do

reencontro e fazíamos tudo juntos. Inclusive fomos visitar meu pai nas férias de

julho e foi um dos melhores momentos da minha vida, pois os dois ficaram muito

amigos e meu pai comentou em um momento que o Ri era uma daquelas pessoas

que eu deveria ser fiel até a morte. Fui, sou e serei por toda a eternidade.

Este meu lado masculino se aliou à decepção com o primeiro namorado,

fazendo com que eu acreditasse que era um homem gay preso dentro do corpo de

uma mulher e assim tentei viver minha sexualidade em todos os sentidos. Cheguei

a sair com algumas meninas para ver se era o que eu gostava, mas compreendi

que não era o que eu queria, sentia atração pelos homens e isso me deixava

confusa, gostava tanto dos garotos que queria ser como eles. Eu já estava com

dezessete anos. Acredito que faço parte da geração que “saiu do armário”, pois

crescemos sob a sombra do preconceito e ódio aos gays, mas lutamos contra o

sistema por nossa aceitação social. Um exemplo foram as “Festas GLS”,

geralmente as reuniões eram particulares, extremamente restritas e raras e quando

aconteciam eram sempre discretas e escondidas aos olhos dos outros.

Neste ano, uma “onda cultural” invadiu a cidade e surgiram grupos de

teatro, música, dança, literatura, entre outros. Participávamos de festivais, de

sarais, cafés literários, fazíamos apresentações em escolas, asilos, centros

comunitários, em praça pública e onde mais fosse possível. Já estávamos em


62
agosto. Este movimento cultural se expandiu e propiciou um ambiente favorável

para que os diferentes grupos, inclusive o meu, se articulassem para realizar a

“Primeira Grande Festa GLS” da nossa cidade. Foi um evento memorável e

inesquecível. Os organizadores alugaram uma casa, contrataram “GoGo Boys”

(para quem não sabe são uns caras lindos que fazem strip tease) e disponibilizaram

diferentes tipos de bebida. O lugar ficou lotado.

Eu conhecia a maioria dos convidados, mas foi uma enorme surpresa

encontrar algumas pessoas que eu jamais suspeitaria que pudessem estar ali. E

adivinha quem encontrei na festa? O Kikovarde! Aquele cara da escola que odiava

e queria matar gays. Ele olhou para mim, eu olhei para ele, o garoto ainda tentou

se esconder, mas não teve como. Não aguentei e fui cumprimentá-lo e no maior

cinismo disse:

- Kiko!!! Que milagre encontrar você por aqui!!! (Adoro este

programa)

Muito constrangido, ele respondeu gaguejando:

- Então, estou aqui, uns amigos me arrastaram para cá e eu não sabia

que era “este tipo de festa” !!!

- Claro que você não sabia, mas aproveita, festa é festa! Fica tranquilo,

aqui ninguém vai fazer nada com você contra sua vontade, respondi.

E ele completou:
63
- Por favor, não comenta com ninguém que me viu aqui! Você sabe,

eu tenho namorada e ela nunca iria entender.

Para deixá-lo mais tranquilo, disse:

- Olha, eu não te vi e você também não me viu aqui, combinado?

Ele me abraçou forte e agradeceu. Eu retribuí o abraço e desejei que ele

fosse muito feliz. Até acreditei mesmo que ele estava lá por engano, pois acho que

ele não seria tão burro ao ponto de ir num lugar onde poderia encontrar os colegas

de sala. Procurei meus amigos e por uma questão de honra contei para a Hilda e

para a Tila quem eu havia encontrado na festa. Eles ficaram em êxtase com a

notícia, mas eu não precisei guardar este segredo por muito tempo: No fim da

festa, o Kiko estava (e não parecia querer esconder isso de ninguém) aos beijos e

abraços com outro cara e anos depois fiquei sabendo que ele saiu do armário e

assumiu que era gay. Às vezes odiamos aquilo que mais queremos ser ou ter. Foi

assim que aprendi a lição número cinco.

64
LIÇÃO NÚMERO CINCO

Experimente coisas novas, você não sabe do que vai

gostar no futuro. Dê uma chance ao destino e para as

pessoas, pode ser que você despreze alguém que realmente

vai fazer a diferença em sua vida um dia: as pessoas podem

mudar.

65
Eu finalizei o ensino médio e comecei a fazer faculdade a noite. Tinha

completado dezoito anos. Foi um ano muito intenso, passei a trabalhar em período

integral, mas as festas continuaram, assim como os encontros com a turma do

teatro. O ano passou muito rápido e já estávamos em novembro. Fazia uns meses

que eu tentava convencer minha mãe sobre a possibilidade de ir morar com meu

pai em São Paulo no ano seguinte. Claro que ela não queria me deixar ir, creio

que temia que eu me perdesse de vez na cidade grande, pois eu ainda era “porra

louca” na época, mesmo tendo endireitado bastante durante o último ano. Acabei

convencendo minha mãe e prometi que ela não iria se arrepender. Agora só faltava

convencer meu pai e no primeiro final de semana que ele veio para casa, minha

mãe e eu o chamamos para ter uma conversa muito séria sobre meu futuro e pedi

uma chance para mudar de vida. Qualquer cursinho em São Paulo ainda era

melhor daqueles oferecidos em minha cidade naquele tempo.

Meu pai disse que iria pensar e falou que quando viesse para casa

novamente teria uma resposta. Esperei ansiosamente por duas semanas e quando

ele voltou, chamou minha mãe e eu para conversarmos e disse que iria realizar

meu desejo de ir estudar fora, por isso, fez umas pesquisas e entrou em contato

com uns amigos para descobrir onde eu deveria estudar. Ele escolheu um dos

melhores cursinhos pré-vestibular de São Paulo e as aulas começariam em

fevereiro, mas para morar com ele eu tinha que aceitar duas condições: Seguir

suas regras em casa e ser aprovada numa Universidade Pública. Senão eu voltaria

66
a morar com minha mãe. Claro que aceitei as condições, mesmo sabendo que teria

menos de um ano para passar no vestibular. Eu queria fazer Medicina e sabia que

entrar em uma Universidade pública seria um desafio gigantesco, mas mesmo

assim comecei os preparativos para a mudança.

67
CAPÍTULO 6

O “Admirável Mundo Novo”

Ir morar com meu pai em São Paulo para fazer o cursinho foi o começo da

realização de um sonho. Para mim, que tinha terminado o curso técnico no ano

anterior e estava fazendo faculdade particular, era uma oportunidade única e tudo

que eu podia fazer era agarrar a chance com unhas e dentes. Foi exatamente o que

fiz: Mudei para São Paulo e me tornei uma “boa menina”. Estudava, no mínimo,

dez horas por dia, não tinha vida social e parei de usar drogas. Quer dizer, tinha

parado com tudo exceto o cigarro, que na época era o Free. Concentrei todas as

minhas forças nos estudos e tentava ser uma das melhores alunas do curso, mesmo

estando tão defasada, consegui aprender em meses o que os outros colegas

aprenderam em anos, pois meu incentivo era lembrar que teria que voltar para

minha vida antiga se não passasse na faculdade. Agradeço à equipe deste cursinho

pelo carinho, competência, dedicação, amor à profissão e só tenho excelentes

lembranças desta época. Obrigada mesmo! A forma como ministro minhas aulas

hoje são, em grande parte, inspiradas nos professores que tive quando estudei

nesta magnífica instituição. Quanto aos colegas de curso, foram pessoas

68
maravilhosas, dignas, amigas e que me apoiaram em um momento decisivo de

minha vida. Vocês estarão para sempre em meu coração.

Morar com meu pai em São Paulo foi uma experiência magnífica, pois ele

passou a ser amoroso e carinhoso comigo. Ficamos amigos, a gente conversava

muito e ele falava sobre seu passado, pelo menos a parte que podia revelar. De

vez em quando, para relembrar os bons tempos, ele me levava ao bairro da

Liberdade. Uma vez até fomos ao cinema e foi a primeira vez que meu pai fez

esse tipo de programa comigo. Mas estes momentos não eram frequentes, pois eu

estudava muito – Tinha agarrado minha oportunidade. Nos finais de semana,

quando não podia sair com ele, ao voltar para casa depois das aulas, eu era

recebida com um “mimo”, geralmente algo delicioso. Sempre adorei comer e meu

paladar foi bem treinado, por isso jamais irei esquecer a comida mais magnífica

que ele me fez experimentar: Enguia! Com certeza este prato está entre as cinco

coisas mais gostosas que já experimentei até hoje. Meu pai ainda explicou onde

eu poderia encontrar essa iguaria. Perguntei quanto tinha custado. Ele riu e

respondeu que quatro unidades eram o equivalente à mesada que eu recebia por

mês. Fiquei espantada com o preço e falei que era muito caro para mim, que não

tinha coragem de pagar tão caro por tão pouco. E ele disse:

- Existe uma grande diferença entre preço e valor. O preço é o que

você paga pelas coisas. Valor é o que você estaria disposto a dar por elas. E tudo

tem um preço, mas poucas coisas realmente têm valor. Vou te fazer uma pergunta:
69
- Quanto custa uma garrafa com água? Provavelmente esse produto

terá o mesmo preço em diferentes lugares, pois existe uma grande oferta. Isso se

chama preço. Mas se um dia a água se tornar um item escasso e raro, o que você

daria para conseguir esta mesma garrafa com água? Imagino que você daria

qualquer coisa para continuar viva. Isso se chama valor. E continuou:

- A grande maioria das pessoas se vendem por dinheiro: Isso significa

preço. Mas algumas pessoas não têm preço e dinheiro nenhum no mundo as

compra: Isso significa Valor. Para mim não tem dinheiro nenhum no mundo que

pague a felicidade que senti quando te vi em êxtase ao saborear esta comida. Por

isso esta experiência única não tem preço e sim valor: Você jamais irá esquecer!

