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Seminário

Teoria da Decisão Judicial

30
série
Cadernos
do CEJ
REALIZAÇÃO
Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal
Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfamf

COORDENAÇÃO CIENTÍFICA
Ricardo Villas Bôas Cueva – Ministro do STJ

EDITORAÇÃO
CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS
Reinaldo Couto – Secretário

SUBSECRETARIA DE INFORMAÇÃO DOCUMENTAL E EDITORAÇÃO


Cyva Regattieri de Abreu – Subsecretária

COORDENADORIA DE EDITORAÇÃO
Milra de Lucena Machado Amorim – Coordenadora
Ariane Emílio Kloth – Chefe da Seção de Edição e Revisão de Textos
Luciene Bilu Rodrigues – Servidora da Coordenadoria de Editoração
Diagramação e Arte-Final
Helder Marcelo Pereira – Chefe da Seção de Programação Visual e Arte Final
Ilustração da Capa
Hélcio Rosa Corrêa

PROJETO GRÁFICO
Grau Design Gráfico

IMPRESSÃO
Coordenadoria de Serviços Gráficos do CJF
Brasília, dezembro de 2014.

Seminário
Teoria da Decisão Judicial

30
série
Cadernos
do CEJ
Copyright © Conselho da Justiça Federal – 2014
É autorizada a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte.
As opiniões expressas pelos autores não são necessariamente reflexo da posição do Conselho da Justiça Federal.

S471 Seminário Teoria da Decisão Judicial (2014 : Brasília, DF)


Seminário Teoria da Decisão Judicial : 23, 24 e 25 de abril de 2014, Brasília,
DF / Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários;
coordenação científica Ricardo Villas Bôas Cueva. – Brasília : CJF, 2014
186 p. : II. – (Série cadernos do CEJ ; 30).

ISBN 978-85-8296-009-7

1. Decisão Judicial. 2. Argumentação jurídica. 3. Hermenêutica. 4. Teoria


do direito. 5. Tutela. 6. Adjudicação. Título. II. Moraes, Cueva, Ricardo Villas
Bôas de. III. Série.

CDU 340.12

Ficha catalográfica elaborada pela Coordenadoria de Biblioteca do CEJ


Sumário

Dia: 23 de abril de 2014


Abertura
Felix Fischer 8
João Otávio de Noronha 9
Arnaldo Esteves Lima 12
Humberto Martins 12
Ricardo Villas Bôas Cueva 14

Casos difíceis e a criação judicial do Direito


Luís Roberto Barroso 15

Dia: 24 de abril de 2014


Análise econômica do Direito nas decisões judiciais
Sidnei Agostinho Beneti – Presidente de Mesa 28
Bruno Salama 29
Luciano Benetti Timm 39
José Reinaldo de Lima Lopes 53

Da interpretação da lei à interpretação do Direito nas decisões judiciais


Nino Oliveira Toldo – Presidente de Mesa 61
Tercio Sampaio Ferraz Jr. 62
Humberto Ávila 69
Marcelo da Costa Pinto Neves 76

Tutela judicial em matéria penal


Helena Elias Pinto – Presidente de Mesa 81
Geraldo Prado 82
Pierpaolo Bottini 91
Teorias da causalidade
Juarez Tavares 99

Dia: 25 de abril de 2014


Argumentação jurídica a partir da Constituição
Otavio Luiz Rodrigues Junior – Presidente de Mesa 109
Celso Campilongo 111
Raffaele De Giorgi 119
Marcus Faro de Castro 131

A justificação das decisões judiciais


Ricardo Villas Bôas Cueva – Presidente de Mesa 141
Ronaldo Porto Macedo Jr 142
Por uma Corte de precedentes
Luiz Guilherme Marinoni 153
Problema econômico da adjudicação ótima: a natureza do bem adjudicação
Fernando Araújo 162

Debates 174
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
Nino Toldo; Ricardo Villas Bôas Cueva; Luís Roberto Barroso; Felix Fischer; João Otávio de Noronha; Arnaldo Esteves Lima; e
Humberto Martins

Abertura dos Juízes Federais do Brasil, desembargadores


estaduais, demais integrantes da Magistratura,
FELIX FISCHER senhoras e senhores.
Presidente do Superior Tribunal de Justiça Honrado com o convite para presidir a mesa
e do Conselho da Justiça Federal de abertura do Seminário Teoria da Decisão
Judicial, minhas primeiras palavras são para ex-
pressar a alegria e compartilhar com os colegas


a confiança nos cursos e nos compromissos no
Ministro Roberto Barroso, do egrégio Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Supremo Tribunal Federal, Ministro João Otávio Justiça Federal, da Escola Nacional de Formação
de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça e e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, e das
Diretor-Geral da Escola Nacional de Formação cinco Escolas Federais da Magistratura.
e Aperfeiçoamento de Magistrados, Ministro O bom momento ora vivido por essas institui-
Arnaldo Esteves Lima, Ministro Humberto ções é reflexo do reconhecimento da importân-
Martins, Corregedor-Geral da Justiça Federal cia do seu papel constitucional de formadora de
e Diretor do Centro de Estudos Judiciários do Magistrados. O crescente volume de cursos ofe-
Conselho da Justiça Federal, Ministro Villas Bôas recidos e as estatísticas dos Centros de Estudos,
Cueva, na pessoa de quem cumprimento os de- da Enfam e das Escolas de Tribunais Regionais
mais Colegas Ministros do Superior Tribunal de Federais evidenciam o trabalho coletivo e repre-
Justiça aqui presentes, Desembargador Federal sentam a seriedade das propostas e, principal-
Fábio Prieto de Souza, Presidente do egrégio mente, o sucesso das parcerias firmadas.
Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na Vivemos uma realidade: uma nova era no
pessoa de quem cumprimento os desembarga- Judiciário nacional. Hoje, suas lideranças estão
dores federais aqui presentes, Desembargador conscientes da necessidade de formar e aperfei-
Federal Nino Toldo, Presidente da Associação çoar continuamente nossos magistrados para a
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incansável tarefa de julgar questões que envol- Nesse contexto, debater a estrutura, a elabora-
vem os mais preciosos bens do ser humano, entre ção e o impacto social e econômico das decisões
eles a vida, a liberdade, a saúde, a educação, judiciais, partindo da integração de magistrados
apenas para exemplificar. federais e de notáveis professores nacionais e es-
O juiz, guardião de promessas constitucionais trangeiros ao debate, constitui o esforço necessá-
nas palavras de Garapon, tem de estar otimamen- rio nessa permanente busca pelo aprimoramento
te preparado sob todos os aspectos, para decidir do Judiciário, ao concluir essas breves palavras e
da melhor forma possível. Por isso, é essencial apresentação do evento, saúdo os Magistrados,
estabelecer políticas públicas voltadas para a os insignes palestrantes, os servidores e demais
capacitação, a atualização e o aperfeiçoamento participantes deste seminário, desejando a todos
continuados, o que não é fácil em um país conti- uma excelente e produtiva jornada.”
nental como o nosso.

JOÃO OTÁVIO DE NORONHA quem presto minhas homenagens e também to-


Ministro do Superior Tribunal de Justiça dos os ministros do Superior Tribunal de Justiça
e Diretor-Geral da ENFAM de ontem, de hoje, de sempre.
Fui convidado pelo Ministro Villas Bôas Cueva,
Coordenador Científico deste evento para, em


nome do Conselho da Justiça Federal e dos
Ministro Felix Fischer, Presidente do Ministros do Superior Tribunal de Justiça, pro-
Superior Tribunal de Justiça e do Conselho da ferir algumas palavras em homenagem justa
Justiça Federal; Ministro Roberto Barroso, do e merecida ao Ministro Arnaldo Esteves Lima,
Supremo Tribunal Federal, que, com a sua pre- que hoje deixa o cargo de Corregedor-Geral da
sença, honra muito não só ao Superior Tribunal Justiça Federal. A ocasião não poderia ser mais
de Justiça, mas ao Conselho da Justiça Federal oportuna, visto que, neste seminário, nos pro-
e toda a Magistratura federal, Ministro Arnaldo pomos a refletir sobre questões diversas a serem
Esteves Lima, a quem tenho a missão de homena- consideradas na concepção das decisões judi-
gear em minha fala; Ministro Humberto Martins, ciais; questões, diriam, que vão além das soluções
querido Colega do Superior Tribunal de Justiça; dogmáticas e das aplicações da letra fria da lei,
Ministros Villas Bôas Cueva, Mauro Campbell, situações que o colega sempre enfrentou com
Paulo Sanseverino, Herman Benjamin e Sebastião serenidade e equilíbrio.
Reis, Ministra Assusete Magalhães e Ministro O Ministro Arnaldo Esteves Lima, cuja conduta
aposentado Cesar Asfor Rocha; Desembargador é pautada por valores éticos de justiça, moralida-
Federal, Fábio Prieto de Sousa, Presidente do de e respeito à causa pública é figura exemplar
Tribunal Regional Federal da 2ª Região, na pes- do julgador que tem a salutar preocupação de in-
soa de quem saúdo todos os desembargadores terpretar e aplicar a lei com o propósito ao qual
federais presentes; Desembargador Federal ela se destina: a Justiça. Casado com Maria José
Nino Toldo, Presidente da Associação dos Juízes e pai de João Paulo, por sinal cruzeirense, con-
Federais do Brasil, na pessoa de quem homena- terrâneo meu das Gerais, da região do Vale do
geio os juízes presentes, sobretudo os integrantes Jequitinhonha, nascido em Novo Cruzeiro, sendo,
da Justiça Federal, desembargadores estaduais, portanto, cruzeirense jovem ou novo cruzeirense.
demais integrantes da Magistratura; funcionários Bacharelou-se em Direito pela Universidade
do Conselho da Justiça Federal; saúdo, ainda, Federal de Minas Gerais, na turma de 1972.
o Ministro aposentado Hamilton Carvalhido, a Depois da graduação, além de lecionar, atuou
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em diversas áreas, foi assistente jurídico do ções desses treze meses em que o colega ficou
Ministério da Educação e Cultura, também mem- à frente da Corregedoria, da Turma Nacional
bro do Ministério Público do Distrito Federal, de Uniformização e do Centro de Estudos
onde exerceu a função de Defensor Público e de Judiciários. Como resultado dos vários processos
Promotor Substituto, ainda advogou até o ingres- relatados pelo Ministro Arnaldo Esteves Lima no
so na Magistratura, em agosto de 1979, como juiz colegiado do Conselho da Justiça Federal, des-
substituto da magistratura do Distrito Federal, e, tacam-se: primeiro, a aprovação do anteprojeto
em outubro do mesmo ano, como juiz federal. de lei que dispõe sobre a criação de cargos e
Por cerca de dez anos, judicou na Seção funções para a estrutura permanente das Escolas
Judiciária do Paraná e de Minas Gerais e, even- da Magistratura Federal; segundo, a aprovação
tualmente, de Mato Grosso e Mato Grosso do da resolução que regulamenta a retribuição pe-
Sul. Com a instalação do Tribunal Regional cuniária a magistrados federais que atuam como
Federal da 2ª Região, em março de 1989, foi docentes nas Escolas de Magistratura ou parti-
nomeado para a composição originária, cujos cipam de banca examinadora de concurso para
membros hoje, carinhosa e merecidamente, são juiz; e terceiro, a edição da Resolução n. 273, de
chamados de pioneiros. 2013, que trata dos critérios de distribuição de
No biênio de 2001/2003, presidiu aquele competência das varas federais especializadas em
Regional e, em razão disso, integrou, pela pri- crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e
meira vez como membro efetivo o Conselho de “lavagem de dinheiro” ou ocultação de bens,
da Justiça Federal. Em agosto de 2004, foi no­ direitos e valores, e naqueles praticados por or-
meado Ministro do Superior Tribunal de Justiça. ganizações criminosas.
Integrou, inicialmente, a Terceira Seção e a Além disso, fruto das Comissões de Trabalho
Quinta Turma, e, atualmente, compõe a Primeira da Corregedoria, sobressai a apresentação
Seção e a Primeira Turma. do anteprojeto de lei que cria a estrutura da
O magistrado também faz parte do Conselho Corregedoria-Geral para a administração dos bens
de Administração, da Corte Especial e do apreendidos no âmbito da Justiça Federal e, de
Conselho Superior da Escola Nacional de igual modo, a atualização do Manual de Normas
Aperfeiçoamento e Formação de Magistrados. de Padronização de Cálculos da Justiça Federal.
Em 18 de março de 2013, o Ministro Arnaldo, Convém registrar que a Turma Nacional de
atendendo ao apelo dos demais ministros do STJ Uniformização, na sessão realizada em dezembro
e da própria Magistratura federal, tomou posse no de 2013, foi o primeiro órgão da Justiça Federal
cargo de Corregedor-Geral da Justiça Federal, e, a utilizar a versão nacional do PJe. O primeiro
como bem assinalou o Presidente, Ministro Felix órgão de todo o Judiciário a utilizar a versão mais
Fischer, ao empossá-lo, o espírito institucional é recente do sistema. Nesses treze meses, a TNU
uma das principais marcas do Ministro Arnaldo. julgou 13.967 processos; desse total, 2.388 foram
Com efeito, foi esse espírito institucional, julgados pelo Colegiado e 11.545 foram decididos
presente em quase 35 anos de Magistratura, monocraticamente pelo seu Presidente. Quem é
que o levou a assumir a missão de ser, não o esse “Presidente”? O Corregedor-Geral Arnaldo
anteriormente chamado Coordenador, mas o Esteves Lima. Ressalto que esses números foram
Corregedor-Geral da Justiça Federal. Com seu atingidos sem que o Corregedor deixasse de par-
modo afável e conciliador, sempre com extrema ticipar dos julgamentos da Primeira Turma e da
dedicação à causa pública, imprimiu à função Primeira Seção do STJ.
correcional a marca da simplicidade e do bom Entre os muitos eventos realizados pelo Centro de
senso, como se viu, por exemplo, nas inspeções Estudos Judiciários com seus inestimáveis parceiros,
realizadas nos Tribunais Regionais Federais da merecem referência o Workshop Acesso à Justiça,
1ª e 5ª Regiões. Dez Anos de Juizados Especiais Federais; o Seminário
Cumpre, portanto, destacar algumas realiza- 25 Anos da Constituição Cidadã, Um Olhar para o
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Passado, Reflexões sobre o Presente e Construção cos; quanto à formação de formadores por meio
do Futuro; o Congresso Internacional de Direito de curso promovido no Rio de Janeiro, além de
Ambiental; o Segundo Encontro de Profissionais três turmas já previstas em conjunto com a Escola
da Informação; o V Workshop sobre o Sistema Nacional da Magistratura Francesa, em decorrên-
Penitenciário Federal; e o I Congresso Internacional cia de acordo de cooperação, que será assinado
sobre a Convenção de Viena para Compra e Venda no dia 23 de maio próximo.
Internacional de Mercadorias no Brasil. Por tudo isso e por muito mais realizações
Louvável, igualmente, o lançamento de apli- que deixei de aqui referir, receba, meu amigo,
cativo que permite a leitura de publicações do Ministro Arnaldo, de todos os que fazem parte
CEJ em dispositivos móveis e a pesquisa de to- do Conselho da Justiça Federal, esse pleito de
dos enunciados da Jornada de Direito Civil e de gratidão e reconhecimento por ter se dedicado
Direito Comercial, além daqueles resultantes do por inteiro a essa instituição. Saiba, Arnaldo, que
Congresso de Direito Ambiental. a sua prudência, foi a sua harmoniosa condução
Destaco, ainda, a assinatura de importantes que propiciou esse expressivo trabalho em prol,
acordos de cooperação firmados pelo Conselho não apenas do jurisdicionado, dos servidores e
da Justiça Federal, representado pelo seu magistrados da Justiça de primeiro e segundo
Presidente, o Ministro Felix Fischer, e pelo Centro graus, mas da sociedade brasileira, verdadeira
de Estudos Judiciários, representado pelo seu destinatária de nossa atividade diária.
Diretor, Ministro Arnaldo Esteves Lima. Sem medir palavras, confesso que tem sido um
Com o Senado Federal, assinou-se um acordo privilégio conviver e trabalhar com um amigo,
visando à troca de conhecimentos, formação e com um juiz, com um modelo de homem que
aperfeiçoamento de servidores de ambas as ins- é Vossa Excelência, pois sua larga experiência
tituições. Com a Associação Nacional dos Juízes responde, coerentemente, a escolha que fez pelo
Federais do Brasil – Ajufe, para uma parceria Direito; uma escolha de vida e de altos propósi-
nas áreas de ensino, pesquisa, editoração, infor- tos, tamanha contribuição que deixou em cada
mação e eventos. Com a Secretaria de Direitos lugar e em cada etapa por que passou.
Humanos da Presidência da República, represen- Assim, aproveito este momento de agradeci-
tada pela Ministra Maria do Rosário Nunes, ob- mento, de homenagem, para intimá-lo, Arnaldo
jetivando realizar ações conjuntas para a difusão Esteves Lima, independentemente da aposenta-
do conhecimento e experiência voltadas à pre- doria que se aproxima, a continuar oferecendo à
servação e enfrentamento do trabalho escravo e Justiça sua valiosa colaboração e a dignidade do
forçado no Brasil. seu trabalho, sempre exercido de forma indisso-
Registro, ademais, o estreitamento da parceria ciável da própria vida.
Brasil – França no combate ao tráfico internacio- Parabéns e muito obrigado, em nome da
nal, mediante a realização no CJF do Seminário Justiça Federal, em nome da Magistratura, por
Franco-Brasileiro sobre Cooperação Judiciária em tê-lo como integrante do Conselho da Justiça
matéria de criminalidade ligada aos grandes tráfi- Federal e, diria, da Magistratura Nacional.”
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ARNALDO ESTEVES LIMA quando exercemos, por esse período curto de tre-
Ministro do Superior Tribunal de Justiça ze meses, o cargo de Corregedor do Conselho.
Mas digo a Vossa Excelência, Ministro
Noronha, e a todos os magistrados, amigos e


servidores que aqui se encontram, que foi uma
Vou pedir licença a Vossa Excelência honra muito grande para mim, fiquei muito feliz
e aos eminentes membros da Mesa, cumprimen- nesse período e acho que realmente o Conselho
tando a todos, apenas para dizer que fui surpreen- de Justiça Federal é um órgão que tem uma im-
dido, realmente, porque não esperava ser home- portância muito grande no âmbito da Justiça,
nageado nesta oportunidade e com um discurso porque constitui um ponto de referência da
tão bonito e tão expressivo como fez o nosso emi- nossa Justiça Federal. Então, aqui, encontra-
nente colega e amigo, o Ministro João Otávio de -se a Justiça Federal como sua referência. Isso
Noronha. Só temos uma divergência no futebol, é muito importante para sua unidade, para sua
porque sou atleticano e Sua Excelência, cruzeiren- uniformidade naquilo que pode ser tratado uni-
se. Mas Sua Excelência brincou comigo: agradeço formemente. Tive a felicidade de participar do
muito as suas referências a mim lá no STJ. Eu, ago- Conselho por duas oportunidades, e, para encer-
ra, reciprocamente, estou dizendo que agradeço rar, agradeço muito ao Ministro Cueva por ter in-
muito a Sua Excelência as referências a mim, aqui. dicado o Ministro Noronha para me homenagear
Porém, foi muito além não só do meu merecimen- e agradeço a todos.”
to e daquilo que efetivamente procuramos fazer

HUMBERTO MARTINS Excelentíssimos Senhores Desembargadores


Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Federais, Estaduais, advogados, integrantes do
Corregedor-Geral da Justiça Federal Ministério Público, senhores, amigos, é com mui-
e Diretor do Centro de Estudos Judiciários ta alegria que atendo ao chamado do Ministro
Arnaldo Esteves Lima, exemplo da Magistratura
brasileira pelas suas qualidades pessoais e intelec-


tuais, homem que só sabe, a cada dia, construir
Ministro Felix Fischer, Presidente do mais e mais amigos – é uma grande virtude do
Superior Tribunal de Justiça e do Conselho da ser humano: fazer amigos.
Justiça Federal; Ministro Roberto Barroso, confe- Fico feliz por vários motivos neste seminário
rencista desta noite do Supremo Tribunal Federal; tão importante, com tema crucial: teoria da de-
Ministro João Otávio de Noronha, Diretor-Geral cisão judicial. Fico feliz, primeiramente, por rea-
da Enfam; Ministro Arnaldo Esteves Lima, da lizar as minhas primeiras atividades acadêmicas
Corregedoria-Geral da Justiça Federal e home- como Diretor do Centro de Estudos Judiciários
nageado neste seminário; Ministro Villas Bôas do Conselho da Justiça Federal, na qualidade de
Cueva, Coordenador Científico deste conclave; novo Corregedor-Geral da Justiça Federal. Como
Ministro Cesar Asfor Rocha, ex-Presidente do já foi colocado, o CEJ tem-se firmado como o
Superior Tribunal de Justiça; Ministros do STJ: espaço institucional para a construção de pen-
Napoleão Nunes Maia Filho, Herman Benjamin, samentos prospectivos sobre o futuro da Justiça
Mauro Campbell, Paulo Sanseverino, Assusete Federal no Brasil. Ele é mais que um órgão de
Magalhães, Sebastião Reis Júnior e Sérgio Kukina. formação e de pesquisa; é um espaço contínuo de
Quero também saudar todas as convidadas e parti- reflexão no melhor sentido do termo. O presente
cipantes deste evento e peço vênia para saudá-las evento possui a marca do Ministro e estudioso
na pessoa da minha esposa, Rita Martins. Ricardo Villas Bôas Cueva, exemplar nesse senti-
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do. Ele reúne notáveis pensadores da filosofia e Federal marcará a abertura deste evento e não
da teoria do Direito do Brasil e do exterior. poderia ser mais atual: discutir a criação judicial
Abro um parêntese para registrar a presença do Direito, ou seja, a produção de normas jurí-
do meu amigo Ministro Raul Araújo, registrando dicas a partir das decisões judiciais concretas. É
também a presença do Desembargador Nilson debater o papel crescente e evidente da jurispru-
Castelo Branco, em cujo nome saúdo todos os dência em nosso sistema jurídico.
desembargadores estaduais. A importância da jurisprudência do Supremo
Os conferencistas aqui reunidos terão um arco Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça
de questões que englobam desde a justificação no contexto do nosso ordenamento jurídico em
lógica das decisões judiciais até o debate sobre muito ultrapassa o que tínhamos antes, quando o
as consequências econômicas da atividade judi- saudoso Ministro Victor Nunes Leal se dedicou a
cial. Os temas estão na ordem do dia, é o que é estudar e propor inovações no Sistema Judiciário
exigido do dia a dia do operador do Direito, e são brasileiro, como a construção das súmulas. Um
de grande relevância tanto para os acadêmicos exemplo do que acabo de afirmar é que, nas pala-
quanto para os práticos do Direito. E esta é a vras de Seabra Fagundes, o Ministro Victor Nunes
função, Senhor Presidente do Centro de Estudos Leal foi o ministro que reestruturou a Revista
Judiciários e Senhor Presidente da Ajufe, Nino Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal
Toldo: permitir um debate prospectivo e aberto Federal, para que a sua lógica irradiasse aos diver-
em prol da melhoria da Justiça Federal no Brasil, sos tribunais estaduais que compõem o nosso siste-
unindo o Magistrado ao cidadão brasileiro. ma judiciário nacional com a firmeza de estarmos
Ainda oferto uma nota no sentido de que este fazendo história ao reescrever a jurisprudência de
evento agregará às atividades do CEJ a parceria forma contínua. Agradeço pela oportunidade de
com a Enfam, que tem sob a sua direção-geral o abrir este brilhante evento e, na oportunidade,
Ministro João Otávio de Noronha. O objetivo é também saudar o Ministro Luís Roberto Barroso e
solidificar vínculos, uma vez que a reflexão rela- os demais presentes.
cionada à pesquisa deve se encontrar e ter como Finalizo desejando que todos os presentes
consequência lógica a formação do magistrado. tenham um excelente evento ao longo da se-
O CEJ e a Enfam são evidentemente sinérgicos. mana. Será uma atividade muito proveitosa,
Vamos aproveitar essa sinergia. Vamos, cada vez tenho certeza. E cito o grande pensador da
mais, aproximar a cidadania da energia de cada Paraíba, Aníbal Teixeira, que diz que os feitos
um que opera no sentido do aproveitamento e dos grandes homens são como hinos patrió-
da melhoria da aplicação do verdadeiro direito. ticos, quanto mais repetidos mais admirados.
Anoto que o tema da conferência do Ministro Vivamos este conclave.”
Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA Difíceis e a Criação Judicial do Direito, não podia
Ministro do Superior Tribunal de Justiça ser mais oportuno para inaugurar o seminário com
esse título: Teoria da Decisão Judicial. Como todos
sabemos, passamos, num período muito rápido,


de uma situação em que o juiz era um mero apli-
Nas pessoas dos Ministros Felix Fischer cador mecânico da Lei, o chamado “juiz boca da
e Luís Roberto Barroso, saúdo as autoridades. lei”, para um quadro em que o juiz aplica todo
Cumprimento todos os presentes. Agradeço ao o Direito e, mais que isso, cria o Direito não no
Min. Arnaldo Esteves Lima pela participação molde do realismo jurídico nem do paradigma
nesta homenagem e interesse em assistir a esta positivista do Direito, mas no contexto do neo-
palestra do nosso mestre, que já era mestre an- constitucionalismo e do pós-positivismo. Daí a ne-
tes de ser ministro do Supremo Tribunal Federal, cessidade de falarmos em uma Teoria da Decisão
Luís Roberto Barroso, que dispensa apresenta- Judicial que permita, de algum modo, refletir, de
ções, como todos sabem, mas o seu currículo é maneira estruturada e consistente, sobre os novos
invejável, então, eu não posso me dispensar de modos de criação e aplicação do Direito.
lê-lo, ainda que brevemente. Ele é doutor e li- A aplicação dos princípios como mandamen-
vre docente pela Universidade do Estado do Rio tos de otimização das normas jurídicas e uso de
de Janeiro; é mestre em Direito pela Yale Law técnicas de ponderação ou sopesamento aos ca-
School; é visiting scholar da Harvard Law School; sos em que há colisão de princípios têm sido usa-
é professor visitante da UnB; professor titular de dos e abusados em contextos muito diversos. Daí,
Direito Constitucional da UERJ; conferencista mais uma vez, a importância de hoje ouvirmos o
visitante de várias universidades e tem sido o professor Barroso, que tem sido o grande expo-
Ministro do Supremo Tribunal Federal que todos ente do neoconstitucionalismo no Brasil e tem
conhecem por seus brilhantes votos. feito as necessárias distinções que certamente nos
O tema sobre o qual ele vai discorrer, Casos orientarão na nossa prática cotidiana.”
Casos Difíceis e a
Criação Judicial do Direito


Meus queridos amigos Ministro
Ricardo Villas Bôas Cueva e Ministro João Otávio
LUÍS ROBERTO BARROSO de Noronha, nas pessoas de quem eu cumpri-
Ministro do Supremo Tribunal Federal mento todos os presentes. Tenho muito prazer e
muita honra de estar aqui e de compartilhar, com
todos, algumas ideias e reflexões sobre esse tema,
casos difíceis e a criação do Direito.
Eu tenho o hábito de falar de pé. Considero que
esse é um direito subjetivo da plateia. Os oradores
que falam de pé, normalmente, sabem melhor a
hora de terminar porque as pernas avisam. Porém,
um pouco pela hora, pelo dia cheio e, sobretudo,
porque gostaria de fazer desta nossa reunião mais
uma conversa entre profissionais, quase uma con-
versa entre amigos, porque os tenho muitos na
plateia, e para dar mais informalidade à conversa,
e menos pompa de uma conferência, eu vou pedir
vênia para falar daqui, sentado mesmo, e acredito
que a visualização é boa.
Devo advertir que não costumo exceder o
meu tempo, mas pretendo percorrer uma traje-
tória longa, num tempo relativamente curto, tran-
quilizem-se todos, embora nada nesta vida seja
perfeito. Portanto, não conseguirei ser tão breve
quanto o aluno a quem a professora determinou
que escrevesse uma redação sobre religião, sexo
e nobreza, ao que o aluno, com grande poder de
síntese, lavrou “– Ai, meu Deus, como é bom! –
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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disse a princesa, ainda ofegante”. Eu considero A Lei de Anistia foi uma decisão política legítima,
que essa é a maior demonstração de capacidade tomada pelos lados contrapostos para conduzirem
de síntese que eu ainda não consegui atingir – uma transição pacífica do Brasil para a democra-
mas devo dizer que essa é a meta. cia – proposição número um. Proposição número
O capítulo 1 da minha conversa, num even- dois: a Lei de Anistia foi uma inaceitável imposição
to sobre Teoria da Decisão Judicial, é intitulado dos que detinham a força para imunizarem-se dos
“A verdade não tem dono”. E gostaria de contar crimes que haviam cometido. Eu conheço inúme-
uma brevíssima história que li, há um tempo, nos ras pessoas esclarecidas e bem intencionadas que
Estados Unidos. A história de dois amigos, que se filiam à primeira proposição e conheço outra
se passa no Alasca. Dois amigos que estavam to- quantidade de pessoas esclarecidas e bem intencio-
mando cerveja em um bar e, como previsível, nadas que se filiam à segunda proposição. Portanto,
conversavam sobre mulheres, depois passaram o ponto de partida da nossa conversa, hoje, é que
para esportes diversos e, depois de certa quanti- muitas vezes não haverá uma verdade a ser desco-
dade de cerveja, estavam falando sobre religião. berta ou a ser revelada, seja na vida, seja no pro-
Um deles era religioso, o outro era ateu. A certa cesso de realização do Direito.
altura, o ateu fala para o religioso: “Essa história Segundo comentário que eu gostaria de fazer,
de Deus... não é que eu nunca tenha tentado o segundo capítulo da nossa conversa colhe inspi-
acreditar, eu já tentei mais de uma vez. Ainda, ração em uma proposição de um professor ameri-
recentemente, eu estava perdido no meio de uma cano, recentemente falecido, e é uma proposição
tempestade de neve, eu estava congelando, não que causou certa polêmica que é a ideia de que,
achava o meu caminho de volta e eu sabia que como regra geral, existe uma única resposta certa
eu iria morrer. Então, eu me ajoelhei no chão e para os problemas jurídicos. Eu, evidentemen-
falei: Deus, se você existe, venha me ajudar e me te, não estou tratando das situações banais da
salva”. E o religioso fala para ele: “Bom, então vida em que caiba uma ação de despejo ou em
depois disso, você se tornou um homem crédulo, que a pretensão punitiva esteja, evidentemente,
porque, pelo que vejo, você está vivo e bem aqui prescrita. Estou falando de situações um pouco
do meu lado”. E ele falou: “Estou, mas que Deus mais complexas. E se fossem outras as circunstân-
que nada. Deus não apareceu. O que aconteceu cias, eu exploraria, com um pouco mais de pro-
é que vinha passando um casal de esquimós, eles fundidade, esta ideia da possibilidade de única
me viram, me aqueceram, me mostraram o ca- resposta correta; porém, o que eu acredito ser
minho da saída e, por isso, eu estou vivo. Nem possível afirmar é que, para um intérprete, em
sinal de Deus”. dado momento e lugar, existe sim uma resposta
Portanto, a primeira premissa das ideias que justa e correta, ou seja, subjetivamente é possível
eu quero sustentar aqui é que as pessoas veem o falar que exista uma resposta correta, embora em
mundo de diferentes pontos de observação. E em muitas situações não seja possível afirmar que
muitas matérias não é possível produzir uma ver- objetivamente exista uma única resposta correta,
dade. Em muitas matérias teremos que conviver, como no exemplo de Deus ou como no exemplo
na melhor das hipóteses, com um lindo verso de da anistia que dei anteriormente. Mas a ideia po-
um poeta espanhol, Ramón de Campoamor, em sitivista tradicional de que o direito é composto
que ele escreveu: “En este mundo, Señor, no hay de uma moldura, que a moldura oferece diversas
verdad ni mentira. Todo tiene el color del cristal con possibilidades de solução e que o intérprete esco-
que se mira”. Portanto, muitas vezes, as coisas na lhe a que melhor lhe apraz, esta certamente não
vida têm a cor da lente pela qual se está olhan- corresponde ao meu ponto de vista.
do. E quem trafega pelo mundo do Direito tem A ideia kelseniana, a ideia do positivismo tra-
que conviver com a circunstância de que, muitas dicional romano germânico de Kelsen, de que a
vezes, não haverá uma certeza absoluta ou uma decisão judicial no seu momento final é sempre
verdade plena. um ato político porque é uma escolha dentro das
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Cadernos
do CEJ 17

possibilidades da moldura, com essa visão não as mesmas circunstâncias de todos os preceden-
estou de acordo. A discricionariedade judicial no tes do Supremo de declinação de competência,
sentido de livre escolha de uma possibilidade não quando o parlamentar renuncia não há nenhuma
existe. O juiz tem o dever de produzir a solução razão para, no caso de Eduardo Azeredo, pro-
correta, a solução justa e a solução adequada- duzir-se uma decisão diferente, a menos que se
mente constitucional dentro da sua visão, dentro queira mudar a jurisprudência e os precedentes
da sua própria perspectiva. E isso é muito impor- como eu mesmo propus fazê-lo, mas aí se muda
tante em uma discussão sobre teoria da decisão para a frente, e não para trás. Portanto, penso
judicial. Há um caso que me lembro de ter lido, que faz parte desse dever de integridade respeitar
nos Estados Unidos, de um juiz que era conheci- os precedentes ou divergir fundadamente e ser
do porque no momento da decisão final jogava coerente nos próprios princípios, porque esse é
uma moeda: se desse coroa ele decidia de um um dever moral do juiz e é um direito subjetivo
jeito, se desse cara ele decidia de outro jeito. E da parte. Sou uma pessoa e, muito antes de ser
o Corregedor, Ministro Humberto Martins, lá das juiz, sou avesso às subjetividades em geral.
paragens anglo-saxões foi até o juiz e determinou O Brasil não é um país que convive bem com
que ele parasse com aquela história de jogar a a subjetividade. Onde existe uma decisão subje-
moeda. Ele, então, cumprindo obedientemente a tiva no Brasil – eu dizia isso quando era advoga-
decisão, passou a julgar de acordo com a sua pró- do –, do seu amigo de infância ao presidente do
pria convicção. Conta a história que um tempo Tribunal, alguém tem um depoimento para dar.
depois o Corregedor voltou e pediu ao juiz que Portanto, a objetividade é a segurança.
por favor voltasse a decidir
jogando com a moeda, por-
que daquela forma ele esta-
va acertando pelo menos a
[...] um juiz tem deveres de integridade no sentido de que ele
metade das decisões. tem que respeitar o sistema jurídico, tem que ter atenção aos
Pois bem, a conclusão precedentes quando decide.
desse nosso tópico sobre se
existe ou não uma única res-
posta correta para um problema jurídico nos ca- Sou professor da UERJ e, quando o programa
sos difíceis, e sobre eles falaremos, é: como uma de pós-graduação da UERJ começou a ficar con-
regra geral, não existe objetivamente uma única corrido, sugeri e prevaleceu depois a não iden-
resposta correta; mas, para um intérprete, existe tificação das provas, porque acaba o pedido, é
uma única resposta correta, ele não escolhe li- uma libertação. Você poder fazer o que é correto,
vremente – e mais que isso: um juiz tem deveres como todos nós devemos fazer, sem ter que expli-
de integridade no sentido de que ele tem que car, dizer; simplesmente fazer. Mesmo depois que
respeitar o sistema jurídico, tem que ter atenção cheguei ao Supremo, não consegui entender por
aos precedentes quando decide. Ele pode até di- que, no processo tal, houve desmembramento e
vergir, mas não pode ignorar e, de parte disso, por que, no processo qual, não houve desmem-
além do dever de integridade, o juiz tem o dever bramento; temos que ter um critério e, portanto,
de coerência, ou seja, as premissas e postulados a minha proposta é: chegou, quem não tem foro
que ele estabelece vinculam-se a ele nas decisões por prerrogativa de função desmembra imediata-
futuras que ele irá produzir, porque este é um di- mente, sem nenhum grau de subjetividade.
reito subjetivo da parte e dos advogados: ter um Embora haja uma crença brasileira de que é
juiz isonômico, e não um juiz que escolhe o resul- bom ter esses pequenos poderes, acho um hor-
tado de acordo com qualquer outro critério que ror tê-los. Bom é possuir critérios objetivos. No
não seja o de filiar-se a determinados princípios. caso de renúncia de parlamentar também propus
Para citar um exemplo concreto, presentes um critério objetivo. Pode ser momento de re-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
18

cebimento da denúncia e depois não se poderá que, no modelo tradicional de interpretação ju-
mais renunciar; será ineficaz; poderá ser o final rídica que não morreu, apenas não é suficiente,
da instrução ou a qualquer momento, a única havia uma papel específico reservado para a nor-
coisa ruim é ser caso a caso, porque aí vem a dis- ma; um papel específico e reservado para os fatos
cricionariedade, a subjetividade, a incapacidade e um papel específico e reservado para o juiz.
de explicar à sociedade por que em determinado A norma trazia, em si, a solução que o cons-
caso foi feito de uma maneira e em outro caso, tituinte ou o legislador havia concebido abstra-
de outra maneira. tamente para resolver os problemas. Os fatos
De modo que, ao falar sobre teoria da deci- existiam para serem subsumidos naquela norma,
são judicial, outra ideia que me ocorre é que, no para que se produzisse o silogismo que produzia
Brasil, por muitas circunstâncias, sempre que for a decisão judicial. A norma era a premissa maior;
possível ter um critério objetivo, é melhor do que os fatos, a premissa menor; e a sentença era a con-
deixar à discricionariedade subjetiva. A verda- clusão. E o juiz, ainda no modelo tradicional, era o
de não tem dono. Subjetivamente existe sempre profissional que desempenhava uma função técni-
uma resposta correta, e o ideal é minimizar a dis- ca de conhecimento; revelar, no caso concreto, a
cricionariedade do juiz. solução que estava pré-pronta na norma jurídica.
Pois, meus queridos ami-
gos, para o bem e para o mal,
[...] três mudanças de paradigma que projetaram o Judiciário esse tempo passou. É claro
e alteraram [...] o papel do juiz: superação do formalismo que muitas situações ainda
jurídico, advento de uma cultura pós-positivista e passagem da podem ser resolvidas pelo mé-
Constituição para o centro do sistema jurídico. todo tradicional, mas não na
interpretação constitucional
em geral e muito menos na
Eu comento algumas mudanças ocorridas no interpretação de casos difíceis. Há três grandes
Direito contemporâneo, no mundo em geral e mudanças de paradigma que revolucionaram o
no Brasil, em particular, que mudaram o modo Direito contemporâneo e o modo como o pen-
como se pensa e se pratica o Direito e, de certa samos e o praticamos, mesmo que não tenhamos
forma, aumentaram, potencializaram a subjeti- nos dado conta.
vidade judicial, a discricionariedade judicial – se A primeira mudança de paradigma foi a supe-
quiserem usar esse termo – mas sempre lembran- ração do formalismo jurídico. A ideia de que a lei,
do que discricionariedade judicial não significa a norma jurídica traz em si uma justiça imanente
o mesmo que discricionariedade administrativa, à lei como expressão da razão. Essa era uma pre-
que é livre escolha entre alternativas legítimas. missa filosófica, e talvez ideológica, com a qual
Penso que o juiz não tem livre escolha. Ele tem convivemos ao longo de boa parte do século XX.
dever de produzir a solução correta, justa e cons- E, nesse ambiente em que a lei era a expressão
titucionalmente adequada para o caso concreto. da justiça, o juiz não desempenhava nenhuma
Até recentemente, em geral e no Brasil em função criadora do Direito. Pois hoje sabemos
particular, era possível falar de um universo tradi- que a lei é, com frequência, a expressão do in-
cional da interpretação jurídica. Um universo que teresse que se tornou dominante em determina-
era, e de certa forma ainda é, caracterizado pelo do momento e lugar. Sabemos que, para muitos
formalismo jurídico, pelo positivismo jurídico e problemas jurídicos, a solução não se encontra
pelo legalismo, pois o formalismo, o positivismo plenamente pronta na lei; portanto, o formalismo
e o legalismo entraram em crise nas últimas duas jurídico sucumbe à modernidade.
ou três décadas do século passado, particular- A segunda grande mudança de paradigma foi
mente no Brasil, um fenômeno que em outras o advento de uma cultura pós-positivista. O posi-
partes do mundo já havia acontecido antes. É tivismo jurídico fazia com que o Direto coubesse
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Cadernos
do CEJ 19

integralmente dentro das normas jurídicas. Mas, processo contínuo e crescente de publicização.
neste universo em que a solução para os proble- Primeiro, pela introdução de normas de ordem
mas muitas vezes não se encontra integralmente pública em áreas como locação, direito do traba-
nas normas jurídicas, o juiz precisa ir procurá-la lho, direito de família já existia, mas progressiva-
em outro lugar, e é nesse ambiente que o Direito mente essa publicização vai se aproximando do
se aproxima da filosofia moral, que é a teoria da século XX com uma constitucionalização ampla
justiça, em que o juiz se aproxima da filosofia do Direito e, portanto, o Direito passa a ser lido
política, que é a sua legitimidade democrática e à luz da Constituição. Esse fenômeno da constitu-
o seu dever de realizar os fins públicos previstos cionalização do Direito não significa propriamen-
constitucionalmente. te a vinda de normas do Direito infraconstitucio-
Portanto, a separação por incisão profunda nal para a Constituição, mas a leitura do Direito
que o positivismo jurídico fazia entre o Direito e Civil, do Direito Penal, do Direito Processual à
a Filosofia, entre o Direito e os outros domínios luz da Constituição, sob a lente da Constituição.
do conhecimento, não mais pode subsistir por- Essa foi uma revolução profunda que ocorreu
que o juiz já não consegue resolver os problemas no mundo em geral que tem no mundo romano-
na crença de que as fórmulas jurídicas fossem -germânico como marco uma decisão célebre do
suficientes, pois era uma crença, nem era uma Tribunal Constitucional Federal alemão de 1958,
verdade. Quando a Suprema Corte americana conhecida como o Caso Lüth, que defendeu, pela
invalidava toda a legislação de proteção social, primeira vez, essa leitura constitucional do Direito
invocando a cláusula constitucional da liberda- em geral e, naquele caso concreto, paralisou a
de de contratar, esse era um rótulo jurídico que incidência de uma norma específica do Código
encobria uma opção claramente ideológica. Era: Civil alemão em nome da liberdade de expressão.
eu sou um defensor do liberalismo e contrário à Portanto, essas foram as três mudanças de pa-
legislação de proteção social, mesmo que votada radigma que projetaram o Judiciário e alteraram,
pelo Congresso. em grande medida, o papel do juiz: superação
Portanto, o discurso formalista e o discurso po- do formalismo jurídico, advento de uma cultura
sitivista muitas vezes puramente encobriam uma pós-positivista e passagem da Constituição para
escolha que já estava previamente feita pelo juiz, o centro do sistema jurídico.
só que encoberta; de modo que o pós-positivismo Num ambiente qualificado como este, eu cer-
não minimiza o papel da norma, não minimiza o tamente não disse nenhuma novidade, embora
papel da lei escrita, mas reaproxima a interpre- talvez possa ter arrumado as ideias de uma forma
tação da lei, da teoria, da justiça e traz, para o como eu as penso, mas na vida é sempre bom
centro do sistema jurídico, os direitos fundamen- pavimentarmos os conceitos essenciais para não
tais – e não vou me aprofundar nessa discussão. haver erro.
Por fim, a terceira grande mudança de pa- Até o Hino Nacional adorei, pois havia um te-
radigma foi a passagem da Constituição para o leprompter com a letra, o que poupa os cidadãos
centro do sistema jurídico. O século XX assistiu que estão na mesa de qualquer tipo de constran-
a uma ampla publicização do Direito. Todas as gimento, mas cada um na vida carrega as suas
categorias tradicionais do Direito que vinham do dificuldades.
século XIX e que pavimentaram boa parte da tra- Lembro-me de uma história – quem é do Rio
jetória do século XX vinham do Direito Privado, de Janeiro pode já ter ouvido – que era con-
de Savigny, de Ihering. O século XIX começa com tada por um desembargador estadual do Rio
o Código Civil napoleônico, de 1804, e termina de Janeiro Nagib Slaibi, também professor de
com o BGB, o Código Civil alemão, de 1900, o Direito Constitucional, que contava que, em uma
século do Direito Privado. Os protagonistas do Câmara do Tribunal de Justiça do Rio, havia um
Direito eram o proprietário e o contratante. desembargador que sempre que ia votar, abria
Ao longo do século XX, o Direito passa por um uma gaveta e olhava um papelucho, fechava a
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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gaveta e a trancava. Chegava outro caso impor- para termos um exemplo, até a Constituição de
tante, ele abria a gaveta, olhava o que estava 1988, havia uma forma de se constituir família
escrito, trancava. Três, dezenas de vezes ele fazia legítima: pelo casamento; agora, existe família
isso. Esse pobre homem morreu ainda no exer- legítima pela união estável e existem as famílias
cício da judicatura e os seus colegas de Câmara, monoparentais. O Supremo reconheceu a famí-
probos e íntegros como eram, não resistiram, no lia constituída por uniões homoafetivas e existe
entanto, à tentação voaram na gaveta, arromba- a família do casamento que não é proibido ser
ram-na e pegaram o papelucho para ver o que convencional; portanto, o casamento continua
dizia o papelucho. E lá dizia assim: “ex tunc: para a ser uma instituição vigente, difíceis não são os
frente, ex nunc: para trás”. Cada um, na vida, sabe primeiros trinta anos, mas depois vamos nos ajus-
as dificuldades que carrega; portanto, é sempre tando. De modo que, onde havia unidade, agora
bom assentarmos as ideias essenciais. existe uma pluralidade.
Essas transformações que acabo de descrever Assim ficou a vida. Quem acompanhou um
produzem um impacto sobre a interpretação jurí- caso envolvendo o cantor Roberto Carlos e um
dica em geral e sobre a interpretação constitucio- jornalista que escreveu uma biografia sobre a
nal, em particular, até porque desnecessário que eu trajetória dele, verificou uma situação em que o
sublinhe que a vida foi ficando progressivamente cantor foi a juízo para dizer: eu não quero que
mais complexa, mais rica, mais plural; mas o mun- publique a minha biografia, porque é a minha
do, hoje, é muito mais complicado do que era há imagem, é a minha privacidade, é a história da
dez anos, há vinte ou trinta anos. Para quem é ger- minha vida e não quero que conte. E o jorna-
manófilo, há um caso relativamente recente do lista diz: Espera aí! É a minha liberdade de ex-
Tribunal Constitucional alemão, em que um cida- pressão e é o direito de informação do público.
dão nascido do sexo masculino se considerava, no Portanto, temos um litígio em que os dois lados
entanto, um transexual, uma alma feminina e esse invocam normas constitucionais que estão vá-
cidadão, nascido do sexo masculino, mas psiquica- lidas e em vigor. De modo que o método tradi-
mente uma mulher, no entanto, no corpo de um cional de solução dos problemas jurídicos, que
homem, apaixona-se por uma mulher. Então, ele, é subsunção dos fatos à norma, simplesmente
um homem fisicamente, mas uma mulher psicolo- não serve para essa situação porque existe uma
gicamente, apaixona-se por uma mulher e ambos pluralidade de normas divergentes postulando
desejam celebrar um casamento entre pessoas do incidência nesse caso. Portanto, as técnicas tra-
mesmo sexo. Vão, então, ao registro civil e o oficial dicionais de interpretação e decisão, evidente-
olha para um e olha para o outro e diz: mas o senhor mente, tornaram-se insuficientes.
é um homem e ela é uma mulher. E respondem: Pois bem, para lidar com esses fatos novos des-
“Não! Na verdade, eu sou uma mulher, não sou se mundo mais complexo, mais plural e às ve-
um homem. Mas a minha porção mulher é lésbica zes um pouco esquisito, o Direito Constitucional
e apaixonou-se por esta mulher. Portanto, nós que- concebeu novas categorias teóricas que povoam,
remos fazer um casamento entre pessoas do mesmo hoje, a atuação dos juízes e dos tribunais, como
sexo”. E o oficial, compreensivamente estarrecido, a normatividade dos princípios. Quem abriu a
negou o pedido. Sei que o caso percorreu todas Lei de Introdução ao Código Civil, que mudou
as instâncias e chegou ao Tribunal Constitucional de nome, agora se chama Lei de Introdução às
Federal alemão, que permitiu que fosse feito um Normas do Direito Brasileiro vai encontrar o dis-
casamento entre pessoas do mesmo sexo. positivo que diz: quando a lei for omissa, o juiz
Apenas estou referindo ao fato de que essa decidirá o caso de acordo com a analogia, os
história não teria acontecido há trinta anos, há costumes e os princípios gerais do Direito.
vinte, talvez não teria acontecido há dez anos. A Os princípios gerais do Direito eram a terceira
vida ficou mais interessante, mais plural e mais fonte subsidiária do Direito. Hoje em dia, como
complicada, compreensivelmente. No Brasil, regra geral, interpreta-se o Direito a partir dos
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Cadernos
do CEJ 21

princípios, não nesse panprincipiologismo criti- a regra que o legislador ou o constituinte criou.
cável, mas não se interpreta uma regra jurídica Se ele é coparticipante do processo de criação,
contrariando um princípio, interpreta-se uma re- tem que demonstrar a trajetória intelectual que
gra jurídica concretizando-se um princípio. percorreu e por que aquela solução que produziu
De modo que há o reconhecimento de que os é constitucionalmente adequada e convencer o
princípios são normas – e normas vinculantes. auditório, ao qual a sua decisão se destina, que
E, ao contrário de normas programáticas, isso aquela era a melhor solução. O auditório do juiz
é uma relativa novidade, como é uma relativa de primeiro grau é o seu tribunal, o auditório
novidade a existência de colisões de direitos fun- do tribunal, numa questão constitucional, é o
damentais, como é uma relativa novidade a uti- Supremo Tribunal Federal, e o Supremo Tribunal
lização da ponderação como uma técnica pos- Federal não é o auditório de si próprio porque
sível para resolver as colisões de direitos, como tem que ter uma necessária interlocução com a
é a reabilitação da argumentação jurídica como sociedade e ser capaz de demonstrar a ela por
uma necessidade da função judicial, sobretudo que tal interpretação constitucional é a mais ade-
nos casos em que o juiz desempenha uma fun- quada para o caso.
ção criadora. De modo
que o Direito, nos últimos
vinte anos no Brasil, talvez [...] o Supremo Tribunal Federal não é o auditório de si
menos, incorporou muitas próprio porque tem que ter uma necessária interlocução
categorias que são relati- com a sociedade e ser capaz de demonstrar a ela por que tal
vamente novas, que não interpretação constitucional é a mais adequada para o caso.
eram ensinadas na facul-
dade quando a maioria de
nós estava nos bancos escolares. Portanto, a vida ficou mais complicada e
Nesse ambiente, a norma – lembram-se que eu o Direito perdeu muito da objetividade (falsa)
falei do papel da norma dos fatos e do intérpre- com a qual ele saíra do século XX: a crença na
te – já não traz mais em si plenamente a solução objetividade plena do Direito e na neutralidade
para os problemas. Às vezes, ela traz apenas um do intérprete. Infelizmente, essas categorias não
início de solução, um princípio, um conceito ju- existem plenamente, embora continuem a existir
rídico indeterminado. Os fatos não ficam mais desejavelmente.
esperando para serem subsumidos na norma; eles É nesse universo que se situa o nosso capítulo
passam a fazer parte da normatividade, a ideia de seguinte, que diz respeito aos casos difíceis, em
norma para ser associada à conjugação do relato contraposição, por certo, à ideia de casos fáceis.
abstrato do texto com a realidade concreta. E Casos fáceis são aqueles para os quais existe uma
o juiz, que tinha que decidir o caso do cantor solução pré-pronta na norma jurídica. A vida po-
Roberto Carlos, ninguém poderá dizer que ele dia ser sempre assim, aos 70 anos, o servidor pú-
não estaria ali sendo um coparticipante do pro- blico passa para a inatividade compulsoriamente.
cesso de criação do direito porque simplesmente Se o queridíssimo Ministro Arnaldo Esteves im-
não havia uma regra pronta para ele aplicar. Ele petrar um mandado de segurança quando com-
tem que dizer por qual razão vai privilegiar o di- pletar 70 anos e disser: “Eu continuo lúcido, con-
reito de privacidade naquele caso, ou por qual tinuo sendo um grande juiz, não tem nenhuma
razão vai prestigiar a liberdade de expressão na- razão para eu me aposentar, portanto, eu tenho
quele caso, e dar os seus fundamentos. o direito líquido e certo de continuar abrilhan-
E é por isto que a argumentação jurídica se tando este tribunal”, infelizmente, o julgador não
tornou importante: porque a função judicial já poderá acolher o pedido dele porque a norma
não estará legitimada apenas na regra tradicional constitucional é inequívoca: aos 70 anos ele pas-
de separação dos poderes, em que o juiz aplica sa à inatividade. Se o ex-Presidente Luís Inácio
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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Lula da Silva houvesse pretendido registrar sua do seu gabinete de trabalho. E ele respondeu: “É
candidatura para um terceiro pleito presidencial, que dizem que dá sorte mesmo para quem não
a Justiça Eleitoral não teria nenhuma dificulda- acredita”. Portanto, se o Niels Bohr achava isso,
de, jurídica pelo menos, de indeferir o pedido na cultivo essa minha outra superstição.
medida em que a Constituição é claríssima ao só Os casos difíceis surgem muitas vezes por for-
admitir uma reeleição. ça da ambiguidade da linguagem, às vezes há
Portanto, existem casos fáceis nessa vida, gra- dificuldades de saber o que é tributo, o que é
ças a Deus, mas não é deles que vamos cuidar servidor público, o que é relevância e urgência,
aqui. Vamos cuidar dos casos difíceis, que são os interesse social, ou, em homenagem ao meu
casos para os quais não há uma solução pré-pron- querido Herman Benjamin, impacto ambiental.
ta. Quais são esses casos? Procurei sistematizá-los Muitas vezes esses conceitos jurídicos indetermi-
em três grandes categorias. Preciso confessar a nados geram uma dificuldade e impõem ao juiz
todos que eu divido tudo em três categorias, é uma concretização do seu sentido no caso con-
uma superstição que eu carrego pela vida desde creto. Calamidade pública, para fins de dispensa
que eu estudei Direito Tributário e aprendemos de licitação, por exemplo, pode, muitas vezes, ser
que havia três espécies de tributo: imposto, taxa um conceito extremamente complexo, para não
e contribuição de melhoria. E vivíamos felizes e mencionar princípios como dignidade da pessoa
em paz, até que um dia alguém disse que emprés- humana, a ideia de justiça, a própria razoabilida-
timo compulsório também é tributo. Romperam de, moralidade e eficiência.
a barreira dos três. Nunca mais houve consenso Portanto, a concretização de certos termos
sobre a classificação dos tributos porque vieram vagos ou ambíguos pode gerar casos difíceis, no
as contribuições sociais, e alguns classificam sentido de que nos extremos é muito fácil saber se
como imposto, taxa, empréstimo compulsório e há ou não calamidade pública. Mas há uma área
contribuições, dentro das contribuições colocam cinzenta que pode gerar problemas; a linguagem
contribuições de melhoria e as demais contribui- gera problemas em geral. Há um exemplo que
ções. Só que as demais contribuições não têm gosto de citar, é um pouco chulo, mas muito
nada a ver com a contribuição de melhoria, ou emblemático. Sou de Vassouras, uma cidade no
seja, nunca mais houve consenso e acredito que interior do estado do Rio de Janeiro, tinha uma
é porque romperam a barreira dos três. barbearia e, em uma ocasião, colocaram uma
tabuleta de publicidade, ce-
dendo aos tempos modernos,
O que significa direito à vida? Ou o que significa dignidade da pessoa que dizia: “Corto cabelo e
humana? Ou o que significa liberdade religiosa? E, evidentemente, pinto”. E aí a freguesia, pelas
surgirão casos difíceis no sentido de que não vai haver uma solução dúvidas, não frequentava o
pré-pronta, vai ter que ser construída argumentativamente. estabelecimento até que uma
alma caridosa, um literato da
cidade, orientou o seu Pedro,
De modo que eu conservo essa superstição o barbeiro, e a tabuleta passou a dizer: “Corto e
e se alguém disser: “Esse sujeito é um professor pinto cabelo”; ele viu renascer a clientela e a vida
de Direito Constitucional, cultivando esse tipo voltou a ficar normal. A linguagem é um proble-
de bobagem”, eu gosto de citar o ganhador do ma na vida em geral, e no Direito em particular.
Prêmio Nobel de Física, o físico quântico cha- A segunda causa desses casos difíceis é mais
mado Niels Bohr, um dinamarquês. Na porta do complexa: é a existência na sociedade de desa-
gabinete de trabalho dele tinha uma ferradura e cordos morais razoáveis. Pessoas esclarecidas e
alguém perguntou por que ele, um cientista, um bem intencionadas pensam muitas vezes de ma-
agnóstico, um homem que defendia a racionali- neira radicalmente diferente acerca das mesmas
dade plena na vida, tinha uma ferradura na porta questões. Questões como: eutanásia, suicídio as-
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Cadernos
do CEJ 23

sistido, transfusão de sangue para pessoas que ção, que, no modo como eu trabalho, significa
professem a religião Testemunha de Jeová. Essas identificar quais regras, quais normas postulam
questões, não sei se chegam ao STJ, mas estou incidência, quais são as soluções possíveis e fazer
falando de coisas que já cruzaram o meu cami- as concessões recíprocas para produzir a solu-
nho como advogado. O próprio hospital da UERJ ção constitucionalmente adequada, preservando
tinha uma consulta para saber se podia ou não o máximo de cada norma ou, em certos casos,
fazer transfusão de sangue compulsória em pes- fazendo uma escolha, porque envolve sacrificar a
soas que não queriam aceitar a transfusão de san- incidência de uma norma em um caso concreto.
gue. Descriminalização de drogas leves. Portanto, A ponderação, muitas vezes, envolve esco-
existem matérias em que pessoas esclarecidas e lhas. Não escolhas discricionárias. De novo, o juiz
bem intencionadas pensam diferentemente e vão tem que demonstrar por que aquela é a solução
interpretar de maneira diferente. correta, justa e constitucionalmente adequada
O que significa direito à vida? Ou o que sig- na sua visão, informada pela integridade e pela
nifica dignidade da pessoa humana? Ou o que coerência. Mas envolverá escolhas e, em muitos
significa liberdade religiosa? E, evidentemente, casos, envolverá escolhas trágicas. E todos os juí­
surgirão casos difíceis no sentido de que não vai zes que lidam com postulações de tratamentos
haver uma solução pré-pronta, vai ter que ser médicos ou postulações que envolvam entrega
construída argumentativamente. Sem mencionar de medicamentos caríssimos lidam com escolhas
as circunstâncias das colisões de normas jurídi- trágicas, porque está decidindo.
cas. Quem acompanhou o debate que existe so- A ponderação aí não é o direito à vida de um
bre a construção de duas usinas hidrelétricas na com princípios orçamentários; frequentemente é
Amazônia, acompanhou um debate sobre duas o direito à vida com direito à vida – essa é a pon-
normas constitucionais: uma que diz que o desen- deração que se está fazendo, é a escolha de quem
volvimento nacional em geral e o desenvolvimen- vai viver e de quem vai morrer, tipicamente uma
to regional são fins da República Brasileira, o que escolha trágica. Escolha trágica, um pouco mais
envolve aumentar a matriz energética, e o que bem-humorada que eu uso para exemplificar a
diz que a proteção do meio ambiente e, conse- ponderação, é a história contada por um conhe-
quentemente, das comunidades que vivem ali às cido meu, passa-se em Minas, o sujeito comprou
margens daquelas regiões que seriam alagadas, um Opala (a história é velha), de não sei quantos
também são protegidas constitucionalmente. De cilindros, que era o melhor carro da época, colo-
novo, uma situação de colisão de direitos funda- cou o Opala na estrada de Alfenas, deu o máximo
mentais, em que não há uma solução pré-pronta. da velocidade do Opala, subiu uma colina, quan-
Um caso interessante no Rio, o caso Doca do ele começou a descer, vinha atravessando um
Street, em que o sujeito foi condenado por ho- enterro. E ele, em altíssima velocidade, não tinha
micídio, cumpriu sua pena e não queria que en- como frear, pensou: “Ai, meu Deus do céu, vou
cenassem na televisão um programa contando a mirar no caixão”. Essa é muitas vezes a ponde-
história da vida dele. De novo: privacidade com ração. É fazer a escolha menos trágica diante do
liberdade de expressão e a questão de saber se quadro que se apresenta.
ele tem direito ao esquecimento ou a questão de Aqui chego ao capítulo final, para alívio de
saber se crime pode ser tratado como um fato da todos. Nesse contexto, em que houve aquelas
vida privada. Duas visões de mundos diferentes mudanças de paradigma que eu descrevi, e sur-
novamente para as quais o juiz não pode, como gem esses casos difíceis e todas as novas catego-
dizia meu querido mestre José Carlos Barbosa rias de interpretação, como normatividade dos
Moreira, julgar a lide empatada e condenar o es- princípios, colisões, ponderação e reabilitação
crivão nas custas. Portanto, ele terá que construir da argumentação jurídica, nós vivemos no Brasil,
argumentativamente uma solução, o que, muitas particularmente, embora seja um fenômeno mun-
vezes, terá de fazer por meio de uma pondera- dial, mas particularmente acentuado no Brasil,
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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um fenômeno amplo de judicialização da vida e O primeiro caso em que eu fui advogado pe-
das relações políticas em geral. rante o Supremo Tribunal Federal foi a questão
E, aqui, uma qualificação à judicialização sig- das uniões homoafetivas. Nesse caso, como se
nifica uma transferência de poder político das ins- sabe, havia um vácuo normativo, não havia nor-
tâncias tradicionais, o Legislativo e o Executivo, ma jurídica cuidando das uniões homoafetivas.
que são eleitos, para o Poder Judiciário, cujos Mas, a homossexualidade é um fato da vida, as
membros, como nós bem sabemos, não são elei- pessoas felizmente se apaixonam e, portanto, as
tos. Falei da judicialização como fenômeno mun- pessoas entravam em uniões homoafetivas. E,
dial, mas no Brasil tem duas causas específicas: a portanto, o Direito tinha que dar uma solução
primeira, uma constitucionalização abrangente. A para esse problema.
Constituição brasileira trata do sistema tributário, Alguns juízes tratavam as uniões homoafeti-
do sistema previdenciário, da separação de pode- vas como sociedades de fato, tal como se tratava
res, de índios, de meio ambiente, de criança e de antigamente a união entre homem e mulher que
adolescente, de idosos e, consequentemente, uma não eram casados – só os mais antigos lembrarão
Constituição que trata da variedade de questões isso. E, de outro lado, alguns juízes equiparavam
que a Constituição brasileira trata, potencializa as uniões homoafetivas às uniões estáveis con-
a judicialização, porque constitucionalizar uma vencionais. Portanto, por via de uma ação cons-
matéria é, de certa forma, retirá-la da política e titucional, pediu-se ao Supremo que, em nome
trazê-la para o Direito. Se há uma norma constitu- do princípio da dignidade da pessoa humana, do
cional, há uma pretensão potencialmente baseada princípio da igualdade, dentre outros, se assegu-
na Constituição que pode ser deduzida. rassem às uniões homoafetivas o mesmo direito
Além disso, temos um sistema de controle de das uniões estáveis convencionais.
constitucionalidade em que todos os juízes de E assim fez o Supremo Tribunal Federal, ins-
Direito e todos os tribunais interpretam e apli- tituindo um regime jurídico que não havia para
cam a Constituição. E ainda temos um sistema o tratamento dessas relações – o que fez muito
que comporta ações diretas e um longo elenco bem. O que vale na vida são os nossos afetos e as
de legitimados no art. 103 da Constituição, que pessoas devem ter o direito de colocar o seu afeto
inclui todas as confederações sindicais e todas as onde mora com o seu desejo. Surpreendente na
entidades de classes de âmbito nacional. decisão do Supremo Tribunal Federal foi a una-
De modo que, no Brasil, é preciso que o in- nimidade. O Supremo, por unanimidade, equipa-
teresse seja muito “chinfrim” para que não se rou as uniões estáveis às uniões homoafetivas. É
consiga que alguém o leve ao Supremo Tribunal bem verdade, eu estava lá, ninguém me contou:
Federal por ação direta ou por via de controle a linguagem corporal de uns três votos, eu diria,
difuso. Assim, o sistema brasileiro de constitu- era de grande desconforto, mas, mesmo assim,
cionalidade e a constitucionalização abrangente houve uma adesão à posição que prevaleceu, ti-
levam a uma judicialização ampla das questões. picamente de criação judicial de um direito que
E eu devo dizer, mas isso seria motivo para um não havia sido deliberado, nem pelo constituinte,
tema para uma outra palestra, que acredito que nem pelo legislador.
a judicialização e um grau moderado de ativismo Pelo contrário, foi preciso superar uma difi-
judicial têm servido bem ao País. culdade criada pelo constituinte, porque o art.
Eu escolhi para esse comentário final do tema 226, §3º, da Constituição dizia que união estável
da judicialização três casos – e vou ser muito bre- é entre homem e mulher. Por sorte, no histórico
ve – em que eu atuara como advogado perante daquele dispositivo, o dispositivo foi inserido na
o Supremo Tribunal Federal, e três casos em que Constituição para acabar com a discriminação
atuei como juiz, um pouco para comparar como contra a mulher não casada. Portanto, e foi o
eu vi a judicialização e certo grau de ativismo argumento que sustentei, não se podia utilizar
judicial funcionarem. um dispositivo inclusivo da mulher para tratá-lo
série
Cadernos
do CEJ 25

como sendo excludente dos homossexuais, por- E o terceiro caso foi a questão do nepotismo
que nem tinha passado pela cabeça do constituin- em que o CNJ editou uma norma vedando por-
te aquela questão. tanto a nomeação de parentes para cargos em
Portanto, esse foi tipicamente um caso de cria- comissão. Os Tribunais de Justiça dos Estados
ção do Direito, um caso polêmico e um avanço, desrespeitaram amplamente dizendo que só por
que só se poderia obter por via judicial, porque lei se podia criar aquela norma. A AMB, numa
em um processo político majoritário isso não pas- postura louvável, entrou com uma ação decla-
saria. E acredito que é um direito fundamental ratória de constitucionalidade para declarar a
das pessoas, como disse, colocarem o seu afeto constitucionalidade da proibição (portanto, uma
onde mora o seu desejo, e não terem a sua rela- defesa institucional do Judiciário, e não fisioló-
ção depreciada por isso. gica, que penso que foi muito feliz) e o Supremo
O segundo caso, ainda mais polêmico e mais di- Tribunal Federal disse que não precisava de lei,
vidido, foi a questão da interrupção da gestação de porque decorria do princípio da impessoalidade
fetos anencefálicos. O Código Penal só previa. O e do princípio da moralidade a proibição e que,
Código Penal criminaliza o aborto (o que faz muito portanto, a resolução do CNJ meramente decla-
mal), mas isso seria motivo para outra conversa. rava, explicitava alguma coisa que já decorria
Todos são contra o aborto, não conheço ninguém de um princípio constitucional – e neoconstitu-
que seja a favor do aborto – eu inclusive. Portanto, cionalismo da veia, cria-se uma regra extraída
ninguém acha que o aborto é uma boa política diretamente de um princípio constitucional com
pública de contracepção, que se deve incenti- a chancela do Supremo.
var ninguém a fazer aborto;
pelo contrário, o Estado deve
prover educação sexual, deve
[...] o sistema brasileiro de constitucionalidade e a
prover preservativos e ampa-
constitucionalização abrangente levam a uma judicialização
ro para a mulher que quer ter
ampla das questões.
o filho, mas a criminalização
do aborto é uma lastimável
política pública altamente
discriminatória contra as mulheres pobres. Não A minha experiência como juiz: Caso Donadon.
importa o que cada um tenha como convicção Eu havia votado num caso precedente, porque
para si; estou falando como política pública. a Constituição textualmente diz que, no caso de
E nenhum país democrático e desenvolvido condenação criminal, quem deve decretar a per-
do mundo criminaliza o aborto. Fechado esse pa- da do mandato é a Casa Legislativa. Está dito
rêntese, discutia-se a interrupção de gestação de com todas as letras na Constituição. É péssimo
feto anencefálico, saber se uma mulher que faz o o tratamento da matéria, mas é o que está dito.
diagnóstico da inviabilidade fetal no terceiro mês Portanto, votei nessa linha. Vem o Caso Donadon,
de gestação deve ser obrigada a manter aquela do qual não participei. Ele, condenado a mais de
gestação até o nono mês para, no momento do treze anos de prisão em regime inicial fechado,
parto, gerar um filho que não vai ter, porque o a Câmara não decreta a perda do mandato. Aí
coração para de bater segundos depois e o cére- vem um mandado de segurança impetrado por
bro simplesmente não se forma. um parlamentar, sustentando que, naquele caso,
Aí, as duas exceções ao crime de aborto no a mesa da Câmara é que devia ter decretado a
Código Penal eram estupro e grave risco de vida perda. Aquela não era uma questão política, era
para a mãe. O Supremo Tribunal Federal, ao admi- uma decisão puramente declaratória.
tir a interrupção da gestação no caso de feto anen- E vem esta situação (muitos aqui são juí-
cefálico, criou uma terceira exceção, não prevista, zes): a tentação de fazer o bem e, portanto, eu
à criminalização do aborto no Código Penal. bem achava que era uma decisão política do
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
26

Congresso, mas há uma norma constitucional que contribui muito e depois são contratadas pelos
diz que o Parlamentar que ficar afastado mais de Governos eleitos. Quer dizer, é um toma-lá-dá-cá,
120 dias perde o mandato automaticamente por é um sistema imoral.
declaração da mesa, e esse Parlamentar tinha que Eu nem seria contra, em tese, em qualquer
cumprir mais de dois anos em regime fechado; circunstância à participação de uma empresa no
portanto, sem possibilidade de comparecer ao debate eleitoral financiando, mas você tem que
Congresso. Então, havia uma saída constitucio- ter regras, o que você não pode é ter a empresa
nal: condenação em regime fechado é incompa- que financiou hoje ser contratada por contrata-
tível com a conservação do mandato e, portanto, ção direta logo depois da eleição – que é o que
nessa hipótese, a declaração tem de ser feita pela acontece. Isso é fechar os olhos para uma situação
mesa. E dei a medida cautelar. de grave imoralidade administrativa e, portanto,
Houve uma certa grita, mas iniciou-se um diá­ a Constituição chancela esse tipo de restrição, há
logo institucional muito interessante. Primeiro: uma demanda social para isso e aqui poderíamos
o Senado Federal aprovou uma emenda cons- abrir para fazer uma outra conferência para dis-
titucional consertando essa matéria (ainda não cutir o que deve ser feito quando o processo re-
passou na Câmara), de que, depois da conde- presentativo, o sistema representativo, a política
nação judicial transitada em julgado por deter- majoritária não é capaz de atender às demandas
minados crimes, não se deve submeter a uma sociais evidentes, e saber se em certos casos o
deliberação política, o que é óbvio, e a Câmara Judiciário não se torna democraticamente mais le-
dos Deputados mudou a regra, instituiu a votação gitimado para certas transformações que o proces-
secreta, levou a matéria novamente a Plenário e so político majoritário, mas essa é outra discussão.
decretou a perda do mandato. E o mandado de E o último caso era um caso dos precatórios. O
segurança perdeu o objeto; final feliz para todo Supremo declarou (eu não estava lá ainda) a in-
mundo. Acho que, mais do que um caso de ju- constitucionalidade da Emenda Constitucional n.
dicialização, foi um caso interessante de diálogo 62. Quem é do ramo sabe que, pela primeira vez,
institucional em que as instituições interagiram. estados e municípios estavam pagando precató-
rios à União e, com a declara-
ção de inconstitucionalidade,
[...] acredito que seja importante assinalar que aquele juiz criou-se um vazio normativo
tradicional que se utilizava apenas do material jurídico, pelo que vai tornar a vida pior. O
menos nos casos difíceis, é uma figura historicamente Ministro Luiz Fux, Relator,
superada. propôs uma modulação em
cinco anos, mas nos quinze
anos da modulação proposta
O segundo caso mais polêmico ainda é o do na emenda se pagava o estoque, nos cinco anos
financiamento de campanha eleitoral por empre- não tem como pagar o estoque, a menos que se
sa, para o qual ainda não há uma decisão final. crie um modelo de transição.
Mas a verdade é que há uma imensa (esse é um Portanto, o meu voto é cinco anos até porque
ambiente profissional, e não político, por isso es- não podia voltar atrás, já estava declarada incons-
tou me sentindo à vontade de conversar sobre titucional, mas o Supremo tem que dizer o que os
esses assuntos) demanda na sociedade por uma entes devem fazer nesses cinco anos para cumprir
reforma política que diminua essa centralidade a Constituição e, portanto, o Supremo não pode
do dinheiro, o peso do dinheiro, essa circunstân- devolver para a sociedade alguma coisa pior que
cia que está por trás de todos os grandes escânda- recebeu e, assim, tem que estabelecer um modelo
los de corrupção do País. E, portanto, o Ministro de transição. Eu propus as medidas que achava
Luiz Fux era o Relator, fez um levantamento: é que deviam ser de transição; o Ministro Toffoli
um universo restrito de empresas que contribui, pediu vista; mais dois ministros se manifestaram
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Cadernos
do CEJ 27

dizendo claramente que não é papel do Supremo tas na norma, vale-se da norma, na parte em que
resolver esse problema, é um papel do Congresso. ela fornece um início de solução. Portanto, o ma-
Mas, desde a Constituinte de 1988, o Congresso terial jurídico sempre está presente na vida de um
não resolve esse problema e, nas duas vezes em juiz. Não há como tomar uma decisão – a meu
que tentou, o Supremo declarou inconstitucional, ver – sem reconduzi-la, em alguma medida, a uma
então está na hora de resolvermos. norma da Constituição ou a uma norma jurídica
Mas aí são diferentes concepções da vida. Há infraconstitucional. O juiz não cria Direito. Dessa
juízes com boas razões que pensam que não é forma, o material normativo é muito importante.
papel do Judiciário resolver esse tipo de proble- Em segundo lugar, a moda agora é dizer que
ma. Penso exatamente o contrário: é papel do a ideologia do juiz também influencia a decisão.
Judiciário resolver problemas que não estão sen- Evidentemente, que sim. Depende do que se
do resolvidos nas outras instâncias, mas o interes- quer dizer como ideologia do juiz. O juiz, como
sante é que, de novo, a verdade não tem dono; qualquer pessoa, tem uma ideia do que seja o
de novo não há objetivamente uma única respos- bem, do que seja correto, do que seja justo. E,
ta correta. É que existem bons argumentos para evidentemente, a realização da justiça, do bem
os dois lados. Eu fui advogado por muito tempo e do correto faz parte do universo, do cardápio
e eu seria capaz de sustentar indistintamente as de escolhas de um juiz. E um juiz também se situa
duas teses com bons argumentos, embora uma, num universo institucional. Portanto, as questões
evidentemente, morasse no meu coração. É um institucionais fazem diferença. A separação de
pouco como a história do arremesso de anão. Eu poderes, os limites da sua legitimidade democrá-
sou capaz de defender os dois lados igualmente. tica para atuar e, por último, a opinião pública.
Deve ser porque tenho alma de advogado. Qualquer um desses três temas, a atitude le-
Ministro Villas Bôas Cuevas, é uma boa hora de galista, a atitude ideológica e a atitude institucio-
acabar. Vossa Excelência sabe o que é ter alma de nal, daria uma conferência que, evidentemente,
advogado? Vou dar um exemplo real – alguém já a essa hora da noite não a faria mais. Porém,
deve ter me ouvido contar essa história. Quando acredito que seja importante assinalar que aquele
eu vim morar em Brasília, os meus filhos eram mais juiz tradicional que se utilizava apenas do mate-
jovens e queriam fazer um passeio de barco pelo rial jurídico, pelo menos nos casos difíceis, é uma
Lago Paranoá. Portanto, eu providenciei uma lan- figura historicamente superada.
cha. Minha mulher, sabiamente, saiu do progra- E melhor que encobrir a circunstância de que
ma. Então, foram eu e as crianças e levamos uma o juiz leva inúmeros fatores extrajurídicos em
caixa de isopor, que tinha água, coca-cola e umas conta é fazer exatamente o contrário, é explici-
duas cervejas. Ao chegarmos ao barco, apoio, a tar quais são os fatores extrajurídicos que estão
certa altura, meu pé em cima da caixa de isopor sendo levados em conta.
– o isopor devia ser de péssima qualidade – que Dizem que George Washington produziu o
ruiu, virou fragmentos de isopor, cacos de isopor. mais breve discurso de posse na Presidência
Volto para casa, segurando aqueles cacos de iso- dos Estados Unidos, com 130 palavras, e que
por, e falo para a minha mulher que alguém havia William Harrison produziu o mais longo discur-
pisado no isopor e mostro como ele tinha ficado. so de posse na Presidência dos Estados Unidos
Mas as mulheres têm alma de Ministério Público. E, com 8.300 palavras, pronunciadas numa noi-
portanto, a pergunta dela foi automática: – Quem te muito fria e tempestuosa em Washington.
pisou? E eu respondi: – Estou aqui para defender o William Harrison morreu trinta dias depois de
isopor, e não para acusar ninguém. Isso é ter alma uma gripe gravíssima que contraiu naquela noi-
de advogado, ou seja, que lado você escolhe estar te. Considero que essa é a maldição que recai
na vida de uma maneira geral. sobre os oradores que falam além do seu tempo.
Um último comentário que faço: esse juiz que Assim, quero agradecer, comovido, a presença
decide questões que não têm respostas pré-pron- de todos e despedir-me.”
Luciano Benetti Timm, Sidnei Beneti, Bruno Salama e José Reinaldo de Lima Lopes

Análise Econômica do Direito nas Decisões Judiciais

SIDNEI BENETI
Ministro do Superior Tribunal de Justiça


Cumprimento o Ministro Villas Bôas Cueva, que coordena este seminário, professores pre-
sentes, eminentes conferencistas deste primeiro painel. É uma satisfação muito grande estar designado
para dirigir esta parte dos trabalhos. Quero agradecer muito a confiança que me foi depositada em
me convocarem para esta apresentação.
O painel diz respeito à Análise econômica do Direito nas decisões judiciais. Temos três expositores
que tratarão desse tema – os eminentes professores Bruno Salama, Luciano Benetti Timm e José
Reinaldo Lima Lopes.
O professor Bruno Salama, nome mais que conhecido dos interessados nesta área, é um eminente pro-
fessor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Dirige o Centro de Direito e Governança Econômica;
também é membro do Corpo de Apelações do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional;
tem uma formação universitária aprimorada e ressaltam algumas atividades realizadas; Mestre e Doutor de
Berkeley, School of Law, nos Estados Unidos, e também da Universidade de São Paulo; professor honorá-
rio na Universidade de San Martin, no Peru; e, antes de entrar para a carreira acadêmica, desempenhou
uma importante atividade no direito corporativo, na Sullivan & Cromwell, em Nova Iorque, e também
em Pinheiro Neto Advogados, em São Paulo.
Peço licença para dizer ao eminente professor que a referência ao seu nome veio a mim muito antes de
conhecê-lo, por intermédio de filha minha, que também trabalha nesse mesmo escritório de advocacia.
Também um pesquisador importante na área bancária, corporativa e econômica, sobretudo no
direito do desenvolvimento. Há uma enorme série de publicações e de atividades docentes, palestras,
conferências, cursos realizados. Estamos, portanto, diante de um dos grandes nomes da área do Direito,
da Economia e da área corporativa.”
série
Cadernos
do CEJ 29

de uma discussão de custo e, portanto, do que


é eficiente ou do que é ineficiente. E essas di-
ferenças de método nos põem, portanto, um
diagnóstico que podemos chamar de “diagnós-
tico senso comum” ou “diagnóstico ponto de
partida”, que é justamente o diagnóstico da
impossibilidade da combinação dos dois dis-
cursos ou dos dois pensares. Talvez, então, o
jurista e o magistrado falem de Direito; o eco-
nomista fale de Economia. Será mesmo?
Hoje, apresento-lhes, aqui, argumentos que
desconstroem essa separação rígida entre o
BRUNO SALAMA Direito e a Economia. E a fim de tornar mi-
Professor da Fundação Getúlio Vargas-SP nha apresentação o mais inteligível possível,
resumirei tudo o que direi aqui em três frases,
que são, na realidade, os três pontos ou as três


proposições que lhes trago esta manhã.
Em primeiro lugar, gostaria de agra- Proposição n. 1: O argumento econômico
decer a gentilíssima introdução do Senhor pode ser útil para melhor interpretar e aplicar
Ministro Sidnei Beneti, o convite que me foi fei- o direito;
to pelo eminente Ministro Villas Bôas Cueva; e Proposição n. 2: O argumento econômico já
gostaria de saudar os professores José Reinaldo existe nas decisões judiciais;
Lima Lopes, Celso Campilongo, Luciano Timm Proposição n. 3: O aumento no uso do ar-
e os demais presentes. gumento econômico em juízo no Brasil não é
O título da minha palestra é O argumento um modismo nem uma ideia fora de lugar, mas
econômico nas decisões judiciais. E quando se uma decorrência da estrutura jurídico-política
fala em argumento econômico e decisões ju- do nosso País, após 1988.
diciais, desde logo, vemo-nos diante do que O restante da minha apresentação se resume
parece ser uma contradição, ou uma impos- ao detalhamento dessas três proposições, ao
sibilidade. E essa impossibilidade decorre que se seguirá uma breve conclusão. Tentarei
das diferenças de método entre o Direito e fazer isso o mais brevemente possível; aliás,
a Economia. Enquanto o Direito é exclusiva- convém ligar o cronômetro para que eu possa
mente verbal, a Economia é verbal e mate- me ater ao que pretendo fazer.
mática. Enquanto o procedimento da análise Começando, a primeira proposição: o argu-
jurídica é marcadamente hermenêutico, o mento econômico pode ser útil para melhor
procedimento da análise econômica é forte- interpretar e aplicar o Direito. Ora, na realida-
mente empírico. Enquanto a aspiração última de, aqui há dois conceitos: primeiro, o próprio
do Direito é a Justiça; a aspiração última da conceito de argumento econômico, porque é
Economia é a ciência. preciso definir do que estou falando; e em se-
Finalmente, e mais importante que tudo, gundo lugar, explicar como esse argumento é
enquanto uma crítica jurídica se dá a partir útil para melhor aplicar e interpretar o Direito.
da legalidade, uma crítica econômica se dá a Comecemos pela definição do que seja o
partir do custo. Isto é, o jurista trabalha prin- argumento econômico. Vamos iniciar pelo que
cipalmente a partir do mandamento, para bus- não é. O argumento econômico, tal qual eu o
car identificar o que está obrigado, o que está concebo, não é apenas o reconhecimento de
permitido e o que está proibido. O economista, que certas evoluções legais foram, em parte,
por sua vez, trabalha marcadamente a partir influenciadas por considerações econômicas.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
30

Isso seria incontroverso, seria trivial. Fala-se Vou citar só uma: o autocontrato. A lei diz
em necessidades econômicas que movem o que o autocontrato é aquele em que a mes-
Direito já há muito tempo. Cito um exemplo ma pessoa atua com dois chapéus diferentes
para os comercialistas: o surgimento da em- (por exemplo, procurador e parte em nome
presa de responsabilidade limitada. Todos os próprio). O Código Civil determina que, no
comercialistas de cem anos atrás e um pouco autocontrato, estamos diante de um negócio
mais, quando defenderam a criação de uma jurídico anulável. Ora, por que o Código Civil
sociedade de responsabilidade limitada, que estabelece que estamos diante de um negócio
foi feita a partir do decreto de 1919, diziam que jurídico anulável? Porque pode haver conflito
aquele movimento legislativo refletia “necessi- de interesses e abuso de direito.
dades econômicas”. A economia trata desse tipo de problema
com outro nome, com uma
concepção um pouco di-
[...] o argumento econômico em juízo é apropriação explícita ferente, mas que chega ao
[...] de lições da economia, especialmente da microeconomia, mesmo lugar. Para um eco-
como instrumento para melhor aplicar os mandamentos nomista, esses problemas
contidos nas regras ou princípios jurídicos. de conflito de interesses
poderiam ser problemas de
“principal-agente”. Mas o
Mas o fato de uma regra jurídica ou de um fato é que o problema do conflito de interesses
instituto jurídico ser inspirado por considera- (que é posto na teoria econômica) está refle-
ções econômicas não significa que juízes, ad- tido em muitas regras jurídicas, e, como dito,
vogados e promotores utilizarão argumento em uma infinidade delas.
econômico; embora possam fazê-lo. Cito como O mesmo se pode dizer de construções da
exemplo uma decisão recente do Supremo dogmática jurídica. Por exemplo: a doutrina de
Tribunal Federal que, ao admitir a constitu- que há um dever de mitigar o próprio dano.
cionalidade da nossa lei de arbitragem, aduz Esse é um dever que se relacionaria ao princí-
na decisão que essa constitucionalidade é re- pio da boa-fé, previsto no art. 422 do Código
forçada também pela ideia de que fortalecer o Civil. Por que haveria um dever de mitigar o
instituto de arbitragem no Brasil seria necessá- dano? Quem causa o dano pode estar em uma
rio para o ambiente de negócios. posição superior para mitigar o valor da perda.
Eu então reitero: o reconhecimento de que O economista dirá: essa mitigação do dano por
certas evoluções legais foram influenciadas por quem pode fazê-lo a menores custos é eficien-
considerações econômicas é trivial. Mas o que te. O jurista dirá: a mitigação do dano decorre
estou chamando de argumento econômico não da boa-fé.
é bem isso. O que estou querendo dizer? Que o ar-
Tampouco estou falando do reconhecimen- gumento econômico em juízo não se limita
to de que muitas regras jurídicas pressupõem apenas ao reconhecimento de que os indi-
que os indivíduos podem agir oportunistica- víduos podem agir tal qual prevê o modelo
mente (ou maximizando os seus interesses ou de comportamento econômico, porque esse
adotando o modelo de homo-economicus – o comportamento autointeressado já está pro-
que seria parecido, embora, a rigor, diferente). fusamente refletido nas regras jurídicas e na
Por quê? Porque em muitos casos esse modelo doutrina jurídica.
comportamental com o qual trabalha a eco- Há uma terceira coisa, que não estou cha-
nomia, o modelo do indivíduo que maximiza mando de argumento econômico em juízo.
os seus interesses, já está embutido nas regras Essa é a perigosa ideia de que o Direito deve
jurídicas, em uma infinidade delas. ser apenas eficiente. Tenho escrito bastante so-
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Cadernos
do CEJ 31

bre isso. Não vou me alongar aqui, remeto aos E há uma segunda, menos óbvia: o argu-
senhores às minhas publicações, e em particu- mento econômico pode ser útil para melhor
lar ao texto intitulado A história do declínio e aplicar ou interpretar o Direito quando esti-
queda do eficientismo na obra de Richard Posner. vermos diante de princípios ou regras que re-
Há muitos bons motivos, das mais variadas na- queiram alguma previsão sobre as prováveis
turezas, pelos quais o horizonte jurídico não consequências. O argumento econômico é útil
pode ser exclusivamente o da eficiência. em juízo quando estivermos diante de princí-
O que estou chamando de argumento eco- pios ou regras cuja aplicação, em casos concre-
nômico em juízo, portanto, (i) não é o reco- tos, requeira alguma previsão sobre prováveis
nhecimento de que considerações econômicas consequências.
estão relacionadas à evolução do Direito; (ii) Para não aborrecê-los com uma construção
também não é apenas o reconhecimento de exclusivamente teórica a esse respeito, vou
que o Direito evolui em resposta a considera- exemplificá-la, detalhando a minha segunda
ções econômicas; (iii) não é apenas o reconhe- proposição desta manhã, que reitero mais uma
cimento de que indivíduos podem agir como vez: o argumento econômico já existe nas de-
prevê o modelo comportamental econômico; cisões judiciais brasileiras.
(iv) e também não é a ideia perigosa de que o Quando o argumento existe nas decisões
Direito deve ser apenas eficiente. judiciais brasileiras? Vou exemplificar. Em
O que é então? Trago-lhes uma definição primeiro lugar, para a aplicação de princípios
muito modesta: o argumento econômico em constitucionais. Em muitos casos, a aplicação
juízo é apropriação explícita (isto é, expressa, de princípios constitucionais requer argumen-
ostensiva) de lições da economia, especialmen- tos econômicos. Estou escrevendo uma verda-
te da microeconomia, como instrumento para deira coleção deles, tenho dezenas de exem-
melhor aplicar os mandamentos contidos nas plos e trago alguns poucos.
regras ou princípios jurídicos. Primeiro exemplo: a decisão do STF na ADIn
De novo: esse é o conceito que eu lhes dou n. 1946. Nela se discutia se o art. 14 da Emenda
de argumento econômico em juízo: a apropria- Constitucional n. 20, de 1998, que fixava em R$
ção explícita de lições da Economia. Para quê? 1.200,00 (mil e duzentos reais) o limite máximo
Para melhor aplicar o Direito. Temos assim a para o valor dos benefícios do Regime Geral
primeira parte da história. de Previdência Social, seria constitucional re-
Mas eu lhes disse que a proposição que iria lativamente à licença gestante. Isto é, estaria a
detalhar era a de que o argumento econômico licença gestante sujeita ao teto de R$ 1.200,00?
poder ser útil para melhor interpretar e aplicar O caso é paradigmático não apenas por
o Direito. Dei-lhes o conceito de argumento reconhecer a inconstitucionalidade de uma
econômico. Por que ele pode ser útil? emenda constitucional, o que é um caso por si
Ele faz sentido principalmente em duas cir- só interessante, como também por alicerçar a
cunstâncias. Isto é, o argumento econômico, fundamentação em um raciocínio econômico.
tal qual eu o concebi, é útil em juízo princi- O voto condutor alicerçou sua fundamentação
palmente em duas circunstâncias. Primeira: precisamente nas prováveis consequências vis-
quando houver conceitos na lei que sejam de- tas pelo Magistrado como deletérias de uma
senvolvidos ou trabalhados na economia. Por interpretação literal da norma a respeito da
exemplo, assim se dá com os diversos conceitos promoção do acesso da mulher ao mercado
trazidos no antitruste. Como se pode falar de de trabalho. Leiamos o voto: Na verdade, se se
monopólio, como se pode falar de mercado entender que a Previdência Social doravante res-
relevante, sem discutirmos esses conceitos a ponderá apenas por R$ 1.200,00 (mil e duzentos
partir da Economia? Não dá. Essa é uma cir- reais) por mês durante a licença gestante e que
cunstância, a meu juízo, óbvia. o empregador responderá sozinho pelo restan-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
32

te, ficará sobremaneira facilitada e estimulada à moradia. Novamente, o que nós temos aqui?
a opção deste [empregador] pelo trabalhador O raciocínio econômico ou o argumento eco-
masculino ao invés da mulher trabalhadora. nômico a serviço da proteção de um princípio
Estará então propiciada a discriminação que a constitucional.
Constituição buscou combater, quando proibiu Há uma coleção de outros exemplos aná-
diferença de salários, de exercícios de funções logos no STF, mas vou agora passar ao STJ.
e de critérios de admissão por motivo de sexo. Falamos do uso do argumento econômico
Proibição que, em substância, é um desdobra- quando estamos diante da leitura de princí-
mento do princípio da igualdade de direitos entre pios constitucionais, mas há um segundo caso
homens e mulheres previsto no inc. I do art. 5º da muito frequente em que se usam argumentos
Constituição Federal. Estará, ainda, conclamado econômicos em juízo. Trata-se do caso nada
o empregador a oferece à mulher trabalhadora incomum da interpretação teleológica das leis,
quaisquer que sejam suas aptidões salário nunca isto é, da interpretação finalística das leis, da
superior a R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais) interpretação da lei voltada a compreender o
para não ter que responder pela diferença. fim que a lei procurou atender. Nada de novo
Notem bem: o que está em questão não é aqui, portanto.
a eficiência da regra do teto constitucional. O Vejamos um exemplo do STJ, o REsp n.
que está em questão é o atingimento de ou- 771.787. Nele se discutia a legalidade da im-
tros valores constitucionais, como a inclusão posição pelo governo de um teto inferior ao
da mulher no mercado de trabalho. E o argu- custo de produção para o preço de derivados
mento econômico é parte do percurso narra- da cana. Entendendo-se pela ilegalidade do
tivo ou retórico da decisão judicial voltada a teto, discutia-se também a medida da indeniza-
promover o princípio constitucional. De novo, ção a ser paga aos produtores. Para examinar
não é uma discussão sobre eficiência. Estamos a medida da indenização e rejeitar a forma de
falando do meio jurídico adequado a atingir cálculo proposta pelos autores da demanda, o
um fim constitucional. voto do Ministro Herman Benjamin partiu de
Vou lhes dar mais um exemplo: A decisão lições da economia.
do STF que discutiu a compatibilidade entre a Na ação, os autores pleiteavam que o valor
penhorabilidade do bem de família do fiador, da indexação corresponderia à diferença entre
prevista no art. 3º da Lei de Locações, Lei n. o teto imposto pelo Governo e o preço a que
8.009/90, e a garantia do direito à moradia pre- se teria chegado com base no custo de pro-
vista no art. 6º da Constituição Federal, com dução. Porém, em seu voto, escorando-se em
redação conferida pela Emenda Constitucional alguns conceitos básicos retirados de um livro
n. 26. Segundo o voto vencedor, de relatoria português de análise econômica do Direito, o
do Sr. Ministro Cezar Peluzo, que reconheceu Ministro entendeu que essa fórmula pleiteada
a constitucionalidade da regra, os proprietários pelo autor exageraria no valor dos danos.
no Brasil são poucos, justificando-se, assim, es- Transcrevo trecho do seu voto: De fato,
tímulo à habitação arrendada, que seria, pela como o álcool não é produto de elasticidade,
leitura do voto, presumivelmente promovido de demanda a preço neutro, diante de um au-
pela regra questionada. mento de seu preço, necessariamente, haverá
Conclui o voto que a eventual declaração queda no consumo. Dito de outra forma, pode-
da inconstitucionalidade do referido disposi- -se afirmar, sem medo de errar, que o fato de o
tivo romperia o equilíbrio do mercado, des- preço não ter sido fixado no patamar pleiteado
pertando exigência sistemática de garantias pelas empresas [ou seja, o preço foi mais baixo]
mais custosas para as locações residenciais, fez aumentar a demanda de álcool. Numa pa-
com consequente destaque do campo de lavra, preço menor, maior consumo de álcool;
abrangência do próprio direito constitucional preço maior, menor consumo de álcool.
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Cadernos
do CEJ 33

E mais adiante, conclui o Ministro, a meu Falida, a concessionária interromperia o forneci-


ver corretamente, dizendo que sua análise era mento a todo o município, deixando às escuras
jurídica ainda que se valesse de ferramentas e até a iluminação pública.
conceitos econômicos. Por que o ministro es- Falei do argumento econômico para a
tava correto ao raciocinar desse modo? Porque interpretação de princípios constitucionais,
nós estamos diante do argumento econômico para uma leitura teleológica das leis – e ano-
voltado à compreensão do lucro cessante, tem, tenho comigo colacionadas diversas
argumento utilizado para se pensar em qual decisões judiciais com citações de trabalhos
é o lucro cessante em um caso como este. que se autointitulam de “análise econômi-
Argumento econômico a serviço do Direito. ca do Direito”. Vou citar uma decisão ape-
Só mais um exemplo: Recurso Especial n. nas. Trata-se de uma apelação no Tribunal
3.694, Relator Ministro Humberto Gomes de de Justiça do Estado de São Paulo, voto do
Barros. Discutiu-se o escopo do art. 6º da lei Desembargador Relator Andrade Marques,
que regulava concessões de serviços públi- recente, data de um ano atrás.
cos. A lei, expressamente,
permitia às concessioná-
rias suspenderem a ofer-
ta de serviços públicos Há um segundo vetor a explicar a ascensão do argumento
aos clientes em caso de em juízo no Brasil, para além desse fator que eu chamei de
atraso. A questão era sa- ideológico. Trata-se da ascensão política do Poder Judiciário.
ber se essa regra se apli-
caria também à oferta de
serviços essenciais, isso porque, como muitos A história descrita no voto era a seguin-
dos senhores certamente sabem, o art. 22 do te: uma loja vendeu um ar-condicionado e a
Código de Defesa do Consumidor estabelece compra foi feita com um cartão clonado. O
que as concessionárias são obrigadas a forne- verdadeiro titular do cartão clonado solicitou
cer serviços adequados, eficientes e seguros e, o cancelamento da compra. A empresa de
quanto aos essenciais, contínuos. Daí se lia que cartões não pagou a loja. O contrato entre lo-
serviço essencial há de ser sempre fornecido jistas e operadoras de cartões expressamente
continuamente – ou pelo menos assim entendia excluía a obrigação de pagamento ao lojista
o autor da ação. nesses casos. O lojista processou a operadora,
Ao entender em sentido contrário – e, por- alegando que a cláusula contratual seria abu-
tanto, defender a possibilidade de interrupção siva e exigindo o pagamento. A decisão negou
de serviços – o Ministro Relator afirmou que o provimento ao pedido e manteve a legalidade
corte, por efeito de mora, além de não maltratar da cláusula contratual. Confira-se: Embora se
o Código do Consumidor, é permitido. Segue o possa argumentar pela abusividade de cláusulas
voto: Neguei a liminar com o argumento de que contratuais, mesmo entre empresários profissio-
a proibição acarretaria aquilo que se denomina nais, com base nos artigos do Código Civil como
efeito dominó. Com efeito, ao saber que o vizi- a boa-fé e a função social do contrato, não se
nho está recebendo energia de graça, o cidadão cuida de tal hipótese no presente caso. Com efei-
tenderá a trazer para si o tentador benefício. Em to, a alocação de risco de fraude ao estabeleci-
pouco tempo, ninguém mais honrará a conta de mento comercial [diz o Desembargador] no caso
luz. Ora, se ninguém paga pelo fornecimento, de compras presenciais é, em princípio válida,
a empresa distribuidora não terá renda e, não pois comparado à administradora de cartão de
tendo renda, a distribuidora não poderá adquirir crédito, o comerciante tem mais capacidade de
os insumos necessários à execução dos serviços controlar e prevenir o risco de ardis perpetrados
concedidos e, finalmente, entrará em insolvência. pelo cliente, dito de outro modo [sigo lendo], o
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
34

vendedor é um superior risk bearer da relação gumento econômico nas decisões judiciais no
contratual. Confira-se. Brasil não é um modismo, não é uma ideia fora
E aí há uma citação de doutrina comparada do lugar, não é um absurdo, mas é o reflexo da
de economista estrangeiro, explicando o que nossa estrutura jurídico-política. E aqui terei de
é o tal superior risk bearer, que é a parte que ser bastante breve para explicar o argumen-
pode suportar um risco a menor custo.Poupo- to, remetendo os senhores, no entanto, a um
os da leitura do longo trecho. Mas, sigo lendo: texto publicado em 2013 na Revista de Direito
A alocação dos riscos a essa parte que pode su- Administrativo em que expomos esse argumen-
portar o risco melhor é mais eficiente do ponto to detalhadamente. Trata-se do texto Direito e
de vista econômico, pois se trata da parte que consequência no Brasil: em busca de um discurso
consegue evitar e mitigar o risco com o menor sobre o método, que tive a felicidade de coauto-
custo e despesa. Portanto, a eficiência econômi- rar com a minha brilhante colega, a Professora
ca, neste caso, beneficia a operação econômica, Mariana Pargendler.
tanto do ponto de vista das partes, quanto da A proposição, portanto, é a seguinte, rei-
sociedade. De modo que as cláusulas em ques- tero mais uma vez: O aumento no uso do ar-
tão se coadunam com a boa-fé e a função social gumento econômico não é modismo, mas é
dos contratos. E, portanto, o voto reconstrói o reflexo da estrutura jurídico-política do nos-
argumento econômico ao tipo jurídico, boa-fé e so país. Vejamos. Hoje nós partimos de uma
função social dos contratos. distinção de método: o método da economia
é um, o método do Direito
é outro; a linguagem da
[...] no mais das vezes [...] o Poder Judiciário foi simplesmente Economia é uma, a lingua-
empurrado para fazer política – empurrado porque os políticos gem do Direito é outra. A
nem sempre conseguem atingir o consenso, e esquivam-se, crítica jurídica se faz por
jogando a batata quente para o Judiciário. uma chave, a da legalida-
de; a crítica econômica se
faz pela chave do custo. O
Vou lhes poupar de uma citação de diversos grande desafio do Direito é ser justo; o gran-
outros acórdãos que eu tenho aqui, por falta de desafio da economia é ser científica. O
de tempo. Mas, adianto: há muitas citações de procedimento básico do Direito é a herme-
autores filiados, por assim dizer, ou adeptos nêutica; o procedimento básico da Economia
do método da análise econômica do Direito, são também métodos empíricos. E por aí vai;
espalhadas na jurisprudência. De particular portanto, há uma diferença de métodos.
relevância são as decisões que se referem às Defini o argumento econômico em juízo, e
doutrinas do norte-americano Richard Posner, então expus sua relevância, utilizando exem-
para sugerir, como por exemplo, numa que leio plos da jurisprudência. Mas, por que isso acon-
aqui, que deve se observar a relação de custo teceu agora? Será um modismo? Será uma
benefício, envolvido na prestação jurisdicional. influência de maus doutrinadores? Será que
E para citar outra decisão: o magistrado pre- perdemos o rumo? E a minha resposta é nega-
cisa atentar para os estímulos ou desestímulos tiva: não é nada disso.
econômicos que as decisões judiciais produzem. O aumento no uso desse tipo de argumento
Mas, acrescento, o juiz ou o magistrado não em juízo não é um modismo, mas se relacio-
deve fazê-lo para privilegiar a eficiência pura na à nossa ordem jurídico-política atual. É um
e simplesmente; deve fazê-lo para melhor in- tema que se põe na história. E, para explicar
terpretar o Direito. por que, indico três vetores na nossa estrutura
E assim passo à minha terceira proposição: jurídico-política, que explicam o aumento do
a de que o aumento perceptível no uso do ar- uso de argumentos econômicos em juízo.
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Cadernos
do CEJ 35

Primeiro: um vetor ideológico. Este se re- próprio para atingir um fim normativo. Eu pos-
laciona às ideias do nosso tempo. Vivemos no so interpretar e reinterpretar a lei do ponto de
tempo do triunfo da ideologia progressista. vista filológico, literal, gramatical, eu não sabe-
Quer se goste, quer não, vivemos no tempo rei sobre se aquela construção jurídica é pró-
do governo das policies; vivemos no tempo pria para atingir um fim ou não. A Economia é
do governo das políticas públicas; vivemos no um dos saberes que nos ajuda a construir testes
tempo do governo que planeja (se o faz bem, de proporcionalidade.
é outro problema...); vivemos no tempo do Há um segundo vetor a explicar a ascensão
governo que está comprometido a atingir os do argumento em juízo no Brasil, para além
mais variados objetivos políticos. Para citar os desse fator que eu chamei de ideológico. Trata-
que mencionei aqui: objetivos políticos como se da ascensão política do Poder Judiciário.
a inclusão da mulher no mercado de trabalho, O Poder Judiciário no Brasil (mas não só no
como a promoção ou a melhora do ambiente Brasil, em quase todas as democracias do oci-
de negócios. E poderia citar inúmeros outros, dente) migrou da periferia para o centro dos
até porque muitos deles estão enumerados na sistemas políticos. E isso no Brasil é muito cla-
nossa Constituição. ro porque quase toda a questão política nes-
Porém, na democracia, nos nossos moldes, te país torna-se também um debate jurídico.
esse planejamento não é simplesmente uma O Poder Judiciário está, então, atolado até o
decisão de governo. São decisões que frequen- pescoço na política pública. Às vezes, o Poder
temente se traduzem em leis e regulamentos. Judiciário é conduzido ao centro da política
E isso faz toda a diferença, porque a lei tem pública por vontade – daí falar-se em ativis-
de ser interpretada e aplicada. E quando a lei mo judicial, um ato de vontade do magistrado.
estabelece objetivos concretos, os que eu já Mas, no mais das vezes (no caso brasileiro, pelo
mencionei e muitos outros (a proteção ambien- menos) o Poder Judiciário foi simplesmente
tal etc.), a interpretação dessas regras propõe empurrado para fazer política – empurrado
um desafio para o profissional do Direito, qual- porque os políticos nem sempre conseguem
quer que seja ele: o magistrado, o promotor, atingir o consenso, e esquivam-se, jogando a
o advogado, todos os demais militantes, até o batata quente para o Judiciário. E, portanto,
professor de Direito. pensar em testes de proporcionalidade tornou-
E que desafio é esse? É o de pensar sobre -se inescapável, também, mas não simplesmen-
a pertinência entre meios jurídicos e fins nor- te por uma questão ideológica, mas por uma
mativos. Dada a legitimidade política da lei questão ligada à organização e funcionamento
no nosso contexto de progressismo, neste am- dos poderes no Brasil.
biente ideológico em que vivemos (não estou E, por fim, qual é o terceiro vetor a promo-
falando dos últimos dez ou dos últimos vinte ver o aumento no uso dos argumentos econô-
anos, mas na ascensão da ideologia progressis- micos em juízo? Trata-se de diversas evoluções
ta, um movimento no ocidente, um movimen- de dentro do próprio Direito. E aqui eu lhes
to localizável talvez de maneira decisiva com menciono três delas: a tão comumente men-
a subida de Roosevelt ao poder nos Estados cionada queda do formalismo – não há direito
Unidos na década de 30 e com raízes mais sem formalismo, a crítica ao formalismo não é
antigas, inclusive), nós, do Direito, estamos nova, a ideia de que o juiz possa viver de sub-
sempre diante do desafio de pensar que essa sunção, para citar um conhecido pensador do
interpretação da lei é própria para atingir o Direito, cujo nome não mencionarei porque
fim normativo proposto. era nazista, é uma “ficção infantil”; a ideia de
Fala-se hoje muito em teste de proporciona- que o juiz possa simplesmente subsumir fatos
lidade. O que é o teste de proporcionalidade? das decisões sem mais nem menos e mecanica-
É pensar-se sobre se aquele meio jurídico é mente é uma ficção infantil sim. Mas, de qual-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
36

quer forma, talvez estejamos diante de uma a consequência está, a meu ver, sempre fler-
questão de grau ou talvez diante de um modelo tando com o sonho: o que não existe, o que
retórico que orienta as narrativas através das poderia ser melhor, ou para ficarmos com
quais as interpretações das leis se constroem. uma expressão conhecida de um ex-ministro,
Mas o fato é que nove entre dez práticos do a imaginação institucional. Mas, por outro
Direito dirão que os juízes são menos formalis- lado, esses grandes sonhos frequentemente se
tas, esse é um movimento do Direito no Brasil. embebem de uma espécie de construtivismo
Outra evolução de dentro do direito só a racionalista, isto é, da crença do redesenho
menciono de passagem. Trata-se do chamado organizado de um novo mundo ou mesmo de
“neoconstitucionalismo” – a ideia de que prin- uma nova humanidade, embora o cultivo da
cípios possam eles mesmos ter força vinculante virtude, também o incentivo à virtude, ainda
e normativa. E, por fim, há ainda uma tercei- seja um aspecto fundamental do ato de julgar,
ra evolução jurídica: a brutal (perigosa e com não creio que pensar nas consequências e in-
destino insabido) renovação do Direito Privado centivos deva ser esse exercício de reconstru-
– Civil e Comercial – impulsionada pela elabo- ção institucional, de reordenação do mundo
ração de dois códigos no Brasil: o Código de ou de implementação de visões idiossincráti-
Defesa do Consumidor e o Código Civil. É claro cas do que possa ser a Justiça.
que a mera promulgação de dois códigos não Se tivesse que definir o enfoque aqui de-
tem, ela própria, a força para mudar a cultura fendido em uma palavra, diria que defendo
jurídica de um país. Mas não se pode negar que os juízes sejam pragmáticos. Não utilizo
que a elaboração de códigos tenha um papel o termo pragmático no seu sentido filosófico
expressivo, simbólico e comunicativo, e esses usual (de acordo com o qual a verdade das
códigos tratam do Direito Privado de maneira proposições reside nas suas prováveis conse-
distinta, em muitos aspectos, daquela com a quências). Se assim fosse, caberia o seguinte
qual nos acostumamos, e, diante disso, passo raciocínio: Pedro Álvares Cabral descobriu o
então às minhas conclusões, que são rápidas e Brasil? Bom, depende das consequências. Se
também modestas. for bom, digamos que ele descobriu o Brasil;
Então mudou o contexto jurídico-político e se for ruim, digamos que ele não descobriu
está mudando a retórica judicial. Mas estaria o Brasil.
eu aqui a defender que o juiz se transforme Não é nesse sentido essencialista (a la
pura e simplesmente em um político? William James) que defendo que a postura do
Nem de perto, e muito pelo contrário. A magistrado deva ser pragmática. Concebo a
legitimidade democrática do Poder Judiciário atuação pragmática em um sentido bem mais
ainda está mais presa à ideia de aplicar a lei próximo da atividade do profissional que la-
do que de criá-la. Afinal, na tradição ociden- buta no dia a dia das controvérsias jurídicas.
tal, não há como falar-se em estado de direito Um pragmatismo como um praticalismo, isto é,
quando se rejeita o princípio da legalidade. como uma atividade eminentemente prática,
Mas, por outro lado, não há como ignorar o voltada ao concreto, em que a discussão de va-
fato de que o Poder Judiciário possui hoje ra- lores e consequências encarna-se em soluções
zoável legitimidade política para rever – e, em tecnicamente aceitáveis e voltadas à operabi-
alguns casos, alterar – a lei e a política pública lidade do sistema jurídico.
(que, no nosso contexto, já estão até se confun- Vale dizer, então, para o magistrado o
dindo). A teoria abriu espaço para esse tipo de seguinte: a lei importa. Mas não precisa ser
comportamento dos juízes, e a prática política pensada como ponto de partida nem tampou-
e jurídica consolidou esse estado de coisas. co como linha de chegada, mas como parte
Então, o que se espera do magistrado? inescapável do percurso intelectual do jul-
Como ele deve decidir? A preocupação com gador. A preocupação com a consequência
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Cadernos
do CEJ 37

não pode nem deve buscar transformar o juiz inequívoca da desejável autoridade da lei. No
em político, economista, sociólogo ou o que fundo, talvez haja aqui, então, não mais que
quer que seja. Mas nada do que disse aqui um esforço de recuperação da complexidade
deve ser compreendido como uma rejeição da análise jurídica.”
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SIDNEI BENETI
Ministro do Superior Tribunal de Justiça


Daremos prosseguimento aos trabalhos agora com a exposição do professor Luciano Benetti
Timm.
O professor Luciano Benetti Timm é professor do programa de pós-graduação e Direito da Unisinos
e Coordenador do mestrado e doutorado de Direito da mesma instituição. Além disso, professor con-
vidado de pós-graduação de Direito da USP, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da Escola
da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul; foi por dez anos professor de Direito Internacional
Privado e Contratos da PUC do Rio Grande do Sul, em que leciona também, pela minha informação,
na atualidade. Pós-doutorado no departamento de Direito e Economia de Negócios da University of
California, em Berkeley; doutorado em Direito dos Negócios da Integração Regional na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul; mestrado em Direito Econômico Internacional da Universidade de
Warwick; bolsista do British Council; mestrado em Direito Privado na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul; e bacharelado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; com vários
cursos realizados no Brasil e no exterior, conferencista nacional e extrangeiro.
Com relação ao professor Luciano Benetti Timm, tenho uma observação pessoal que me honra
muito, que é o nome que temos em comum, Beneti. Meu pai, que já tinha bastante experiência da
vida, costumava dizer que, se é Beneti, é bom, de maneira que, com a nossa modéstia dos benetis,
quero dizer que tenho muita alegria de apresentá-lo aqui neste nosso evento. Mas há uma curiosida-
de em relação a algum parentesco que não conseguimos estabelecer até hoje, quero lhe dizer que,
acompanho seus trabalhos, inclusive na área de arbitragem a que ambos nos dedicamos, mas eu não
tinha tido o prazer de conversar com Sua Excelência, a não ser no dia de hoje. De forma que, entre
as alegrias que o presente dia me traz, está em privar um contato com o eminente Professor Luciano
Benetti Timm, seguramente meu primo lá nas velhas terras de Ferrara, provavelmente.”
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Cadernos
do CEJ 39

e, aqui, diante do nosso público – e eu até gos-


taria de fazer uma saudação muito especial ao
meu antigo Professor José Reinaldo, do dou-
torado da USP, que me orientou durante dois
anos e, por questões da vida profissional, aca-
bei, como um pragmático, infelizmente, enve-
redando para a iniciativa privada, mas guardo
as leituras de História do Direito e Filosofia em
grande conta. É uma grande honra estar aqui.
Aumenta ainda mais a minha responsabilidade,
porque falar para o ex-orientador de doutorado
sempre é um peso maior.
Essa provocação começa justamente de um
jurista de Common Law, sendo que, já no final
LUCIANO BENETTI TIMM do século XIX, precisamos tentar compreender
Professor da Universidade de São Paulo Economia, com a sua ajuda, aprendemos a con-
siderar e pesar os fins, os meios e o custo; uma


palavra, infelizmente, com que os juristas têm
Gostaria de agradecer o convite do uma dificuldade de lidar.
Ministro Villas Bôas Cueva, saudar o Ministro Lembro-me que, em determinada faculdade
Beneti, com orgulho, certamente o Beneti mais em que lecionei, a reitoria reclamava que a única
importante do Brasil. É uma pena meu avô ser faculdade que estourava o orçamento na metade
falecido, se não, diria ele que, em relação aos do ano era a de Direito. Todas as outras, como
Benetis, vindos da Itália, os nossos foram para Engenharia, Administração, tinham orçamento
o Rio Grande do Sul e os dos Ministro devem de R$ 100.000,00 e chegavam ao fim do ano com
ter ido para São Paulo, onde a colônia italiana aquele orçamento. No Direito, na metade do se-
é substancial. mestre, o orçamento estava estourado, e não se
Quanto ao atraso, eu poderia culpar o conseguia entender o porquê disso.
Professor Bruno, que, como meu amigo, muito Então, acho que essa provocação é interes-
educado, assumiria esse ônus do atraso, mas eu sante porque virá em seguida o que, de certa
não faria isso. Sou mais brincalhão que o Bruno; maneira, conecta-se ao que estamos falando. O
ele é uma pessoa mais séria. Vou, aqui, provocá- meu posicionamento é muito próximo do pensa-
-los em vários aspectos e quero dizer que não sou mento do Bruno, ou seja, não se trata, aqui, de
economista. A minha formação toda, como vi- se abandonar o Direito e, aí, passar-se a adorar
ram, é na área jurídica, mas fiz mais da metade da a Economia, mas sim se apropriar daquilo que
graduação de Direito na Faculdade de Economia ela pode contribuir na interpretação do Direito.
e o que me trouxe o interesse pela Economia foi E essa questão de ponderação: para se ob-
o antitruste, que estudei na Inglaterra. Metade do ter algo é preciso abrir mão de outra coisa.
curso de antitruste é microeconomia, de modo Certamente, os senhores que são juízes deixaram
que efetivamente não teria como se fazer Direito os processos aguardando para virem investir em
concorrencial sem Economia. Mas, enfim, não algum tipo de informação, ideias novas, ou seja,
é sobre isso que vou falar. Na verdade, análise quando se opta por alguma coisa, acaba-se re-
econômica não é Direito Econômico, mas são nunciando em alguma medida.
primos-irmãos. Falo um pouco em primeira pessoa, porque
A primeira provocação, na verdade, é um é uma reflexão minha e no final mostrarei um
trecho de uma obra clássica do Common Law, exemplo do que seria fazer análise econômica
que é um juiz sugerindo que todos os juristas do Direito. Realizei uma pesquisa, para o CNJ
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Teoria da Decisão Judicial
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quando estava ainda lecionando na PUC, sobre ser que o economista quisesse concorrer para a
litigância no Brasil. Os senhores verão que os in- carreira do Banco Central do Brasil, o que é raro.
sights são muito bons sobre política legislativa e, Então, existem relações tumultuadas no pas-
com certeza, eu diria que é impossível se fazer sado, existe falta de compreensão mútua. Os ju-
política legislativa, política pública sem se tra- ristas acham que não é para eles, os economistas
balhar com economia. Eu diria que isso, a meu acham que são muito sofisticados, porque lidam
juízo, é praticamente impossível. com matemática, e o Direito é blá-blá-blá. Isso é
Muito bem, vamos mudar a lei, vamos mudar bastante comum, e os economistas normalmente
o Código de Processo Civil, no caso. O Código acreditam nisso porque eles usam como ferra-
de Processo Civil vai resolver os problemas? O menta a analítica Matemática.
Código Comercial vai trazer mais desenvolvi- Gosto muito de uma passagem do Professor
mento econômico, vai melhorar o ambiente de Fernando Araújo, que irá falar no evento, rela-
negócio? O problema, aqui, falando em primeira tando que o Curso de Ciências Econômicas é um
pessoa, pelo menos é que os juristas são normal- curso novo, é do século passado, autônomo, mas
mente estimulados a refletir sobre as relações en- o próprio pai da Economia, Adam Smith, não
tre Direito e Filosofia. Temos, inclusive, na gra- era economista. Ele dava aula de teoria moral.
duação, a Filosofia do Direito I e II, existe Direito Tradicionalmente, se compararmos o programa
e Política na Teoria Geral do Direito, Direito e das faculdades de Direito brasileiras e portugue-
Sociologia, que é a Sociologia do Direito. A maio- sas, a Economia era dada dentro da faculdade
ria das faculdades tem disciplinas em Sociologia de Direito.
do Direito. Isso normalmente é aceito como um Como é que, na visão deles, economistas, se-
papel do jurista. Quando se cai em Economia, pararam-se como um campo autônomo, usando
existe um certo tabu, como se a Economia fosse a Matemática. Agora, Matemática é linguagem;
estranha no campo das ciências sociais. então, se falo chinês, que é uma linguagem, não
De novo, e estou aberto para discutirmos, significa que o que estou dizendo em chinês está
quais as razões que, a meu juízo, criaram esse correto só porque sei falar chinês. Então, não é
estranhamento com a Economia no Brasil, que porque formalizei matematicamente que é ver-
não existe, por exemplo, em outros locais onde dade. Há vários textos de econometristas que
estudei. Primeiro, relações tumultuadas no passa- querem, justamente, mostrar essa falibilidade da
do. Os planos econômicos feitos por economistas Estatística, mostrando que a Econometria pode,
geraram uma série de questões jurídicas constitu- num determinado estudo, mostrar que pena de
cionais, que todos sabemos. Confesso a vocês: o morte funciona e que, noutro estudo economé-
Brasil estava no auge da inflação, quando prestei trico, não funciona. Isso depende de como se se-
vestibular na universidade federal, pretendia cur- lecionam as variáveis.
sar Economia, mas fiz Direito, porque eu queria Enfim, não dá para criarmos outro deus. Se
fazer planos econômicos juridicamente consisten- criticarmos eventualmente o formalismo e a dog-
tes. Vejam, a cabeça de um menino de dezessete mática, não dá para cair na Matemática; que é o
anos. Eu queria fazer Economia, pois via como que os economistas entendem: que eles fazem e
as pessoas erravam nos planos econômicos, os que isso é científico, e que nós juristas não pode-
economistas normalmente não estudam as insti- mos opinar sobre Economia.
tuições legais. Outro problema sério, o qual vivenciei, por-
E brinco que, quando aprendi suficientemente que eu vivia nesses dois mundos, são os cursos
Economia, deixei a Faculdade de Economia e fui fracos de Economia, normalmente chamados de
fazer Direito. Naquela época, no auge da infla- “Economia Política”, algumas vezes, dados por
ção, não havia emprego para economista; o que professores marxistas, no Brasil e em Portugal,
tinha era, fundamentalmente, concurso público nas faculdades de Direito. Normalmente, nós,
e, para isso, o Direito era mais interessante, a não que vivemos no mundo acadêmico, darmos aula
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Cadernos
do CEJ 41

em outro departamento, em outra faculdade, é Common Law. Então, como a análise econômica é
um castigo, é um pedágio. Então, normalmen- mais utilizada nos Estados Unidos, acaba que essa
te, os economistas enviados para a faculdade de circulação de ideias fica pouco mais restrita aqui.
Direito não dominavam o Direito, explicavam E certa simplificação do debate, que é o que
coisas que apenas confirmavam a total irrele- eu normalmente escuto: “A análise econômica é
vância da Economia para o Direito. Isso é um uma coisa de neoliberal”. Até havia um Professor
problema também. da Faculdade de Direito da PUC, de Direito
E vice-versa: os do Direito que iam dar aula Constitucional, que não me cumprimentava por-
na Economia também normalmente não eram os que ele achava que eu defendia que toda vida
melhores professores. Isso acaba desestimulando tem um custo – e isso é inaceitável moralmente.
o interesse, até porque, como eu disse, os eco- Então, ele decidiu que não me cumprimentava
nomistas acham que Direito, normalmente, não porque eu era um neoliberal.
é algo sério, não é acadêmico, então os top eco- Eu não me considero um neoliberal e também
nomistas não estão lidando – mas isso está mu- não sei o que é sê-lo, e acho que não é o debate
dando, por sorte, eles estão estudando o Direito. a ser feito, certo? Temos que ver em que medi-
Dificuldade com Estatística e Matemática da (são várias escolas), e qual a tendência. Isso
é um problema, mesmo no Brasil. Basta ver também é um problema, porque o pessoal que
todas as provas que os brasileiros fazem de lê análise econômica lê análise pelo Posner, mais
Matemática, há uma dificuldade. O fato de a especificamente pelo Dworkin, que está critican-
Economia ter se matematizado, e não é só a do um Posner de 1970. Então, é um debate um
Economia, a Psicologia e vários outros cam- pouco simplificado.
pos das próprias ciências
sociais têm-se matemati-
zado em algum grau não
exagerado. Diz o Professor Será que uma decisão jurídica afeta o comportamento dos
Fernando Araújo, que fez agentes de mercado? Será que ter uma interpretação no
um levantamento atestanto campo do Direito Penal [...]
que os journals de econo-
mia têm mais matemática
que os periódicos de física; só que você está Por que deu mais certo nos Estados Unidos
explicando o comportamento humano e não o do que em alguns países continentais? Porque a
coeficiente de dilatação da ponte. Então, até dogmática jurídica, como tal, preserva sua impor-
onde pode ir a matemática é mais discutível. tância na Europa Continental, mas nos Estados
O Professor Fabiano Engelmann fala também Unidos o realismo jurídico destruiu a dogmática
em certa disputa pelo Estado, racionalidade dos jurídica. Basta vermos o que produz um profes-
bacharéis até a ditadura, depois a racionalidade sor, nos Estados Unidos, e os professores ameri-
dos economistas tecnocratas pós-64. E essa dis- canos do Direito normalmente vão fazer o seu
puta pelo Estado também cria certos atritos. doutorado fora do Direito. Eles vão fazer na
Também se poderia imaginar, e é fácil com- Sociologia, na Política, na Filosofia.
provar, a maior influência europeia no circuito O pessoal da minha área, que é a antitruste/
acadêmico brasileiro. Como é que eu evidencio comercial, fazem em Economia. Então, essa visão
isso? Basta pegar o currículo lattes dos professo- do realismo jurídico dá muito mais espaço para
res, das principais Faculdades de Direito brasi- se trabalhar com algo não formal, como análise
leiras (Fabiano Engelmann fez isso), e ver onde econômica, do que onde a dogmática jurídica é
eles estudaram; estatisticamente, estudaram mui- muito boa.
to mais o seu doutorado em Portugal, Espanha, Além disso, existe sim o americano e seu siste-
Itália, França e Alemanha, do que em países de ma jurídico; seu sistema judicial é mais pragmático
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
42

que o europeu. Isso é bastante evidente. Tomemosjurídico e não vai precisar mais ter uma bandeira:
como modelo o alemão, eu estudei Direto Civil, isso é aquilo ou não é aquilo, é análise econômica
pois os professores sempre insistiam para se es-ou não é. Então, o objeto dessa ciência jurídica
tudar o Direito Civil alemão, que seria o mais é a ação humana, o comportamento humano.
dogmaticamente perfeito, conceitualmente mais E por que isso é interessante para o Direito?
desenvolvido, e esse debate de análise econômicaQuando se está pesquisando se devemos mudar o
versus critical legal studies, de certa maneira, está
Código de Processo Civil, porque há um excesso
bastante enfraquecido nos Estados Unidos. de litigância, eu tenho que entender o compor-
Eu coloco a Economia com letra maiúscula, tamento dos agentes que estão litigando.
porque estou entendendo-a como ciência eco- O Direito, se for uma ciência (e eu faço aqui
nômica, e não economia como campo da so- toda uma concessão a uma discussão se o Direito
ciedade onde são produzidos bens e serviços, é uma ciência ou não) precisa ter um objeto pró-
certo? Existe um campo da sociedade que é es- prio. Qual seria? As normas? Se for, tem que ter
paço da economia, onde os bens são produzidos um objeto próprio, um método próprio. Ficaremos
e distribuí­d os. Nós podemos olhar essa realida-
com Kelsen? Será que eu tenho condições de, com
de através de várias lentes: posso olhar atravésesse ferramental analítico, que é poderoso para in-
das Ciências Sociais, da Sociologia, da Ciência terpretação, predizer, antecipar qual será o efeito
Econômica, que eu chamo de “Economia”. de uma determinada mudança normativa?
Li uma matéria, na Revista
Exame, esta semana, em que
Eu coloco a Economia com letra maiúscula, porque estou
um empresário alemão foi
entendendo-a como ciência econômica, e não economia
pego “lavando dinheiro”, foi
como campo da sociedade onde são produzidos bens e
preso, e a previsão disso é que
serviços, certo?
essa prisão provocaria uma sé-
rie de denúncias espontâneas
Eu não conhecia a exposição que o Professor dos caras querendo pagar impostos para evitar a
Bruno faria, ele atacou perfeitamente vários prisão. Será que uma decisão jurídica afeta o com-
exemplos; eu, talvez, desse um passo atrás, te- portamento dos agentes de mercado? Será que
nho um método científico para explicação de ter uma interpretação no campo do Direito Penal
regra jurídica e também posso ter um método (por exemplo, eu só posso prender o sujeito de-
científico com todos os seus defeitos, eu mesmo pois de transitado em julgado em última instância)
acabei de dizer que não me convenço só porque afeta a criminalidade ou não? A ciência do Direito
há uma forma matemática que está correta. Mas, tem ferramental analítico para me dizer se isso é
se eu levar em conta que a Economia é uma ciên­ verdade ou não, ou eu recorro à Constituição? A
cia comportamental e que, portanto, não lida e Constituição fala nisso? Que diretamente se conec-
nem descreve mercado, mas descreve compor- ta com a lei. Sim, mas e as pessoas?
tamento de pessoas num ambiente de mercado, Não é a única ciência comportamental, e acre-
eu tenho condições de ter uma teoria do com- dito que a Psicologia está contribuindo muito
portamento humano das pessoas que atuam no para a Economia e para as outras Ciências Sociais
mercado. Com certeza, na área das empresas, e para a Filosofia – (eu não posso falar sobre a
funciona na maioria dos casos, tanto que a dog- mente sem conhecê-la e se a Biologia está evo-
mática jurídica, como nós conhecemos no Direito luindo para nos dizer como é a mente, eu não
Comercial americano, é toda ela impregnada de posso ignorar isso).
análise econômica. Eu passo a ter, então, pelo menos, uma teoria
O Professor Fernando Araújo diz que “o suces- do comportamento. O critério não é dinheiro,
so da análise econômica é o seu fracasso”, por- esse é outro problema, as pessoas associam a
que ela vai acabar sendo incorporada no discurso Economia a dinheiro. E Economia não mensu-
série
Cadernos
do CEJ 43

ra as coisas a partir de dinheiro, porque moeda determinante para o jurista. O jurista não precisa,
não tem valor em si. Se eu pegar uma nota de em um determinado caso, optar: Não posso acei-
R$100,00, que é dinheiro, levar a um país que tar porque vai quebrar ou porque vai trazer um cus-
não faz conversão para Real, essa moeda não to eu não posso decidir assim. É claro que pode!
vale nada; dinheiro é nada, dinheiro só vale à Só é interessante perceber essa consequên­c ia,
medida que as pessoas atribuem valor e aceitam. senão, fica uma consequência escondida e, às
Na Argentina, por exemplo, alguns estados en- vezes, de difícil imposição no custo.
dividados, quebrados, pagavam seus funcionários Dou outros dois exemplos triviais da jurispru-
com Patacón, que era uma moeda, que nenhum dência americana. Em Nova Iorque, a responsa-
comerciante aceitava, pois sabia que o Estado ia bilidade civil do transportador aéreo é subjetiva.
dar o calote. Era moeda, mas não tinha valor. A É para dificultar a responsabilização, para ter um
Economia lida com utilidade, que é o valor que custo mais baixo para o transporte ser mais ba-
as pessoas atribuem a determinadas opções. rato. Vejam, não estou dizendo que é certou ou
Então, nesse sentido, meus colegas, para dar errado. Foi uma decisão tomada pela Suprema
um exemplo trivial, mas para ilustrar – ninguém Corte de Nova Iorque.
é obrigado a dominar a ciência Econômica: Poxa, A Suprema Corte dos Estados Unidos, em
Luciano, a Economia não explica o que você, ga- um caso sobre validade de cláusula de eleição
nhando uma hora no escritório, que é dez vezes de foro em contrato de consumo, que é o caso
mais que a hora de professor da PUC, está fazendo Cruise Line, entendeu que a cláusula é válida,
na PUC? Estão vendo como a Economia está er- para que a empresa possa centralizar sua defesa
rada? Não, não está errada, porque se eu atribuir em um só estado e diminuir o custo do exercício
um valor superior àquela hora que me é paga de sua defesa e, portanto, no preço final. Foi uma
para estar com os meus alunos na PUC, se isso decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos.
me der um prazer que eu atribuo, não R$30,00 Não estou dizendo que é certo ou errado.
a hora, mas R$1.000,00, e o cliente não pagar, O que é interessante é que, depois de ficar
é extremamente racional e econômico eu estar chocado com esse caso, defendendo algumas
dando aula. Então, a economia não lida com di- empresas, alguns fabricantes brasileiros, quan-
nheiro – dinheiro não é nada –, lida com utilida- do vem ao juizado especial cível, que é gratuito
de. E essa compreensão é importante para não para as pessoas que entram, mas não para a em-
haver preconceito. presa que se defende, um excesso de litigância
Mensura consequências. Um jurista carioca acaba compondo o preço que todos nós paga-
chamado Gustavo Amaral, de quem eu gosto mos, o que pode ser justo, de novo. A Ciência
muito, diz: a Economia, pelo menos deixa ver o Econômica não faz decisões políticas, ela mostra
filme, e não a foto. Como diz o meu cardiologista, as consequências.
toda vez que eu faço exame: Luciano, o seu exame Com os americanos, como têm lá os seus prin-
está ótimo. Mas está ótimo hoje. É como a pessoa cípios e os seus valores, as Cortes tendem a ser
que se atira do 15º andar. Ele se atira do 15º andar. mais restritivas. Aqui pode ser que nós optemos
No décimo, ele está bem. Mas ele vai acabar se es- por outra abordagem. E essa abordagem não ex-
borrachando lá embaixo, dizia o médico. Porque a clui, evidentemente, outra. Ela é extremamente
foto está ótima. O filme pode estar terrível. Tanto interessante quando estou discutindo justamente
que a gente vê jogadores de futebol que fazem política pública, consequência de decisões quan-
exames regulares, às vezes, têm ataque cardíaco do a norma é muito ampla, ou vagueza, semân-
jogando bola. Não fez exame? Fez. Mas o filme tica muito aberta acaba ensejando discussões
era horrível. como, por exemplo, função social.
A economia me dá o filme. O que vai acon- Houve um caso – são vários – sobre discussão
tecer amanhã? Ou me dá algum critério para eu dos contratos de soja verde, que são aqueles de
tentar mensurar, o que não é perfeito e que não é venda antecipada no estado de Goiás. O que fa-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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zem eles? O trader de soja faz um contrato pelo ca de bens e serviços. Na Roma Antiga, um pré-
qual ele se compromete a pagar um determinado dio, aliás, não por acaso, a meu juízo, mais bem
preço pela soja hoje, para que o agricultor não conservado é o prédio comercial, em que havia
corra o risco de oscilação de preço no mercado. as trocas. Na Idade Média, eram as feiras. Hoje
Em Goiás, em nome da função social do con- pode ser a Nasdaq virtual, mas existe um espaço
trato para proteger o agricultor, o Tribunal de público de interação – isso se chama mercado. Os
Justiça revisou os contratos, dizendo que “não, jornalistas não contribuem para a compreensão
houve variação imprevisível”. O agricultor fez o do que seja mercado porque conferem ao mer-
contrato de soja verde em março e em agosto cado quase que vida própria: “hoje o mercado
estava já precificado, houve variação do preço acordou de mau humor”. O mercado não acorda,
internacional da soja e ele não queria entregá- ele é um espaço público. Então, quem acorda de
-la por aquele preço. Qual seria a consequência mau humor, eventualmente, são alguns investi-
disso? Isso é relevante? Isso vai encarecer o fi- dores que têm poder de mercado. Enfim, quem
nanciamento da soja? O agricultor que antes fazia acorda de mau humor são pessoas.
contratos de soja verde com o trader talvez tenha E o problema de você não ter o sistema barato
que ir ao banco. Qual financiamento é mais bara- de cumprimento de contratos é que você não tem
to? Via trader ou via banco? Qualquer estudante mercado. Se você não tem mercado, você não
de Direito Comercial sabe que o financiamento tem uma troca minimamente adequada de bens e
bancário é o mais caro, qualquer financiamento serviços. Uma economista inglesa dizia: pior do que
que tira a desintermediação bancária, porque dá ser explorado pelo capitalismo é não ser explorado
o dinheiro direto, tende a ser mais barato. Então, pelo capitalismo, porque, daí, você não tem nada.
essas mensurações eu posso fazer. Você não tem um Estado que garanta contratos,
Nos Estados Unidos, mesmo o Bruce propriedades, você tem muito pouco. Então, você
Ackerman, que é um constitucionalista e não é não tem um sistema racional de geração de ri-
da análise econômica, reconhece que foi um dos queza. O problema da África hoje, em vários as-
principais desenvolvimentos teóricos jurídicos no pectos (e a Angola pode ter sido um exemplo) é
âmbito do Direito americano. Fiquei um ano em que não tinha o sistema de extração de recurso
Berkeley, fiz todo o primeiro ano (first year) da nacional. Portanto, os caras iam lá e o incentivo
Law School – já havia estudado na Inglaterra – era de guerra civil. Quem se apropriasse da mina
assim tenho todo cuidado para entender bem ficaria rico. Isso seria talvez menos eficiente, via
Direito americano e evitar a discussão de que de regra, que um sistema de mercado, que não é
isso é uma importação, de que não sei o que perfeito. Existem mercados que não precisam ser
estou falando. Não. Há publicações de Direito regulados. Mas essa é outra discussão.
americano comparado, análise econômica, e sei Vamos selecionar alguns exemplos, no Brasil,
que, em alguns aspectos, eu defendo, dá para de decisões, opções que geram consequências
aplicar perfeitamente. Pelo menos, não é uma no comportamento dos agentes econômicos.
importação indevida ou não mais indevida que Alguns eu testemunhei como advogado, outros
nós fazemos de autores alemães, franceses, por- estão nos jornais. Eu lido muito com isso, porque
tugueses, enfim. boa parte da minha prática está no Sul do Brasil,
O Douglas North, por exemplo, que não é um que sobrevive graças ao agronegócio. O parecer
neoliberal, diz que um dos problemas do sub- da AGU, de 2010, mudou o entendimento sobre
desenvolvimento é gerar um sistema barato de o que é uma empresa estrangeira para fins de
cumprimento de contratos. O que significa isso? obtenção de terras rurais. Antigamente, antes
Se eu não tiver um sistema de cumprimento de desse parecer, sociedades estrangeiras constituí-
contratos, não consigo ter um mercado funcio- das no Brasil, independentemente da origem do
nando. E vamos definir: o que eu entendo, o que controle, eram consideradas brasileiras. Portanto,
é mercado? Mercado é um espaço público de tro- podiam obter imóveis rurais. Esse parecer muda
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Cadernos
do CEJ 45

o entendimento, ele justifica com a China e ou- pessoa diz pra ele: você tem cinco minutos para
tras questões de proteção do Brasil, mas muda o descobrir quem é o pato; se não descobrir quem é
entendimento e diz: Não, temos que examinar o o pato, o pato é você, então, você tem que parar de
controle. Se o controle é estrangeiro, a empresa é jogar. E o Eduardo Pimenta diz que, se em cinco
estrangeira. Isso gerou um problema, porque, em minutos você não descobrir quem está pagando,
vários setores do agronegócio, existem grandes é porque você quem está pagando. Quem paga
multinacionais estrangeiras que queriam. Na área somos nós, por incrível que pareça, porque o
de celulose, o Rio Grande do Sul perdeu duas Estado não gera riqueza – esse é outro proble-
fábricas por conta dessa impossibilidade, porque ma do capitalismo – o Estado distribui, a não ser
é preciso comprar o terreno para plantar euca- que tenha empresas estatais. Então, não adianta
liptos, é preciso da propriedade. De novo, uma dizer o Estado paga. Ele não paga; ele tributa e
questão de análise econômica: se não me garante repassa, certo? A não ser que ele tenha algumas
a propriedade, eu não invisto. É o famoso dilema estatais eficientes que gerem riquezas.
da casa na praia. Como o Estado não te dá segu- Outro exemplo: o controle de preço que o
rança na casa na praia, as pessoas tinham o que Governo brasileiro fez quanto ao combustível
havia de pior nela. Como ia ser assaltada mesmo, gerou isso. Eu acompanhei várias arbitragens –
no inverno, então, a geladeira velha eu deixava um problema no setor sucroalcooleiro, uma vez
lá na praia, porque alguém vai entrar. Então, é que eu não posso vender o combustível álcool
um desinvestimento. É básico, é trivial. acima da gasolina, porque, de novo, o consumi-
Se quiserem, eu conheço vários estudos. Um dor – acreditem – é racional, ele não vai pagar
deles é sobre o Pará, onde há mais grilagem, me- mais sem nenhuma razão. E não estou entrando
nos respeito à propriedade e, não por acaso, tem no mérito dos motivos ou não, não me interessa
menos desenvolvimento, menos investimento. a questão política. Se eu mantenho os preços da
Isso gerou um problema. Podemos até dizer o gasolina muito abaixo, eu jogo o preço do álcool
seguinte: Não me interessa o problema, azar ou mais abaixo ainda, e se esse preço ficar abaixo do
consequência, tudo bem, mas vamos tomar essa de- custo do usineiro ele gera um problema. Foram
cisão consciente porque gerou essa consequência, várias arbitragens discutindo isso.
houve retenção de investimen-
tos por conta desse parecer, e
Os jornalistas [...] conferem ao mercado quase que vida própria:
de empresas que não necessa-
“hoje o mercado acordou de mau humor”. O mercado não acorda,
riamente eram chinesas.
ele é um espaço público. Então, quem acorda de mau humor,
Mas não só isso. Depois
eventualmente, são alguns investidores que têm poder de mercado.
gerou problema no finan-
ciamento agrícola, porque,
se eu não posso ser proprietário, também não Falei do caso soja verde. Depois o pessoal da
posso hipotecar, porque aí vou hipotecar, vou fi- Economia Agrícola da USP fez uma pesquisa de
car com o bem – o estrangeiro também não pode campo e efetivamente, enquanto a questão não
financiar a agricultura. Qual é a consequência? se solidificou no STJ – porque já está solidificada
Daqui a pouco estou privilegiando meia dúzia de no STJ pelo cumprimento do contrato – houve ali
bancos nacionais, ou bancos estatais, e tem que sim um gap de financiamento no estado de Goiás.
vir o Estado e fazer financiamento, e quem paga Eu tenho estudo, inclusive.
já sabemos. E aqui a coisa começa a ficar mais proble-
Aliás, um professor de Direito Comercial da mática: as liminares versus os orçamentos das
Federal de Belo Horizonte, o Eduardo Pimenta, prefeituras. Há situações de prefeituras que têm
cuja frase faz alusão a um filme do Edward 50% do seu orçamento da saúde já esperando a
Norton, em que ele é treinado para ser um mes- liminar. Então, o critério é quem primeiro entra
tre do pôquer e passar a perna nos outros, e uma e quem primeiro obtém a liminar, e não a polí-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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tica pública de distribuição de um direito cole- tência judiciária gratuita. Mais adiante há uma
tivo, vamos dizer assim. Não estou dizendo que pesquisa bastante detalhada.
não se deva dar a liminar. Quem sou eu para Aqui o que eu entendo por Economia; uma
vir aqui e dizer faça “a” ou faça “b”, mas temos ciência que estuda formas de comportamento
ferramentas que me dizem que existe lá um or- humano resultantes da relação existente entre
çamento. Eu organizei uma obra, do professor ilimitadas necessidades e os recursos limitados.
Ingo: Os direitos fundamentais do orçamento e Então, se me permitem, acho que essa é a gran-
reserva do possível, em que há um estudo do pes- de “sacada” da Economia. Alguns dirão que não
soal do Orçamento do Senado dissecando o or- concordam com essa premissa, então não podem
çamento. Às vezes as pessoas dizem: “mas existe fazer análise econômica; eu concordo, por isso
corrupção”. Bom, existe tudo isso porque não trabalho com essa e é por isso que tendo a pre-
deixamos de ser brasileiros, e tudo isso segue, ferir essa ferramenta analítica a outras, porque
mas está lá o orçamento, a menos que, como eu concordo inteiramente. Não estou falando de
dizem, importemos políticos suíços, mas hoje dinheiro, e sim de recurso, e se os recursos não
somos todos brasileiros: políticos, advogados, fossem escassos, eu não precisaria ter direito am-
professores, com todas as nossas vicissitudes. biental; se os recursos não fossem escassos, eu
não teria litígio. Há alguns es-
Quem paga somos nós [...] porque o Estado não gera riqueza – tudos que mostram: onde os
bens são abundantes (tribos
esse é outro problema do capitalismo – o Estado distribui [...]
indígenas), a propriedade é
ele tributa e repassa, certo? A não ser que ele tenha algumas
coletiva. Quando o recurso é
estatais eficientes que gerem riquezas.
escasso, eu tenho que atribuir
algum tipo de propriedade
Decisões judiciais eventuais – essa pesquisa eu privada – e nesse caso são antropólogos, já não
não tenho, eu estou só aqui provocando. Eu sei são economistas.
que o professor José Reinaldo tem um estudo so- Então, o que é análise econômica? É utilizar
bre problemas com planos de saúde individuais e ferramentas da economia, como bem explicou o
qual é a consequência. Eu sei que uma segurado- Bruno, para resolver alguns problemas jurídicos.
ra não vende mais plano individual. Se a pessoa Eu posso pensar nisso na responsabilidade civil
faz um plano “c”, básico, e o Judiciário determi- que ele mencionou, dei exemplo de contrato,
na um tratamento “a”, quem vai pagar a conta? posso falar de juros, não tenho como fugir no âm-
A seguradora. Como ela não é boba, é melhor bito do Direito Econômico. Eu só lamento porque
ter o plano coletivo porque distribui o custo nos acho que os professores de Direito Econômico no
demais. É um pouco a situação – desculpem-me Brasil estudam pouco Economia. Se tomarmos
às vezes a trivialidade, e eu vou sofisticar ao final um manual de Direito Econômico, não há quase
– de um condomínio em que a água é paga por nenhum economista ali, isso é um problema.
todos e dividida por apartamento, é um incenti- Há várias escolas, não só Chicago. Poderemos
vo para eu não consertar o vazamento no meu remontar a Adam Smith, que não era economis-
apartamento. Se eu estou pagando a conta, muda ta no sentido estrito, Beccaria, Weber, Holmes,
o incentivo. O famoso artigo de um economista mas a paternidade normalmente é atribuída a um
americano diz: “se você está pagando, eu quero inglês que lecionava em Chicago, Ronald Coase,
filé”; agora, se eu estou pagando, talvez eu queira que escreveu dois artigos, os dois dentre os cinco
um patinho, um guizado, uma carne moída, um mais citados nos Estados Unidos. No Brasil, ele
franguinho. seria um péssimo professor, teria sido expulso da
Brincadeiras à parte, porque o tema é sério, pós-graduação porque só publicou dois artigos.
mas precisa ser colocado de uma maneira até Pelas normas da Capes, ele seria um péssimo pro-
provocativa, eu vou falar sobre litigância e assis- fessor, teria que ser desligado, porque em toda a
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Cadernos
do CEJ 47

sua vida ele fez dois artigos, só que dois dos cinco ou menos refletido no Coase, ou seja, dou uma
mais citados. Já dá uma importância da análi- decisão e depois as partes podem transacionar
se econômica naquele país, a tal ponto que nós a respeito daquele direito. Um exemplo trivial:
fizemos aqui, Posner, e, como brasileiro, levou se em um prédio a convenção de condomínio
um tempo para entender que os americanos se proíbe que eu faça festa depois das dez da noite,
referem a ele como Posner, Judge Posner. não acontecerá nenhuma festa? Mas se eu for ao
Ronald Coase tem dois artigos, talvez o essen- meu vizinho e comprar esse “direito”, se eu dis-
cial “The problem of social cost”, o problema do ser: eu te pago um final de semana em Gramado,
custo social, que está traduzido em uma obra or- pode ir com a sua esposa, você não vai ser pre-
ganizada pelo professor Bruno, de textos clássi- judicado. Ele não poderia transacionar o direito
cos, em que ele se pergunta justamente porque de me proibir de fazer a festa, já que é direito
existem as empresas, qual é o papel das empresas privado? Claro que sim. E a beleza desse teorema
e ele vai tratar do que se chama “a capacidade é mostrar que, no Direito Privado, ele é privado.
que os indivíduos têm de alocarem eficiente- Por isso, naturalmente, tenho as minhas críticas
mente os seus direitos, independentemente da à estatização ou constitucionalização do Direito
própria ordem jurídica”. Mas o Estado, ao criar Privado. Se ele é privado, os agentes resolvem
uma determinada ordem jurídica, pode afetar a por si. Muito bem.
distribuição dos bens; então, as partes poderão A primeira escola, propriamente, foi a Clássica,
resolver por si, mas, dependendo da norma jurí- “fundada” pelo professor de Posner, aluno de
dica, a distribuição ficará diferente. Coase. Posner é uma pessoa que tem formação
Foi aludido a ele o Teorema de Coase, e ele na área de Letras ou Linguagem, mas não em
nunca se referiu como tal, que é basicamente: Matemática nem Economia. Ele pretendeu aplicar
se os direitos de propriedade são garantidos e os as ferramentas da Economia para compreender
custos de transação baixos, as partes conseguem problemas jurídicos dentro do pragmatismo que
chegar por si à melhor solução. Vou poupá-los, caracteriza esse pensamento, sobretudo dos norte-
porque não é o tema hoje, poderia ser uma aula -americanos, e acho que dá uma ideia da força da
inteira só sobre o Teorema de Coase, mas ele escola, em que o Posner, hoje, é Juiz Federal da
nunca disse que não existem custos de transa- Corte de Apelações do Estado de Illinois.
ção, ao contrário, são os custos que os agentes Muitos têm essa Escola como conservadora,
econômicos incorrem toda vez que precisam ir e talvez seja o caso; mas, muitos dialogam com
ao mercado negociar um determinado bem ou o Posner, o que não existe mais, e o Professor
serviço. Essas interações entre indivíduos no Bruno Salama tem vários artigos, a que refiro
mercado não ocorrem sem atritos. Por exemplo, aqui, justamente para explicar: o Posner tem,
quando eu vou ao mercado eu não tenho infor- pelo menos, três fases. E o pessoal, no Brasil, está
mação completa sobre aquela empresa que está dialogando com a mais antiga. Uma coisa meio
com ações vendidas. Quem sabia exatamente a estranha. Ele é um pensador muito complexo,
situação do Eike Batista e das Empresas X? Foi lá uma pessoa muito inteligente. Alguns dizem que
o mercado e comprou as ações. Essa empresa, o tem o defeito de mudar muito de opinião. Talvez,
controlador, sabia da situação, talvez; o compra- agora, ele tenha uma quarta fase em que ele diz
dor, que está no mercado não sabe. Obter infor- que de tudo o que escreveu ele se arrependeu.
mação dessa empresa é um custo de transação Parece-me, agora, que a Economia americana se
para o comprador, certo? recuperou, ele já não se arrependeu tanto; enfim,
Então, o Coase diz que existe custo de tran- é uma pessoa inteligente.
sação; portanto, o Estado pode sim agir para Lembro-me quando o Professor Eric James foi
reduzi-lo. Mas isso é outro problema. O que é à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, eu
interessante é que eu conversava com o Ministro era bolsista, a Professora Cláudia Lima Marques
Sidnei Beneti, e o que Sua Excelência disse é mais disse: devassem a biblioteca, leiam tudo o que
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Teoria da Decisão Judicial
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esse homem escreveu e façam perguntas. Li tudo ro, diz que está tendo muito acidente de carro.
o que ele escreveu, naturalmente, na universida- Tem algum problema de incentivo errado que
de pública há mais artigos da década de 70, do o Direito está trazendo para o comportamento
século passado do que dos atuais, então, li artigos dos indivíduos.
da década de 70. E ele deu a palestra exatamente De novo: não adianta eu consultar o que diz
contrária a um artigo que ele tinha escrito. Eu a Constituição, o Código Civil, encontrar uma
levantei a mão e disse: Professor, interessante maneira perfeita e bonita e poética de correla-
esse seu posicionamento, mas o que o senhor ção entre eles. Agora, eu quero o seguinte: na
acha desse outro posicionamento? Ele disse: uma prática, ele está resolvendo ou não? E a hipótese
bobagem. E perguntou quem tinha escrito. Eu, que ele fez é o seguinte: é que os acidentes, nor-
todo sem jeito, disse: o senhor. E ele disse: é que malmente, não estão internalizando todos os seus
eu estudei isso há 30 anos e mudei de opinião. custos. Uma pessoa dirige embriagada, atropela
Então, não é só o Posner que muda de opinião, outra, e aquele que é atropelado e salvo será,
os alemães também mudam. muitas vezes, salvo pelo SAMU, um serviço públi-
Williamson, que é um nacionalista, critica co; depois, é levado para um hospital público e,
muito o Posner porque parece que é só uma re- como dizem, é “encostado” pelo INSS. E fica lá,
lação unidirecional: a Economia importa para o recebendo uma pensão e quem paga é o INSS.
Direito, mas e o Direito, o que tem a contribuir Enfim, não é quem causou o dano; portanto, está
para a Economia, que é o que mais me interessa? havendo um incentivo para as pessoas dirigirem
Portanto, eu quero saber o que o Direito tem a embriagadas, causarem dano, porque não estão
contribuir para a Economia. E Calabrese mesmo pagando todo o dano. Há vários casos com cigar-
chama essa ideia do Posner de reduzir Direito à ro, álcool, enfim, mas, ele está falando de aciden-
eficiência de ridícula. Calabrese é Professor de te. Então, teria que se pensar em outro sistema de
Yale e também juiz da Corte de Apelações de responsabilidade civil, ou penal, se fosse o caso.
Boston, porque ele está em Yale, e me parece que Tem um artigo em que ele vai defender respon-
está longe de ser um neoliberal, está muito mais sabilidade objetiva porque a empresa, em alguns
para um liberal, no sentido americano. casos, consegue reduzir o acidente a um custo
Ele tem duas obras muito interessantes, a prin- mais barato, porque é dentro da minha linha de
cipal é O custo do acidente. Embora seja jurista, produção. Para o consumidor descobrir que deter-
ele tem uma “sacada” que traz da Economia (e minado banco ou assento decepa o dedo, o pobre
me desculpem a informalidade de usar expres- do consumidor tem que perder o dedo. A fábrica
são, que eu me permito, apesar do formalismo conseguiria fazer isso a um custo mais baixo – es-
da Corte), que é a seguinte: a responsabilidade tou simplificando, mas essa é a ideia.
civil serve para o quê? Para reparar o dano ou A nova escola institucional é outra linha (que
preveni-lo? Os economistas vão dizer que é para me interessa mais) voltada para o estudo das ins-
prevenir, e nós, do Direito, ficamos o semestre in- tituições, que são necessárias para o desenvol-
teiro ensinando a ganhar a indenização. É óbvio vimento, e eu colocaria o Judiciário aqui. Um
que uma sociedade não quer que o dano ocorra. professor alemão, de Hamburgo, correlaciona
O pessoal do Direito Ambiental aprendeu isso, segurança jurídica com desenvolvimento eco-
acho que até levou, de certa maneira, longe de- nômico, só que a sua métrica é que uma ordem
mais, não é? Porque é aquilo: tenho que precaver constitucional precisa de, pelo menos, 20 anos de
tudo. É como diz Araquém de Assis: se fosse para estabilidade. Então, vejam que a nossa constante
precaver tudo, Cabral não teria descoberto, ou mudança poderia gerar um coeficiente menor
não, o Brasil. para o desenvolvimento, e o Judiciário tem esse
É uma reflexão muito interessante: se a res- papel porque está no centro do sistema jurídico;
ponsabilidade civil serve mais para prevenir, o então, dependendo de como for a interpretação
que ele faz? Pega os dados de acidentes de car- que é dada... o que interessa aos agentes é a in-
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Cadernos
do CEJ 49

terpretação, e não o que está no Código. E como mas captura mesmo, e muitas vezes a regula-
as decisões são repetidas e, às vezes, contraditó- ção acaba atendendo a determinados setores, e
rias, isso é sim um problema. Problema que eu fico pensando, para dar um exemplo, nessa mu-
tenho que ver se quero conviver ou não; mas, dança que houve de tomada elétrica no Brasil.
causa uma dissonância no mercado e no com- Antigamente, tínhamos um padrão internacional.
portamento das pessoas. Agora temos um que todos tiveram que mudar.
O foco é na estrutura de incentivos. Será que o De quem é o interesse? Para que se mudou essa
Brasil, que tem a terceira maior bolsa de valores regulação? Não vislumbrei, em um primeiro mo-
e de mercadorias do mundo, a Bovespa e a BMF, mento, onde foram atendidos os meus interesses
não tem nada a ver com a CVM – Comissão de com essa mudança.
Valores Imobiliários? E será
que o fato de termos copiado, Há situações de prefeituras que têm 50% do seu orçamento
em certa medida, a Security
da saúde já esperando a liminar. Então, o critério é quem
Exchange Comission, não tem
primeiro entra e quem primeiro obtém a liminar, e não a
nada a ver com isso? Por que
política pública de distribuição de um direito coletivo [...]
a China, que é maior, até eco-
nomicamente, não tem uma
bolsa tão grande? Ou tem? Não que eu tenha co- Depois, existe outra publicação muito interes-
nhecimento. sante para quem trabalha com mercado de capi-
E é interessante porque se vai a campo testar tais e Direito do Consumidor, que é a Behavioral
a realidade. Tem uma publicação que procuro Economics, cuja ideia consiste em tomar algumas
não ler muito, confesso, a Public Choice, porque é contribuições da psicologia e aplicar à Economia
muito cética, chega até ser cínica, só que, quanto e, portanto, à analise econômica do Direito, ou
mais eu leio a Public Choice e leio jornais, eu me seja, nem sempre o agente econômico é racional.
convenço de que eles estão certos. Agora estou Percebemos, por exemplo, em mercado de bolsa
vendo o seriado House of Cards, que se passa den- de valores, comportamentos como de manada:
tro da Casa branca, e quem já conviveu com isso todos estão vendendo, e a pessoa vai lá e vende.
sabe que há um agir estratégico dos políticos e o Sim, parou para analisar se era o caso de vender?
mercado que existe é o da eleição. Os cientistas Não, mas está todo mundo vendendo. Aqui é só
políticos, por exemplo, chegam a falar que deter- uma provocação: os shoppings centers fazem isso,
minados candidatos têm mercado em termos de o comportamentalismo, como o consumidor con-
voto, e toda a estratégia das campanhas é para some mais. Ele consome mais com música; com
atingir o eleitor, não é em cima de uma platafor- mais oxigênio, que dá a sensação de bem-estar.
ma ideológica. Onde está a ideologia? Eu, que Isso é uma ciência.
trabalho com Direito Comercial, quando analiso Fiz uma contextualização e agora darei um
o comportamento dos partidos políticos no Brasil exemplo de como ela poderia contribuir. Quando
e em outros lugares, vejo que são semelhantes a eu estava na PUC em 2010, fiz antes uma pesquisa
uma empresa: eles fazem fusão, fazem uma de- para o Ministério da Justiça sobre burocracia,
terminada joint venture, e tem mais um horário com achados incríveis. Por exemplo: não sabe-
eleitoral. Isso se dá em qualquer democracia. mos quanto tempo demora para abrir uma em-
Agora, a Public Choice, apesar do cinismo e da presa no Brasil, e por quê? Porque ninguém sabe.
ideia de escolha racional no âmbito da política, Ela precisa de várias licenças, fui lá com o pessoal
não me agrada, tenho certa resistência. Enfim, da Economia e da Sociologia, e ninguém sabia. A
para quem estuda regulação é muito interessan- Junta Comercial agora sabe, mas os Bombeiros
te, porque mostra que muitas vezes o regulador não sabem, os órgãos ambientais desconhecem.
é capturado pelo regulado, porque o regulado é Então, empiricamente, não sabemos quanto tem-
tão grande, tão influente, que não é corrupção, po realmente demora para abrir uma empresa no
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
50

Brasil. Enfim, isso é uma outra pesquisa. aeroporto está sempre em obras, assim como o
Essa aqui era para pesquisar o excesso de li- de Porto Alegre.
tigância. Na época, em 2010, estava em seten- A demanda cresce mais, e vou ter que pensar.
ta milhões, agora já aumentou. O CNJ, quando Se eu quiser controlar, vou ter que dar um jeito
abriu o edital, e concorremos e ganhamos, queria de atacar a demanda. Não adianta só melhorar
entender por que tinha tanta demanda no Brasil, a eficiência do Judiciário se ela não é suficiente
pois vamos combinar que setenta milhões é muito para atacar e resolver o aumento da demanda.
processo. Até, de certa maneira, vai ao encon- Há estudos do Castelar que foram bastante cri-
tro da ideia de que não existe acesso à Justiça. ticados, mas tem o preço de ter sido o primei-
Eram setenta agora são noventa milhões. Como ro estudo para tentar mensurar a eficiência do
não existe acesso? O contexto é sabido. Crise da Judiciário. Nossa proposta foi entender as causas,
Justiça. Aliás, desde que entrei na faculdade de considerando oferta e demanda sobre prestação
Direito, a Justiça está em crise, e se faziam refor-
judicial na área cível. Não se estava falando de
mas: a reforma do agravo, reforma disso, reforma acesso a medicamento, de família, etc, mas de
daquilo, mas ninguém estuda empiricamente o demandas cíveis patrimoniais.
problema. São reformas feitas hipoteticamente: Foi curioso quando apresentamos isso ao CNJ,
precisamos diminuir o agravo, terminar com o pois a primeira reação foi dizer que trivial essa
agravo. Mas nem sei por que existe. Não sei se os pesquisa, Luciano. Sabemos por que as pessoas
agravos estão sendo revertidos ou as apelações. processam as outras. É porque tiveram direitos
Então, terminamos. Será? Mas e se 60% das ape- violados. Será? As pessoas litigam, e é isso que
lações forem providas, será que é o caso? Não. está por trás de nossa pesquisa, por direitos ou
Fazemos política legislativa de uma maneira um por interesses? E se eu não fizer uma pesquisa
pouco atabalhoada. Juízes e tribunais sobrecar- de campo, não tenho como saber. É hipotético.
regados, evidentemente, custo Brasil. O sistema Escrevo um manual, mas não sei. A ideia também
jurídico compõe sim o custo Brasil, porque nosso foi comparar a eficiência das diferentes unidades
sistema jurídico entra junto com regulação, que, da Justiça brasileira, porque se tem um tribunal
no Brasil, também tem seus problemas. que é mais eficiente que outro, isso significa que
alguns tribunais conseguem
chegar até lá sem ampliar a
Será que o Brasil, que tem a terceira maior bolsa de valores e de sua estrutura, bastando melho-
mercadorias do mundo, a Bovespa e a BMF, não tem nada a ver rar outras coisas, e tem-se que
com a CVM – Comissão de Valores Imobiliários? ver o que aquele tribunal mais
eficiente faz para se fazer igual,
na medida do possível.
Uma coisa que é estatística e não podemos Para conhecer as motivações do litígio, terei de
discutir: percebemos que a demanda por serviços entrevistar as pessoas e entender por que elas liti-
judiciários aumenta mais que a produtividade do gam, por que elas recorrem e por que elas fazem
Judiciário. Não tenho os dados de cabeça, mas acordo. Por exemplo, resposta tradicional de um
digamos que a demanda aumenta 10% a cada processualista: devemos ter mais acordos. O que
ano e a capacidade de o Judiciário melhorar sua ele faz? Uma mudança no Código de Processo
produtividade está em 5%. O Judiciário não con- Civil para obrigar a ter uma etapa, uma audiên-
segue fazer frente ao aumento proporcional da cia de conciliação ou ter mediação. Haverá mais
demanda, porque ele tem limites de juízes, limites acordo? Na Colômbia existe essa fase e não serve
orçamentários e até físicos. Se tem que construir para nada, assim como na Argentina. Nos Estados
um prédio, no Brasil, a obra demora dois anos, Unidos não há essa fase obrigatória, e 94% das
como estamos vendo. E as obras muitas vezes não indenizações terminam em acordo. O que motiva
terminam. Há dois anos que venho a Brasília e o as pessoas a fazer acordos não é a fase obrigató-
série
Cadernos
do CEJ 51

ria, mas o conjunto de incentivos que a pessoa para litigar. Não estou dizendo que uma é mais
tem para fazer ou não acordos, pelo menos em que a outra. Não é nada estatístico. Nós captura-
demandas patrimoniais cíveis. E então formular mos quatro racionalidades para se litigar no Brasil
estratégias para minimizar a morosidade, atacan- nesses três Estados que são bem representativos
do tanto oferta quanto demanda. de realidades diferentes. E eu brinco – é uma pro-
Então, foi uma pesquisa de análise sociológica vocação – que três motivações são “posnerianas”
das motivações (feito pelo pessoal da Sociologia), e só uma é do “dworkiana”. As pessoas entrevista-
análise da eficiência dos tribunais (feito pelo das mostram que litigam no Brasil, curiosamente,
pessoal da Economia) e problemas de gestão. por baixo custo de acesso e baixo risco. Por que
Escolhemos três tribunais, para ter três realidades isso? Porque, por exemplo, no Rio Grande do Sul,
diferentes: o Tribunal de Justiça do Rio Grande 70% das demandas cíveis estão sob o patrocínio
do Sul, o de São Paulo e o do Pará. Comparamos da AJG, Assistência Judiciária Gratuita, que o
tanto o aspecto de gestão quanto o de eficiên- Estado paga (não o Estado, o contribuinte).
cia. E o que entra em eficiência: quanto custa e Eu quero quantificar o quanto isso é legítimo
quanto entrega. Sei que vai chocar muitos, que ou não. Existe essa motivação. Entrevistamos vá-
vão dizer que Justiça não se presta a isso. Gente, rios tipos de partes, sofisticadas, não sofisticadas,
escola se presta, hospital, e por que a Justiça não até empregada doméstica. Até para empregada
se prestaria? Não vejo que justiça seja mais rele- doméstica: olha, na verdade, não custa nada,
vante do que educação em um país. Também não o advogado ganha 20% se for procedente. Isso
é menos, mas se analiso eficiência de escolas e não custa nada. É óbvio que qualquer manual
hospitais, eu poderia também fazer uma análise de microeconomia diz que quando é de graça
de eficiência dos tribunais. até injeção na testa. Só não estou dizendo que
A verdade é que números não vêm ao caso; é bom ou ruim. Não pode surpreender a nós,
fizemos todas as simulações, alguns tribunais são advogados, que tem um excesso, se é de graça.
mais eficientes que outros; alguns chegam a ser A mesma coisa de se dizer: o juizado especial iria
70% mais eficientes, 80%. Alguns vão dizer: lá diminuir o volume de processos na Justiça co-
vem o gaúcho falar que o Rio Grande do Sul... mum. Se a demanda for por outro tipo de serviço
Essa pesquisa tinha mineiros e outros. Existem de baixo valor, os dois ficam lotados. Perspectivas
diferenças brutais de eficiência. Não estou falan- de ganhos.
do de qualidade. Eficiência é uma coisa muito Isso está um pouco no racional da energia
específica. É quanto custa e quanto entrego. Com elétrica. Orientei um trabalho de uma aluna;
aquele custo proporcional, alguns tribunais en- a inadimplência de energia elétrica em Porto
tregam mais que outros. Se isso é bom ou ruim... Alegre é por rua. Tem rua que ninguém paga e
Será que o tribunal mais eficiente tem algo a en- tem rua que todo mundo paga. Tem a rua dos
sinar para o menos eficiente? No mundo corpo- trouxas e a dos espertos. Perspectiva de ganho
rativo é comum. O que eles estão fazendo? Está aparece como uma racionalidade para litigar na
informatizado? Os juízes estão sendo treinados? Justiça cível.
Os servidores são melhores? Tem alguma transfe- Outra racionalidade: o uso instrumental da
rência de tecnologia que seria possível de se fazer Justiça. A pessoa não usa a Justiça pela justiça.
sem mudar o Código de Processo Civil. Ele diz: Eu uso para fazer um acordo, para cha-
Na análise da motivação de por que as pessoas mar a negociar, mas ele não está buscando justiça
demandam, foi feita uma pesquisa qualitativa e com letra maiúscula. Não seria o que normal-
as partes foram entrevistadas. Existe um software mente os Magistrados esperariam quando ele está
que chama NVivo, que o pessoal da Sociologia ali trabalhando. Não está ali por ele, está ali como
usa que você grava, degrava, e joga nesse softwa- um meio para fazer um acordo, às vezes para ga-
re, você quantifica pelas palavras que aparecem nhar tempo. Se estou na Justiça para não pagar
e nós ranqueamos em quatro motivações básicas a dívida e ganhar tempo, não vou fazer acordo.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
52

Por que eu faria, se preciso de oxigênio? é pobre. Ou, segundo a Receita, são R$ 1500,00.
Finalmente, entrevistamos pessoas que foram Não sei. Mas não é muito mais de uma receita de
vítimas de acidente aéreo. Aí você litiga por con- R$ 1500,00. Existem aqueles que têm salário de
vicção. Você não quer o dinheiro, você quer a R$ 5.000,00, R$ 10.000,00, que recebem a AJG,
sentença, você quer a Justiça com J maiúsculo. empresas. Basta declarar. E, de novo, se basta
Em cima disso, fizemos algumas proposições, declarar e não há uma fiscalização nem conse­
inclusive para o CNJ, para diminuir a litigância quência, vocês imaginem qual seria a conse­
e uma delas foi – foram duas as principais – uma quência do ponto de vista de análise econômica.
maior uniformidade de jurisprudência no próprio Não gosto da expressão “LIÇÕES”, por isso co-
STJ, na lei federal, porque as decisões para todos loco em letra maiúscula, pois não existe “receita
os lados dificultam, acordo dificulta, a capaci- de bolo”, mas opções, que são políticas. Agora,
dade dos advogados dizendo o que é e o que a ciência, como a Economia, aponta-me algumas
não é o direito e também um maior cuidado na consequências previsíveis, como até uma frase do
concessão do benefício da assistência judiciária Professor José Reinaldo: pensar na floresta, e não
gratuita, porque a lei fala em pobre. Pobre, se- no arbusto ou na árvore; ver o filme, não a foto. A
gundo o IBGE, é um critério, a Receita Federal análise econômica não requer cálculos comple-
é outro critério, mas todos eles muito abaixo do xos, matemáticos, exclusivo para economistas.
que normalmente o Judiciário tem dado como O Churchill dizia que guerra é uma coisa muito
uma pessoa sem condições de pagar R$ 100, 00, séria para ficar na mão apenas de generais. E ter-
R$ 200,00, para entrar com uma ação. minaria aqui minha fala, dizendo que Economia
Então, pobre, segundo o IBGE, é uma família é uma coisa muito séria para ficar apenas na mão
que vive com dois salários mínimos e meio. Isso de economistas.”