Durante anos fiquei pensando nisso e só consegui entender o que ele queria

dizer quando descobri e aceitei meu próprio valor. Adoro ser professora porque

foram os alunos que me ajudaram enxergar e aceitar que eu tenho “valor” e não

preço. Obrigada!

Foi assim que aprendi a lição número Seis.

70
LIÇÃO NÚMERO SEIS

Agarre todas as oportunidades que aparecerem e dê o

melhor de si, sempre. O valor da vitória não tem preço.

71
CAPÍTULO 7

O que nos diferencia de todos os outros animais?

É com esta pergunta que começo minha aula inaugural e os alunos sempre

sugerem algumas diferenças como usar a razão, se comunicar e a nossa

constituição física. Concordo, até certo ponto, mas um a um os argumentos vão

caindo. Em primeiro lugar, o que é ser racional? Por definição seria a capacidade

de resolver problemas. Só que o ser humano não é o único utiliza o que chamamos

de razão, conforme demonstra o seguinte experimento:

Cientistas alemães fizeram uma experiência que revelou que os


chimpanzés são capazes de ter um raciocínio elaborado. Um amendoim
foi colocado dentro de um tubo estreito, e por isso eles não conseguiam
usar suas mãos para pegar o alimento. Famintos, os chimpanzés
passaram a encher com água o tubo, para que o amendoim boiasse até
o seu alcance. Um dos macacos, que estava faminto, chegou a encher o
tubo de urina para pegar o amendoim. Um teste semelhante foi feito
também com gorilas, mas eles não conseguiram bolar a mesma solução
encontrada pelos chimpanzés.
O teste foi feito com chimpanzés na ilha de Ngamba, em Uganda, e no
zoológico de Leipzig, na Alemanha. Dos 43 chimpanzés, sete
conseguiram pegar o amendoim. Outros sete não conseguiram, mas
perceberam que poderiam usar água para fazer o alimento boiar.
O pesquisador Daniel Hanus, que conduziu o experimento, disse que os
chimpanzés conseguiram alcançar o alimento graças à inteligência dos
animais. "Não foi por tentativa e erro. Eles não estavam simplesmente
cuspindo água pela jaula até molharem o tubo por acidente", diz Hanus.
"Em vez disso, eles estavam se debruçando sob o problema, tentando
encontrar uma solução - primeiro tentando usar seus dedos ou
quebrando o tubo." 1

1 Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/ciencia/2011/06/110610_chimpanzes_dg.shtml
72
Se a capacidade de resolver um problema for considerado como um

exemplo do uso da razão, o teste realizado com chimpanzés na ilha de Ngamba e

no zoológico de Leipzig demonstra que esses animais possuem a capacidade de

serem “racionais”?

Outra hipótese: Os animais podem se comunicar? Mas, o que significa

“comunicação”? Por definição, comunicar é o meio que utilizamos para que outra

pessoa consiga compreender uma mensagem, uma ideia. Desta forma, comunicar

não é apenas falar, ler ou escrever, pois existe também a linguagem de sinais e a

linguagem corporal. Gosto de fazer uma brincadeira com minhas alunas nesta

aula:

- Você está com uma amiga e passa um “crush”, um paquera. Como a

maioria das meninas fazem, cutuca a colega mostrando discretamente quem é o

garoto que você tinha comentado antes. Aí, a amiga que não entende nada de

linguagem corporal, aponta para o garoto e ainda solta em alto e bom tom:

- Ele é o menino que você está afim?

Isso já aconteceu comigo e eu não sabia onde enfiar a cara de vergonha. A

pessoa não entendia o que era a linguagem corporal. Pelo mesmo motivo, hoje

consigo perceber se alguém está triste ou se a aula está chata. Quando “sinto” que

os alunos estão perdendo o interesse, mudo o foco e uso alguma estratégia para

melhorar e animar o momento. Eu sempre tento surpreendê-los.

73
É possível afirmar que somente os seres humanos possuem a capacidade de

se comunicar? A pesquisa abaixo levanta algumas dúvidas sobre o tema:

Como saber se um gorila tem dor de dente? Parece o começo de uma


piada, mas, na Fundação para o Gorila em Woodside, no Estado
americano da Califórnia, isso é motivo de festa. O gorila em questão,
uma fêmea de 130 quilos chamada Koko, conseguiu contar aos seus
tratadores que sentia dor usando linguagem de sinais --resultado de anos
de treino que fizeram dela um dos macacos mais articulados do planeta.

Koko começou a apontar para a própria boca e, usando a linguagem de


sinais (a mesma que crianças surdas aprendem), a gesticular indicando
dor: Quando lhe apresentaram um diagrama de dor que ia de um a dez,
Koko apontava para os graus mais altos da escala.

Koko, 33, é a mais "articulada" de vários primatas que receberam


treinamento em linguagem de sinais na fundação. Ela domina mais de
mil sinais, segundo sua professora e principal tratadora, Penny
Patterson. 2

Posso realmente afirmar que nenhum animal é capaz de se comunicar?

Terceiro: Quanto à parte física, realmente, existem diferenças gritantes:

Somos fracos e frágeis perante os outros animais, se consideramos uma

equivalência entre as proporções físicas às habilidades que possuímos. Um

crocodilo, por exemplo, é capaz de destroçar um osso com uma mordida. Nós

quebraremos nossos dentes se tentarmos fazer o mesmo. A minha gata e meu

cachorro me dão um “olé” quando tento pegá-los, pois são bem mais rápidos que

eu. E posso citar inúmeros exemplos. Mas, mesmo assim, o ser humano conseguiu

se adaptar em diversos ambientes não possuindo uma resistência física natural, o

2 Fonte: Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u12264.shtml

74
que me leva a perguntar qual capacidade possuímos para realizar tal façanha. Não

temos asas, mas voamos, pois construímos aviões. Não temos guelras, mas

respiramos em baixo da água, pois criamos submarinos. Não podemos sobreviver

ao frio extremo, mas desenvolvemos roupas capazes de nos proteger. Então, o que

nos diferencia tanto?

Muitos cientistas afirmam que seria a capacidade de usar e dominar o fogo

e com ele, usufruir de seus benefícios. Mas, ao que parece, também não somos os

únicos “animais” a utilizar o fogo.

Kanzi é um macaco bonobo de 31 anos que vive na reserva “Great Ape


Trust”, na cidade de Des Moines, Iowa, Estados Unidos. E ele pode
fazer muito mais do que utilizar ferramentas para conseguir comida: ele
sabe usá-las para cozinhar alimentos. Kanzi gosta de comer
marshmallows assados, bem como fazer hambúrgueres em uma
frigideira. Claro, ele não faz a sua própria frigideira, churrasqueira, e
espátula. Mas você também não. E ele sabe utilizá-las muito bem.

Kanzi também acende seu próprio fogo. Ele dá uma procurada ao seu
redor por gravetos secos e recolhe a madeira antes de riscar um fósforo
e começar a cozinhar. Isso mesmo, ele usa fósforos. Os cientistas da
reserva contam que ensinaram Kanzi após ele mesmo pedir, depois de
assistir a um filme sobre homens das cavernas descobrindo o fogo.

Dizem que ele é surpreendentemente bom no que faz: risca o fósforo


rapidamente e ainda toma cuidado para não se queimar. O macaco
costuma ficar atrás da fogueira para manter a chama acesa, jogando
lenha quando necessário. 3

O domínio do fogo nos proporcionou três grandes benefícios: Calor,

iluminação e alimentação cozida.

3 Fonte: http://hypescience.com/10-comportamentos-surpreendentemente-humanos-em-macacos/

75
O calor evita a hipotermia. A luz fornece a capacidade de vermos as

ameaças que até então estariam escondidas pela escuridão. E cozinhar nossa

comida, principalmente a carne, facilitou a mastigação e a digestão. Como ficou

mais fácil mastigar o alimento, nossos maxilares se tornaram menores, abrindo

espaço para que nossas caixas cranianas se tornassem maiores e assim pudesse

confortar um cérebro mais desenvolvido. Assim, ganhamos mais tempo para que

pudéssemos dormir e ao dormir, passamos a sonhar. Este, aparentemente, foi o

fator decisivo que realmente nos diferencia dos outros animais: O ser humano é o

único animal capaz de realizar seus sonhos. Os outros animais podem até sonhar,

mas desconheço um que realize seus sonhos. Ainda brinco com meus alunos sobre

isso ao dizer que meu cachorro pode até sonhar que está comendo um churrasco,

mas ele nunca fez um ao acordar do sonho.