SIDNEI BENETI
Ministro do Superior Tribunal de Justiça


Agradecemos ao professor Luciano Benetti Timm, por essa exposição de enorme abrangên-
cia. Chegou a todos os campos possíveis, esquadrinhando, também, os detalhes de cada um dos setores
de que Sua Excelência tratou e trazendo uma admirável contribuição de erudição de que é portador.
Vou ter a enorme satisfação de passar aos senhores a palavra do Professor José Reinaldo de Lima
Lopes. Professor José Reinaldo Lima Lopes é um dos grandes nomes no nosso meio acadêmico.
Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – permita-me reverenciar
a nossa Academia de São Paulo –, professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, São
Paulo, coordenador do Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas de Direito Getúlio Vargas. É graduado
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e também graduado em Letras, pela mesma
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Várias atividades docentes desenvolvidas no
Brasil e no exterior, inclusive como professor convidado na Faculdade de Direito na Universidade de
Munique, a grande Faculdade de Canaris & Claus Roxin.”
série
Cadernos
do CEJ 53

te tradicionais nas quais somos como turistas


obrigados a fazer cálculos econômicos, a pen-
sar como pensaria um agente econômico. E, na
última parte, quero levantar dois pontos que,
na minha opinião, ajudam a esclarecer o que
estamos falando contemporaneamente, por que
esse diálogo é tão importante.
Em primeiro lugar, vou ser realmente muito
breve. Economia e Direito. Quais são as minhas
ideias a respeito desses dois fenômenos? Eu di-
ria, em primeiro lugar, que, como fenômenos,
eu deveria analisar a Economia e o Direito como
práticas sociais. Esse é o meu ponto de partida
atualmente. Pensar a Economia e o Direito como
JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES práticas e, portanto, saber tanto que agir como
Professor Titular da Universidade de São Paulo um agente econômico ou agir como um agente
dentro da ordem jurídica é um agir segundo re-


gras, sempre. Toda prática é regrada. Jogar fu-
Bom dia a todos. Gostaria de iniciar tebol é exercer uma atividade segundo as regras
agradecendo o convite que me foi feito inicial- do futebol. Cantar ópera é exercer outra prática
mente pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. dentro das regras do cantar ópera. Fazer Direito
Estou muito honrado de estar nesta mesa, com é uma prática e Economia também é uma prática.
os meus queridos colegas Bruno Salama e As respectivas disciplinas – a Economia e o
Luciano Benetti Timm e com o Ministro Sidnei Direito – são reflexões – eu diria – abstratas, con-
Beneti. Para mim, é um privilégio ter esse públi- ceituais sobre essas práticas. Elas explicitam as
co tão seleto, cativo, durante alguns minutos, regras dessas duas práticas e propõem a melhor
para ouvir as minhas reflexões. maneira de exercer essas práticas. Se eu pudesse
Vou tentar ser bastante breve. Havia quatro falar uma teoria do futebol ou uma teoria do
pontos na minha exposição, que eram os seguin- jogo do xadrez, isso me propõe as melhores ma-
tes. Primeiro, uma abordagem sobre o Direito e neiras ou a maneira ideal de realizar qualquer
a Economia de um ponto de vista conceitual, o uma dessas atividades. Portanto, essas teorias
que é uma coisa, o que é outra, a racionalida- fazem isso. Há um problema que eu acho que
de dentro de um e dentro de outro campo. O vai marcar a diferença entre Direito e Economia
segundo ponto seria uma história das relações ao longo do século XX e desse problema somos
entre as duas disciplinas, mas isso o professor herdeiros. Vou também sumariar muito, mas
Luciano Benetti Timm acabou de fazer. Só vou quero dizer muito claramente o que penso. A
lembrar – aproveitando essa oportunidade – um disciplina econômica assumiu a reflexão sobre
nome que foi extremamente importante, foi con- a ação humana e foi dentro da disciplina eco-
siderado um dos maiores filósofos do Direito, te- nômica no século XX que a ação e o processo
óricos do Direito na primeira metade do século deliberativo foram pensados e repensados. Por
XX, o Rudolf Steiner. Ele já havia se dedicado exemplo, o surgimento da teoria dos jogos que
às relações entre Direito e Economia, tem um foi aproveitada pela Economia, a teoria da es-
clássico que depois recebe até uma resposta do colha racional, o welfare economics, os debates
Weber a respeito dessas relações de Direito e mais contemporâneos que estão em andamento
Economia. Vou suprimir essa parte, aquilo que com alguns grandes nomes como o de Amartya
era segundo vai ser a terceira parte da minha Sem, são todas teorias da deliberação.
exposição. É um elenco de casos absolutamen- O Direito abandonou isso. A teoria do Direito
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
54

se transformou, no século XX, na teoria da norma. Berkeley e o Kelsen fala uma das coisas mais en-
Nós perdemos – farei uma caricatura, permitam- graçadas: O Professor Hart discorda de mim, mas
-me isso – a reflexão sobre o deliberar. Inclusive,
eu não discordo dele. Onde está o ponto? Hart vai
imaginamos, de uma maneira generalizada, que definir. Definindo-se como um positivista, sem ne-
a deliberação é irracional. Não há teorias da de- nhum problema, ele vai definir o Direito como
liberação jurídica. O Direito perdeu isso. Mas o uma prática social e vai introduzir o problema da
problema foi um problema para nós como juristas deliberação e da racionalidade nessa prática.
– eu diria – bastante sério porque nós perdemos Dou outra vez um exemplo. Acho que es-
a reflexão. E, no entanto, acho que o Professor ses dois autores são muito interessantes para
Luciano antecipava isso na fala dele. O Direito nós. Posso estar errado, meus colegas vão me
é uma disciplina que tem cerca de mil anos no corrigir e vamos debater. Para Kelsen, a racio-
Ocidente, se nós imaginarmos a fundação das es- nalidade do seguir o Direito está em evitar a
colas de Direito a partir da experiência de Bolonha
sanção. Para Hart, a racionalidade do Direito
por volta do ano 1000, 1040 ou 1080, temos uma está em fazer a coisa certa. O exemplo clássico
reflexão de mil anos sobre a ação humana. que ele dá em seu livro O conceito do Direito é
A teoria dos contratos é uma teoria da ação, um exemplo de como se aprende a seguir uma
para ficar num exemplo trivial. É uma teoria da regra? Como seguimos uma regra? Ele dá o
intencionalidade, é uma teoria da motivação. exemplo do pai que quer ensinar o filho a tirar
Nós abandonamos isso. Isso é uma das coisas o chapéu ou descobrir a cabeça quando entra
mais importantes. O que aconteceu – eu acho em uma igreja, por exemplo. O menino está
– nós perdemos, nós não quisemos falar mais dis- aprendendo aquilo e o pai quer ensinar não
so – estou fazendo a caricatura, insisto. Os eco- para evitar sanções, mas para que o menino,
nomistas estão fazendo. Então, fica parecendo sabendo se comportar, entre naquela comu-
que a única racionalidade de ação existente é a nidade, aprenda a seguir as regras que farão
racionalidade do homem econômico, do agente dele um agente sensato dentro daquela comu-
econômico. Desapareceu a ideia de que seguir nidade. Acho que isso é fundamental. Acho
regras jurídicas é uma atividade racional e que, que vários autores importantes hoje pensam
portanto, exigiria uma reflexão nesses termos. sobre isso. Digo que não é hegemônico, digo
que isso para nós é funda-
mental, por quê? Porque
O Direito é uma disciplina que tem cerca de mil anos no a teoria do Direito precisa
Ocidente, se nós imaginarmos a fundação das escolas de Direito revisitar o processo delibe-
a partir da experiência de Bolonha por volta do ano 1000, 1040 rativo de todos nós, agentes
ou 1080, temos uma reflexão de mil anos sobre a ação humana. do campo do Direito. Isso é
a primeira coisa.
Outra coisa importante
Da segunda metade do século XX para cá, a nessa primeira ideia é que o Direito e a Economia
ideia de que o Direito é uma prática e de que a compartilham o caráter de serem derivados da
boa teoria do Direito ou a teoria do Direito que filosofia da tradicional e clássica Filosofia Moral ou
está faltando é uma teoria da deliberação voltou a Filosofia Prática. São dois campos dessa filosofia.
ganhar corpo. Ela, no entanto, não é hegemônica Evidentemente, a Economia conseguiu formalizar
na formação dos juristas. Alguns exemplos desse essa racionalidade e conta com um elemento que
pensamento, como o autor fundamental para essa ajuda muito: a moeda, que permite quantificar
virada, todos nós conhecemos, é Herbert Hart. Ele as coisas e, portanto, matematizar o processo. O
se confessa um positivista, mas ele se desentende Direito não conta com isso, porque, diferentemen-
com o Kelsen. Há uma conferência – vários de te da Economia, o Direito é uma prática abrangen-
nós conhecemos – em que eles estão juntos em te, não tem um fim determinado. Se quiséssemos
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Cadernos
do CEJ 55

falar de um fim determinado do Direito, eu pode- guir o mesmo resultado com menos dispêndio
ria sugerir algumas alternativas. de energia, de custos, eu cumpri a lei, cumpri
Na Economia, a racionalidade e a intencio- o Código. Um exemplo banal.
nalidade, mas, sobretudo, a inteligibilidade da A mesma coisa vai aparecer depois no
tomada de decisão é dada pelo conceito de Processo Penal em outro dispositivo. Concessão
escassez. No Direito, qual é o conceito que de alimentos. Como devem ser concedidos os
articula e que dá inteligibilidade ao regime? alimentos? Por facilidade, cada tribunal, um
Não discutimos muito isso. Vou propor, con- pouco no Brasil, definimos alguns critérios que
tra provavelmente 99% dos presentes, que facilitam a decisão. É um terço, são tantos por
esse conceito seja a Justiça. Uma coisa curio- cento do salário do alimentante, mas não é isso
sa. Estamos no Conselho da Justiça Federal. É que diz a lei. A lei diz que os alimentos devem
uma coisa que não discutimos na Faculdade de ser fixados de uma maneira tal que nem matem
Direito. E achamos, inclusive, que talvez seja de fome o alimentante, nem matem de fome os
coisa para quem tem ilusões. Se eu não deba- alimentados. Como calculo isso, senão fazendo
ter esse conceito, se eu não entender esse con- um cálculo sobre a escassez e as necessidades?
ceito, talvez eu esteja perdendo aquilo que dá Processo de falência é cheio de dispositivos
sentido à prática. A Justiça pode ser um des- dessa natureza. Direito da concorrência obriga,
ses temas. Eu penso que é. Mas haverá outro no nosso caso, o Conselho a examinar o custo e
mais palatável para quem gosta de Sociologia, os benefícios daquela transação. São casos em
de Economia e das Ciências, das nossas irmãs que a lei explicitamente obriga. Mas há outros,
novinhas da área das Humanidades, têm 200 em que sabemos que o cálculo tem que ser ne-
anos. O Direito terá mais de 2.000. Desculpem. cessariamente de uma matriz econômica.
É brincadeira. O Professor Luciano mencionava um caso
Mas essa palavra poderia ser a reciprocida- exemplar, o das distribuições dos custos entre
de. E uma reciprocidade geral. Uma recipro- condôminos. Como a lei diz? Ele será igual. Igual
cidade não na troca, não apenas na troca das como? Tenho que fazer as contas. No nosso caso,
coisas. Mas uma reciprocidade. Por exemplo, o código ainda permite um detalhe a mais em fun-
um respeito devido no espaço público, devido ção da área e assim por diante. Mas são imposi-
na República e assim por diante. Poderíamos ções de caráter econômico. Temos vários casos
pensar que a reciprocidade daria essa inteli- que estão chegando aos tribunais. Vou mencionar
gibilidade do campo. A minha proposta é um um em particular. É um caso que analisei, publi-
pouco essa. Penso que o diálogo poderia come- quei um pouco dessa análise da Ação Direta de
çar, mas temos que rever um pouco os nossos Constitucionalidade n. 9 sobre o racionamento, a
conceitos fundamentais da teoria do Direito. tarifação da energia, no famoso apagão de 2001.
Segunda parte que gostaria de dizer. Por Ele só pode ser resolvido com o critério que alguns
menos que gostemos e que falemos, a minha vão dizer que é econômico. E eu vou dizer: não é
proposta é a de que os juristas são, em vários econômico, é jurídico. Tenho que tomar a produ-
casos, e os juízes em particular são, em vários ção de energia como um bem coletivo e distribuí-
casos, obrigados pela lei a raciocinar como um -lo adequadamente entre todos os usuários.
agente econômico. A decisão correta, em ter- Havia me esquecido de falar e vou mencio-
mos de Direito, é a decisão correta em termos nar como uma nota de rodapé. Por exemplo,
de Economia. Vou dar dois exemplos. Em um os juristas têm uma categoria fundamental para
processo, tem um dispositivo que diz o seguin- trabalhar com essas coisas. Pode ser que seja só
te: A execução. O Juiz deve promover a execução na minha faculdade, mas eu vejo que os meus
à parte da maneira menos custosa para o execu- alunos não aprendem mais isso. Exatamente
tado. Qual a maneira menos custosa? Tenho porque não aprendem a pensar sobre as ra-
que fazer um cálculo ali, concreto. Se eu conse- zões do Direito. Essa categoria nossa, que os
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
56

economistas chamam de “bem coletivo”, para que nós, como juristas, temos que enfrentar.
nós, juristas, são os bens indivisíveis. Está no Em vez de abrir com uma citação, vou termi-
Código Civil: há bens que são naturalmente nar com uma citação. Gosto muito disso. Alguns
indivisíveis. Esses os meus alunos detectam. que me conhecem já sabem que cito várias ve-
Uma vez eu fiz a experiência e perguntei para zes este autor. É uma fala do Portalis quando
eles: um bem indivisível? Eles disseram: uma ele está defendendo, em 1804, diante do Corpo
vaca. Muito bem. É isso mesmo que o Código Legislativo, o projeto de Código Civil, quando,
Civil diz. Aquele que perde a substância ao ser para alguns, há a esperança de que, aprovado
dividido. E outros? Ninguém pensava. Eu fala- o Código, não vou precisar mais nem de dou-
va: uma empresa não é indivisível? As pessoas trina, nem de jurisprudência. E ele disse: nada
têm dúvida. Mas o Código diz: Os bens natu- disso. Em primeiro lugar, ele disse os homens não
ralmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis sossegam jamais. Então, os casos vão mudar e
ou pela lei – monte a ser partilhado, uma série esses casos vão precisar de juízes que os inter-
de outras coisas, massa falida – ou por vontade pretem e de doutores que reflitam e esclareçam
do proprietário. Ele designa aquele conjunto conceitual­mente a questão.
para um fim só e aquele conjunto só é um con- Mas há outra intervenção muito importante
junto que funciona. em que ele diz o seguinte: há coisas cuja justiça
Estou dando exemplos para mostrar como sabemos apenas em ler. Ele dá o exemplo de uma
temos tantos elementos na tradição jurídica, no cláusula contratual em uma sociedade que dê
nosso saber, para enfrentar essas questões, mas a um só dos sócios todos os lucros. Ele fala: eu
não usamos. Então, qual é o meu ponto final? E não preciso de mais nada para saber que isso é
aqui vou terminar. É que aprendemos Direito injusto. Em outras palavras, uma cláusula assim
imaginando que a única Justiça que existe é a é injusta por definição, porque a definição de
comutativa, é a Justiça das trocas individuais. sociedade implica a definição de distribuição. Se
Há uma tradição clássica que diz: não, as es- eu tenho uma cláusula que evita distribuição, não
truturas das relações não são apenas de troca, há sociedade. Aliás, o nosso Código Comercial
são também de distribuição. Mas, para eu en- dizia que era nulo esse contrato, não é cláusula
tender a distribuição, preciso do conceito de que é nula, é nulo o contrato inteiro.
indivisibilidade, preciso do conceito de bem Essas coisas eu sei por definição. Ele fala:
universal. Eu tenho, eu disponho dessas coisas mas há coisas que só sei se são injustas com o
na tradição jurídica. auxílio de um saber não jurídico, e o exemplo
Eu diria, para concluir de maneira muito rá- que ele dá era o que o professor Luciano estava
pida, que as coisas que estão causando mais mencionando aqui, ele fala: as questões de agri-
problemas entre nós, juristas, hoje em dia, é cultura, terei que arbitrar pelo contrato, pelas
esse enfrentamento de questões distributivas relações jurídicas que o Código vai, sem dúvida
que estão chegando aos tribunais e parece que nenhuma, cobrir e interpretar, mas não saberei
a razão para essa distribuição não a conhece- se é justo ou injusto a não ser com o auxílio de
mos bem. Penso que é uma série de problemas algum outro saber. Acho que é disso que se trata
a serem enfrentados, uma série de distinções a o nosso debate contemporâneo, acho que é isso
serem feitas que incluem, em primeiro lugar, que precisamos pensar.
voltar a temas que sempre pertenceram aos Desculpem-me a brevidade e também essa for-
juristas. Não ter medo da conversa com outras ma um pouco informal, mas acho que com isso,
disciplinas e apropriar-nos dessa discussão que, apontei para as coisas que mais me preocupam e
na minha opinião, é interna ao Direito, essa que, na minha opinião, podem ajudar a facilitar
é uma questão fundamental. É aí que está se esse diálogo tão importante que se tornou tema
travando, eu diria, uma parte da batalha e da deste congresso chamado pelo CJF, que teve essa
batalha real, mas também da batalha conceitual sensibilidade para a relevância do tema.”
série
Cadernos
do CEJ 57

SIDNEI BENETI
Ministro do Superior Tribunal de Justiça


Agradeço o Professor José Reinaldo Lima Lopes. Realmente, nós que viemos da mesma
faculdade, neste momento, nos sentimos voltando aos bancos acadêmicos. Lembrei-me dos meus
inícios da Faculdade de Direito com Goffredo da Silva Telles e terminando no quinto ano com Miguel
Reale. Realmente, a visão de um sistema, a visão de algo que condiciona a coerência lógica do todo.
Cada uma das partes condicionadas pelo todo, que é a busca da ordem jurídica a um sentido de justi-
ça que preside a ordem jurídica. Esses valores fundamentais na exemplificação de Vossa Excelência,
lembrava-me de outra, que é Shylock, no Mercador de Veneza. Realmente, esse contrato não podia
jamais ser cumprido porque ele trazia ínsito o germe do seu descumprimento, que era o afrontar a
consciência humana.
Temos algumas perguntas que vieram para o primeiro expositor e não sei se teremos tempo, por-
que, na verdade, estamos adiantados no horário, mas pelo menos se pudéssemos ver algumas das
perguntas e dar as respostas seria interessante com maior atenção ao auditório.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
58

ao direito à saúde, foi por eu não ter tido, enfim,


condição de me expressar mais claramente, porque
era uma metapalestra, ou seja, eu estava discutindo
a decisão em si e as decisões que colacionei eram
simplesmente ilustrativas dos argumentos de fundo,
que foram as três proposições que lhes apresentei.
É possível usar argumentos. Acredito que
a reserva do possível seja um argumento que
se põe legitimamente na nossa ordem jurídi-
ca. O que a economia pode fazer aqui nesse
caso são duas coisas. Primeiro, ela pode ser-
vir para fundamentar, a rigor, as duas posi-
ções, porque, tanto se pode falar em reserva
BRUNO SALAMA do possível e logo se dizer que, por exemplo,
Professor da Fundação Getúlio Vargas-SP remédios não devem ser concedidos, porque


isso gera incentivos perversos, porque eventu-
almente há uma má alocação dos recursos da
Evidentemente, vou ser brevíssimo e saúde, como acredito que de fato haja, nesse
prefaciar a minha fala, enfim, para dizer da pro- caso, mas, por outro lado, pode-se argumen-
funda admiração que tenho pelo professor José tar, também, que o direito à saúde preserva a
Reinaldo, e dou-me aqui a liberdade de consi- existência das pessoas e, portanto, com saúde,
derar um amigo, e dizer que o tempo não passa no limite, elas podem até sobreviver melhor,
quando ele fala, aprendo muito. estudar melhor, trabalhar melhor e, portanto,
Recebi duas perguntas a propósito de como se há argumentos econômicos dos dois lados, que
relaciona a ideia de argumento econômico e as é limite até onde estou querendo chegar. Não
questões que estão no Poder Judiciário a respei- estou aqui para discutir um tema que de ver-
to de medicamentos. Se é possível fundamentar dade não estudei. Nunca parei para estudar o
uma negativa à concessão de medicamentos plei- tema do direito à saúde.
teados com base no princípio constitucional de A segunda coisa que a Economia nos pode fa-
direito à saúde, na reserva do possível ou outras zer num caso como esse, e existe literatura a esse
construções que, em última análise, dizem respei- respeito, é a discussão de vantagens comparativas
to a tema de custo e a temas que se constroem, do Poder Judiciário versus Poder Legislativo para
também, economicamente. a discussão sobre bens escassos. E aí a vantagem,
E faço aqui três pontos muito breves. Primeiro, enfim, do Poder Legislativo seria, em princípio,
na minha palestra citei vários exemplos, vários o fato de que há a possibilidade de acesso a um
casos e decisões, mas algumas eram, inclusive, conhecimento técnico de forma mais organizada
votos vencidos e em nenhum momento eu esta- e a desvantagem eventualmente seria se o pro-
va endossando essa ou aquela decisão do pon- cesso político não for condutor a um resultado
to de vista de mérito. Não porque eu concorde que se mostre adequado do ponto de vista da
ou discorde, mas porque eu simplesmente que- nossa ordem jurídico-política, inclusive do ponto
ria ilustrar a possibilidade de uso de argumen- de vista dos valores que a norteiam.
to econômico para a construção de raciocínios De modo que não vou tomar o partido que
para melhorar ou contribuir para a aplicação do eventualmente aqui as perguntas pediam de mim
Direito e interpretação do Direito. e vou simplesmente apontar o que me parece
Se, em algum momento, a minha palestra passou pertinente do ponto de vista do seu encaixe com
a sugestão de que eu estava endossando ou não te- as proposições que lhes trouxe no começo da
mas dessa natureza no tocante ao acesso à Justiça, minha fala.”
série
Cadernos
do CEJ 59

SIDNEI BENETI
Ministro do Superior Tribunal de Justiça


Agradeço o professor e no encerramento, quero, em primeiro lugar, salientar a presença no
auditório, entre tantos magistrados, juristas ilustres, que reconheço daqui, mas que não vou nomear a
cada um, quero, com a permissão de todos, salientar a presença, durante todo o tempo, dos eminentes
Professores Humberto Ávila, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Celso Campilongo da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Raffaele De Giorgi, da Universidade Lecce na
Itália, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, tendo estado presente também o Ministro Paulo Dias de
Moura Ribeiro, também do STJ.
Em nome da organização e com a permissão do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, entregarei o
certificado, uma forma singela da nossa gratidão aos eminentes conferencistas que nos brindaram
com suas palestras: Professor Bruno Meyerhof Salama, Professor Luciano Benetti Timm e Professor
José Reinaldo de Lima Lopes.
Curiosa é a vida. Eu tenho muito tempo de magistratura. Já tenho completos 42 anos de magistra-
tura e há muito tempo, dirigindo uma revista da Associação Paulista de Magistrados, juntamente com
dois outros grandes magistrados de São Paulo, colocamos como matéria de capa uma pergunta, que
era a seguinte: “Existe conflito entre economista e o jurista?” Responderam esta pergunta, não me
lembro de todos, alguns juristas e alguns economistas. Entre os economistas estava Roberto Campos,
que, naquela época, tinha muita projeção e, além do mais, escrevia bem, o que era muito importante e
José Eduardo Faria, na área dos juristas, outro que tinha sido Ministro da Fazenda. Também de minha
parte me aventurei a escrever a esse respeito. E também um jurista que não tinha, no fundo, nada a
ver com isso, que era Theotonio Negrão, cuja autorização conseguimos para inserir uma poesia em
que ele tratava com humor aquilo que vinha da economia naquela época dos governos militares para
que os juristas viessem a interpretar.
O tema, portanto, sempre está presente nas nossas cogitações de magistratura. Falando nisso, gos-
taria, com a permissão da mesa, do organizador deste nosso seminário, trazer uma recomendação aos
magistrados presentes: não podemos perder o hábito de sermos juízes. E como podemos colaborar
com a solução de matérias que envolvem esse debate eterno entre a economia e a justiça? Podemos
colaborar de algumas formas. Uma delas é fazendo com que as nossas decisões, quando tocarem
assuntos como esse, realmente sejam decisões de meditação intensa e rápida, para que essa perda
de tempo, que é muito séria em matéria de economia, não venha a ter um acréscimo maior com a
grande demora do andamento dos processos.
Estou me lembrando da questão dos planos econômicos, que até agora não encontraram uma com-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
60

posição definitiva pelos tribunais brasileiros, embora isso venha de longe e essa recomendação tenha
alguns “senões”. Talvez, a comparação entre os planos econômicos brasileiros e, por exemplo, os da
Argentina, tenha tido o enfoque diverso e a solução diversa por toda a sociedade devida, em parte,
à demora de solucionar os problemas do Brasil e, em oposição, a rapidez da Argentina na solução do
Corralito. O Corralito veio trazer nas suas soluções mais desequilíbrios à sociedade argentina que essa
demora judiciária na solução dos planos econômicos para o Brasil.
Mas que os juízes sejam céleres nisso e tomem cuidado, não se impressionando muito com a grande
demanda econômica. Nós não somos, evidentemente, especialistas em todas as matérias que nos são
submetidas e não seremos jamais especialistas na complexidade do fenômeno econômico. O juiz é
um especialista em julgar. Ele é um técnico em julgar e, para tanto, ele recebe os parâmetros trazidos
pelas partes no contraditório. Para isso é que tem o contraditório. O contraditório vem a fornecer
exatamente essas bases econômicas, de maneira que não é para se atemorizar demais diante de uma
questão econômica, é para agir com aquilo que se exige de todo e qualquer magistrado, que é o agir
responsável, indo fundo nos elementos de que possa dispor na análise dos autos e na formação do
seu conhecimento, na análise dos elementos doutrinários e jurisprudenciais que lhe possam chegar
às mãos e, sobretudo, as alegações das partes.
Mas, decidam porque isso é importante para que a sociedade vá superando essas crises cíclicas que
vêm trazidas de todas as demais áreas, seja a econômica, seja a comportamental da sociedade, seja a
questão psicológica, seja a questão política e isso vai passando através das decisões.
Vejam como tudo isto se torna história: a partir do momento que está decidido, quantas questões,
nos dias recentes brasileiros, imaginávamos insolúveis, e agora parece que não existe mais, saíram
da moda da imprensa, da moda das cogitações porque já tiveram a sua decisão judicial e, daí para
frente, as partes, os interessados estão se compondo ou se acertando e buscando outras soluções
desimpedidas do obstáculo de um processo parado na justiça.
Aqui é outra questão muito séria que demanda, talvez, um seminário maior de como dinamizar o
andamento dos processos que tem solução, mas infelizmente não vejo serem brilhadas as soluções
pelas experiências que se fazem a respeito do fenômeno judiciário brasileiro.
A outra recomendação para o juiz é a seguinte: sejam claros na motivação e nos dispositivos dessas
matérias. É muito importante a clareza nisso. Com a clareza, o vetor fica muito bem estabelecido para
a sociedade e daí é possível que as partes, os seus advogados e os praticantes dos negócios jurídicos,
a área governamental, todos venham a se orientar diante de uma decisão clara.
É preciso não olvidar que se a questão chegou ao Judiciário é porque não foi composta pela socie-
dade, não foi composta, realmente, pelos interessados, que são os litigantes materializados como partes
no processo, de maneira que esses delegaram atividades jurisdicionais como atividades substitutivas à
tarefa de decidir. Cumpram, portanto, essa tarefa de decidir com a celeridade maior que for possível,
com a clareza, sobretudo no dispositivo, porque isso vai orientar a sociedade.
Peço escusas por estar prolongando, mas, na verdade, tenho participado pouco de tudo, soterrado
que estou pelos processos. Mas eu não iria perder a oportunidade de trazer alguma consideração ao
auditório tão qualificado e com a permissão de uma mesa como a que tive a honra de presidir.”
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Cadernos
do CEJ 61

Nino Toldo, Tércio Sampaio, Marcelo da Costa Pinto Neves

Da Interpretação da Lei à Interpretação do Direito nas Decisões Judiciais

NINO TOLDO
Desembargador Federal e Presidente da Ajufe


Senhoras e senhores, boa tarde. É para mim motivo de grande alegria e honra presidir
esta mesa composta pelo Professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, meu querido professor da nossa
Faculdade de Direito do Largo São Francisco; também aqui o Professor Humberto Ávila, um amigo,
e o Professor Marcelo Neves.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
62

era em torno do pagamento ou não de um segu-


ro. A questão envolvia uma acusação contra a
empresa, feita pela seguradora, uma acusação de
corrupção. A seguradora dizia que não pagava
porque a empresa americana teria cometido um
ato de corrupção no Brasil e que, em vista dis-
so, ela acha que não era devido o seguro. Essa
era a questão entre eles. E lá fui eu, como expert
brasileiro, fazer parte daquele cross examination,
perguntas de lado a lado.
Lá pelas tantas, um dos advogados, vira-se
para mim e diz: “o senhor acha que, diante do
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR que o senhor falou e leu nos autos, a empresa em
Professor da Universidade de São Paulo face de Fulano de Tal cometeu um ato de corrup-
e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ção ativa e, do outro lado, alguém de corrupção
passiva?” Eu falei: “olha, eu estou aqui como ex-


pert em Direito, dos fatos não sei e não vou falar,
Senhor Desembargador, caros cole- porque não conheço os autos”. Ele olhou para
gas, cumprimento a todos. Formulo inicialmente mim e disse: “Vou reformular a pergunta – bem à
os meus agradecimentos pelo convite, é sempre moda americana: tendo em vista que aconteceu
um prazer e uma honra estar aqui, sobretudo em isso, isso e aquilo, e que pelas definições corren-
um evento como este, patrocinado pelo Superior tes que estão sendo apresentadas aqui, o senhor
Tribunal de Justiça. diria que uma coisa encaixa na outra?” Eu falei:
O tema geral desta sessão, “Da Interpretação “eu repito, eu não estou aqui como expert, enfim,
da Lei à Interpretação do Direito nas Decisões não venho testemunhar nada, sou um expert em
Judiciais”, certamente provoca alguma reflexão, Direito brasileiro, isso é questão de fato. Eu não
e mais que uma reflexão, talvez até ensinamentos conheço os autos a esse ponto, não posso dizer
a respeito da interpretação e da decisão. Diante nada sobre isso”. Ele insistiu uma terceira vez e
de dois colegas que vão falar em seguida, e que eu falei: “olha, além do mais seria da minha parte
são mestres em interpretação, em decisão, em uma leviandade, não conhecendo os fatos, fazer
disciplinas jurídicas, de um lado o Professor Ávila, qualquer afirmação desse tipo porque poderia
no campo tributário, e o Professor Marcelo no implicar para mim até calúnia”. Nesse momento
campo constitucional, eu, como Professor de ele parou e houve uma discussão: “mas o que é
Filosofia do Direito, vou me colocar a certa dis- calúnia?” Eu estava com o Código Penal na mi-
tância do tema. Portanto, farei uma apreciação nha frente, abri e li o que estava na lei, calúnia é
não propriamente de interpretação e de decisão, isto. Ele falou:
mas a propósito deste “a” craseado que está no - E por que calúnia é isso?
título desta seção, e que indica uma passagem da - Porque está na lei, eu disse.
Interpretação de Lei à Interpretação do Direito - E quem é que diz que isso que está na lei é
nas Decisões Judiciais. Vou falar sobre esse “a” calúnia?
craseado, sobre essa passagem. - Eu. O senhor não me chamou como expert
Há muitos anos, entre 15 e 18 anos atrás, fui em Direito brasileiro? – respondi
convocado para atuar como expert em uma ques- - Deve ser muito difícil advogar no seu país.
tão nos Estados Unidos, eu era o expert em Direito - Como o senhor responderia?- perguntei.
brasileiro, e lá fui eu. O caso que se discutia era - Eu olharia a jurisprudência.
uma briga entre uma grande seguradora america- - E deve ser muito difícil advogar no seu país
na e uma grande empresa americana. E a disputa – respondi.
série
Cadernos
do CEJ 63

Acho que hoje eu já não diria a mesma coi- co adjetivamente nesse marco. Essa tradição teve
sa. Essa minha resposta de 15, 20 anos atrás está uma origem, talvez a origem forte seja o projeto
em crise, hoje não temos mais essa certeza. De de um Direito político, filho das revoluções, prin-
fato, essa separação que há 15 ou 18 anos era cipalmente da Revolução Francesa, início do sé-
clara na minha cabeça e na cabeça do advogado culo XIX, que marcou a teoria jurídica (para dizer
americano talvez não fosse sequer mais clara na com muita simplicidade, talvez até com exagero
cabeça dele mesmo, porque lá também as coisas de simplicidade) nas formas de uma concepção
mudaram. Aqui seguramente, se não mudaram liberal no Direito. O marco dessa concepção li-
completamente, estão mudando. Na nossa tra- beral que produziu a teoria jurídica, que nós até
dição, quando pensamos no modelo pelo qual hoje aprendemos, pode ser resumido em uma
se estuda, se aprende e depois se exerce pro- expressão: “Estado de Direito”. É uma expressão
fissionalmente, a atividade jurídica, seja como que ficou na nossa tradição.
advogado, juiz ou promotor,
para citarmos as principais
ou mesmo como administra-
dor etc., aprendemos a lidar O juiz, como diziam os franceses, é La bouche de La loi, a
com três problemas básicos. boca da lei. Ele falava à lei mediado por aquilo que diziam os
O primeiro é a identificação doutrinadores – essa era a tradição.
do Direito. E para a identifica-
ção do Direito, há muito tem-
po, temos aquilo que chamamos “teoria das fontes” Dentro dessa concepção do Estado de Direito,
ou mais, pelo menos na forma como aprendemos a teoria jurídica que prepara a aplicação do
Direito, aproximadamente há uns 200 e poucos Direito é construída em cima de uma tensão for-
anos ouvimos falar nessa teoria. Isso é para identi- te entre o intérprete e o legislador. O juiz, como
ficar o Direito; é uma das atividades. Identificado, diziam os franceses, é La bouche de La loi, a boca
nós iremos interpretá-lo. E para isso aprendemos o da lei. Ele falava à lei mediado por aquilo que
que chamamos de “hermenêutica jurídica”. diziam os doutrinadores – essa era a tradição.
Finalmente, interpretado e identificado o Nessa velha tradição, a produção, por assim di-
Direito à hermenêutica, passamos a aplicá-lo, zer, do trabalho teórico significava um trabalho
aplicação que, nessa tradição, chama-se de “teo­ de identificação orgânica desse fenômeno cha-
ria da subsunção”. Essa tradição vem do século mado Direito. E como se fazia ou se faz isso até
XVIII para o século XIX na nossa cultura, na cul- hoje? Nós aprendíamos a classificar, distinguir e
tura romanística. Os livros de Direito, até agora montar conjuntos, expressões tradicionais eram
– pelo menos em um passado não muito distante usadas para isso. Uma delas usa-se até hoje, é a
– operacionalizavam seu estudo com a identifi- natureza jurídica de institutos.
cação de fontes, e nós conhecemos as dogmá- Volta e meia vamos atrás da natureza jurídi-
ticas: fontes materiais, fontes formais etc., uma ca do tributo ou do que for. Essa produção ou
hermenêutica jurídica voltada para o tema da reprodução orgânica de institutos por meio da
vontade, vontade do legislador, vontade da lei e sua natureza jurídica, cominava em um conjun-
uma teoria da aplicação que entrava um pouco to que nós olhávamos como um conjunto dotado
nessa tradição a reboque. de unidade, sistema, no sentido de um conjunto
Quando estudei Direito, entre 1960 e 1964, unitário dotado desse caráter sistemático, isto é,
lembro-me ainda de os professores usarem a dis- sistemático porque há uma unidade de princípio.
tinção entre Direito substantivo e Direito adje- Então nós trabalhávamos com dicotomias: a partir
tivo. Naquela época, os processualistas ficavam da Constituição: constitucional e inconstitucional;
furiosos com isso, mas os civilistas ainda usavam a partir da lei: lícito e ilícito; e assim por diante.
essa distinção, isto é, o processo entrava um pou- Do ponto de vista da identificação do Direito,
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
64

esse modo de pensar na forma de classificações na e o legislador à lei, o doutrinador exerce um


consistia o modo pelo qual eu trabalhava o ob- papel fundamental. O que ele tem que formular
jeto, eu era capaz de identificá-lo e defini-lo. é o sentido reconhecível que está na lei e, com
Definido, veio a hermenêutica jurídica, que é isso, dar às decisões, à aplicação do Direito, pre-
um trabalho de interpretação. Todos sabem dis- visibilidade. Quem aprendeu o direito desse jeito,
so e aqui entrava o tema da vontade, que en- aprendeu-o como algo razoavelmente previsível.
trava por conta de um episódio que aconteceu É possível se trabalhar com a noção de previsibi-
na era moderna e que praticamente definiu os lidade desde que os sentidos sejam trabalhados
rumos do nosso Direito, do Direito ocidental e pelo doutrinador e oferecidos ao aplicador.
principalmente o de origem romanística, do qual É claro que o sistema dotado de certeza, o
estou falando. sistema das regras não é absolutamente integral.
Desde o século XIX, discute-
-se se ele é completo e coe-
Hoje, ninguém consegue mais escrever um curso de Direito
rente; a verificação de certa
Constitucional se não citar várias jurisprudências do Supremo
incompletude leva nessa tra-
Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e, se
dição a teoria das lacunas; a
possível, até outras, ele vem carregado de jurisprudência.
percepção de certa incoerên-
cia dentro do sistema leva à
Houve, a partir do renascimento, uma séria teoria das antinomias e, com isso, problemas na
mudança no modo como a antropologia era vis- aplicação que são resolvidos mediante o modo
ta, o ser humano era visto. Entrou fortemente o pelo qual nós lidamos com lacunas e antinomias.
tema da liberdade, que é conhecido. E a liberda- Nessa linha de raciocínio, que é o modelo
de voltada para a vontade criava certa incerteza tradicional, conflitos concretos, aqueles que o
a respeito daquilo que, na antiguidade e na Idade juiz decide e julga, são trabalhados a partir de
Média, chamava-se de verdade. O conceito de conflitos abstratos. O que fazia ou faz ainda, de
verdade muda. Se no passado havia certa tran- certo modo, o doutrinador? Toma os conflitos
quilidade no senso comum erudito em dizer que concretos e os transforma em abstratos, isto
a verdade era identificada pela realidade, todo o é, em conflitos jurídicos. Os conflitos jurídicos
problema da verdade como adequação, a partir são abstratos, e é por conta dessa abstração
da era moderna, tendo em vista a liberdade hu- que se adquire alguma certeza na hora de de-
mana, se transforma. Verdade vira autenticidade, cidir o caso concreto. Nesse jogo de transfor-
certeza produzida na consciência, daí o enorme mar conflitos concretos em conflitos abstratos
crescimento das matemáticas, de modo geral. para ganhar certeza na volta, em que se tem de
Nesse ambiente é que aparecem as questões decidir o conflito concreto, estava presente o
referentes ao modo como fazemos o jogo das paradigma da subsunção e, com isso, um mo-
liberdades, tendo em vista a produção de cer- delo histórico que durou até a época em que
tezas. Nesse jogo, considerando-se a produção estive nos Estados Unidos e até a época em
de certezas, verdade como certeza, o que entra que aprendi Direito. Eu aprendi Direito com
como elemento que dá a base a todo o raciocínio esse modelo.
jurídico? A lei. A lei confere certeza ao juízo e, Tendo em vista as suas origens, que passam
portanto, a aplicação do Direito. Daí, interpretar, pelo Código Civil francês, talvez pudéssemos
é descobrir, identificar do Direito quais as suas chamar esse modelo de “cultura do código”. A
raízes de certeza dadas pela lei, e aí a aplicação cultura do código trabalha com as características
se dá na forma da subsunção, que é o método que apresentei: identificação do Direito a partir
que domina, por assim dizer, praticamente em de fontes, uma espécie de legolatria à lei como
todo o século XIX. a fonte fundamental, fontes formais, materiais,
Nessa tensão entre a teoria jurídica, a doutri- mas a lei como fonte material, a tensão doutrina/
série
Cadernos
do CEJ 65

legislador e o aplicador como uma consequência. tivamente menor quando eu estudava o Direito,
Não se dá maior relevo à aplicação do Direito. de repente ganha uma imensa relevância. Eu me
Pelo menos, quando aprendi Direito, apren- refiro à palavra argumento. Hoje em dia, o que
di bastante a identificá-lo, fazer classificações: notamos é que a velha hermenêutica jurídica,
Direito Público, Direito Privado, Direito Objetivo, teoria da interpretação, como se aprendia no
Direito Subjetivo; aprendi alguma coisa de her- modelo da cultura do Código, a velha teoria da
menêutica, as técnicas tradicionais, gramaticais, interpretação, pouco a pouco, vai se resvalando
sistemáticas, lógicas, históricas, e pouquíssimo para uma coisa nova. Há ainda alguém que escre-
ou quase nada de teoria da aplicação. O que se va sobre hermenêutica jurídica? A impressão que
dizia quando estudei era que se aprende aplicar dá é que todo mundo está indo para a teoria da
o Direito na vida prática; era o que se dizia. argumentação. A teoria da argumentação ganha
Bom, esse modelo da cultura do Código é que, espaço e diminui o espaço da teoria da interpre-
a meu ver, está em crise, e é isso que provavel- tação, ela ocupa todo o espaço, junta tudo dentro
mente quer significar o “a” craseado do título dela, e isso é significativo. É significativo que se
dessa passagem. fale cada vez menos em teoria da interpretação e
O que significa essa crise? Algumas coisas tal- hermenêutica jurídica, então, provavelmente os
vez, nós possamos apontar para mostrar a crise, estudantes até estranhem a expressão; e cada vez
a mudança, se quiserem, o que decorre da crise. mais se fale em teoria da argumentação.
Quando estudei Direito Constitucional, em 1961, Por conta disso, aparece como um elemento
os meus manuais de Direito Constitucional não importante a ser pesquisado (sabe-se lá como,
tinham uma única citação de jurisprudência. O porque as coisas ainda estão por ser decantadas):
Supremo não existia, era apenas um capítulo da torna-se importante que eu comece a gerir a to-
Constituição, mas ele não entrava na forma de mada de decisão que, apresentada no passado
jurisprudência. Hoje, ninguém consegue mais como jurisprudência, era colocada meio de lado.
escrever um curso de Direito Constitucional se Quem estudou isso na velha teoria das fontes
não citar várias jurisprudências do Supremo sabe perfeitamente que jurisprudência era posta
Tribunal Federal, do Superior Tribunal de em dúvida como fonte do Direito, aliás, todos os
Justiça e, se possível, até outras, ele vem carre- trabalhos antigos dizem que jurisprudência não é
gado de jurisprudência. fonte do Direito. A doutrina também não é, mas
Hoje, quando vamos ensinar o aluno e pe- a jurisprudência também não era.
dimos para pesquisar a doutrina, no fundo ele Súmula vinculante, nem pensar. Agora nós
acaba se recusando, ele quer pesquisar jurispru- temos isso. O novo Código de Processo vai falar
dência, ele não quer saber o que dizem os dou- em precedentes, porque está mudando a cultura.
trinadores, ele quer saber o que os juízes dizem Nessa mudança da cultura, talvez eu tenha que
a respeito daquilo que os doutrinadores falam dar razão ao advogado americano que achou
sobre a lei. O que interessa é a outra ponta, ou que era muito difícil fazer o que ele fazia. Nosso
seja, a primeira coisa que observamos é que a problema, talvez, seja que lá nos Estados Unidos
tensão que existia entre lei e doutrina muda para havia há 500 anos outra cultura, a cultura juris-
uma tensão entre jurisprudência e doutrina. A lei prudencial, ponderativa, partindo de equity, tra-
fica um pouco “a latere”. balhando, portanto, princípios. Nós não tivemos
Dá para entender nessa nova tensão como apa- essa cultura, nós estamos aprendendo muito de-
rece e por que aparece essa coisa nova que se fala pressa e com todas as dificuldades da pressa.
em lugar do velho método da subsunção? Aparece Hoje, falamos em ponderação de princípios.
isso que hoje se chama “ponderação de princípios”. Na cultura do código, como entravam os princí-
A noção de ponderação que surge nessa crise pios? Lembro-me que, quando estudei Direito,
faz-nos perceber que alguma coisa que no passa- na década de 60, só se ouvia falar de princípios
do tinha importância, mas uma importância rela- em Teoria do Direito e em aulas de Filosofia do
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
66

Direito. Os princípios que comandam todo o sis- campo de incerteza razoavelmente complicado,
tema jurídico. O princípio ou os princípios. Mas isto é, se antes os princípios eram percebidos pela
os princípios tinham realmente uma função de sistematização realizada pelos doutrinadores, aí
coordenar, unificar e dar uma orientação siste- que apareciam os princípios, agora temos outra si-
mática ao Direito. Fora isso, nós aprendíamos tuação, ou seja, os princípios não são identificados
princípios na lei sob o título de Princípios Gerais a partir da sistematização. Eles são identificados a
de Direito que, aliás, é a expressão que está até partir dos casos – quer dizer, eu inverto a relação.
hoje na Lei de Introdução. Para que serviam prin- Eu penso em princípio não a partir de uma visão
cípios gerais de Direito? Para preencher lacunas. sistematizadora do Direito, mas começo a pensar
É para isso que se usavam princípios, nada mais. em princípio a partir dos casos. São os casos que
Não passava pela cabeça de ninguém no velho revelam os princípios, e não o contrário.
modelo aplicar princípios. Princípios não se apli- Acho que isso dá a entender por que a ques-
cavam. Princípio era alguma coisa que pertencia tão da certeza fica complicada de ser sustentada
à Teoria do Direito, aplicava-se excepcionalmen- nessa inversão. Ou seja, quando passo, por as-
te quando tinha lacunas na lei. Lei de Introdução. sim dizer, da centralidade da lei, da cultura do
Agora, não. Agora você aplica princípios. Na código para a centralidade da jurisdição, a des-
aplicação de princípios, aparece alguma coisa coberta dos princípios não ocorre de uma forma
nova, surge a discussão para saber se princípio é unitária a partir de sistematização, mas ela co-
um tipo de norma ao lado de outra; se princípio meça a ocorrer em todas as instâncias decisórias.
também é regra, e como é que eu lido com os Quando eu falo em todas as instâncias decisórias,
princípios? Para nós, isso se torna um problema. não estou pensando apenas no Poder Judiciário.
Talvez numa tradição anglo-saxônica o problema Encontramos isso também em instâncias decisó-
seja diferente e provavelmente é diferente quan- rias administrativas. Não preciso nem me restrin-
do lemos os trabalhos que vêm de lá. Mas, para gir à atividade judicante da administração, os
nós isso vira um problema sério porque a nossa tribunais de taxas de impostos, por exemplo, o
ideia de aplicação, ainda marcada pela cultura do Cade, são tribunais administrativos. Eles também
código, é a aplicação voltada para a subsunção e começam a trabalhar desse jeito. De modo que
quando eu entro com a figura da ponderação, a eu tenho uma descoberta de princípios explícitos
subsunção não se encaixa mais. Isso cria, inevita- e implícitos que se espalha em todos os módulos
velmente, uma espécie de clima de incerteza. decisórios que o Direito conhece.
Aquilo que há duzentos anos marcou o nasci- Nesse momento, percebo outra transforma-
mento da ciência jurídica e da ciência moderna de ção importante, que surge na própria teoria da
um modo geral, verdade como certeza, fica abala- aplicação. No passado, para efeito de aplicação,
do. Não consigo mais trabalhar com tranquilidade. o que importava era aquilo que a doutrina dizia
Em primeiro lugar, eu começo a ter a primeira sobre a lei. Agora, a noção de argumento cresce
dificuldade, problemas na identificação. O que é em importância e na aplicação torna-se crucial
o princípio e quais são os princípios. Começam a sua justificação. Eu gostaria de lembrar, apenas
aparecer noções novas, dicotômicas, por uso an- de passagem, que no século XIX os juízes não
tigo do Direito. Noções novas do tipo: princípios motivavam as suas decisões; os juízes decidiam
explícitos e implícitos. O que é complicado. pressupostamente conforme a doutrina e a lei.
A velha dicotomia constitucional e inconsti- Mas não havia motivação; isso é uma invenção
tucional, lícito e ilícito, legal e ilegal, dava uma do século XX e essa invenção, no final do século
dualidade em que eu, com certa facilidade, colo- XX, tornou-se crucial. Há uns vinte anos começa-
cava o que está de um lado e o que está do outro. mos a ouvir falar da importância da motivação,
Quando começo a trabalhar com princípios no inclusive na Constituição, “se não for motivado
plural, são vários e admito que alguns são explí- é nulo” etc. Isso está ligado a essa transformação
citos e outros implícitos, abro margem para um que o Direito sofreu.
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Cadernos
do CEJ 67

Quando o argumento/justificação cresce em vida ganhava o seu sentido. Repare que essa pe-
importância na jurisprudência como o polo de quena construção mostra que direitos fundamen-
tensão com a teoria jurídica, dá para entender tais consistiam numa grande unidade. Começo a
que algumas coisas se alterem. Quem lia há 40, ter hoje ponderação de direitos fundamentais:
50 anos, voto dissidente? Esse voto não existia. vida ou liberdade. A questão do aborto, por
Hoje, lemos voto dissidente, ele é importante por- exemplo. Ponderação de direitos fundamentais
que, tem argumentos. Ainda que dissidente você é coisa nova, desse novo mundo. Antes não se
puxe. Isso provoca outra mudança nesse novo ponderava sobre isso.
modelo. Há quarenta anos, coisa julgada me fa- Quando começo a ponderar sobre direitos
zia olhar para o dispositivo. Só o dispositivo fazia fundamentais e outros, percebo que a função
coisa julgada. Hoje temos dúvida disso. da interpretação se altera no mundo de hoje, ou
De repente, começamos a perceber que os ar- seja, antes se interpretava para depois descobrir
gumentos, isto é, a motivação tem certa importân- as exigências da lei e da Constituição, no caso
cia mesmo na coisa julgada, pois aparece o que os concreto, mediado pelo caso abstrato construído
processualistas chamam de flexibilização da coisa pela doutrina. Agora, o que se faz? A interpre-
julgada. Estou em outro mundo, desloquei-me da tação na aplicação ganha outra função, que eu
lei para a jurisprudência e, com isso, a noção de chamaria de “função legitimadora”. Interpretar
argumento cresceu. Então, o voto dissidente fica significa legitimar o futuro, a consequência, aqui-
importante, e a coisa julgada perde a força que ela lo que se vai decidir e, portanto, transforma-se o
tinha. Isto é, perde a força na medida em que eu juiz ou o aplicador de modo geral em uma figura
olho não apenas o dispositivo, mas começo a olhar não muito distante, transforma-se o aplicador do
de fato a importância da motivação. Mudou o foco. direito, em termos de raciocínio, em uma figura
Essa nova situação, observamos, com certa próxima do economista, em que a ideia de cál-
clareza no que está acontecendo hoje em dia, culo começa a ganhar importância. O juiz ou o
que o tema da interpretação foi deslocado da administrador, hoje, não consegue escapar da
subsunção para o que chamamos de ponderação. ideia de cálculo. O que vai acontecer com a mi-
Vou lhes dar um exemplo apenas: no modelo in- nha decisão? Há quarenta anos, não importava o
terpretativo da subsunção, direitos fundamentais que aconteceria. Lei é lei, dura lex sed lex. Agora
de uma constituição constituíam uma unidade não, entra-se nesse espírito de cálculo. Mudou o
e essa unidade era dada por alguns elementos modo como vejo a interpretação e a aplicação
fundamentais jurídico-antropológicos. do Direito.
O homem é um ser livre
e é na sua liberdade que ele
[...] o voto dissidente fica importante, e a coisa julgada perde a
tem que olhar o outro ho-
força que ela tinha. Isto é, perde a força na medida em que eu
mem, também como um ser
olho não apenas o dispositivo, mas começo a olhar de fato a
livre. Na liberdade de cada
importância da motivação.
um contraposta, existe um
espaço de exercício de liber-
dade de um e de outro. O espaço de exercício O que acontece, afinal, na prática do Direito?
de liberdade chamava-se direito fundamental de Estamos vivendo em um mundo bem transfor-
propriedade. Nessa relação, em que o espaço mado, em que as coisas estão mais complicadas.
de um se limita pelo espaço do outro, liberdade, Hoje em dia, sabemos que é muito difícil termos
propriedade de um, propriedade do outro, eu certezas. Ninguém sabe mais, hoje, dizer concre-
tinha igualdade. E para que essa relação se desse tamente o que é um homem, o que é uma mu-
de uma forma adequada, eu tinha a proteção da lher, o que é uma criança. Não temos ideias fir-
lei. A igualdade perante a lei fornecia segurança. mes sobre essas coisas. Não estou defendendo o
Em regime de segurança, o direito fundamental à passado, estou apenas constatando que hoje não
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
68

temos mais uma divisão e ideias claras sobre isso. caso exatamente igual, tinha sido outra na semana
Isso é fruto de um fenômeno que acaba atingindo anterior. Claro, provavelmente porque os assesso-
o Direito, chamado “mundo de informação” em res eram diferentes e eles não se falam.
que ocorre aquilo que se pode chamar também Quer dizer, começa-se a ter outro tipo de pro-
de “excesso de informação”. blema e nisso aparece uma regra fundamental
Vivemos em um mundo de excesso de infor- para se gerir a produção e a ponderação na hora
mação e mais: sem filtros. No passado havia fil- da decisão, uma regra terrível, mas que funcio-
tros: o primeiro filtro era a família, hoje, não é na. Chama-se a “regra de limpar a mesa, tirar da
mais. A criança sentava na frente da televisão, frente”. Você é forçado a fazer isso. E isso inicia-
no meu tempo. Hoje, com os joguinhos, com a -se na universidade. O aluno de Direito começa
internet à disposição, não se filtra mais a infor- a aprender a fazer isso na universidade. Ele limpa
mação. A criança sabe mais que os pais muitas a frente. Trabalha-se em grupos. O que é traba-
vezes. A escola era outro filtro de informação; lhar em grupos? Cada um pega um pedacinho e
não é mais também. A universidade filtrava. Um ninguém tem ideia do contexto. E, às vezes, o seu
curso de Direito filtrava o que se deveria saber; nome vai em um trabalho que você nem sabe do
não filtra mais. que se tratava. Isso é comum hoje. Essa menta-
Diante desse excesso de informação no mundo lidade de tirar da mesa, da frente, passa depois
de hoje, como se dá a interpretação e a aplicação para a própria vida profissional.
do Direito? Preciso de filtros, senão estou perdi- Em 2011, fui a um congresso na Alemanha e
do. O excesso de informação que corresponde, tinha na cabeça uma reportagem que havia saí-
no campo jurídico, ao excesso de demandas, de do no Brasil sobre as atividades de um escritório
decisão (qualquer ministro, juiz ou mesmo ad- de advocacia. A reportagem, na Revista Exame,
ministrador sabe disso: mil, dois mil, três mil, chamava-se “Salsicharia Jurídica”. Era um escri-
sabem lá quantos processos vão chegando, um tório de advocacia que era capaz de tocar com
atrás do outro), demanda soluções nessa nova seis pessoas, àquela época, trinta mil processos
visão da ponderação, da nova cultura. E como por ano. Um advogado que conheço, e conhece
reagimos? A reação é muito curiosa. Ela existe esse escritório, disse que hoje eles tocam trezen-
na universidade, começa lá e passa depois para tos mil. Salsicharia jurídica para valer.
o Poder Judiciário, para a administração para o Qual é o papel da ponderação/filtros por meio
Executivo e tudo o mais. Começa-se a trabalhar de esquemas prontos nessa salsicharia jurídica
com estereó­t ipos, isto é, constroem-se fórmulas em que vivemos? O que percebemos é que o nos-
e diante do acúmulo de informação/necessidade so meio fundamental passa a ser o computador.
de decisão criam-se fórmulas. Só que o computador é meio não no sentido de
Cresce em importância, no caso do Poder instrumento. Ele é meio no sentido de ambien-
Judiciário, a figura do assessor. As equipes de as- te, vivemos dentro dele. Mudou o foco, e nesse
sessores têm que dar conta disso. E como elas dão foco, temos um grande desafio. Temos a sensação
conta disso com dois mil processos? Começa-se a de que tudo é possível. E a grande pergunta, o
trabalhar com estereótipos. E com os estereótipos grande desafio, é: nós tudo podemos porque que-
acontecem coisas, às vezes, complicadas. Já vi um remos ou nós tudo queremos porque podemos?
advogado protestar porque a decisão que estava Essa é a interrogação que faço ao tomar decisões
sendo dada naquele momento por alguém, em um jurídicas hoje.”
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Cadernos
do CEJ 69

as decisões judiciais, sabendo se as decisões judi-


ciais, ou mesmo qualquer decisão interpretativa,
é ou não correta. Para que saibamos se a decisão
é ou não correta, precisamos de parâmetros de
verificação.
Do ponto de vista do cidadão, é preciso sa-
ber se as decisões não estão sendo arbitrárias no
sentido de que a decisão judicial, em vez de ser
suportada pelo ordenamento jurídico, termina
decorrendo de meras preferências pessoais, in-
clinações ideológicas. Por isso, em vez de termos
uma decisão racionalmente fundada, temos ape-
HUMBERTO ÁVILA nas uma decisão arbitrária.
Professor da Universidade Federal do De outro lado, se o cidadão não tem condições
Rio Grande do Sul de verificar se a decisão é ou não correta, nem
dispõe de parâmetros mínimos acerca do con-


teúdo da decisão, o Direito, no final das contas,
Antes de tudo, queria agradecer, na não tem como guiar a conduta, o particular não
pessoa do Dr. Nino Toldo, o convite que me foi tem como controlar as decisões e, pior que isso,
formulado, que, honrado, aceitei. Cumprimentar não tem como combatê-las, apontando aquilo
o Professor Tércio e, também, os demais presen- que está certo e aquilo que está errado. Portanto,
tes, dizendo que é uma satisfação estar aqui em ter uma teoria da decisão judicial é fundamental
Brasília para falar sobre um tema tão importante para resolver problemas de legitimidade, de con-
quanto é o da decisão judicial. trole e de combate à arbitrariedade.
A esse respeito, recordo-me que, esses dias, na No fundo, a teoria da decisão judicial é absolu-
qualidade de membro de uma banca de arguição tamente indispensável para que tenhamos objeti-
de tese de doutorado, os membros da banca es- vidade, isto é, para que saibamos que aquela de-
tavam discutindo a respeito da existência mesmo cisão não é produto de capricho do decisor, mas
de uma tese ou não no trabalho que estavam que encontra suporte no Direito. Então, vem a
examinando. Um dos professores disse assim: não ideia, muito debatida em Filosofia e Teoria Geral
há uma tese. E o outro: não, há uma tese, ela é do Direito, a respeito do que significa objetivida-
furada, mas é uma tese. Ao que o outro respon- de. É claro que o tema é comprido e suscetível de
deu: uma tese furada não é uma tese. análise em várias perspectivas, mas eu diria que
Digo isso, porque hoje vou sustentar uma tese. objetividade significa independência, correção e
Se ela é furada ou não, deixarei com vocês. Vou invariância.
propor um modelo de fundamentação judicial Independência no sentido de existirem crité-
baseado em uma reconceituação do conceito rios para saber se aquela decisão independe, em
de interpretação de objetividade e de verdade. alguma medida, de caprichos pessoais. Vejam
Portanto, é uma tese, se correta ou não, ousada, que a necessidade de independência decorre não
mas ainda assim digna da nossa reflexão. apenas da racionalidade exigida para uma deci-
A primeira pergunta que faço e coloco a todos são. Decorre, também, dos princípios fundamen-
vocês diz respeito a saber por que razão falar tais estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
sobre uma teoria da decisão judicial, tendo em Temos o Estado de Direito, que, segundo nos
vista que o título do simpósio do qual estamos dizem, é o estado das leis, e não dos homens.
participando tem esse emblema. Diria que temos Temos o princípio da legalidade, de acordo
de ter uma tese ou uma teoria da decisão judicial, com o qual as decisões devem ser suportadas
porque precisamos, em primeiro lugar, controlar por leis, e não apenas na vontade do julgador.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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Temos princípios que orientam a atividade ad- gador faz referência são ambíguas, no sentido de
ministrativa, dentre os quais o da impessoalidade possuírem mais de um significado; elas são com-
da administração, que quer dizer imparcialidade, plexas, no sentido de uma fonte, muitas vezes,
objetividade e isenção. ter vários significados; padecem de problemas
Além de independência, a objetividade quer de implicação, isto é, existe um sentido que gera
dizer correção, isto é, é preciso que o cidadão outro sentido; e problemas de defectibilidade,
tenha condições de saber se a decisão está cor- nem sempre aquilo que é estabelecido para a
reta ou não. Então, algum parâmetro, seja ele maioria dos casos vale para todos os casos, em
qual for, de correção é indispensável para que muitas situações, o julgador estabelece ou cria
o cidadão possa exercer os seus direitos e fazer exceções implícitas.
valer as suas pretensões. Para que isso possa ser Se os dispositivos padecem de problemas de
feito, precisa saber o que está certo e o que está equivocidade porque são ambíguos, são com-
errado na decisão. plexos, padecem de problemas de implicação e
Mais do que independência e correção, obje- defectibilidade. Como pode o julgador, fazendo
tividade significa invariância, isto é, se existir auma referência à fonte, resolver um problema
mesma situação, a mesma norma e existirem dois de sentido? Agregando o problema da equivo-
sujeitos em situação equivalente, a decisão tem cidade, temos o problema da indeterminação
de ser a mesma. Não apenas por uma questão de das normas, não dos textos, no sentido de que o
racionalidade, mas também por uma razão pro- Direito é composto de várias normas, mas o apli-
veniente dos princípios fundamentais do próprio cador não sabe, de antemão, quais são todas as
ordenamento jurídico, que exigem igualdade, normas que compõem o ordenamento jurídico. E
universalidade das razões, entre outros fatores. também não sabe, de antemão, exatamente para
Diante disso, surge a pergunta: se objetividade, quais casos as normas devem ser aplicadas.
que é esta independência do sujeito que está de- Tudo isso que estou dizendo, demonstra que
cidindo relativamente ao que ele está decidindo, se as fontes padecem de equivocidade, e as nor-
essa correção e essa uniformidade de decisão rela- mas, de indeterminação, a mera referência a uma
tivamente aos destinatários é tão importante, como fonte é insuficiente. Com isso, não quero dizer
ela se verifica no Direito? Essa é a grande questão.que as fontes não tenham significados mínimos,
que a prática consolidada
em determinada direção não
[...] a teoria da decisão judicial é absolutamente indispensável
crie núcleos de significado
para que tenhamos objetividade, isto é, para que saibamos que
dos quais o intérprete possa
aquela decisão não é produto de capricho do decisor, mas que
se afastar. E assim é, porque
encontra suporte no Direito.
o Direito, apesar de indeter-
minado, não é sempre inde-
A concepção tradicional, também já referida terminado, e não é totalmente indeterminado,
pelo professor Tércio, é no sentido de que, se as decisões judiciais, as práticas administrativas,
temos leis, a objetividade seria alcançada por as obras doutrinárias vão de algum modo densi-
meio da referência do julgador à fonte da deci- ficando conteúdos, que passam a ser subjetiva-
são. Portanto, a mera referência a um dispositivo mente aplicados por todos. De tal sorte que nós
legal, com base no princípio da legalidade, ga- temos dois impedimentos para mera referência à
rantiria objetividade. Essa concepção tradicio- fonte: equivocidade e indeterminação. Não bas-
nal, isso o próprio professor Tércio já apontou, tasse isso, toda vez que se vai interpretar um dis-
é insuficiente. Mas por que ela é insuficiente? É positivo para, a partir dele, construir uma norma,
insuficiente, em primeiro lugar, porque o Direito necessariamente, usa-se uma técnica interpreta-
padece de problemas de equivocidade e inde- tiva com base em algum argumento.
terminação. As fontes normativas, às quais o jul- Vejam que o uso dessas técnicas e argumentos
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do CEJ 71

faz com que a interpretação possa se distanciar fundamentais. Podemos, de igual sorte, interpre-
do significado textual. É por isso que se fala em tar o dispositivo, tendo em vista o caso concreto
interpretação extensiva ou restritiva, estática ou ou fazendo uma interpretação por meio de ana-
originalista e evolutiva, fala-se em interpretação logia ou interpretação baseada na equidade ou
declaratória ou corretiva, isto é, aquele signifi- ainda procedendo a uma interpretação até base-
cado preliminar, acontextual ou abstrato sofre ada na natureza das coisas. Podemos interpretar
modificações, mas sofre modificações com base um dispositivo com base na finalidade que lhe é
em quê? Com base em argumentos. E por meio subjacente, fazendo a chamada “interpretação
de quê? De técnicas. teleológica”, que pode ampliar a hipótese de um
Então, quando se vai interpretar, pode-se utili- dispositivo, como pode restringir a hipótese do
zar a chamada “técnica da interpretação literal”, dispositivo, mediante a técnica da dissociação.
adotando-se, portanto, o sentido preliminar de E mais, podemos interpretar determinados dis-
determinado dispositivo, utilizando uma técnica positivos, tendo em vista as consequências que
chamada de “interpretação a contrário”. Se o le- advirão da atribuição de determinado sentido em
gislador disse como disse, é porque ele disse o vez de outro.
que queria dizer, que se não quisesse dizer o que Tudo isso que falei, rapidamente, é apenas
terminou dizendo, ele não teria dito o que disse. para demonstrar o seguinte: qualquer interpre-
Pode-se investigar elementos que vêm antes tação envolve necessariamente o uso de uma
daquela fonte, interpretação histórica que re- técnica interpretativa, dissociação, interpretação
monta um momento em que o dispositivo foi teleológica, analogia e um argumento linguístico,
concebido para retirar daí determinado sentido, sistemático, jurisprudencial, genético, histórico e
técnica de interpretação genética no sentido de consequencialista.
verificar os trabalhos preparatórios daquela fonte Não há saída para isso, os argumentos podem
para encontrar determinado sentido ou mesmo estar escondidos, a técnica pode ser silenciosa,
verificar argumentos chamados autoritativos com mas ela está lá, até mesmo na atribuição do signi-
base na jurisprudência pretérita. ficado literal, porque existe a rejeição dos outros
Podemos, então, investigar o significado tex­tual e a atribuição de determinado sentido. Com isso,
com base em argumentos linguísticos; podemos estou querendo dizer no fundo que, se o direito
estudar argumentos históricos, utilizando técnicas padece de equivocidade e indeterminação, que,
de interpretação histórica genética ou com base se a interpretação no fundo é baseada em téc-
nos precedentes; podemos, de igual sorte, adotar nica interpretativa e em argumento, interpreta-
o que se chama de “interpretação sistemática”, ção envolve várias atividades ao mesmo tempo.
os elementos conceituais e dogmáticos funda- Interpretação envolve descoberta de sentido,
mentais, o lugar onde o dispositivo está inserido, quando há significados consolidados pela parte
quais são os outros termos usados pelo legislador jurisprudencial ou doutrinária, envolve decisão
e comparando os conceitos para, mediante apro- de sentido, no sentido de que quando o disposi-
ximação e distanciamento, chegar à conclusão de tivo tiver mais de um, o intérprete tem que deci-
que determinado dispositivo tem certo sentido, dir, quando tiver implícito, o intérprete tem de
porque o próprio legislador usou termos similares extrair, quando for incompatível com determina-
ou diferentes, de modo que determinado sentido do estado de coisas, ele tem de criar. Portanto,
é aquele que deve ser adotado. interpretação, necessariamente, envolve descri-
Além de questões sistemáticas, podemos utili- ção e, por isso, proposições descritivas – envolve
zar argumentos principiológicos, a chamada “téc- reconstrução de sentido e, por isso, enunciados
nica de interpretação” conforme a Constituição reconstrutivos – envolve criação de normas e,
e, dentre os vários significados possíveis de serem por isso, formulações normativas que podem se
adotados, escolher aquele que esteja mais forte- aproximar ou afastar do significado textual.
mente sustentado por princípios constitucionais Agora, vejam o que vou dizer: se interpreta-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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ção é descrição, adscrição e criação baseada em podemos atribuir a essa norma uma força nor-
argumentos por meio de técnicas, a mera refe- mativa maior ou menor? Depende dos princípios
rência a uma fonte chega a ser quase que uma ao quais se atribua a preferência. Vejam que isso
ingenuidade no sentido de pretender que fun- pode ser inclusive demonstrado. As palavras – e
damentar uma decisão indicando uma fonte fos- é uma questão filosófica que os colegas enten-
se suficiente para dizer ao destinatário o que foi dem melhor do que eu – não têm sentido em
feito, com base no que foi feito, como foi feito e, si, mas é uma prática que atribui sentido a elas.
pior, por que foi feito. Vejam, se isso tudo que es- Se eu tomar uma folha de papel e colocar uma
tou falando for verdadeiro, temos um problema, seta para a esquerda, e perguntar para vocês: o
porque se a argumentação é que vai definir o sen- que diz essa seta? Vocês, provavelmente, dirão:
tido, e temos várias técnicas e vários argumentos, vire para a esquerda, mas isso não está escrito
qual dos argumentos deve ter prioridade? na seta, é apenas um risco, uma flecha. Como
E aqui entra em cena outro fator, normalmen- vocês sabem que essa flecha para lá quer dizer
te esquecido, que é referido pela doutrina, pela vá para a esquerda? Porque existe uma prática
terminologia de ideologia da interpretação ou consolidada de entendimento no sentido de que
mediante a qualificação de força normativa das uma flecha para o lado esquerdo quer dizer vire
normas. O intérprete pode adotar uma concep- para a esquerda.
ção mais formalista de interpretação, no sentido De outro lado, a força normativa também não
de que aquilo que será o resultado da interpreta- é definida pela norma, é definida por critérios
ção deve envolver o menos possível de sua parti- que nós utilizamos sobre a norma. Há um caso
cipação, no sentido de que quanto mais próximo que é anedótico, mas ainda assim é interessante,
do significado literal melhor. E elementos que e que diz respeito, a saber, se determinadas nor-
não sejam formais como efeitos, conteúdos, fina- mas têm uma força maior ou menor, uma rigidez
lidades devem ser deixados de fora. maior ou menor. O que nós conhecemos, me-
No outro extremo, o intérprete pode adotar diante a nomenclatura da taxatividade ou exem-
uma espécie de particularismo puro. As regras plificatividade? Dom Pedro II adorava arte antiga,
são orientações. Pode obedecer ou não. E, nes- especialmente egípcia, notadamente de múmias,
se meio, temos uma concepção de positivismo soube lá pelos idos de 1828 que haveria um leilão
presumido em que as regras devem ser obedeci- de múmias na Inglaterra, para onde foi e termi-
das, a não ser que o destinatário traga uma razão nou arrecadando as múmias que estão no Museu
muito importante para superá-las e um particu- da Boa vista, no Rio de Janeiro. Naquele tempo,
larismo sensível às regras, o próprio julgador já todavia, que não era da globalização, havia uma
se encarregaria ou teria poder para modificar a lista taxativa de tudo que poderia ser importado
força normativa das normas que constroem. e, nessa lista, obviamente, não constava o item
Agora, repetindo, do dispositivo até a norma, múmias. Mas as múmias foram importadas pelo
temos, portanto, várias fases. Temos, em primeiro item: carne seca. Em outras palavras, se deter-
lugar, atividades descritivas, adiscritivas e cria- minada norma tem mais força ou menos força,
tivas; temos resultados mais extensivos ou mais não é a norma que diz, é algo que conseguimos
restritivos, mais declaratórios ou mais corretivos, construir sobre ela.
mais evolutivos ou mais estáticos. Temos vários Agora, se tudo isso que estou dizendo é verda-
argumentos: linguísticos, sistemáticos, jurispru- deiro, temos modificações a respeito do que sig-
denciais, genéticos históricos e consequencia- nifica objetividade no Direito e o que significa a
listas. E temos várias técnicas: analogia, disso- fundamentação. Se interpretação não é discrição
ciação, interpretação a contrário, interpretação ou descoberta de sentido, mas é descrição, re-
extensiva, interpretação sistemática, interpreta- construção e criação, que podem se afastar mais
ção autoritativa etc. ou menos do significado preliminar com base em
Quando chegamos ao resultado da norma, técnicas e em argumentos e, em razão de deter-
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Cadernos
do CEJ 73

minadas escolhas, fundamentar é dizer o que é vem ter acesso a essa publicação. Ver não basta.
feito, como é feito, com base no que é feito e por Entender também não basta, porque entender en-
que é feito, e não apenas indicar uma fonte, por- volve a ideia de que a norma preexiste ao processo
que indicá-la é absolutamente insuficiente. E a de argumentação e ela não preexiste. Portanto, não
objetividade como fica? Lembro que objetividade basta só entender, com base na suposta determina-
significa independência, correção e invariância. ção absoluta das fontes tão exaltada inclusive no
Nesse novo cenário em que a interpretação Direito Tributário, em que os autores ficam dispu-
envolve várias atividades com estatutos lógicos tando para saber qual a palavra mais bonita – de-
completamente diferentes, com argumentos e terminação absoluta, tipicidade cerrada e disputam
técnicas diferentes, razões distintas, objetivida- com relação a expressões como se o mero ato de
de não é conseguida por referência a algo. Uma proclamar determinação a garantisse.
decisão interpretativa não será objetiva porque E o que precisa, então, além de ver e en-
corresponde à fonte, porque a norma não é o tender? É preciso participar e ser respeitado.
objeto final da interpretação. O dispositivo é o Participar, no seguinte sentido: se o particular
objeto, a norma é o resultado; mas se a norma é o precisa poder se contrapor a uma decisão inter-
resultado, a objetividade da interpretação jamais pretativa, e uma decisão interpretativa envolve
será a independência de algo que existe antes necessariamente o que é feito, como é feito, com
da interpretação, mas será independência com base no que é feito e por que é feito, participar
relação aos critérios usados para a interpretação. de uma decisão não é ter acesso ao resultado.
Então, temos de sair do conceito de objetivida- É ter acesso ao processo que leva ao resultado.
de semântica no sentido de que objetiva é a deci- Portanto, não basta dizer o dispositivo tal foi in-
são cujo resultado corresponde a uma fonte base- terpretado no modo A. É preciso explicar o que
ada no conceito de verdade por correspondência foi feito, com base em qual argumento foi feito,
e migrar para um conceito de objetividade não com base em que técnica foi feita e por que foi
por correspondência, mas por avaliação argu- feito dessa forma, e não de outra forma. Só assim
mentativa; em vez de objetividade, temos que ir o particular vai conseguir mais do que se opor de
para intersubjetividade.
No conceito anterior, o
que existe é: uma decisão O intérprete pode adotar uma concepção mais formalista de
é correta se for suportada interpretação, no sentido de que aquilo que será o resultado da
por uma fonte. A qualidade interpretação deve envolver o menos possível de sua participação,
normativa de uma decisão no sentido de que quanto mais próximo do significado literal melhor.
se dá por referência a uma
fonte. Por isso só se falava
em determinação das leis no modelo antigo. olhos fechados à decisão; vai conseguir enxergar
Agora, nesse novo cenário em que se descobre a decisão e se contrapor de maneira articulada.
que interpretação envolve argumentação nessas O que é contrapor-se de maneira articulada?
várias fases progressivas e que vão se acavalando, É saber por que razão a decisão foi daquele jeito.
o conceito de objetividade não pode ser semân- Mas só se sabe por que razão a decisão foi toma-
tico, tem que ser discursivo, isto é, os critérios, e da daquele jeito, sabe-se o que foi feito, com base
não o objeto, devem ser independentes do sujeito no que feito, como foi feito e por que foi feito.
e claros do início ao fim. Sem isso, o particular como que, para usar uma
Daí que se fala em objetividade por transparên- metáfora, “apanha no escuro”. Ele sabe que está
cia, mas transparência no seguinte sentido: não bas- tomando soco, mas não sabe de quem vem e não
ta aqui que o destinatário veja e conheça a fonte, consegue se defender. Ou como o sujeito que vai
tenha acesso a ela. Como diz a nossa Constituição, ao médico, e este olha para ele e diz: “Você está
a lei tem de ser publicada, e os particulares de- doente”. Mas não diz por quê. Como o sujeito vai
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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conseguir se contrapor a uma decisão se ele não objeto que eu possa captar e que eu não deva
sabe como a decisão foi tomada? construir – uma espécie de concepção realista de
Com isso, quero dizer que devemos ultra- interpretação. Objetividade envolve independên-
passar uma objetividade semântica, baseada cia dos critérios da prática argumentativa. Essa
no conceito de objetividade como referência a gramática discursiva deve que ser clara.
algo, ou como propriedade de algo, indepen- Em terceiro lugar, o conceito de verdade tem
dente do sujeito, para ir para uma objetividade de mudar. Porque verdade não se afere por re-
metodológica ou discursiva em que as regras ferência a algo, não depende de propriedade de
da prática argumentativa, como dizia muito algo. A verdade não se dá por consenso, nem por
bem o professor José Reinaldo, sejam conhe- coerência, nem por correspondência. Verdade se
cidas e transparentes. De tal sorte que existe constrói no processo de prática argumentativa.
uma discussão pública, com razões públicas, Por fim, temos um problema relacionado ao
de maneira pública contra a qual o particular conceito de Direito. O Direito – isso talvez choque
possa mais do que se opor, contraditar, di- alguns, mas é a verdade, pelo menos que eu estou
zendo que está errada por esta ou por aquela sustentando, com a qual vocês não precisam con-
razão. Não sendo assim, o Direito vai ter um cordar – não é um objeto, é uma atividade. Verdade
problema de legitimidade, porque o particular não é um fato, é um ideal que se busca. Objetividade
não tem como saber se a decisão foi racional- não se encontra; objetividade se produz.
mente fundamentada. Sendo assim, meus caros, se tudo isso for ver-
É por essa razão que hoje se começa a fa- dadeiro, há um novo paradigma de fundamenta-
lar em fundamentação analítica das decisões. ção. Porque fundamentação, por raciocínio silo-
É por essa razão que eu terminei, por questões gístico, com referência à fonte, não fundamenta
de amizade, influindo na elaboração do art. coisa nenhuma. O que é fundamentar? Na verda-
499 do Novo Código Civil, em que consta aqui: de, melhor deveria ser justificar. O juiz não tem
“Referência à fonte não basta”. É preciso indi- de motivar dando explicações causais. Ele tem
car os critérios. Se for ponderar, tem que dizer que justificar, juntando razões válidas, suficien-
o objeto e os critérios. Não basta referência à tes e relevantes para embasar uma decisão. E se
fonte, porque isso é uma ilusão de objetividade. assim é, justificar racionalmente significa dizer o
Nós não sabemos se a técnica está correta, se que está sendo feito, com base no que está sendo
podia usar analogia, se fez interpretação exten- feito, como está sendo feito e por que está sendo
siva e como foi feito. Sendo isso verdadeiro, feito. Sem isso, não há justificação. Desse modo,
temos uma série de consequências, dentro as temos um conceito mais fraco de objetividade,
quais eu destaco algumas. mas uma exigência mais forte de fundamentação.
Primeiro lugar: redefinição de interpretação. E temos, com isso, vários problemas. Os
Interpretação não é descoberta de significado norte-americanos têm estudado muito, nos úl-
preexistente à própria atividade de interpretar. timos anos, o que terminou sendo objeto de
Com isso, não estou dizendo que não envolva a denominação como “Teoria Institucional da
atividade interpretativa a descoberta ou a descri- Interpretação”, isto é, quando o teórico vai for-
ção de significados que já estejam consolidados mular uma teoria, deverá estar atento aos as-
pela prática. Mas, que essa parte é uma parte ape- pectos institucionais necessários para que aquilo
nas de um complexo fenômeno dinâmico, com que ele está dizendo possa se tornar realidade.
várias fases, que envolve não apenas descrição, É daí que eles falam, especialmente no Direito
mas adscrição, criação de hipóteses normativas. Constitucional, em design institucional, isto é,
Além de um conceito diferente de interpre- em como as instituições, Judiciário, Ordem dos
tação, como reconstrução de sentido, temos Advogados do Brasil, universidades devem ser
de ter um conceito diferente de objetividade. constituídas para que essas teses terminem se
Objetividade não envolve independência de um tornando realidade. Esse é o ponto.
série
Cadernos
do CEJ 75