Em 11 de março de 1890, químicos de várias partes do mundo


reuniram-se em Berlim para comemorar o aniversário de 25 anos da
publicação do químico alemão August Kekulé, sobre a estrutura cíclica
do benzeno. Na ocasião, Kekulé comentou sobre as circunstâncias da
elaboração de sua teoria e descreveu um episódio que, posteriormente,
tornou-se um dos mais polêmicos relatos da história da química: “...
Estava sentado escrevendo meu manual, mas o trabalho não progredia;
meus pensamentos estavam dispersos. Virei minha cadeira para a
lareira e adormeci. Novamente os átomos saltavam à minha frente.
Desta vez os grupos menores permaneciam modestamente no fundo.
Meu olho mental, aguçado pelas repetidas visões do gênero, discernia
estruturas mais amplas de conformação múltipla; longas fileiras às
vezes mais estreitamente encaixadas, todas rodando e torcendo-se em
movimentos de cobra. Mas veja só! O que é aquilo? Uma das cobras
havia agarrado a própria cauda e a forma rodopiava de modo a debochar
ante meus olhos. Como se à luz de um relâmpago, despertei [...] mas
vamos ter cuidado para não publicar nossos sonhos até que eles tenham
sido examinados pela mente desperta.” 4

4 Fonte: http://www.cdcc.sc.usp.br/ciencia/artigos/art_48/EraUmaVez.html

76
Quanto aos meus sonhos eles são tão reais... E este livro é um exemplo do

que vejo quando durmo. Faz anos que tento escrever algo que preste e um dia

acordei e comecei a anotar o sonho que havia tido: Foi o esboço das 10 lições que

aprendi com a vida. Em outra ocasião ganhei um prêmio por ficar em primeiro

lugar em um concurso de redação realizado pelo cursinho, o que elevou muito

minha autoestima. Tema? O Bug do milênio. Tenho o hábito de anotar meus

sonhos para ler depois e ali estava: Havia sonhado que eu era idosa e tinha vivido

o tal “Bug” do milênio, que foi uma piada, não aconteceu nada, assim como em

2012.

Quanto aos sonhos e metas, fiz as provas de vestibular e passei em algumas

universidades públicas, que eram consideradas as melhores do país na época, mas

não foi em Medicina, percebi que minha paixão era a área de humanas e descobri

minha vocação: Ciências Sociais. Quando contei o resultado para a família, meu

pai me abraçou forte e senti lágrimas molhando meu rosto. Esta foi a primeira e

única vez que eu o vi derramar uma lágrima. Ele não chorou na nossa frente nem

mesmo quando contou que havia perdido a empresa que tanto amava. Agradeci

por tudo e chorei de felicidade junto com ele. Foi assim que aprendi a lição

número sete:

77
LIÇÃO NÚMERO SETE

O único que pode dizer não para seus sonhos é você mesmo. Se nos

foi dado o dom de sonhar, também recebemos o dom de realizar.

Só que ninguém nunca afirmou que realizá-los seria fácil.

78
CAPÍTULO 8

Tente outra vez

Meu pai tomou para si a responsabilidade de me levar para conhecer a

universidade e minha escolha foi a UNESP, campus de Araraquara, que fica em

uma cidade linda, localizada no interior de São Paulo. Fui aprovada em outras,

mas decidi estudar no interior porque meu pai havia sido demitido do emprego e

teria que refazer, mais uma vez, sua vida. Eu iria morar sozinha e tinha certeza de

que não resistiria às tentações oferecidas em uma grande cidade. Sabia também

que essa era a oportunidade que tinha para mudar meu futuro e precisava me

dedicar aos estudos sem maiores distrações.

Fomos de ônibus e ficamos em um hotel, mas como chegamos lá à tarde,

tivemos tempo para de conhecer o quarto, tomar um banho e ainda pensar em sair

para comer alguma coisa. Mas, em vez de jantar, meu pai sugeriu algo diferente,

ir em um barzinho talvez. Topei na hora e fomos “comemorar nossa vitória”. Esta

foi a primeira e única vez que tomamos uma cerveja juntos.

Na manhã seguinte, efetuamos a matrícula e fomos procurar um lugar para

morar. Ele encontrou um apartamento, tipo um quarto/sala, cozinha e banheiro,

79
muito confortável e perto da faculdade. Era um luxo para mim! Finalmente

poderia morar sozinha.

Iniciei o curso, só que um mês depois, a universidade entrou em greve e,

neste meio tempo, meu pai, meu irmão, minha cunhada e minha sobrinha

mudaram para a Bahia, pois iriam montar um comércio. Mais uma vez meu pai

teve que começar de novo e me disse antes de partir:

- Eu nunca desisto. Sempre tento outra vez.

Quando fiquei sabendo que a greve poderia durar um bom tempo, arrumei

minhas malas, liguei para minha mãe e disse que estava indo visitar meu pai em

Porto Seguro. Peguei um ônibus e fui. Fiquei um pouco mais de um mês com ele,

tempo suficiente para que eu comemorasse meu aniversário de vinte anos. Dois

dias depois percebi que meu pai estava estranho, calado, recluso e dormindo

muito. Ele era um homem muito forte e jamais comentava se estava doente ou

sentindo algum tipo de dor. Só descobri que ele não estava bem porque encontrei

manchas de sangue no banheiro. Ele tentou negar, mas o pressionei até saber o

que estava acontecendo: Seu nariz estava sangrando em grande quantidade. Na

mesma hora fomos ao hospital e o médico recomendou que procurássemos um

lugar com mais recurso, porque ali não tinha como fazer nada.

No outro dia embarcamos para nossa cidade, chegamos menos de 24 horas

e ele foi internado imediatamente. Fiquei com ele até parte da noite e minha irmã

80
ficou o restante. Quando estávamos lá, criei coragem e perguntei a verdade sobre

nossa família, mas ele se recusou a falar. Eu já imaginava qual seria a verdade,

pois me lembrava das tatuagens que vi nas costas do meu avô quando ele veio ao

Brasil e sabia o significado delas: Yakusa. Meu pai negou que houvesse alguma

conexão entre os fatos e anos depois todos seus amigos também negaram quando

questionei. Japonês sabe guardar um segredo até a morte. Admiro muito meu pai

e o admiro mais ainda se a história for verdade, pois se ele saiu da máfia é porque

queria ser honesto. E foi um homem honesto no país mais desonesto do mundo, o

que considero um ato heroico.

No hospital tudo parecia estar bem, ele estava lúcido e conversando. Dois

dias depois meu pai sofreu uma série de derrames e entrou em coma.

Meu irmão foi informado e voltou da Bahia imediatamente com sua família.

Três dias depois do AVC, na data de comemoração dos vinte e cinco anos de

casamento dos meus pais, minha mãe, meu irmão, minha irmã, minha cunhada e

eu estávamos rezando de mãos dadas, pedindo para que Deus fizesse o que fosse

melhor para ele. De repente mamãe se encurvou e falou que estava sentindo uma

dor muito forte na região umbilical, ficando algum tempo assim, até levantar a

cabeça e dizer:

- Ele acabou de partir. Agora está em paz.

81
Meu pai tinha comentado que fazia questão de comemorar os 25 anos de

casamento com minha mãe. Uma hora depois ligaram do hospital solicitando que

fôssemos lá. A gente já sabia o que eles iriam dizer. Ele havia morrido. A falta

que senti dele foi indescritível e até pensei em desistir da faculdade, mas, seguindo

seu exemplo, tentei outra vez e voltei para terminar o curso.

Claro que eu estava com medo de repetir as mesmas experiências que tive

durante minha vida escolar, mas minha vida de universitária foi completamente

diferente do passado. No primeiro dia de aula, antes da greve, conheci o “Rubão”,

ele foi a primeira pessoa com quem conversei. Era um colega de sala que acabou

se transformando em um grande amigo. Nossa amizade continua até hoje e espero

que dure para sempre. Vou te amar por toda a eternidade, meu grande amigo! Essa

é uma homenagem para você! Desde o primeiro dia que conversamos, ele

comentou que eu tinha que conhecer seu companheiro de quarto, mas não dei

muita atenção para o comentário, pois um dos meus focos de interesse social era

um vizinho que tinha conhecido na primeira noite que passei sozinha no

apartamento. Isto tinha acontecido antes da greve, antes de perder meu pai.

Estava na varanda comunitária do prédio quando este vizinho, que vou

chamar de “Doutor”, me viu e se apresentou. Conversamos por um bom tempo,

ele parecia ser um cara legal e aceitei quando ele me convidou para sair no dia

seguinte. Depois do encontro até rolou uns beijos e saímos outras vezes, mais foi

82
só isso que aconteceu entre nós. Eu não desejava ter maiores compromissos com

ninguém, queria era curtir a vida.

Ainda primeira semana de aulas outro vizinho bateu na porta do meu

apartamento e, quando abri, ele disse:

- Oi, sou seu vizinho que mora no andar de baixo e vim aqui te

conhecer. Meu nome é “Tiris” e o seu?

- Sou a Déia, muito prazer!

O convidei para entrar e a partir daquela noite nos tornamos grandes

companheiros. Aquele seria seu último ano na faculdade e seus amigos eram os

veteranos mais respeitados do nosso curso. Ao andar com ele e sua turma ganhei

um “status social” que nunca sonhei possuir um dia. Por causa dele, fui convidada

para todas as festas, reuniões de repúblicas, fazíamos almoços e jantares coletivos

e sempre tinha barzinho novo para conhecer. Na faculdade íamos a todas as

palestras e cheguei a comparecer como aluna visitante nas aulas que eles

frequentavam.

No final de semana ou quando tinha algum feriado tudo mudava, a cidade

esvaziava e só ficava por lá quem não podia viajar. Eu tinha que ficar no final de

semana por causa da distância, mas sempre tentava voltar para minha família nos

feriados. Meu amigo também não costumava ir muito para casa e este fator nos

uniu ainda mais. Ele gostava de praticar esportes, surfava, andava de skate, corria,

83
jogava futebol, treinamento que lhe proporcionou um belíssimo corpo,

complementado por um maravilhoso par de olhos azuis e um lindo cabelo dourado

e encaracolado. Ele parecia um anjo. Mas eu respeitava nossa amizade, até quando

ele pedia para fazer uma massagem e em várias ocasiões, dormia no meu

apartamento, mesmo morando no andar de baixo. Sabia que ele pegava geral e

não importava cor, peso, altura, só bastava ser mulher, no entanto, não me

aproveitei da situação pois sabia que amante ele tinha aos montes, mas amiga era

só uma. E isso tudo aconteceu em um mês.

A paralisação da faculdade foi finalizada duas semanas depois que perdi

meu pai, voltei para lá e continuei a jornada. Uma semana depois do meu regresso,

Tiris comentou que ia acontecer uma super festa e que a gente tinha que ir. Aceitei

o convite, combinamos de passar na casa do Rubão e ele finalmente me

apresentou seu colega de quarto, o “Chê”. O que senti ao conhecê-lo só acontece

uma vez na vida, pois foi tão forte, intenso e único, que o mundo parou e tudo que

estava ao nosso redor perdeu a importância. Tive certeza que era recíproco quando

os meninos me chamaram para ir e ele perguntou:

- Você tem mesmo que ir para esta festa? Não tem como cancelar e

ficar aqui comigo?

Eu não podia cancelar e despedimos a contragosto, mas falei para ele

aparecer no meu apartamento uma hora. Fui para a festa, era uma quinta feira e

não consegui parar de pensar nele. No sábado, a nossa turma estava no


84
apartamento do Tiris fazendo um dos nossos almoços coletivos e o interfone do

prédio tocou. Era o “Chê”. Ele cumprimentou rapidamente o pessoal e

começamos a conversar, mas eram tantas ideias e conceitos que não

conseguíamos parar de falar, só que eu tinha que ajudar meu amigo na cozinha e

lá continuamos o debate. Na hora que servi o almoço senti que meus amigos

estavam estranhos, principalmente o Tiris, que ficou me olhando com um ponto

de interrogação no rosto por um bom tempo. Linguagem corporal. Depois da

refeição, o Chê comentou que estava incomodado de ficar com a turma e pediu

para ficar à sós comigo, então, despedimos de todos e fomos para meu

apartamento. A troca de ideias foi tão intensa que quando abri as cortinas e olhei

pela janela, já tinha escurecido, mas parecia que estávamos ali somente há poucos

minutos. Ele comentou tinha perdido a noção do tempo, não imaginava que já

estava tão tarde, se despediu e foi embora.

No outro dia, ao encontrar com o Tiris, perguntei porque o pessoal estava

agindo estranho, inclusive ele.

- Ah, Déia, o Chê é o cara mais fechado da faculdade, não conversa

desse jeito com ninguém, não é enturmado e eu nunca o vi sorrindo e fazendo

piadas como fez ontem quando estava com você. Por isso que todo mundo

estranhou e olha que eu já o tinha chamado outras vezes para vir aqui e ontem foi

a segunda vez que veio.

85
Fiquei sem entender nada. Será mesmo que tinha sido assim tão forte? As

semanas posteriores trouxeram a confirmação. Ele ainda continuava sendo aquele

cara esquivo e misterioso, mas parecia existir uma força maior que nos unia e a

gente sempre encontrava pelos corredores da universidade. Eu conhecia muitas

pessoas e quase nunca ficava sozinha e ele não gostava de se aproximar, então,

quando a gente se via, o Chê cumprimentava de longe e fazia um tipo de sinal

para que eu fosse ao seu encontro. Nós vivíamos em mundos completamente

diferentes, mas isso não impediu que a amizade florescesse e passamos a

encontrar diariamente.

Gostei dele desde o primeiro olhar que trocamos, mas o que eu sentia tomou

tamanha proporção que apaixonei perdidamente, loucamente e por ele faria

qualquer coisa, qualquer coisa mesmo. E em uma maravilhosa noite de lua cheia,

com milhares de estrelas piscando ao fundo, o “milagre” aconteceu. Eu tinha

conseguido arrastá-lo comigo para uma balada com a galera e decidimos dormir

no meu apartamento. Em casa continuamos a conversar, pois o tempo nunca era

suficiente para que nossas mentes ávidas absorvessem, um do outro, tanto

conhecimento. O Chê conseguiu fazer comigo o que homem nenhum tinha

conseguido até então: me desafiar mentalmente. Parecia que víamos a vida pelo

mesmo prisma, pois ele também queria mudar o mundo!!!! E fazíamos tantos

planos para o futuro...

86
Nesta noite, nesta fatídica noite, por incrível que pareça, disse não quando

ele tentou transar comigo. Se existiu uma única noite em minha vida que me

arrependi profundamente foi essa. Durante anos eu trocaria todos os dias do futuro

por esta única noite. Ah, se eu pudesse mudá-la! Hoje não tenho mais

arrependimentos, só preciso conviver com a curiosidade de saber como teria sido

se tivesse dito sim. Continuamos amigos, mas pairou uma tensão no ar depois

deste episódio, porque ele sabia que eu não recusava sexo quando estava afim do

cara. Uns dois meses depois revelei que estava apaixonada por ele e sua resposta

foi:

- Quem quer corre atrás. Se eu quisesse ficar com você já tinha

chegado junto faz tempo.

Meu mundo desabou. Chorei muito e chegou a doer fisicamente, sofri como

achei que nunca sofreria um dia. Felizmente ou infelizmente sou o tipo de pessoa

que larga tudo sem olhar para trás e sempre renovo minha vida. Sumi por uma

semana, tirei ‘férias’, fui encontrar minha família e o Rique. Em um mês eu tinha

mudado o visual e emagrecido um tanto bom, ainda era gorda, mas tinha ficado

uma gorda gostosa. Para completar, intensifiquei minha vida social e fiquei

mesmo com vários caras, mas estava machucada demais para aprofundar em

qualquer tipo de relação. Claro que o Chê voltou correndo. E foi na noite que

comemorei meu aniversário de vinte e um anos. A festa seria em plena segunda

feira, o dia preferido da semana para começarmos a curtir a vida. Era nosso
87
“feriado”, como dizia Rauzito, meu grande mestre. Um dos rapazes que eu estava

ficando era de outra cidade e tinha ido passar o fim de semana comigo para

comemoramos meu aniversário. Não convidei o Chê, mas ele foi com o Rubão e

na festa tentou chamar minha atenção o tempo todo, mas meu rolo não deixava

ele aproximar muito. Homem esperto. Ao final da comemoração, chamaram o

Chê para ir embora e ele disse que iria ficar, mas o meu amigo que o tinha levado

não deixou e ainda tirou um sarro da cara dele, comentando que eu estaria muito

bem acompanhada e “ocupada”.

O rolo foi embora na tarde seguinte e a noite o Chê me procurou. Como eu

era muito cega e idiota na época, alimentei a ideia de que ele queria ficar comigo,

de que existia algo a mais que amizade entre nós. O rolo se perdeu em algum

ponto remoto do meu passado e nunca mais o vi.

Foram anos loucos, o Chê e eu passava a maior parte do tempo juntos, pelo

menos as horas que nenhum dos dois estava envolvido com outras pessoas. E

sempre estávamos nos relacionando intimamente com terceiros. Parecia que

travávamos uma competição imbecil para saber quem ia machucar mais o outro,

pois ele ficava injuriado quando me via com outros caras e eu quando o via com

outras garotas. Mas quando ficávamos muito bêbados, a máscara caía e um atiçava

o desejo do outro, no entanto, rolava só uns beijos e nada mais. Eu estava com

vinte e três anos e decidi experimentar como seria morar em uma “república”, mas

essa história foi muito bizarra e eu conto depois. Saí da república e mudei para
88
uma casa, ela era linda, pequena, de fundo, com um bom quintal, quarto, sala,

cozinha e banheiro. Era perfeita para mim e eu precisava de paz de espírito, pois

estava começando a escrever meu trabalho de fim de curso e pensando no que

fazer depois que eu terminasse a faculdade. Meu orientador havia comentado que

eu tinha grandes chances de conseguir uma vaga no mestrado, pois minha

pesquisa estava ficando excelente e inovadora.