Isso está dentro da Teoria do Direito, não está Fundamentação de decisões.


fora dela. Porque, se estou dizendo que funda- É preciso que se reveja esse assunto da fun-
mentar é dizer o que é feito, com base no que é damentação. Mas fazemos referências a várias
feito, como é feito e por que é feito, uma funda- técnicas que usamos como se elas, por sua vez,
mentação de duas linhas não é uma fundamen- dissessem respeito a normas, quando, na verda-
tação. Mas como exigir do pobre julgador que de, dizem respeito a dispositivos. Validade formal
tem de julgar cem mil processos que ele faça uma diz respeito a dispositivo; validade material diz
fundamentação como estou dizendo que deve respeito a uma norma; declaração de inconstitu-
ser feita? Então, temos que redefinir as institui- cionalidade, sem redução de texto, diz respeito
ções. Como preparar os alunos, obviamente não à norma; com redução de texto diz respeito a
memorizando códigos, tendo em vista que os dispositivo. Vários assuntos que são tratados de
códigos não têm já as normas prontas, mas frag- um jeito pela concepção antiga têm de ser retra-
mentos normativos que devem ser conjugados, tados pela concepção nova. De tal sorte, meus
com base em vários critérios, para chegar a de- caros, que remontando a minha fala inicial, disse
terminadas normas. Temos um ensino diferente. que discutíamos se tínhamos ou não uma tese.
Então, dispomos de várias questões diferentes Um professor disse que temos uma tese, o outro
que dizem respeito às instituições e, não bastasse disse: não, nós não temos, é uma tese “furada”.
com isso, temos assuntos antigos que devem ser “E o outro diz: sim, é uma tese “furada”, mas é
reanalisados. O que é segurança jurídica, então, uma tese”.
depois de tudo que disse? É determinação de Não sei se a minha tese é ou não “furada”, mas
fontes? Não. Segurança de conteúdo é ilusão de o que podia lhes trazer aqui era isso. Costumo
segurança. Segurança precisa de uma dimensão repetir uma frase de um escritor gaúcho, que há
discursiva. É o processo que deve ser claro, de poucos anos completou cem anos do seu nasci-
tal sorte que os operadores do Direito saibam mento. Érico Veríssimo dizia que, em determi-
exatamente o que é feito nesta prática consoli- nadas situações, o teórico, bem ou mal, precisa
dada, e não simplesmente a determinação das acender sua vela, e se não houver vela, pelo me-
fontes, que é um elemento importante, é verda- nos deve riscar fósforos, repetidamente, como
de, mas não exaure a necessidade de segurança. sinal de que não abandonou a sua luta.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
76

está na consciência, de capricho; estou falando


das grandes bancas, das grandes influências,
tomando um poder decisório antecipadamente
com as próprias assessorias de tribunais supe-
riores e Supremo. Então, nesse sentido, minha
postura é um tanto mais radical que as apresen-
tadas de forma muito mais adequada ao modelo
dominante.
Dignidade humana tem sido levada ao ridí-
culo pelos nossos tribunais superiores, especial-
mente, pelo Supremo Tribunal Federal. Em uma
discussão sobre rinha de galo no Rio de Janeiro,
MARCELO DA COSTA PINTO NEVES o Ministro Celso Mello, bem argumentando, di-
Professor da Universidade de Brasília zia que o art. 226 imputava uma regra ao texto
que é do tratamento cruel aos animais. Estava


tudo caminhando bem para afirmar que a lei que
É uma satisfação estar aqui. previa a rinha de galo no Rio de Janeiro era in-
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que a constitucional, então se levanta o Ministro Cezar
questão de que tratarei aqui não é com relação Peluso e diz que não, é a dignidade humana. O
à preocupação de fundamentação teórica maior, poeta Carlos Britto e também o Ministro Ricardo
já que faço isso nos meus trabalhos, pois se tor- Lewandowski adotam essa posição. Nesse senti-
nou chato, visto que quando fazia palestras muito do, você observa que aqui há uma desconexão
teóricas o público ia se retirando, porque ficava e os princípios ficam como coringas que servem
em uma abstração muito grande. para o advogado estratégico, que ganha mui-
Então, vou tentar estabelecer algo, que é tra- to dinheiro, e também para os movimentos so-
zer para a prática, e a prática judicial criticamen- ciais, quando, então, fica um coringa que leva
te, certas reflexões que estão relacionadas com o não propriamente à incerteza, porque o Direto
nível de abstração que trabalho. é um fenômeno moderno. Isso que o Professor
É difícil a interpretação na decisão, mas uma Tércio Sampaio falou não tem nada de novo, a
coisa é a teoria da interpretação, outra coisa é incerteza no Direito é um problema moderno. É
teoria da decisão e outra coisa ainda é teoria da a questão da insegurança destrutiva das próprias
argumentação. No tipo brasileiro, misturamos possibilidades de soluções jurídicas que estabi-
tudo, e isso vocês observaram antes aqui, quer lizem expectativas. Então, é uma situação bem
dizer, não há uma distinção clara entre níveis diferente do que esse “blá blá blá” universitário
nem sequer de reflexão teórica sobre o que é que já conhecemos e estamos sobrecarregados.
uma teoria da decisão, teoria da interpretação, Nesse sentido, também o Ministro Luiz Fux, em
teoria da argumentação. Elas se interseccionam, um voto sobre o CNJ, diz que a Loman previa o
mas devem se distinguir. julgamento secreto dos juízes, dos magistrados,
Então, o que farei é exatamente apontar para e a discussão contra a mudança constitucional
o problema da decisão em formas interpretativas, que foi feita, porque é uma norma posterior à
que são precaríssimas e problemáticas. Isso tudo Emenda n. 45 e superior, que afirma que o juiz
vinculado ao principialismo, que não é principio- será julgado publicamente. Na parte adminis-
logia; é o uso dos princípios como retórica, que trativa sequer tem exceção. No CNJ, admitimos
encobre formas concretas de corrupção sistêmica em alguns casos de pedofilia de um juiz, para
do Direito nos nossos tribunais, não implicando não atingir os familiares e terceiros, mas isso era
isso corrupção no sentido penal, mas das boas uma circunstância especial. Mas, nesse caso, o
relações da Economia. Não estou falando do que Ministro Luiz Fux argumenta que Durkheim diz
série
Cadernos
do CEJ 77

ser contra a dignidade humana, vai expor o juiz. diferença. A dignidade humana, como postu-
Então, vejam bem o argumento dele. Se a lado ou como pressuposto, como condição de
dignidade humana está prejudicada, nós, que possibilidade, não é uma norma, um princípio
não somos magistrados, não temos dignidade interno. Como condição de possibilidade do es-
humana, porque somos julgados publicamente. tado constitucional, este só pode existir se nós
Então, vejam o que é a contradição interna do reconhecermos que todos são pessoas. Então aí
argumento, quer dizer, isso fere a dignidade hu- não seria um problema interno da ordem jurídi-
mana do magistrado, mas nós estamos expostos, ca. Porém, quando se apresenta na Constituição
eventualmente, a julgamentos públicos. como norma-princípio, temos de fazer uma deli-
Havia uma postura que era insustentável numa mitação do campo de incidência, senão tudo vai
busca superficial de teorias dos princípios. Nesse ser dignidade humana.
sentido, procuro mostrar
que, dentro do principialis-
mo, do pseudoformalismo,
temos, na verdade, estraté-
A dignidade humana é um conceito referente à sociedade
gias que servem muito mais moderna, que tem a ver com a diferença entre homem e
à manutenção de privilégios. sociedade; homem como dado biopsíquico e sociedade.
Falo com uma preocupação
mais recente que isso no
caso brasileiro, o bloqueio da reprodução con- Nesse sentido, temos observado que a condi-
sistente do Direito tem a ver, primordialmente, ção de possibilidade muitas vezes se confunde
com a dificuldade de se separar o plano da refle- com um princípio que simplificadamente torna-se
xão acadêmica, da reflexão dogmática jurídica um tentáculo destrutivo das possibilidades argu-
com o plano da própria prática advocatícia. Essa mentativas. Na questão da prisão, muitas vezes
promiscuidade leva muitas vezes a aquele que vem um jurista alemão e quer justificar a prisão e
se apresenta como jurista, como professor, na começa a falar da dignidade da pessoa humana,
verdade, trazer argumentos parciais em defesa de que é protegida com a prisão. É claro que a pri-
interesses econômicos ou outro tipo de interesse. são está vinculada a outro esquema de seguran-
Isso me preocupa porque é uma desigualdade ça pública e não podemos macular a dignidade
enorme no processo judicial. humana no momento da prisão. Talvez seja uma
Um advogado, por exemplo, de uma ONG, restrição ao princípio interno da dignidade huma-
que entenda pareceres de juristas renomados na. Mas o problema dignidade humana não está
que estão atuando, na verdade, em nome de in- afirmado aí, não é uma questão. A autonomia
teresses econômicos trivializados. Esse problema kantiana é uma autonomia transcendental, de um
da promiscuidade da função do advogado com a sujeito ideal, não de um voluntarismo empírico.
função do jurista e a apresentação como jurista Então, não compreendem sequer a teoria kantia-
para embasar interesse do respectivo escritório na e citam essa teoria para utilizar como panaceia
preocupa-me no caso brasileiro, e o principialis- à dignidade humana e isso prejudica o desenvol-
mo tem servido a isso. vimento institucional do Direito brasileiro. Esses
A dignidade humana é um conceito referen- seriam os pontos que me parecem fundamentais.
te à sociedade moderna, que tem a ver com a Gostaria de retomar as referências práticas
diferença entre homem e sociedade; homem que fiz, afirmando que a ampliação abusiva dos
como dado biopsíquico e sociedade. Essa dife- princípios, especialmente o da dignidade huma-
rença, pessoa, vista normativamente, apresenta- na, ameaça o próprio Estado constitucional. Ao
-se como dignidade da pessoa humana. A tradi- contrário do que se tem afirmado, esse abuso,
ção kantiana cai em um transedentarismo, mas, essa falta de parcimônia leva a efeitos destrutivos
de qualquer maneira, nós temos a ideia de uma em relação ao Estado constitucional. Há certo
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
78

moralismo simplificador da complexidade do o argumento é o princípio da igualdade. Mas


Direito na sociedade moderna, quando se recor- pasmem: o princípio da igualdade nesse caso é
re ao princípio da dignidade da pessoa humana afirmado porque no Distrito Federal houve uma
como panaceia para resolver situações as mais decisão que suspendeu a resolução da Anvisa. E
diferentes e outros princípios também. essa decisão estaria contrária aos interesses de
O princípio da igualdade é outro caso de co- outros fabricantes, em outras regiões do País.
ringa que é utilizado estrategicamente. E aqui, o Mas não tem sentido o princípio da igualdade aí,
problema institucional, temos de considerá-lo no porque imaginem se aqui no Distrito Federal o
modelo não da subjetividade do juiz, o que pas- Tribunal de Justiça tivesse uma decisão absurda,
sou na consciência não é uma questão que possa beneficiando certos grupos. Pelo argumento que
ser aquilatada. Se eu entrar em um tribunal, va- apresentaram, haveria um constrangimento, pelo
mos dizer, em que os Ministros Gilmar Mendes e princípio da igualdade, para estender isso para
Marco Aurélio, olham para a cara um do outro: outras regiões.
hoje eu quero pirraçá-lo. Ele colocou isso na ca- Então, essa postura de simplificação e de arti-
beça. Esse capricho não vale nada enquanto não culação principiológica tem que ser revista por-
houver o significado social como comunicação. que, na verdade, está atuando como um meca-
Se o voto daquele que quer pirraçar for um voto nismo de corrupção sistêmica do Direito. E o que
fundamentado, argumentado com amplo respei- significa corrupção sistêmica? Corrupção sistêmi-
to na comunidade jurídica, amplo respeito na ci- ca não é aqui no sentido penal, mas no sentido
dadania, isso é o que importa socialmente. O que de uma sobreposição de critérios do imperativo
passou na cabeça dele só terá sentido enquanto econômico, de imperativos de poder sobre a de-
puder ser suposto na comunicação. cisão judicial. E aí toda a nossa retórica, toda a
A questão básica não é essa interior, mas sim nossa academia, fica em uma postura de pleno
de formas institucionais em que os argumentos distanciamento e alienação. Quer dizer, ficamos
principiológicos são utilizados recursivamente falando de temas abstratos, mas não temos ca-
num crescendo de princípios novos, implícitos, pacidade de enfrentar criticamente os tribunais.
que estão surgindo para defender interesses par- Enquanto em países onde não há essa promis-
ticularistas, contrários à consistência jurídica. cuidade entre a banca e a reflexão acadêmica,
No caso da indústria do tabagismo, decisão re- a crítica aos tribunais é muito acentuada – por
cente. Se acompanharam o processo da Ministra exemplo, na Alemanha, e outros que criticam
Rosa Weber, percebem que a indústria do taba- muito fortemente o tribunal constitucional, e
co, forte no Rio Grande do Sul, consegue uma também nos Estados Unidos, o próprio filósofo
liminar vinculada. Qual o interesse iminente nes- Dworkin, que era muito mais vinculado àqueles
se caso, porque os aditivos de cigarro estariam juízes, tomava postura desse tipo – no Brasil te-
sendo, pela Anvisa, inconstitucionais, levantado mos uma pauperização na reflexão a partir exa-
pela indústria do tabaco. Quando vamos ver a tamente não de uma principiologia, mas sim de
decisão, é o princípio da igualdade. Primeiro, não um principialismo que me parece problemático.
havia competência por norma específica; claro, Então, concluindo, diria que uso de princí-
você pode argumentar: não, isso é só uma refe- pios sem que haja preocupação de delimitação
rência à fonte. Mas não vamos brincar com isso de campos de aplicação do princípio, sem que
também, não vamos brincar com principialismo haja uma orientação, uma construção teórica
besta e com argumentação boba. Evidentemente, nesse sentido, por parte da doutrina brasileira,
se tem na Constituição uma ressalva especial, se que infesta nossos tribunais com uma paralisia
não se considera aquela ressalva, ela não serve no sentido de capacidade decisória consistente
mais pra nada. Aquela ressalva que só pode ser ou no sentido oposto à paralisia, em um ativismo
no recesso a concessão de liminar na ADIn. exatamente fundado na falta de uma crítica aca-
É dada uma liminar. Depois dessa liminar, dêmica consistente.
série
Cadernos
do CEJ 79

No meu entender, o mais importante não é tórica, seja do principialismo, seja do pseudofor-
nem o que falou o primeiro palestrante, nem o malismo, todos esses modelos estão amparados
segundo neste momento de diálogo com os se- em uma desdiferenciação do sistema jurídico, em
nhores. O mais relevante é realmente colocar- uma subordinação do Direito a esquemas de boas
mos uma nova postura que leve a um diálogo relações de poder e de economia. Por isso, esse
crítico com as práticas institucionais dos nossos diálogo com o Judiciário tem de ser retomado
tribunais. Quer dizer, evidentemente, é plausível no sentido de que o Judiciário deve estar aberto
e viável qualquer reflexão teórica, mas, no caso para uma academia que possa oferecer elemen-
brasileiro, essa reflexão teórica seja de uma re- tos críticos no plano institucional.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
80

HELENA ELIAS PINTO


Juíza Federal da Seção Judiciária
do Rio de Janeiro


Coube-me a honra de fazer o encerramento deste painel em virtude da necessidade de
presença do Dr. Nino Toldo em outro compromisso já previamente agendado.
Queria dizer da minha satisfação, da minha honra de estar aqui podendo compor esta Mesa de gran-
des juristas e aqui incluo o Professor Tércio Sampaio que precisou se ausentar também.
Tivemos um painel realmente extraordinário em que todos os participantes são conhecidos e re-
conhecidos por suas qualidades acadêmicas e também por suas virtudes pessoais.
Eu comentava com o Professor Tércio Sampaio que o primeiro livro de Direito que li na minha vida
foi antes de entrar na faculdade, enquanto aguardava as aulas terem início com muita curiosidade
sobre o que iria encontrar nas salas de aula. Fui a uma livraria e comprei um livro que me pareceu
muito interessante. Essa obra é o Livro do Professor Tércio Sampaio, sua Introdução ao Estudo do
Direito. O que não sabia, na minha inocência, o que não imaginava é a importância e a grandeza que
essa obra teria não só em si, mas também na minha formação jurídica. É uma obra que me acompa-
nha até hoje que, com muita satisfação, eu reencontrei na bibliografia da pós-graduação, mestrado
e doutorado, ainda guardo aquela primeira edição de capa azul que eu adquiri, e também adquiri
edições mais modernas para minha atualização. É uma satisfação realmente importante.
E também o que é o destino, reencontrar neste momento, nesta Mesa, o meu querido amigo
Humberto Ávila, jurista extraordinário pelo qual tenho a mais profunda admiração, o mais profundo
respeito e a prova disso é sempre que tenho oportunidade, eu o convido, dada sua atribulada agenda,
para participar, e ele sempre muito gentilmente comparece e sempre nos surpreende com suas expo-
sições, conhecimentos e reflexões. Estou intrigada, faço questão de ler posteriormente esse trabalho
escrito, esperamos que possa ocorrer uma publicação reunindo essas obras. É uma satisfação enorme.
Estou com a mente ainda em grande agitação por conta das suas reflexões.
E ao Professor Marcelo Neves, quero dizer da minha grande satisfação de conhecê-lo pessoalmente,
confirmando as boas impressões que tinha a respeito dele e de sua obra. Não tinha tido a oportunidade
de encontrá-lo, apesar de ser conhecedora e profunda admiradora de seu trabalho.
Declaro encerrado este painel.”
série
Cadernos
do CEJ 81

Geraldo Prado, Helena Elias Pinto, Juarez Tavares, Pierpaolo Cruz Bottini

TUTELA JUDICIAL EM MATÉRIA PENAL

HELENA ELIAS PINTO


Juíza Federal da Seção Judiciária
do Rio de Janeiro


Dando andamento à sequência de nossos trabalhos neste seminário interessantíssimo sobre
Teoria da Decisão Judicial, chegamos, agora, ao momento de um painel que, certamente, irá manter
o elevado nível de debate acadêmico que temos tido. Abordar-se-ão questões bem interessantes, cada
uma dentro das suas características, possibilitando a reflexão sobre os desafios que o magistrado tem
diariamente diante de sua mesa, diante de sua rotina de trabalho, que envolve, necessariamente,
também um trabalho de todos os que participam da elaboração da decisão judicial já a partir daque-
le que consideramos o primeiro juiz do processo, o advogado, quem irá apresentar a petição inicial
ou, no crime, apresentar a defesa em contraposição à acusação apresentada pelo Ministério Público.
Tenho a felicidade de estar aqui integrando esta mesa na presença do Professor Juarez Tavares, a
quem agradeço por essa participação, assim como aos Professores Geraldo Prado e Pierpaolo Bottini.
Todos deixaram seus afazeres, rotina de vida para poderem contribuir com a formação dos magistrados
e com a comunidade jurídica com essas reflexões.
Tenho certeza de que será um painel extremamente proveitoso, até a partir de conversas que es-
távamos tendo agora no intervalo, de modo que não quero ocupar os preciosos minutos que teremos
dos expositores, razão pela qual já passo a palavra ao Professor Dr. Geraldo Prado, Pós-Doutor pela
Universidade de Coimbra, em Portugal. Ele foi Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro, Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Professor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor visitante da Universidade Nacional de Lomas de
Zamora, na Argentina, e também Professor das Universidades Cândido Mendes, Estácio de Sá e Gama
Filho, dentre outras, com diversas obras e um trabalho importante na área.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
82

mas especialmente aqui, a respeito da validade


científica de se persistir com tal categorização des-
ses temas processuais, há um debate na doutrina
processual penal em torno disso, da operatividade
desse conceito. Defendo, ainda, ao lado do pro-
fessor da Universidade Federal do Paraná Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho, a operacionalidade
de um conceito importante, que é o de sistemas
processuais, mesmo que trabalhando em uma
perspectiva muito mais de indicador epistêmico
do que propriamente de um conceito de organiza-
ção do processo penal. Ele funcionaria como um
GERALDO PRADO conceito de organização das demais categorias,
Professor da Universidade Federal dos demais conceitos processuais penais, estrutu-
do Rio de Janeiro rando a base do discurso processual penal.
Um discurso processual penal cientificamente


válido, ainda de acordo com meu ponto de vista,
Meu cordial boa tarde a todos. Minhas depende muito de uma compreensão de siste-
primeiras palavras são de agradecimento à orga- mas processuais. Portanto, deixando claro isso,
nização do evento, pelo gentil convite, pela possi- explico aqui que haverá uma introdução, falarei
bilidade de voltar a Brasília e agradeço na pessoa do dever e fundamentação das decisões e, final-
da nossa Presidente de Mesa, Dra. Helena Elias. mente, da motivação das decisões interlocutórias
É ótimo poder discutir um tema que, creio, penais e dever de fundamentação reforçada.
incomoda aos magistrados de um modo geral e Inicio o texto lembrando um autor de São
àqueles que atuam na área criminal, particular- Paulo, falecido, muito querido de todos que estão
mente, “O dever de fundamentação reforçada aqui na Mesa, José Henrique Pierangeli, que que
das decisões no âmbito das medidas cautelares contempla grande parte da legislação processual
penais”. Tenho a impressão de que pode gerar penal brasileira do fim da Colônia até o início
um debate rico e, portanto, é um motivo adi- dos anos 1980. Ele destaca uma passagem inte-
cional para minha alegria e para a honra de ressante do início da nossa vida independente:
estar aqui presente. Promulgada a Constituição do Império, algumas
Cumprimento os Professores e amigos Juarez decisões do Governo foram baixadas, enquanto o
Tavares e Pierpaolo Bottini e, sem mais delongas, Poder Legislativo organizava a Justiça e as regras
pedindo desculpas aos senhores – sei que, muitas do processo, de conformidade com os princípios
vezes, há o hábito de se preferir uma exposição estabelecidos na Magna Carta. Pela Decisão n.
oral, solta, livre, mas esse tema está entre os te- 78, de 31 de março de 1824, determinou-se aos
mas que mais me incomodam, particularmente. juízes a fundamentação das sentenças que pro-
Aproveitei a oportunidade de uma homenagem, ferissem, enquanto que, pela Decisão n. 81, o
na minha opinião, justa e merecida, ao Prof. Governo declarou que o juiz da devassa não era
Michele Taruffo para elaborar um texto e é a sín- competente para julgar feito.
tese deste que trago aqui, e passarei à leitura de Essa primeira passagem, em especial a referên-
vários dos pontos que articulei nessa exposição. cia à Decisão n. 78, de março de 1824, exigindo fun-
Evidentemente, como eu trabalho a partir de damentação das decisões judiciais, demonstra que
uma perspectiva no processo penal desses temas a preocupação com a fundamentação das decisões
processuais e deixando muito claro, até mesmo não é uma preocupação da Constituição de 1988
em razão das últimas controvérsias no âmbito do no que diz respeito ao processo penal brasileiro.
Direito Processual Penal brasileiro, não só aqui, No contexto do Seminário sobre Teoria da
série
Cadernos
do CEJ 83

Decisão Judicial, apresento este ensaio, que bus- modo geral, proferidas em um ambiente em que
ca aplicar ao campo das cautelares no Processo não há um contraditório pleno. A própria prova,
Penal os conceitos desenvolvidos no âmbito da de um modo geral, não é ainda uma prova em
Teoria da Decisão Judicial ao longo de algumas sentido jurídico constitucional, são elementos in-
décadas, relativamente ao tema da motivação da formativos, não há o contraditório, e a formação
decisão e seus correlatos: prova e processo no de vários desses elementos informativos, pela
Estado de Direito. sua característica, depende desse manter oculto
A análise teórico-conceitual do conjunto arti- o elemento informativo das pessoas que estão
culado de dispositivos processuais relacionados sendo investigadas. Portanto, esse ambiente de
às qualidades de um processo ordenado como rarefeita publicidade, de rarefeito contraditório
entidade epistêmica, que compreende uma con- nos obriga a pensar a decisão cautelar, a decisão
cepção racional-legal de Justiça, com ênfase para interlocutória, no âmbito cautelar; especialmen-
a decisão, tem se constituído em uma das princi- te aquelas medidas cautelares que interferem no
pais preocupações de um Poder Judiciário que patrimônio de direitos fundamentais do indivíduo
atua no marco do Estado de Direito. obriga-nos a pensar uma responsabilidade talvez
Em outras palavras, no marco do Estado de maior do que a própria decisão de mérito, da
Direito o Poder Judiciário tem que garantir uma própria sentença que absolve ou condena.
previsibilidade mínima das suas decisões – ela E sigo dizendo que o princípio de que trata
não pode ser fruto do capricho, ela não pode ser esta comunicação é o da fundamentação re-
fruto de práticas decisionistas, de manifestações forçada, que tem merecido pouca atenção da
decisionistas – e talvez uma maneira de se enqua- doutrina brasileira no processo penal e não tem
drar a decisão judicial em um marco de Estado de sensibilizado os tribunais como seria de se espe-
Direito seja essa vislumbrada por Michele Taruffo, rar, passados mais de 25 anos da promulgação
de pensar a Justiça a partir de uma concepção da nossa Constituição. Aspectos colaterais des-
racional-legal, que nos obriga a todos (assisti, se tema, como a decisão por remissão, também
ouvi, pelo menos, algumas passagens do final conhecida como fundamentação per relacione,
da última Mesa sobre Teoria da Argumentação, em particular, tocam a estrutura acusatória do
Teoria da Decisão, Teoria da Fundamentação), processo penal e a garantia da independência do
remetendo-me um pouco àquela fala do profes- juiz e devem provocar uma maior reflexão entre
sor Marcelo Neves, a pensar a Justiça em termos nossos juristas.
racionais legais, mas para um fim de Estado de Como disse, esse texto é muito maior do que
Direito, que mais adiante avançarei e que marca será apresentado aqui. Ele foi elaborado em ho-
uma diferença do meu pensamento para o do menagem a Michele Taruffo e a minha particular
Professor Marcelo Neves. preocupação diz com a relação entre a decisão
Por isso, a escolha da questão que está situada interlocutória, a estrutura acusatória do processo
no âmbito da chamada “economia das decisões”, e a garantia da independência do juiz.
em um particular marco de referências em que Inicio a segunda parte da minha exposição,
tais pronunciamentos terminam por ser emitidos, referindo-me ao dever de fundamentação das
excepcionalmente deslocados da estrutura gené- decisões do Estado de Direito. Menciono o pro-
tico-constitucional do Processo Penal, no Estado nunciamento do início da nossa vida indepen-
de Direito, desprovidos do contraditório e produ- dente, ainda no Primeiro Império, e saliento, dan-
zidos em um ambiente de rarefeita publicidade, do um salto histórico, a questão histórica aqui é
mostra a importância do tema. importante, mas, para a comunicação, não tão
As decisões que os senhores juízes proferem, importante assim. Chego então ao ano de 1979
acatando, acolhendo ou não pleitos de medidas e a extraordinária figura do José Carlos Barbosa
cautelares na investigação criminal ou mesmo Moreira, que praticamente, nos estertores da di-
durante o processo penal, são decisões, de um tadura civil-militar brasileira, iluminou os víncu-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
84

los entre motivações das decisões e o Estado de do os limites de atuação da instância revisional”.
Direito, que, à época, era o sonho e a ambição Barbosa Moreira também enquadrará a ques-
da nossa sociedade que lutava por recuperar ple- tão por esse prisma, preocupado com a res judi-
namente a sua liberdade. cata e, naturalmente, com a coisa julgada; ambos
O resgate dos fundamentos ético-políticos da os autores concordarão com o que parece ser o
motivação apoiava-se, em primeiro lugar, no re- aspecto mais relevante da legitimação do dever
conhecimento de que a exigência de fundamen- de motivação e sobre o qual está alicerçada a
tação das decisões caminhara quase lado a lado referida legitimação, isto é, o valor político da
com o movimento de superação do autoritaris- garantia, a decisão de política legislativa de se
mo, no âmbito dos Estados de tradição ocidental. requisitar a motivação de um pronunciamento
Portanto, a ideia chave, o conceito, a noção de judicial ou abrir mão dessa exigência tem caráter
fundamentação das decisões tem aí uma história político, tal seja, diz o modo como determinada
que anda lado a lado com a história da luta con- sociedade encara o Estado de Direito.
tra o autoritarismo, e isso não é acaso. Barbosa Moreira relembra que, no Estado
de Direito, todos os poderes
sujeitam-se à lei. E é relevan-
[...] a questão de fundamentação não é uma questão de te, pois, o papel que exerce a
convencimento, mas de justificação de quem decidiu, de fundamentação das decisões
apresentação das suas razões. judiciais; o poder de impor
restrições no âmbito dos direi-
tos individuais reivindica legi-
Assim, Barbosa Moreira ressaltou não apenas o timação política, por meio da fundamentação do
papel da Revolução Francesa no seu pioneirismo, ato de poder, e por isso a tal ponto é consensual
como também uma série de outras disposições, que, mesmo ordens jurídicas que textualmente
em particular, do Direito alemão e do Direito ita- não incorporaram às suas constituições o dever
liano, este no final do século XVIII, aquele no iní- de motivar, extraiam as exigências de outros prin-
cio do século XIX, todas elas associadas à noção de cípios constitucionais, como é o caso da realida-
fundamentação das decisões, motivações das de- de alemã.
cisões e controle do poder, particularmente, uma Avanço com as lições de Canotilho, que afirma
luta expressa e significativa contra o autoritarismo. que a exigência de fundamentações das decisões
É certo que não há uma uniformidade contra judiciais radica em três razões. A primeira delas:
os pressupostos de base para a construção do de- controle da administração da justiça; a segunda,
ver de motivar as decisões, a doutrina não pro- exclusão do caráter voluntarista e subjuntivo da
duziu um consenso alargado acerca das razões atividade jurisdicional e abertura do conheci-
concretas para se exigir a motivação das decisões. mento da racionalidade e coerência argumenta-
Em geral e a partir de uma perspectiva estrita- tiva dos juízes; e a terceira, melhor estruturação
mente processual, endo-processual, o dever de dos eventuais recursos, permitindo às partes, em
motivação cumpriria duas funções, como ressalta juízo, um recorte mais preciso e rigoroso dos ví-
Michele Taruffo: serviria às partes, em especial à cios das decisões judiciais recorridas.
que tenha perdido, porque pela da motivação é Em geral, a inspiração de nossa melhor doutri-
possível identificar os erros e vícios que o juiz co- na remete às considerações de Taruffo, que distin-
meteu na sentença, o que facilita a elaboração gue as várias dimensões que derivam do processo
da impugnação respectiva e, também, sublinha o cognoscitivo e decisório. Salienta o mestre penin-
processualista italiano, ”a motivação possibilitará sular que antes eram afastados alguns mitos que
ao tribunal ou ao juiz de revisão-rescisão se indicar povoam o imaginário do processo, entre os quais
a respeito da conexão entre a própria impugnação o de que a motivação tem caráter retórico, isto
da parte e a mencionada motivação, estabelecen- é, possui como objetivo persuadir e convencer.
série
Cadernos
do CEJ 85

Fui magistrado durante 26 anos e creio que não A questão é controvertida, mas pode-se afir-
há como deixar de concordar com essa posição mar que, sob a perspectiva analítica, o processo
de Michele Taruffo, que é também a de Barbosa decisório compreenderia, de acordo com Michele
Moreira, de Bernhard Schilink, na Alemanha, e de Taruffo, três estágios. No primeiro deles, na mo-
Canotilho; decisões judiciais, nós podemos querer, tivação, coloca-se a hipótese formulada para de-
como magistrados, que convençam as partes, mas pois proceder a sua explicação, constituindo a
elas não têm essa função. Se as partes ficarem con- decisão a premissa da justificação. Portanto, ao
vencidas é um ganho adicional que a decisão pro- contrário daquilo que consta nos nossos manuais
porciona. No entanto, o que, no âmbito de Estado de processo penal brasileiros, primeiro temos a
de Direito, cabe à decisão cumprir é a justificação decisão, a partir dali, a explicação dela.
da escolha pelo juiz da solução alvitrada. Isso, na Com efeito, segundo Taruffo, a decisão não
acepção de Barbosa Moreira, chamará atenção é o ponto de chegada, mas o de partida da fun-
para “o suposto valor persuasivo das boas funda- damentação, configurando discurso autônomo
mentações”, em outra sequência frequentemente relativamente ao próprio processo intelectual
desmentida na prática. de formação da convicção. Esses manuais dizem
Então, a questão de fundamentação não é que o juiz, na fundamentação, relata a trajetória
uma questão de convencimento, mas de justifi- do seu pensamento para chegar à conclusão; e
cação de quem decidiu, de apresentação das suas eu, como magistrado do Rio de Janeiro que gos-
razões. Isso acaba fazendo com que esse tema ta de samba, já tive oportunidade de estar na
toque com alguns outros temas, desde a estrutu- Lapa, onde há várias casas de samba, tentando
ra cognoscitiva do próprio procedimento penal, me distrair, tomando uma cervejinha e, em de-
com a noção de verdade que cada um de nós car- terminado momento, ouvindo um samba, pensei:
rega e que vai manejar no âmbito do processo. a solução daquela causa é essa. Isso já deve ter
No momento da fundamentação, em tese, o juiz acontecido com vocês, vocês estão no lugar mais
já terá formado a sua convicção, razão pela qual improvável do mundo e, no plano inconscien-
não se trata aqui de descobrir algo, a verdade, te, aquilo fica te perturbando, e, de repente, ou
mas de justificar a convicção exposta, valendo-se você acorda ou você está vendo um filme ou está
de argumentos apoiados nas provas que permi- conversando com o seu filho ou com sua filha e
tam controlar a racionalidade da justificação em atravessa essa sua história, esse seu momento,
si. A tarefa recursal e mesmo a tarefa de crítica aquele processo e elementos que até então você
que a doutrina produz que, na arena pública, a não havia considerado relevantes para decidir,
comunidade também produz, dependem exata- e eles se tornam claros.
mente da estruturação dos argumentos da de- Fico pensando, se eu for seguir a receita de
cisão e elas miram essa justificação da decisão. bolo dos manuais, terei que colocar na minha
O processo é uma entidade jurídica e impõe decisão que eu estava na Rio Cenário, casa de
uma disciplina que constitui a sua principal ga- samba do Rio de Janeiro. Imaginem, estou lá
rantia. É essa necessidade de disciplina que, por na casa de samba, ouvindo Noel Rosa, quando
sua vez, introduz o processo entre a notícia do então tudo se fez claro para mim. Se eu seguir
crime e a decisão eventual de punir. Desse modo, os ma­n uais... é impressionante, porque é isso
elementos explicativos necessitam ser seleciona- o que dizem no manual, que a fundamentação
dos e introduzidos no processo, naturalmente pe- é o rastreio do processo decisório. No proces-
las partes, com estrita observância das garantias so decisório, nem o juiz sabe por que decidiu.
indispensáveis ao legítimo exercício do poder pe- Determinadas escolhas nós chamamos, no âm-
nal sob a ótica dos vínculos funcionais referidos bito da Teoria do Conhecimento, de inferências,
ao Estado de Direito, e somente depois disso en- determinadas inferências temos; depois disso
trarão em ação os mecanismos que conformarão daremos a elas uma estrutura racional, vamos
a atividade decisória. apoiá-las, vamos ter argumentos que vão se orga-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
86

nizar para fundamentá-las, mas como chegamos lhor, porque vamos reduzindo o risco de erro ju-
a elas é impossível, absolutamente impossível re- diciário. Se tenho elementos que me dizem: olha,
latar. Essa é a questão que estou destacando aqui. esse relato, posso conferi-lo, como, por exemplo,
Ora, se o papel da motivação da decisão é um exame de corpo de delito? As lesões detecta-
essencial à legitimação dela própria, sob o ân- das no laudo são compatíveis com o relato que
gulo do Estado de Direito, no âmbito do proces- a testemunha apresenta? Eu tenho mecanismos
so penal-constitucional, a estrutura da decisão de verificabilidade que são fundamentais em uma
revela-se ainda mais saliente em relação a de- estrutura de processo penal que queira legitimar
terminadas categorias de decisão interlocutória a decisão em algum conteúdo de verdade. Se for
porque, antes mesmo de ser cogitado o acerto do legitimar a decisão em um acórdão, não preciso
decidido, é necessário interrogar sobre caminhos disso, mas se pretendo que a minha decisão con-
percorridos para o acesso aos meios e fonte de denatória ou absolutória esteja fundamentada
prova ou para empregar a terminologia que se numa convicção minha de que aquilo que es-
vai consagrando no Direito europeu aos meios tou reconhecendo é verdadeiro, preciso desses
de investigação de prova e aos meios de prova. elementos de verificabilidade e eles necessitam
Temos esse processo decisório na cabeça aparecer na decisão.
como alguma coisa mítica e, na realidade, há Por isso, para sindicar a existência de uma mo-
muitos elementos que desconhecemos até hoje tivação válida, há de se recorrer à estrutura da
do próprio processo decisório, mas temos um de- decisão que deve estar conforme o modelo nor-
ver de fundamentação. Esse dever de fundamen- mativo de decisão judicial fundamentada, corres-
tação se apresenta como um juízo de justificação, pondente ao discurso da justificação empregado
como um momento de justificação, ao qual eu que, por sua vez, seja capaz de demonstrar a ra-
recorrerei me valendo de elementos que não têm cionalidade da escolha levada a cabo pelo juiz.
a mesma natureza. Uma interceptação das comu- Afinal, a motivação é a explicação da convicção
nicações telefônicas não tem a mesma natureza e da decisão. E aí entramos em um terreno mais
do depoimento de uma pessoa que alega ter visto sensível e o objetivo da minha fala aqui para os
o acusado praticar um determinado comporta- senhores e as senhoras hoje, que é o da decisão
mento. São elementos distintos, são elementos interlocutória no âmbito das medidas cautelares,
incomparáveis. Se são elementos incomparáveis, quase sempre decisão proferida em investigações
na estrutura de uma decisão, não podem estar na criminais, quando ainda não há exercício do di-
mesma ordem de argumentação para fundamen- reito de defesa, o contraditório é muito rarefeito,
tar, para apoiar a decisão. Obtenção de meios de muito limitado, bastante constrangido.
prova são meios de obtenção de meios de prova, Na atualidade, é inegável a expansão de formas
não demonstram absolutamente nada. Meios de negociadas de adjudicação de responsabilidade
prova demonstrarão alguma coisa, e essa alguma penal e de técnicas especiais de investigação que
coisa demonstrada pelo meio de prova precisa se valem com frequência de métodos invasivos
ser confirmada. de pesquisa de informações, ingerências nas co-
A estrutura de justificação de uma decisão é municações privadas, astuciosa intromissão na
também, como disse no início da minha fala, a vida alheia e generalizado afastamento de sigilos
oportunidade que temos, em uma justiça racional contendem com a presunção da inocência, inde-
legal, de conferir os mecanismos de verificabili- pendemente do grau de eficácia de que gozam em
dade desses próprios meios de prova, porque, termos de aquisição de fontes e meios de prova.
afinal de contas, estou dando crédito ao depoi- Eu diria até mais, contendem com a presunção da
mento de João, em que sentido esse depoimento inocência e contendem, em um foco mais preciso,
merece crédito? Se ele me relata um fato e eu com a garantia do nemo tenetur.
tenho outros elementos, Michele Taruffo insiste Todos esses mecanismos, que a doutrina
nisso, quanto mais técnicos ou científicos, me- tende a denominar de “métodos ocultos de in-
série
Cadernos
do CEJ 87

vestigação”, colidem com a garantia contra a Se observarmos só no âmbito das prisões cau-
incriminação compulsória, alguns deles já estão telares que temos um índice de 47% de presos
previamente autorizados, há uma excepcionali- cautelares relativamente ao total da população
dade constitucional, é o caso da interceptação carcerária, dá para se entender que há uma an-
das comunicações telefônicas, num julgamento tecipação da punição. Para o âmbito das caute-
dos nossos constituintes, chegou-se a um juízo lares, isso vai também refletir nas questões patri-
de conveniência. É possível comprimir o âmbito moniais etc. E a última coisa que podemos dizer
normativo da tutela contra a autoincriminação é que essas decisões interlocutórias são decisões
compulsória, em determinados casos, valendo-se interlocutórias simples, ou mistas, ou o que seja.
da interceptação das comunicações telefônicas. São decisões que, ao afetarem direitos fundamen-
Eu tenho sustentado que se trata de uma tais, têm de se enquadrar em um determinado
exigência constitucional de uma reserva de lei modelo de fundamentação.
fundamentada que, (para além daquilo que diz, Isso não é novidade. A Argumentação n. 11
com todo respeito à Professora Ada Pellegrini de 2001, do Conselho da Europa, vai dizer que se
Grinover, além de ser uma reserva de lei propor- deve ter um controle extraordinário sobre deci-
cional), é uma reserva de lei qualificada, porque sões cautelares que afetam esses métodos. A nos-
se eu vou limitar uma garantia constitucional, sa Corte Interamericana sobre Direitos Humanos
como o nemo tenetur, por uma lei ordinária, (e também decidiu nesse sentido. A fundamentação
aí eu estou me referindo muito diretamente à re- de decisões cautelares que afetam direitos funda-
cente lei da investigação do crime organizado, da mentais precisa ser especialmente fundamentada
infiltração de agentes, da colaboração premiada, no âmbito do Conselho da Europa. A existência
da escuta ambiental), se eu fizer isso, eu preciso de controles é considerada condição de valida-
ter uma lei qualificada e, particularmente, na mi- de da própria medida. Portanto, não há sentido
nha opinião, preciso ter respaldo constitucional, exigir o controle se este se faz por meio de uma
como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decisão que não controla.
reconheceu, cassando de-
cisões na Alemanha e obri-
gando a modificação da [...] a decisão não é o ponto de chegada, mas o de partida
Constituição alemã, agora, da fundamentação, configurando discurso autônomo
há dez anos, em 2004. relativamente ao próprio processo intelectual de formação da
Voltando ao assunto, o convicção.
que nos interessa para o
tema da motivação das de-
cisões interlocutórias? O que nos interessa aqui Nesse contexto, a fundamentação revela-se
é que eu já sei que a presunção da inocência limite dos limites e exige uma dogmática espe-
estará limitada, já sei que a garantia contra a cífica para o tema. Que dogmática seria essa? É
autoincriminação compulsória também estará exatamente a fundamentação reforçada. E por
afetada. Portanto, eu tenho que olhar para essa fundamentação reforçada podemos entender o
decisão cautelar, não mais como alguma coisa oposto, exatamente o oposto da fundamentação
simples, uma decisão interlocutória simples, que per relationem. A fundamentação reforçada das
é da tradição. E aí, Professor Juarez Tavares, às cautelares deve apontar aqueles elementos infor-
vezes, nas nossas conversas, há uma crítica, a mativos, específicos dessas medidas cautelares,
Hélio Tornaghi, mas tem um sentido, é da tra- porque todas elas – quer se trate de intercepta-
dição do pensamento jurídico-processual brasi- ção das comunicações telefônicas, quer se trate
leiro cogitar dessas decisões interlocutórias por de interceptação das comunicações ambientais,
decisões interlocutórias simples, com o de menor autorização para infiltração de agentes – todas
potencial lesivo. elas têm elementos especiais que são pensados a
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
88

partir de juízos de proporcionalidade, porque le- a estrutura acusatória.


vam em consideração direitos fundamentais que, Aí é preciso fazer uma escolha ou chegar a um
a rigor, não poderiam ser comprimidos, mas que consenso. Queremos um processo penal acusa-
são excepcionalmente comprimidos. Portanto, tório? Parece-me que a única resposta possível é
são elementos especiais, são decisões que têm aquela que, olhando para Constituição, nos diga
de enfrentar a especialidade desses elementos. o que ela quer, por que não eu querer, Juarez
O exemplo mais clássico, mais evidente é o da Tavarez quer, Pierpaolo quer.
interceptação telefônica que não pode ser de- A Constituição, efetivamente, nos traz elemen-
cretada se é cabível chegar a um resultado pare- tos de um processo penal acusatório? Sim. É a mi-
cido, próximo, ou o que seja, por meio de outros nha opinião. A garantia da imparcialidade do juiz,
elementos informativos menos agressivos, menos o princípio do juiz natural, as garantias da defesa,
onerosos à liberdade do agente. a ação penal em mãos do Ministério Público, o for-
Então, esse é um quadro muito específico das talecimento deste. Michele Taruffo fala muito isso,
cautelares, que nos coloca já relativamente a de- um processo penal depende hoje de um Ministério
cisão por chamada, per relationem, diante de um Público fortalecido.
problema. Um problema que se agrava, e isso Ouvi aqui algo que me deixou muito incomo-
é o que tenho observado, quando? Em primei- dado na fala anterior, que não me parece cor-
ro lugar, a decisão apoia-se em manifestação da reto. Os juristas brasileiros, pelo menos aqueles
parte, quase sempre do Ministério Público. Mas, comprometidos com o Estado de Direito (como
se se apoiasse em manifestação da defesa, daria deve ser um jurista, porque de outra maneira ele
no mesmo. O raciocínio é o mesmo, quem decide não é um jurista, é um farsante), defendem que
é o juiz. Se quem decide é o Ministério Público as garantias da defesa sejam escrupulosamente
ou se quem decide é a defesa, nós estamos ten- respeitadas, mas reconhecem que não há proces-
do uma usurpação de função jurisdicional. Uma so penal sem isso, porque a opção no processo
reserva de função, atribuída ao Judiciário, está penal sem um Ministério Público forte é um pro-
sendo indevidamente cumprida por alguém. De cesso penal com um juiz forte fazendo as vezes
que maneira? Pela decisão do juiz, que remete do Ministério Público. Opção que a Constituição
aos fundamentos da parte. já efetivamente repeliu.
Portanto, ter isso em mente
nos leva a pensar que a fun-
A Constituição, efetivamente, nos traz elementos de um
damentação per relationem ao
processo penal acusatório? Sim. [...] A garantia da imparcialidade
parecer do Ministério Público
do juiz, o princípio do juiz natural, as garantias da defesa, a ação
viola a estrutura acusatória
penal em mãos do Ministério Público, o fortalecimento deste.
do processo, porque eu terei
ali, em realidade, o Ministério
Então, eu tenho um elemento constitucio- Público como elemento de decisão.
nal que, na estrutura republicana, não pode ser E encerrando a minha fala, esse ponto, que
desconsiderado. O processo penal faz-se com o é meu, particular, é a minha posição original
princípio republicano, de freios e contrapesos. sobre sistemas processuais, tem, pelo menos,
Tem-se que controlar, o juiz está ali para tal. Se seis visões possíveis, seis concepções possíveis
ele sai de cena porque cede lugar estritamente de sistemas processuais que, com seriedade, a
à argumentação da parte, nós temos um vácuo doutrina processual penal, que tem fundamento
ali. E temos o fenômeno que estudo em outro na tradição europeia-continental ou na tradição
ambiente, em outro lugar, que é o da aglomera- anglo-americana, aceitam. Tenho sustentado
ção quântica de poderes. Então, há violação do uma sétima posição, que me parece que mais ou
princípio republicano quando há essa remessa. E, menos captura todos os elementos que circulam
especialmente no caso do processo penal, viola nessas seis maneiras de se identificar um sistema
série
Cadernos
do CEJ 89

processual. E o elemento que tenho sustentado ra, não há chance de a defesa sair vencedora.
é esse exatamente da acumulação quântica de Por que isso? Porque eu tenho a aglomeração
poder. É possível ter um processo inquisitório quântica de poderes. A aglomeração quântica de
com o juiz inerte. É absolutamente possível ter poderes nas ações cautelares se dá quando o juiz
um processo penal autoritário e inquisitório com delega ou assume que a decisão é, efetivamente,
um juiz passivo, um juiz que assumisse estrita- o pronunciamento da parte, ele não exercita o
mente uma função de presidente dos atos, basta controle mencionado.
para isso, que eu concentre poderes em um su- Do ponto de vista da bibliografia no Brasil,
jeito processual. Se aquele sujeito processual tem nada se escreveu, nada se escreve sobre isso, mas
poderes de tal forma concentrados que não haja me parece que o tema é muito sério na medida
possibilidades de equilíbrio no processo – (e olha em que 47% dos presos são presos cautelares, na
que Kirchheimer da Escola de Frankfurt vai dizer medida em que há uma expansão extraordinária,
isso), um processo deve, no seu início, possibilitar o Conselho Nacional de Justiça tem as estatísticas
que ao fim as duas partes possam ser vencedoras, do emprego de métodos ocultos, em especial a
uma ou outra. interceptação telefônica, mas, também, os afas-
Quando eu tenho a aglomeração quântica de tamentos de sigilo e pune-se hoje muito mais por
poder, só uma parte pode sair vencedora desde o medidas cautelares que por sentenças de mérito.
início do processo, ou antes do início do proces- Daí que, se em uma sentença de mérito nós temos
so. Nesse processo cautelar que temos na fase da uma exigência de fundamentação das decisões,
investigação, só uma parte pode sair vencedora. no caso das medidas cautelares, essa exigência
É o problema hoje do plea bargaining dos Estados deve ser reforçada.
Unidos da América. Vários autores, John Laing, Em linhas gerais, agradeço mais uma vez a
bem outros, vão dizer: isso aqui é um processo generosa audiência dos senhores e senhoras.”
inquisitorial, porque só a acusação sai vencedo-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
90

HELENA ELIAS PINTO


Juíza Federal da Seção Judiciária do
Rio de Janeiro


Gostaria de dizer que desse juízo negativo discordo veementemente, no que tenho certeza
de que posso aqui falar em nome de todo o auditório, porque reparei que todos assistiam, acompa-
nhavam atentamente as suas reflexões, nos deixando, inclusive, com um sentimento de curiosidade
em relação à leitura do texto completo que espero que tenhamos condições de fazer um encaminha-
mento para uma publicação, até porque esse evento teve a felicidade de ter uma demanda muito
grande, mas tantos não tiveram como se deslocar dos diversos locais do País para poder estar aqui
presencialmente, de modo que se conseguirmos aglutinar em uma publicação, será uma forma de
compartilhar, porque o que tenho observado, desde o evento de abertura, da palestra de abertura,
a conferência do Ministro Luís Roberto Barroso, é a possibilidade de estarmos tocando temas que
deveriam estar sendo objeto de reflexão muito mais constante nas nossas vidas. Aqui estamos tendo
uma oportunidade de, em diversas áreas do Direito, fazer isso de forma plural, com visões diferentes,
com discordâncias, como convém no ambiente democrático em que as pessoas não têm de ficar con-
cordando necessariamente umas com as outras, mas trazendo seus argumentos para que possamos,
ao final, chegar a uma decisão mais adequada para o caso concreto.
Eu acompanhei com muita atenção a sua exposição, verifiquei a plateia, e também participei na
condição de plateia, acompanhando a exposição, a parte da questão do dilema do magistrado no
exercício da jurisdição penal. Recentemente estive no Tribunal Federal Regional da 2ª Região atuando
na área criminal, como já fiz anteriormente em juízo com competência plena, inclusive a penal, e um
dilema muito grande do magistrado nas decisões cautelares penais é que, se ele fundamenta de for-
ma resumida, ele vai ser criticado duramente pelos advogados por não ter feito a tal fundamentação
reforçada; e se ele faz uma fundamentação mais detalhada, mais robusta, o advogado vai criticá-lo
duramente porque ele já fez um juízo, se determinou a prisão cautelar, ele já fez praticamente um
juízo de condenação naquela decisão fundamentada detalhadamente. Esse é um dilema que não tem
solução fácil. Buscamos um equilíbrio de como o magistrado pode fazer isso, de modo que achei sua
intervenção muito importante para contribuir para isso.
Agradecendo, então, a brilhante exposição, esperando que tenhamos a oportunidade de conhecer
mais a respeito de suas reflexões sobre o tema, inclusive a partir do texto que foi produzido, além
das obras que nós já temos à disposição, vou passar a palavra ao Professor Dr. Pierpaolo Bottini,
Doutor pela Universidade de São Paulo, Conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, Professor da Universidade de São Paulo, do Instituto Brasiliense de Direito Público, da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Professor convidado da Escola Superior da Advocacia
de São Paulo, colaborador da Comissão do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, ex-
-Secretário de reforma do Poder Judiciário no Ministério da Justiça e advogado atuante na área.
Agradecendo ao Dr. Pierpaolo sua presença nesta mesa, passo-lhe a palavra.”
série
Cadernos
do CEJ 91

formulação de uma orientação de política crimi-


nal. E isso tem uma série de implicações, prin-
cipalmente na análise do papel das instituições.
Parece-me fundamental, então, fazer um pouco
essa reflexão, fazer essa discussão, que tem uma
ligação direta, como poderão ver, com a ideia da
decisão judicial, com a teoria da decisão judicial.
Para compreendermos um pouco esse novo
papel do Poder Judiciário, essa nova forma de
atuação do Poder Judiciário no campo penal,
precisamos tentar compreender um pouco como
funciona a nossa sociedade atual, o que é bas-
PIERPAOLO CRUZ BOTTINI tante difícil, o que é muito complicado, porque
Professor da Universidade de São Paulo compreender como funciona a sociedade atual e
fazer esse trabalho, esse exercício, nós não temos


um distanciamento histórico suficiente para isso.
Queria, antes de mais nada, agrade- Então, para fazê-lo, vou me apoiar aqui em algu-
cer, na pessoa da Dra. Helena, o honroso convite mas ideias da Sociologia, umas teses sociológicas,
que me foi feito pelo Conselho da Justiça Federal para que possamos entender ou tentar, pelo me-
para tratar de um tema importante e com uma nos, discutir essas recentes alterações no Direito
audiência tão qualificada, realmente é uma hon- Penal que colocam o juiz em uma situação pelo
ra; e honra maior ainda por compor a mesa com menos inusitada.
dois dos meus professores. Dr. Geraldo Prado e Quando observamos como a nossa sociedade
Dr. Juarez, eu queria realmente cumprimentá-los funciona hoje, podemos dizer – eu aqui sei que
e dizer, mais uma vez, que é uma honra estar com essa expressão é bastante criticada, mas é uma
vocês aqui nesta mesa. expressão muito utilizada também – que nós vi-
Eu já peço desculpas antecipadas ao Dr. vemos em uma espécie de sociedade de risco
Juarez, porque, talvez, eu tenha que sair um pou- – e aqui estou puxando o Beck e o Giddens. E
co antes do final da sua exposição, mas o motivo por que nós dizemos que vivemos hoje em uma
é uma justificativa plausível, hoje é aniversário sociedade de risco? Não é porque os riscos da
da minha esposa, então, se eu não chegar a São sociedade de hoje são maiores do que a socieda-
Paulo em um horário razoável, eu não preciso de em que viviam nossos avós ou os nossos bisa-
nem chegar mais, continuo amanhã aqui. vós. Certamente os riscos são menores, o perigo
Eu queria tratar aqui e fazer uma reflexão con- é muito menor, mas vivemos em uma sociedade
junta com os senhores sobre um tema que vem em que a sensação de insegurança é muito maior,
sendo muito discutido na área do Direito Penal e a sensibilidade aos riscos é muito maior.
também na área do Direito Constitucional, que é Embora os perigos aos quais estamos submeti-
esse novo papel do juiz, e falo aqui desde o juiz de dos sejam menores, vivemos em uma sociedade
primeiro grau até o Supremo Tribunal Federal, mais segura, a sensação de estarmos submetidos
como um formulador de política criminal. Nós ao risco é muito maior. E o aumento dessa sen-
percebemos que, por conta de uma série de mu- sação, essa insegurança sentida, talvez não real,
danças estruturais na nossa sociedade, nas rela- tem uma consequência direta para a formulação
ções sociais, nas estruturas institucionais, cada da legislação penal, tem uma consequência di-
vez mais o juiz vem tendo um papel proeminente, reta na formulação da dogmática penal e tem
não só como alguém que soluciona conflitos, so- uma consequência direta na forma com que essas
luciona litígios, mas como alguém que contribui questões são colocadas ao juiz no dia a dia. Não
ativamente, que contribui como protagonista na preciso mais fazer nenhuma exposição socioló-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
92

gica, não se preocupem com isso, é só uma base com uma atividade humana, lesionar um sem
para que possamos começar essa discussão. número de bem jurídico, causar um prejuízo
Mas, o que acontece é: no fundo quando fa- descomunal, criar um desastre ambiental, criar
lamos que vivemos em uma sociedade de risco, um desastre nuclear. Um sujeito que planta, de
mais uma vez estou dizendo aqui, em uma socie- repente, transgênicos sem obtenção de todas as
dade talvez que tenha como principal caracte- cautelas, pode gerar um prejuízo tremendo.
rística uma maior sensação de risco, é porque os O que isso também significa para o Direito
riscos atuais têm algumas características que não Penal? Significa que o legislador vai progressiva-
tinham os dos nossos antepassados. mente abandonando a lógica do crime do tipo
Em primeiro lugar, a maior parte dos riscos penal de resultado e começa a adotar a lógica
aos quais estamos submetidos hoje é de proce- de criminalizar o perigo, de criminalizar o risco.
dência humana. Então se observarmos no século Ou seja, o legislador não quer mais esperar o re-
passado, a maior parte dos riscos aos quais as sultado dada a potencial capacidade de extensão
pessoas estavam submetidas eram risco de do- dos estragos desse resultado, ele começa então
ença, de catástrofe natural, risco até de guerra, a estabelecer, a fixar o crime de perigo abstrato
mas guerra como fator externo à sociedade. E, a como um crime paradigma, começa a lançar mão
partir da metade para o final do século passado, do crime de perigo abstrato. Então, tenho uma
percebemos que a maior parte dos riscos que nos expansão do Direito Penal, eu tenho uma expan-
afetam, cotidianamente, ou que tememos, tem são dos crimes abstratos.
uma procedência humana, uma origem humana; Uma terceira característica desses novos ris-
é o trânsito, é o risco de um acidente ambiental, é cos é a obscuridade dos nexos causais desses ris-
o risco de um acidente nuclear, ou seja, a maior cos. Mais uma vez, tenho riscos criados pelo ser
parte dos riscos tem essa procedência humana. humano, riscos de procedência humana, muitas
O que isso significa para o Direito Penal? vezes, em relação aos quais a ciência não tem
Significa que o Direito Penal, tanto do ponto de dados e não tem instrumentos para medir quais
vista legislativo, como dogmático, sofre uma ex- as consequências desses riscos, qual o curso cau-
pansão. Ou seja, a partir do momento em que o sal gerando esses riscos, se eles podem ou não
risco tem uma procedência humana, tem uma ocasionar algum resultado danoso.
origem humana, a norma penal se vê, pelo me- Essa obscuridade do nexo causal vai gerar uma
nos com intenção ou com vontade, de contro- sensação, a que o próprio Bauman irá dizer que nós
lar esse risco, de gerenciar esse risco. Então, o sentimos mais do que sabemos, ou seja, temos um
Direito Penal, que era um Direito Penal nuclear, número grande de atividades humanas em relação
era um Direito Penal reduzido, era um Direito às quais não temos certeza sobre os riscos, sobre os
Penal voltado a apenas algumas questões, busca perigos que trazem. E o que isso vai significar para
novas searas, busca novos ambientes, e começa o Direito Penal? Vai significar um progressivo aban-
a se interessar pelo risco ambiental, começa a dono da ideia da causalidade, e aí, certamente, o
pensar no risco genético, no risco do trânsito e Juarez vai falar muito melhor que eu.
assim por diante. Mas, no fundo, o que faz o Direito Penal?
Então, em primeiro lugar, essa nova carac- Progressivamente vai substituindo a ideia da cau-
terística do risco leva uma expansão do Direito salidade por um critério de risco, por um critério
Penal. Eu, aqui, não estou fazendo um juízo de de normatização, ou seja, na medida em que eu
valor, se ela é boa ou ruim, acho até que ela é não sei exatamente se aquela ação tem ou não
ruim, mas isso é um fato. a possibilidade de causar aquele resultado, eu
Em segundo lugar, esses novos riscos de pro- prescindo desse nexo de causalidade, eu vou fixar
cedência humana têm um potencial lesivo muito a punibilidade em outros critérios, em outros ele-
maior que os riscos de procedência humana que mentos, eu começo a trabalhar com o princípio
viviam os nossos antepassados. Hoje, eu posso, da precaução.
série
Cadernos
do CEJ 93