O Chê estava morando com uma garota, mas como ele passava a maior

parte do tempo comigo, a menina cansou de conviver com a minha sombra e

terminou o relacionamento. Sem lugar para morar, ele pediu abrigo e o aceitei de

braços abertos. Pode parecer ironia do destino, mas ele se mudou no dia 1º de

Abril e lembro perfeitamente da data porque eu tinha combinado com minha mãe

de ir para casa no dia sete e ficaria uns quinze dias com minha família, pois tinha

como emendar dois feriados. Na primeira noite fizemos um jantar. No segundo

dia uma amiga nos convidou para uma festa, que durou 48 horas. No quarto dia

decidimos “experimentar” uma carne exótica e fomos comer rã. O quinto dia

amanheceu frio, chuvoso e ficamos em casa. À noite descobrimos que existia uma

infiltração na sala, que encharcou o colchão que ele usava e por isso teríamos que

dormir juntos. Lembro de ter pensado: Era a oportunidade perfeita para que,

finalmente, tivéssemos nossa “noite de amor”. Mas se ele não chegasse eu não

iria dar o primeiro passo. E ele não chegou. Na outra noite aconteceu o mesmo:

Nada.

89
No dia seguinte, conforme tinha combinado com minha mãe, fui para casa

e fiquei 15 dias curtindo minha família. Quando voltei da viagem, recebi a notícia

bombástica: O Chê veio me contar que tinha conhecido uma garota, ficou com ela

e estavam namorando. Fiquei arrasada, mas mesmo assim aceitei a situação

porque tinha esperança. Hoje compreendo que a esperança é o sentimento mais

forte que um ser humano pode ter. Ele me perguntou se eu toparia conhecer a

menina e aceitei, mas nos odiamos à primeira vista. Como sou civilizada, procurei

não demonstrar meu desagrado e a tratei com respeito, no entanto, em um

momento da conversa, a garota começou a gritar comigo e tentou me agredir

fisicamente. Como diz o ditado, quem não tem razão parte para a agressão e

enquanto ele a segurava, eu disse:

- Persona non grata. Ninguém me desrespeita em minha casa. Fora.

Hoje sei que devia tê-lo mandado embora da minha casa, da minha vida,

mas estava tão cega e não tinha amor próprio, por isso aceitei escutar daquele que

julguei ser “o grande amor da minha vida”, coisas como:

- Transei com ela sem camisinha.

Sugeri a pílula do dia seguinte e, dias depois, perguntei se a menina tinha

tomado e ele respondeu que não. Eu já imaginava o que estaria por vir. Novamente

a lição número três: Ouça e fique atento para o que acontece ao seu redor e perceba

que o universo manda recados para você. Quando a gente não escuta, se ferra. Me

90
permiti viver isso até lembrar da lição número quatro. Arrumei uns três ou quatro

namorados para me consolar e um mês se passou desde a noite que conheci a

“namorada”. Neste meio tempo intensifiquei o contato com minha família,

principalmente com meu irmão, que me ligava dia sim dia não. Em uma das

conversas ele propôs que montássemos um negócio, mas na hora eu disse que

precisava pensar, pois dias antes havia entregado o esboço do meu trabalho de fim

de curso para meu orientador e ele afirmou, veementemente, que minhas chances

de entrar no mestrado eram gigantescas.

Eu ainda estava pensando sobre a proposta do meu irmão quando recebi

mais uma notícia bombástica: A namorada do Chê estava grávida. Fiquei tão

desesperada que nem pensei, liguei para meu irmão e aceitei a proposta. Em

menos de quinze dias larguei tudo: O Chê, o mestrado, minha casa, minhas coisas,

minha vida e voltei para minha cidade. Se a vadia queria tanto assim o meu

homem, que ficasse com tudo, inclusive com meu cheiro. Fui embora sem olhar

para trás.

Abrimos o negócio e isso passou a ser minha vida. Foram seis anos de luta,

crescimento e sucesso, pois começamos “no fundo do quintal” da nossa casa e em

menos de dois anos já erámos donos do melhor restaurante da cidade.

Durante o expediente de trabalho eu era competente, cumpria com as

obrigações, tipo, até umas duas horas da manhã, seis dias por semana. Mas depois

que eu saía... Chapava com o álcool, pegava a moto e saía para qualquer lugar que
91
tivesse gente, mas eu sempre estava sozinha. No caminho gostava de ir pela

rodovia, adorava pilotar em alta velocidade e quase dava “PT” na moto. Na

verdade eu não me importava com nada. Fiquei tão abalada emocionalmente que,

por três anos, não consegui beijar ninguém. Me via novamente como um monstro.

E poucos dias antes de completar vinte e sete anos tentei o suicídio. Eu

realmente queria morrer, pois não suportava mais o peso de viver. O negócio ia

bem e estávamos começando a estabilizar, mas minha vida pessoal não existia,

era insuportável acordar dia após dia. Queria entrar para o clube dos 27. Minha

família me socorreu e apaguei quando cheguei ao hospital. Realmente não me

lembro de nada, devo ter ficado hospitalizada por uns dois dias. Eu quase consegui

ser bem sucedida em minha tentativa de morrer. Quando saí, mais uma vez minha

família estava ao meu lado e foi minha irmã quem me resgatou e posso dizer que

devo minha nova vida a ela. Obrigada de novo. A Deza me levou em uma

psicanalista e comecei o tratamento. Foram anos de análise até eu perceber que

meu discurso sobre a vida era chato, cansativo, repetitivo e finalmente acordei.

Assim aprendi a lição número oito.

92
LIÇÃO NÚMERO OITO

Tente outra vez. A vida, não a morte. Se eu soubesse como

seria feliz no futuro, creio que não teria tentando me matar,

pois se eu tivesse conseguido, não poderia ajudar outras

pessoas.

93
CAPÍTULO 9

Acredite: Existe algo maior que a gente

Ainda estava infeliz, mas tentava melhorar. A gente estava fazendo sucesso,

as pessoas comentavam que era o melhor restaurante da cidade, como disse

anteriormente, a “sociedade” queria ser vista por lá. Aprendi que quando somos

os melhores, ninguém fala da sua competência.

Até que meu restaurante, literalmente, desabou e perdemos tudo da noite

para o dia. O telhado estava podre, mas a sorte é que aconteceu durante a

madrugada e não feriu ninguém. Só que nossa vida desabou junto. Lição número

oito, novamente. Tente outra vez! E reabrimos o negócio no fundo do quintal da

casa da nossa mãe, onde tínhamos começado. A gente não tinha o mesmo status,

mas ainda éramos os melhores no que fazíamos. E para complementar a renda

finalmente tive que usar meu diploma de Cientista Social e acabei virando

professora. Entrei por dinheiro, confesso, mas não foi por este motivo que

continuei.

Consegui um cargo e tinha preparado minha primeira aula de Sociologia

achando que ela iria durar os cinquenta minutos, mas não passou de dez e fiquei
94
sem perdida, pois não sabia o que fazer. Até que um aluno perguntou o que eu

tinha aprendido na faculdade e, de repente, tudo foi voltando, as aulas, os temas,

os pensadores, ouvi a voz dos meus mestres ecoando em minha mente e comecei

a falar o que sabia. Eles ficaram encantados. O dia terminou e senti que existia

uma esperança. Quando cheguei em minha casa, peguei os antigos cadernos da

faculdade e comecei a estudar. A cada aula e a cada dúvida eu estudava mais, pois

tinha encontrado minha verdadeira vocação. Planejei minha saída do negócio para

dedicar exclusivamente à carreira acadêmica.

Eu voltava para casa de circular e ficava no mesmo ponto de ônibus que os

alunos, muitos viam conversar comigo e foi assim que conheci o Filipe. Menino

inteligente, articulado, possuía uma excelente argumentação e queria expor seu

pensamento sobre a aula que ministrei naquele dia. O tema? Evolucionismo X

Criacionismo. Ele, evangélico praticante e eu, ateia convicta. Dá para imaginar o

debate que travamos, tanto que ele tentou me “converter”. Falou com tanta paixão

sobre “Seu Deus” que fiquei maravilhada com tamanha pureza de coração e não

pude deixar de pensar sobre o assunto. Depois de algumas semanas conversando,

passei a desejar que se um dia eu tivesse um filho, que fosse como ele.

O Filipe e outros colegas eram responsáveis por um grupo de estudos

espirituais e ele acabou me convidando para participar de uma reunião. Eu não

acreditava em Deus, mas acabei indo por ele. Só que depois da primeira reunião,

passei a estar lá em todas as quartas feiras na hora do intervalo. Finalmente


95
consegui sentir alguma coisa parecida com paz de espírito e comecei a me

perguntar se realmente existia algo maior que nós, uma força que conduzia minha

vida. O nome desse “algo maior” não importava, Filipe o denominava de Jeová,

eu chamava de Deus, outros de Alá e vi que era a mesma força criadora que nos

unia. Passei a agradecer por minha vida e parei de reclamar. Eu finalmente estava

feliz e orgulhosa por existir.

E naquela cinza manhã de segunda feira, meu celular tocou e era minha

mãe. Como eu não trabalhava naquele dia, achei muito, muito estranho ela me

ligar, pois ninguém em casa ousava me acordar no meu dia de folga. Atendi e

perguntei o que tinha acontecido.

- Filha... Acabaram de ligar da escola que você trabalha e me pediram

para avisar que um aluno seu faleceu.

- Mãe, quem foi?

Eu sabia que eles não teriam ligado se não fosse alguém muito próximo.

- Parece que o nome dele é Filipe.