Enfim, o que quero dizer é que hoje, nesse tido e o risco não permitido. E se o primeiro ges-
nosso contexto social, vivemos uma sensação tor de risco, se o gestor de risco primário em uma
de insegurança que não é real, mas é sentida de sociedade é o legislador, esse paradoxo do risco,
maneira muito clara por conta dessas novas ca- essa dificuldade para saber qual é o risco permiti-
racterísticas do risco. Então, tenho um risco que do e não permitido vai resultar em uma legislação
é de procedência humana, que tem um grande criminal extremamente confusa, extremamente
potencial expansivo, e é um risco em relação ao incoerente e indeterminada. E, justamente, se
qual não consigo medir, não consigo ter ideia, é tenho uma legislação confusa e indeterminada,
um risco obscuro. Tudo isso tem um efeito direto isso traz para o juiz um novo contexto, porque a
na produção da legislação penal e na produção partir do momento em que o legislador não sabe
da decisão judicial, porque isso leva, na verdade, bem o que é o risco permitido e o que é o risco
a sociedade a um chamado “paradoxo do risco”, não permitido, a consequência imediata disso é
porque ao mesmo tempo em que temos um risco ter uma legislação penal cada vez mais aberta,
obscuro, um risco que tememos, um risco de cer- cada vez mais indeterminada.
ta forma intolerável; por outro lado, precisamos A consequência disso é ter um legislativo
dele, a sociedade não abre mão desse risco, a que não consegue formar consensos claros a
sociedade se conforta com ele. respeito das normas penais, que não consegue
Então, temos um paradoxo que vivenciamos, tratar ou produzir tipos penais com a necessária
cotidianamente, que é: por um lado, tenho inova- taxatividade. E a partir do momento que não
ções tecnológicas, tenho novos desenvolvimentos consigo formular um consenso para elaborar
científicos, que trazem um risco assustador e, por uma norma penal com uma taxatividade muito
outro lado, a própria sociedade não prescinde des- clara, o que eu faço? Qual é a solução do legis-
se risco, porque é ele o motor do desenvolvimen- lador para formar esse consenso, para aprovar
to econômico, é esse risco que me traz o avanço a norma penal? Ele abre mão da precisão, ele
tecnológico, que me traz o conforto do dia a dia. abra mão da clareza.
Mas, por que estou falando
tudo isso? Porque, na verda-
de, a nossa sociedade vive [...] na verdade, a nossa sociedade vive em uma situação
em uma situação de esquizo- de esquizofrenia cotidiana, porque ao mesmo tempo em
frenia cotidiana, porque ao que tenho medo dos novos riscos, preciso dos novos riscos
mesmo tempo em que tenho e não abro mão deles.
medo dos novos riscos, pre-
ciso dos novos riscos e não
abro mão deles. O que isso traz para o dia a dia, Então, no fundo, o que quero dizer é que para
principalmente, daquele voltado com a tarefa da vir para a questão do Judiciário, vir para o dia a
gestão de riscos? Ele traz uma situação paradoxal, dia, tenho uma situação que é uma situação estru-
que é a dificuldade, quase intransponível, para de- tural, ou seja, tenho um paradoxo do risco viven-
finir qual é o limite do risco permitido e do risco ciado em uma sociedade, um paradoxo do risco
não permitido. A partir do momento em que tenho que coloca para o legislador uma dificuldade, ele
uma sociedade, aqui não estou falando de uma tem uma dificuldade política para fixar qual é o
sociedade de grupos sociais, as próprias pessoas, permitido e o risco não permitido. Isso vai resultar
cada um de nós, não sabe exatamente o que que- numa legislação confusa, numa legislação indeter-
remos fazer com esses novos riscos, se toleramos minada. Cada vez mais, para eu criar os consensos
ou não toleramos. necessários para elaborar uma lei, vou precisar
Coloco para todo e qualquer gestor de risco abrir mão da precisão e da taxatividade.
um problema fundamental, que é definir exata- Nelson Jobim usa um exemplo que, para mim,
mente qual é a linha divisória entre o risco permi- parece muito claro o fenômeno da dificuldade do
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
94

legislador para formar consensos e para fazer leis situação que vem, efetivamente, de uma dificul-
precisas, que é um exemplo que não tem relação dade do Poder Legislativo de resolver, do ponto
com o Direito Penal, tem relação com o Direito de vista político, algumas questões prementes.
Trabalhista, mas me parece que ilustra muito bem Então, não é à toa que hoje, e isso não é só no
essa situação, de quando o constituinte estava dis- Brasil, mas em vários países do mundo, o Poder
cutindo a ideia do descanso semanal remunerado Judiciário toma as decisões políticas relevantes
dos trabalhadores. Não se conseguia formular ne- para a sociedade.
nhum tipo de consenso a respeito disso, porque um Quem hoje discute o aborto? Quem hoje dis-
setor do Congresso queria identificar que o descan- cute a criminalização ou descriminalização do
so semanal remunerado dos trabalhadores seria aos uso de drogas? Quem está discutindo qual é o
domingos, e outra parte do Congresso queria que tempo de progressão de regime nos crimes he-
as convenções coletivas determinassem quando diondos? Quem está discutindo a execução provi-
seria o descanso semanal remunerado. sória da pena? E aqui só estou falando no campo
penal, porque podíamos falar
da greve do servidor público,
[...] a partir do momento em que o legislador não sabe bem
das questões de serviços pú-
o que é o risco permitido e o que é o risco não permitido, a
blicos essenciais e uma série
consequência imediata disso é ter uma legislação penal cada
de outras, como as terras in-
vez mais aberta, cada vez mais indeterminada.
dígenas. Ou seja, no fundo
quem está discutindo isso, e
A partir do momento que não tenho a capaci- no Direito Penal questões muito relevantes que
dade de formatar esse consenso, qual foi a saída têm cunho político? É o Poder Judiciário.
do legislador? Abrir mão da precisão e aprovar o Isso, plasticamente, é muito visível para quem
texto de que o descanso semanal remunerado dos mora em Brasília, quando você olha para a Praça
trabalhadores será, preferencialmente, aos domin- dos Três Poderes, até dez, quinze anos atrás, onde
gos. Ou seja, no fundo, o que fez o legislador? Ele que a sociedade civil fazia suas manifestações polí-
abriu mão da precisão em nome do bom senso, ou ticas? Era na frente do Executivo e do Legislativo;
seja, eu estabeleço uma expressão aberta, em que hoje, se passarmos pela Praça dos Três Poderes,
eu garanto várias posições políticas dentro dessa onde estão os ativistas com os microfones e com
expressão e não tomo uma decisão definitiva. suas palavras de ordem? Na frente do Supremo
Mas, no fundo, o que fez o legislador aqui? Ele Tribunal Federal. Isso, simbolicamente, é muito
passou para quem o ônus de tomar essa decisão evidente, ou seja, a sociedade civil percebeu para
política e dizer se o descanso semanal será aos do- onde se direcionou o momento central daquela
mingos ou não? Ao Judiciário, ao juiz. Então, no decisão política para a decisão judicial.
fundo, toda vez que o legislador, diante desse pa- Vejam, isso é muito interessante quando ob-
radoxo do risco, opta por uma lei aberta, imprecisa, servamos a teoria da decisão judicial desse ponto
indeterminada, o que ele faz é transferir o ônus da de vista, porque, a partir, desse momento, estou
decisão política do preenchimento do sentido e do falando, agora, do Supremo Tribunal Federal,
conteúdo daquela lei para o Poder Judiciário. mas me parece também válido para a decisão do
Parece-me que não é à toa que nós vivemos juiz de primeiro grau. Acabo de ver uma decisão
um momento de politização do Poder Judiciário, de um juiz estadual de São Paulo que absolveu
daquilo que chamamos de “ativismo judicial”, um sujeito que era denunciado pelo uso de ma-
que, no Direito Penal, é o juiz fazendo política conha com base na inconstitucionalidade dessa
criminal, não porque um belo dia os senhores proibição, ou seja, no fundo, ele tomou uma deci-
acordaram e resolveram que vão tomar deci- são política. É claro que é uma decisão com toda
sões políticas e vão tratar de grandes temas, mas estrutura jurídica, com base na Constituição, ele
parece-me que é uma situação estrutural, uma fez um controle difuso incidental de condicio-
série
Cadernos
do CEJ 95

nalidade etc. Mas, toda essa discussão não está ser candidato. Sem contar inúmeros outros juí-
limitada ao Supremo Tribunal Federal, mas in- zes que resolveram ser candidatos, porque eles
corpora a decisão cotidiana dos juízes em geral. percebem que uma forma de fazer essa discussão
Ao fazer isso, o Poder Legislativo, ao transfe- e dar continuidade a essa discussão é, efetiva-
rir esse ônus da decisão política ao Judiciário, no mente, a questão política, a candidatura políti-
fundo mexe na estrutura da decisão judicial tam- ca; então, isso também me parece um fenômeno
bém, porque uma decisão judicial sempre tem um totalmente apartado do que está acontecendo.
conteúdo político, por mais técnica que ela seja. Agora, tenho outro lado também dessa moe-
Mas no fundo, quando eu faço essa transferência, da. A partir do momento em que o Legislativo
cada vez mais ganha força e proeminência o argu- delega esse ônus da decisão política para o Poder
mento político, ou seja, é muito difícil observar em Judiciário, e o Poder Judiciário começa a dar
uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre as decisões políticas, eu não posso fugir de uma
a descriminalização do uso de drogas ou o aborto questão, que é o déficit democrático que, eviden-
um argumento técnico, apenas técnico ou apenas temente, o Poder Judiciário tem em relação aos
jurídico. É evidente que devo também fazer uma outros poderes. O Judiciário, até por uma questão
opção política, posso dizer que isso é uma interpre- técnica e de preservação técnica, não é eleito. Aí
tação da Constituição, isso é uma forma de pensar a tenho um problema institucional, ou seja, de que
Constituição, mas no fundo tenho claramente uma forma um Poder ou um agente público não eleito
opção política e, a partir do momento em que o pode dar uma decisão que tem, no fundo, uma
Judiciário começa a tomar decisões políticas, é evi- conotação de opção política? O Supremo Tribunal
dente que a crítica a essa decisão não vai mais ser Federal percebeu esse déficit de legitimidade
técnica também, também será política. democrática e vem tentando, de uma forma ou
Nós percebemos isso no cotidiano. Os mais di- de outra, suprir esse déficit, e nós percebemos o
versos setores estranhos ao sistema judicial come- Supremo Tribunal Federal fazendo audiência pú-
çam a comentar decisões judiciais. A sociedade blica, o que há 15 anos era raríssimo de acontecer,
civil, os movimentos populares, os economistas (os o Supremo Tribunal Federal admitindo o amicus
senhores discutiram hoje pela manhã a questão curiae com cada vez mais frequência.
da Economia e do Direito), a imprensa. Nunca Vemos o legislador ampliar, cada vez mais, o
a imprensa falou tanto em questões do Poder número de legitimados a fazer o controle concentra-
Judiciário, eu nunca tinha visto em um edito- do de constitucionalidade. Então, se no começo era
rial... Ou seja, a sociedade leiga apropriou-se da apenas o Procurador-Geral da República, depois isso
discussão jurídica, porque essa discussão, nitida- aumenta. Hoje, por exemplo, o número de legitima-
mente, em certos setores, tem uma carga política dos a pedir a reforma de uma súmula vinculante é
e é natural e legítimo que a sociedade faça isso. muito maior. No fundo, o que percebemos é justa-
É natural também que o Judiciário se incomode mente o Supremo Tribunal Federal, a cúpula do
com isso, porque nunca as decisões judiciais foram Poder Judiciário atenta a esse problema de déficit
tão criticadas, expostas e discutidas. No táxi eu de legitimidade, buscando instrumentos para trazer
posso discutir uma decisão judicial e o taxista terá esse debate político para dentro do processo, me-
uma opinião a respeito daquela decisão judicial, diante uma série de mecanismos previstos em lei,
porque no fundo, ela tem uma carga política, tem audiência pública ou amicus curiae ou ampliação
um conteúdo político, não preciso apenas do co- da legitimidade desses agentes.
nhecimento técnico para fazer essa discussão. Agora, por outro lado, o que faz o Supremo
Nunca tantos juízes saíram para candidatos a Tribunal Federal, a partir do momento em que
ocupar cargos políticos. Posso dar um exemplo percebe que a sua decisão é uma opção política
que os senhores conhecem, talvez seja um dos e há uma temeridade de que você, de alguma for-
juízes mais inteligentes que eu conheço, o Flávio ma, libere essa opção política, libere essa discus-
Dino, que foi Presidente da Ajufe, que resolveu são política de forma indiscriminada, o Supremo
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
96

começa também a pedir ou a defender mecanis- Judiciário está extrapolando em relação às deci-
mos que tornem aquela sua decisão, aquela sua sões políticas?
opção, de certa forma, vinculante. Por outro lado, esse mesmo Legislativo, quan-
Então, aqui percebemos um duplo movimento, do há uma disputa interna por qualquer questão,
importante no Direito Penal pelo menos, de o le- o lado perdedor usa esse mesmo Poder Judiciário
gislador abrir mão dessa legitimidade e jogar para para fazer uma segunda instância, um segundo
o Judiciário. Este busca trazer os atores políticos round dessa discussão e temos um exemplo de
da sociedade civil para dentro do processo, tomar ontem, não preciso nem dizer. E, mais uma vez
uma decisão e depois busca uma série de mecanis- não digo se está certo ou errado. Parece-me um
mos para tornar essa decisão definitiva e, aí, surge fenômeno, algo novo que acontece, algo novo
a súmula vinculante; e não só a súmula vinculante, que surge. Todo mundo vai discutir a decisão da
não só do ponto de vista legal, surge uma série de Ministra Rosa a respeito da CPI.
propostas de tentar adotar as decisões do Supremo Não é só o mundo jurídico que discute isso,
mesmo no controle difuso de constitucionalidade de não é só o técnico jurídico que discute se a CPI
certa estabilidade. Então, a teoria dos motivos deter- pode ou não pode investigar mais coisas. Essa
minantes da decisão judicial e assim por diante, ou discussão vai ser feita pelo jornalista, pela socie-
seja, a ideia é cada vez buscar, uma vez tomada essa dade civil, pelo movimento popular, pelos parti-
decisão política, consolidar essa decisão para que dos políticos. No fundo, temos essa relação, que
não se precise fazer isso em cada um dos processos. é uma relação de delegação consciente do poder
Mais uma vez não estou fazendo uma avaliação do Poder Legislativo, mas, por outro lado, é uma
se isso é bom ou ruim. Tenho muita preocupação relação conflitiva, porque sempre há tal descon-
em relação a esses instrumentos de homogeneiza- forto quando o Poder Judiciário, de alguma for-
ção das decisões judiciais. Isso engessa a jurispru- ma, interfere nessa opção ou nesse movimento
dência. Tenho muito medo da súmula vinculante, político do Poder Legislativo.
tenho muito medo desses instrumentos. Quando fui Não é à toa que, sempre que isso acontece,
secretário da reforma do Judiciário, o Ministério da surge, de novo, no Legislativo, a proposta de fixar
Justiça era contrário à súmula vinculante; aliás, a mandato para ministros dos tribunais superiores,
Ajufe era também contrária à súmula vinculante; ou seja, também é uma resposta do Legislativo.
perdemos em um debate do Congresso, mas, de Mais uma vez, isso não acontece apenas no
qualquer forma, isso é um fenômeno, isso é um Brasil. É fenômeno que ocorre no mundo todo.
instituto, isso é um sintoma dessa questão. Recentemente, foi lançado um livro, organiza-
Mas mais do que isso: a partir do momento em do por um membro do Conselho Nacional do
que o Poder Judiciário começa, por todas essas Ministério Público, em que ele fez uma compila-
questões, a tomar decisões políticas, a partir do ção de vários autores, de vários países, tratando
momento em que o Judiciário começa a preen- dessa questão da politização das cortes supremas.
cher essa lacuna, isso passa também a incomodar Então, você tem autor dos Estados Unidos, da
o Poder Legislativo. É o Poder Legislativo que, de Inglaterra, da Guatemala, da Colômbia e assim
alguma forma, consciente ou inconscientemente por diante, e todos eles relatando exatamente
transfere para o Judiciário essa atribuição; mas, essa situação, exatamente esse conflito, exata-
por outro lado, quando percebe que o Judiciário mente essa dificuldade de legislar, essa trans-
exerce tal atribuição, há certo incômodo, há certo ferência de poder e esse embate com o Poder
desconforto do Poder Legislativo e percebemos Legislativo, demonstrando então que no fundo
isso também no cotidiano, quando, por exemplo, isso não é uma jabuticaba, isso não é algo que
você tem as sabatinas no Senado Federal dos mi- só acontece no Brasil, isso acontece no mundo
nistros das cortes superiores, a primeira pergun- inteiro. E é um tipo de situação para a qual pre-
ta que é feita para o ministro é: o que o senhor cisamos, de alguma forma, estar atentos. Tem um
acha do ativismo judicial? Você não acha que o texto de um jurista da Guatemala que diz que
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Cadernos
do CEJ 97

na Guatemala a politização da Suprema Corte vivendo um momento que sempre dizíamos: exis-
foi tão longe que a Suprema Corte deu um gol- te a separação dos Poderes, mas hoje no Brasil
pe de Estado, destituiu o Presidente e colocou o o Poder Executivo é hipertrofiado e faz sombra
Presidente da Suprema Corte. a todos os Poderes. Hoje, talvez, isso não seja
Enfim, o que quero dizer é: existe isso, mas apenas e a única verdade. Temos uma mudança
essa politização, essa apropriação da decisão po- institucional, e mais uma vez, não estou fazen-
lítica pelo Poder Judiciário, mais uma vez, não do nenhum juízo de valor aqui se isso é bom, se
é algo que acontece pelo voluntarismo do juiz, isso é ruim, estou apenas compartilhando com os
não é algo que acontece porque o juiz um dia senhores alguma apreensão, alguma angústia e
acordou e resolveu que vai tomar as decisões algumas observações que todos temos vivenciado
políticas, é algo que vem de uma estrutura social, no dia a dia.
de uma dificuldade de um
Legislativo que é própria
da democracia, porque [...] a sociedade leiga apropriou-se da discussão jurídica, porque
quanto mais heterogêneo essa discussão, nitidamente, em certos setores, tem uma
for o Legislativo, mais di- carga política e é natural e legítimo que a sociedade faça isso.
ficuldade encontra para
formatar esses consensos e
mais dificuldades eu tenho para ter leis precisas Mas, certamente, hoje, se falarmos em de-
e exatas. Mas isso é natural e ainda bem que seja cisão judicial, principalmente das cortes supe-
assim, porque isso significa que vivemos em um riores, precisamos levar em conta essa nova
país democrático. realidade, essa nova organização e que existe
Porém, isso tem uma consequência, que é justa- uma decisão de cunho político. Precisamos
mente jogar para esse Poder Judiciário a necessi- considerar de que forma essa decisão pode ser
dade de tomar decisões políticas, de dizer se o des- legitimada na medida em que ela não tenha legi-
canso semanal remunerado é de domingo ou não, timidade democrática das decisões políticas em
é dizer, efetivamente, o que significa uma série de geral, de que forma vai haver essa relação com
questões de tipos penais, determinar o sentido do os Poderes, que, de algum modo, são constitu-
tipo penal, e isso, efetivamente, traz para o juiz, e ídos para tomar essa opção política. Acho que
para aqueles que atuam no sistema judicial uma todas essas são questões que têm que pautar o
responsabilidade muito maior. Por quê? Porque debate, as discussões.
cada decisão quando, além de jurídica, tem um Não tenho resposta para nenhuma dessas ques-
conteúdo político preponderante, vai ser apropria- tões, certamente, mas penso ser fundamental que
da pelos setores da sociedade civil, criticada, com- isso seja colocado, seja discutido, porque, senão,
preendida, e é por isso, efetivamente, que o Poder vamos acreditar que cada uma dessas crises de
Judiciário hoje está na pauta, na discussão, hoje Legislativo com Judiciário é uma crise pontual, é
se discute muito mais. Não é à toa que se discutiu uma crise isolada, é algo que aconteceu por con-
o Conselho Nacional de Justiça com membros de ta desse e daquele partido politico, ou deste ou
fora do sistema judicial, porque, realmente, você daquele juiz, quando, na verdade, não é; é uma
percebe, cada vez mais, a sociedade querendo questão estrutural, é uma questão que me parece
discutir as decisões judiciais, o modelo de justiça, que vem de uma nova forma de organização social
a forma de organização de justiça. e que precisa ser pensada assim.
Já estou encerrando, porque penso que o de- Então, não sei se contribui muito para a dis-
bate é muito importante também. O que quero cussão, mas apenas fiz questão de compartilhar
dizer com tudo isso é que estamos vivendo em o que me parece que é muito claro no Direito
um momento novo, que exige alguma reflexão, Penal, mas que acaba se espalhando para todos
que exige um parar para pensar, ou seja, estamos os outros setores do Direito também.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
98

HELENA ELIAS PINTO


Juíza Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro


Agradeço imensamente a apresentação do Professor Dr. Pierpaolo Bottini, muito perti-
nente. As manifestações vão se complementado para que possamos diagnosticar e compreender os
desafios. É preciso primeiro compreendê-los para depois buscar resposta. Eu intuo que, a priori, seja
muito difícil, realmente, dizer se é bom ou se é ruim, porque vai depender muito de como o Poder
Judiciário vai se portar diante desses novos desafios. Vejo, por exemplo, a matéria de medicamento,
internação. Está havendo uma progressiva confiança na atuação do Poder Judiciário, aumento do
número de demandas, e o Judiciário tem-se desdobrado para responder da melhor forma possível e
aí aumenta ainda mais essa confiança, essa demanda.
Só espero que o Poder Judiciário consiga, diante desses desafios novos, em que ele acaba exer-
cendo o poder no vácuo (ou por falta de norma, ou por uma norma genérica que dê a decisão para
o juiz), ter grandeza para lidar com isso. Não entrar em disputa de poder, ter grandeza e abertura
para o diálogo; sem a prepotência de considerar que dará a última palavra, porque essa foi a opção
do sistema para, a partir disso, decidir como uma autoridade superior em relação a toda a sociedade.
Eu acho que se tal ocorrer, as respostas podem ser construídas positivamente.
Vou imediatamente passar a palavra para meu professor, Juarez Tavares, com quem tive a opor-
tunidade de estudar no mestrado e no doutorado da Universidade Gama Filho. Quando me inscrevi
na disciplina, estava pesquisando sobre outro tema, a responsabilidade civil, aí pensei: mas será que
vai ser útil a minha participação nessa disciplina? Ao mesmo tempo em que fiz a pergunta, eu tinha
a resposta pronta. Pensei: tenho certeza de que sim, de alguma forma, pela genialidade, pelo co-
nhecimento, pela capacidade do Professor Juarez. E confirmei essa minha intuição, tendo em vista
justamente o tema que é objeto da conferência que o professor hoje vai apresentar, que é a questão
das teorias da causalidade. Por quê? Porque nessa matéria a responsabilidade civil vai a reboque dos
estudos no Direito Penal.
E eu diria mais: esse é um tema dos mais importantes no Direito como um todo porque, muitas
vezes, nos enganamos em relação à causalidade, ficando focado em uma causalidade naturalística,
que é absolutamente insuficiente para enfrentar os grandes problemas da causalidade no Direito.
Essa história que do nada nada surge, do nada nada se causa é absolutamente insuficiente diante das
diversas situações em que um agente está em uma posição de garantidor, e esse agente pode ser muito
bem o Estado diante de uma situação de uma pessoa que esteja presa cautelarmente, por exemplo.
Não vou me delongar mais, foi só para justificar a minha alegria, a minha felicidade, a minha enorme
honra de estar aqui com aquele que eu considero um dos maiores conhecedores dessa matéria de
Teoria da Causalidade, de modo que estarei absolutamente atenta, anotando, não só os conhecimentos
que teremos pela exposição, mas também os insights que vamos tendo.
A propósito, gostaria de pedir ao professor para depois lembrar qual é o samba, porque, se a decisão
dali extraída foi favorável, tenho certeza de que os advogados vão pedir para, na hora da sustentação
oral, colocá-lo para ver se dali outros insights podem acontecer.
Passo, então, a palavra ao Professor Juarez Tavares, que é pós-Doutor e também Professor visi-
tante na Universidade de Frankfurt am Main, na Alemanha, foi Subprocurador-Geral da República,
certamente um dos mais ilustres e geniais integrantes daquela digna carreira da República, Professor
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor Visitante da Universidade Pablo de Olavide,
na Espanha, e da Universidade de Buenos Aires, na Argentina.”
série
Cadernos
do CEJ 99

presentam no Direito brasileiro posições essen-


ciais, exponenciais e que refletem novas perspec-
tivas de análise de casos, de abordagens nunca
antes levadas a efeito pela doutrina penal e pro-
cessual brasileira.
Senhoras e senhores, o tema da causa-
lidade é interessante porque, quando fui
Subprocurador-Geral da República, embo-
ra seja especialista em área criminal, partici-
pei de sessões na Terceira Turma do STJ, e
ali, compunham a Terceira Turma a Ministra
Teorias da causalidade Nancy Andrighi, o Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino, o Ministro Ricardo Villas Bôas
JUAREZ TAVARES Cueva, o Ministro Massami Uyeda e o Ministro
Professor da Universidade Federal Sidnei Beneti; anteriormente, o Ministro
do Rio de Janeiro Humberto Gomes de Barros, o Ministro Carlos


Alberto Menezes Direito, grandes ministros
que ali participaram desses embates, e ali, Dra.
Muito obrigado pela apresentação. A Helena, estava presente sempre a discussão so-
Dra. Helena realmente foi uma brilhante aluna bre a causalidade, porque a Terceira Turma
na pós-graduação. Lamentavelmente, diante de trata de matéria cível e as discussões eram mui-
indevida administração, a Universidade Gama to intensas nesse particular, até em relação à
Filho fechou as portas. Então, despois de um causalidade ambiental, danos relevantes para
longo período de produção acadêmica, até rele- determinadas empresas, proporcionados por
vante, tendo nota quase que máxima da Capes na algumas gestões fraudulentas no âmbito da
pós-graduação, fechou as portas, agora, repenti- empresa. Uma série de condições foi levada à
namente, e deixou os alunos na rua da amargura, discussão, e esse tema está sempre presente.
porque, realmente, está-se tentando ver como se Em certa ocasião, o Ministro Villas Bôas
compõe esse novo curso. Cueva levou à consideração e disse: o Professor
É engraçado, o Rio de Janeiro é uma cidade Juarez Tavares tem uma obra sobre a Teoria da
muito própria, porque em todos os lugares que Causalidade. E ali levou a efeito uma nova teoria
conheço as universidades privadas dão lucro; no da causalidade em que Sua Excelência retrata-
Rio de Janeiro, dão prejuízo. Não sei por quê. Ou va, de maneira diferente, a causalidade no cam-
eles têm uma forma muito esquisita de adminis- po civil. Fiquei muito interessado em como Sua
trar ou é de propósito, para que essas universi- Excelência adaptava a causalidade penal para o
dades sejam levadas à bancarrota. âmbito civil, em que era muito brilhante, capaz
Gostaria de agradecer a oportunidade de estar de ajustar a lei civil ao caso concreto e dar uma
aqui, especialmente ao Senhor Ministro Ricardo solução mais justa, possível ao caso em exame.
Villas Bôas Cueva, que é meu amigo há muitos anos, Há um professor que deveria homenagear
estivemos juntos em Frankfurt. Ele fazia doutorado aqui, e é preciso que o homenageie, o Professor
na área ambiental e eu era Professor Visitante. Ali Winfried Hassemer, que faleceu recentemen-
convivemos de uma maneira muito íntima, muito in- te, em janeiro, foi Vice-Presidente da Corte
tensa. Tenho especial apreço pelo Ministro Ricardo Constitucional da Alemanha, um dos mais no-
Villas Bôas Cueva. Nossa relação é muito próxima táveis juristas que conheci, na Universidade de
em torno desses temas jurídico-penais. Frankfurt, Catedrático de Filosofia do Direito e
Também é uma honra estar aqui com o de Direito Penal. Hassemer tinha uma preocu-
Geraldo Prado, com o Pierpaolo Bottini, que re- pação muito grande com a relação de causali-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
100

dade, porque, na Alemanha, há muitas questões Primeiramente, ele tem uma descrença enorme
relevantíssimas de causalidade, não só no campo em uma causalidade fundada empiricamente e diz
das lesões ambientais, mas principalmente em le- exatamente assim: uma causalidade determinista
sões que afetam um número indeterminado de não é válida para o Direito, porque, em relação
pessoas. É conhecido o fenômeno do contergan, aos homens, o que deve importar serão exatamen-
da talidomida, e também, do que se denominou te normas e valores, e não a relação de causa e
recentemente, de “leather spray”, ou seja, spray efeito, porque o que se destaca aqui para a decisão
para limpeza de couro, que provocou enormes judicial – diz Rassner – não é o fundamento empíri-
lesões, quase como se fosse um napalm na pele co, mas o conceito de liberdade que impregna na
das pessoas que utilizaram esse produto, e isso cultura ocidental. Essa é a ideia de Hassemer para
levou a uma discussão muito grande. a investigação da teoria da causalidade.
Mas é interessante obser-
var que a teoria da causali-
[...] os dados empíricos não são aleatórios; são capazes de dade suscita debates muito
serem formulados normativamente. Essa é a ideia exata de intensos. Em 1826, Jefferson
uma relação sistêmica de causalidade. convida um jurista inglês, er-
radicado nos Estados Unidos,
para escrever um código
No caso do contergan (observem como penal para Louisiana e para os Estados Unidos.
Hassemer equacionou essa questão e sua propo- Alguns juristas menos precavidos dizem assim:
sição no tocante à causalidade), as mulheres in- O projeto era o Código Penal da Louisiana. Mas
geriram o contergan, um medicamento que tinha a Universidade de Frankfurt tem uma biblioteca
sido fabricado por uma indústria de cosméticos e monumental em matéria penal, inclusive tem um
que tinha efeitos benéficos para a gravidez. Esta dos raros livros de Direito Penal, de 1501, cujos
transcorria sem qualquer perturbação, a mu- exemplares são somente cinco no mundo. Ali,
lher se sentia muito bem, podia fazer esportes, captando essas obras, fui verificar o Código Penal
não sentia nada, nem enjoo nem dor nem nada. para a Louisiana, de 1826, e vi como era a deno-
Porém, os fetos nasciam com defeitos físicos irre- minação do Código Penal: Sistema de Lei Penal
versíveis. Daí, houve um problema: submetido o para o Estado da Louisiana e para os Estados
medicamento à perícia, foi perguntado o que a Unidos da América. É que Jefferson queria impor
não ingestão do medicamento produziria? Se as um código penal para Louisiana e também esten-
grávidas não tivessem ingerido o medicamento, o der para os Estados Unidos da América, com uma
resultado teria ocorrido? Não. Art. 13 do Código finalidade específica: romper com a tradição do
Penal. Olhem só: então, não havia causalidade, direito inglês.
de acordo com o art. 13 do Código Penal. Os O Direito americano deveria, então, conforme
peritos disseram: não, não podemos dizer, de essa ideia do Jefferson, a partir daí, ser codificado
jeito nenhum. A não ingestão do medicamento como semi europeu. Só que Jefferson tinha uma
impediria o resultado? Não. Quer dizer que se as oposição muito grande no Parlamento e perdeu a
grávidas não tivessem ingerido o medicamento proposta. Não foi aprovado o projeto, nem para a
o resultado ocorreria? Não. Então, não se sabia Louisiana, nem para os Estados Unidos. Ele ficou,
exatamente se ocorreria ou não o resultado, ficou então, como um simples projeto.
indefinida a relação de causalidade. Os peritos Interessante o que constava no projeto do
não puderam dizer com certeza se a ingestão do Código Penal da Louisiana. Dizia no seu art.
medicamento produziria aqueles defeitos dano- 1º: Nenhuma omissão ou nenhum ato pode ser
sos nos fetos. considerado como criminoso se não causar um
Bom, a situação ficou grave e, daí, Hassemer dano ao Estado, à sociedade e ao indivíduo. Vê-
passou a enfatizar a causalidade de outra forma. se, portanto, que naquele momento, em 1826,
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Cadernos
do CEJ 101

Livingston assinalava a necessidade da investiga- dados empíricos quanto dados normativos, mas
ção da causalidade para configurar o sistema de vinculada a essa causalidade um sistema jurídi-
delito. E Livingston ainda elabora outro plano, co de forma que a decisão judicial, então, possa
com base na tradição do direito inglês, que ele incorporar também, na análise dos dados empíri-
traz para os Estados Unidos. Dizia ele o seguin- cos, as limitações que a própria norma estabelece
te: que nenhum conceito jurídico será válido se para a configuração desses dados. Então, os da-
não puder ser demonstrado perante os tribu- dos empíricos não são aleatórios; são capazes de
nais na sua expressão empírica. Era justamente serem formulados normativamente. Essa é a ideia
a influên­c ia do empirismo inglês na tradição do exata de uma relação sistêmica de causalidade.
Direito e expresso aqui nesse projeto do Código Como disse a Dra. Helena na minha apresenta-
Penal de 1826. ção, de maneira muito lúcida, em face da sistema-
Esse projeto é importante, porque é um pro- tização imprimida na Teoria do Crime, o primeiro
jeto que foi influenciar diretamente o Código passo para a fundamentação de uma Teoria da
Criminal brasileiro de 1830. Bernardo Pereira de Causalidade foi, justamente, orientar essa cau-
Vasconcelos foi realmente buscar no projeto do salidade sob uma base naturalística. Esse foi o
Livingston algumas disposições importantes que sentido imposto pela doutrina penal, a brasileira
caracterizaram as inovações do Código Penal e a italiana, que contemplam, de modo expresso,
brasileiro de 1830. Então, o projeto é um projeto a regra de causalidade. O Código Penal brasileiro
relevante e poucos conhecem no Brasil e poucos de 1940, no antigo art. 11, hoje art. 13, passou a
dão importância a esse projeto. contemplar a relação de causalidade como extra-
No trabalho que pretendo desenvolver nesse to fundamental da Teoria do Crime, inspirou-se
pequeno espaço de tempo, quero apenas levar no Código Penal italiano, que diz exatamente a
a cabo uma abordagem que Hassemer mesmo mesma coisa. Ou seja, o art. 40 do Código Penal
sintetizou e que poderia ser considerada como o italiano diz exatamente que o resultado que de-
ponto nodal de toda a discussão da causalidade, pende de senso do crime somente é imputável a
que é a seguinte: em que medida se pode confiar quem lhe deu causa e considera-se causa a ação
a afirmação da responsabilidade exclusivamente ou omissão sem a qual o resultado não teria ocor-
a dados empíricos e até que ponto se pode ela- rido. Então, o Estado brasileiro adotou essa teo-
borar uma responsabilidade sem que deles pres- ria, a Teoria da Condição, que é, justamente, de
cinda. Agregada a essa indagação, temos outra fundo naturalístico e que emprega toda a ideia de
solução: se a causalidade está subordinada a uma argumentação jurídica daqui para diante.
lei geral ou se basta para a sua determinação o Mas a causalidade no Direito Penal é, geral-
emprego de critérios lógicos de encadeamento. mente, construída sobre elementos singulares.
Essa é a grande questão da causalidade. Por exemplo, a conduta de A e o resultado morte
Primeiramente, a questão da responsabilida- de B. Para concluir que a conduta de A produziu
de, se é possível fundar-se uma responsabilida- a morte de B, os juristas satisfazem, primeiramen-
de exclusivamente por dados empíricos, até que te, com o critério de eliminação hipotética, que
ponto isso é possível? E até que ponto é possível está na base da Teoria da Equivalência. Depois,
fundar-se uma responsabilidade sem dados em- diante de algumas dificuldades, vão se socorrer
píricos? Por outro lado, se existe uma Lei Geral de outras teorias, como a Teoria da Causalidade
da Causalidade, qual é ela? O que anima a cau- Adequada, da Prognose Póstuma Objetiva, da
salidade, em termos gerais? Ou se a causalidade Causa Relevante, que deu lugar à Teoria de
é apenas uma expressão lógico-dedutiva e, con- Métrica sobre Causalidade Jurídica Relevante, as-
sequentemente, uma expressão abstrata e sem sim por diante. E, modernamente, quando estão
nenhuma correspondência real? com mais dificuldades, vão se socorrer da cha-
O que se pretende aqui analisar é a possibilida- mada moderna Teoria da Imputação Objetiva,
de de uma causalidade que possa retratar tanto descartando, completamente, a ideia de uma dis-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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cussão mais profunda sobre a causalidade. abri-las, porque, no incêndio, o aço dilatou e as
Na verdade, a Teoria da Imputação Objetiva é portas não abriam. Vejam que ele morreu, exa-
uma teoria muito interessante, mas eliminou, des- tamente, por máxima segurança que pretendia,
de logo, a necessidade de se aprofundar o exame quer dizer, a segurança exagerada também pro-
da causalidade. Ela já afirma que tudo bem, va- duz a morte. Essa é uma coisa interessante.
mos, com base na Teoria da Condição, afirmar Quando chegou o Corpo de Bombeiros, não
a causalidade e vamos solucionar as questões havia água para jogar lá. Foi um negócio incrí-
agora com base na Teoria do Risco, do aumento vel. Porque, quando abriram o hidrante, este não
do risco, da diminuição do risco, do incremento funcionava. São coisas incríveis. Isso aconteceu
do risco, do alcance do tipo e assim por diante. na Alemanha. Quer dizer, o exemplo não é bra-
E, por isso, já resolvemos o problema da causa- sileiro, é um exemplo alemão, em que o Corpo
lidade, não precisa mais discutir a causalidade. de Bombeiros tarda para chegar, e o sujeito, de-
Mas não é assim. Há alguns aspectos que ficam sesperado, não sabe o que fazer. Se ele joga as
fora do problema da Teoria do Risco. Por exemplo, crianças pela janela ou se ele mantém as crianças
caso dos crimes omissivos, mencionados pela Dra. no apartamento. E, se ele jogar pela janela e as
Helena. Como, na Teoria dos Crimes Omissivos, é crianças morrerem, vão dizer que ele matou as
possível retratar-se a Teoria do Risco, aumento do crianças, porque ele causou a morte física das
risco ou diminuição do risco nos crimes omissivos? crianças, atirou-as pela janela e causou fisicamen-
Há um célebre exemplo na Alemanha, que gera te a morte. Produziu a morte das crianças, por
grande discussão: no segundo andar de um pré- ato comissivo.
dio, há um incêndio e está o pai com duas crianças Agora, se ele mantém as crianças no apar-
menores. Ele não pode sair pela porta, porque ela tamento e elas morrem sufocadas: ele é o ga-
está já contaminada pelo fogo. Então, olha pela rantidor, ele realmente fez com que as crianças
janela e vê que está muito alto, são dois andares, morressem, não tomou nenhuma atitude. É uma
para pular com as crianças. Lá embaixo, os vizi- situação delicada, um impasse terrível. Esse im-
nhos dizem para ele jogar as crianças. Estendem passe não é resolvido pela Teoria do Risco, tem
um lençol e dizem para jogar as crianças, para de ser resolvido pela Teoria da Causalidade, e
que caiam no lençol. O pai fica olhando e pensa: não pela Teoria do Risco. Porque, na Teoria do
como vou jogar as crianças lá? Qual é a certeza Risco, de qualquer forma, há um risco que ele
que tenho de que essas crianças irão ser salvas, tem de debelar em face de ele ser o sujeito ga-
jogando-as para baixo, em cima do lençol? E se rantidor do bem jurídico das crianças.
elas ficarem aqui, será que morrem? Onde está o Vê-se, então, que o aprofundamento da Teoria da
Corpo de Bombeiros? Causalidade é importante, não só para o aspecto de
Como acontece nas grandes cidades, ainda uma elaboração concreta da responsabilidade, mas,
na Alemanha, apesar de toda a organização so- também, de verificar até que ponto o Direito Penal
cial, o Corpo de Bombeiros demorou. No Rio pode exigir das pessoas algum comportamento.
de Janeiro e em São Paulo, por exemplo, com Por outro lado, se a questão da causalidade
o trânsito infernal, é impossível saber se o Corpo envolve não apenas um dado naturalístico, mas
de Bombeiros vai chegar, suficientemente, no ho- também dados normativos, é preciso verificar até
rário ou não. Até um desembargador no Rio de que ponto se pode criticar o dado empírico da
Janeiro morreu sufocado dentro de um aparta- causalidade. Então, ocorre um fato interessante.
mento no Leblon, porque o Corpo de Bombeiros Uma professora alemã diz que os juristas sempre
não chegou. Então, ele se jogou pela janela, por- entenderam a causalidade sob a perspectiva de
que estava sendo sufocado. Agora, vejam que uma força, um agente produtor de efeito. Mas, diz
ironia do destino, ele havia feito do apartamento ela que a noção de causa hoje está posta em dúvi-
um bunker, porque tinha muito medo de assal- da pela ciência, que, desde a termodinâmica, quer
to. Havia colocado portas blindadas e não pôde contemplá-la como meio de um critério estatístico
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do CEJ 103

ou como uma das variantes da probabilidade. sias infinitas se não forem levadas a efeito essas
Então, praticamente, hoje essa ideia da con- relações lógicas ou empíricas da causalidade em
dição sem a qual o resultado não teria ocorrido face do contexto.
é um pouco modificada, para mostrar o seguin- Então, se a questão da causalidade está vin-
te: como posso dizer que uma condição é causa culada a esses preceitos, pode-se dizer que a res-
necessária do resultado? Qual é o critério que ponsabilidade daí decorrente está na dependên-
utilizo? Ou o critério da probabilidade ou o cri- cia de um processo pelo qual se possa explicar
tério estatístico? Ou um critério de suficiência? por que determinada condição seja sine qua non
Qual é o critério que uso, afinal de contas, para para o resultado.
dizer que uma condição é uma causa do resulta- Um russo naturalizado belga, ganhador
do, porque, sem essa condição, o resultado não do Prêmio Nobel de Química, chamado Ilya
teria ocorrido? Ou, com essa condição, posso Prigogine dizia que a ciência da modernidade
dizer que o resultado ocorreu? Quer dizer, o re- está subordinada a enunciados gerais e uma das
sultado foi produzido por essa condição. Qual é grandes conquistas da ciência da modernidade,
o fundamento para eu afirmar essa relação de diz Prigogine, é justamente o enunciado das cha-
necessidade? A ciência moderna diz que não há madas “leis naturais”, mas essa ciência da mo-
outro fundamento, a não ser a variação infinita dernidade, daí a aquisição do Prêmio Nobel é
do que se possa denominar como probabilidade. contestada por ele porque a ambição da ciência
Surge, então, uma questão interessante. moderna está fundada num ideal que não cor-
Perguntei uma vez a um professor alemão como responde à realidade dos fatos, porque não exis-
seria essa questão da probabilidade, como se rela- te uma lei natural geral de toda organização do
cionaria a probabilidade com a relação de certeza mundo; o que existe são várias leis e várias formas
e necessidade. E ele disse: é possível, veja bem, de explicação dos fenômenos.
por exemplo, vamos pegar
um mapa da Alemanha. Se
[...] o aprofundamento da Teoria da Causalidade é importante,
você pegá-lo, verá que mui-
não só para o aspecto de uma elaboração concreta da
tas cidades, muitos pequenos
responsabilidade, mas, também, de verificar até que ponto o
locais não estão mencionados
Direito Penal pode exigir das pessoas algum comportamento.
no mapa, mas você pode ve-
rificar, por exemplo, que al-
guns rios também não mencionados no mapa, mas Com base nessa ideia do Ilya Prigogine, de-
é evidente que, se tem um rio caudaloso, alguns senvolveu-se também outra, a de tratar a cau-
afluentes ele deve ter, porque nenhum rio cau- salidade separadamente do que denominou de
daloso torna-se caudaloso sem afluentes; então, “explicação causal”. Daí, Dra. Helena, quando
é provável que houve um engano no mapa e que se fala da teoria da causalidade, fala-se em uma
há, efetivamente, afluentes nesse rio, claro. Aí está forma de explicação do fenômeno causal. Mas,
a teoria da probabilidade, ou seja, eu posso olhar modernamente, com o giro linguístico que se pro-
o mapa e verificar nesse mapa que os acidentes pôs com o Wittgenstein, já não se pode mais dizer
geográficos não constantes ali devem existir em que há uma absoluta distinção e incompatibilida-
face de uma análise do contexto. de entre o que se descreve e o objeto descrito.
Bom, se é assim, se eu posso dizer que o fenô- O objeto descrito está intimamente vinculado à
meno da causalidade não é puramente lógico-de- forma da sua discrição. É impossível descrever-se
dutível, é um fenômeno que está necessitado de um objeto sem a formulação da sua descrição.
um contexto ou de uma análise de um contexto. Isso já havia sido pensado no século XIX, um
Isso no plano puramente empírico. Então, a re- autor não muito lembrado modernamente, prin-
lação entre um conceito empírico e um conceito cipalmente pelo pessoal que não gosta muito da
lógico de causalidade pode produzir controvér- esquerda, não importa se gosta ou não, mas um
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Teoria da Decisão Judicial
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autor que se ressaltou de uma maneira muito im- é impossível. É possível que a bola branca alcance
portante na filosofia política que foi Karl Marx, a bola vermelha e a coloque na caçapa; é possível
que dizia o seguinte: a realidade empírica não é que a bola branca alcance a bola vermelha e não a
uma realidade empírica tal como ela é; ela é uma coloque na caçapa; é possível que a bola branca se
realidade empírica tal como é pensada como em- choque com a vermelha e, ao invés de a vermelha
pírica. Essa é a ideia hengeliana da realidade; jus- ir para a caçapa, a bola branca vai para caçapa;
tamente a realidade é um objeto pensado, não um e é possível até que, por um desastre por parte do
objeto real que está desvinculado do pensamento. jogador, o pano seja rasgado com o taco e não há
Então, o giro linguístico mostrou que entre causa-nada. Então, diz ele, é o problema da causalidade.
lidade e explicação causal não há diferença. A cau- E o que assinala essa relação da causalidade de a
salidade, na verdade, é uma forma de se dizer: esse bola branca se chocando com a vermelha a colocará
fenômeno se dá dessa maneira. Então, tal forma de na caçapa? É a regularidade dos fenômenos. Posso
explicação desse fenômeno eu denomino de “causali- dizer que se um bom jogador utilizar o taco regular-
dade”. E por que se chega a essa proposição? Porque mente de uma maneira tal, batendo na bola branca
modernamente (andei lendo alguns autores ingle- contra a vermelha, é possível que a bola branca vá
ses que trabalham a causalidade de maneira muito cair na caçapa. Mas não há uma afirmação abso-
intensa) na ciência, chegou-se à conclusão de que luta de necessidade de que, naquelas condições, a
há processos na natureza que não são causais. E, bola vermelha cairá sempre na caçapa. Não pode;
agora, com a ciência da computação, isso se tornou sempre não; provável. Aí está a grande relação que
mais evidente. Por exemplo, quando se coloca em David Hume desde logo dizia da relação de causali-
uma relação o monitor de um computador, o disco dade com base no sistema da probabilidade.
rígido e os programas que ali geram as imagens no Ontem houve uma chuva torrencial em Brasília,
monitor, as imagens de vez em quando tornam-se quando cheguei para a abertura, e lembrei-me de
tão aleatórias que será impossível afirmar qual é a um caso contado por Rudolf Carnap, célebre filó-
condição sem a qual aquela imagem não se produzi- sofo da escola de Viena. Ele tinha uma ideia inte-
ria. Então, dizem os teóricos modernos da ciência da ressante sobre essa história. Ele dizia assim: ima-
computação que há fenômenos na ciência quântica ginemos que alguém saia na rua e veja um céu
que são não causais. maravilhoso (acontece muito no Rio de Janeiro),
céu azul, fantástico, de repen-
te cai uma chuva torrencial e
[...] no campo do Direito, o problema da causalidade está
o sujeito se molha todo. Pode
vinculado à conduta humana; [...] então está claro que o
acontecer de a pessoa se mo-
conceito de conduta [...] é imprescindível para também
lhar do seguinte modo: uma
fundamentar a afirmação de causalidade.
pessoa está passando na rua
tem uma poça de água, vem
Daí o problema da causalidade: se há fenômenos um ônibus (isso é comum no Rio de Janeiro, lá
não causais, então o mundo não é causal? Não, o eles fazem qualquer coisa), passa por cima daquela
mundo é explicado de conformidade com alguns fe- água suja e molha o sujeito inteiro. Então, o sujeito
nômenos como o causal, mas não necessariamente diz: estão vendo? Esse motorista é irresponsável
é causal. Isso importa para decisão judicial? David porque eu estou molhado. E diz Carnap: aí está
Hume, em “Inquirição sobre o Conhecimento uma atribuição da responsabilidade de alguém em
Humano”, traz o exemplo das bolas de bilhar, face de um processo causal que eu posso explicar.
em que ele diz que é impossível, em um jogo de O processo causal de um ônibus; a água estava ali
sinuca, determinar-se, ao se encostar com o taco quieta, veio um ônibus, passou e me molhou,
na bola branca, se essa bola branca vai percorrer Imaginem: ele anda na chuva sem guarda-chu-
determinada linha diretiva e vai jogar as outras va, vai se molhar, e vai atribuir a quem a responsa-
bolas na caçapa. Diz ele que isso é possível como bilidade? Ao célebre São Pedro? Carnap diz que,
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Cadernos
do CEJ 105

quando o ônibus molha o sujeito, ele pode dizer mesmo objeto? Ou é aquele objeto, aquele con-
assim: “eu tenho, então, uma capacidade real de ceito que decorre de uma visão de consenso?
atribuir a responsabilidade para o motorista do ôni- O critério da verdade leva a essas conclusões:
bus e, assim, pedir uma indenização, pelo menos, ou há um critério da verdade por correspondên-
que ele mande o meu terno para a lavanderia”. cia ou há um critério da verdade por coerência
Mas, quando eu saio na chuva, e me molho das afirmações ou há um critério da verdade por
repentinamente porque não tenho guarda-chu- consenso. Mas, no fundo, tem um problema: des-
va, o que me resta? Nada mais, porque não há de o século XIX se diz que o que se pensa não é
uma identificação da condição causal a quem se correspondente exatamente ao que é real, como
possa atribuir uma responsabilidade. Essa ideia real empírico; que o real empírico é, na verdade,
de Carnap é interessante porque mostra que, no já desde logo, captado pela pessoa como um real
campo do Direito, o problema da causalidade pensado, e não como um real empírico indepen-
está vinculado à conduta humana; se está vincu- dentemente do pensamento, então, o critério de
lado à conduta humana, então está claro que o correspondência é um critério falho, é um critério
conceito de conduta – já que a causalidade é uma puramente hipotético.
forma de explicação dos fenômenos – é impres- Por outro lado, se eu digo que o critério da
cindível para também fundamentar a afirmação verdade corresponde à coerência dos enunciados,
de causalidade. eu posso dizer: bom, é possível que determinados
Por outro lado, há muitos autores que dizem fatos sejam coerentes nas suas afirmações, mas
que a causalidade corresponde a uma lei física, isso não corresponde à verdade. Bertrand Russell,
geral, com base na certeza e tal, mas, essa lei esse notável filósofo inglês, dizia, fazendo uma iro-
física e geral é levada a efeito apenas como um nia com os americanos pragmatistas: “imaginem,
dado capaz de gerar discussões. Discussões em todos dizem assim que fulano de tal, ontem, tomou
torno da qualidade dos objetos que compõem o chá com torradas. Mas, pergunto eu: e se ele não
fenômeno que pode ser explicado como fenô- tomou chá com torradas?” As afirmações todas
meno causal. são coerentes, mas não correspondem à realida-
A primeira dificuldade para a admissão de uma de, porque, na verdade, ele não tomou chá com
Lei Geral da Causalidade reside em distinguir, torradas. Então, não é verdadeira a afirmação, co-
real­mente, os fenômenos causais e não causais, erente, de todos que disseram que ele tomou chá
e aponta em dizer como eu posso aplicar uma Lei com torradas. Em uma decisão judicial pode ser
Geral de Causalidade em fenômenos não causais. que haja uma coerência total de testemunhos, de
E há uma segunda dificuldade: é que se uma que determinado fato aconteceu dessa maneira,
Lei Geral de Causalidade ainda subsistir, é indis- e o fato não aconteceu daquela maneira.
pensável saber também como eu posso explicar Vejam, por exemplo, agora, na decisão da
um fenômeno da causalidade sem estar me vin- Justiça japonesa, considerada uma justiça muito
culando a um conceito de verdade. rigorosa e muito criteriosa também, que decidiu
Vou explicar o fenômeno: essa maneira acon- libertar um sujeito depois de 46 anos de conde-
teceu. Ah! Aconteceu dessa maneira, tudo bem. nação, com todas as coerências possíveis e imagi-
Quer dizer que o que estou afirmando é verdadei- náveis afirmativas da responsabilidade de estupro
ro? É. Agora, eu tenho um problema. Se o que es- por parte dele, levado à prisão. Depois de 46 anos
tou afirmando é verdadeiro, eu dependo, agora, na prisão, no Japão, o sujeito é libertado, porque,
do conceito de verdade. O conceito de verdade pelo teste de DNA, foi comprovado que não era
é aquele pelo qual eu afirmo que um pensamento ele o estuprador. Vejam que a afirmação coerente
corresponde à realidade? O conceito de verdade não correspondeu à realidade; precisou de uma
é aquele que resulta de uma afirmação coerente prova empírica para demonstrar que a afirmação
com a realidade? Uma afirmação que também coerente não correspondeu à realidade; mas, uma
decorre de outras afirmações coerentes sobre o prova empírica que demorou 46 anos.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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Essas são objeções que se fazem em relação à Ontem o Ministro Barroso disse: há sempre
causalidade. Por quê? Vejam, por exemplo, como duas facetas, algumas interpretações de uma ma-
é difícil equacionar uma teoria da causalidade. neira ou de outra, são ambas, várias, não existe
Alguns autores, um autor alemão que já morreu, um critério único de decisão correta. Também,
um grande professor de filosofia, Muller, disse: “o no campo da causalidade, não há um critério
problema é que a causalidade pode estar fundada único de decisão afirmativa da causalidade que
na metalinguagem, na linguagem objeto, na re- possa dizer: essa teoria é verdadeira ou essa teo­
gularidade, na probabilidade, na suficiência das ria é falsa.
condições, na transmissão de energia”. O proble- Diante disso, o que acontece? Nós podemos
ma, então, diz Muller, na verdade, a causalidade equacionar a relação de causalidade diante de
está dependendo de uma única coisa: de uma outro contexto, partindo da ideia, por exemplo,
decisão acerca do que efetivamente aconteceu e de que o conceito de conduta não pode ser vin-
do que não aconteceu. Então, a decisão leva em culado exclusivamente na relação entre causa
conta o contexto no qual o fenômeno se desen- e efeito, mas que o conceito de conduta tam-
volve para afirmar: realmente, diante dos dados bém está vinculado aos contextos, ao chamado
aqui presentes não importa a probabilidade, eu “mundo da vida”, no qual a própria relação de
posso afirmar a causalidade ou posso negá-la. A causalidade se expressa. Então, o mundo da vida
responsabilidade continua sendo incerta, portan- é que vai disciplinar a decisão judicial sobre a
to, em face desses dados aqui presentes. explicação do fenômeno causal.
Há uma proposta de dois professores alemães Podemos invocar, inclusive, a ideia de
radicados nos Estados Unidos que fugiram da Habermas, as chamadas “ações estratégicas”, ora
guerra, Hempel e Oppenheim, de uma lei de cau- comunicativas, ora estratégicas, para mostrar que
salidade com base na regularidade e na probabi- há uma necessidade de que a conduta humana
lidade. Diz a chamada “dedução nomológica da seja conceituada a partir de sua relação com o
causalidade”: “as condições antecedentes e as pro- mundo vital, e vai lhe fornecer, inclusive, os atri-
posições universais devem ser levadas em conta butos adequados à sua identificação. Essa é a ideia
como aquilo que nós denominaríamos causa. Mas, de vincular, então, a conduta humana ao mundo
por outro lado, deve-se também levar em conta a real, ao mundo social, ao mundo vital, denomina-
possibilidade de que, com base na interpretação do por ele, e também, com isso, possibilitar que
dos antecedentes das proposições universais, che- a decisão judicial sobre uma relação de causali-
ga-se à conclusão de se poder explicar o resultado dade possa ser uma decisão que não se apegue,
pela causa”. Essa é uma moderna concepção de exclusivamente, ao empírico, mas que o leve em
causalidade que foi levada a efeito durante muitos consideração e o vincule ao normativo, de modo
anos nas redes sociais e que se expôs, inclusive, a delimitar o âmbito da análise do empírico.
a muitas críticas e a muitas afirmações positivas e Voltando ao assunto do Contergan. Os peri-
que ficou sendo um objeto bem saliente da mo- tos diziam, quando perguntados pelo Ministério
derna concepção de causalidade. Público da Alemanha: Peritos, os senhores podem
E o que resultou dessa concepção nomológi- afirmar que a ingestão desse medicamento pro-
ca de causalidade? Hempel e Oppenheim dizem duziu os efeitos danosos nos fetos? Os peritos dis-
o seguinte: “Na relação de causalidade, há dois seram que não podiam afirmar. Mas daí se inver-
seguimentos: há uma relação real, à qual não se teu a ideia de indagação. Um sujeito teve a ideia
pode nunca chegar e que depende da perícia, e de dizer o seguinte ao perito: Os peritos podem
há uma relação lógica, que é uma relação vincu- dizer que a ingestão do medicamento aumentou
lada à explicação causal. A esta se pode chegar, a chance de que aqueles efeitos se reproduzis-
nós podemos formular várias teorias sobre a cau- sem? Sim. Com base em quê? Com base em uma
salidade. Essas teorias vão explicar exatamente análise puramente biológica dos efeitos do medi-
como nós entendemos o fenômeno. camento? Não, com base no contexto. Qual era o
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do CEJ 107

contexto? Todas as mulheres que tiveram os fetos não atropelem pessoas que se joguem de uma
defeituosos usaram o medicamento. Nenhuma passarela sobre o seu capô.
mulher que teve os fetos defeituosos deixou de Então, há uma determinação da norma de cui-
usar o medicamento. Esse é o contexto. Então, dado diferente daquela expressão que concre-
não é uma causalidade que deva ser apreciada tamente se verificou. Por exemplo, eu estava na
exclusivamente com base em um dado empíri- UERJ um dia, atravessando a rua da UERJ para
co resultante de uma perícia indicativa daquele pegar um táxi e, de repente, não tinha ninguém
dado. A explicação que se dá ao fenômeno é em na rua, vinha um carro longe. O sujeito acelera
face do contexto. Esse é o dado. de propósito para me dar um susto ou – sei lá
Por outro lado, vê-se, por exemplo, que esse – me atropelar. Evidentemente, o problema de
contexto vai impor outra determinação de cau- atravessar a rua é que a norma de trânsito diz
salidade. Suponhamos, aqui, e essa é a ideia, em para você se manter em uma velocidade ade-
termos funcionais, que uma pessoa dirija em ex- quada para possibilitar que, se os pedestres fo-
cesso de velocidade por determinada via e passe rem atravessar a rua, eles possam fazer isso com
por baixo de uma passarela. Nesse momento, al- alguma segurança. Mas a norma de trânsito não
guém se joga da passarela, é colhido pelo auto- impõe que o sujeito mantenha uma velocidade
móvel e morre. Na verdade, houve um excesso “x” para evitar que pessoas que se joguem de
de velocidade por parte do motorista, e o sujeito uma passarela sobre o veículo. Isso é impossível.
se jogou na frente do motorista e morreu. Aí vá- Então, há realmente uma delimitação da análise
rias teorias foram elaboradas para isso, para veri- do contexto em face do significado da norma que
ficar se há responsabilidade ou não do motorista. disciplina a velocidade proposta naquele dado.
Há até uma inversão absur-
da de uma ideia, que se baseia
na teoria do risco, na qual o [...] ou há um critério da verdade por correspondência ou há
motorista não aumentou o ris-
um critério da verdade por coerência das afirmações ou há um
co da produção do resultado.
critério da verdade por consenso.
Por isso, a responsabilidade
dele deve ser excluída, embo-
ra a causalidade seja presente.
Sim, mas por que não aumentou o risco da pro- Na Alemanha, por exemplo, as rodovias não
dução do resultado? Porque o motorista, vindo a têm limites de velocidade. Fiquei impressionado
120 km/h, matou a vítima. Mas se ele viesse a 315 uma vez quando fui a Hamburgo. Um amigo meu
km/h com uma Ferrari, passaria tão rápido pela me disse: Você vai para Frankfurt, dou uma caro-
passarela que, se o sujeito se jogasse lá de cima, na a você. Nós vamos com meu carro. Ele tinha
a vítima não seria colhida pelo automóvel. Então, um carro potente, fomos com o carro. Estávamos
o excesso de velocidade não se traduziu no resul- a 220 km/h e ele disse: Olha o que vai passar do
tado real. Essa é a ideia de imputação objetiva. nosso lado. Passaram dois carros que sumiram
Mas nós podemos aprofundar a relação de na nossa frente. Ele perguntou: Você sabe que
causalidade nessa hipótese e dizer que, quando carros eram aqueles? Nem vi direito. Eram dois
se tratar desse fato, não se pode analisar a re- Bugatti, cuja potência é de 1100 cavalos. Um car-
lação entre veículo e vítima. Deve-se analisar a ro tem 1100 cavalos e anda nas estradas alemãs
relação entre veículo e norma que disciplina o a mais de 300 km/h. E isso é permitido. Se é per-
tráfico de veículos, porque a norma que disci- mitida a velocidade a mais de 300 km/h, vejam,
plina o tráfico de veículos proíbe o excesso de então, como a disciplina da causalidade naquele
velocidade em determinadas vias, mas não está país é diferente do que se poderia imaginar. A ex-
impregnada de um significado de também proibir plicação do fenômeno causal tem que ser levada
o excesso de velocidade para evitar que veículos em conta em face do contexto. A norma autoriza
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
108

alguém a andar a 300 km/h. Como se 300 km/h são da realidade da causalidade não é uma
não fosse uma velocidade terrivelmente perigosa. operação de simples identificação, de simples
É sim, mas a norma autoriza. Portanto, a expli- registro ou de modelagem, mas de justificação
cação causal tem que estar vinculada também de critérios postos em execução para demonstrar
às delimitações da própria norma que disciplina que aquele fato se deu daquela maneira.
aquela atividade. Portanto, cabe, na decisão judicial, uma aná-
Há muitas coisas a dizer sobre a relação de lise do fenômeno da causalidade, não em face
causalidade. O que eu posso dizer também é que exclusivamente dos dados empíricos, mas sim em
a decisão judicial é uma manifestação de justifica- face do que se disciplina normativamente acer-
ção do fenômeno. Portanto, posso resumir toda ca desses dados empíricos. Aí posso dizer que
a ideia de causalidade no seguinte: a relação de a decisão judicial é realmente louvável, porque
causalidade se confunde com a própria explica- decidir em cima desses aspectos e levar em con-
ção causal. Esta, por sua vez, não constitui uma sideração o contexto e todas as condições que
simples afirmação de dados empíricos, mas im- interferem na posição do resultado deve ser lou-
plica uma decisão que tem como pressuposto um vada como uma decisão que deve ser tomada
determinado conceito de conduta e um critério dentro do Estado democrático e, consequente-
de verdade. Assim, posso concluir que a apreen­ mente, asseguradora da liberdade individual.”

HELENA ELIAS PINTO


Juíza Federal da Seção Judiciária
do Rio de Janeiro


Agradecendo a conferência do Professor Juarez Tavares, observo que ficou bem demons-
trado que o aprofundamento do estudo sobre o tema da causalidade pode proporcionar decisões mais
justas. Portanto, é um privilégio poder presenciar mais uma vez uma de suas magníficas e memoráveis
aulas, Professor Juarez Tavares, matando um pouco da saudade.
Queria dizer também para a plateia que está até agora agradecendo que combinei com ele que
ele falaria por quanto tempo quisesse, sem limite. E o fiz porque há coisas que transcendem o tempo:
há valores humanos que o relativizam e posso dizer que empregamos muito bem o nosso, ouvindo
as suas belas lições.”
Celso Campilongo, Raffaele De Giorgi, Otavio Luiz Rodrigues Junior, Marcus Faro de Castro.

Argumentação Jurídica a partir da Constituição

OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR


Professor da Universidade de São Paulo


É com muita satisfação que tenho a honra de presidir este painel, que tem por objeto o
tema Argumentação Jurídica a partir da Constituição.
Inicialmente, gostaria de transmitir a todos uma palavra do Professor Heleno Taveira Torres, que
seria o presidente designado para esta mesa. Por questões absolutamente invencíveis, ele não se fez
comparecer pelo que lamenta muito e pediu-me que transmitisse as escusas à organização do evento e,
mais que tudo, à distinta assistência e aos ilustres conferencistas deste painel pela manhã. Ele se sente
muito honrado, mas resolveu contribuir para o declínio da qualidade dos trabalhos com a minha subs-
tituição – pelo que peço desculpas à assistência – que é absolutamente detrimentosa para o evento e
para todos aqui presentes.
Sem mais delongas, faço a apresentação do painel, que será composto por três grandes nomes nacio-
nais e internacionais da área da Teoria do Direito, do Direito Constitucional, do Direito Concorrencial.
São nomes que ultrapassam os limites estreitos de determinadas áreas do Direito. Farei, agora, a
apresentação do currículo do Professor Celso Fernandes Campilongo, que irá nos brindar com sua
exposição inicial. Em sequência, falará o Professor Raffaele De Giorgi e, finalmente, o Professor Marcus
Faro de Castro.
Cada um dos expositores terá um tempo máximo de quarenta minutos, e as explanações serão
precedidas de uma rápida apresentação do currículo, que será feita sequencialmente para que não
fiquemos muito cansados.
Também gostaria de saudar a honrosa presença na assistência do Professor Fernando Araújo,
Catedrático da Universidade de Lisboa, que muito nos honra com a sua presença nesta manhã e que
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
110

participará dos eventos no período da tarde.


O Professor Celso Campilongo é pós-Doutor pela Universidade de Salento, na Itália. É meu ilustre
colega, Professor da Universidade de São Paulo, e também da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. É colaborador do núcleo de pesquisa em Direito Sanitário e tem uma participação também na
imprensa, como colaborador do prestigioso jornal O Estado de São Paulo, professor da Universidade
de Salento, do Instituto dos Advogados de São Paulo e da Faculdade de Direito de São Bernardo do
Campo, além de exercer advocacia em Campilongo Advogados Associados.”
série
Cadernos
do CEJ 111

Professor Tércio: durante um período, a questão


da decisão judicial esteve vinculada ao binômio
legislação e doutrina e a hermenêutica jurídica
servia, digamos, como um elo entre esses dois
elementos, a legislação e a doutrina. Parece que,
nos últimos tempos, essa relação se inverteu.
E agora, mais que lei e doutrina, parece que
temos um binômio entre a jurisprudência que os
tribunais decidem, as decisões judiciais de um
lado e a doutrina. E aí o foco se desloca de uma
teoria da interpretação jurídica, da hermenêutica
jurídica para a questão da argumentação jurídica.
CELSO CAMPILONGO Na verdade, existe um contínuo, evidentemen-
Professor da Universidade de São Paulo te, entre estas coisas, a argumentação precede
a interpretação e nos conduz ao momento de


aplicação da lei. Essas coisas podem ser separa-
Em primeiro lugar, quero agradecer das, mas, no fundo, estabelecem uma relação de
ao Conselho da Justiça Federal, ao Superior continuidade. Não é tão trivial separar argumen-
Tribunal de Justiça e, de modo especial, ao tação, intepretação e aplicação do Direito.
Ministro Ricardo Cueva, coordenador, organiza- Tais mudanças se fazem notar com maior in-
dor científico deste evento, pelo convite. tensidade, é verdade, nas últimas décadas. A
Gostaria, também, de saudar a todos. É uma questão é nos perguntarmos por quê? O que tem
grande honra participar de um trabalho coorde- provocado esta variação? Essa passagem que vai
nado, presidido pelo Professor Otavio Rodrigues, de uma hermenêutica jurídica para uma teoria da
meu colega na Universidade de São Paulo; pelo argumentação jurídica. Afinal de contas, será que
Professor Marcus Faro de Castro, também um co- eu tenho no sistema jurídico transformações tão
lega que admiro, da Universidade de Brasília; e radicais que conduzam a uma variação, a uma
pelo Professor Raffaele De Giorgi, com quem eu mudança no estilo de argumentação jurídica?
tive a oportunidade de trabalhar com muita pro- Acho que, na verdade, podemos, efetivamente,
ximidade, na Itália, na cidade de Lecce, durante identificar alguns motivos, algumas razões para
dois anos. Tenho o Professor De Giorgi como um essas transformações. Especialmente, podería-
orientador intelectual da minha carreira. mos tentar identificar quais as razões mais atre-
O tema que me foi proposto: Argumentação ladas à realidade brasileira. Isso não é de forma
Jurídica a partir da Constituição. Poderia dizer alguma um fenômeno brasileiro nem tampouco
que, de algum modo, acompanhei as pales- um fenômeno isolado; é um fenômeno global.
tras de ontem e ele esteve presente em todas. Eu percebo isso na Europa, eu percebo isso nos
Apesar de uns discutirem a relação entre Direito Estados Unidos.
e Economia, outros discutirem a interpretação Mas, mesmo com essa abrangência, é possível
jurídica, a questão da argumentação jurídica aca- identificar, no espaço e no tempo, peculiaridades
ba aparecendo em todas as exposições. É o tema da realidade brasileira, detalhes da nossa situa-
deste painel, mas, na verdade, é uma continuida- ção social, da nossa situação econômica que, de
de daquilo que discutimos na sessão de ontem. algum modo, contribuem para a compreensão
Será que há efetivamente uma mudança, uma da especificidade nacional do problema, mesmo
variação nos critérios de exame de questões ju- reconhecendo que esse não seja um problema
rídicas, de decisão de questões jurídicas que exclusivamente nacional, nós não estamos tra-
tenham me conduzido a uma mudança de uma tando, evidentemente, de nenhuma jabuticaba.
relação, como por exemplo, o que falou ontem o Estamos em um período de comemoração de
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
112

50 anos de resistência à ditadura militar, ao gol- de brasileira [1968, não acredito que o discurso
pe militar de 1964, e tratar, digamos, das nossas seja de forma alguma defasado, continua, ao con-
especificidades faz-me lembrar, na presença do trário, de muita atualidade] tem, digamos, uma
Professor Otavio – um especialista em questões história, uma tradição que é muito diversa da eu-
de ensino jurídico e que está acompanhando os ropeia e que é muito diversa, inclusive, daquela
trabalhos da Ordem dos Advogados a respeito portuguesa. Sequer a universidade portuguesa
de propostas de reforma do ensino jurídico – de possuía as características do ensino superior que
discussão a respeito do ensino jurídico. Esta teve no Brasil foi se formando e se desenvolvendo.
origem em palestra, que, em 1968, um professor Não é aqui o momento nem é objeto da pa-
emérito da Universidade de São Paulo, Professor lestra tratarmos da universidade brasileira, dos
Florestan Fernandes, a fina flor do pensamen- cursos jurídicos brasileiros, mas acho que isso
to sociológico uspiano, foi convidado a fazer na prepara o terreno para que eu tente compreen-
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, der os problemas da argumentação jurídica com
em princípio marcada para o espaço mais im- base na Constituição, na realidade brasileira.
portante da faculdade, o salão nobre. O ano de Dizia a Florestan: nosso primeiro problema no
1968 foi um ano turbulento na vida nacional, na ensino superior é o fato de que ele não nasce como
vida estudantil nacional e mundial, e o diretor um ensino propriamente universitário, mas nasce
da Faculdade de Direito proibiu que o Professor de modo muito fragmentado: as escolas isoladas de
Florestan Fernandes fizesse a conferência no sa- Medicina, de Engenharia e, depois, as de Direito,
lão nobre. em São Paulo e no Recife. Isso já traz um peso
para o nosso ensino superior,
quer na área da Medicina,
A questão é saber: afinal de contas, argumentar com base na quer na área da Engenharia,
Constituição significa romper com qualquer tipo de autonomia mais especificamente naquilo
operacional do sistema jurídico? que nos interessa, na área do
Direito, dessa segmentação,
dessa fragmentação não tão
Há, na Faculdade de Direito da USP, uma compatível com a ideia vigente na Europa e em
sala que é praticamente controlada pelos estu- Portugal a respeito da universidade.
dantes. Os estudantes determinam a agenda de Como se não bastasse essa característica
ocupação daquela sala, uma sala chamada “sala muito segmentada, diferentemente daquilo que
do estudante”. Transferiram do salão nobre para ocorria na Europa também, e mesmo nos Estados
a sala do estudante a fala do Professor Florestan Unidos, dizia o Professor Florestan Fernandes:
Fernandes e o diretor proibiu também que o enquanto na Europa a universidade desempe-
Professor Florestan falasse na sala do estudante. nhava um papel criativo, de imaginação institu-
Não tendo outro espaço nobre da escola para cional, capaz de oferecer alternativas reflexivas
oferecer a um professor emérito da universida- para a realidade dos respectivos países, entre
de, os estudantes levaram o Professor Florestan nós essas escolas isoladas surgem muito mais
para um porão ali da faculdade, onde funciona como repetidoras daquilo que tradicionalmente
o Centro Acadêmico 11 de Agosto. se fazia em centros culturais mais importantes,
O que vou narrar foi dito em 1968, por con- particularmente da tradição europeia, e não se
ta dessas razões todas, pelo Professor Florestan, preocuparam muito com o exercício dessa criati-
nos porões da Faculdade de Direito. Isso acabou vidade; criatividade, por exemplo, no campo da
se transformando em um livro muito importan- pesquisa. E faz a ressalva: “Mesmo nos Estados
te a respeito da universidade brasileira, chama- Unidos, as universidades americanas ofereceram
do “Universidade e Desenvolvimento”. Ali, o uma contribuição importante para repensar as
Professor Florestan disse o seguinte: a universida- instituições norte-americanas. Mas, no Brasil,
série
Cadernos
do CEJ 113

isso não teria acontecido”. O que significa tratar da argumentação com


E, finalmente, a terceira crítica que fazia o base na Constituição em um país onde tenho um
Florestan dizia respeito a certa obsessão do en- controle descentralizado da constitucionalidade,
sino superior brasileiro com o título, com o di- onde um juiz de primeira instância pode eventu-
ploma. Antigamente com o título de bacharel; almente desempenhar ou começar a desempe-
hoje, possivelmente com um reforço do título nhar esse papel de controle da constitucionali-
de bacharel com o de doutor, com o de mestre. dade? Em outras palavras, o que estou querendo
Mas essa obsessão com o título também descolou dizer? Temos uma realidade socioeconômica de
um pouco a universidade de uma preocupação um lado e, de outro, um aparato institucional,
com a sua função social, atrelada à criatividade uma forma de exercício de controle de constitu-
e atrelada a essa unidade ou universalidade do cionalidade e de abertura de espaço para argu-
conhecimento, típica da ideia de universidade. mentação, com base na Constituição, que não é
É possível se nós transportarmos essa ideia para aquilo que usualmente verificamos em todos os
um debate específico – estou falando agora sobre países. Então, há peculiaridades, aspectos que
argumentação com base na Constituição, mas po- são brasileiros.
deria ser qualquer outro tema de relevância para A questão é saber: afinal de contas, argumen-
o campo do Direito. tar com base na Constituição significa romper
Levando em consideração essa nossa tradição com qualquer tipo de autonomia operacional
universitária, é possível que a preocupação ou a do sistema jurídico? Dizer que eu tenho um juiz
especificidade com a realidade brasileira acabe ativista, vale dizer, um juiz que, de um lado, goza
ficando em um plano muito secundário, o que de elevada autonomia e, de outro lado, goza tam-
significa discutir a Constituição ou argumentar bém de elevada criatividade – e por conta des-
em juízo, com base na Constituição, por exemplo, ses dois fatores, elevada autonomia de um lado,
em um país que tem a terceira bolsa de valores respeito às prerrogativas e à independência do
mais importante em termos de volume de recur- magistrado de um lado, e, de outro, inevitável
sos do mundo (isso foi dito por um dos exposito- espaço para a criatividade em um momento da
res de ontem). O que significa discutir argumen- decisão judicial.
tação com base na Constituição em um país que Será que essa elevada autonomia é o suficien-
saltou, no arco de dez anos, de um número de te para romper completamente com a unidade
três milhões e meio de motocicletas – uma coi- do sistema jurídico? Será que isso vai fazer com
sa aparentemente trivial e que aparentemente que eu perca a dimensão daquilo que é a norma-
tem muito pouco a ver com o Direito – para um tividade especificamente jurídica? Ou de qual o
número de dezoito milhões de motocicletas, dez tipo de programação da comunicação jurídica
anos depois? A mesma multiplicação eu poderia que permite um tipo de enlace que não preci-
fazer em relação ao número de veículos. sa ser necessariamente vinculado àquele enlace
O que dizer de um país que, nos últimos vin- encadeado, de normas jurídicas à moda de uma
te anos, acrescentou, em termos nominais ao estruturação do ordenamento jurídico com base
seu PIB, o PIB de duas Argentinas? Em vinte em um escalonamento ou em graus, à moda do
anos, foi o que aconteceu com o Brasil. Em que imaginava o Kelsen?
termos nominais, se tomarmos a comparação, Será que eu não posso pensar esse enca-
hoje, o Brasil com um PIB cinco vezes maior do deamento que me permita identificar a espe-
que o PIB argentino, se crescer a uma taxa de cificidade da comunicação jurídica, da nor-
4%, 5% ao ano, enfim, uma taxa de crescimento matividade jurídica e, portanto, também, da
talvez até modesta comparada às taxas de cres- argumentação com base na Constituição sem
cimento chinesas, isso significa, em quatro ou fazer com que o Direito acabe por se confundir
cinco anos, acrescentar ao PIB brasileiro mais com a Economia, ou acabe por se confundir
um PIB argentino. com a política? Que ideia está por trás de dizer-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
114

mos que o Supremo Tribunal Federal desem- ao interior do sistema jurídico sem a mediação
penha uma função política? Desempenhar uma desses filtros. Que filtros são esses? São os filtros
função política, no Supremo Tribunal Federal da normatividade jurídica, são os filtros ofereci-
ou no juiz de primeira instância, que tem a dos por contratos, por atos administrativos, por
possibilidade de levar adiante algum modo de leis, por tratados.
controle de constitucionalidade? Essa conflituosidade, muitas vezes, passa ao
Fazer política significa substituir os critérios do largo desses filtros e chega ao núcleo do sistema,
Direito por outros critérios valorativos, principio- ou seja, chega ao gabinete do juiz com uma pecu-
lógicos, morais, que eventualmente se descolem liaridade, com uma diferença que não foi muito
de critérios jurídicos? Ou será que é ao contrário? ressaltada no dia de ontem. Diferentemente do
Ao fazer isso, essa abertura sem critérios do sis- sistema político ou do sistema econômico, que
tema jurídico ao ambiente econômico, político, são sistemas que não criam para eles mesmos
social que o circunda, nós não corremos o sério a auto-obrigação de decidir, o sistema jurídico
risco de perdermos aquilo que é importante e se diferencia da política e da economia, dentre
relevante para o Direito? outros motivos, por essa especificidade. O siste-
Temos nos últimos anos, por exemplo, no caso ma jurídico e particularmente a sua organização
do ensino jurídico, aprofundado muitíssimo a nos- central, os tribunais, se auto-obrigam a decidir.
sa preocupação em abrir o conhecimento jurídi- O juiz não pode se furtar a tomar uma decisão
co para o conhecimento de outras áreas. Então, dizendo: não tenho lei aplicável, não tenho cla-
é muito comum que tenhamos cursos até mesmo reza no contrato. Está obrigado a decidir, apesar
na pós-graduação, na graduação, do tipo Direito da ausência, muitas vezes, desses filtros, o que
e alguma coisa, Direito e Psicanálise, Direito e torna a criatividade da atividade jurisdicional
Cinema, Direito e Literatura, Direito e Economia, inevitável e o que torna, também, o processo de
Direito e, enfim, o que vocês bem entenderem. É argumentação bastante variado e amplo, diante
algo muito comum, alguém poderia imaginar: é dessa combinação de um aumento do acesso à
exatamente isto que os cursos jurídicos precisam: Justiça, da falta de filtros de um lado e, de outro,
de uma abertura para o ambiente que o circunda. da obrigação de decidir e que, por vezes, essa
Eu não tenho nada contra essa abertura, o que argumentação jurídica acabe resvalando por as-
me intriga é a possibilidade de que essa abertu- pectos pouco controláveis pelo sistema jurídico.
ra “Direito e alguma coisa”, “Constituição e algu- O recurso constante aos princípios ou aquilo
ma coisa”, acabe funcionando como uma técnica que a Ministra Eliana Calmon chamou em alguns
não jurídica que perde a especificidade daquilo momentos de “farra dos princípios” pode signi-
que é próprio da contribuição jurídica para uma ficar muitas vezes um abandono desses critérios
sociedade complexa. Será que argumentar com a de especificidade da argumentação jurídica e a
Constituição em um juiz que desempenhe uma po- substituição disso por critérios absolutamente
sição política, pode significar ignorar a Constituição, subjetivos. Durante muito tempo imaginou-se,
ir além da Constituição, ou substituir o texto consti- por exemplo, a certeza do Direito, um valor tão
tucional por uma interpretação subjetiva? importante para o desempenho das funções ju-
Vivemos em uma quadra em que é muito fre- risdicionais, um argumento tão importante, de
quente, muitos dos senhores são juízes e sabem modo especial, para o jurisdicionado, da seguinte
disso muito melhor do que eu que sou acadê- maneira: o mundo externo ao sistema jurídico
mico, a conflituosidade social chega ao sistema é um mundo turbulento, é um mundo confuso,
jurídico e particularmente ao núcleo do sistema variável; é preciso que tenha um núcleo, um cen-
jurídico, vale dizer, chega aos tribunais sem pas- tro, capaz de controlar a instabilidade externa ao
sar por aquilo que na aula de ontem o Professor Direito, a instabilidade econômica, política, so-
Tércio Sampaio Ferraz Júnior chamou de filtros cial. Imaginou-se que esse núcleo de controle da
do sistema jurídico, essa conflituosidade chega instabilidade externa pudesse ser oferecido pelo
série
Cadernos
do CEJ 115

sistema jurídico e, especialmente, pelo Direito outro, mas o estilo da argumentação diferen-
Positivo e, de modo particular, durante um perí- cia. É possível que nessa mudança esteja aquilo
odo, pelas grandes codificações. que o Professor Tércio identificou como uma
Ao longo do século XX, aos poucos essa cren- passagem da importância da lei para a impor-
ça ingênua no Direito Positivo como um centro tância da jurisprudência e, consequentemente,
de certeza foi cedendo espaço a outro tipo de no lugar da abstração e da generalidade da lei
percepção. Começou-se a identificar que a legis- à especificidade e à concretude do caso, da
lação, os códigos não eram assim tão completos, decisão específica.
tão consistentes, tão coerentes, capazes de con- Mas, é provável também que talvez essa seja
ferir estabilidade a um mundo econômico e po- uma maneira de se compreender, em uma so-
lítico instável, e poderia, exagerando um pouco ciedade com as transformações pelas quais vem
aqui para efeitos retóricos e didáticos, imaginar passando a sociedade brasileira, no estilo de ar-
a economia, grandes princípios políticos, uma gumentação judicial, cada vez mais frequente nos
concepção a respeito da história que oferecesse nossos tribunais, que nós estejamos adentrando
um horizonte claro de possibilidades em relação a uma quadra de difícil descrição, de difícil com-
ao futuro que esse tipo de construção, ou seja, preensão, mas na qual se percebe, não é possível
de que valores externos ao sistema jurídico, va- identificar, que nem aquele momento da certeza
lores políticos, econômicos, morais, pudessem interna ao Direito nem o segundo, supostamen-
controlar uma instabilidade identificada agora te da certeza externa ao Direito, nenhum desses
como interna ao sistema jurídico. momentos parecem momentos compatíveis com
O sistema jurídico é inconsistente, é inco- a realidade do final do século XX, do início do
erente, é pleno de antinomias, lacunas e con- século XXI.
tradições, é preciso que
haja uma orientação polí-
tica ou econômica clara e, Temos nos últimos anos, por exemplo, no caso do ensino
dessa maneira, vou conferir jurídico, aprofundado muitíssimo a nossa preocupação
certeza ao Direito. Em ou- em abrir o conhecimento jurídico para o conhecimento de
tras palavras, eu substituo outras áreas.
a ambição de uma certeza
construída interiormente ao
sistema jurídico por uma ambição de certeza De um lado, poderia dizer que a sensação de
conferida exteriormente pela política, ou pela indeterminação de vagueza, de ambiguidade,
economia, ao sistema jurídico. Em termos de te- de incerteza interna ao Direito persiste. Mas, ao
oria jurídica, poderíamos dizer: enquanto a pri- lado disso, começa a ficar, cada vez mais claro,
meira concepção, a certeza interna ao Direito, também que tenho a percepção da vagueza, da
está muito vinculada àquilo que costumamos indeterminação, da incerteza, daquelas propos-
chamar de “jurisprudência dos conceitos”; de tas que supostamente poderiam oferecer uma
outro lado, a certeza oferecida do ponto de certeza exterior ao Direito. Em outras palavras,
vista externo ao Direito, com base nos valores, pode-se imaginar que eu tenha centros de certeza
com base nos interesses, está muito próxima oferecidos pela moralidade, pela política, pela
daquilo que a teoria jurídica identificou, muitas economia, numa quadra na qual não se vislum-
vezes, como jurisprudência dos interesses. bra uma perspectiva de evolução histórica, de
É claro que o estilo de argumentação, se eu proposta filosófica, de idealismo político hegemô-
trabalho com a jurisprudência dos conceitos nico, mas o que tenho é muito mais um momento
ou se eu trabalho com a jurisprudência dos in- de incerteza interna ao Direito, combinado com
teresses, é muito distinto. A argumentação é um momento de incerteza externa ao Direito, o
importante tanto em um momento como no que, de forma alguma, esvazia a necessidade de
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
116

um reforço na argumentação jurídica, porém não escrito pelo Professor De Giorgi em conjunto com
como uma técnica de fazer com que o Direito o professor Niklas Luhmann.
abra a mão de critérios operacionais próprios do Tomo a liberdade de concluir, contando um
Direito e os substitua por critérios que a política caso, já que estamos às vésperas da Copa do
e a economia também não têm como oferecer. Mundo. Trago um exemplo futebolístico que o
A questão é encontrar um ponto de equilíbrio professor De Giorgi me contou. Vou estilizar o
entre a certeza interna, ou melhor, a incerteza discurso, adaptar aos efeitos da nossa conversa
interna e a suposta certeza externa, ou melhor, a sobre a argumentação jurídica em contextos de
incerteza externa. Tentar encontrar mecanismos incerteza. Um artigo muito famoso do Luhmann,
próprios do Direito, da operacionalidade jurídica, que ele não publicou em vida, sobre o décimo
capazes de combinar essas duas incertezas com a segundo camelo. A primeira apresentação desse
técnica de aplicação jurídica do Direito. artigo, em uma conferência, ocorreu em Napoli e
em um seminário organizado
pelo professor De Giorgi. O
[...] será que confiar, cegamente, na capacidade dos princípios, texto sobre o décimo segun-
oferecendo uma orientação para um jogo com as regras e do camelo trata da argumen-
com os princípios, com os valores e com as metas, como que tação jurídica, da interpreta-
caracteriza a sociedade contemporânea? ção do Direito, trata de temas
que estamos aqui discutindo
de algum modo.
Há ainda muita coisa para falar a respeito disso, E dizia o professor De Giorgi que, depois da
mas já me deram aqui o aviso de tempo esgotado apresentação desse texto, foram para uma locali-
e com certeza meu colega, Professor De Giorgi, vai dade na Itália, estavam em uma posição em que
trazer um texto que me apresentou anteriormente. era possível ver na rua um grupo de quatro, cinco
Ele vai falar justamente a respeito disto, de qual é garotos, jogando futebol. Uma bola, dois times,
a filosofia da história que está por trás dos princí- quatro ou cinco garotos, objetivando as metas
pios, o que está por trás da ideia, da ambição de opostas, observando as regras do futebol. E, na
se controlar na véspera um futuro que, inescapa- medida em que os dois conversavam, chegaram a
velmente, é um futuro incerto, indeterminado. E esse campinho improvisado na rua outros garotos
trabalhar com critérios de incerteza e indetermina- com outra bola e começaram a participar do jogo
ção própria, os da política e da economia, e com também. Formaram outros dois times, e o jogo se
critérios de incerteza e indeterminação também desenrolava no mesmo campo, com quatro times
próprios do Direito. Então ele vai continuar na e duas bolas.
mesma toada em que eu estou. Mais um tempo, chegam mais alguns garo-
Professor De Giorgi, para quem não conhece, tos e vem aquela farra instaurada, têm também
é um dos maiores especialistas internacionais em uma bola e montam lá uma nova equipe e co-
Teoria dos Sistemas, trabalhou durante muitos meçam a jogar com três bolas, com várias metas,
anos diretamente com o grande mentor da teoria com vários gols e com vários times. O Professor
dos sistemas, que foi, sem dúvida alguma, Nicklas Niklas Luhmann, vislumbrando aquela situação
Luhmann. Ele tem inclusive um livro escrito jun- complexa, comenta com o Professor De Giorgi
tamente com o Luhmann, chamado “Teoria da o seguinte: olha, essa minha teoria a respeito da
Sociedade”, que funciona como uma espécie de sociedade moderna, de uma sociedade comple-
um esboço preparatório para a última obra do xa, encontra um exemplo nisso que a garotada
Luhmann, um esforço de síntese do Luhmann, está fazendo.
da sua construção teórica, que é um livro cha- As pessoas tendem a imaginar a socieda-
mado “A Sociedade da Sociedade”, precedida de como se fosse formada por um conjunto de
por um livro chamado “Teoria da Sociedade”, regras, conjunto de princípios e que eu tivesse
série
Cadernos
do CEJ 117

apenas dois times jogando na forma do padrão, Professor Tavares, não de forma a imaginar a
nas regras oficiais do jogo de futebol, quando, causalidade como algo que possa ser observado
na verdade, a sociedade funciona muito mais a posteriori. Na generalidade dos casos, quando
de maneira parecida com aquilo que os garotos aplico a Teoria da Causalidade ao Direito Penal,
estão fazendo: várias bolas, vários times, várias faço uma observação a posteriori daquilo que
metas, falta de clareza a respeito das regras, falta ocorreu e das relações causais. É possível, a pos-
de clareza a respeito dos princípios que organi- teriori, identificar relações de causalidade.
zam esse jogo. Mas será que é possível, de maneira anteci-
Pergunto eu: será que confiar, cegamente, pada, na véspera, vislumbrar o futuro e atribuir
na capacidade dos princípios, oferecendo uma ao magistrado – ou a quem quer que seja nesse
orientação para um jogo com as regras e com os contexto, a agravante com o magistrado é que
princípios, com os valores e com as metas, como ele tem a obrigação de decidir: é o princípio da
que caracteriza a sociedade contemporânea? proibição de denegação de justiça, é o non liquet
Será que essa é uma postura prudente, como – a capacidade de ele, magistrado, vislumbrar
convém à prudência dos magistrados? Será que e indicar um futuro supostamente certo, inequí-
posso, de fato, confiar em um direito fundamental voco e que possa ser atingido por conta de re-
a pretensões ilimitadas? Ou posso confiar em um lações causais observadas não a posteriori, mas
horizonte muito claro e preciso de possibilidades supostamente observadas no momento da deci-
em relação ao futuro, mas pensando causalida- são judicial? Com que capacidade de controlar
de não nos termos em que ela foi apresentada – as consequências da decisão? E mais do que isso:
corretamente e de forma brilhante – ontem pelo com qual legitimidade?”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
118

OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR


Professor da Universidade de São Paulo


Agradeço ao Professor Celso Fernandes Campilongo por essa exposição tão brilhante e tão
importante no debate atual sobre a utilização dos fatores de correção externos ao Direito. Fiquei bas-
tante feliz com o que ouvi, acho que é um discurso que precisa ser difundido. Estamos realmente em
um processo de reflexão profunda sobre a utilização desses mecanismos externos. É o abandono dos
filtros que o Direito, durante tanto tempo, desenvolveu. Nem tanto ao recurso, aos fatores internos, mas
também nem tanto a essa pan-principiologia, que hoje nos causa tanto constrangimento epistemológico.
A respeito disso, lembro-me de uma história que se conta do professor da Universidade de Bonn,
Professor Josef Isensee. Ele foi procurado por um orientando que falava da insuficiência do Direito,
da impossibilidade de resolver os problemas a partir do Direito e ele disse: “Meu caro, você é um
jurista. Não se diminua tanto. O Direito tem a capacidade de resolver os problemas – não todos, mas
tem capacidade de resolver. Não caia no risco de tentar – e aí é uma tradução livre – macaquear a
Filosofia, a Sociologia, a partir da redução a elementos tão simplificadores e reducionistas que aca-
bam fazendo com que o jurista, quando entra nessas áreas, acabe sendo visto com certo ar de mofa
pelos sociólogos e filósofos”. Há espaços que precisam ser preservados, e a manifestação do Professor
Campilongo foi absolutamente oportuna no momento em que esse debate se coloca claramente no
Direito brasileiro.
Reitero meus parabéns e minha satisfação pelo que ouvi aqui, o que não é absolutamente algo que
surpreenda, vindo de Vossa Excelência. Passo agora a palavra ao Professor Raffaele De Giorgi. Como
muito bem salientado pelo Professor Campilongo, o Professor De Giorgi é um dos grandes nomes
do Direito Internacional e com conexões pessoais com Niklas Luhmann. Este evento, diria eu, está
bastante “luhmanniano”. Temos aqui o Professor Campilongo. Tivemos o Professor Marcelo Neves e
hoje o Professor De Giorgi que vai nos falar sobre este tema bastante complexo, que é a argumentação
jurídica na Constituição.
Como dever que me cabe, como Presidente de Mesa, embora desnecessário, farei uma rápida
apresentação do Professor De Giorgi. Ele é doutor em Filosofia pela Universidade de Roma, professor
da Universidade de Lecce, na Itália, fundador do Centro de Estudos sobre risco da Universidade de
Lecce, professor visitante do Max Planck Institute für europäische Rechtsgeschichte, Frankfurt a.M., na
Alemanha, da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Comahue, na Argentina, e
na Universidade de Guadalajara, no México. É pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt, na
Alemanha. Professor visitante na Universidade Federal de Santa Catarina, na Universidade Federal do
Paraná, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na Universidade de São Paulo e na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. É Secretário-Geral da Academia Europeia de Ciências e Filosofia
do Direito, na Alemanha, além de vários outros títulos. Apenas faltou um, aqui, na qualificação do
Professor. Ele é, acima de tudo, um amigo do Brasil. Isso muito nos orgulha, nos deixa muito felizes
em recebê-lo.”
série
Cadernos
do CEJ 119

mesmo tempo, no entanto, revive tramas e nos


deixam perplexos. Por esse motivo, prefiro a cau-
tela e um relativo distanciamento.
O primeiro motivo que suscita perplexidade
diz respeito ao fato de que, na incerteza descon-
fortante do presente, esse horizonte oferece cer-
tezas teóricas muito tranquilizantes e seguranças
filosóficas sólidas. O segundo motivo, por sua vez,
refere-se ao problema de que, caso se penetre
na robustez declarada do seu pensamento, caso
se sondem os ataques que seus adeptos dirigem
às grandes construções do passado, tem-se a im-
RAFFAELE DE GIORGI pressão de ouvir o eco das velhas histórias mal
Professor da Universidade del Salento, contadas, de assistir a encenações nas quais os
Lecce – Itália personagens atuam em busca de um autor, o títu-
lo de uma peça dramática de Pirandello, e de se
encontrar diante de uma pobreza atroz. Tem-se
Agradeço ao Conselho da Justiça Federal a impressão, em outras palavras, que a diferença
pelo convite, é uma honra para mim. Agradeço entre os antigos e os modernos consiste apenas
também ao Senhor Ministro Ricardo Villas Bôas na noção de que os modernos dizem somente
Cueva, ao Presidente da Mesa e seus integrantes, aquilo que sabem, enquanto os outros, os anti-
ao Professor Marcus Faro de Castro e, de maneira gos, sabiam o que diziam. Existirá, todavia, um
muito especial, ao Professor Celso Campilongo, motivo para tudo isso. Na busca por explicar esse
que fez uma esplêndida palestra e que me honra motivo, está minha tentativa de desenvolver o
com sua amizade e palavras. tema proposto.
Isso que se chama neoconstitucionalismo não
I. é uma teoria da constituição nem uma filosofia
Diante do tema proposto, ocorrem-me três do direito da política, como se poderia contraria-
questões: por que argumentação jurídica a partir mente pensar. É, na verdade, um horizonte, uma
da Constituição, e não simplesmente interpretação linha fronteiriça que separa o que se vê do que
da constituição? Por que refletir sobre a unidade não se vê, uma perspectiva ao longo da qual são
de um processo que termina por oferecer uma colhidas contribuições que surgem de diversas
justificativa de si mesmo, e não ao contrário, re- direções, mas estão ligadas a uma mesma função.
fletir sobre as diferenças que são inerentes ao Em comum, tais contribuições estão sob uma par-
resultado de tal processo? Por que observar a ticular coação a repetir a tentativa de exorcizar
estrutura de um processo e não a função? o passado, que foi o lugar do mal, e construir o
A ideia presente no título sugerido nos remete futuro, que será o lugar do bem. De um lado, o
a um horizonte específico do pensamento cons- passado, o século breve, como diz Hobsbawn;
titucional contemporâneo: um horizonte que se de outro, um futuro que não se abala diante do
autodefine neoconstitucionalismo. presente do qual é futuro, pois esse presente é
Considero fundamental iniciar com esse escla- um tempo sem tempo.
recimento, pois o termo não indica apenas um Em seu vocabulário, esse neopensamento
entre muitos outros neoísmos que são da moda: constitucional considera o recente passado do
tal proposta é um dos produtos que mais está em constitucionalismo, que era o tempo da interpre-
moda no mercado atual de ideias. Como todas tação da Constituição, como um velho resíduo,
as modas, ela também provoca adesões entusias- como um inútil – se não perigoso – objeto de
madas e desperta animosidades virulentas. Ao museu, como utensílios pré-históricos.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
120

O pensamento jurídico da primeira metade do diante dos Estados, o direito diante do poder,
século passado, que se formou a partir da herança as diferenças diante da uniformização, o acesso
do Estado nacional do final do século XIX e que igual de todos os bens sociais, o espaço de uma
teria sido arrancado do velho constitucionalismo, comunicação livre. Em tais expectativas, expri-
fora produzido no âmbito de um Estado cuja cen- mia-se a necessidade de controle da violência
tralidade exprimia-se na autoridade da lei: o direito dos Estados e do direito das leis, a necessidade
positivo era a manifestação da superação do privi- de reconhecimento da individualidade dos indiví-
légio e da desigualdade originárias, e a supremacia duos, da sua capacidade de autorrepresentação.
do poder se realizava na supremacia da lei. Suas O percurso seguido foi a constitucionalização das
características eram a certeza da vontade, a ordem relações entre direito e política e a inclusão de um
das ações, a congruência dos meios e fins, a igual- catálogo de direitos fundamentais, o qual – para
dade de todos perante a lei, a independência de um dizer a verdade – já tinha sido proclamado um
juiz submetido apenas aos ditames legais. E mais: a século e meio antes e tinha sobrevivido a uma
centralidade do público, a estabilidade da ordem, a longa noite durante a qual coexistiu com a mais
exclusividade do direito do Estado, a tutela da pro- negra escravidão e com os guetos de extermínio
priedade privada e das iniciativas que dela surgiam, em que eram marginalizados e explorados os an-
a contenção da exclusão social e a sua inserção tigos e os novos famélicos da terra, segundo um
marginal no sustento da economia dos privados e título de um livro famoso.
do Estado. Essas eram as aquisições com as quais,
em seus primórdios, o século breve dotou de ga- II.
rantias jurídicas à moderna sociedade de Estados. Constitucionalizar a relação entre direito e
Essas eram as características do Direito Positivo dos política significava fixar os pressupostos de uma
Estados os quais, logo no início, lutaram entre si, contínua reabertura da circularidade entre am-
massacraram-se para que, por meio da violência, bos, romper a hierarquia que colocava a política
um poder impor ao outro a superioridade exclusiva como vértice da sociedade e condicionar a imu-
que algum desses Estados tinha em seu interior. nização recíproca e a recíproca conexão entre
O pensamento jurídico que acompanhou essa política e direito. Aquela política, ainda era a po-
tragédia se chamava positivismo. Melhor dizen- lítica das grandes relações do mundo, das gran-
do: a moda do presente o chama assim, confe- des filosofias da história, a política que narrava
rindo-lhe um sentido depreciativo que autoriza a liberdade dos indivíduos e a igualdade, o livre
os modernos a se apresentarem no futuro como acesso à comunicação social, a sociedade como
pós-, neo- ou anti-. O positivismo é tratado como universo público de sustento e proteção. Ela era
uma teoria do direito que era uma filosofia do a política das liberdades de acesso e da inclusão,
poder, uma técnica interpretativa que devia ser do tratamento das diferenças e do incipiente re-
a manifestação da vontade exclusiva do poder conhecimento da diferença entre as nações do
no direito, uma ideologia da sacralidade da lei, mundo. O direito de tal política construía, com
uma metafísica de vulgar empiria, como a pode- muito esforço, seu fechamento. Sua seletividade
ria ter denominado o herético Marx, referindo- era pouco resistente em relação às diferenças e
-se ao sacrílego Hegel: um pensamento nefasto às formas de exclusão que o passado de depen-
diante do qual o neopensamento constituciona- dência tinha legado. O direito devia imunizar a
lista se horroriza. sociedade contra as suas ameaças internas, pois,
A primeira metade do século breve se fecha- desse modo, os direitos fundamentais poderiam
va com o eco dos gritos de milhões de mortos e finalmente realizar a função para a qual tinham
como a dor impressa na memória dos vivos, que sido inventados, assegurar a estabilidade da for-
podiam se entorpecer apenas por meio da expec- ma da diferenciação social tipicamente moderna.
tativa de um futuro no qual uma razão univer- Tratava-se, assim, de uma política de direitos que
sal cosmopolita poderia assegurar os indivíduos investigava e, por meio dos direitos, obtinha a sua
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Cadernos
do CEJ 121

imunização e o reconhecimento da sua expansão a delimitação dos espaços na forma de direitos. A


nas formas – igualmente legitimadas pelos direi- constituição era de todos, assim como o mundo,
tos – do Estado Social e do Estado de Bem-estar. que é o limite da sociedade.
Expressões essas que nos habituamos a utilizar Interpretar a constituição; concretizá-la. Essas
para definir aquela condição particular de recí- eram as preocupações que orientavam o interes-
procas expectativas do reforço da seletividade da se do constitucionalismo tradicional. Era o traba-
política através do incremento da seletividade do lho teórico ao qual os velhos pais dedicaram seus
direito. O direito da política dos direitos exprimia cuidados. “No curso da interpretação constitucio-
o limite de aceitabilidade social da transformação nal”, dizia um deles, “a constituição sempre será
da realidade da exclusão em expectativas de in- atualizada”. Por isso, todo o esforço deveria ser
clusão. Representava o limite da materialização, dedicado à interpretação. Por meio dela, o cará-
isto é, da especificação dos universalismos que as ter aberto e amplo da constituição devia ser pre-
constituições prestavam. cisado, especificado, universalizado. Um trabalho
Política e direito tinham a função de tempo- complexo, pois especificar significa universalizar,
ralizar os conteúdos constitucionais. Nesse senti- e ambos significam atualizar, materializar, isto é,
do, realizavam as constituições: por meio de suas revelar o conteúdo da constituição.
decisões, a política podia absorver o futuro, vale Nesse sentido, Konrad Hesse dizia: “Se
dizer, mantê-lo aberto independentemente dos em virtude da Lei Fundamental, o Tribunal
vínculos que o atavam, pois, de todos os modos, Constitucional interpreta a constituição com efi-
sempre realizava a constituição. Da mesma for- cácia vinculante, não apenas para o cidadão, mas
ma, os indivíduos podiam absorver o futuro cul- também para os demais órgãos do Estado, a ideia
tivando as expectativas cuja legitimidade nascia que origina e legitima essa vinculação, qual seja,
do reconhecimento constitucional dos espaços a submissão de todo o poder do Estado à cons-
indistintos da possibilidade de cada um deles. tituição, pode se tornar realidade apenas se as
Podia-se, assim, sempre inventar o futuro, pois sentenças do Tribunal expressam o conteúdo da
ele sempre encontrava a sua legitimidade no constituição, ainda que seja pela interpretação
presente: o futuro que se podia inventar podia do Tribunal” .
ser tratado como o futuro
presente da constituição. O
tempo da constituição era, na [...] o direito positivo era a manifestação da superação do
verdade, o presente futuro da privilégio e da desigualdade originárias, e a supremacia do poder
sociedade: política e direito se realizava na supremacia da lei.
temporalizavam a constitui-
ção como fonte de legitima-
ção do tempo do decidir e do agir, que poten- A interpretação foi confiada à tarefa de encon-
cializam continuamente a realidade do presente, trar o resultado constitucionalmente correto, por
transformando-a na possibilidade do futuro. Por meio de um procedimento racional e controlável,
isso, a constituição sempre se realizava e sempre e de motivar esse resultado de um modo igual-
devia se realizar. As constituições constituíam as mente racional e controlável, realizando, assim,
condições da contínua abertura e do contínuo condições de certeza e previsibilidade do direi-
fechamento do direito e da política. to. Na realidade, constitucionalmente correto é
Inventados como livres, os indivíduos sem- o resultado considerado aceitável, tolerável, que
pre realizavam a constituição por meio do seu se crê não haver superado os limites daquilo que
agir: a constituição é; não deve ser. Todavia, ao se pode tratar como racionalmente motivado.
mesmo tempo, devia-se dizer igualmente que a Segurança jurídica e certeza do direito, por sua
Constituição deve ser; não é. Ela desenhava hori- vez, significam que é legitima a expectativa de
zontes cujas prescrições reivindicavam da política que cada decisão interpretativa será tomada com
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
122

base no direito. É justamente essa certeza, todavia, dizer que a interpretação final deve ser resultado
que torna possível a previsibilidade como aber- de decisões plebiscitárias ou de aplausos mas-
tura para um futuro no qual, independentemen- sivos (ou, ainda pior, o produto de uma Corte
te da decisão que será tomada, saber-se-á como eleita pelo povo). Afirmar que a interpretação
se comportar. Um tema ao qual Guilherme Leite final deve se voltar à cidadania significa dizer que
Gonçalves dedicou páginas muito profundas. esta última deve recuperar o controle sobre o
A necessidade de expor a constituição excluía direito e que o direito deve começar a se vincular
naturalmente qualquer tipologia interpretativa aos processos igualitários da discussão pública,
que aludisse à subsunção do caso à lei ou qual- que hoje estão completamente ausentes de nosso
quer outra perspectiva que poderia ser tratada horizonte democrático”. O autor é um constitu-
como positivista, pois não se vinculava a ideia cionalista argentino.
de descoberta da vontade do constituinte; devia-
-se, ao contrário, supor que o resultado da in- III.
terpretação fosse a realidade da Constituição e O século breve concluiu-se alguns anos an-
que o constituinte não poderia ter decidido sobre tes do seu fim cronológico: os últimos pedaços
tal realidade. A constituição oferecia pontos de de sua história trágica caíram esmagados pelas
apoio, múltiplos, mas necessariamente incomple- pedras de um muro cuja ilusão levou milhões de
tos. Não perseguia objetivos, cuja realização po- pessoas a correrem em direção a um futuro que a
deria ser objeto de interpretação. A constituição história os havia negado absolutamente. Aquelas
não tem um objetivo. Como pode ter um objetivo pedras sepultavam também as esperanças que,
a constituição que, como dizia Häberle, “é a ex- justamente em seu início, tinham levado aque-
pressão de um nível de desenvolvimento cultural, le século a correr atrás das bandeiras da última
instrumento da representação cultural autônoma grande filosofia da história, bandeiras que os cri-
de um povo, reflexo da sua herança cultural e mes do regime teriam rasgado para sempre.
fundamento de novas esperanças?” A primeira A natureza das esperanças iniciais não era
consequência é: o guardião da constituição é o diversa da natureza das ilusões para onde mi-
Tribunal Constitucional em seu caráter de “tribu- lhões de pessoas corriam agora, qual seja, o reco-
nal sui generis da sociedade (em sua totalidade)”, nhecimento das possibilidades de agir sem estar
no dizer de Häberle. Tribunal constitucional em submetido à violência que põe o direito, como
seu caráter – citação de Handelmann – de tribu- dissera Benjamin, ou, em termos atuais, o reco-
nal sui generis da sociedade em sua totalidade. nhecimento das possibilidades do agir, na forma
Por meio do tribunal, a sociedade se interpreta. dos direitos subjetivos como forjados no advento
De fato, “a constituição viva é obra de todos os da sociedade moderna. Ou ainda: o reconheci-
intérpretes constitucionais da sociedade aberta”. mento do caráter originário daqueles direitos que
O direito processual constitucional é o medium tinham sido consagrados um século e meio antes,
pelo qual “a sociedade aberta dos intérpretes mas que permaneceram impotentes não apenas
constitucionais” materializa a constituição. “O diante da violência do Estado que conserva o
direito constitucional material, o direito que se direito na forma de burocracia. Ou, por fim, o
vive”, afirmava Häberle, “surge de uma diversida- reconhecimento de um deslocamento necessário
de de funções que foram percebidas de maneira e definitivo do poder originário, o qual não po-
correta: as funções do legislador, do juiz cons- dia mais ser confiado à política e ao seu direito,
titucional, da opinião pública, do cidadão, mas nem mesmo poderia permanecer nas mãos das
também as funções do governo e da oposição”. maiorias políticas, a não ser sob condição de uma
Um outro estudioso, de caráter – podemos dizer proteção segura daqueles espaços tidos como
– moderno, proclama: “a interpretação consti- intangíveis, não negociáveis, pois considerados
tucional deve se voltar à cidadania”. Para evitar como pressupostos inevitáveis, fundamentos de
equívocos, ele explica: “isso não é o mesmo que possibilidade de um agir livre e autônomo.
série
Cadernos
do CEJ 123

Em essência, reivindicava-se a realização de no sentido da possibilidade de aceitar e fazer de-


uma democracia de direitos que fosse capaz de clarar a omissão de reconhecimento, quanto no
romper os vínculos e constrangimentos daque- sentido de impedir que a decisão política a qual
la política dos direitos que se firmou na Europa fosse reconhecida como violação daqueles espa-
Ocidental por todo o meio século precedente. ços pudesse continuar a operar.
Uma democracia dos direitos que, na Europa que Essa democracia devia responder às expecta-
queria superar o muro, nunca se realizou a não tivas daqueles que foram excluídos da democra-
ser na forma da violência de uma política morali- cia moderna e, ao mesmo tempo, às expectativas
zada e, em outras regiões do globo, expressou-se amadurecidas pela experiência das frágeis demo-
de diferentes modos, das trevas das ditaduras aos cracias europeias, nas quais os direitos funda-
crepúsculos do Estado do século XIX. mentais não foram protegidos contra a violência
Não se reivindicava apenas uma democracia que põe o direito.
política, de representação, de legalidade e do Essa democracia deveria exaltar o caráter de
Estado de Direito. Essa democracia já havia sido fundamento que caracteriza o poder originário
imposta como a forma moderna da democracia dos indivíduos; protegê-lo como condição inevi-
e poderia se expandir facilmente para regiões tável de sua capacidade de se afirmar como indi-
onde ela fora bloqueada. A democracia que se víduos e como requisito da sua individualidade
reivindicava devia reconhecer o espaço originá- jurídica e política. Tal poder devia ser colocado
rio dos direitos subjetivos como o lugar no qual se em um lugar seguro que não é o lugar da políti-
exprime o poder socialmente difuso que os indi- ca nem do direito, mas o espaço inobservável da
víduos recuperavam e se tornavam titulares. Eles unidade da diferença entre eles. Nesse espaço da
pretendiam a tutela desse espaço por parte do unidade e da diferença de política e direito, não
Estado e, conforme a experiência recente, tam- somente os direitos são originários, mas o próprio
bém sua proteção contra o Estado: uma proteção espaço adquire um caráter originário, constitutivo,
que poderia ser garantida somente por meio do de contínua refundação e redefinição de si mes-
recurso ao texto fundamental, cujo conteúdo fora mo. Obviamente, a unidade de uma distinção não
fixado como originário e, por conseguinte, como se vê. Nesse sentido, aquele espaço também não
irrenunciável, irredutível e indecidível. Em outras era visível. Tal espaço é como a razão para Kant:
palavras, os indivíduos reivindicavam o reconhe- é o início do tempo, no sentido de que o presente
cimento do caráter originário de sua individuali- começa sempre a partir daquele tempo, daquele
dade, isto é, reivindicavam que suas expectativas ponto, daquele lugar, que justamente por isso é
em relação ao modo como a política tratava seus razão, não apenas lugar da razão. É a razão do
espaços originários pudessem ser avaliadas e, se velho iluminismo que se determina a partir de si
reconhecidas como legítimas e violadas, pode- e que fala somente sobre si mesma. O espaço é
riam ser afirmadas. a razão: é o caso de se perguntar se o mesmo é
Tratava-se de reconhecer que o ordenamento diferente ou o diferente é o mesmo, se “the same
jurídico e político apoiavam-se em fundamentos is different or the different is the same?”
que não podem ser modificados, de rigidez infle- A origem dos direitos encontra-se na razão; a
xível e conteúdos que legitimavam somente pelo razão é, não deve ser. É o limite, isto é, o início,
fato de que puderam ser formulados. Não importa mas também o fim; é o tempo que não possui
se em tais ordenamentos se expressa a racionalida- tempo. Não pode, portanto, ser medida: a razão
de da razão e se, nesse sentido, eles são herança é imponderável. Não tem peso. Não pode ser
moderna do velho jusnaturalismo ou se nascem do sopesada ou valorada. A razão é a medida de si
poder que se reconhece como constituinte, como mesma. Para utilizar uma frase famosa, podemos
fundamento de si mesmo. Em qualquer forma de dizer que a razão age como “qualquer coisa que
legitimação, a organização político-jurídica do estava dentro do sistema, sai do sistema e atua so-
Estado devia encontrar limites ao seu agir tanto bre o sistema, como se estivesse fora do sistema”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
124

(Hofstetter). Mas, nesse caso, a razão é o sistema. igualdade e dos direitos”. Por fim, citando outro
É a razão dos direitos fundamentais que supera e historiador do Direito, ele concluía que, agora, “a
domina qualquer outra. luta do direito (por meio do direito) compreendia
Essa democracia chama-se “democracia cons- o juiz entre os seus protagonistas. Em nome do
titucional” e o Estado que a organiza, “Estado nexo entre direitos, democracia e constituição,
constitucional”. Essa democracia representa uma se apresenta um juiz protagonista; um juiz que
formação evolutiva na semântica da democracia se coloca como um policy maker, convocado a
moderna: o que a caracteriza como democracia realizar os direitos constitucionalmente garan-
não é mais somente a forma da participação po- tidos, orientando-se segundo princípios ética e
lítica, mas o fato de que essa participação se rea­ politicamente desafiadores”.
liza na forma do exercício de poder de controle Na forma da democracia, realizou-se uma evo-
das decisões políticas, as quais não se exprimem lução profunda no sentido de que os conflitos,
apenas através do consenso, mas de decisões de antes percebidos como políticos, passaram a ser
natureza jurídica, que avaliam o respeito ou a vivenciados e tratados como jurídicos. A mesma
violação aos direitos originários dos indivíduos ou situação vale para o significado das pretensões
aos poderes das organizações individuais. Uma dos indivíduos contra o Estado: se, antes, possuía
vez que os direitos originários exprimem condi- o caráter exclusivo das reivindicações políticas,
ções constitutivas de possibilidade de uma ordem agora se reveste do selo de relevância jurídica.
democrática, seu respeito ou violação afetam a A reivindicação adquire, assim, o caráter de pre-
forma da própria ordem. Na democracia consti- tensão provida de legitimidade jurídica, digna de
tucional, expectativas podem ser afirmadas como proteção jurídica, pois ancorada na constituição
pretensões se encontram sua legitimidade no sen- e, portanto, constitucionalmente garantida.
timento de sentido originário da constituição. O nexo entre democracia e constituição se
explicaria, todavia, também por motivos estri-
IV. tamente ligados à forma do tratamento político
Há poucos anos, um historiador do direito ita- dos conflitos. Hoje, a política se encontra cada
liano escreveu que “a atuação constitucional, isto vez mais indisponível a confrontar diretamente
é, a democratização da sociedade e a realização questões – como se diz – eticamente desafiado-
dos direitos, encontra na magistratura um novo ras, questões em relação às quais não se pode
protagonista. Com isso, muda a concepção da avaliar quão elevado é o risco do consenso. Por
interpretação jurídica: não se trata mais de uma esse motivo, a política teria cedido o espaço ao
atividade técnica [o que foi sempre uma mentira], direito, ao juízo dos magistrados, que não podem
de uma dedução mecânica ou silogística, mas de recorrer à boca da lei, mas sim à reserva de cer-
escolhas, ponderação de interesses, referência a teza fixada na constituição. Diante do caso a ser
valores e a princípios políticos (lato sensu)”. Nesse decidido, tal juiz não pode recorrer à ratio do fato
sentido, continuava o mesmo autor, por oposição ou da norma, como pretendia a hermenêutica
à resistência dos tradicionalistas, que defendem positivista. Ele não mais funciona como “válvula
que a função dos juízes deve ser o papel apolítico de fechamento do sistema”, pois o sistema não
de um terceiro desinteressado e neutro, que se pode mais ser fechado em razão de um simples
encontra distanciado do conflito a ser decidido, reconhecimento da norma e do fato. O juiz deve
os inovadores afirmam que “a atuação do juiz recorrer a uma outra ratio, uma ratio universal,
possui (também) uma dimensão valorativa e, de não específica, não petrificada em sua singulari-
todo modo, encontra na constituição seu ponto dade, a uma fonte de sentido inesgotável, isto é,
de força. Justamente porque o juiz olha para a à razão ou à sedimentação jurídico-política de
constituição como seu critério basilar, deve con- sua universalização, a constituição.
tribuir para a modificação do ordenamento exis- Segundo os historiadores do direito e os críti-
tente por meio de uma crescente realização da cos da hermenêutica juspositivista, existe ainda
série
Cadernos
do CEJ 125

outro motivo que explica e justifica a transfigu- legislativo (em nossas palavras, o direito) deve
ração da função do juiz. Trata-se do caráter da se justificar de forma mais exigente. A referência
normatização. Na atual configuração dos orde- à autoridade e ao procedimento é insuficiente:
namentos jurídicos, os velhos códigos não ocu- requer-se sempre um controle de conteúdo. Esse
pam mais o lugar central e proeminente que pos­ Estado constitucional pressupõe um “incremento
suíam até a primeira metade do século passado: em relação à tarefa justificativa dos órgãos pú-
produziu-se uma grande quantidade de normas blicos e, portanto, uma maior demanda por ar-
heterogêneas, de normas relativas a direitos so- gumentação jurídica [...]. Na realidade, o ideal
ciais, ambientais, coletivos, de seguridade social do Estado constitucional (o ponto culminante do
e supranacionais. Toda essa normatização não Estado de Direito) supõe a submissão completa
seria mais subsidiária, marginal e de caráter ex- do poder ao direito, à razão”.
cepcional como no passado. Assim, segundo es-
ses observadores, o ordenamento não seria mais V.
fechado, reconduzido a uma unidade, não po- Segundo outro filósofo neoconstitucionalis-
dendo ser mais tratado do velho ponto de vista ta e Presidente emérito da Corte Constitucional
da completude. Italiana, Zagrebelsky, o modo de se argumentar
Nesse contexto, a perspectiva hermenêutica no direito constitucional assemelha-se ao estilo
que se chamava “concretização da constituição” de se argumentar no direito natural. Os argu-
em virtude da interpretação constitucional, não mentos e os princípios do direito natural foram
seria mais aceitável e foi superada pela transfor- incorporados nas constituições. No Estado cons-
mação do ordenamento, da forma da democra- titucional, os princípios desenvolvem uma função
cia, e da natureza dos conflitos das pretensões. correspondente àquela que, no Estado pré-cons-
Na conjuntura atual, para concluir ainda com as titucional, foi desempenhada pela dogmática ju-
palavras de Pietro Costa, “os direitos fundamen- rídica. De fato, as normas constitucionais são os
tais parecem ser forçados a descer do pedestal princípios. Conforme tal perspectiva, eles se colo-
de uma ratio indiscutível e evidente para serem cam entre os valores – que possuem uma função
arrastados a um perigoso, mas inevitável jogo de axiológica e referem-se a bens finais – e a regras
interpretações contrapostas e de conflitos entre – que possuam conteúdos determinados sem uma
visões incompatíveis de mundos”. alternativa de aplicação imediata. Os princípios,
Isso significa que interpretações contrapostas por outro lado, são “bens iniciais”, normas como
devem ser justificadas, que não se pode mais fazer qualquer outra, mas normas de máximo grau. Seu
referência a uma interpretação correta da consti- conteúdo deontológico excedente, como dizia
tuição, mas ao procedimento argumentativo em Betti, não é um excedente de caráter sintético,
que se funda uma decisão. A história constitucio- como se podia atribuir aos princípios gerais do
nal conclui-se com a teoria da argumentação. direito, que podiam ser derivados indutivamente
A plausibilidade da observação do historiador do ordenamento jurídico. Os princípios consti-
ecoa na voz dos neófitos. Basta um para compre- tucionais possuem função construtiva e desen-
ender todos: “assim como o Estado constitucional volvem uma função intermediária entre caso e
enquanto fenômeno histórico é inegavelmente direito. São axiomas do ordenamento jurídico:
ligado ao crescente desenvolvimento da prática “afirmam uma razão que, nos casos em que se
argumentativa nos ordenamentos jurídicos con- pode recorrer a um princípio, conduz a uma di-
temporâneos, o constitucionalismo enquanto teo- reção, sem, todavia, indicar qual específica ação
ria é o núcleo de uma nova concepção de direito ou decisão é necessária para o caso particular”.
que, na minha opinião, não se encaixa nos mol- Os princípios são normas sem fattispecie normativa
des do positivismo jurídico, pois confere especial predeterminada e com prescrição genérica. Essa é
ênfase ao direito como prática argumentativa”. E sua diferença em relação às normas que se cha-
para concluir: no Estado constitucional, o poder mam regras.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
126

O direito constitucional moderno realiza uma ticular: age como um medium entre o valor e a
transformação genética que resulta na centrali- regra. No plano teórico, abre-se ao valor; no prá-
dade dos princípios: “entendido como imperativo tico, à regra. Por meio dos princípios, continua
de adequação às situações concretas (igualdade- Zagrebelsky, o mundo dos valores abre-se para o
-diferenciação), o princípio da igualdade” nega o direito e o direito abre-se aos valores. Pense-se,
caráter geral e abstrato da regra, a qual conserva por exemplo, no controle de constitucionalidade:
imanente a função de realizar a “igualdade-ho- as regras são confrontadas com os princípios que,
mologação”, pois trata a todos de maneira indi- por se acharem nos confins do direito, podem
ferenciada, como sujeitos de uma lei abstrata. tocar naquilo que se encontra para além do di-
Nos casos em que se requer adequação e juí- reito positivo, que é pré-positivo e, portanto, que
zo, a regra geral recua a favor do princípio que, existe porque tem força, ecoa como sentido do
desse modo, proporciona uma personalização do agir coletivo.
direito: a lei pode ser mecanizada, aplicada em Dessa perspectiva Zagrebelsky conclui que
sequências; o princípio permite tratar “a pessoa “a constituição, formada por princípios, abre-se
como objeto não repetível”. a visões da vida social diretamente vigentes na
Para que possa operar, um princípio deve ser concepção que a sociedade tem sobre si mesma”.
concretizado, traduzido em uma fórmula que Assim, se é verdade que a sociedade se subordina
possua os contornos de uma fattispecie, refira-se ao direito, isso é possível somente sob a condição
a um fato e estabeleça um consequente. O legis- de que a normatividade jurídica não esteja em
lador pode concretizar um princípio; o juiz tam- contradição com “a representação de sentido por
bém. Este último, todavia, não cria direito, pois meio da qual a sociedade se identifica”. Pense-se,
o caso do qual ele se ocupa já se encontra sob por exemplo, em um princípio central da argu-
o manto do direito. Nesse sentido, o juiz deverá mentação jurídica, o princípio da razoabilidade.
raciocinar construtivamente sobre o caso à luz Ele não possui um fundamento de caráter deri-
dos princípios. vado; não se origina do princípio da igualdade.
Seu fundamento tem caráter
originário e consiste na “justi-
Interpretar a constituição; concretizá-la. Essas eram
ficação necessária da regra à
as preocupações que orientavam o interesse do
luz das categorias culturais de
constitucionalismo tradicional. Era o trabalho teórico ao qual os
sentido e valor que vigem so-
velhos pais dedicaram seus cuidados.
cialmente e são juridicamente
filtradas por meio das normas
O juiz, sabemos, não opera naturalmente de constitucionais de princípios. Adentra, com isso,
maneira silogística. Raciocina, isto é, argumenta no direito sem qualquer ‘positivação’ específica”.
conforme um procedimento que não é forma- Seguimos os argumentos de Zagrebelsky, pois,
lizável e é constituído por inferências do caso no panorama do neoconstitucionalismo, são con-
diante do princípio e de deduções do princípio siderados possuidores de completude, coerência
a partir do caso. Trata-se de uma imagem que e de uma incomparável riqueza quanto às refe-
Zagrebelsky deriva de imagens análogas expostas rências literárias. Nesse panorama, todavia, mise-
por Kaufmann há mais de quarenta anos. Com rável, encontram-se formulações terminológicas
consequências diversas, é claro. De fato, os prin- diferentes, ora contraditórias, aparentemente con-
cípios têm a função de possibilitar a “dedução a trapostas, ora caracterizadas por uma linguagem
partir do juízo de valor a respeito do caso a deci- que tem o sabor do terrorismo linguístico ou, na
dir, que é elemento da categorização do fato,” e verdade, ideológico. Em todo caso, o neopensa-
“a determinação da norma que se aplica ao caso mento contrapõe à dedução formalista do velho
conforme a premissa de tal juízo”. constitucionalismo a argumentação como cami-
O princípio adquire, assim, uma posição par- nho que leva à determinação material do conte-
série
Cadernos
do CEJ 127

údo dos princípios, como caminho que realiza o Nós, por outro lado, afirmamos, de modo mais
direito através da atuação dos mandamentos de realista que argumentação ou o que utiliza argu-
otimização, que seriam os próprios princípios e mentos para chegar a uma decisão é, na verdade,
que exigem que a definição do dever ser neles uma técnica da distinção por meio da qual se de-
contida se realize o máximo possível. Os princí- cide quais distinções distinguir, isto é, se decide
pios possuem pesos e devem ser valorados, con- o que e do que distinguir para depois justificar
frontados e sopesados. A argumentação possibilita por que se decidiu de tal modo, e não de outro.
a passagem de juízos relativos ao ser para juízos Se argumentar significa excluir e motivar, a ar-
relativos ao dever ser. Nesse sentido, permito-me gumentação é uma técnica da discriminação que
fazer ainda uma citação: “o ponto de contato entre inclui a si mesma no processo de sua ativação.
o direito constitucional e o direito natural consiste Isso significa que a argumentação se funda por si
na relevância atribuída à realidade”. mesma, em si mesma e através de si mesma. As
O sentido da argumentação por princípios a boas razões que excluem as más são construídas
partir da constituição é claro: busca fundar ra- na argumentação, já que não existem motivos
cionalmente a justiça normativa, dar um funda- bons ou ruins por si próprios. Ao argumentar, a
mento racional aos valores. Busca levar o direito argumentação justifica a eventual exclusão futura
a dizer a verdade. de bons motivos anteriores, motivando sua iden-
tidade com base em sua diferença, isto é, moti-
VI. vando sua mudança de opinião. Nesse sentido,
O aspecto preocupante relativo ao neopen- ela funciona como razão, pois sempre se funda
samento não consiste no fato de que ele traz à sobre si mesma. Veja-se que a argumentação não
luz uma veia de jusnaturalismo, uma veia de on- usa a razão, mas ela mesma é a razão. É – note-
tologia, ou que ele reinclui a moral no direito, -se – a razão de si mesma.
nem mesmo na série infeliz de falsas acusações Tudo isso acontece na comunicação, constrói
dirigidas a um positivismo inventado. Seu aspecto comunicação, é um percurso comunicativo: a
preocupante é o problema que uma tendência argumentação é a organização complexa de um
aparentemente inofensiva surja de uma filosofia complexo de observações que se expõe à obser-
da história ameaçadora. Há pouco tempo, no Rio vação de outras argumentações, ou seja, a outros
de Janeiro, duas ou três semanas atrás, em um percursos de discriminação.
dia que me parecia como qualquer outro, du- A argumentação permite ao sistema jurídi-
rante uma celebração plebiscitária ao seu pen- co observar-se em função de sua capacidade
samento, o teórico alemão dos princípios como de discriminar e conferir a si mesmo sentido na
mandamentos de otimização afirmou que aquilo forma da consistência de suas decisões. Como
que se deve alcançar é a “institucionalização da largamente explicado por Luhmann, os motivos
razão”. Declarações desse tipo evocam as primei- são distinções de um observador cujo efeito é
ras décadas do século breve. excluir. Diferentemente do que afirma o neopen-
Na última parte da minha apresentação, bus- samento, os princípios não possuem conteúdo.
carei explicar por que uma ingênua apoteose da Seu conteúdo origina-se como consequência de
argumentação e sua transformação em teoria do sua aplicação argumentativa. Antes disso, o prin-
direito e da justiça traz consigo uma grande men- cípio é semanticamente vazio, é a unidade da
tira e um retrocesso evolutivo. diferença daquilo a ser excluído e incluído pela
Segundo o neopensamento, a argumentação argumentação. Por meio dela, o princípio torna-
a partir da constituição sopesa; valora; pondera; -se um condensado semântico. Este condensado
é o uso da razão que encontra a própria razão no é o conceito imanente ao princípio, mas tal ima-
direito; diz a verdade; determina o sentido pelo nência é atribuída, não é uma disposição natural.
qual a sociedade descreve a própria identidade; Dito de outro modo: na medida em que a moti-
é a ponte que une ser e dever ser. vação dos motivos da argumentação é produzida
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
128

na circularidade e na aplicação da própria argu- parte da diferença é incluída? Quem pondera a


mentação no processo argumentativo, ou seja, diferença entre uma diferença e outra?
na medida em que ela se produz a si mesma, é Não pretendemos oferecer outro modelo de
sempre contingente, isto é, pode ser sempre di- argumentação, muito menos uma crítica que leve
versa do que é. Isso possibilita inferir a não moti- à aceitação ou à rejeição do neopensamento.
vação, a imotivabilidade de todos os motivos, isto Gostaríamos apenas de saber qual a sua função
é, o fato de que cada fundamento está privado e para que ele serve.
de fundamento. Uma vez que os critérios – que Para tanto, nos remetemos a algumas be-
motivam a escolha dos critérios sobre os quais líssimas página que um filósofo alemão, Odo
se constroem os motivos – devem ser motivados Marquard, em sua obra Schwierigkeiten mit der
no processo argumentativo, a circularidade da Geschichtsphilosophie, dedica à crítica de Hegel
argumentação sempre se refere a algo externo ao dever ser, ao vazio da filosofia kantiana e da
de si. É justamente esse observador externo que moral formalista, que seria a mesma moral dos
está em condições de afirmar qual distinção ele princípios e que, nesta apresentação, utilizaremos
utiliza para distinguir, qual a argumentação em adaptando-as às questões que nos interessam.
relação a qual outra. Esse observador não pode Em sua crítica ao dever ser kantiano, que pos-
ser uma teoria da argumentação, pois, como teo­ suía a mesma estrutura do neopensamento, Hegel
ria, ela mesma seria incluída na circularidade do afirmou “o universal no sentido da universalidade
argumentar. da razão é universal também no sentido... que
Ao não conseguir ver essa realidade da argu- ele... se representa como o presente e o real...
mentação e o paradoxo de sua construção, ao sem, para isso, perder sua natureza... Aquilo
não conseguir apreender por que a argumenta- que deve ser também está na realidade e aquilo
ção sempre funciona independentemente dos que somente deve ser sem ser não há verdade...
motivos sobre os quais se constrói, o neopensa- pois a razão é essa certeza de ter realidade” (das
mento a concebe como o procedimento que tor- Allgemeine im Sinne der Vernunftsallgemeinheit
na possível a epifania dos princípios. Ele sustenta ist auch allgemein in dem Sinne…..dass es.…sich
que justiça normativa, justiça da decisão e justiça als das Gegenwärtige und Wirkliche .…darstellt….
do fato sejam questões de princípios, matter of ohne darum seine Natur zu verlieren….Was sein
principles. Sustenta que os princípios se realizam soll, ist in der Tat auch, und was nur sein soll, ohne
por meio da argumentação e que, em seu atua- zu sein, hat keine Wahrheit…denn die Vernunft ist
lizar, se atualiza a razão. Para esse pensamento, eben diese Gewissheit, Realität zu haben). A tarefa
o processo é naturalmente gradual, deve ser oti- da Filosofia, escreveu Hegel, é a compreensão
mizado: as aquisições evolutivas não podem ser daquilo que é. A filosofia do dever ser, por outro
impostas, devem surgir da prática argumentativa. lado, considera aquilo que é como a faticidade
É óbvio que aquilo que surge da argumenta- (ver Kant, Heidegger, Habermas e o neopensa-
ção, vale dizer, a realidade dos princípios é a mento), como aquilo que é inevitável, indisponí-
realidade do Direito, mas no sentido específico vel, como aquilo a que se deve submeter. Para
que se deve atribuir a tal expressão. Assim, o que Hegel, todavia, a filosofia tem a função da me-
surge são diferenças, o resultado das discrimi- diação, da pesquisa dos meios para a realização
nações, as diferenças que se produzem como da liberdade e da igualdade da liberdade, que é
consequências da construção do concentrado a igualdade que confere a todos a possibilidade
semântico que, somente após essa fase, constitui da diferença. Ora, os fins que se relacionam com
o princípio. Os princípios são unidades, mas uni- a liberdade, isto é, os fins gerais, permanecem
dades de distinções: quando se aplicam e se cons- inalcançáveis enquanto faltarem os meios para a
troem, constroem-se junto com as diferenças. Os sua realização. Tais meios não são normas nem
princípios, em outras palavras, não são inocentes. princípios. Nas palavras de Hegel, “haver um
Eles discriminam. O que significa ponderar? Qual mero ser sem conceito, sem dever ser... e ser em
série
Cadernos
do CEJ 129

conformidade com isso, é, na verdade, uma apa- a forma da diferenciação da sociedade moder-
rência vazia” (ein blosses Sein ohne Begriff, ohne na realizou as condições sob as quais as razões
Sein-sollen….zu haben und ihm gemäss zu sein, ist daquilo que está excluído possam ser incluídas.
ein leeres Schein). Os princípios são esse mero ser Realizou as condições sob as quais o dever ser
sem conceito. não mais se encontre no vazio dos princípios,
A Filosofia do dever ser recusa-se a considerar mas na realidade da diferença que cria diferença
que os fins universais dependem das condições que a argumentação exclui, pois não a considera
históricas da sua mediação. Com isso, ela mente confiável e a entrega ao dever ser. À filosofia da
e produz regressão, retrocesso. “Na própria rea- história da exclusão, Hegel opunha a inclusão da
lidade”, escrevera Hegel em sua obra, A ciência história na filosofia, a racionalidade daquilo que
da lógica, “a racionalidade e a lei não vivem em é, do presente que não deve ser, simplesmente
condições tão tristes de dever apenas ser” (in porque é. Tal presente já realizou as condições da
der Wirklichkeit selbst steht es nicht so traurig um inclusão universal, daquela liberdade da igualda-
Vernunftigkeit und Gesetz, dass sie nur sein sollten). de que vê a razoabilidade na inclusão das muitas
A racionalidade a que Hegel se refere é o presen- razões, de todas as razões, não daquela do dever
te, que, em sua determinação histórica, realizou ser dos princípios vazios, não daquela razão que
as condições da liberdade igual que torna possí- alguém queria institucionalizar.
vel a diferença. Em outras palavras: a sociedade O presente que a sociedade alcançou não so-
moderna realizou as condições sob as quais a pesa o imponderável, não lega ao futuro o que já
racionalidade das diversas razões pode subordi- exige reconhecimento, pois sabe que a sociedade
nar a racionalidade da única razão: a razão dos já atingiu níveis que viabilizam a inclusão e torna
princípios que devem somente ser (die nur sein a exclusão um delito.
sollen) e que, por essa razão, não mostram o que Essa sociedade reconhecerá a universalidade
excluem e contam com a inclusão no futuro, ou real das suas razões, poderá realizar a congruência
melhor, no dever ser. entre todas as razões que existem quando aprender
O presente tem em si a força de romper com a ser presente a si mesma, isto é, quando aprender
o dever ser, isto é, de incluir o que está excluído: a viver sem as justificativas dos princípios.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
130

OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR


Professor da Universidade de São Paulo


Agradeço mais uma vez ao Professor Raffaele De Giorgi e o parabenizo pelo brilhantismo
da exposição.
Os temas colocados foram igualmente atualíssimos e nos revelam uma preocupação que merece
ser difundida quanto ao alcance das teorias argumentativas, especialmente pela maneira como o pro-
fessor colocou o tema nos colocando diante de um trilema de Münchhausen, um trilema de Agripa,
sobre uma argumentação que se fundamenta em si mesma, como critério de solução dos problemas.
Sem mais delongas, passarei a palavra ao último painelista de hoje, não sem registrar a presença
que muito nos honra e engrandece este painel pela manhã do Coordenador Científico deste evento,
principal responsável por esse importante acontecimento científico que é o Ministro Ricardo Villas
Bôas Cueva, que nos honra com sua presença aqui na digna assistência.
Passo a palavra ao Professor Marcus Faro de Castro, que é Doutor pela Universidade de Harvard,
nos Estados Unidos, Professor Titular da Universidade de Brasília e membro do Comitê Consultivo do
International Centre for Human Rights Democract Development do Canadá, foi membro da Câmara de
Assessoramento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal.”
série
Cadernos
do CEJ 131

a Revolução Francesa. No seu conhecido livro


sobre o antigo regime e a Revolução, em um
trecho ele diz o seguinte: “A revolução tomou o
mundo de surpresa, é verdade, mas não passou
de um complemento de um processo mais longo,
a conclusão repentina e violenta de uma obra
que já se havia mostrado sob os olhos de várias
gerações”. O que ele está dizendo aqui é que a
Revolução Francesa não foi prevista por ninguém
e de repente aconteceu, mas sinais de que ela iria
ocorrer já estavam presentes. Esse comentário
pode ser útil para entendermos o processo de
MARCUS FARO DE CASTRO transformação, ao qual as instituições e as ideias
Professor da Universidade de Brasília sobre elas estão atualmente submetidas, inclusive


no campo do Direito Constitucional.
Gostaria, inicialmente, de agradecer ao Sobre isso, vale a pena lembrar que, há menos
Ministro Ricardo Cueva pelo convite e organização de um ano, em junho do ano passado, diversas
do evento, cumprimento os membros da mesa, o cidades brasileiras tornaram-se palcos de inten-
próprio Dr. Otavio Luiz Rodrigues, Professor Celso sos protestos de rua. E, a partir desses protestos,
Campilongo, Professor Raffaele De Giorgi, saúdo as manifestações de rua espalharam-se por mui-
o Professor Fernando Araújo, que também está tos centros urbanos, aqui no Brasil, tomando de
presente na plateia, e agradeço a equipe, aqui, surpresa não só as autoridades, mas os partidos
do Conselho da Justiça Federal por tornar esse políticos, os observadores em geral e a impressa
evento bastante agradável com base na eficiência também. As notícias sobre esses protestos rapi-
das suas práticas administrativas. damente ganharam destaque na impressa global.
O tema sobre argumentação com base na Os manifestantes, como sabemos, protestavam
Constituição demanda alguma reflexão sobre contra várias situações práticas consolidadas,
quais são as concepções acerca da Constituição mas que a eles pareciam completamente injustas
que são aceitas pelos profissionais medianos do e inaceitáveis, como características do sistema
Direito no Brasil, a maioria? O que é Constituição de transporte público, incluindo preço da tarifa,
e o que é Direito Constitucional? As minhas consi- que afetam a mobilidade das pessoas nos cen-
derações serão uma resposta a essas indagações. tros urbanos, o padrão de gastos governamentais
Eu apresento aqui algumas ideias que es- com as obras para a Copa do Mundo de 2014 (e
tão num trabalho a ser publicado, pelo que estamos aguardando mais protestos), inúmeras
fui informado, agora em abril ainda, num li- deficiências no sistema de saúde pública, proble-
vro organizado pelo Professor Clemerson mas incluindo a má qualidade da educação, em
Merlin Cleve e o Professor Alexandre Freire, alguns casos regras sobre aposentadorias.
cujo título é Globalização, Democracia e Enfim, as reinvindicações que emergiram e
Direito Constituicional: Legados, Recebidos e continuam a emergir nesses protestos são, de cer-
Possibilidades de Mudança. São reflexões so- to modo, o equivalente ao que foram na época da
bre o significado da Constituição, do Direito Revolução Francesa os chamados cahiers de dolé-
Constitucional do ponto de vista tanto mais abs- rances, os cadernos de queixas, em que as popula-
trato quanto do ponto de vista prático no Brasil e ções das várias regiões do reino da França muitas
em outras partes do mundo hoje também. vezes, frequentemente, registraram reclamações
O meu ponto de partida é um comentário de sobre cobrança de impostos, vida ruim etc.
Alexis de Tocqueville, clássico autor, considera- Esses protestos, sabemos, não são uma pecu-
do inclusive um precursor da Sociologia, sobre liaridade da sociedade brasileira, são compará-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
132

veis a outros protestos que vêm ocorrendo em importante, novas tecnologias da informação e
diversas cidades do mundo, especialmente após comunicação, com o uso difundido pela rede
a queda, em 2008, do Banco de Investimentos mundial de computadores, que propicia a acele-
Lehman Brothers, em Nova York. A partir daí, ração do processo de comunicação, planejamen-
movimentos se espalharam nos Estados Unidos to e decisão, como também a integração global
e Europa, muitas vezes identificados com a pa- de mercados, especialmente os financeiros.
lavra occupy, que vem da expressão occupy Wall Há vários temas novos, que surgem constan-
Street, e teve várias ramificações pelo mundo in- temente, incluindo novos sistemas tecnológicos
teiro. Recentemente em países como Turquia, há e complexos de bens e serviços, a eles relaciona-
protestos em Istambul; Israel, protestos intensos dos, como redes eletrônicas de comunicação e
de rua contra políticas do governo Netanyahu; ação; os genomas humanos de animais e plantas;
Canadá, protestos de quebra-quebra muito sérios moedas eletrônicas; os créditos de carbono; acer-
de rua, na cidade de Montreal, contra políticas vo de biodiversidade; temas ligados à segurança
educacionais; e, Colômbia, protestos contra con- energética, à segurança alimentar. São todos te-
tratos de livre comércio, quebra-quebra na rua, mas que afloram e que apontam mais para a ideia
isso agora, no ano passado; no Chile, inúmeros de governança global do que algo como Direito
protestos, especialmente na área de política edu- Constitucional, que é algo pequeno. O conjunto
cacional; Argentina e Peru têm sido palcos de desses processos a que estou me referindo adqui-
protestos comparáveis. riu o nome genérico de “globalização”.
Então, diante desse con-
texto, que é preciso reconhe-
[...] quais são as concepções acerca da Constituição que são aceitas
cer, cuja realidade é preciso
pelos profissionais medianos do Direito no Brasil, a maioria? O
reconhecer, lanço a pergun-
que é Constituição e o que é Direito Constitucional? As minhas
ta, com o olhar voltado para
considerações serão uma resposta a essas indagações.
o futuro, como devemos pen-
sar o papel do Direito, em es-
Isso tudo indica, para o observador mais ar- pecial o papel do Direito Constitucional no Brasil
guto, que as instituições construídas no pas- contemporâneo? O que devemos pensar sobre a
sado e legadas para as gerações mais recen- Constituição de 1988 e o seu direito, desde en-
tes não são mais aceitáveis, incluindo aí as tão acumulado, que completam agora mais de 25
Constituições e as Cartas de Direito, mas que anos sobre esses tópicos?
somente adquirem sentido prático e efetivo Acerca disso muitas ideias abstratas podem ser
com base no discurso normativo especializado ditas, muitas palavras altissonantes e principio-
de juristas e autoridades judiciais, ou seja, pes- logias bem organizadas. Infelizmente, na minha
soas como nós aqui, produtores e veneráveis opinião, o Direito brasileiro vive disso hoje, mas
guardiãos do “Direito Constitucional”. deve-se admitir, sobretudo, que uma Constituição
Quero dizer, com isso, que há uma crise no vale mais pelo que significa, em termos práticos,
modo de organização da sociedade mundo afora, no plano vivo das instituições das políticas pú-
uma crise de múltiplas dimensões, política, eco- blicas concretas do que no discurso abstrato e
nômica, social, e também jurídica, há um debate frequentemente vazio de muitos operadores do
global hoje sobre isso. E essa crise resulta do fato Direito, e muitos deles venerados pela profissão
de que os fundamentos utilizados por autoridades de juristas, advogados, juízes etc.
para estabelecer ou manejar estruturas políticas, O que proponho é refletir sobre alguns motivos,
econômicas e jurídicas flagrantemente envelhe- sobre por que há um distanciamento grande entre
ceram. Além disso, é preciso observar que um ce- o que ocorre na vida em sociedade e os conteú-
nário diferente tem-se mostrado aos nossos olhos, dos do Direito Constitucional brasileiro. Procuro
em que se tornam presentes, de maneira muito explorar algumas ideias que são úteis para caracte-
série
Cadernos
do CEJ 133

rizar esse distanciamento e procuro sugerir como considero, do ensino jurídico brasileiro. Quem fa-
devemos pensar sobre as possibilidades de dimi- lava de Constituição no passado eram os filósofos
nuir a distância entre o discurso normativo, sobre da política, e não os juristas. Então, muito antes
a Constituição e a experiência política, econômica de existir o direito das Constituições existiam re-
e social concreta da vida dos cidadãos. flexões e prescrições dos filósofos a respeito das
Então, o que vou focalizar mais a seguir são o Constituições políticas.
que designo como legados recebidos do Direito Então, até o século XVIII, o repertório discursi-
Constitucional e, em seguida, algumas sugestões vo dos governantes incluía as doutrinas religiosas,
sobre inovações possíveis. Tanto a avaliação des- vários governantes reivindicavam autoridade reli-
ses legados recebidos quanto sugestões para al- giosa, o que só se resolveu com a paz de Vestfália,
gumas inovações se organizam em torno do tema de 1648, quando as guerras subsequentes a ela
de como promover uma abertura democrática no deixaram de ser guerras religiosas. Portanto, até
Direito Constitucional brasileiro. o século XVIII, o repertório discursivo dos gover-
Quanto aos legados recebidos, vou me referir nantes incluía as doutrinas religiosas e as filosó-
a dois tipos deles, recebidos no discurso sobre ficas sobre a política, mas não de um modo bem
o Direito Constitucional no Brasil, legados que articulado, o que, em seguida, tornou-se o Direito
chamo por absorção e os legados por omissão. É Constitucional nas mãos de juristas.
preciso, a meu ver, que algumas preconcepções A partir daí é possível perceber algo que
mais arraigadas na cultura média do profissional usual­m ente não é ressaltado nos manuais jurí-
da área jurídica a respeito da Constituição sejam dicos. Trata-se do fato de que, na sua formação,
ultrapassadas. Nesse sentido, quem quer que de- o Direito Constitucional absorveu, por escolha
seje promover o avanço do Direito Constitucional dos seus artífices juristas, algumas ideias da filo-
do presente, que é constantemente e intensamen- sofia política, que foram tomadas como legados
te instado a se lançar sobre o futuro, deve come- recebidos. Nesse processo, algumas ideias foram
çar por entender que diversas ideias do Direito importadas para o discurso jurídico, permane-
Constitucional com que hoje trabalham os juristas cendo outras marginalizadas.
foram legadas pelo passado e merecem ser supe- Os primeiros eram ideias importadas, os lega-
radas. Um ponto a partir do qual é conveniente dos por absorção; por outro lado, formaram-se
iniciar uma reflexão crítica sobre tal legado e so- legados por falhas dos juristas em reagir a mu-
bre a maneira como ele foi tratado e adaptado danças empíricas importantes, e mais no cam-
advém do que nós devemos reconhecer como po do Direito Constitucional do que, por exem-
“objeto nuclear do Direito Constitucional”. plo, comparativamente, no campo do Direito
E qual o objeto nuclear do Direito Administrativo brasileiro.
Constitucional? É a constituição política, que é Entendo que algumas construções intelec­tuais
distinta da constituição jurídica. A constituição do Direito das Constituições representam um fe-
jurídica é um conjunto de representações inte- chamento conceitual do Direito Constitucional e
lectuais sobre o que a constituição política é, e obstaculizam a democratização do modo de rea-
há um distanciamento entre uma coisa e outra. lização da Constituição. Sobre esse fechamento
A constituição política é um conjunto de institui- constitucional, é preciso considerar o seguinte:
ções que formam a organização política daquilo a Europa é o berço das nossas instituições do
que nós chamamos Estado, e é uma tradução das ocidente, de um modo geral, então, no início, no
palavras polis, palavra grega, e civitas, do latim. processo de mudança institucional da Europa, na
Bom, não podemos ignorar que sobre a cons- era cristã, observar-se que, em um primeiro mo-
tituição política, por muitos e muitos séculos, dis- mento, os juristas, trabalhando em apoio aos es-
cursou e refletiu a filosofia política, nem existia tadistas, contentaram-se com o Direito Civil (pois
direito sobre a constituição na antiguidade nem não existia o Direito Constitucional no continente
na idade média, a rigor. Isso é uma distorção, europeu), e com o common law, na Inglaterra.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
134

Mas, no século XIX, as sínteses intelectuais des- Uma das percepções filosóficas mais impor-
ses direitos (e pode-se tomar como referência o tantes incorporadas ao discurso dos Juristas foi
Código Civil e o Código Civil de Napoleão, de a da separação dos poderes, elaborada inicial-
1804 e os Commentaries on The Laws of England, mente por John Locke, no século XVII e, depois,
Comentários sobre o Direito da Inglaterra no refundida por Montesquieu. Essa reelaboração
século XVIII, de William Blackstone, e também, da doutrina de Locke por Montesquieu pratica-
logo em seguida, o Código Civil alemão, fruto da mente não é discutida; nunca vi num livro de
jurisprudência dos conceitos) logo se tornaram Direito Constitucional. A versão de Locke é as-
insuficientes, levando os governantes a procu- sentada sobre o pressuposto da existência de uma
rar por alternativas. Os juristas, em alguns casos, normatividade superior. O Professor De Giorgi
apressaram-se em oferecer versões e adaptações falava sobre jusnaturalismo, era essa a base da
jurídicas de doutrinas que os filósofos da política argumentação de Locke, na forma do direito na-
haviam originalmente elaborado. O trabalho de tural, portanto.
recepção e adaptação das ideias realizado pelos A noção de normatividade superior foi carac-
juristas deu origem ao Direito Constitucional pro- terística de todas as versões de Direito natural, e,
priamente dito. entre os séculos XVII e XVIII, alimentou os proje-
Uma das movimentações mais influentes nesse tos políticos, e é interessante perceber isso, tanto
sentido ocorreu na segunda metade do século liberais quanto do despotismo esclarecido. Então,
XIX. Nos Estados Unidos, no julgamento do fa- o Direito natural não é algo que inerentemente
moso caso Marbury versus Madison, de 1803, por- favorece a liberdade; quando incorporado ao cri-
tanto antes do debate sobre o Direito do Estado, tério caracterizador, como critério caracterizador
a Suprema Corte dos Estados Unidos tinha posto da atividade do parlamento, a doutrina da separa-
em marcha um processo prático de produção ção dos poderes, na versão de Locke, dá origem
jurisprudencial de um direito ao estilo do com- ao princípio da superioridade da lei, entendida
mon law sobre o conteúdo da constituição con- como fruto do poder de legislar da atividade par-
feccionada pelos federalistas algumas décadas lamentar, sobre outros atos de autoridade.
antes. Tem-se uma elaboração jurídica da dou- Alternativamente, quando a normatividade
trina dos gabinetes e bibliotecas, inicialmente, na superior é atribuída aos atos do Estado como um
Alemanha e outra prática nos Estados Unidos. Por todo, sem diferenciação funcional, o resultado são
que 1803? Porque foi somente com essa decisão as doutrinas constitucionais sobre as quais a supe-
que a Suprema Corte dos Estados Unidos passa rioridade normativa é atribuída ao soberano ou
a participar ativamente do processo de mudança à própria ideia abstrata e formal de Constituição;
institucional de discussão das bases normativas isso corresponde à noção de supremacia da
que são o fundamento para a organização da so- Constituição presente nos manuais dos juristas.
ciedade nos Estados Unidos da América. Essa última alternativa doutrinária, a supre-
Então, foi sobretudo em torno desses dois po- macia da Constituição, foi a preferida por vários
los de emanação discursiva sobre a Constituição juristas que se dedicaram a desenvolver o Direito
Política, um estadiuniense e outro alemão, que Constitucional; essa escolha exclui outras, esse em-
rapidamente foram-se cristalizando em várias préstimo feito a Locke e adaptado da maneira que
partes do mundo, em decorrência de proces- acabei de escrever. Uma doutrina da qual os juristas
sos caracterizados pelo que o Professor Danken poderiam ter lançado mão foi a de Montesquieu.
Kennedy, da Universidade de Harward, carac- Nesse autor, é oferecida uma concepção de
terizou como “globalizações do Direito”, en- separação de poderes alternativa de Locke, em
tão foram se cristalizando em várias partes do alguns aspectos certamente mais interessante do
mundo as doutrinas propriamente jurídicas so- que ela. Na doutrina de Montesquieu sobre a se-
bre as Constituições conhecidas como “Direito paração dos poderes, são suprimidas as noções
Constitucional”. de superioridade normativa, encarnada ou insti-
série
Cadernos
do CEJ 135

tucionalizada, sendo a concepção de espírito, no interesses emergentes claramente postos com


caso, o “Espírito das Leis”, em um espírito em mo- o crescimento da democracia no século XIX.
vimento mais fundamental. Assim, na formulação Porém, as energias que vieram a formar as ondas
de Montesquieu, ganha espaço a ideia de tensão de interesses emergentes sobre a democracia em
estrutural entre as autoridades, a famosa frase expansão, na linguagem dos juristas – aqui temos
“o poder para o poder”, que foi depois designa- um segundo fechamento conceitual, (o primeiro
do como “sistema de freios e contrapesos”. E, fechamento conceitual é a noção da separação
na ausência de uma normatividade superior que de poderes derivada e adaptada de Locke, com
define hierarquias institucionais, esse mecanismo exclusão daquela de Montesquieu), que é tratar
dos freios e contrapesos cria uma dinâmica de as ondas de interesses emergentes da democracia
interação política entre as autoridades do Estado em expansão de maneira referida na linguagem
em constante movimento. Espírito e movimento dos juristas à noção de Direito subjetivo incor-
constantes são, aí, irmãos gêmeos e conduzem, porada ao Direito das Constituições. Isso corres-
na ausência de hierarquias institucionais que su- pondeu a um fechamento constitucional, como
bordinem constitucionalmente um poder a ou- vou explicar agora.
tro, a busca de concepções
do bem compatíveis com o
sentimento da liberdade de
cada um. E qual o objeto nuclear do Direito Constitucional? É a
É muito interessan- constituição política, que é distinta da constituição jurídica.
te perceber que, quando
Montesquieu discorre sobre
separação de poderes, ele
está olhando, em primeiro lugar, empiricamen- Outra concepção adaptada do discurso dos
te, para a Constituição da Inglaterra, e enxer- filósofos dos séculos XVII e XVIII para o Direito
ga, ali, uma Constituição cujo objetivo, cuja Constitucional foi a própria noção de Direito no
finalidade é a promoção da liberdade política; sentido de Direito subjetivo oferecida em substi-
da liberdade de cada um. A liberdade política tuição ao conceito mais antigo de virtude, com a
Montesquieu define como a condição na qual diferença de que os antigos falavam que virtude
um indivíduo não tem medo do outro, ou seja, pertence a alguns, e o seu equivalente moderno
é capaz de ter uma vida em sociedade tran- pertence a todos igualmente. Os direitos subjetivos
quila, sem tensões extremamente importantes. foram rapidamente considerados elementos inte-
Então, a doutrina de Montesquieu, ao valo- grantes das Constituições Jurídicas, só que esse
rizar o sentimento de liberdade de cada um, é referencial normativo, o Direito subjetivo, desde
mais radicalmente republicana ou democrática o início foi concebido como um conceito que, sob
do que a ideia de supremacia da Constituição, qualquer ponto de vista, já existe pronto, comple-
que representa um fechamento conceitual, e não to, inalterado. Daí resultaram tantas concepções
uma abertura democrática das possibilidades de formalistas de Direito subjetivo de base jusnatura-
se imaginar e organizar a Constituição. O que é lista, como as subsequentes noções juspositivistas,
tomado em si como supremo tende a ser sub­ também formalistas, de Direito subjetivo.
traído ao debate democrático constantemente re- O fechamento conceitual das noções forma-
novado, evitando remodelagens potencialmente listas de Direito subjetivo, incluindo o Direito
infinitas da organização do comportamento social Constitucional, parece-me evidente. Sendo esses di-
advindo desse debate. reitos tratados como formas jurídicas com conteúdos
O sentimento de liberdade de cada um, sobre prontos, completos e inalteráveis, fica excluída a pos-
o qual se preocupou Montesquieu, viria ainda sibilidade da construção e reconstrução contínua,
a se expressar empiricamente como ondas de republicana desses conteúdos, mediante o debate
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
136

democrático como prática institucional caracteris-Unidos, a de procurar flexibilizar a noção de


ticamente conflitiva e reiterativa, capaz de alterar,
Direito subjetivo, que passaria a ser não mais
sempre que for conveniente, concepções normati- considerado como completo, pronto e inalte-
vas antigas sobres direitos para adotar novas. rado. O conteúdo do Direito, nesse sentido,
Essas doutrinas, ambas da supremacia da poderia variar em função da finalidade ou fim
Constituição dos direitos subjetivos completos e social de uma lei.
inalteráveis, tornaram-se importantes apoios dis- Mas os juristas não avançaram o suficiente
cursivos das atuações de tribunais em complemen- para mudar as concepções centrais do Direito
to ao direito civil e ao common law, em especial, Constitucional legadas pelo passado recente. Em
com a propagação da prática que ficou conhecida boa parte da doutrina, especialmente a continen-
como controle de constitucionalidade das leis, na tal europeia e as que sofreram mais intensamente
tradição alemã, ou constitutional review ou judicial
a sua influência, os dispositivos que articulavam
review, na versão estadunidense. os direitos sociais chegaram até mesmo a ser
reduzidos, após a Segunda
Guerra Mundial, à categoria
Em boa parte da doutrina [...] os dispositivos que articulavam de meras normas programá-
os direitos sociais chegaram até mesmo a ser reduzidos, após ticas de exequibilidade inde-
a Segunda Guerra Mundial, à categoria de meras normas finidamente postergada, sem
programáticas de exequibilidade indefinidamente postergada. que a postergação fosse con-
siderada contrária ao Direito
Constitucional.
Mesmo com o advento de ondas de interes- E o que fizeram os juristas? No lugar de extrair
se emergente sobre a democracia de expansão, consequências promissoras da possibilidade de
pouco motivou os juristas a tirar delas conse­ flexibilizar a noção de Direito subjetivo de ma-
quências que transformassem estruturalmente o neira a conectar o conteúdo dos direitos ao
Direito Constitucional. E é o que eu passo a tratar sentimento de liberdade de cada um, os juízes
em seguida, ao me referir às oportunidades per- acabaram escolhendo sobrepor a noção ante-
didas, ou seja, ao legado por omissão. rior do Direito subjetivo pronto, completo e
Já me referi à ampliação formal da cidadania, inalterável, o que podemos considerar como
e isso ocorreu no mundo inteiro, a partir de 1830, um verdadeiro jogo de cena neoformalista,
com a primeira reforma do parlamento inglês, que é a ponderação de valores, enquanto
chamada great reform, com a ampliação do sufrá- o modo de aplicação de princípios abstra-
gio para além daquela concepção liberal inicial tos que guardam, com base em abstrações
que era equivalente à da democracia censitária. extremas, a qualidade de superioridade ou
A ampliação do sufrágio implicou que as ondas de intangibilidade normativa.
interesse emergente fossem empiricamente, isto é, Daí por que passou a fazer parte do Direito
mesmo na ausência de doutrinas ou normas jurídi- Constitucional de um país como o Brasil a visão
cas elaboradas, se constitucionalizando no plano segundo a qual (citação de Paulo Bonavides): “A
dos fatos. E a essa mudança, de início, os juristas teoria dos princípios se converteu no coração das
procuraram reagir proativamente, emendando o constituições; o princípio da proporcionalidade é
direito das constituições, a fim de que ao lado dos hoje axioma do Direito Constitucional, corolário da
direitos constitucionais individuais, passassem a constitucional e cânone do Estado de Direito”, ou
constar também os direitos sociais. seja, o princípio e a ponderação de valores são tudo.
E é preciso prestar atenção ao seguinte: que, Passando para um tópico um pouco diferente,
diante da ascensão dos direitos sociais, a reação com essa formulação, ficou muito difícil orientar
dos juristas foi, num primeiro momento, desde o Direito Constitucional para uma finalidade que
a primeira metade do século XX, nos Estados o Direito Administrativo abraçou, que foi a pro-
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Cadernos
do CEJ 137

teção dos investimentos locais, proposição aos A consequência da inércia dos juristas foi que
internacionais. A proteção aos investimentos lo- a realização das constituições passou a ficar, em
cais falhava, na medida em que persistia, quer boa parte, ao sabor da chamada “haut finance”,
dizer, o que eu estou tratando aqui é dos direitos as altas finanças, a elite das finanças mundiais.
individuais, porque a base do investimento pro- O funding loan, o empréstimo de financiamento
dutivo local é o direito individual, e não social, ou tomado por Campos Sales, em 1898, permanece
seja, a crise se refere não só aos direitos sociais, para o Brasil um caso emblemático de adesão do
mas também aos individuais. Então, a proteção País a esquema de finanças internacionais que
aos direitos individuais de investidores locais, por eram deletérios a interesses econômicos locais.
oposição aos internacionais, também falhava na Então, houve dupla limitação. Por um lado,
medida em que persistia um padrão de desenvol- houve a limitação consistente na falha em dar
vimento econômico expressivamente menor em efetividade aos direitos individuais de investido-
países como o Brasil, em comparação com o de res locais, com base no Direito Constitucional;
nações mais ricas do norte global. por outro lado, houve também a incapacidade
Há contribuições jurídicas úteis à constru- de dar aos direitos sociais um grau de efetivi-
ção de um ambiente institucional favorecedor dade prática capaz de contribuir para superar o
do crescimento econômico, impulsionadas por subconsumo que se expressa na pobreza e outras
investimentos locais. Elas chegaram a ser feitas, carências materiais.
como eu já disse, por administrativistas brasilei- Uma conclusão parcial, que eu queria tirar é
ros, mas não, ou ao menos não claramente, pe- a seguinte: com origem nas tradições alemã e
los constitucionalistas, excepcionadas as soluções estadunidense de discurso jurídico sobre a cons-
constitucionais autoritárias e a chamada “moder- tituição, o Direito Constitucional brasileiro conta
nização conservadora” a elas associadas. Então, hoje com duas principais visões de fundo sobre o
o Direito Constitucional da ditatura apoiou mais que a Constituição é e como deve ser realizada
paradoxalmente o desenvolvimento econômico na prática. Essas visões de fundo correspondem
do que a anterior. respectivamente às seguintes: primeiro, é um
Quanto à dificuldade de impulsionar o de- projeto germanizante, que procura reproduzir e
senvolvimento, deve-se observar que, mais ou adaptar, na medida do possível no Brasil, cons-
menos em paralelo ao processo de mudança ins- truções dogmáticas do Direito Constitucional ale-
titucional a que eu me referi, da expansão do mão positivado e seus apoios doutrinários. Não
sufrágio, um segundo processo de mudança que preciso citar, mas todos conhecem protagonistas
afetou o modo de realização prática das constitui- desse projeto aqui no Brasil.
ções foi a expansão internacional de fluxos finan- Em segundo lugar, um projeto mais eclético
ceiros, desde o final do século XIX, sob a forma aderente ao chamado neoconstitucionalismo já
do padrão ouro internacional. Isso é uma coisa referido aqui, com inspiração forte em juristas
que pouquíssimos constitucionalistas discutem, que, sob a liderança de Ronald Dworkin e seu
porém, o padrão constitucional pode tranquila- foco na produção jurisprudencial da Suprema
mente ser considerado um componente da cons- Corte dos Estados Unidos (ele trabalha com a
tituição política de “n” países, inclusive do Brasil, jurisprudência da Suprema Corte americana) e
no final do século XIX e início do século XX. de Robert Alexy atribuem à noção de Direitos
Então, a essa mudança, ao aparecimento do referidos a princípios abstratos e à ponderação
padrão único internacional os juristas não rea- entre eles um papel chave na determinação do
giram proativamente em benefício da institucio- significado das normas nacionais, ou seja, ao jogo
nalização de interesses emergentes, pelo contrá- de cena neoformalista. Eles podem se projetar
rio, o que o Governo brasileiro fez? Na República internacionalmente por meio de algo que não
Velha criou a chamada “política de valorização citei, o Projeto de Constitucionalização do Direito
do café” para conservar a ordem estabelecida. Internacional, que hoje tem algum espaço por
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
138

oposição a outras propostas, por exemplo, que grantes são menos favorecidos na admissão em
defendem plurarismo ou que defendem a frag- escolas que levam ao ensino superior. Essa cir-
mentação do Direito Internacional etc. Então, cunstância não parece refletida nos celebrados
essas duas vertentes estão presentes e, pode- princípios constitucionais correspondentes ao di-
mos, inclusive, identificar ministros do Supremo reito à igualdade, à dignidade ou o direito ao livre
Tribunal Federal, que pertencem a uma e outra. desenvolvimento da personalidade humana, que
De um modo geral, apoiado nessas duas versões são essenciais ao Direito Constitucional alemão.
de fundo, que fazem parte do que Duncan Kennedy De modo semelhante, dificilmente, poderia
chamou de “terceira globalização do Direito”, o admitir-se, que os direitos fundamentais de boa
Direito da Constituição Brasileira de 1988 tem-se parte da população brasileira estão assegurados
tornado receptáculo, a plataforma de convergên- na prática, porque, senão, as multidões não esta-
cia de todo legado de formação do discurso con- riam indo às ruas para reclamar decência e efetivi-
servador que ressaltei há pouco. Conservador pelo dade em serviços como, transporte, educação etc.
menos em dois aspectos. Primeiro, de um lado, pelo De qualquer modo, a relação entre as repre-
fato de o Direito da Constituição incorporar o fecha- sentações intelectuais do Direito Constitucional e
mento constitucional ao qual me referi há pouco, as instituições políticas de uma sociedade pode
afastando as possibilidades de promover uma aber- servir para gerar debates muito úteis para o jurista.
tura democrática do discurso normativo do Direito Quem pode contribuir para isso? Muitos autores.
Constitucional. De outro, por deixar de reagir pro- Tivemos grandes juristas que foram politólogos,
ativamente, a fim de promover inteligentemente a Raimundo Faro e Victor Nunes Leal, dois exem-
institucionalização de interesses locais emergentes plos. Hoje, quem estuda na faculdade de Direito
às modificações institucionais ocorridas no mundo, Victor Nunes Leal e Raimundo Faro. Ninguém.
que afetam modo e limites de muitas constituições, Então, não só abrir o Direito Constitucional
inclusive, a brasileira. para um diálogo interdisciplinar como Ciência
Como ir além desses legados conservadores? Política, Economia Política, Antropologia
Uma proposta é o jurista, o constitucionalista Política, Sociologia Política, todas essas discipli-
brasileiro tomar por objeto não a Constituição nas têm o que oferecer para o jurista do Direito
Jurídica apenas, mas a constituição jurídica em- Constitucional. Além disso, a filosofia moral e po-
pírica e os desafios éticos dela emanados. lítica aplicada, não a formalista, também, pode
As constituições e políticas, quando considera- oferecer contribuições. Primeira sugestão: tomar
das no plano de sua concretude empírica, revelam por objeto a Constituição política empírica, não
uma realidade bem mais complexa e variada do somente a jurídica e os desafios éticos dela ema-
que quando se tenta comprimir tal realidade e o nados; segunda sugestão seria descartar o apego
número de princípios abstratos. Assim, por exem- à doutrina clássica na separação de poderes.
plo, vou citar um caso da Alemanha, que sempre As pessoas, ao discutirem a separação de pode-
me chamou a atenção e nunca o vi comentado por res mesmo com base em Locke, esquecem que vem
nenhum constitucionalista brasileiro. A realidade acompanhada da defesa do direito reconhecido à
e dramas existenciais dos filhos de trabalhadores sociedade de remover o Governo, ou seja, o Poder
e imigrantes em um país como a Alemanha, mo- Legislativo, no caso da formação dele, sempre que
delo para muitos juristas brasileiros, por meio de este quebrar a confiança que o povo deposita nele.
pesquisa empírica, estatísticas publicadas etc. É Pouco ou nada aparece nos manuais de Direito
comprovado que eles são menos favorecidos na Constitucional sobre o que Locke focaliza quando
admissão em escolas, por oposição às outras no se refere ao Legislativo como um poder fiduciá-
sistema educacional alemão, que são direcionadas rio, quando o Legislativo age contra a confiança,
para levar o estudante às universidades. quebra a confiança que a sociedade deposita nele.
Assim, na Alemanha existem pesquisas que Diz Locke: “a sociedade tem direito de remover o
comprovam que os filhos de trabalhadores imi- Governo”, que é o Legislativo, no caso.
série
Cadernos
do CEJ 139

Além disso, a superioridade normativa como Em uma banca de mestrado onde sentei, havia
ressaltei há pouco, acabou gerando a noção de uma dissertação que tematizava efetividade dos
supremacia da Constituição, que se comunica em direitos sociais. O primeiro capítulo era “Teoria
intangibilidade normativa atribuída à jurisdição dos Direitos Fundamentais”. Pronto! Está tudo
constitucional e serve no plano das representa- resolvido aqui. Já tem a teoria pronta. Com base
ções individuais como sucedâneo da doutrina da em quem? Em Alexy. Então, não devem ser tra-
supremacia do parlamento. tados como entidades metafísicas nem como re-
Porém, a observação da realidade empírica ferenciais normativos unívocos imobilizados em
revela que o processo político da democracia se algum texto de Direito positivo, diante dos quais
nutre do conflito, é uma ideia que vem desde o formalismo dogmático etc. Nem tampouco de-
Maquiavel e das tensões institucionais, a qual está vem os direitos fundamentais ter seu conteúdo
presente em Montesquieu, o Poder para o Poder. construído por especulações idealizantes. Isso
A democracia se nutre do conflito e das tensões ocorre muito também e usualmente são frutos
interinstitucionais. Nesse sentido, os conflitos in- do pensamento inconsequente.
terburocráticos empiricamen-
te observáveis no âmbito do
Estado democrático, inclusive
[...] a relação entre as representações intelectuais do Direito
as contraposições e embates
Constitucional e as instituições políticas de uma sociedade
entre Poder Judiciário e outras
pode servir para gerar debates muito úteis para o jurista.
autoridades, são estudados com
frequência pela Ciência Política.
A Ciência Política brasileira deu
um salto para estudar esses fatos a partir dos anos 90. Muitos autores ligados ao pluralismo jurídico
Fui um dos partícipes do início dessa literatura, na acham que o Direito está na sociedade, a socieda-
época eu era professor de Ciência Política e comecei de vai resolver tudo, tudo o que vem da sociedade
a discutir a ideia de judicialização da política. é bom. Se pararmos para pensar, nem tudo que
Então, não é razoável que a doutrina jurídica vem da sociedade é bom, nem tudo que é privado
a respeito da Constituição continue presa a esse é inerentemente bom. As famílias, os sindicatos e as
preconceito, que é a doutrina clássica da separação empresas privadas estão cheios de males. Os con-
de poderes. Além disso, deve-se levar em conta o tratos privados fazem mal muitas vezes. Nem os tex-
aprofundamento das interdependências transna- tos das constituições jurídicas nem as especulações
cionais. Pulei essa parte do meu trabalho. Há uma idealizantes a respeito dos direitos fundamentais,
literatura que, digamos assim, está explodindo hoje ainda que bem intencionados, expressam o que
e que focaliza o que os autores chamam de “orde- são as tensões políticas e desafios práticos reais que
nação jurídica transnacional”, que aponta para um compõem a constituição política. No meu enten-
processo fragmentado, contraditório, acidentado dimento, deve-se considerar que os documentos
e muito distante do que cogita a literatura sobre a jurídicos, como cartas de direito e declarações de
constitucionalização do Direito Internacional. direitos humanos cumprem uma função não de dar
Finalmente, a terceira sugestão é passar a tratar as respostas, mas dêitica, ou seja, eles valem como
os direitos subjetivos como flexíveis. Os direitos indicações de condensações discursivas que sina-
subjetivos fundamentais não devem ser tratados lizam áreas de preocupação de muitas autoridades
como entidades metafísicas nem como referen- e parcelas importantes da opinião pública local e
ciais normativos unívocos imobilizados em algum global e representam muito mais um convite à ação
texto de Direito Positivo, diante dos quais o for- institucional criativa e construtiva do que um fun-
malismo dogmático assume a tarefa de detalhar a damento para uma decisão definitiva.
estrutura interna, os limites e os sistemas de direito Com essas três sugestões, encerro, agradecen-
fundamentais como se fossem coisas. do a atenção de todos.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
140

OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR


Professor da Universidade de São Paulo


Agradeço a conferência do Professor Marcus Faro, um acadêmico que tem desenvolvido
aqui na Universidade de Brasília estudos bastante originais sobre esses temas e que, mais uma vez,
nos demonstra a necessidade da abertura para novas visões do Direito Constitucional e a discussão
de seus dogmas estabelecidos acriticamente.
Agradeço aos Professores Celso Campilongo, Raffaele De Giorgio e Marcus Faro de Castro pelas
participações e o convite que me foi formulado pelo Professor e Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, à
equipe do Conselho da Justiça Federal e dos seguimentos judiciários, registrando também a satisfação
de ter presidido esta Mesa para uma assistência tão seleta, composta – e aqui faço uma homenagem
ao Professor Fernando Araújo – de altas individualidades, como se costuma falar em Portugal, em
relação ao nível de assistência que aqui temos.”
série
Cadernos
do CEJ 141

Ronaldo Porto Macedo Jr.; Ricardo Villas Bôas Cueva; Luiz Guilherme Marinoni; Fernando Araújo.