Comecei a chorar. Todos sabiam como éramos amigos. Ele foi uma das pessoas

com a maior pureza de alma e espírito que conheci na vida. Fui imediatamente

para o local do velório e só acreditei que era verdade, que era ele, quando o vi no

caixão. Chorei e chorei muito, mas não foi por ele, porque eu sabia que estava em

96
um plano melhor. Chorei por mim mesma, pois havia perdido a pessoa que tinha

conseguido me fazer acreditar que a vida continuava depois da morte.

Sempre que penso em brigar com Deus me lembro do Filipe, que estará

para sempre em meu coração. E agradeço a este ser criador por minha vida, pois

percebi que ter fé me torna mais forte e foi assim que aprendi a lição número nove.

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LIÇÃO NÚMERO NOVE

Acredite! Realmente existe algo maior que nós e este ser

grandioso, que você denomina da forma que achar melhor,

realmente conduz nosso destino, se a gente permitir. O que

queremos muitas vezes não é o que realmente precisamos

para sermos felizes.

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Hoje sou muito mais feliz por acreditar que existe essa energia poderosa e

magnânima que conduz minha vida e tudo que posso dizer é que no momento

certo obtemos a resposta para perguntas que foram feitas no passado. Foi o que

aconteceu quando reencontrei, anos depois, meu primeiro namorado. Aquele que

me trocou por um computador. Era feriado, eu estava cursando o terceiro ano da

faculdade e visitava minha família.

Encontramos por acaso na rua, conversamos um pouco e ele perguntou se

podia ligar um dia para conversarmos. Respondi que sim. Recebi seu telefonema

no mesmo dia e combinamos de encontrar no outro dia. Saímos, conversamos e o

Lennon comentou que tinha se arrependido por ter terminado comigo e que nunca

encontrou novamente alguém como eu. Até pediu uma outra chance.

- O passado não volta, eu disse, mas podemos ser amigos.

E perdoamos um ao outro. Depois desta noite, cada um seguiu seu destino

e não nos vimos durante um bom tempo. Só que o universo, mais uma vez, nos

impõe situações estranhas que temos que viver para aprender que tudo que

fazemos nesta vida volta um dia. Não foi intencional, mas aconteceu.

Anos depois desta noite eu lecionava para adultos em um curso para pessoas

que estavam defasadas nos estudos e tinham que recuperar o tempo perdido. De

repente, não mais que de repente, quem eu vejo? Lennon, o ex-namorado. Depois

de tantos anos decorridos daquela conversa, do perdão, os nossos caminhos se

99
cruzaram novamente. Ele me cumprimentou e começamos a conversar. E

perguntei:

- O que você está fazendo aqui?! Veio olhar algum curso?!

- Sim, eu preciso concluir os estudos, ele respondeu.

- Você parou em qual série?

Ele falou em qual período tinha parado e comentou, animado:

- Você também é aluna aqui? Legal, a gente pode estudar junto!

O Lennon era meio “lesado” e tinha esquecido que eu já estava fazendo

faculdade da última vez que encontramos, mas era gente boa.

Foi sem maldade nenhuma, mas tive que responder:

- Não sou aluna. Eu leciono para as turmas do período que você quer

se matricular e provavelmente serei sua professora.

E falou que estava feliz por mim. Eu desejei boa sorte, nos despedimos e

não o vi mais. Na hora a gente não entende, mas quando a força maior corta algo

de sua vida, aceite e agradeça: você não sabe o que te espera no futuro.

100
CAPÍTULO 10

O que realmente posso controlar em minha vida?

A terapia estava fazendo efeito e posso dizer que foi um período feliz, pois

lecionar é minha grande paixão e me proporcionava um enorme sentimento de

realização pessoal, mas ainda faltava alguma coisa, ou melhor, um alguém

especial. Pular de um relacionamento para outro me incomodava muito.

Até que eu conheci o “General”. Foi uma paixão louca, em menos de um

mês ele me pediu em casamento e aceitei. A gente conversava o dia todo, ele

ligava para dar bom dia, boa tarde, boa noite, para dizer que me amava, para dizer

oi, para saber como eu estava. Fazíamos planos para o “Grande Dia” e ele falava

que nunca tinha se casado porque estava esperando por mim.

Fiquei encantada, mas um mês e meio depois do pedido de casamento o

“General” terminou o relacionamento sem dar qualquer explicação. Mais uma

vez, não olhei para trás e resolvi mudar definitivamente minha vida. Voltei a

estudar, comecei um curso de pós-graduação, queria melhorar meu currículo,

minha vida e iniciei os preparativos para fazer a cirurgia de redução de estômago.

Queria mesmo mudar radicalmente a minha vida.

101
E realizei meu sonho: Fiz a cirurgia e emagreci muito, em torno de 50

quilos. Fui convidada para lecionar em outras escolas, consegui algum

reconhecimento social e adquiri um pouco de estabilidade financeira. Além do

mais, tinha conhecido antes da operação uma pessoa muito especial e estávamos

namorando firme. Éramos felizes, só que as coisas mudam e terminamos, mas vou

sentir um carinho enorme por essa pessoa, mas que não ouso revelar o nome

porque sei que ele não iria gostar que eu fizesse isso. Obrigada por me amar tanto.

Eu também te amei, mas à minha maneira.

No entanto, as pessoas do meu ambiente de trabalho eram hostis comigo e

eu não entendia o motivo. Falo que são pessoas mal amadas, não pelos outros,

mas por si mesmas, como eu tinha sido no passado. Quando lembrei do meu

passado e tudo que tinha vivido até aquele momento, percebi que tinha aprendido

a décima lição.

102
LIÇÃO NÚMERO DEZ

Pedras que rolam não criam limo, por isso, é necessário

sempre estarmos abertos para as mudanças. A vontade de

matar alguém a gente não controla e todo controle que

possuo é entender o que sinto e a atitude que irei tomar

perante este sentimento. Minha escolha é acreditar que o

amor realmente pode mudar o mundo, então, prefiro

ajudar ao invés de machucar. Na maioria das vezes eu

consigo ser assim, mas nem sempre, por isso sou uma

incógnita e as pessoas nunca sabem o que esperar de mim.

Isso é irritante, eu sei, mas algumas vezes costuma ser

divertido. Para mim é essencial renovar sempre minha vida,

em todos os momentos, como se eu fosse uma “Metamorfose

ambulante”. Raul essa é para você.

103
Foi assim que resolvi, mais uma vez, reinventar minha vida. Comecei a

fazer novos planos, mudei de emprego, namorado, enfim, mudei tudo que estava

ao meu alcance naquele momento. Continuo acreditando que posso mudar alguma

coisa, mas percebi que o mundo eu não posso mudar. Como a história do menino.

Não lembro a fonte (espero que não seja acusada de plágio), sei que li na internet:

O sol brilhava naquela tarde de sábado e tudo que o menininho queria, no

auge dos seus oito anos de idade, era brincar com seu pai, mas ele nunca tinha

tempo para fazer isso. O dia inspirou e encorajou o garoto, que pensou:

- O dia está tão bonito! Quem sabe o papai aceita brincar comigo!

O jovem senhor, um cientista renomado, buscava realizar seu sonho, que

era resolver os problemas do mundo. E prometeram, em seu primeiro dia de

trabalho, que ele receberia apoio da empresa para realizar este objetivo. No

entanto, os anos passaram e a promessa nunca foi cumprida, mas ele tinha que

sustentar a família e acabou se sujeitando, dia após dia, a ser mais um escravo do

sistema. Odiava seu trabalho, mas o salário parecia compensar o desgosto.

Ouviu suaves batidas na porta do quarto que usava em casa como escritório

nos finais de semana. Irritado por ter sido interrompido, viu seu filho e,

rispidamente, perguntou o que o garoto queria.

- Pai, vamos brincar? Perguntou o menino. O dia está tão lindo!

- Filho, eu tenho que trabalhar, respondeu.


104
Mas vendo a tristeza no olhar de seu filho, ele propôs:

- Então vamos fazer um acordo. A hora que você resolver o desafio

que eu te der, largo tudo e vou brincar com você.

E o menino, corajoso, aceitou a proposta.

Pensando que seu filho demoraria horas para resolver o problema, o homem

começou a folhear uma revista até encontrar o que procurava: Um mapa com

todos os países do mundo! Arrancou a página, picou em vários pedaços e disse:

- Conserta o mundo para mim e quando você terminar paro tudo e vou

brincar com você.

O garotinho pegou os pedaços picados e foi para seu quarto. O pai, achando

que teria horas de tranquilidade para trabalhar, foi surpreendido pelo filho pouco

tempo depois. E pergunta para o garoto:

- O que você quer?

- Eu resolvi o problema, papai! Agora o senhor vai brincar comigo,

não vai?

O pai não estava acreditando que o garoto tinha resolvido o enigma, pois a

figura que tinha escolhido era muito difícil de montar e nem ele sabia como fazer

isso. Mas viu que a tarefa tinha sido concluída com perfeição, pois todos os países

estavam no lugar certo. Espantado, perguntou:

105
- Filho, você não sabia como era o mundo, então, como conseguiu

consertá-lo?

E o garoto respondeu:

- Peguei os recortes e tentei consertar o mundo, mas estava muito

difícil e não consegui. Mas lembrei que quando o senhor arrancou a página da

revista para fazer o quebra cabeça, do outro lado dela eu tinha visto a figura de

um homem. Aí virei os pedacinhos cortados e comecei a consertar o homem,

porque eu sabia como ele era. Quando terminei de consertar o homem, virei a

folha e vi que tinha conseguido consertar o mundo.

Depois dessa, o pai largou tudo e foi brincar com seu filho.

Percebi que não posso mudar o mundo, muito menos outras pessoas. Tudo

que posso fazer é mudar a minhas atitudes perante a vida e assim, talvez eu

consiga causar um impacto nas pessoas que as ajude a mudar também. Só que na

maioria das vezes vamos encontrar pelo caminho pessoas invejosas, pequenas,

egoístas e que irão tentar fazer de tudo para nos derrubar e nos prejudicar. É nestas

situações que recorro à lição número dez: O que estou sentindo sou incapaz de

mudar, mas posso escolher o que fazer com o que sinto.

Conforme prometido, vou contar a “história da república”.

Antes de dividir a casa com o Chê, fiz amizade com duas meninas, elas

pareciam ser boas pessoas e decidimos montar uma “república”. Aceitei o convite
106
porque não podia passar pela faculdade sem saber como era viver essa

experiência. A república seria composta por seis pessoas: as duas garotas, eu e

outras três moças que eram amigas das minhas colegas. Encontramos um linda

casa, muito bem localizada e assinamos o contrato, mas com a condição de ter que

arcar com uma multa em caso de rescisão.

Nos primeiros dias morando com elas, percebi que havia cometido um

grande erro, pois as meninas cursavam a mesma faculdade particular, que era

absurdamente cara e eu, a Universidade pública. Elas eram as “princesas dos

contos de fadas” e viviam em um mundo de fantasias custeado por seus pais

milionários e quem me sustentava era minha mãe, que também arcava com o custo

de vida dos meus irmãos. Eu sabia que a situação financeira da família estava

complicada e tentava controlar ao máximo meus gastos porque também queria

poupar minha mãe de tantos problemas.

Mas uma coisa eu não posso negar: Elas sabiam planejar uma festa

inesquecível e a comemoração que promoveram para inaugurar a república entrou

para a história da cidade. Organizaram a casa para limitar o acesso aos quartos,

mas deixando livre a sala, cozinha, o quintal, garagem e os banheiros. Montaram

um bar para vender bebidas e sei que o lucro foi grande, pois tinha tanta gente que

a rua teve que ser usada para comportar tantas pessoas. Aliás, nunca vi um centavo

deste dinheiro porque, de acordo com elas, como eu não ajudei com os

preparativos, também não teria direito à partilha. Por mim, estava tudo bem.
107
Muita bebida, substâncias ilícitas, música alta, bagunça... A chegada da

polícia acabou com a diversão e duas pessoas foram presas. Foram os vizinhos

que chamaram. Isso deveria ter servido como alerta, mas elas ignoraram e

resolveram fazer mais uma grande festa na semana seguinte. Como eu já tinha

aprendido a lição número três, ouvi o recado que o universo mandou e fiquei

atenta para o que estava acontecendo ao meu redor e no dia do grande evento, fui

passar a noite na casa de um amigo. Voltei no outro dia e as meninas comentaram

que a festa havia sido um fracasso e que “nós” teríamos que arcar com o prejuízo.

- Não entendi o vocês querem dizer com “nós”, comentei.

E uma delas respondeu:

- Cada uma tem que pagar X (e citou o valor). Queremos a sua parte

amanhã.

E falei, com o maior cinismo do mundo:

- Sério?? Mas eu não ajudei a preparar a festa! E se lembro bem foi

exatamente isso que vocês alegaram para não dividir comigo o lucro da primeira

festa! Além do mais, minhas atitudes são baseadas em algo que aprendi com meu

pai!

Elas ficaram curiosas e perguntaram o que meu pai falava. E citei “A Lição

Bônus Track”!

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LIÇÃO BÔNUS TRACK

NAS PALAVRAS DO MEU PAI:

- VOCÊ SÓ SERÁ ADULTA QUANDO

APRENDER A LIMPAR A PRÓPRIA BUNDA!

LIMPAR A BUNDA SIGNIFICA QUE EU SÓ SERIA

ADULTA QUANDO CONSEGUISSE “LIMPAR” AS

CAGADAS QUE FIZ NA VIDA E LIDAR COM AS

CONSEQUÊNCIAS DE MINHAS ESCOLHAS.

109
Depois dessa, as “Princesas” falaram que iriam se responsabilizar e dividir

o prejuízo entre elas. Ainda tive que suportá-las por mais um mês, tempo

necessário para encontrar outro lugar, arrumar a documentação, o dinheiro e

mudar. Mas como diz o ditado, “ou encaramos as coisas como uma bênção ou

como uma maldição” e, no meu caso, as situações que vivo são tão únicas que

tornam minha jornada neste mundo uma constante surpresa, por isso, tento ver

tudo que vivo como se fosse uma “bênção”. É o caso do “Dono do Pote de Mel”.

Nos primeiros dias morando na república, conheci uma vizinha, ficamos

amigas e passei a gostar muito dela. Com seus setenta anos de idade, ela era uma

linda senhora, muito conservada, culta, morava sozinha, solteira, independente e

eu aproveitava cada minuto que tinha disponível para ouvir suas histórias, seus

conselhos e dicas sobre a vida, pois ela tinha uma vasta experiência com as

pessoas.

Em uma ocasião, ela mandou um presente para nós, as “meninas da

república”: Um lindo pote de mel! Era puro, com uma tonalidade de âmbar-claro,

da roça, produzido por um amigo dela. Parecia ser delicioso e como eu adoro Mel,

fiquei com água na boca só de olhar através do vidro. Fui eu quem recebi a

embalagem e ela comentou que o presente era para todas as moradoras da casa e

é claro que eu iria dividir com as garotas. Mas as pessoas são mesquinhas, querem

tudo para si e são tão cretinas que mascaram as atitudes perversas através de

mentiras. Falei do presente para as “princesas” e avisei iria guardar no armário


110
comunitário e, quando fui experimentar, o Pote de Mel havia sumido. Procurei em

todos os lugares, menos nos armários “particulares” e como fui criada para

respeitar o que é dos outros, fiquei muito constrangida quando pensei em verificar

estes lugares. Só que era desaforo demais, quebrei minhas regras de conduta e

comecei a procurar nestes lugares e não fiquei surpresa quando encontrei o “Pote

de Mel” camuflado, enrolado em um pano, no meio dos pertences de uma delas.

Coloquei o Pote de Mel na mesa e chamei a menina para conversar,

perguntando porque ela tinha feito aquilo e, em sua defesa, passou a me atacar

argumentando que eu não podia mexer em suas coisas.

- Concordo, mas a partir do momento em que algo comunitário some,

passo a ter este direito.

Perante esta resposta, a garota mudou a argumentação e teve a ousadia de

dizer que a vizinha tinha dado o Pote de Mel para ela e que não iria dividir com

ninguém. É claro que minha primeira reação foi querer brigar, argumentar e dar

uns tapas na cara da folgada, mas respirei fundo, usei a lição número dez e

controlei como iria agir perante a raiva que sentia.

Mas, calmamente, disse para ela:

- Se você quer tanto o Pote de mel, pode ficar, ele é seu. Mas saiba que

sinto muita pena da sua situação financeira: deve estar tão ruim que nem um Pote

de Mel você pode comprar.

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A cretina não falou mais nenhuma palavra, só pegou o SEU Pote de Mel e

foi guardar no SEU armário, que ficava em cima da pia. Ela subiu em um

banquinho para alcançar o lugar e quando foi guardar, acabou perdendo o

equilíbrio. Para não cair, teve que soltar o vasilhame e eu observei a cena como

se estivesse acontecendo em câmera lenta: O Pote de Mel escorregando de suas

mãos até atingir o chão e espatifar em mil pedaços, misturando vidro com

alimento.

Eu não precisava dizer nada. Mas não aguentei segurar minha língua grande

e soltei:

- Aprende a limpar a própria bunda, porque a sujeira é SÓ SUA.

As outras moradoras da casa ficaram sabendo do caso do Pote de Mel e

disseram:

- Isso acontece, esquece essa história.

Quando fui morar com estas garotas eu já tinha aproveitado muito, mas

sempre balanceei o estudo com a diversão. Tentei ser uma boa aluna, fazia todos

os trabalhos, sempre estava presente nas aulas, tirava boas notas e tudo que eu

queria naquele momento era estudar, pois minha vida tinha mudado muito e eu

havia sido obrigada a mudar do apartamento que meu pai tinha arrumado para

mim por um grande motivo: Ladrões limparam a minha casa, roubaram tudo que

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tinha algum valor material. Levaram até o punhal que estava em meu altar. Lição

número oito de novo, tente outra vez. De novo.

Ainda não sabia, mas já estava usando a Lição número três e fiquei atenta

para tudo que estava acontecendo ao meu redor. Percebi que a casa sempre estava

cheia de pessoas estranhas e as garotas faziam, no mínimo, duas festas por semana

e muitos “tipos estranhos” passaram a frequentar a casa. Minha vizinha, a senhora

que era minha amiga, veio falar comigo. Ela disse que a situação estava

insuportável e que os outros vizinhos já estavam fartos com o que estava

acontecendo na república e que em breve eles tomariam uma atitude. Como ela

disse, foi só um aviso. Tentei conversar com as meninas, mas elas ignoraram o

que eu disse e alegaram que estavam pagando o aluguel e tinham o DIREITO de

fazer o que quisessem. Isso ocorreu uns quinze dias antes do meu aniversário. Uns

três dias depois do aviso elas fizeram outra festa e pelo que fiquei sabendo foi

uma festa enorme. Eu imaginava o que poderia acontecer e não compareci, fui

passar uns dias na casa do Rubão.

A tal festa rolou, mas no meio da noite os vizinhos chamaram a polícia e

eles prenderam algumas pessoas. Quando voltei, elas contaram o que havia

acontecido. As festas iriam parar por um tempo. Mas meu aniversário seria dali

uns dias, queria comemorar e elas sabiam que eu queria fazer uma reunião com

meus amigos.

113
Para meu aniversário eu não queria mais nada grandioso e cheio de gente,

então convidei umas sete pessoas, só meus amigos mais próximos, que

compareceram. Bebemos, colocamos uma música, conversamos e elas vieram

reclamar que o som estava alto, que iria incomodar os vizinhos. Abaixei o som,

pedi para falarmos mais baixo e elas tiveram a cara de pau de pegar as minhas

bebidas e petiscos, levar para o quarto e fazer uma festinha particular. Foi

inaceitável para mim. Falei com meus amigos para sairmos dali e comemorar em

outro lugar, então fomos para a casa de uma garota que comemorava seu

aniversário no mesmo dia que eu, a Bi. Saudades, linda.

No outro dia perguntei para minha vizinha se a gente tinha feito muito

barulho e ela respondeu que não ouviu nada e só sabia que estava tendo uma festa

porque eu tinha comentado que era meu aniversário. Comecei a procurar outro

lugar para morar, encontrei a casa perfeita e saí de lá.

Mas algumas pessoas são tão buliçosas, maldosas e na noite anterior da

minha mudança, estava deitada e ouvi barulhos vindos da sala. Levantei e fui

averiguar o que estava acontecendo e não acreditei na cena: as cretinas estavam

usando a minha cadeira de estudos para postar corrida! Inacreditável! Pode

parecer mentira, mas tudo que isso me ajudou a ser uma pessoa melhor e por isso

agradeço imensamente tudo que aconteceu nesta casa. Obrigada meninas por me

ensinarem a ser um ser humano melhor e aprender a ter paciência com o outro.

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Outra experiência que mudou, mais uma vez e radicalmente minha visão de

mundo, foi participar de um curso de sobrevivência na selva. Pode parecer loucura

para a grande maioria das pessoas, querer ir para o meio do mato, de livre e

espontânea vontade, com a intenção de aprender técnicas de sobrevivência. Foram

apenas três dias, mas foi o suficiente para mostrar que “saber é poder”. Essa é para

vocês, “meninos”: SELVA!!!!!!!!

Eu tinha emagrecido muito por causa da cirurgia, o que me levou a ter

confiança para me inscrever no curso, que seria realizado em uma fazenda. O

lugar era lindo e quando cheguei lá percebi que era a única mulher do grupo. Foi

um desafio para todos, porque sei que os homens, quando sós, possuem hábitos

diferentes ao estarem em companhia feminina. Eles foram extremamente gentis e

educados comigo e procurei retribuir mostrando que eu não era um peso morto.

Foram dias extremamente agradáveis e ao mesmo tempo cansativos, mas

aprendi que a sobrevivência está dentro de cada um de nós, pois eu tive que

continuar viva dia após dia durante minha vida toda. O que não te mata fortalece

certo? Vivi, na prática, como é difícil construir um acampamento, como é

complicado produzir e manter o fogo, quanto esforço é necessário para conseguir

o próprio alimento. Passei a dar mais valor à vida depois disso. Senti falta de

muitas coisas, como um banho quente com sabonete, da minha confortável cama,

de não ter insetos subindo pelas minhas pernas. E de um lanche específico

industrializado, é obvio que não vou falar o nome da marca, quem já comeu sabe
115
que não dá para reproduzir em casa. Fico pensando que se a civilização perecer

enquanto eu estiver viva, vai ser uma das coisas que sentirei falta.

Algumas vezes acredito que sou uma pessoa muito inteligente, mas na

maior parte do tempo sinto que sou só um monte de lixo. É a genialidade que beira

à loucura. Especialistas dizem que isto se chama bipolaridade, surtos de

criatividade mesclados com surtos de insanidade. O meu segredo hoje é tentar

ficar em equilíbrio, mesmo sabendo que isso é quase humanamente impossível

para mim. Vivo uma loucura solitária, que por vezes, é descontrolada.

Para finalizar, fizeram esta brincadeira comigo há anos e mudou minha

vida. Convém anotar suas respostas para depois analisar. Depois de responder

tudo olhe o significado de cada pergunta e boa sorte!

A BRINCADEIRA DA ESTRADA

Imagine que você está caminhando em uma estrada. Como é esta estrada?

De asfalto, de terra? Tem curvas, retas? Como é a paisagem? Árvores? Deserto?

Montanha? Quanto mais detalhes melhor.

Caminhando na estrada você encontra um jarro. Como este jarro é? Contém

algo dentro? Você leva ou deixa ali?

Continuando o caminho, algo no chão desperta a atenção: é um anel. Como

este anel é? O que você faz com ele? Leva ou deixa ali?

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Mais para frente, encontra uma cachoeira. Como ela é? O que representa

para você? O que sente? Você entra ou fica olhando?

Ao sair da cachoeira você dá de cara com um animal. Que animal é? Você

faz alguma coisa?

Depois do encontro com o animal você vê anões! Que bonitinho! Quantos

são? Como são? Eles representam algo para você?

E, depois de apreciar o caminho, você se depara com um muro que parece

não ter fim, pois corta os dois lados da paisagem. Você é obrigado a pular. O que

vê do outro lado?

Esta é a história da brincadeira. Agora, as respostas. Não existe resposta

certa ou errada, na verdade, é só o significado, digamos, ‘oculto’ em cada

encontro.

O caminho, a estrada, é a vida. Se ela é de terra, geralmente a pessoa é mais

aventureira, do tipo que cai no mundo com uma mochila nas costas. Se o caminho

é de asfalto, a pessoa geralmente gosta de conforto, segurança, não encara numa

boa uma barraca no meio do mato. Prefere uma pousadinha com um chuveiro

quente. Já está valendo!

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O meu caminho é de asfalto, mas as arvores cobrem os dois lados da

estrada, que também é cheia de curvas, então, não consigo ver muito a frente. As

arvores são as pessoas que a gente encontra pelo caminho.

O Jarro é a família. Como a vemos. Quando ele é deixado no caminho

significa que se tem coragem de ir embora quando for preciso, trilhar o seu próprio

caminho. Quando ele é levado, indica um grande senso de responsabilidade para

com eles.

O meu jarro era de barro, trabalhado, antigo e bonito. Cheio de água pura e

cristalina, que matou minha sede. Tive que deixa-lo ali, mesmo não querendo.

Mas o fiz.

O Anel é o amor! Como o vemos. Se ele é precioso, se nos é querido. Se

ele é deixado para trás, deve-se tomar cuidado para não fazer isso na vida, pode

ser que está deixando escapar algo precioso. Quando está com outra pessoa, o

amor pode estar comprometido ou acredita que não tem chances de conquista.

Mas quem quer, corre atrás.

O meu anel eu vi de longe, deslumbrante, brilhava muito, de ouro amarelo

e pedras preciosas. Apaixonei imediatamente. Levei na mesma hora sem hesitar.

A cachoeira é o sexo. Quando entra nela, significa que a pessoa não tem

muitas inibições, nem medos, vai fundo. Se a pessoa fica olhando ou com medo

de entrar, tem algo dentro de si que deve ser resolvido.

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A cachoeira era linda, uma grande queda de água que caia e formava um

lago cristalino. Eu entrei sem medo e me refresquei deliciosamente.

O animal são os problemas que encontramos no caminho. Qual sua reação

perante eles? Como os vê? São grandes ou pequenos? Assustadores, ferozes ou

você enfrenta?

O animal que eu vi era um dragão. Grande, imponente, me amedrontou,

mas depois percebi que dragões, tecnicamente, não existem, era fruto da minha

imaginação.

Os anões são os amigos reais que consideramos. A reação deles é um

indicio de algo que pode ser melhorado na relação.

Os anões. Estavam felizes e vieram conversar comigo. Eram quatro.

O muro é a morte. A pessoa que não pula, é porque tem medo dela. Mas

como é o único caminho a seguir, tem que pular. Depois, você vê algo? O caminho

continua ou muda? Essa é a sua crença de vida após a morte.

Quando cheguei no muro, vi que era de pedra e antigo e como não tinha

jeito de atravessar sem pular, pulei porque tinha que fazer isso. Depois que eu cai,

tudo ficou escuro e voei no infinito.

Não vou colocar um ponto final porque ainda estou viva... Mas... as

despedidas, mesmo que momentâneas, são necessárias.....

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