A Justificação das Decisões Judiciais

RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA


Ministro do Superior Tribunal de Justiça


É uma alegria estar aqui para esse painel do seminário Teoria da Decisão Judicial e, parti-
cularmente agora, com o meu amigo, Ronaldo Porto Macedo Junior, contemporâneo de faculdade de
Direito e da PET-Capes, na época, dirigida pelos Professores Tércio Sampaio Ferraz e José Eduardo,
contemporâneo também do Campilongo.
O Professor Ronaldo é pós-doutor pela King’s College of London e pela Yale Law School; é Procurador
de Justiça do Estado de São Paulo; Professor titular da USP há um mês. Tem um currículo invejável,
com várias publicações, um autor e um professor fantástico.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
142

dessa fase da interpretação judicial, notadamente


constitucional, mas não exclusivamente, muitas
vezes caracterizada como a farra dos princípios
ou – gosto de lembrar, de uma provocação muito
inteligente, feita por um colega de faculdade, o
Professor Carlos Ari Sundfeld, que escreveu um
artigo, publicado em uma coletânea que organi-
zei, em um evento sobre interpretações, que tem
o sugestivo nome de “Princípio é Preguiça”.
O que existe por trás desse discurso crítico, com
relação ao uso dos princípios? Fundamentalmente,
parece-me que essa é uma tônica comum a várias
RONALDO PORTO MACEDO JR. outras apresentações, inclusive do painel da manhã,
Professor da Fundação Getúlio Vargas – São Paulo a ideia de que, sob a rubrica ou sob o signo desse
novo momento principiológico da interpretação do


Direito, muitas vezes a tarefa de interpretação judi-
Gostaria de dizer que é um imenso pra- cial tem-se transformado em uma tarefa de alto grau
zer estar aqui presente e participar deste evento, de incerteza e que envolve a invocação de princípios
que tem sido um sucesso notável. E quero agra- genéricos. Este, muitas vezes, na prática cotidiana da
decer ao amigo Ricardo Villas Bôas Cueva, e, ao judicatura, apresentam-se como mecanismos que se
mesmo tempo, cumprimentá-lo pela organização, põem em substituição a uma análise mais detalhada,
assim como também, estender esses elogios e mais circunstanciada das regras jurídicas que esta-
agradecimentos a todos aqueles que participaram riam regulando uma situação concreta e que exigi-
diretamente da organização deste evento. riam, digamos, critérios mais seguros ou mais orien-
O tema sobre o qual vou falar tem um título tados em torno do princípio da certeza jurídica ou
um pouco mais restrito do que aquele que consta de uma preocupação com a certeza jurídica, e que
do programa. A minha intenção será falar sobre essa nova forma principiológica de compreensão do
um autor, Dworkin, Os Princípios e a Justificação Direito estaria por ameaçar.
das Decisões Judiciais. Quero justificar a forma O título da minha palestra envolve o nome
pela qual vou tratar desse tema. de um importante jurista americano, Ronald
Em primeiro lugar, acho que já foi objeto não só Dworkin, e que foi mencionado, com justa razão,
de menção, como de muita insistência da parte de como um dos autores, frequentemente, invoca-
diversos dos palestrantes, a importância do tema. dos como um dos grandes teóricos, senão dos
Eu não precisaria falar da importância do tema da principais formuladores, um dos mais influen-
decisão judicial para uma audiência formada por tes teóricos desse momento principiológico do
magistrados, predominantemente. Mas, acima de Direito. De alguma forma, para simplificar o argu-
tudo, a importância do momento que se vive, em mento, é comum vermos a referência do Dworkin
torno da forma pela qual se concebe o processo como se fosse uma espécie de grande paladino
de tomada de decisão judicial e, de maneira muito dos princípios ou da retórica dos princípios.
particular, o papel dos princípios – aquilo que o Junto dele, com muita frequência, de maneira
Professor Raffaele chamou de “pós-pensamento” particular, nos manuais de Direito Constitucional,
ou que vem consagrado, de maneira quase apo- encontramos algumas fórmulas quase que sinté-
logética, toda uma literatura englobada sobre a ticas, é o pensamento Dworkin/Alexy, como se
rubrica do neoconstitucionalismo. fossem a mesma coisa, como referências centrais
Isso também foi objeto de várias menções críti- desse novo momento. E mesmo autores, como o
cas da parte de outros palestrantes, sobre os exage- próprio Professor Barroso, o primeiro palestrante
ros que vêm acompanhados desse novo momento, deste seminário, fazem essa referência e quase
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Cadernos
do CEJ 143

homenagem ao Dworkin como um dos grandes Riggs versus Palmer, caso decidido pela Suprema
formuladores, na visão dele, do que ele, Ministro Corte do Estado de Nova York. Basicamente, era
Barroso, caracteriza como os fundamentos do ne- um caso em que um avô deixou uma herança
oconstitucionalismo. para o neto, e o neto mata o avô para receber
A meu ver, uma das razões históricas para isso a herança. E não havia uma regra que dissesse
está relacionada a um dos artigos mais famosos que aquele que agisse de forma torpe não seria
do Dworkin e talvez, sem risco de exagerar, um merecedor da herança. Em outras palavras, nós
dos artigos mais influentes dos últimos 40 anos, tínhamos uma regra que era clara que dizia que
pelo menos no mundo anglo-saxão, é o chamado o descendente herdaria no caso o neto, mas nós
“Modelo de Regras I”. A primeira versão é de tínhamos um princípio de que ninguém deve se
1967 e depois republicado no livro Levando os beneficiar da própria torpeza que estaria em con-
Direitos a Sério. flito, digamos, com o significado dessa regra pelo
Notadamente nesse artigo, que costuma ser a menos com a extensão dela, razão pela qual a
porta de entrada privilegiada para aqueles que Suprema Corte do Estado de Nova York enten-
querem entender o pensamento do Dworkin, ele deu que o princípio deveria prevalecer e deveria
faz uma afirmação importante – citada à exaustão ser considerado na decisão desse caso.
pelos manuais e por teses de direito constitucio- Denominado de “caso Elmer”, já que o her-
nal, que se produzem nas nossas faculdades de deiro se chamava Elmer, foi o caso referencial,
direito – de que há uma distinção lógica entre o paradigmático que o Dworkin tomou nesse artigo
que é um princípio e o que é uma regra. A regra para fazer um argumento que, a meu ver, foi mui-
funciona segundo o princípio do tudo ou nada, to mal compreendido por boa parte dos críticos
isto é, uma regra determina que dada conduta anglo-saxões de maneira geral, mas que ainda é
seja proibida ou permitida, e, por esse mesmo mal compreendido pela nossa literatura brasileira
motivo, se uma regra diz que algo é permitido, quando recepciona, digamos, as ideias do dele.
outra regra que dissesse que a mesma conduta E por quê? Porque, de alguma forma, o que se
é proibida estaria em contradição lógica e, por- entendeu sobre o que ele pretendia dizer nesse
tanto, apenas uma delas poderia ser válida ao argumento era que fundamentalmente princípios
mesmo tempo, regulando o mesmo fenômeno. morais compreendidos através do significado
Os princípios, segundo essa representação, convencional desses princípios – por exemplo, a
algo vulgarizada do pensamento do Dworkin, ideia de torpeza, alguém se beneficiar através de
não funcionariam segundo essa mesma gramáti- algo que fosse imoral – deveriam se sobrepor ao
ca do tudo ou nada, na medida em que, quando significado, ainda que expresso e claro, de uma
um princípio se sobrepõe, pela sua influência, no regra, aquela que dizia que o herdeiro neto de-
seu poder de regular uma situação, em face de veria herdar, e a ideia, portanto, de sopesamento
outro princípio, por exemplo, quando o princípio que foi atribuída ao Dworkin era de que os prin-
da liberdade se sobrepõe ao da igualdade, isso cípios morais devem prevalecer mesmo diante de
não significa a exclusão, a expulsão do sistema uma regra clara em face, digamos, do seu status
jurídico na regulação daquela matéria do outro jurídico superior em relação àquela regra.
princípio. Em outras palavras, princípios quando Esse argumento e o caso do Dworkin foram
estão em conflito não funcionam segundo a gra- objetos de diversas refutações, especialmente
mática do tudo ou nada, eles envolvem algum da parte daqueles que se colocavam como seus
tipo de ponderação ou sopesamento. interlocutores ou inimigos teóricos diretos, nes-
Nesse importante artigo, Modelo de Regras se texto, notadamente o positivismo jurídico e,
I, Dworkin também tornou famoso, pelo menos de maneira muito mais particular, o positivismo
no âmbito da discussão jurídica filosófica já que jurídico tal como formulado pelo seu principal
o caso tinha sua fama, antes desse uso que o expoente no mundo anglo-saxão, o filósofo inglês
Dworkin faz dele, um exemplo, o chamado caso Herbert Hart.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
144

Uma das respostas dadas por Hart e os hartia- Ministério Público americano contra a constru-
nos – aqueles que, engrossaram fileiras e foram ção de uma barragem no Vale do Tennessee e
vários -, no ataque ou nas réplicas à crítica que o
que traria como consequência a colocação em
Dworkin produzira ao positivismo nesse texto, ar-risco da sobrevivência de uma espécie, um peixe
gumentavam o seguinte. Eram várias críticas mas pequeno, chamado Snail darter. Esse peixe era
algumas delas, por exemplo, chamavam atenção protegido pela lei de proteção de espécies amea­
para o fato de que um princípio nada mais seria çadas de extinção.
do que uma regra de escopo geral e, portanto, O caso caminhou por diversas instâncias até
não haveria dificuldade nenhuma para o pensa- que, quando chegou à Suprema Corte, houve
mento positivista para reinterpretar, por exem- uma decisão emblemática. Qual foi ela? Um dos
plo, o caso Riggs versus Palmer, entendendo que Juízes, o Ministro Burger, afirmava grosso modo
o princípio era uma regra geral que limitava os o seguinte: é lamentável que os police makers,
efeitos de uma regra particular e, portanto, nadaaqueles que são responsáveis pela construção de
haveria de tão diferente na construção dworqui- barragem nos Estados Unidos, construam uma
niana que não pudesse ser incorporado por uma barragem sem antes verificar as possibilidades e
teoria como o positivismo jurídico, que era o ob-os limites legais para a construção. É lamentável o
jeto da crítica do Dworkin. E mais, se era assim,desperdício de dinheiro envolvido nisso, cerca de
não havia razão nenhuma para o Dworkin crer cem milhões de dólares já tinham sido investidos
que esse elemento que julgava ser central na sua e seria o tamanho do prejuízo caso a barragem
crítica ao positivismo pudesse abalar de alguma tivesse, realmente, impedida a sua construção.
maneira as bases da descrição positivista acerca Ele também afirmava o seguinte: Mas é fato
do que era o Direito. que existe uma lei válida que protege uma espé-
cie ameaçada de extinção. E
é verdade, também, que essa
É evidente que nem todos os desacordos jurídicos dos represa vai colocar em risco
tribunais, provavelmente até uma minoria, envolvem a espécie protegida. E por
desacordos teóricos. esse motivo, dizia o Justice
Burger, tenho que lamentar
tudo que ocorreu aqui, mas
Muitas coisas acontecem, muitos artigos são a minha função, como juiz, é aplicar o Direito, e
produzidos e discussões são realizadas, até a a despeito de tudo que eu posso lamentar sobre
produção de outra grande formulação da obra como foi feito, sou obrigado a reconhecer que a
Teoria do Direito do Dworkin, em 1985, através da construção da barragem deve ser interrompida.
publicação do seu livro O Império do Direito. Eu Houve um voto dissidente, que acabou sendo
retornarei a esses trabalhos intermediários daqui voto majoritário do Justice Power, nesse caso.
a pouco, mas quero chamar atenção para uma Ele fazia uma série de considerações: primeiro,
mudança emblemática que houve no tratamento concordo com Vossa Excelência, Justice Burger,
da questão da Teoria do Direito e do papel da que, de fato, existe uma lei válida que protege
reflexão moral sobre o Direito, que ocorre nessa essa espécie ameaçada de extinção. Concordo
obra. É interessante que nessa obra O Império do que essa represa vai por em risco a sobrevivência
Direito, Dworkin, de alguma maneira, troca o seu dessa espécie e que é absolutamente lamentável
exemplo, ele muda o seu caso paradigmático e que antes de construir uma represa não se faça
temos muito a aprender, se prestarmos atenção uma avaliação dos seus efeitos. E, portanto, nós
em porque ele muda, em vez de se referir ao não temos nenhum tipo de divergência sobre as
caso Riggs, troca pelo caso Tennessee Valley. O considerações que podemos chamar empíricas,
que é o caso Tennessee Valley? Este envolvia um sobre os fatos que são incidentes no momento em
questionamento levado a juízo por uma ação do que temos de apreciar se a represa deve ou não
série
Cadernos
do CEJ 145

ser interrompida. E também concordo que a nos- ele tem longas e densas páginas, por exemplo, em
sa obrigação como juízes é de aplicar o Direito. um artigo que se sucedeu ao Modelo de Regras I,
Contudo, eu não tenho a mesma compreensão chamado de “Modelo de Regras II”, em que ele
do que significa o Direito, Ministro Burger, e por rebate seus críticos, para dizer por que não aban-
esse mesmo motivo eu reconheço a nossa obriga- dona aquela distinção, do ponto de vista teórico,
ção de aplicá-lo ao Direito, mas aplicar o Direito, mas reconhece que a sua estratégia de argumen-
nesse caso, envolveria reconhecer certo princí- tação contra os seus críticos mais tinha gerado
pio de razoabilidade que o levava à conclusão, confusão do que, efetivamente, eficácia nos seus
portanto, de que a represa, naquela altura do argumentos teóricos. E, mais do que isso, outros
campeonato, não deveria ser impedida e outras caminhos argumentativos poderiam demonstrar-
medidas mitigatórias deveriam ser tomadas para -se mais eficientes para atingir o seu objetivo teó-
proteger aquela espécie. rico, para enunciar a sua crítica teórica.
Por que Dworkin mudou de exemplo? E por Qual era, então, a crítica teórica? Se não era
que Dworkin, que era o paladino dos princípios, enunciar uma teoria geral dos princípios, qual é
dava uma centralidade a distinção, princípios e o ponto central da crítica do Dworkin? Qual era
regras, e Modelos de Regras I (texto cuja primeira a novidade que ele trazia? A meu ver, a principal
versão é de 1967) praticamente silencia no uso novidade referia-se à crítica que fazia à tradição
da linguagem dos princípios em 1985, quando ele positivista, a modelos teóricos que não eram ca-
publica o Império do Direito? O que se passou? pazes de oferecer uma explicação plausível sobre
Por que mudou de exemplo? E por que ele parou como funcionavam os nossos desacordos teóricos
de falar de princípios? Porque, a despeito dos no Direito. Em outras palavras, o que Dworkin
constitucionalistas não terem parado, Dworkin – fundamentalmente vê como uma matriz central
esse é meu argumento -, seguiu outra estratégia da sua crítica é o fato de que as teorias rivais,
teórica que já não mais invocava a narrativa dos notadamente o positivismo deixa de ser o único
princípios como elemento essencial para produzir inimigo teórico. E no Império do Direito, ele já,
o seu argumento teórico. agora, dirige também sua crítica ao pragmatismo,
A meu ver, as razões para isso estão ligadas ao convencionalismo como uma reformulação da
fundamentalmente a dois aspectos: em primeiro própria teoria positivista. Mas, enfim, ele via como
lugar, Dworkin reconhece que, ainda que se to- uma insuficiência importante dessas teorias.
masse o caso Elmer como um caso que pudes- Como entender isso? O que significa um de-
se ser explicado a partir da teoria que ele então sacordo teórico no Direito? Em primeiro lugar, é
propunha, não era menos verdade que esse caso importante lembrar isso, nos faz retomar o caso
poderia também ser objeto de explicações ofere- Tennessee Valley, o que ele chamava a atenção é
cidas por teorias rivais que ele se encarregava de que nesse caso ficava patente que o desacordo
combater. Em outras palavras, não que sua teoria entre Justice Burger e Justice Power não era o
em sua própria visão não pudesse explicar me- desacordo sobre o reconhecimento dos fatos do
lhor o que acontecera de fato no caso Elmer; con- mundo, nem sobre a represa, nem sobre a exis-
tudo, ele dava margem a explicações plausíveis tência de uma lei que fosse válida. A diferença
que poderiam ser produzidas pelos seus inimigos. que demarcava as posições e conclusões distintas
Portanto, outro exemplo poderia criar um cons- dos juízes se referia ao conceito de Direito, à te-
trangimento, uma limitação maior para os seus ad- oria que cada um deles esposava e acolhia sobre
versários teóricos e dá uma explicação igualmente o significado do que é o Direito, do que é uma
satisfatória ou de elevada plausibilidade. obrigação jurídica. Em outras palavras, era um
Por outro lado, houve também o reconheci- desacordo teórico, e não empírico. É evidente
mento da parte do Dworkin que, a despeito de que nem todos os desacordos jurídicos dos tribu-
ele reconhecer que tudo aquilo que ele tinha dito nais, provavelmente até uma minoria, envolvem
sobre os princípios era perfeitamente justificável, desacordos teóricos.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
146

No entanto, ainda que eles não sejam a maio- te: vamos imaginar que um jovem saia com uma
ria, o que Dworkin chamava a atenção é que eles garota para jantar e, ao final, conta para o seu
são centrais para a nossa compreensão sobre o colega que saiu com a garota na noite anterior
que é natureza da prática de julgar, da prática e que cada um pagou sua conta. Vamos imagi-
de elaborar uma decisão judicial e uma justifica- nar que esse jovem, João, seja criticado pelo seu
ção judicial. Isso, na visão do Dworkin, fica mais amigo José por ter agido com descortesia. Então,
evidente nos casos mais controvertidos, difíceis, José disse: “João, você foi descortês com a garo-
mas não é inexistente também nos casos fáceis. ta”. E surge daí a seguinte questão: É verdadeiro
Porém, o que era importante destacar é que o ou falso que ele foi descortês? Suponhamos que
que os casos difíceis revelavam como ponto, re- João entendeu qual foi a crítica que José lhe fez;
almente, importante não era o fato de eles serem entendeu o que o outro estava dizendo, ou seja,
difíceis sobre os acordos empíricos, mas o fato existe uma compreensão real do que significa a
de serem difíceis na medida em que envolviam censura, no entanto, ele descorda e diz: “Olha,
desacordos teóricos, ou seja, esse era o ponto você me desculpa, eu entendo do que você está
que ele queria salientar. Assim, casos eram com- me acusando, mas eu acho que não fui descor-
plexos, porque neles havia um significado norma- tês”. E, portanto, há um desacordo sobre o valor
tivo, uma consequência prática direta que estava de verdade da proposição que diz: “João foi des-
derivada da teoria do direito, da concepção do cortês”. Um diz que é verdadeiro e o outro diz
direito que estava sendo implícita ou explicita- que é falso.
mente acolhida pelos juízes. Vamos imaginar que eles produzam argumen-
A questão que se colocava aqui, portanto, tos, argumentos que procurem dizer qual é a con-
para o Dworkin era a seguinte: para responder- cepção, isto é, qual é a teoria específica sobre o
mos o que é o Direito, é fundamental compreen- significado do conceito de cortesia que deve ser
dermos que o Direito é uma prática social. Tudo empregado para avaliar se é verdadeiro ou se é
bem, poucas pessoas negariam isso, mas o Direito falso que João foi descortês com Maria. Em ou-
é uma prática social peculiar, específica, e a sua tras palavras, podemos imaginar a produção de
especificidade está relacionada ao fato de que é uma série de argumentos pelos quais, por exem-
uma prática social argumentativa. Nem todas as plo, alguém diga: “Não, é uma descortesia, por
práticas sociais são argumentativas. Um exem- exemplo, porque se você for a um restaurante
plo de uma prática social não argumentativa: um você vai ver que 70% dos homens pagam a con-
jogo de xadrez. O jogo de xadrez é uma prática ta”. E mais, uma pesquisa do Datafolha diz que
social, envolve o reconhecimento do sentido da a maioria acha que a cortesia do homem para
normatividade das regras do jogo que vincula e com a mulher, quando sai com ela para jantar,
influencia a ação dos jogadores de xadrez, a in- implica que ele deva pagar a conta, ou seja, um
tencionalidade no sentido da ação deles é guiada deles levanta o argumento de que, para eu saber
pela normatividade das regras do xadrez, mas qual é o conceito de cortesia que devo empregar,
no jogo de xadrez o que os jogadores fundamen- devo observar quais são as práticas socialmente
talmente fazem é compreender o significado de compartilhadas, majoritárias ou convencionais.
uma regra e agir de acordo ou em desacordo O que elas dizem, o que a convenção diz? E se a
com aquelas regras e, assim, de maneira geral, convenção disser que os homens têm que pagar
nos jogos. a conta, então, João agiu com descortesia, ou
No entanto, outras práticas sociais são argu- seja, se a convenção disser o contrário, cada um
mentativas. Um exemplo, que o próprio Dworkin deve pagar a sua conta, então, ele não agiu com
explora, de uma prática social argumentativa, são descortesia.
as práticas de reconhecimento ou de valorização O que esse tipo de argumento traz para essa
da cortesia. Um exemplo que eu costumo explo- discussão hipotética? Traz um critério de verdade
rar com frequência, com os alunos, é o seguin- à proposição, o critério de verdade é fundamen-
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Cadernos
do CEJ 147

talmente o seguinte: é verdadeiro que João agiu dústria de produção de carne animal envolve um
com descortesia se houver uma convenção no sofrimento, e isso é imoral. Portanto, é errado
mundo que diga que a cortesia manda que os comer carne animal”.
homens paguem a conta quando saem. A contrá- Compreendemos o que o Professor Peter
rio senso, se não houver essa convenção ou se o Singer pode estar dizendo à audiência dos brasi-
mundo estiver dividido, 50% acham que sim e os leiros. Se compreendemos isso, temos que enten-
outros 50% acham que não, então não podemos der o quê? Que também associamos o que ele diz
dizer que é verdadeiro que João agiu com des- à possibilidade de aquilo que ele diz pode estar
cortesia. Por quê? Porque faltaria, nesse caso, o correto. Podemos até discordar, mas uma coisa
critério que seria a referência para a verdade da é certa, se alguém disser: “Professor Peter Singer,
proposição que afirma que ele agiu com descor- desculpe-me, mas a maioria come carne e acha
tesia. Essa seria uma possibilidade. que é certo comer carne”. O que ele responde-
Mas vamos imaginar que o João, acusado de ria? “Sim, a maioria está errada”.
descortês, diga: “Olha, eu
discordo de você e, mes-
[...] que os casos difíceis revelavam como ponto, realmente,
mo que a maioria ache que
importante não era o fato de eles serem difíceis sobre os
a cortesia envolve pagar
acordos empíricos, mas o fato de serem difíceis na medida
a conta para as mulheres,
em que envolviam desacordos teóricos [...]
acho que isso está errado”.
A pergunta que se suce-
deria seria a seguinte: Bom, mas por que você Isso significa o quê? Que o critério de correção
acha isso errado? Essa é a sua estipulação pes- moral não é dependente do que é a convenção
soal que diz que você prefere outra concepção, dominante. Posso fazer um juízo de correção mo-
outra teoria específica da cortesia? E ele diz o ral, nesse sentido, que seja contramajoritário, in-
seguinte: “Não, não é por isso, mas é pelo fato clusive, que seja contraconvencional, desde que
de que posso observar o conjunto de práticas eu possa apresentar razões que recolham uma
sociais semelhantes a pagar ou não pagar a con- série de práticas sociais relacionadas aos crité-
ta do restaurante e que envolvem o conceito, o rios de correção moral e que me permitam ar-
significado de cortesia e posso identificar que a gumentativamente apresentar uma justificação
maneira mais coerente de se compreender o que de porquês. No caso de, por exemplo, errado
significa cortesia envolve, por exemplo, associar impor a crueldade a outros seres, como a carne
o conceito de cortesia ao respeito, à dignidade e animal, que é produzida ao custo de sofrimento
à igualdade da mulher e, portanto, mesmo que aos animais – o argumento dele não é dependen-
exista uma convenção específica dizendo que a te diretamente da existência de uma convenção,
cortesia manda o homem pagar a conta, posso ele pode até mesmo ser contraconvencional,
dizer que esse padrão convencional não prestigia mas é um argumento viável, desde que possa
adequadamente o valor da cortesia”. ser justificado interpretativamente a partir da
Deixe-me introduzir outro exemplo em que consideração de um conjunto mais abrangente
talvez possa essa distinção tornar-se mais clara de práticas sociais de reconhecimento do que
ou eloquente. Vamos imaginar o seguinte: no é o agir corretamente e o agir incorretamente.
ano passado, veio um famoso filósofo australiano, De certa forma, é mais ou menos o seguinte que
chamado Peter Singer, ao Brasil. Ele é muito fa- Professor Peter Singer vai construir: “Olha, exis-
moso por seu envolvimento na luta ao direito dos te uma maneira mais racional, mais coerente de
animais. Imaginemos que o Professor Peter Singer conceber critérios do que é o agir corretamente,
venha ao Brasil e diga o seguinte: “É errado co- que fazem com que uma convenção majoritária
mer carne de vaca, porque envolve compac­tuar seja ela mesma imoral”.
com o sofrimento dos animais, a atividade da in- Por que estou insistindo nesse ponto? Porque
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
148

esse ponto nos permite destacar com muita clare- anos de idade e admite, portanto, que existe al-
za dois usos muito distintos que fazemos do sig- gum tipo de compensação nas peças; ou seja, eu
nificado de moral. Um é aquele que poderíamos retiro uma dama, uma torre do adulto, visando
chamar de “moral convencional”, e com muita um tipo de equilíbrio, chance de sucesso e de
frequência usamos a linguagem da justificação vitória no jogo de xadrez.
moral nos reportando àquilo que podemos cha- E vamos dizer mais uma coisa: a discussão so-
mar de “moral convencional”. Por exemplo: pos- bre o que estabelece esse equilíbrio envolve uma
so dizer que o protestantismo se caracteriza pela produção de argumentos do jovem ou do adulto,
adoção de certa moral, certa ética. Posso dizer ou da torcida do jovem ou da torcida do adulto,
que a máfia tem uma moral, por exemplo, que sobre qual é a fórmula equilibrada para se estabe-
reconhece como uma violação do código inter- lecer quais devem ser as peças e, portanto, quais
no a delação. Eu posso dizer, portanto, que, na devem ser as regras específicas para cada um.
moral convencional da máfia, é errado delatar Por exemplo: se o adulto deve jogar com dama
o comparsa. e sem uma torre, se deve jogar com a dama e sem
Porém, posso utilizar um tipo de linguagem um bispo. Qual é o equilíbrio? Ou seja, não existe
moral – distinta, que funciona segundo uma gra- uma predeterminação completa das regras, não
mática; distinta quando eu digo a moral da máfia são as regras que sei a priori que são as mesmas,
é imoral. Ou seja, quando eu faço esse tipo de mas admito que devam ser reformuladas e justi-
juízo que é inteligível, estou usando a moral no ficadas conforme um objetivo de equilíbrio, que
sentido de que poderíamos denominar (essa do- vise garantir que adultos e crianças tenham a mes-
minação que o Dworkin propõe) de moral con- ma ou semelhantes chances de ganhar ou perder.
corrente, isto é, estamos tomando como valor Em um jogo argumentativo desse tipo, se não
de verdade e de sentido do que é a correção é o jogo que joga o Garry Kasparov, é um jogo
moral, já não mais a convenção, mas um critério que frequentemente pai joga com filhos, ou pri-
de existência de uma melhor justificação desse mos mais velhos jogam com primos mais jovens.
mesmo valor. Em um jogo desse tipo, argumentativo, temos a
produção de argumentos e
justificativas para dizer qual
[...] a máfia tem uma moral, por exemplo, que reconhece
é o equilíbrio justo, adequa-
como uma violação do código interno a delação. Eu posso
do para regular o desenvolvi-
dizer, portanto, que, na moral convencional da máfia, é errado
mento daquele jogo.
delatar o comparsa.
Mas temos que lembrar
duas coisas ainda. Na discus-
Permitam-me voltar para a metáfora do jogo são do equilíbrio do que é, digamos, a igualda-
de xadrez: o jogo de xadrez, o regulado pela de, podemos estar nos reportando a um critério
Federação Internacional de Xadrez, não é um convencional de igualdade ou podemos estar nos
jogo argumentativo. Mas nada nos impediria de referindo também, diferentemente, a um critério,
imaginar um jogo de xadrez que fosse argumen- de uma moralidade concorrente relacionada a
tativo. Ele é muito parecido com um jogo de xa- um conceito de igualdade.
drez convencional – o jogo da FIDE (Federação E esse jogo vai funcionar de maneira diferente,
Internacional de Xadrez) –, mas tem algumas di- se for, segundo compreender, o valor da igualda-
ferenças. A semelhança está no movimento das de, ou da igualdade lúdica, ou do prazer lúdico, é
peças, no tabuleiro etc. No entanto, nesse tipo de um valor convencional, isto é, verifico o que é a
jogo, o que fazem os jogadores? Os jogadores ad- convenção no mundo, o que esse estado de coisa
mitem diferenciais de competência enxadrística do mundo diz sobre o significado da convenção,
entre os jogadores. Vamos imaginar uma situação ou se não, se esse significado mesmo do que é
em que o adulto joga com uma criança de oito esse equilíbrio lúdico é um conceito que deve ser
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Cadernos
do CEJ 149

pensado interpretativamente e segundo critérios não existe certo ou errado, mas não existindo o
de melhor ou pior justificação. certo ou o errado, não seria errado, então, que
Vou agregar mais um exemplo, um exemplo o bebê entrasse na igreja.
do Dworkin apresentado: Modelo de Regras II, No entanto, Dworkin chama a atenção para
texto intermediário entre o Modelo de Regras I e que, no exemplo que ele imagina, as pessoas não
O Império do Direito. Herbert Hart tinha lançado se limitam, simplesmente, a identificar se existe
um exemplo no seu arquiclássico livro: O Conceito uma prática convencional ou não. O que elas
de Direito, e o exemplo clássico que ele levantava buscam é identificar qual é a melhor maneira,
era da regra de etiqueta que envolve que os ho- a maneira mais racional, mais inteligente, mais
mens tirem o chapéu ao entrar em uma igreja. Ele justa de interpretar o significado daquela regra.
chamava a atenção para esse exemplo justamente E é por isso que uma parte dos igrejeiros vai di-
para distinguir o conceito do que é uma regra (a zer que não faz sentido, que é errado interpretar
regra da etiqueta que envolve a possibilidade de aquela regra daquela forma. Nós devemos avaliar
alguém agir correta ou incorretamente) de um qual é a intencionalidade daquela regra e a sua
mero hábito, por exemplo, o hábito dos ingleses intencionalidade é dependente do valor ao qual
de tomar chá às 5 horas da tarde. se destina, ao a aquela regra visa prestigiar. Em
Dworkin retoma esse exemplo do tirar o cha- outras palavras, a discussão aqui envolvida não
péu ou descobrir a cabeça ao entrar na igreja, se reporta à existência do fato do mundo, que é
mas o reformula da seguinte maneira: imaginem a existir ou não existir uma moral convencional,
situação: em uma determinada igreja, os homens mas qual é a melhor maneira, a mais adequada
ao entrar, tiram o chapéu, mas uma mãe entra para justificar o significado do valor envolvido ou
com um bebê, e ele está usando um gorro, está subjacente àquela regra.
muito frio. E uma parte dos frequentadores da Ao dizer isso, o Dworkin também aponta
igreja dizem: ”isso viola a regra de etiqueta, por- para uma distinção extremamente importante,
que ele é um ser humano do sexo masculino que e acho que é o objeto de má compreensão, de
está entrando na igreja com a cabeça coberta”. E uma recepção mais vulgar das ideias do Dworkin.
outra parte dos igrejeiros dizem: “não, isso é um Essa má compreensão refere-se ao fato de que o
absurdo, essa regra não se aplica a um bebê, não Dworkin distingue a ideia de certeza, da ideia de
faz sentido nenhum imaginar que se tire o gorro objetividade. Não é necessário que distingamos,
do bebê porque violaria a regra de etiqueta”. e frequentemente nós definimos objetividade
Se eu tomasse que o critério para saber se como sinônimo de certeza. Dizemos ou podemos
existe ou não a determinação de que as pessoas dizer que existe objetividade, por exemplo, sobre
do sexo masculino têm de descobrir a cabeça ao se um patinete é um veículo ou não, se houver
entrar na igreja, se dependesse de um critério certeza, uma convenção, se houver meios pelos
puramente convencional, poderia me perguntar: quais eu possa saber o significado de veículo e
“Qual é a convenção?” Digamos que houvesse saber se ele inclui o conceito de patinete como
uma convenção que dissesse: “Olha, de fato, não um caso particular de veículo.
importa a idade, todo o mundo tem que tirar o No entanto, diz Dworkin, não é necessário que
chapéu, descobrir a cabeça”. Nesse caso, haveria imaginemos que assim seja e, no caso do Direito,
um critério de correção para saber se a criança no caso da objetividade moral e do Direito, é im-
pode ou não, que é a existência dessa convenção. portante que façamos essa distinção. A incerteza
No entanto, o exemplo do Dworkin é ardiloso significa um estado da consciência que não nos
por quê? Por que ele sugere que a comunidade leva a ter uma crença forte sobre uma determina-
dos igrejeiros está dividida, ou seja, metade acha da verdade. Nós poderemos, por exemplo, dizer
que sim, metade acha que não. E, portanto, não que não temos certeza se o Big Bang aconteceu
existe convenção. Esse é o ponto. Se não existe há mais de oito bilhões de anos ou a menos de
convenção, nós, então, deveríamos concluir que oito bilhões de anos. Mas isso não significa afirmar
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
150

que não exista uma resposta certa. Eventualmente, correspondência a um estado de coisas no mun-
nós temos incerteza sobre ela. Mas é diferente de do, a convenção que poderia dizer o que é cer-
afirmar que não existe certo e errado. to e o que é errado. Em outras palavras, o que
Quando eu afirmo, no entanto (é o exemplo Dworkin está trazendo para sua teoria aqui não é
do Herbert Hart) que não existe um critério para apenas uma teoria, quase contraintuitiva sobre o
saber se patinete é ou não é veículo, o que o Hart que é existir ou não resposta certa. O que ele está
está dizendo não é que eu tenho incerteza sobre efetivamente trazendo é uma reflexão e uma crí-
se patinete é ou não veículo. Eu não tenho um tica às teorias da verdade como correspondência
critério para saber. E não ter um critério significa que animam e que, digamos, habitam boa parte
que não existe certo e errado aqui. Em tese, não das teorias da interpretação constitucional.
existe certo e errado. Ou seja, não se trata da A meu ver, esses pontos que simplesmente es-
minha ignorância sobre o que é certo e errado. bocei aqui são muito importantes para entender-
Trata-se da inexistência, mesmo, de um critério mos algumas diferenças do projeto entre Dworkin
de correção ou de incorreção. e, por exemplo, Robert Alexy. Uma das diferenças
A Teoria da Controvérsia Dworkiniana não está no fato de que, diferentemente do Alexy,
afirma, contrariamente ao que dizem muitos dos Dworkin não está preocupado em construir uma
seus maus intérpretes ou dos seus maus apologe- dogmática da interpretação constitucional. Ele
tas, que existe a possibilidade de eu ter certeza está, antes, preocupado em descrever qual é a
sobre o que é uma resposta certa. O que ele afir- gramática do funcionamento da nossa linguagem
ma é algo distinto, que é implausível imaginar ou quando justificamos as decisões judiciais.
tomar como posição padrão – ele chama default Alguém poderá dizer também: “É verdade
–, afirmação de que, por eu não ter certeza, eu que pensamos, fazemos essa parafernália teóri-
não tenho uma resposta certa. Se for assim, o ca a toda hora? Nós temos que recorrer a ela o
que seria esse critério de correção? Seria a exis- tempo todo?” Não, no dia a dia dos magistrados
tência de uma justificativa mais coerente, mais (o comportamento dos magistrados talvez seja
abrangente e mais consistente com o significado muito pouco parecido com o comportamento
das práticas sociais que efetivamente identificam, do juiz Hércules, mas isso não é o que importa),
servem de paradigma para nós identificarmos um em muitas situações centrais, o que eles fazem
valor em relação a outras teorias rivais. é muito parecido com o que faz o juiz Hércules.
Em outras palavras, retornando ao exemplo da Vou lançar mão de outra metáfora. Os estu-
cortesia. O que faria com que João ou José tivesse dantes de Engenharia, de qualquer Faculdade
razão sobre o comportamento cortês ou descor- de Engenharia, aprendem Física porque têm de
tês de João ao sair com uma garota não é o fato fazer elevadores, pontes e viadutos. E aprendem,
de ter certeza. Provavelmente, a controvérsia dos de maneira geral, Física newtoniana. Por que eles
dois terá resultado inconclusivo. Da mesma forma, aprendem Física newtoniana se todos nós esta-
não é o fato de existir certeza que faz com que o mos cansados de saber que, de alguma forma,
Professor Peter Singer não possa, objetivamente, o modelo paradigma newtoniano foi superado
estar certo na sua censura ao comportamento da pela Teoria da Relatividade, pela Física Quântica
maioria dos brasileiros. O critério de correção e, etc.? Por que eles aprendem isso? Por uma razão
portanto, de objetividade, depende da existência simples. A função, a atividade do engenheiro é
de quê? De um critério que seja intersubjetiva- de construir uma tecnologia para a construção.
mente compartilhado, e por isso ele se torna ob- E o modelo simples da Física newtoniana é muito
jetivo, ele não é subjetivo, e que seja passível de útil, muito mais fácil de operacionalizar se quero
uma reconstrução mais coerente. fazer elevadores ou pontes. Eu não preciso usar
O critério de objetividade é dependente de da Teoria da Relatividade para fazer pontes. E
uma teoria coerentista da verdade, e não de uma mais, se eu for usar, vai dar mais trabalho. É ab-
teoria da verdade que deva ser entendida como solutamente inútil.
série
Cadernos
do CEJ 151

No entanto, todos nós sabemos que, se o nos- -dia do Hércules é muito diferente do dia a dia do
so engenheiro quiser construir satélites, micro- juiz. Mas o que há de semelhante é que, em casos
chips ou se ele quiser entender Astronomia, ele nos quais existe uma controvérsia envolvendo va-
vai observar os limites da Física newtoniana, ou lores e um tipo de argumento construído valora-
seja, daí sim ele irá recorrer a uma teoria mais tivamente dentro de uma estrutura da linguagem
abrangente, mais poderosa, porque naquelas da moral que se vale de uma moral do tipo da
situações a Física newtoniana, a mais simples, concorrente, nesses casos, estes são importan-
não funciona adequadamente. tes, centrais, e o que os juízes são demandados a
Isso não significa dizer que a Teoria da fazer é um tipo de reflexão filosófica. O critério
Relatividade não valha para as pontes e para de correção é interpretativo, não é um critério
os elevadores. Significa apenas dizer que ela é de correspondência a ideias convencionais nem
especialmente útil em determinadas situações, tampouco dependente da existência de certeza.
mas não que a Física newto-
niana não ocorra quando
Em tese, não existe certo e errado. Ou seja, não se trata
elaboramos um elevador
da minha ignorância sobre o que é certo e errado. Trata-se
ou uma ponte.
da inexistência, mesmo, de um critério de correção ou de
Da mesma forma ocorre
incorreção.
nas práticas de justificação.
É verdade que boa parte dos
juízes, Ministros, muitas vezes, montam a sua pe- Ora, uma leitura apressada do Dworkin po-
quena linha de montagem na produção de deci- deria sugerir que ele convoca os seus leitores a
sões. E que a ideia de justificação, com todos os se transformarem em neoconstitucionalistas ou
seus emblemas e charmes que são, muitas vezes, a “vamos prestar mais atenção aos valores, ao
discutidos nos livros da Teoria da Hermenêutica, significado convencional dos grandes princípios
não se realizam nesse dia a dia. que estão postos e positivados na constituição
Mas isso não significa que, em muitos casos, isso no momento que eu interpreto o Direito”. Mas, a
ocorra implícita ou explicitamente. É mais eviden- meu ver, não é isso que o Dworkin está fazendo.
te nos hard cases. Estes, nesse sentido, seriam, na Ele está afirmando, que em determinadas situa-
minha metáfora, mais semelhantes aos limites de ções, existe uma inafastável convocação, que é
não funcionalidade da Física newtoniana, ou seja, feita ao julgador, para reflexão sobre o melhor
no ambiente astronômico ou microeletrônico. significado desses conceitos morais, desses con-
Nesse sentido, é importante que se tome um ceitos de justiça; mais ainda, que os significados
cuidado. Que a real contribuição do pensamen- desses conceitos não são independentes, não são
to do Dworkin é, em boa medida, não armar o autônomos, não são derivados, como afirmava
operador do Direito de uma nova dogmática da o Professor Raffaele a propósito do conceito de
interpretação e não armá-lo de uma interpretação proporcionalidade, mas antes fazem parte de
de princípios pensados em termos do seu signifi- uma rede de crenças. A determinação do sentido
cado convencional. Não é isso o que ele faz. Na de um princípio e de um valor está conectado a
verdade, ele procura mostrar os limites das nossas uma rede de outros valores, assim como, exem-
teorias dogmáticas, a inafastabilidade de algum plificadamente, o conceito de cortesia está rela-
tipo de reflexão hermenêutica e filosófica que é cionado, pelo menos a uma concepção defendida
própria da atividade de julgar, que ainda que não pelo João que não pagou a conta, ao conceito de
apareça a todo tempo, mas significativamente em respeito à igualdade ou à dignidade. Ele não é um
casos centrais da prática da interpretação. conceito autônomo, mas articula-se da maneira
A semelhança com o que faz o juiz Hércules mais coerente ao conjunto de outros conceitos.
é uma semelhança da natureza do julgar, e não Por fim, gostaria de chamar a atenção, portanto,
propriamente do dia a dia do Hércules. O dia-a- à ideia de que Dworkin, visto dessa forma, do ponto
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
152

de vista metodológico, apresenta, na verdade, ele- tem o Dworkin com o Waldrom, o que ele cha-
mentos mais críticos, creio eu, para nossa compre- ma a atenção é que ele faz efetivamente uma
ensão do que essa prática da farra principiológica. defesa do modelo institucional da Judicial Review
Apenas uma vulgata dworkiniana ou um no contexto americano em face das circunstân-
Dworkin de manuais de Direito Constitucional cias e capacidades e potencialidades institucio-
não tão qualificados é que aparentemente o faz nais do Judiciário, especialmente da Suprema
o paladino desse tipo de teoria; antes o contrário, Corte americana, mas ele não faz um argumento
o que ele está apresentando são ideias bastante universal e geral dizendo que sempre a Judicial
distintas disso. Review é um bom modelo institucional para eu
Uma última palavra sobre a dimensão institu- melhor consagrar a ideia de Justiça que está pres-
cional, que também é um tema caro ao Dworkin suposta na sua própria concepção de Direito.
e a muitos dos seus críticos. Até que ponto pode- Em outras palavras, o que eu quero aqui, para
mos acreditar que os nossos juízes estão capacita- concluir, é chamar a atenção quanto a nossa re-
dos para elaborar essa complexa tarefa interpre- flexão sobre qual modelo institucional melhor se
tativa? Esse ponto, no caso do Dworkin, foi posto ajusta a esta teoria do direito. É uma discussão
a ele diretamente, por exemplo, na questão de conectada, mas que não é puramente derivada,
“Por que deveríamos acreditar tanto no poder da é outra questão envolvendo outras variáveis de
Judicial Review, a Revisão Judicial americana?” chances reais e possibilidades de uma destituição
Por que tanta crença nisso? executar ou não os papeis que são delegados a ela.
Um de seus interlocutores e críticos é, por No entanto, o ponto central que ele insiste
exemplo, o seu ex-orientando Jeremy Waldrom, como ponto teórico é que essa reflexão moral é
que vai dizer: “Não temos razões para imaginar inafastável, queira ou não, mesmo quando o juiz
que os tribunais tenham capacidade e expertise diz que não vai fazer, nos juízos morais ele está
para fazer esse tipo de juízo. Portanto, é melhor fazendo. E quando ele assim se comporta, ele
que não o faça. faz, e faz mal.
É muito interessante que nessa discussão que Muito obrigado.”

RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA


Ministro do Superior Tribunal de Justiça


Agradeço a brilhante palestra, que nos trouxe distinções fundamentais para compreender-
mos um pouco mais esse debate, que é tão vulgarizado, como disse ele na doutrina constitucional, ain-
da mais vindo de um dworkinista como ele, o que foi um privilégio raro tê-lo aqui e falando sobre isso
e nos ajudando a atender um pouco melhor essas questões e com exemplos tão claros e contundentes.
Agora passaremos a uma palestra de um tema também muito importante pelo Professor Luiz
Guilherme Marinoni, que tem se debruçado sobre essa criação indispensável de uma hermenêutica
de precedentes no Brasil e do papel que os tribunais superiores devem desempenhar.
O Professor Marinoni é pós-Doutor pela Columbia University School of Law, Professor da Universidade
Federal do Paraná, Procurador daquele Estado, tem inúmeras publicações e é um Professor destacado.”
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Cadernos
do CEJ 153

a norma contida na lei e declará-la.


A partir dessa premissa ele configurou a Corte
Suprema como uma corte de correção da lega-
lidade das decisões dos tribunais ordinários, ou
seja, a ideia de correção da legalidade das deci-
sões parte da premissa de que a função da Corte
é a de declarar o exato sentido da lei.
Não obstante, como todos nós sabemos, diante
da evolução da teoria da interpretação e da clara
dissociação entre texto e norma, entre dispositivo
legal e resultado da interpretação, do impacto
do constitucionalismo e do emprego cada vez
Por uma Corte de precedentes mais difundido da técnica legislativa das cláu-
sulas abertas, obviamente não há mais como se
LUIZ GUILHERME MARINONI crer que é possível falar em declaração do exato
Professor da Universidade Federal do Paraná sentido da lei. Embora não seja possível se admi-
tir o formalismo interpretativo, se saiba que isso


não mais merece qualquer respeito teórico, não
Prezado Ministro Ricardo Villas Bôas obstante se saiba que não é possível pensar em
Cueva, caro Professor Ronaldo Porto Macedo correção da legalidade ou em declaração da lei,
Júnior, meus amigos e colegas aqui presentes, as Cortes Supremas, na generalidade dos países
é uma honra, uma satisfação muito grande po- de civil law ainda se comportam com se fossem
der estar aqui a convite do Ministro Ricardo e do dotadas da função e da estrutura originariamente
Superior Tribunal de Justiça participando como a elas conferidas por aqueles que se debruçaram
único processualista deste painel sobre a Teoria sobre a função delas no início do século XX.
da Decisão Judicial. Isso me traz uma responsa- Entretanto, a decisão em que o juiz valora, in-
bilidade muito grande. clusive elegendo diretivas interpretativas, e opta
O objetivo da minha palestra é basicamente o por um dos resultados de interpretação, derivados
de demonstrar que a transformação do Direito do da atividade de interpretar, evidentemente não
civil law hoje nos obriga necessariamente aceitar pode ser pensada como uma decisão que declara
o respeito aos precedentes das Cortes Supremas, a lei. Essa é uma decisão que sim atribui sentido ao
em primeiro lugar; em segundo, demonstrar que Direito. A decisão que atribuiu sentido ao Direito,
a ideia de respeito aos precedentes não é algo co- exatamente porque parte do pressuposto de que
natural ou particular aos regimes de common law. aí há valoração e vontade no âmbito da estrutura
As nossas Cortes Supremas de civil law, como do Poder Judiciário, deve ser definida como certa
todos sabem, foram originariamente criadas ou errada pelas Cortes Supremas ou, em outras
para permitir a tutela do legislador para viabili- palavras, cabe às Cortes Supremas, estas sim atri-
zar a tutela da lei. Aquele que melhor escreveu, buírem sentido ao Direito ou, como se queira, pelo
no âmbito do Direito Processual, sobre Corte menos definirem o sentido do Direito.
Suprema, Calamandrei, por volta de 1920, fa- A decisão que define o sentido do Direito, como
zendo um estudo crítico histórico da Corte de todos sabem, não pode ser compreendida como
Cassação Francesa e propondo um modelo de uma consequência lógica da regra interpretada. A
corte de cassação, disse claramente que a função decisão que atribui sentido ao Direito não é uma
da Corte deveria ser a de “declarar o exato sen- derivação da formulação legislativa. A decisão que
tido da Lei”. É claro que Calamandrei e todos os atribui sentido ao Direito elabora algo que não
seus discípulos posteriores estavam trabalhando existia antes do início da interpretação e, por isso
com a ideia de que o intérprete poderia resgatar mesmo, pode-se dizer que a decisão que atribui
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
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sentido ao Direito agrega algo de novo à ordem ao proferir uma decisão em sede de recurso ex-
jurídica, tem autonomia em face do texto legal, traordinário, apresenta fundamentos que devem
agrega algo de novo à ordem jurídica, embora ser cobertos pela eficácia vinculante, ainda que
reconstruindo a partir do texto legal. esteja a Corte apenas afirmando a constituciona-
Mas, ao agregar algo de novo à ordem jurídica lidade de uma norma ou apenas fazendo a inter-
e se colocar ao lado da ordem legislada, insere- pretação de acordo. Eficácia vinculante nada tem
-se em uma ordem jurídica de maior amplitude, a ver com controle de constitucionalidade; aliás,
em uma ordem jurídica formada pela lei e pelas nas ações diretas sim, talvez ela seja até mesmo
decisões das Supremas Cortes. As decisões das mais dispensável, embora não seja sempre.
Supremas Cortes, portanto, exatamente porque O que se relaciona com a eficácia vinculante é
têm por objetivo permitir o desenvolvimento o local de onde brota a decisão. As decisões das
do Direito, e não corrigir a legalidade das deci- Supremas Cortes têm de ter eficácia vinculante
sões, não interessam, como se imagina ainda no porque elas afirmam o sentido do Direito, elas
Direito Processual, apenas ao recorrente e ao re- afirmam os motivos que levaram à solução do
corrido, não interessa apenas a parte dispositiva caso. Motivos que interessam a todos, que orien-
da decisão ou do acórdão, não interessa a coisa tam a sociedade e que devem servir como guias
julgada que qualifica a parte dispositiva da deci- para a resolução dos conflitos pelos tribunais or-
são. Interessam sim os motivos que explicam o dinários. De modo que não há razão para não
porquê se resolveu a questão de Direito, ou seja, se admitir, por exemplo, a teorização da eficá-
interessam os chamados “fundamentos” que de- cia vinculante no âmbito do Superior Tribunal
terminam a decisão ou os motivos que permitem de Justiça; isso, obviamente, não é privilégio do
o alcance da solução do caso. Supremo Tribunal Federal.
Fala-se, nesse sentido, em fundamentos deter- Note-se, porém, que a ideia de respeito aos
minantes ou na transcendência dos fundamen- precedentes nada tem a ver com a antiga ideia
tos e, em alguns casos, em eficácia vinculante. de unidade do Direito objetivo, antigo mito atrás
Aliás, fazendo um parêntese, é evidente que não do qual se esconderam instâncias autoritárias dos
se pode atribuir eficácia vinculante apenas à par- mais diversos tipos. O objetivo da unidade do
te dispositiva de uma decisão, como se cogita Direito é promover a igualdade. Quando se pensa
em vários locais da doutrina constitucional e até em unidade do Direito, hoje, não se pensa mais
mesmo em vários julgados do Supremo Tribunal em uniformidade do Direito objetivo; pensa-se
Federal. Não é possível se imaginar que eficácia sim em promoção da igualdade. Isso porque se
vinculante tenha alguma relação com parte dis- parte do pressuposto de que, como a Corte não
positiva da decisão porque, se assim fosse, ela declara o sentido da lei, não serve a lei para ga-
não serviria para pouco mais que nada. A eficácia rantir a igualdade. Quem garante a igualdade é
vinculante só pode ter a ver com os fundamentos o Direito definido pela Corte Suprema, ou seja,
do acórdão, não com a parte dispositiva já prote- os precedentes das Cortes Supremas têm de ser
gida pela coisa julgada material. aplicados a todos os casos iguais ou similares, sob
E mais, a eficácia vinculante nada tem a ver, pena de violação da igualdade.
como alguém pode pensar, com controle de Mas aí entram duas questões práticas da mais
constitucionalidade ou com jurisdição constitu- alta importância para nós. Hoje mesmo, no
cional. Não sei de que local retiraram essa cor- Superior Tribunal de Justiça, nós trabalhamos
relação lógica entre eficácia transcendente dos com a problemática daquilo que se chama de
motivos, eficácia vinculante das razões, ratio de- “decisão que contraria jurisprudência consolida-
cidendi e com controle de constitucionalidade. da”. Seria muito melhor falar em revogação de
Não é assim, como todos sabem, no common law; precedente, mas hoje nós falamos em revogação
não é assim que deve ser também no civil law, de jurisprudência consolidada. Quando se revoga
até porque o próprio Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência consolidada, quando se revoga
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Cadernos
do CEJ 155

um precedente, é preciso muito cautela com os tos como, por exemplo: estaria já o precedente
efeitos temporais da decisão. É claro que quando desgastado por decisões inconsistentes da pró-
alguém acredita que a função do tribunal é a de pria Suprema Corte por distinções indevidas ou
resgatar o exato sentido da lei, jamais vai haver pela própria evolução do Direito ou pela própria
problema de eficácia temporal da decisão que re- evolução da concepção geral acerca do Direito
forma julgados que afirmavam em outro sentido. demonstrada em revistas acadêmicas ou em traba-
A última decisão é sempre aquela que afirma o lhos doutrinários e assim por diante? Enfim, é pre-
sentido exato da lei e, portanto, a decisão sempre ciso verificar se já não estaria presente uma sinali-
tem eficácia retroativa; não há por que pensar em zação de desgaste do precedente para se acreditar
eficácia prospectiva. ou não na confiança que teria de ser justificada no
Entretanto, quando pensamos a partir da ideia entendimento que passa a ser revogado.
de elaboração de algo que atribui sentido ao Outra questão prática interessante diz respeito
Direito na Corte Suprema, quando pensamos em à ação rescisória. Como todos sabem, o art. 485
precedente, é preciso muito cuidado para não se do Código de Processo Civil admite ação rescisó-
violar a confiança justificada depositada nos pre- ria em caso de violação a literal dispositivo legal.
cedentes ou “na jurisprudência consolidada da É claro que não existe violação literal a dispositi-
Corte”. É preciso, portanto, cuidado com os efeitos vo legal e, por isso, ele nunca foi compreendido
temporais que nem sempre devem ser retroativos. por ninguém, nem por juiz nem por advogado
Não devem ser retroativos exatamente naqueles nem por doutrinador. A explicação do cabimento
casos em que há razões para se supor que todos da ação rescisória em caso de alegação de vio-
tinham confiança justificada na jurisprudência ou lação literal a dispositivo legal se deu de forma
no precedente que acaba de ser revogado. negativa através da Súmula n. 343 do Supremo
É a mesma lógica que preside o trabalho da Tribunal Federal, que diz: “Não cabe ação resci-
Suprema Corte americana ao atribuir efeitos sória quando, à época em que proferida a deci-
prospectivos a partir de um determinado evento são, os Tribunais divergiam sobre a interpretação
ou data, ou efeitos prospectivos puros, ou ainda da norma” ou sobre o caso ou sobre a questão.
efeitos prospectivos simples
para o futuro. Quando falo em
efeito prospectivo puro, quero [...] não há razão para não se admitir, por exemplo, a
me referir à hipótese em que teorização da eficácia vinculante no âmbito do Superior
a própria Corte revoga a juris- Tribunal de Justiça; isso, obviamente, não é privilégio do
prudência ou precedente, mas Supremo Tribunal Federal.
sequer admite que a decisão
presente produz efeitos sobre
as próprias partes do recurso, o que é absoluta- Atualmente, entretanto, afirma-se: “Se no mo-
mente interessante para nós, porque demonstra, mento em que foi proferida a decisão já existia
definitivamente, que o recurso não é algo que ser- precedente da Suprema Corte, cabe ação rescisó-
ve para a tutela da parte, é algo que serve para ria fundada no precedente que demonstra, então,
abrir a jurisdição da Corte destinada a contribuir a violação a literal disposição de lei”, porque na
para a evolução e desenvolvimento do Direito. verdade demonstra a única violação que se pode
Em outras palavras, é preciso que, nessas cir- ter, que é a violação a uma única interpretação,
cunstâncias, se faça uma análise a respeito da aquela que é da Suprema Corte. Perfeito. É assim
existência de confiança justificada depositada no que tem que ser. Cabe ação rescisória quando
precedente revogado para, assim, então, outorgar um tribunal ordinário decide em desacordo com
efeito prospectivo ou não à decisão que revoga a Suprema Corte.
o precedente que está sendo desacreditado na- Entretanto, não é possível se admitir, como al-
quele momento. É claro que aí importam elemen- guns já o fazem, ação rescisória fundada em prece-
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
156

dente superveniente à formação da coisa julgada,


os seus precedentes constitucionais, como se ad-
ainda que da Suprema Corte, ou seja, refiro-me mitir que uma decisão de inconstitucionalidade
aqui precisamente à ideia que decorre das deci-ou de constitucionalidade do Supremo seja de-
sões do Supremo Tribunal Federal no sentido de cisão que, por ser “verdadeira”, é suficiente para
que uma decisão de inconstitucionalidade poste-desfazer a coisa julgada material? Que expediente
rior à formação da coisa julgada abre oportunida-
existe na Constituição apenas e tão somente para
de para ação rescisória. Não é assim? Praticamente
explicitar a segurança jurídica?
todos no Supremo Tribunal Federal admitem hoje Deixando essas duas questões de lado, vem a
que cabe ação rescisória fundada em decisão de questão da igualdade. Além da igualdade, o res-
inconstitucionalidade posterior à formação da peito aos precedentes é fundamental para garantir
coisa julgada para rescindi-la. Na verdade, aí há
a previsibilidade que, como todos sabem, é fun-
uma lamentável confusão entre efeitos de uma lei
damental para o desenvolvimento da Economia
inconstitucional e efeitos de um juízo sobre a cons-
e, sobretudo, para garantir a previsibilidade en-
titucionalidade de uma lei. Quando se resguardaquanto valor moral, que é indispensável para o
um juízo, que é diferente de um posterior juízo de
ser humano sobreviver no estado de direito. Sem
uma Suprema Corte, não se está atribuindo efeitos
previsibilidade, não há como se pensar, em poucas
a uma lei inconstitucional, está sim atribuindo-se
palavras, em estado de direito. Além da previsibili-
efeitos a um juízo legítimo de constitucionalida-
dade, o respeito aos próprios precedentes é, nessa
de diferente daquele que posteriormente foi feito
perspectiva fundamental, para garantir a própria
acerca da questão constitucional. coerência da ordem jurídica na medida em que
Portanto, bem vistas as coisas. Admitir resci-
as decisões das Supremas Cortes fazem parte da
sória com base em decisão de inconstituciona- ordem jurídica e, portanto, não podem ser agredi-
lidade posterior à formação da coisa julgada é das sem qualquer fundamentação pelos tribunais
violar a segurança jurídica, é violar a coisa julga-
ordinários e juízes de primeiro grau.
da material e é também negar a legitimidade do A essa altura, alguém pode perguntar: por que as
próprio controle difuso de constitucionalidade. É
Cortes Supremas no sistema de civil law, especial-
negar que a decisão tomada em controle difuso mente as Cortes Supremas que tratam do Direito in-
de constitucionalidade, que transitou em julgado
fraconstitucional, ainda se comportam como Cortes
e foi qualificada pela coisa julgada material, é
de correção? Outro dia mesmo eu lia, em um artigo
legítima e pode ser desfeita mediante uma ação de um professor italiano recente, o argumento de
de desconstituição do julgado pelo fato de esteque, por estar escrito na Constituição italiana, no
ter-se distanciado da verdadeira interpretação da
art. 101, II, que todos os juízes são sujeitos ape-
norma constitucional. nas à Lei, não há como se admitir que estejam eles
submetidos aos precedentes da
Corte de Cassação. Porém, se
compreendemos que o Direito
Hoje mesmo, no Superior Tribunal de Justiça, nós trabalhamos
depende da conjugação de
com a problemática daquilo que se chama de “decisão que esforços do legislador e do
contraria jurisprudência consolidada”. Judiciário e que no Judiciário
é imprescindível uma última
palavra da Suprema Corte, é
Isso é brincadeira. Como se houvesse uma evidente que, se o juiz não respeitar os precedentes
interpretação correta a ser formulada pelo da Suprema Corte, ele obviamente não estará nem
Supremo Tribunal Federal. Sabemos que o pró- respeitando a lei nem o Direito. Mas estará, como
prio Supremo Tribunal Federal, como qualquer querem alguns, submetido apenas e tão-somente
Corte, pode revogar os seus próprios precedentes às suas próprias opiniões.
constitucionais. Ora, se o Supremo pode revogar Outro argumento que se utiliza, de forma mui-
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Cadernos
do CEJ 157

to corriqueira, para se negar a tese do respeito sistema que abre oportunidade à revogação de
aos precedentes, afirma que, se um precedente precedentes é um sistema que propicia o desen-
tiver força obrigatória nas causas futuras, terá na- volvimento do Direito mediante a criação de pre-
tureza de lei. Lembra-se aí a própria doutrina de cedentes e da sua revogação.
Calamandrei. Realmente, Calamandrei afirmou O outro argumento de que os precedentes se-
isso textualmente: “Uma decisão de Suprema riam algo peculiar, (também há os sistemas em
Corte não pode obrigar os Tribunais ordinários, que os juízes criam o Direito e, portanto, inserví-
porque senão ela estará adquirindo força de lei.” veis ao sistema de civil law, não convence porque
O problema é que Calamandrei pensava a par- não é verdade). Não é verdade que o stare deci-
tir do common Law, da sua época, do common law sis diga respeito a sistemas em que o juiz cria o
inglês da sua época. Época em que ainda era mui- Direito. Até mesmo porque, no próprio common
to presente a célebre decisão tomada em London law primitivo, havia acirrada disputa sobre a na-
Tourways, pela House of Lords, onde se definiu a tureza declaratória ou constitutiva da jurisdição.
completa impossibilidade da House deixar de se Basta lembrar que Blackstone, Benthan e Austin
submeter aos seus próprios precedentes. tiveram severa polêmica a respeito da possibili-
A partir daí, então, Calamandrei via que a ad- dade de o juiz simplesmente funcionar como um
missão de um sistema similar ao do stare decisis oráculo, trabalhar como se fosse um oráculo, a
acabaria impedindo a evolução da interpretação partir dos costumes para meramente declará-los.
e, por esse motivo, negava a possibilidade de um E há aqueles que diziam que o Direito só poderia
sistema de civil law trabalhar com algo similar ao estar nos precedentes que criariam ou constitui-
stare decisis. riam o Direito.
O fato é que hoje, em todos os lugares do Enfim, a discussão, em si, não nos importa. O
common law, há a possibilidade de revogação que importa é demonstrar que também no pri-
dos precedentes. No Direito estadunidense, isso mitivo common law não havia consenso sobre a
é muito comum; há até quem diga que é cabí- própria natureza da atividade exercida pelo juiz
vel aquilo que os americanos chamam de “an- ao decidir. Aliás, essa questão foi retomada hoje
tecipatory overruling”, ou seja, a possibilidade no célebre embate entre Hart e Dworkin, quando
de a própria Corte inferior revogar precedente se chegou a dizer que Dworkin estaria, a partir
da Suprema Corte quando a Suprema Corte, dessa argumentação, retomando a própria teoria
mediante decisões inconsistentes e sinalizações declaratória da jurisdição, claro que a partir de
acerca da fragilidade do precedente, já demons- outros pressupostos, mas sem admitir que o juiz
trou que, quando tiver oportunidade para tanto, cria o Direito.
certamente irá revogá-lo. O meu objetivo, aqui, repito, é simplesmente
Com isso, quero simplesmente demonstrar que demonstrar que common law não tem nada a ver
está presente, de forma muito clara, a possibi- com criação do Direito. E que stare decisis tam-
lidade de revogar precedentes no common law bém, por óbvio, nada tem a ver com o sistema
americano. Mas também no common law inglês, em que o juiz cria o Direito. Na verdade, o stare
ao menos desde 1966, quando a House of Lords, decisis não tem também a ver com o próprio fato
mediante statement , declarou que todos os pre- de o sistema ser de direito legislado ou não – esse
cedentes da House podem ser revogados quando é um ponto importante.
presentes os pressupostos para tanto, também no Nos Estados Unidos, há uma série de preceden-
Direito inglês é possível o overruling ou a revoga- tes chamados de “precedentes interpretativos”, que
ção de precedente. se destinam simplesmente a definir a interpretação
De modo que não há como se supor que o a ser dada a uma lei, para garantir a estabilidade, a
Direito hoje estaria engessado ou que a inter- previsibilidade, a coerência e a igualdade.
pretação do Direito hoje não mais poderia evo- Aliás, esse mito de que no common law não
luir, ao contrário. O sistema de precedentes, o existe lei é uma grande bobagem. Basta perceber
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
158

que, em alguns estados americanos, há mais lei racional seria aquele dotado de clareza organiza-
que alguns países na Europa e na América Latina. cional e abrangência. Ou seja, Max Weber imagi-
Resumindo: não é que os países de common law nava como Direito ideal aquele Direito advindo
não tenham lei, não é verdade que nos países de do positivismo científico, o Direito criado a partir
common law o juiz cria o Direito. E mais impor- de princípios gerais mediante a dedução lógica
tante, não é verdade que o sistema de stare decisis de regras para todos os casos imagináveis.
não sirva, mesmo no common law, para garantir Claro, não admitia ele, enquanto Direito, ques-
a estabilidade da interpretação. tões de natureza moral, ética, política ou religio-
Aliás, é interessante lembrar a polêmica ques- sa. Como o Direito do common law obviamente
tão da Inglaterra, derivada da obra de Max Weber não é um Direito abrangente, muito menos um
e que foi tornada clara a partir de um estudo de Direito dotado de clareza organizacional, Max
David Trubek, publicado nos primeiros anos da Weber imputou-o de Direito não dotado de for-
década de setenta do século passado. O proble- malidade racional, mas deixou ele claro que,
ma que foi posto em relação à Inglaterra e que apesar disso, apesar de o Direito inglês não ser
nos permite alguma relação com o nosso tema é um sistema jurídico racional, ele trabalhava com
basicamente o seguinte: Max Weber, como todos determinados elementos que contribuíam para
sabem, a partir de uma descrição do comporta- a previsibilidade e para a calculabilidade, entre
mento do protestante, a partir dos valores, espe- eles o stare decisis , e daí ele consegue dar lógica
cialmente do calvinismo, fez ver que, a chamada à sua própria argumentação.
“ascese intramundana” teria colaborado para E Anthony Kronman também justifica a pró-
a racionalidade da vida e, portanto, mediante pria argumentação de Weber, ou seja, as críticas
as suas explicações, para o desenvolvimento do eram no seguinte sentido: o berço do capitalismo
Capitalismo. Além disso, esse comportamento, é a Inglaterra. Na Inglaterra, houve forte assento
derivado desses valores, teria propiciado, para dos valores do calvinismo, mas como, então, Max
alguns, um direito mais racional. Weber admite que o Direito inglês carecia de ra-
O problema é que Max Weber, ao trabalhar na cionalidade formal se ele mesmo diz que a racio-
Sociologia do Direito, disse, claramente, que o nalidade do Direito é algo indispensável para o
Direito do common law inglês não era um Direito desenvolvimento do Capitalismo? Como pode ele
formalmente racional, ao contrário do Direito aceitar, posteriormente, que, na Inglaterra, onde
continental europeu. Este, para Weber, seria do- se desenvolveu o Capitalismo e onde houve forte
tado de plena racionalidade formal; enquanto o assento do calvinismo, não há Direito racional?
Direito inglês, do common law, seria apenas um Ele não disse que o Direito inglês era um Direito
Direito materialmente racional, mas não dotado que não detinha qualquer racionalidade, e sim
de formalidade racional. A racionalidade jurídica que o Direito inglês não era dotado de plena ra-
do Direito inglês não seria plena. cionalidade nos moldes do Direito continental
David Trubek, entretanto, em 1972, alega: ao europeu de conteúdo conceitualista, que tinha
que parece Max Weber fez uma identidade inde- um conteúdo que deu origem ao pandectismo.
vida entre previsibilidade e racionalidade jurídica Weber, entretanto, deixou claro, e Proman sa-
ou fez uma má compreensão da diferença entre o lienta isso, que o stare decisis, apesar de tudo isso,
Direito continental europeu e o Direito do com- garantia a calculabilidade e a previsibilidade; de
mon law inglês. modo, então, que, exatamente por estar presen-
Na verdade, Max Weber, como demonstra te no Direito inglês, entre outras coisas (o stare
Anthony Kronman, aliás, em um livro traduzido decisis), foi possível lá o desenvolvimento do ca-
na importante coleção coordenada pelo Professor pitalismo, e não apenas na Alemanha.
Ronaldo, não faz qualquer confusão entre previ- Mas é interessante, agora, tomar em conside-
sibilidade e racionalidade jurídica. Ao contrário, ração a transformação do Direito de civil law. É
ele deixa claro que, para ele, o sistema jurídico claro que o Direito de civil law nada mais tem a
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Cadernos
do CEJ 159

ver com aquele Direito imaginado pelo positivis- necessariamente, trabalhar com o respeito aos
mo científico, nada mais tem a ver com o con- precedentes. Em outros termos, o respeito aos
ceitualismo, nada tem mais a ver com princípios precedentes no Direito de civil law atual, nada
gerais que permitem a dedução ou conceitos ge- mais é do que uma consequência natural da
rais bem elaborados que permitem a dedução de transformação do Direito.
regras para todos os casos imagináveis; ao contrá- Por fim, brevemente, só gostaria de salientar,
rio, a partir do impacto do constitucionalismo se para complementar, que não podemos continuar
deixou muito claro que as decisões judiciais têm a pensar que a função de uma suprema corte é
que estar abertas aos valores morais, políticos e a de tutela do litígio ou de tutela da parte re-
assim por diante. corrente ou recorrida. Não é essa a função das
Além de tudo, passamos a trabalhar de forma supremas cortes. A função da suprema corte é
muito mais presente com a técnica das cláusulas colaborar para o desenvolvimento e para a evo-
abertas exatamente para justificar a necessidade lução do Direito. O âmbito de resolução dos li-
de o juiz estar em contato com aquilo que se de- tígios está entre o juiz singular e o tribunal de
nominou de “justiça do caso concreto”. Ora, se apelação, de modo que o recurso especial não
nós, agora, hoje, temos em mira a justiça do caso pode ser visto como um direito subjetivo da par-
concreto e trabalhamos a partir de pressupostos te; o recurso especial é apenas um instrumento
que nada tem a ver com aquele Direito racional- que viabiliza a abertura da jurisdição do Superior
mente formal imaginado por Weber, por que não Tribunal de Justiça para que ele possa dar vazão
admitirmos também, em nosso favor, a ajuda do à sua missão de desenvolver o Direito federal. É
critério do stare decisis ? Weber viu o stare decisis exatamente por isso que a técnica da divergência
obviamente não como sinônimo de racionalidade que é utilizada hoje de forma distorcida como um
ou de previsibilidade, mas como elemento capaz instrumento a serviço do advogado que quer ver
de propiciar a previsibilidade e a racionalidade. “subir” – entre aspas – “o recurso especial” tem
Ou seja, demonstrou ele que a racionalidade que ser repensada. A técnica da divergência não
do Direito é algo relativo. Por ser relativa à ra- é algo que serve para o advogado, a técnica da
cionalidade do Direito, ela pode ser maximizada divergência é um ônus do advogado. Mediante
ou não. Uma das formas para se contribuir com a a esta, o advogado tem o ônus de demonstrar
potencialização da racionalização do Direito está a divergência para abrir à corte a possibilidade
no stare decisis , porque não se admitir o respeito de intervir para sepultá-la. Ou seja, a técnica da
aos precedentes no civil law ? Não, temos que divergência é e atua em benefício da corte, não
admitir o respeito aos precedentes no civil law, em benefício da parte ou dos advogados.
porque já percebemos que,
para se dar racionalidade a
toda e qualquer decisão que
[...] há uma lamentável confusão entre efeitos de
atribui sentido ao Direito, é
uma lei inconstitucional e efeitos de um juízo sobre a
indispensável argumenta-
constitucionalidade de uma lei.
ção, são indispensáveis ra-
zões adequadas, as melho-
res razões.
Ora, se pensamos em argumentação, e, a par- É exatamente por isso, também, por consequ-
tir disso, inclusive, frisamos o critério da universa- ência lógica, que, uma vez decidida a questão
bilidade como fator de garantia da própria racio- a partir de um recurso especial admitido com
nalidade da argumentação, universabilidade no base em divergência jurisprudencial, não há mais
sentido de que, toda e qualquer decisão para ser como se admitir que tribunal algum da federação
racional tem que ser uma decisão que se amolde decida de modo contrário. Se isto não ocorrer,
a todos os casos iguais ou similares – temos que, para nada servirá a técnica da divergência, para
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
160

nada servirá a norma constitucional, na verdade. um filtro recursal à semelhança daquele que foi
Além disso, se a técnica da divergência sepulta, instituído na Alemanha em 2002 para a admis-
elimina a possibilidade de divergência entre os sibilidade do recurso para o Bundersgericht, ou
tribunais estaduais e regionais federais, também seja, lá somente se admite o recurso extraordi-
elimina a possibilidade de o próprio Superior nário para o Tribunal Superior alemão nas hi-
Tribunal de Justiça voltar a reinterpretar a ques- póteses em que a decisão tenha uma relevância
tão em outro eventual julgado. muito grande para permitir o aperfeiçoamento
O Superior Tribunal de Justiça só pode re- do Direito ou a unificação da sua aplicação, ou
vogar os seus precedentes quando presentes os quando a questão de Direito decidida tem uma
pressupostos próprios para a revogação dos pre- importância fundamental.
cedentes. Esses pressupostos não têm nada a ver É claro que isso é uma cláusula aberta e abre,
com a ânsia de voltar a reinterpretar o texto ou de certa forma, espaço para discricionariedade
voltar a discutir o caso já encerrado. Isso não é da Corte, mas não vejo o menor problema nisso.
possível sob pena de não termos precedentes, A Corte tem de ter discricionariedade para dizer
nem estabilidade do Direito, nem igualdade pe- o que a ela é importante para o desenvolvimento
rante o Direito. do Direito. Não são todas as questões do Direito
Por fim, temos que deixar de lado o mito da que são importantes para uma Corte Suprema e
contrariedade à lei como requisito para admissi- é exatamente por isso que a parte não pode re-
bilidade do especial. O que é fundar um recurso clamar pelo fato do seu recurso não ser admitido
especial em contrariedade à lei senão supor que porque não é importante, ele não precisa ser ad-
o STJ sempre está obrigado a conhecer do re- mitido porque ele não é Direito subjetivo. Aliás,
curso especial quando o advogado está descon- o recurso extraordinário já não é admitido em
tente com a interpretação que lhe é contrária? caso de repercussão geral. Então, nós estaríamos
Não há contrariedade à lei. A contrariedade é apenas a reprisar esse fator.
uma interpretação. O que pode sustentar o recur- Enfim, sem um filtro recursal, creio eu, será
so especial é a contrariedade e a interpretação muito difícil ao Superior Tribunal de Justiça
do próprio Superior Tribunal de Justiça, não a tornar-se uma verdadeira Corte de preceden-
contrariedade à lei. Esta faz ser admissível todo tes, uma Corte que se concentre apenas sobre
e qualquer recurso especial que alega que a lei as questões de Direito que sejam realmente fun-
foi contrariada, todo advogado pode fazer isso, damentais para permitir o desenvolvimento e a
de modo que nós precisamos, na realidade, é de evolução do Direito.”
série
Cadernos
do CEJ 161

RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA


Ministro do Superior Tribunal de Justiça


Agradeço ao Professor Marinoni pela brilhante palestra com enorme impacto prático na
nossa atividade diária de tentar uniformizar o Direito nacional, como manda a nossa Constituição.
Temos, ainda, um longo caminho a percorrer na criação dessa hermenêutica dos precedentes no
Brasil, mas o Professor, certamente, tem contribuído excessivamente para que possamos avançar
nesse sentido e criar esse tão esperado filtro para que os nossos tribunais superiores possam, de fato,
exercer o papel que lhes destina a Constituição.
Agora, teremos uma mudança de regra. Havíamos previsto, originalmente, um intervalo, mas hoje
é sexta-feira, as nossas práticas sociais no Brasil ainda são um pouco menos conservadoras do que
talvez sejam em Portugal. Então, teremos o prazer de ouvir um destacado Professor da Universidade de
Lisboa, a quem chamo para que suba. Professor Fernando Araújo, que é Doutor em Ciências Jurídicas
Econômicas, Professor de Economia Política e Filosofia do Direito para o mestrado, conferencista e
escritor nas áreas de Economia, Análise Econômica de Direito, Filosofia e Teoria do Direito. Tive o
prazer de verificar em Portugal que, também, na área do Direito dos animais ele também é um desta-
cado pensador, um dos mais destacados doutrinadores nessa área e nas áreas de Economia e Direito
tem um trabalho extremamente educativo.
É uma honra para nós tê-lo aqui hoje. Ele chegou ontem de Portugal. Falará sobre o problema
econômico da adjudicação ótima, a natureza do bem, adjudicação. Ainda mais hoje, nesta data em-
blemática, o 25 de abril, quarenta anos, tê-lo aqui é realmente um privilégio raro.”
Problema econômico da
adjudicação ótima: a natureza do
bem adjudicação


FERNANDO ARAÚJO
Professor da Universidade de Lisboa – Portugal Agradeço as gentis palavras, agradeço
o convite de estar aqui e verifiquei, mal entrei
nesta sala, que está cheia de invocações da mi-
nha própria pátria.
Também tive, durante este dia, o grato prazer
de ver aqui pessoas que muito admiro e estimo.
Elas sabem quem são, não vou nomeá-las.
Vou falar da natureza do bem, adjudicação.
Primeiro, tenho de definir bem. Adjudicar é, no
fundo, aplicar justiça e dirimir um conflito e atri-
buir um direito a quem recorre, a alguém que
vai administrar essa justiça. Ao falar da natureza
do bem adjudicação, devo já discutir essa natu-
reza. O bem adjudicação é um bem privado. Do
ponto de vista estrutural, é um bem privado. Em
termos econômicos, iríamos defini-lo como um
bem privado. O que significa, portanto, que o
adjudicador pode negar-se a dar, a exercer sua
adjudicação se não for compensado por isso.
A primeira pergunta que segue é esta: por que
os juízes não abandonam imediatamente a carrei-
ra dos juízes e não se privatizam, isto é, por que
não se convertem imediatamente em árbitros?
Porque, sendo árbitros, poderiam, eventualmen-
te, obter uma organização muito superior rela-
série
Cadernos
do CEJ 163

tivamente aos valores dos litígios que dirimem. sicamente a falar, sobretudo, da arbitragem.
Há qualquer coisa de estranho aqui, por que isso Portanto, o contraponto agora vai se fazer, sobre-
é assim? E, no fundo, eu iria tornar o objeto da tudo, entre a arbitragem como a adjudicação de
minha palestra uma pequena indagação em torno litígios e a via judicial tradicional. A arbitragem
deste pequeno mistério: por que os juízes não poderá permitir mais eficiência, mais imparcia-
fogem todos? Por que certos árbitros continuam lidade. É nesse sentido que um árbitro poderá
a aceitar uma remuneração rígida, que nada tem ser mais sensível a valores setoriais, poderá ser
a ver com o valor das suas adjudicações? um melhor especialista. Normalmente, só será
Eu dividiria minha exposição em duas verten- contratado se prometer dar uma solução, rápi-
tes, que foram duas vertentes lançadas no princí- da, com alguma maleabilidade processual, de
pio dos anos sessenta, em um artigo que envolvia forma que as partes possam ganhar tempo, que
dois autores, um deles muito conhecido, Richard é normalmente um dos custos implícitos que mais
Posner. Em um primeiro momento, vou falar dos impendem sobre aqueles que recorrem à via tra-
sistemas privados de adjudicação e, depois, vou dicional da adjudicação.
falar, em certo momento, da previsão competiti- Na verdade, essa visão, diria, colorida, mui-
va de serviços judiciais, seja como uma compe- to otimista sobre a adjudicação privada, rapida-
tição entre o público e o privado, seja até uma mente é desmentida por aquilo que, na teoria
competição entre os públicos. econômica, se designa como falhas no mercado
Falemos, então, primeiro dos sistemas priva- e fenômenos de captura; isto é, o mercado da
dos da adjudicação. O que um adjudicador pode adjudicação privada não funcionava nada bem,
fazer? Pode fazer, em abstrato, duas coisas, mas o que não é de se estranhar, porque a maior par-
em concreto só pode fazer uma, se não estiver te dos mercados também tem as suas falhas e
enquadrado em uma estrutura que, de certa ma- uma boa parte da análise econômica do Direito
neira, já explica porque os juízes não abandonam moderno, embora esteja muito ligada à ideia de
as suas carreiras. Em abstrato, ele pode fazer dois defesa liberal da economia do mercado, tem sido
serviços: um é a assunção de litígios e o segundo pioneira da denúncia dessas falhas no mercado e
é a formação de regras. Em abstrato, ele pode na proposta para alguns sucedâneos.
fazer as duas coisas. Em concreto, ele só pode so- E falhas do mercado que poderíamos, assim,
lucionar litígios, a menos que esteja enquadrado genericamente, encontrar são fáceis de achar,
em uma estrutura que permita essa formação de sobretudo por alguém que já tenha tido algum
regras. A simples adjudicação privada não per- contato com a arbitragem. O primeiro problema
mite a formação espontânea de regras. E já vou é o do acatamento da decisão, como se acata
procurar demonstrar que é assim. uma decisão privada. Não é fácil, porque o me-
Em todo caso, essa oferta de serviço pelos ad- canismo coercivo que apoia a decisão adjudica-
judicadores visa, no fundo, normalizar condutas, tória, por definição, não existe na decisão pri-
ou seja, pacificar socialmente, normalizando con- vada, e, não obstante a decisão privada muitas
dutas de acordo com essas decisões. É claro que, vezes ser precedida de um compromisso que leva
se for possível a solução de litígios seguir uma a que as partes prometam uma à outra acatar
regra, essa regra pacificará mais facilmente, nor- essa decisão, nada disso está garantido, o que
malizará mais facilmente e permitirá a formação significa, portanto, muitas vezes, que a decisão
de standards de conduta. Mas seguir uma regra privada terá de ser acompanhada, no final de
não é sinônimo de formar uma regra. Um ad- um recurso, à jurisdição normal para que haja,
judicador privado pode seguir uma regra, pode por exemplo, uma invocação do cumprimento da
até ir à carona de formação de regras no setor cláusula compromissória, e, portanto, essa desa-
público. Agora, se eu puder formar uma regra, vença, esse impasse.
então, ganha outra dimensão a sua adjudicação. Depois, diria que, em termos temporais, mas
Na solução privada de litígios, estamos ba- talvez menos importante, há o problema da
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
164

própria escolha dos árbitros, um processo que meio de regras, por exemplo, de ostracismo, de
permite, muitas vezes, aquilo que é designado expulsão dos membros que não acatem essas de-
pela doutrina como um “arrastar pés”, as partes cisões arbitrais, e assim sucessivamente.
podem arrastar suas decisões de aceitação de ár- Mesmo nesses quadros institucionais um pou-
bitros e tirar daí vantagens estratégicas. Depois, co mais fortes, ou intermédios, digamos assim,
também, a arbitragem está muito ligada aos con- quadros corporativos – não fosse a expressão
luios das partes, ou até conluios das partes com coorporativa, haveria uma contenção histórica
os árbitros, sendo que, muitas vezes, os árbitros que nos faria hesitar – por que, mesmo nesses am-
nomeados pelas partes atuam como verdadeiros bientes um pouco mais fortes, não se formam as
advogados das partes e, portanto, perdem muito regras? Por que essa adjudicação privada tende
rapidamente a sua independência. a não formar regras por meio de precedentes? É
Além disso, existe a ideia da frequência da porque aí temos um outro problema, perfeita-
arbitragem, significando que, muitas vezes, a mente identificado na teoria econômica como
captura do árbitro vem do fato de ele favorecer o problema da produção de bens público ou, se
sistematicamente o julgador repetido, o julgador quisermos, da subprodução ou da não produção
mais frequente, em detrimento do julgador me- de bens públicos.
nos frequente; isto é, ele tende a favorecer o jul- O problema que se coloca é basicamente este:
gador mais frequente porque sabe que será o que o adjudicador que fosse convocado a estabelecer
mais probabilidade terá de ser o recontratado. um precedente teria aqui um esforço suplementar
No fundo, tentará agradar ao julgador mais fre- que beneficiaria terceiras partes, ou seja, litigan-
quente, àquele que mais frequentemente acorre tes futuros aos quais o próprio adjudicador não
à arbitragem. Portanto, todo gênero de situações, teria forma nenhuma de cobrar o benefício com
de situações oportunistas, pode ocorrer nesses o estabelecimento do precedente; ou seja, ele
ambientes de adjudicação privada. não conseguiria internalizar a seu próprio favor
a externalidade positiva, o
benefício que está a favor de
[...] seguir uma regra não é sinônimo de formar uma regra. Um
litigantes futuros que iriam já
adjudicador privado pode seguir uma regra, pode até ir à carona de
beneficiar-se do precedente
formação de regras no setor público. Agora, se eu puder formar
que ancorava decisões futu-
uma regra, então, ganha outra dimensão a sua adjudicação.
ras. Então, não tendo a pos-
sibilidade de internalizar, por
É claro que, quando estamos a falar da con- meio da comunicação própria, esses benefícios
traposição entre jurisdição pública e adjudicação que causa a terceiros futuros, então o adjudica-
privada, faltamos falar de um fenômeno intermé- dor prefere evitar esse esforço suplementar e
dio, o qual explica que, não obstante essas falhas, ater-se apenas à solução de um litígio concreto.
a arbitragem, mesmo assim, tem algum sucesso. Só não o fará, na maior parte das vezes – por isso,
E esse fenômeno intermédio é o fenômeno de aparecem situações embrionárias de formação de
algumas regras setoriais, de algumas regras cor- algumas regras nesses quadros institucionais –,
porativas que fazem com que, muitas vezes, a porque alguns adjudicadores (sobretudo quando
arbitragem, como a de adjudicação privada, apa- não impera a regra do sigilo nessas adjudicações
reça já enquadrada em um conjunto institucional privadas, porque muitas vezes é dominante, mas,
que garante a sua aplicação – câmeras, associa- quando ela não aparece, às vezes elas podem ter
ções que promovem a arbitragem –, às vezes até efeitos reputacionais a se obterem por intermé-
em termos obrigatórios para os seus associados, dio dessa solução de precedente), pretendem dar
definindo regras, promovendo sorteios de árbi- alguma visibilidade a algumas das suas posições,
tros que não podem ser recusados pelas partes, que, de certa maneira, os vinculam para o futuro
impondo soluções e o acatamento da decisão por e podem, até pelo seu prestígio, mas um prestígio
série
Cadernos
do CEJ 165

extrassistemático, vir a influenciar decisões sub- arbitration é um incentivo a que as partes se apro-
sequentes que, por efeito carona, se apoiam no ximem uma da outra, é uma convergência pé-
prestígio de decisões, entre outras. -adjudicativa antes que o árbitro venha a decidir.
Aqui há um problema, que é novamente com Eu dizia que, na adjudicação privada, haverá
a adjudicação privada. Se vamos admitir que a algum afastamento da função da formação de
adjudicação privada é uma prestação privada regras. Pergunta-se o que isso significa na práti-
de serviço e, portanto, está sujeita a puras re- ca. Significa basicamente duas coisas: primeiro,
gras do mercado, não há qualquer interesse de que a adjudicação privada deve ater-se, na maior
um adjudicador privado em quebrar uma certa parte dos casos, a uma estrita separação de pode-
ambiguidade nas suas posições como árbitro. res, no sentido de reconhecer que não lhe cabe
Porque se afirma uma posição muito clara para a formação de regras e, portanto, deve manter,
o futuro e se elimina metade do mercado que digamos assim, um acatamento literal, extenso e
se pretende julgar com alguma ambiguidade ou explícito das regras legislativas, no pressuposto de
com alguma incerteza na adjudicação para se que o Poder Legislativo efetivamente consegue
recorrer a arbitragem. Portanto, os árbitros com desempenhar a sua função social de monopolista
posições absolutamente inequívocas inclina-se a da formação de regras e de que o adjudicador é
perder metade do mercado, e o mercado tende a um mero intérprete desse acervo monopolista.
favorecer aqueles árbitros que, com alguma agili- Outra coisa é a adjudicação privada ser mimé-
dade, tendem a favorecer alguma ambiguidade. tica da metade da adjudicação pública. A verda-
Não digo ambiguidade no pior sentido possível, de é que não há nenhum sistema, absolutamente
não estou dizendo que isso seja, por exemplo, nenhum, no mundo moderno, no qual as duas
um convite a uma certa covardia livrativa, não formas de adjudicação não coexistam e no qual
é bem isso, mas que, muitas vezes, nesse esforço não se registre que a adjudicação privada é imita-
da adjudicação privada, há muitas formas que os dora dos procedimentos da adjudicação pública,
adjudicadores podem usar para se furtar a deci- por várias razões, algumas delas até por razões
sões muito marcantes ou que vinculem muito um de parasitismo. A adjudicação privada ocorre à
pensamento seu materialmente determinante de sombra da adjudicação pública, que efetua pra-
sua decisão. ticamente as decisões. Ela aparece, muitas vezes,
Penso, por exemplo, que muitos árbitros po- como o resultado de uma ameaça de recursos à
dem generalizar a impressão de que são meros adjudicação pública, no caso de falhar a adjudi-
aplicadores mecânicos de regras de Split the cação privada, mas, também, porque os protago-
difference, portanto salomônicos. Em qualquer nistas, muitas vezes, são os mesmos.
decisão, eles veem quanto pesa uma parte, quan- Muitas vezes, os árbitros são juízes aposenta-
to pesa a outra, fazem uma média e a atribuem. dos que fizeram a sua reputação como adjudi-
Muitas vezes, há formas até de arbitragem que já cadores públicos e que agora vão aproveitar a
jogam um pouco com isso e tentam forçar que a sua liberdade para exercerem as suas funções de
arbitragem seja apenas um último momento em adjudicadores. E os mesmos advogados que in-
um esforço de mediação implícita chamada Final tervêm em processos judiciais aparecem também
offer arbitration, uma ideia em que as partes se na arbitragem com os mesmos hábitos, com os
ariscam. No fundo, o Final offer arbitration fun- mesmos vícios, e até com algumas convicções
ciona do seguinte modo, para aqueles que não a consuetudinárias da obrigatoriedade de regras
conheçam: o árbitro não pode tomar nenhuma que são decalcadas do Público para o Privado
decisão intermédia, tem que optar total e literal- e que, no fundo, retiram custos de transação no
mente por uma das posições ou pela outra, de privado e o viabilizam.
maneira que as partes, para diminuírem o risco Há um outro problema que se coloca quanto
de perdas, aproximam a posição uma da outra à adjudicação privada. É que ela efetivamente
antes que o árbitro decida. Portanto, a Final offer interpela a adjudicação pública. Nesse sentido,
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
166

faz-se sentir aos juízes o quanto eles estão a per- hiperpositivistas, rapidamente concluiría­mos, por
der por não serem adjudicadores privados, visto qualquer leitura, mesmo muito superficial de
que os adjudicadores privados podem fixar suas qualquer pequeno artigo da antropologia jurídi-
remunerações com os percentuais dos valores ca, que a adjudicação precede muito o fenômeno
em litígio, o que o adjudicador público, pura e estadual e que, em todas as sociedades primiti-
simplesmente, não pode fazer. vas, existem fórmulas mais ou menos pitorescas,
Então, a questão que tem que se colocar é mas certamente muito definidas de adjudicação
esta: não será a adjudicação privada um bom que, muitas vezes, funcionam, e até de uma for-
pretexto para se repensar a forma de remunerar ma muito curiosa, até diria especialmente en-
os juízes e as carreiras judiciais? O ponto é deba- volvente, para a análise econômica de Direito, e
tido pelo menos desde os tempos de Adam Smith, muitas delas confirmam a intuição que garantiu
porque Adam Smith, em A Riqueza das Nações, a celebridade de Ronald Coase, com o Teorema
dedica algumas páginas a essa questão com algu- de Coase: em sociedades menores, a adjudica-
mas observações até um pouco caricaturais sobre ção é mais simples porque há menos envolvidos,
a forma como um juiz decidiria se fosse pago por portanto os custos de transação são mais baixos
linha ou se fosse por página, e depois ele também e, ao mesmo tempo, o conhecimento pessoal de
adapta aos próprios advogados. todos os envolvidos em oficinas de julgamento
Em tese, nada obsta que um juiz pudesse ser muito fechadas, muito restritas, permite que as
pago em proporção das custas de um processo. adjudicações sejam mais seguras e mais severas
Nada obstaria e até poderia, efetivamente, como do que em sociedades nas quais o anonimato e a
em tudo na vida, constituir um incentivo ao au- massificação preponderam.
mento da sua eficiência se, por exemplo, a sua Há um célebre estudo pós-coaseano sobre
remuneração fosse calculada em um quociente vaqueiros em Shasta County, na Califórnia, em
de eficiência da sua decisão. Portanto, é justa- que se concluiu algo que antropólogos concluem
mente da sua decisão que há uma justiça material hoje, também, relativamente ao estágio de adju-
referida pelos precedentes, um quociente entre dicação das sociedades primitivas: elas são mais
isso e o tempo, a demora na decisão processual, severas do que as leis civis da maior parte dos
sendo que eu poderia ser penalizado pela demo- países evoluídos. Nesse sentido, elas são muito
ra processual. mais estritas e permitem muito menos cláusu-
Adam Smith também coloca isso, mas rapida- las abertas e indeterminadas. O que significa,
mente põe o dedo na ferida que se mantém to- de certa maneira, que, nessas cláusulas abertas
talmente atual. A questão é saber como se mede e indeterminadas, estão inseridas um pouco da
a eficiência de um adjudicador? Em termos de nossa turbulência recíproca, ou, pelo menos, dos
adjudicação privada, esse problema não se co- ganhos cívicos que pretendemos obter com essa
loca, porque muitas vezes a remuneração é con- massificação e anonimato.
tratualmente fixada muito antes do processo de De certa maneira, ilustrando um velho ditado
adjudicação. Em uma adjudicação pública, seria espanhol que dizia “para os amigos, tudo; para os
um pouco mais difícil se levassem em conta essa inimigos, nada; e, para os desconhecidos, o direi-
possibilidade de sujeição, uma combinação priva- to”, isso significa que as regras jurídicas são muitas
da quanto ao modo de aferição dessa eficiência. vezes o sucedâneo de um conhecimento direto
Também um ponto que Richard Allen Posner, que permite uma maior recompensa, mas também
no tal artigo dos anos 70, coloca é o problema de uma maior imposição de soluções àqueles que co-
se saber se essa adjudicação privada não aponta nhecemos e, por conhecermos ou amarmos, trata-
também um problema quanto ao monopólio da mos de forma privilegiada ou detestamos, porque
adjudicação pública. No fundo, a questão é saber os conhecemos bem, portanto procuramos tratar
se a adjudicação é ou não um fenômeno pré-esta- de forma especialmente severa.
dual. Mas, aqui, parece-me que, salvo se fôssemos Algo muito parecido com isso acontece hoje
série
Cadernos
do CEJ 167

nessas adjudicações privadas das sociedades ver com a vedação do recurso, que muitas vezes
primitivas, na arbitragem dita “crucial”, ad hoc, é justificada pelas necessidades de severidade e
que é a arbitragem adquirida pelas partes por um de segurança na adjudicação privada, mas que
compromisso arbitral sem haver necessariamente muitas vezes acaba, no fundo, por indicar no
pré-inserção em um ambiente corporativo que sentido que veda o policiamento, por exemplo,
cinja o âmbito dessa arbitragem com cláusulas de ações rescisórias, que ainda podem ser arqui-
que admitem até o recurso a outras ordens jurí- tetadas em um nível corporativo e certamente
dicas ou a juízos de equidade de uma forma que são arquitetadas pelos recursos na adjudicação
não é permitida na adjudicação judicial e com judicial, mas, frequentemente, na adjudicação
toda a liberdade que as partes podem ter nesse privada ad hoc passam e podem vitimizar grave-
excesso a essa adjudicação. mente aqueles que recorrem à adjudicação pri-
Nessa arbitragem ad hoc, nessa arbitragem vada, embora se possa admitir que a adjudicação
crucial, está excluída a formação das regras, por- privada também está sujeita a princípios gerais
que realmente há um bem público que está em contratuais, alguns tendo a ver com as cautelas
jogo que nem o adjudicador, nem muitas vezes que o comprador deve ter.
as próprias partes pretendem que seja produzi- Passemos, então, à segunda parte, que abor-
do, porque as próprias partes podem dizer que darei de forma mais tópica e incidental e com a
estão a pagar essa arbitragem, mas, no fundo, brevidade necessária.
outros que vão tirar benefício desse precedente A segunda parte, como dizia, diz respeito à pro-
deveriam nos ajudar a suportar as custas dessa visão competitiva de serviços judiciais. Hoje, em
arbitragem, e não o fazem. Mas não é apenas termos econômicos, pergunta-se qual a vantagem
um adjudicador que fica subcompensado, são as da adjudicação privada e a da pública. A primeira
próprias partes que recorrem.Obviamente, estão questão que deveríamos colocar não é se existe
muitas vezes prejudicados pela confidencialida- uma competição entre elas, é saber se não existe
de. O que não significa, insisto – e precisava insis- ainda uma alternativa a todas elas, que é a presen-
tir para terminar esta primeira parte – que muitas ça de meios não adjudicativos que são capazes de
arbitragens e ajudicações privadas que hoje co- alcançar os mesmos efeitos da adjudicação.
nhecemos já são frutos dessa
história de corporações. O
exemplo talvez mais visível O contrato incompleto, na maior parte das vezes, é
seja o da sedimentação da deliberadamente incompleto, mas porque, de vez em quando,
Lex mercatória, que passou lembra-se que, na ausência de estipulação contratual, não
a ser uma sedimentação de vigoram regras supletivas contratuais.
adjudicações privadas, es-
pontâneas, mas que foram
criando, em um determinado meio restrito, re- Que meios são esses? Eu diria que o meio não
gras capazes de disciplinar condutas dos seus adjudicativo mais claro é a regra jurídica, é a
participantes. regra legal que estabelece normas supletivas e,
Também se tem falado do ganho do sistema portanto, define, na ausência da adjudicação, al-
acusatório em contraposição ao sistema inquisi- gumas regras de afetação de recurso. Por exem-
tório. Ou seja, a iniciativa na adjudicação privada plo, umas das áreas mais férteis, atualmente, da
leva muitas vezes as partes a insistirem em ter análise econômica dos contratos é a figura do
um papel mais proeminente na descoberta da contrato incompleto. O contrato incompleto, na
verdade e na aplicação do Direito do que teriam maior parte das vezes, é deliberadamente incom-
na adjudicação judicial. pleto, mas porque, de vez em quando, lembra-
Outro ponto muito importante, que está cone- -se que, na ausência de estipulação contratual,
xo com a vedação da formação de regras, tem a não vigoram regras supletivas contratuais. Não,
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
168

até vigoram mais do que isso, vigoram regras de prováveis e conclusões prováveis, portanto, em
propriedade. E muitas das regras de propriedade tudo, é sempre possível alguma margem opinati-
são sucedâneas, supletivas em relação às estipu- va. Mas, margem opinativa será maior ou menor
lações contratuais. Ou seja, na ausência de uma conforme haja ou não um consenso social sobre
estipulação contratual, há regras do direito de a existência de regras que permitem uma afeta-
propriedade que definem as legitimidades que ção de recursos não adjudicativa. É evidente que
seriam definidas de outro modo se uma estipula- a adjudicação é muitas vezes o lado patológico
ção contratual fizesse circular essas legitimidades. daquilo as partes têm oportunidade de fazer por
Se não as fizesse circular, vamos supor que, meio de seus próprios arranjos contratuais.
em um contrato de trabalho, se diz: a partir de Aí se distorce a nossa apreciação das relações
amanhã, o senhor trabalha na minha empresa. sociais, porque muitas vezes estamos a falar das
No dia seguinte, há um problema em saber quem nossas relações sociais como os cirurgiões falam
abre a janela e quem fecha a janela. O dono da da saúde das pessoas. Os cirurgiões normalmente
fábrica diz: o senhor agora abre a janela. Ele diz têm contato com as pessoas em situações extre-
que não está no contrato de trabalho. Pois não mas de saúde. E nós, como juristas, temos de ter a
está, é que sou proprietário da fábrica. O que o percepção de que, embora o sangue não espirre
contrato não estipula estipulo eu, porque o con- para cima de nós, estamos muitas vezes a falar
trato, no fundo, no seu silêncio, nos seus hiatos, de situações de ausência de acordo normativo,
vem me dar uma legitimidade não adjudicativa, de acordo constitutivo das relações, muitas ve-
mas que é legitimidade de regra. Era uma re- zes completo nesse sentido de estipulações en-
gra básica do funcionamento e da cobertura do tre as partes. As partes podem estabelecer san-
próprio quadro normativo no qual se movem os ções, cláusulas penais, podem até computar o
contratos. Portanto, os contratos não têm que contrato com uma cláusula de governança – ou
remeter, nem deve haver nenhuma norma su- governação, como agora está tanto em moda -,
pletiva que diga que, no silêncio dos contratos, que dispensa uma adjudicação externa, porque
vigoram regras do direito de propriedade. Não é permite que alguém que governe internamente
preciso dizê-lo, porque são as regras do próprio o contrato, sem sair da relatividade deste, faça
sistema jurídico. as distribuições e as afetações do recurso que
normalmente caberiam a um
terceiro no caso de o contra-
[...] a adjudicação pública muitas vezes cai nessa corrida profunda, to entrar em colapso ante as
que é a corrida de agradar e de manter algum público e demanda por partes.
intermédio de um abaixamento de requisitos necessários para alguma Citando outros exemplos,
adjudicação rigorosa. relacionei o bom senso. Claro
que, se as partes desconfiam
muito uma da outra em ma-
Eu diria que a primeira ideia que temos de ter é téria de pagamentos, é bom que pensem em es-
de que os serviços de adjudicação não competem tabelecer algumas garantias que limitem muito o
apenas entre eles, mas também com a própria lei. papel da adjudicação posterior ou até que insis-
Como é óbvio, muitas vezes dispensa a intensi- tam em pagamento à vista, o que é mais seguro
dade adjudicativa. Dispensa por uma questão de do que estar apenas a fiar em conversa e em uma
grau, porque não vou querer, seria ingenuidade, externalização para um adjudicador futuro.
defender regras in claris. Não havendo regras in Digo isso de tal forma, de uma maneira óbvia,
claris, tem de haver sempre uma adjudicação, por que talvez me dispensasse de explorar muito isso
mais clara que possa parecer uma regra. Estamos se não fosse o fato da própria análise econômi-
aqui, como dizia Aristóteles, não na área ideo- ca aqui a dizer que, muitas vezes, a existência da
lógica, mas na área da dialética, com premissas possibilidade de uma adjudicação, pública ou pri-
série
Cadernos
do CEJ 169

vada, dá um efeito narcótico sobre a estipulação Quero dizer com isso que esses efeitos com-
contratual. As partes dizem: para que estaremos petitivos não deixam a jurisdição totalmente
agora aqui? É preocuparmos muito. Vamos ape- imune. Portanto, a adjudicação pública muitas
nas sinalizar um ao outro que, se houver algum vezes cai nessa corrida profunda, que é a cor-
problema, chamaremos um adjudicador. Porque rida de agradar e de manter algum público e
isso chama sinalização bastante rudimentar da demanda por intermédio de um abaixamento
nossa boa-fé ou aquilo que quisermos designar de requisitos necessários para alguma adjudi-
como algo similar. Portanto, basta-nos dizer: quero cação rigorosa.
fazer isso, e, no caso de haver uma incompreensão Outro ponto que hoje se coloca é o de se ver
sobre o problema que está acontecendo entre nós, se algumas das propostas que estão formuladas
virá um terceiro decidir por nós. Isso é um efei- quanto à modernização do próprio Processo Civil
to narcótico, porque muitas vezes está a remeter e do Processo Penal, mas, sobretudo do Processo
para um terceiro situações que podem ser da es- Civil, não estão já um pouco dominadas por esta
sencialidade do contrato e podem até prejudicar o ideia da privatização da adjudicação pública, ou
contrato, ou seja, podem colocá-lo em uma situa­ seja, a transferência para os privados de alguns
ção de patologia ou de sobreadjudicação. impulsos processuais podem, de certa maneira,
Por isso, sobretudo na adjudicação pública, esconder esta reação de algum pânico, pelo me-
existem cada vez mais fenômenos da chamada nos algum receio, de que o filé mignon passe todo
“adjudicação antecipatória”, que, no fundo, é o para a arbitragem e apenas fiquem os ossos para
que os homens de direito público designam por a adjudicação pública. Embora a adjudicação pú-
processos graciosos, não contencioso. Muitas ve- blica não tenha os incentivos necessários para ir
zes, vendo uma forma qualquer de reafetar recur- ao filé mignon, a verdade é que, por exemplo,
sos entre pessoas, o Estado e entidades públicas estar acima de uma reputação e de precedentes
antecipam uma adjudicação verdadeira e própria, faz com que a própria adjudicação pública não se
compondo, sempre que podem fazê-lo, esses equi- queira ver definitivamente afastada, por exemplo,
líbrios e evitando, com isso, as sequelas que po- da adjudicação de grandes casos comerciais. É,
dem estar associadas a uma adjudicação plena. portanto, preciso obter alguma forma de garantir
Depois, é evidente que é provisão competitiva algum acesso a essa demandada da própria ad-
de serviços judiciais e pode tornar-se antissocial. judicação pública.
Eu digo antissocial porque, por exemplo, há um Devo dizer que a imagem concorrencial está
crime que eu estava a dizer, o culto de certa am- muito supervalorizada. A maior parte das coisas
biguidade no adjudicador privado pode ser o seu que enaltecemos nos mercados como concor-
ganha pão, mas é a própria competição entre rência muitas vezes é colaboração. Quando as
os adjudicadores privados e públicos. E a pró- pessoas aparecem com coisas no mercado, nor-
pria competição entre os adjudicadores públicos malmente não aparecem com aquela ideia ou
pode ter efeito muito similar, sobretudo quando imagem de empenhar a luta pela vida, darwinis-
se nota, na jurisdição portuguesa, que algumas tas, que nos foi muito embutida pelos malthu-
reações iniciais de repúdio pela proliferação sianos, darwinistas, neo-darwinistas, marxistas
da arbitragem foram seguidas em um segundo e neomarxistas, que somos todos lobos uns dos
momento por algumas propostas, diríamos, de outros e que, no fundo, ganhamos competindo
descomplexificação dos processos judiciais, que, e esmagando. A maior parte das pessoas que
de certa maneira, tiveram um efeito perverso de chegam ao mercado quer colaborar, não quer
induzirem certo otimismo na litigância e, portan- propriamente destruir umas às outras e sabe tirar
to, levaram a uma litigância supérflua, para não proveito de explorar umas às outras.
dizermos já uma litigância frívola, ou aquilo que Aliás, uma passagem fenomenal, como há vá-
seria entendido por litigância frívola antes de es- rias, de Adam Smith, diz exatamente isto: que os
ses quadros terem sido mudados. cães ganham por caridade nossa, vivem da nossa
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
170

caridade, mas os homens sabem se tornar interes- “Segunda Lei de Gossen”. Isso agora é muito
santes uns aos outros e, portanto, é alimentando complicado. Estarei a explicá-lo, mas, no fundo,
o interesse dos outros que consigo sobreviver. apenas gostaria que tivessem essa ideia.
Meu egoísmo é manipulador dos outros, e não Se pensarmos bem, está na essência da ideia
hostilizador dos outros. de economizar não maximizarmos o uso nossos
Mas, além disso, o que me pergunto é: haverá recursos, mas sim saber manuseá-los numa posi-
um verdadeiro risco de a adjudicação privada ex- ção intermédia que garanta a sua sustentabilidade.
pulsar a adjudicação pública ou vice-versa? Creio Vejam bem, eu diria que também o ótimo
que não. Aqui estamos em um mundo muito pa- de Justiça não é o máximo de Justiça. Isto cho-
recido com o mundo das raposas e dos coelhos, ca, dito assim. Mas, por que não é o máximo de
por aquelas curvas cicloides. Já que estamos a Justiça? Porque a Justiça consegue ser vítima do
falar do malthusianismo e neomalthusianismo, há seu próprio sucesso. A Justiça está criticamente
umas curvas cicloides que, já no século XVIII, e, exposta àquilo que há muito tempo se conhece
sobretudo no século XIX, foram descobertas na como “a tragédia dos baldios ou a tragédia dos
relação entre raposas e coelhos: as raposas en- comuns”. Quando as pessoas dizem que a Justiça
gordam por comerem muitos coelhos, mas, quan- está em crise, eu concordo. Mas, imediatamente,
do comem muitos coelhos, deixa de haver tantos fornecem as suas explicações contraintuitivas. A
coelhos. E, a essa altura, elas, como engordaram Justiça está em crise, não porque seja muito má.
muito, começam a se reproduzir, começa a haver Não. É porque é demasiadamente boa. Porque
cada vez mais raposas e cada vez menos coe- ela é demasiadamente boa, gera chance de ex-
lhos. A essa altura, começam a morrer raposas, cessos, e isso faz com que ela se torne má. Se ele
porque não há alimento para todas. E quando as fosse muito má, ela teria resolvido seu problema
raposas começam a morrer, os coelhos vêm a sua com escassez de excessos. Se as pessoas não gos-
oportunidade de engordar e aumentar. E quando tassem da Justiça e não confiassem nela, elas não
aumentam e engordam, lá começam outra vez as acionariam tanto a Justiça e a Justiça funcionaria
raposas a aumentar, porque começam a comer melhor, seria mais atraente.
cada vez mais coelhos. Quando é que isso acaba? O que temos aqui à nossa frente? Uma curva ci-
Nunca. Isso não acaba nunca. Isto são curvas ci- cloide. Quer dizer que a Justiça tem de se manter
cloides, que se manterão enquanto essas espécies sempre um bocadinho má para se manter suficien-
estiverem em interação umas com as outras. temente boa, para as pessoas se manterem atraí-
Eu diria que a adjudicação privada e a ad- das pela Justiça sem a destruírem por congestio-
judicação pública são um pouco isso. Por quê? namento. Ora, é aqui que a adjudicação privada
Aqui, vou desviar só um nadinha daquele propó- desempenha um papel absolutamente essencial.
sito inicial pra lhes transmitir uma ideia que há A adjudicação privada hoje permite expul-
muito defendo, que é esta, como, aliás, o título da sar de um sistema sub-ótimo de acesso à Justiça
palestra dizia: o problema da adjudicação ótima. aqueles que têm formas de remediar esse acesso
O que é o ótimo na economia? A maior parte das pagando, ou seja, aqueles que fazem correspon-
pessoas não se apercebem que a economia, ao der uma certa disposição de pagar pela Justiça,
contrário da própria imagem popular, nunca diz um repúdio pelo custo de acesso à Justiça, que
que o ótimo é o máximo. Não. Por quê? Porque resultaria da espera por ela, que é o custo implí-
geralmente o máximo é alcançado com os cha- cito que as pessoas pobres pagam pelo seu acesso
mados “custos marginais crescentes”. E então o à Justiça. Uma pessoa pobre paga pelo seu acesso
que é ótimo para a economia, normalmente, é à Justiça com demora para tal.
um ponto intermédio, é um ponto de equilíbrio, Pergunta-se: isso é injusto? Não. Para uma pes-
que não representa nem o máximo nem o mí- soa pobre, o custo da oportunidade do tempo
nimo, é um ponto intermédio, que é o chama- perdido é menor do que para uma pessoa rica.
do “ponto de equimarginalidade”, da chamada Agora estou a dizer coisas politicamente incorre-
série
Cadernos
do CEJ 171

tas, mas é verdade. pública ou privada, só podem ser entendidas


Um pobre perde menos dinheiro por cada também como um compromisso entre pessoas
hora do que uma pessoa rica, porque seu ren- que querem que o sistema funcione bem e pes-
dimento por hora é superior, e, portanto, uma soas que querem que o sistema funcione mal, de
pessoa rica perde muito mais dinheiro se tiver acordo com os seus próprios critérios, isto é, que
que esperar um ano, e tiver que perder o seu tiram benefício do seu acesso ao extrarrecurso
rendimento de um ano, do que se um pobre tiver comum, que é a Justiça, para arrastarem, para
que perder o seu rendimento de um ano. E, por- tornarem menos eficiente a adjudicação, de acor-
tanto, para os ricos, obviamente, a adjudicação do com seu próprio critério, isto é, deixando de
privada é a primeira via. Mas quando eles saem aplicar aquela famosa regra de ouro ou da reci-
do sistema de adjudicação judicial e procuram a procidade. Ou seja, tentam impor ao sistema de
adjudicação privada, ao mesmo tempo eles des- adjudicação uma demora e uma falta de precisão
congestionam a adjudicação pública e tornam a que elas não gostariam de sofrer se fossem os seus
adjudicação pública mais atraente. Isso significa interesses que estivessem diretamente em jogo ou
que, com a saída das pessoas mais ricas ou das que tivessem a ser adjudicados. E, portanto, esta
entidades mais ricas, o descongestionamento veio aposta na ineficiência do sistema é algo absolu-
resolver o problema da crise da Justiça? Não, tamente condicionante numa apreciação daquilo
porque, no momento em que os ricos saem, a que se passa em termos de adjudicação privada.
Justiça funciona marginalmente melhor e há mais Ao mesmo tempo, também não podemos des-
pobres que se aproximam da Justiça e a litigância conhecer que esta aposta na ineficiência é, mui-
volta a aumentar. O que quer dizer, portanto, tas vezes, a aposta na incompetência do julgador,
que esta concorrência entre as duas formas de que aqui não tem nada de pejorativo. Às vezes, é
adjudicação é uma concorrência perpetuamente a incompetência do julgador não especialista. Por
desequilibrada. Não há equilíbrio possivelmente isso mesmo a jurisdição pública dá muito mais
nisto. Por tudo aquilo que poderemos pensar, é garantias de imparcialidade do que a adjudicação
sempre nalguma, rotina infinita, cicloide, entre privada. É porque a adjudicação pública é mais
as duas formas de adjudicação. incompetente do ponto de vista do conhecimen-
Gostaria ainda só de sublinhar mais dois ou to específico, de muitas matérias, porque muitas
três pontos absolutamente tópicos, que, têm mui- vezes o adjudicador público é generalista, uma
to pouca conexão entre eles. Uma delas é esta parte às vezes é, e é não por um mero acaso, por-
– e agora vou me concentrar em questões sobre que isso dá alguma garantia de imparcialidade,
eficiência, porque a questão é a natureza do meio embora de pouca especialidade técnica. Por quê?
adjudicação, mas o problema
econômico da adjudicação
parece apontar para a efici-
Devo dizer que a imagem concorrencial está muito
ência. Mas o que é eficiência?
supervalorizada. A maior parte das coisas que enaltecemos
Primeiro, vamos supor que
nos mercados como concorrência muitas vezes é colaboração.
sabemos o que é eficiência
da adjudicação. Perguntas:
qual das duas formas é mais
eficiente, a privada ou a pública? Não sei. Mas a Pensem no que é contrapartida. Uma pessoa
verdade é que isto desconsidera um tipo de juízo diz assim: não, não, não, agora eu vou para a
muito importante no acesso à adjudicação, que administração privada porque eu agora quero
é a aposta na ineficiência do sistema. que esses meus casos sejam julgados por pessoas
Que o sistema funcione bem é bom pra uns, especialistas. O que é um especialista? Em geral,
mas é mau pra outros. E, portanto, a Justiça só é alguém do setor, é alguém que tem interesse
pode ser entendida, e a adjudicação em geral, no setor, e, portanto, é alguém que já entra na
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
172

adjudicação capturado. Às vezes, há setores tão e aquilo que a pessoa aceita é demasiada, ou
pequeninos, que encontrarmos um especialista seja, tentam impor valores de Justiça àquilo que
nesse setor é já garantirmos a captura do adjudi- seria uma discussão totalmente eficiente, ou seja,
cador, porque ele não pode ser imparcial, ele é prescindem de discussões eficientes em nome da
especialista. Ele está embutido nos interesses do Justiça. Preferem ficar mais pobres, mas preferem
próprio setor. ter o sentido que a Justiça prevaleceu, o que sig-
Então, precisamos pensar, sobretudo, naquelas nifica, portanto, que a adjudicação muitas vezes
formas que são muito tradicionais, muito comuns, tem de ceder a propósitos de eficiência se efetiva-
de adjudicação arbitral por não juristas, tribunais mente as partes estão numa demanda de valores
em que são comerciantes, por exemplo, que adju- materiais que nada tem a ver com eficiência ou
dicam. E muitas vezes comerciantes que também até com celeridades processuais ou com outras
têm interesses no resultado da adjudicação. formas de contornar coisas que são imputadas à
Depois, também, não podemos esquecer, se adjudicação pública.
quisermos sintetizar esse ponto, que a adjudica- O penúltimo ponto, aliás, até vou converter
ção tem um interesse muito relativo. A aparência em último, o último ponto era este: a questão
de interesse na adjudicação é, muitas vezes, um parcial é: o que é mais econômico, a adjudicação
mero expediente de continuação de uma guerra pública ou a privada? Já dei, de certa maneira, a
intracontratual. A pessoa diz assim: “Como eu resposta, porque é preferência por adjudicação
tive o disparate de aceitar aqui essa cláusula com- pública e por adjudicação privada, ou seja, a vo-
promissória? Aí, vamos lá para a arbitragem. E tação com os pés é uma votação cicloide, portan-
isso não acaba assim, porque não vou aceitar os to, vamos assistir ao longo dos séculos migrações
árbitros que ele nomeia e vamos estar nisso dez para a privada, o que, a essa altura, congestiona
anos. E se alguém vier a me impor os árbitros que um pouco a privada e fazem com que o público
ele designa, então, não vou acatar a decisão ou esteja mais descongestionado, fazem com que a
vou tentar protelar a situação e não vou sujeitar migração carece ao público. E depois essa migra-
aquelas ideias de que a adjudicação privada é ção volta a congestionar o público e volta a haver
mais célere, etc., etc., etc.”. um apetite pelo privado. A gente vai encerrar
Depois, também temos que nos lembrar disso, assim para todo o sempre. No fundo é assim, a
que é uma afirmação mais genérica, de ordem menos que, de vez em quando, a adjudicação
quase filosófica. Não obstante eu ser um cultor pública faça como fez nos tempos do positivismo,
de ciências jurídicas ou econômicas, não sou pro- faça com um gesto irrefletido de tentar assumir o
priamente um venerador. Aliás, há uma experi- mundo pobre e, portanto, soçobrar numa entro-
mentação na ciência econômica muito eficiente, pia de congestionamento absurdo. Acho que já
que é o chamado “jogo do ultimato”, que pre- se aprendeu essa lição e, portanto, se ela foi bem
vê que as pessoas aceitam qualquer valor para aprendida não voltaremos a esse mesmo polo.
chegarem a um acordo e depois rapidamente se A última questão é essa: muitas vezes se diz,
determina, aqui até com variações regionais, isso por causa das capturas e das falhas de merca-
já foi aplicado em toda a gente, até esquimós e do, que a adjudicação privada é menos preci-
tudo, esse jogo do ultimato, e o resultado varia de sa, até porque, segundo, os juízes, os melhores
região para região, mas não há nenhuma região adjudicadores estão na carreira judicial, porque
em que as pessoas aceitem o mínimo, ou seja, a aí há outras motivações culturais, de prestígio,
proposta mínima para se chegar a um acordo é são capazes de formar regras, são capazes de ter
normalmente rejeitada por uma razão irracional, um protagonismo político que um adjudicador
porque racionalmente mais vale aceitar um dólar privado não tem.
do que não aceitar nada ou não haver acordo, E então, na adjudicação pública, não obstante
mas as pessoas rejeitam porque entendem que a falta de especialização, tende a ir-se para uma
a disparidade entre aquilo que a pessoa oferece melhor accuracy, talvez possa traduzir como pre-
série
Cadernos
do CEJ 173

cisão, uma melhor pontaria, até porque a ponta- uma velha lição na adjudicação privada, e tam-
ria ou a precisão na adjudicação privada deve ser bém, por contaminação, na adjudicação pública,
feita com grau ótimo, máximo; na adjudicação que é a de que a adjudicação não vale tanto pelo
de provas, não faz muito sentido, então o adjudi- seu valor de verdade ou por se atingir um grau de
cador privado seria assim mais mercenário, mais uma realidade objetiva que não sabemos bem a
peditivo. quem pertence (ou talvez pertença a uma divin-
Creio que aqui por trás da ideia de precisão dade, se aceitarmos aquelas velhas limitações da
na adjudicação está aquilo que se poderia talvez razão pura), mas serve pelo serviço pragmático
designar por “uma falácia objetivista”. É que, no que presta às pessoas que a procuram, e, portan-
fundo, permite postular a ideia de que há uma to, se uma pessoa está satisfeita, mesmo que para
espécie de um intérprete privilegiado entre nós, e um terceiro essa adjudicação tenha sido ilusória
é verdade, se é que existe esse valor de verdade, ou errônea, se o destinatário dessa adjudicação
que permitiria ver porque o que um adjudica- ficou satisfeito nesse sentido, sentiu alguma re-
dor faz em termos de melhor aproximação ou posição das titularidades ou a reposição dos inte-
menor aproximação é um padrão de que esse resses que estavam em jogo no momento em que
observador seria um oráculo privilegiado. Mas procurou essa adjudicação, então esta chegou a
isso não existe, e, portanto, aquela sensibilidade um bom porto.
pós-moderna, que também já se tentou (embo- E pronto, era tudo, expressando os meus re-
ra, eu gosto de associar, sobretudo, a outro filó- novados agradecimentos, com muita honra de
sofo, que é o Richard Rorty), também, de certa estar aqui neste fórum que representa o ponto
maneira, deve nos levar aqui a uma espécie de máximo de uma jurisdição e duma instituição da
veste metodológica, reconhecendo que o valor qual o meu País, há muitos séculos, muito orgu-
da precisão adjudicativa não é algo que possamos lhosamente participou.”
aferir, e, no fundo, talvez aqui possamos retirar

RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA


Ministro do Superior Tribunal de Justiça

Agradeço profusamente a esplêndida palestra do Professor Fernando Araújo, que trouxe uma
reflexão muito original e instigante sobre a natureza da adjudicação e as questões que se envolvem
nessa concorrência sempre promovida, cada vez mais, pelos modernizadores do sistema judiciário
entre o sistema privado e o sistema público e as consequências disso.”
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
174

DEBATES

PLATEIA LUIZ GUILHERME MARINONI


Professor da Universidade Federal do Paraná
Meu nome é Frederico, E gostaria de fazer
uma pergunta ao professor Marinoni: se ele De fato, em um sistema que trabalha com prece-
vê como um risco a atribuição da eficácia dentes, a reclamação seria o remédio contra a pa-
vinculante a todas as decisões do Supremo tologia diante da não observância dos precedentes.
Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Agora, se tomarmos em consideração que ninguém
Justiça, inclusive a fundamentação, e se isso vai respeitar os precedentes, e daí então raciocinar-
não ocasionaria um risco de aumento expo- mos que muitas serão as reclamações, é claro que
nencial no número de reclamações nesses chegaremos a uma conclusão que não nos é favorá-
dois tribunais e, portanto, em uma inviabi- vel, que não ajuda em nada, mas isso não ajuda em
lização ainda maior da jurisdição que esses nada exatamente porque partimos e estamos partin-
dois tribunais já prestam, em razão do au- do de uma situação patológica. Isso seria o mesmo
mento do número de reclamações que isso que, não sei, enfim, raciocinar com o mal para não
poderia ocasionar? se chegar ao pior. Acho que não podemos continuar
raciocinando com o mal para não chegar ao pior.
Está na hora de ver quem tem interesse na irraciona-
lidade do Direito. Tem muita gente que tem interesse
em um Direito imprevisível e irracional. Boa parte da
nossa cultura está carregada, de modo favorável, à
incalculabilidade do Direito, especialmente aqueles
que manipulam o Direito, especialmente os advoga-
dos lobistas, os maus juízes, todos têm interesse em
um Direito irracional.
Então, é preciso calma, é preciso cuidado, é
preciso cautela com esses argumentos no sentido
de que não podemos observar precedentes, por-
que isso é dar muito poder ao Superior Tribunal
de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal, por-
que isso é engessar o Direito, etc. São argumentos
retóricos destituídos de fundamentação porque
as coisas não são assim. Na verdade, quem fala
assim, exatamente porque não pode estar falando
assim sem estar de má-fé, é aquele que, em prin-
cípio, muitas vezes, tem interesse naquilo que o
próprio Professor Fernando falava agora, ou seja,
em um estado de coisas que a ele é benéfico.
Muita gente tem interesse que a Corte Suprema
se transforme em tribunal de terceiro grau de
jurisdição, em um grande tribunal de apelação.
Mas não é para isso que elas existem. Então, te-
mos que ter cautela para evitar esse problema.
série
Cadernos
do CEJ 175

PLATEIA LUIZ GUILHERME MARINONI


Professor da Universidade Federal do Paraná
Professor Marinoni, essa questão da racio-
nalidade, que o senhor expõe, como poderí-
amos verificar que o magistrado não estaria Compreendi. Quando falo em irracionalidade,
agindo com tal definição de racionalidade refiro-me a não respeitar uma decisão que é dia-
que o senhor afirma, talvez ele devesse pôr metralmente oposta àquela que estou tomando.
em suas peças, em suas decisões, algum É disso que falo. É não observar o x e dizer o y.
precedente parecido e negá-lo ou ele não É claro que existem múltiplas técnicas que per-
deveria também adotá-lo? Significa que, mitem a qualquer tribunal ordinário aplicar um
logicamente, o fato dele não por ou não cri- precedente ou deixar de aplicá-lo, ainda que o
ticar talvez um caso parecido, significaria, advogado favorável à aplicação do precedente
de logo, que ele esteve fora dessa racionali- argumente no sentido de ele se encaixa ao caso.
dade? Porque, pela visão de Dworkin, pode- São as técnicas da distinção inconsistente, por
ríamos, muitas vezes, explorar os diversos exemplo, até mesmo vários tipos de técnica per-
ângulos e buscar o valor dessa argumenta- mitem a aferição do precedente, em virtude das
ção para legitimar a decisão e ela se tornar circunstâncias do caso concreto, fazendo com
legítima socialmente. que, sem qualquer irracionalidade, deixa-se de
Então, como o senhor se refere nesse ponto aplicar o precedente.
a essa racionalidade? É só a parte jurispru- Não estou querendo dizer que racionalidade é
dencial, ou outros fatores que V.Sa leva em aplicar o precedente. Estou querendo dizer que
conta, as peculiaridades e as causalidades? irracionalidade é não se submeter a um prece-
dente sem questioná-lo, na hipótese de ele não
ser aplicável ao caso. Se o precedente é aplicável
ao caso, ele deve ser aplicado.

PLATEIA LUIZ GUILHERME MARINONI


Professor da Universidade Federal do Paraná
Meu nome é Celso. Vejo no julgamento pre-
cedente uma solução para liquidação e cum-
primento de sentença, em que concentra a Desculpe-me, mas não compreendi exatamen-
maior quantidade de congestionamento, te a pergunta.
hoje, no Judiciário. Não seria viável a cria-
ção de mais varas especializada, principal-
mente, nas áreas de habitação, do agrone-
gócio e tributário?
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
176

PLATEIA LUIZ GUILHERME MARINONI


Professor da Universidade Federal do Paraná
O congestionamento maior, hoje, concen-
tra-se no Judiciário na fase de liquidação e
cumprimento de sentença. Isso passou de Resolver o problema da demora da Justiça
70%. Os processos não andam. Não seria mediante a criação de mais órgãos judiciais? É
uma forma de agilizar a Justiça a criação de isso?
mais varas especializadas, principalmente,
no agronegócio, na área tributária, na área
habitacional?

PLATEIA LUIZ GUILHERME MARINONI


Professor da Universidade Federal do Paraná
Criação de mais varas especializadas nessas
áreas, porque é onde concentra um maior Acho que sim, claro, mais órgãos judiciais e,
número de processos, que param na fase de sobretudo, órgãos judiciais especializados, que,
liquidação e cumprimento, que é a fase de por consequência, trazem uma maior rapidez à
execução. solução dos conflitos, sem dúvida.

PLATEIA FERNANDO ARAÚJO


Professor da Universidade de Lisboa – Portugal
Em que medida realmente precisamos aferir
a precisão na justificação? E essas curvas
cicloides são muito claras no nosso proces- Essa pergunta é nitidamente do foro do
so civil, na administração da justiça, entre Professor Marinoni. Julgo que o problema tem de
valores de celeridade, efetividade e justiça, ser entendido com algum ceticismo, no mínimo,
precisão, correção da decisão e, agora, pas- com algum ceticismo, para não dizer, até, com
samos de uma preocupação muito grande alguma ironia relativista, porque, muitas vezes,
com a celeridade para o lado oposto, para o aquilo que se diz como precisão adjucativa na
extremo oposto. No projeto do novo Código jurisdição pública tem certa conformidade com a
de Processo Civil, existem dispositivos, nor- tal sedimentação de precedentes em níveis recur-
mas bastante detalhadas, rigorosas mesmo, sais. Ou seja, uma forma de disciplinar a decisão
para a fundamentação das decisões judi- do juiz inferior. A expectativa que tenho é de ver
ciais. Existe todo um código feito com a a sua decisão infirmada, ou confirmada, por uma
ideia de que a justiça do caso é conseguida decisão de recurso. E é por aí que se mede o rigor
mediante a participação, sempre o contra- adjudicativo, a maior parte das vezes.
ditório é realmente reforçado e com regras O que pode ter uma consequência perversa
muito exigentes de fundamentação. no sentido de deixar que as primeiras instâncias,
A minha preocupação, Professor, é se um que tem contato com a matéria de fato, acabem
dispositivo como esse, o novo Código de inquinadas na interpretação dessa matéria de fato
Processo Civil, não engessaria essa relação, por entendimentos contaminados por ideologias
essa interação entre celeridade e precisão. das instâncias superiores.
Não poderíamos, talvez, dificultar o próprio Creio que boa parte do problema que é desig-
desenvolvimento do Direito, da gestão da nado aqui no Brasil por ativismo judiciário, e em
Justiça? Essa é a minha pergunta. Portugal por politização da justiça, tem a ver com
série
Cadernos
do CEJ 177

isso, os juízes de primeiro grau sentem que têm de


que adequar as suas decisões àquilo que julgam
o que será a maximização do sucesso das instân-
cias de recurso, e as instâncias de recurso já estão
muito politizadas. Portanto, contaminam de cima
para baixo aquilo que é a expectativa do cidadão
comum e isso contribui, gravemente, gravissima-
mente para o descrédito da justiça em Portugal.
A justiça neste momento é a instituição, in-
quéritos públicos, é uma das duas instituições,
a justiça e a polícia são as duas instituições mais
desacreditadas em Portugal, é extraordinário. É
claro que, também, às vezes, a culpa é atribuída
às Faculdades de Direito, que são excessivamente
doutrinárias, ou que veiculam esse doutrinaris-
mo, depois fazem com que se meça a progressão
para as instâncias superiores (não em função do
pragmatismo adjudicativo do juiz, mas em função
do seu afinamento ideológico), fazem com que as
regras fiquem desvirtuadas por aí.
Mas, enfim, como faz parte de uma faculdade
de direito e seu acadêmico terem de sacudir essa
água do meu capote, eu digo que a culpa já é do
próprio sistema judiciário, que ocasiona que a
accuracy, no fundo, seja pervertida nesse tipo de
vontade de agradar a instância superior e não
propriamente em preocupação pragmática com
os fatos.

PLATEIA LUIZ GUILHERME MARINONI


Professor da Universidade Federal do Paraná
Doutores, por favor, gostaria de indagar se
um processo, estando em segunda instân- Sim, há hipótese em que se anula uma sen-
cia, pode retroceder, voltar para a primeira tença por falta da produção de uma prova, por
instância. exemplo e, nesse caso, o processo volta a primei-
ra instância para realização, produção da prova
e prolação de nova decisão.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
178

PLATEIA LUIZ GUILHERME MARINONI


Professor da Universidade Federal do Paraná
Mas, Doutor, mesmo no caso de o proces-
so estando com todas as provas existentes
no processo e o juiz que decidiu não soube Sim. Se o processo está na segunda instância,
delas, pelo fato de o processo ter sido des- e por alguma razão, dependente do motivo pelo
membrado. Os outros volumes não aparece- qual você profere a decisão, é anulada a sentença.
ram, e o juiz, não tendo acesso às provas, o
processo não deveria subir da primeira para
a segunda instância, e não voltar?

PLATEIA RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA


Ministro do Superior Tribunal de Justiça
A sentença já tinha sido dada, foi um acór-
dão com cinco juízes a favor da parte auto-
ra, e uma juíza singular derrubou a decisão O Professor Marinoni já respondeu à indaga-
desses cinco desembargadores. Isso é usual? ção e agradeço profusamente a pergunta. Não
sei se haverá outras indagações.

PLATEIA FERNANDO ARAÚJO


Professor da Universidade de Lisboa – Portugal
Pareceu-me que o Ministro falou que o con-
vidado, Professor Fernando Araújo, é estu-
dioso do Direito dos Animais. Não é bem o tema da nossa palestra, mas eu
Estive em Lisboa em 2013 e na Universidade aceito com muito gosto porque confesso que te-
ouvi o decano dizer que que o Direito dos nho uma paixão por essa área.
Animais é uma aberração. Não sei se alguém poderá ter dito isso dessa
Recentemente em Porto Alegre, de onde forma, não sei se aí haveria alguma caricatura,
sou, foi inaugurada a Delegacia dos Direitos mas não há ninguém no mundo que não possa
dos Animais e frequentemente o juiz se de- defender os direitos, pelo menos, de um animal,
fronta com problemas envolvendo animais, que é o animal humano. Portanto, quando de-
onde tem de decidir contra os humanos em fendemos os direitos dos animais, os primeiros
favor dos não humanos. Então, é só uma animais que defendemos são os homens, e as
provocação, uma pergunta. O que o Senhor pessoas normalmente se esquecem disso, que a
teria a dizer sobre essa afirmação de que defesa dos animais não humanos é uma estra-
seria uma aberração? tégia de reforço da defesa dos direitos dos ani-
mais humanos, porque a parte mais importante
da nossa existência terrena é a preservação dos
nossos interesses, da nossa própria animalidade,
ou seja, nós não somos absolutamente nada se-
não produtos culturais que tem uma raiz animal.
E se nós não respeitamos a nossa raiz animal, e a
animalidade em nós, todo o resto desaparece e
perde o seu significado.
Muitas das coisas que defendemos como direi-
tos humanos, e que associamos tanto àquela fór-
série
Cadernos
do CEJ 179

mula, agora já muito esvaziada da dignidade da


pessoa humana, é a diferença de coisas que ex-
perimentamos e sofremos, exclusivamente como
animais, são defesas contra a morte violenta, con-
tra a opressão, contra o medo, são sentimentos
que partilhamos com todos os outros animais, e
que não são traços distintivos da espécie huma-
na. Basta pensarmos um pouco sobre aquilo que
defendemos, quando defendemos a dignidade
da pessoa humana percebemos, imediatamen-
te, que o que estamos a lutar é pelo direito dos
animais. É verdade que a expressão normalmen-
te é restrita aos animais não humanos. Mas eu
recuso-me a entrar nessa dicotomia, porque essa
dicotomia já parece querer provar que nós temos
alguma superioridade em matéria do nosso esta-
tuto que pertença como nativos intelectuais e fí-
sicos do nosso Planeta. Nós não estamos sozinhos
no Planeta, respiramos o mesmo ar, bebemos a
mesma água e temos os mesmos alimentos que
os animais não humanos. E, portanto, se é para
vivermos todos no Planeta, devemos te algum
acesso básico a esses princípios.

PLATEIA LUIZ GUILHERME MARINONI


Professor da Universidade Federal do Paraná
Professor Marinoni, gostaria de saber a sua
opinião sobre a necessidade da edição do
novo Código de Processo Civil e de algumas Confesso a você que, a meu ver, em uma rela-
vantagens e desvantagens que eventual- ção de custo benefício, o código não se justifica.
mente possam advir dele. A meu ver, esse código não se justifica.
O nosso problema não vai se resolver median-
te, digamos, um polimento de algumas regras pro-
cessuais. É um código que não altera a estrutura,
que deveria ter sido alterada, é um código que
tem menos regras – e isso é muito bom, como eu
comentava antes com o Professor Fernando, só
por isso ele é muito bom –, mas não é um código
que traga nada de promissor, lamentavelmente.
Acho que é a perda de uma grande oportunidade
de se fazer algo melhor, porque nós não estáva-
mos em um momento para elaborar um Código de
Processo Civil. Esse é um código oportunista. Não
estávamos no momento para elaborar um Código
de Processo Civil, e pior, foi elaborado por pessoas
que não tinham capacidade para tanto.
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
180

PLATEIA LUIZ GUILHERME MARINONI


Professor da Universidade Federal do Paraná
Meu nome é Marcelo, eu sou juiz no estado
do Maranhão. A minha pergunta é para o
Professor Marinoni. São duas as questões, vou analisá-las breve-
Em relação a seguir à força aas decisões dos mente. O argumento de que se estaria violando
tribunais superiores, que V.Sa não acha que, a liberdade de o juiz julgar, pelo fato de ele es-
de qualquer sorte, isso não vai de encontro à tar sendo submetido a precedentes. Na verdade,
consciência do juiz, em uma decisão do caso não. Como eu disse há pouco, respeitar prece-
concreto e da independência funcional? dentes é respeitar a interpretação do Direito. É
E uma segunda colocação. Será que esse se- fazer supor que o Judiciário participa, ao lado
guir também absoluto as decisões dos tribu- do Legislativo, na elaboração do Direito. E, tam-
nais superiores não iria, de alguma forma, bém, que, no Poder Judiciário, existe uma última
engessar essa reoxigenação do Direito, que, Corte para dizer uma palavra final sobre o sentido
muitas vezes, a primeira instância vem com do Direito. Como o juiz é submetido ao Direito,
decisões justamente contrárias ao entendi- ainda que tenha liberdade para julgar, ele é sub-
mento já consagrado na segunda instância? metido aos precedentes, com isso ele não perde
liberdade alguma.
Agora, retoricamente, de má-fé, algumas pes-
soas afirmam que o juiz é submetido apenas à
Lei, ou melhor, o juiz tem liberdade para julgar.
Sabe o que isso significa? Isso significa descom-
promisso com a instituição, uma não visualização
de que o juiz participa de uma instituição e o des-
compromisso com o Poder do qual ele faz parte.
Um juiz que tem compromisso com o Poder do
qual ele faz parte respeita as decisões das cortes
supremas. Não é preciso Lei que diga isso. Afinal,
as decisões da Corte Suprema, como eu disse há
pouco, definem o sentido do Direito. De modo
que, a meu ver, não se viola qualquer liberdade
do juiz, porque o juiz não tem liberdade para
julgar contra as decisões das Cortes Supremas,
porque não tem liberdade para julgar contra o
Direito. E mais, o juiz só pode compreender o
seu papel perante a sociedade a partir do mo-
mento em que ele percebe qual é o seu papel na
Instituição. Ele faz parte de uma Instituição. Ele
não está obrigado perante a Corte Suprema. O
juiz, dentro do sistema, tem que observar a última
palavra do órgão constitucionalmente incumbi-
do para tanto. De modo que, a meu ver, não há
falar-se em violação de liberdade de consciência
ou coisa do tipo.
Quanto ao Direito engessado, ao contrário, o
que engessa o Direito, na realidade, é não pensar
o Direito em uma perspectiva de precedentes,
série
Cadernos
do CEJ 181

porque quem deve desenvolver o Direito não são


os juízes de primeiro grau, nem os tribunais de
apelação. A eles cabem resolver conflitos e co-
laborar para a interpretação final a ser dada ao
Direito pelas cortes supremas.
Cabe à Corte Suprema definir o sentido do
Direito, desenvolver e permitir a sua evolução.
Não cabe ao juiz de Direito agir dessa forma. De
modo que é preciso observar os precedentes e
se dar à Corte Suprema a possibilidade de re-
vogar seus precedentes, obviamente, para que
o Direito evolua.
Quem pensa dessa forma, de que há um enges-
samento do Direito, pensa como era o Common
Law, no final do século XIX, antes do final, um
pouco antes do final do século XIX.
Hoje, a revogação dos precedentes é algo na-
tural. Aliás, Dworkin, os romances são feitos, quer
dizer, o Direito é produzido em cadeia, em ca-
pítulos, como se fosse um romance. Os capítulos
são os precedentes que vão se formando e per-
mitindo o desenvolvimento do Direito, porque,
quando um caso não se amolda a um primeiro
precedente, em razão do distinguishing, ele abre
oportunidade para formulação de um novo que
acrescenta algo ao primeiro precedente e assim
por diante. Por isso que esse encadeamento de
precedentes significa o próprio desenvolvimento
do Direito a partir da participação judicial.
O Judiciário, as supremas cortes têm muito
maior capacidade de permitir a evolução do
Direito, a meu ver, do que o Poder Legislativo,
nesse sentido. Não que o Poder Legislativo, ob-
viamente, deva ser deixado de lado, não se trata
disso, como eu disse, nós estamos aqui pensando
na reconstrução do sentido do Direito a partir
do texto legal, mas é claro que o Judiciário é im-
prescindível para permitir a evolução do Direito
mediante a revogação de precedentes.

PLATEIA RONALDO PORTO MACEDO JR.


Professor da Fundação Getúlio Vargas – São Paulo
Boa tarde aos componentes da Mesa, meus
parabéns pelas palestras ministradas. A primeira coisa que eu só gostaria de chamar
Professor Ronaldo, eu venho de uma univer- a atenção é que, bom, certamente eu defendi
sidade, a UnB, que hoje está completamente uma perspectiva dworkiniana aqui na minha fala,
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
182

repleta de dworkinianos, como o senhor. Por mas eu tenho sérias dúvidas de que a maioria dos
outro lado, hoje, lá, há uma crítica muito dworkinianos brasileiros são dworkinianos como
forte ao pensamento do Professor Alexy. eu, no sentido de que eu sou bastante crítico com
Eu digo isso, especialmente na graduação. respeito à forma pela qual Dworkin é recebido
Talvez o professor que fique isolado lá e cuja pela doutrina brasileira. E acho que é um tema
teoria penda mais para o Professor Alexy de grande interesse sociológico. Sociologia das
seja o Ministro Gilmar Mendes. No entan- ideias, às vezes, ela se faz, um dos pontos mais
to, eu percebo que a teoria do Professor importantes é a recepção, às vezes, de uma certa
Dworkin, não é muito bem adaptada a nos- ideia do que a própria contribuição de um autor.
sa realidade. Muitas pessoas não compreen- São dois temas igualmente importantes, vamos
dem muito bem a teoria dele quando vista dizer assim.
numa perspectiva brasileira, não é? Com relação à diferença que há entre Dworkin
Então, eu perguntaria para o Senhor, o e Alexy, eu quis enfatizar um ponto – o Alexy,
Senhor tem a mesma impressão? O Senhor claramente, tem uma série de reflexões teórico-
acha que a teoria do Professor Dworkin, -filosóficas sobre o Direito, isso é inegável. Mas,
talvez seja um dos maiores expoentes do parece-me que ele tem uma preocupação mais
Direito mundial, que nós mais usamos na direta, que não é a preocupação do Dworkin,
nossa prática, os juízes usam, a Suprema que está relacionada, também, a um certo maior
Corte usa, talvez não haja uma certa falha sucesso ou maior, digamos, capacidade de orien-
de adaptação da teoria dele? E não é ruim tar no dia a dia o julgador do que, muitas vezes,
esse embate Dworkin e Alexy? Não seria me- as ideias do Dworkin. O que se refere ao fato de
lhor que as pessoas tentassem usar o melhor que o Alexy tenta construir uma dogmática da
das duas teorias? interpretação constitucional, ou seja, ele tenta
criar algumas regras, ele tenta nesse sentido criar
uma tecnologia da decisão. Se a gente retomar a
metáfora do engenheiro, que mencionei no pas-
sado, um engenheiro civil que faz pontes, não se
preocupa muito em saber dos limites teóricos da
física newtoniana e muito pelo contrário, se ele
ficar fazendo uma discussão sobre qual é melhor
teoria da física para explicar o mundo, eventual-
mente ele vai ser um mau tecnólogo, não vai ser
um bom engenheiro, porque ele tem de oferecer
mecanismos que deem algum tipo de resposta
relativamente simples. Uma boa tecnologia não
pode ser complicada demais, ou pelo menos não
mais do que a realidade assim o exige.
Acho que isso marca uma diferença das cons-
truções teóricas do Dworkin e do Alexy. Nem
sempre, isso é claro, porque como eu disse, o
Alexy também tem uma série de postulações fi-
losóficas, acho que em muitos pontos eles estão
de acordo e em muitos outros não estão, e isso é
muito importante.
Por outro lado, estou dizendo, sim, que o Alexy
tem uma ambição de construção de uma dog-
mática da interpretação que não é ambição do
série
Cadernos
do CEJ 183

Dworkin. Parece-me que a ambição do Dworkin


é justamente mostrar uma dimensão inafastavel-
mente filosófica envolvida na interpretação. É
claro que filosofia é, num certo sentido, compli-
cada, envolve um tipo de complexidade, a teo-
ria dworkiniana tem uma complexidade grande,
nesse sentido ela não é uma teoria que possa bem
servir ao julgador, como alguém que passa nas
gôndolas de um supermercado e pegue um pe-
daço daqui, um pedaço dali.
É bem verdade também que a forma pela qual
nós, na prática jurídica e também na universida-
de, muitas vezes, é a forma de alguém que pega
pedaços, pega soluções de um e de outro, até
porque a produção, digamos, retórica das fun-
damentações e a produção, às vezes, ou diria,
excessivamente retórica também da nossa produ-
ção científico-jurídica tem esse formato, pega um
pedaço daqui (gostei desse pedaço Dworkin, não
gostei, agora combino esse com...) assim, produ-
zo um certo sincretismo metodológico e filosófico
que pode até ter um papel persuasivo, mas, do
ponto de vista de sua consistência filosófica, fica
bastante limitado.
Quis chamar atenção para o fato de que esses
autores têm metas relativamente diferentes, eles
se assentam em postulações filosóficas distintas e
essas distinções são importantes; por exemplo, a
tese da resposta certa é uma delas.
E por outro lado, quero, aqui, também agre-
gar, em face da sua pergunta, a ideia de que esse
sincretismo muitas vezes significa um destaca-
mento da teoria do autor dos seus pressupostos
filosóficos.
No caso do Dworkin filósofo, fazer isso é jus-
tamente matar o que há de mais poderoso, pre-
cioso e importante nesse autor. Acho que uma
das tarefas nossas não é pegar o que tem bom de
cada autor, mas entendê-los melhor. Portanto,
eu diria que essa é uma das tarefas importantes
da academia.
Com relação à ideia de que Dworkin não casa
tão bem com o Brasil, ele seria americano demais,
ou preocupado com questões americanas, eu di-
ria o seguinte: o Dworkin não tem, contrariamen-
te ao que dizem alguns dos seus críticos, ou até
muitos dos seus críticos, uma teoria universalista,
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
184

um novo formalismo moral. Diz-se isso dele, mas


quem diz isso dele, na minha visão – não tenho
tempo para desenvolver isso – está completamen-
te equivocado, demonstra simplesmente que não
compreendeu bem esse autor.
Ele não trata de uma formulação ideal, trata
justamente de uma reflexão sobre como funciona
a linguagem da moral, a linguagem do direito, en-
raizadas em práticas sociais. É evidente que não
só os exemplos, como também a realidade que
ele examina mais de perto quando está fazendo
um exercício mais concreto de análise do direito
é a realidade americana e, portanto, qualquer
tipo de utilização das suas ideias e, especialmen-
te, das suas conclusões ao avaliar temas concre-
tos (dou só um exemplo, ação afirmativa), teria
de ser de alguma forma pensada, repensada, em
face das suas pressuposições teóricas e das con-
siderações fáticas que afetam a análise do caso
concreto.
Então, só explorando esse exemplo para não
me alongar na resposta, em muito da discussão
que houve no Brasil, por exemplo, sobre ação
afirmativa, cita-se o Dworkin como um argumen-
to de autoridade, como se poderia citar qualquer
outro doutrinador, como uma voz sapiente que
nos dá autoridade a uma certa opinião. Só que a
discussão do contexto da ação afirmativa, do con-
texto social e das premissas que são admitidas,
não sobre a questão de princípio da ação afirma-
tiva – se ela viola ou não a questão do princípio
da igualdade –, mas sobre a eficácia e das razões
para uma aposta nessa solução, são significati-
vamente distintas quando se pensa a realidade
social, racial, brasileira e a realidade social racial
americana.
Portanto, não se trataria aqui da menor utili-
dade de Dworkin, tratar-se-ia sim de uma exigên-
cia de maior inteligência do intérprete que pode
aprender mais com as obras do Dworkin.

PLATEIA FERNANDO ARAÚJO


Professor da Universidade de Lisboa – Portugal
Obrigado pela oportunidade, Presidente da
Mesa, meu nome é Elias, a minha pergunta Assim, para começar com um pouco de ironia,
é para o Professor Fernando. vou citar aqui os livros de autoajuda, como deixei
série
Cadernos
do CEJ 185

Tive oportunidade, Professor, de estudar em de me preocupar e, enfim, me tornei feliz.


Coimbra, estudar Metodologia Jurídica e, Acho que a melhor metodologia decisória
desde então, uma questão me assola e me deve ser certamente a do adjudicador que deixou
oprime, que é a dúvida de como decidir: de se preocupar e olhou para os fatos e tentou
Afinal de contas, qual é o filtro? Existe um constituir as vontades daqueles que estavam a
método para o julgador, para encontrar a submeter a ele essa decisão. Então, eu diria que
resposta do caso? meu ponto de vista, tirando agora a parte irônica,
Na história tem jurisprudência dos concei- é, sobretudo, um ponto de vista muito privatista.
tos, jurisprudência dos interesses, prioriza- Os juízes, os adjudicadores, devem respeitar a
-se mais no caso ou no sistema. Deve-se liberdade das pessoas que os procuram e não
buscar mais a Justiça particular ou, então, devem ser uma espécie de virgens vestais a ten-
a resposta unânime do sistema? E, no en- tar administrar ideologias para cima das pessoas
tanto, ouvi a Teoria que foi proposta pelo ao libertá-las contra a sua vontade, ou seja lá o
Professor, ontem à tarde, Humberto Ávila. que for.
Mas, afinal de contas, então, o critério de E o risco do excesso de sofisticação na reflexão
decisão, ele está à disposição de cada julga- sobre a metodologia dos juízes, sobre a antologia
dor? Quem deve oferecer, então, o método jurídica em geral, é, a meu ver, uma perversão do
da decisão? Ele deve ser disposto na lei ou entendimento daquilo que foi a posição de Kant
vai ficar ao critério dos órgãos jurisdicio- no momento em que ele revolucionou a histó-
nais, dos tribunais superiores? Em que me- ria da filosofia, porque até Kant discutia assuntos
dida isso seria possível? Haver um controle materiais na filosofia. O que era uma boa vida?
dessa racionalidade ou, então, estaríamos O que era uma má vida? Se existia Deus? Se não
num campo meio que flexível do volunta- existia Deus? O que era onipotência? O que era
rismo com a racionalidade? um paradoxo? E Kant achou que, para respeitar
Não sei se eu consegui ser preciso na minha a liberdade humana, era preciso reenquadrar a
colocação, mas gostaria de ouvir um pouco filosofia no sentido de transformar numa instância
do Professor, que, eu sei que como teórico, policiadora e legitimadora daquilo que é nossa
sem dúvida alguma, também já se debruçou forma pedestre de pensar, a nossa forma de senso
sobre esse tema. comum. Mas, atenção, o que Kant disse é que a
filosofia havia de se reverter ou havia de se con-
verter numa forma policiadora e legitimadora.
Não numa forma que substituísse os raciocínios
do sentido comum, e houve uma elite Kantiana
ou Neokantiana, que achou que ele estava a fazer
precisamente isso, estava a pregar uma espécie
de enraizamento neoplatônico daquilo que é o
senso comum a favor do filósofo-rei, que vem
agora instituir contra as pessoas e acima delas um
pensamento puro, ao abrigo do qual elas viriam
a transformar as suas vidas. Isso é um erro grave,
e eu acho que o Direito e a qualificação e muito
do que é o positivismo jurídico vivem nesse erro
e hão de morrer com este.
É claro que se permitiu a emancipação muito
maior do que até então, de uma classe jurídica,
uma classe de pessoas que vive disso, que vive
desse equívoco e que pretende ser paternalista
Seminário
Teoria da Decisão Judicial
186

à sombra da lei, e há os que tentam fazer da ad-


judicação judiciária uma forma de imporem os
seus valores por cima daquilo que são os interes-
ses que lhe são apresentados, ou seja, fazer uma
espécie de filtragem valorativa, desconsiderando
aquilo que é o interesse e a lógica pedestre do
homem comum.
O próprio Immanuel Kant está totalmente no
centro, porque ele não gostava de ter quadros em
sua casa, e o único retrato que ele tinha era de
Jean-Jacques Rousseau e, numa carta, explica o
porquê desse fato. Segundo ele, até conhecer a
obra de Jean-Jacques Rousseau, ele era um ho-
mem arrogante, estava convencido de que podia
impor às outras pessoas os seus próprios ideais,
mas com Jean-Jacques Rousseau tinha aprendi-
do que a moralidade máxima que existe na huma-
nidade é a do homem comum, e não se pode ir
mais acima dela em matéria de aperfeiçoamento.
Acho que, se o Direito tivesse a humildade
de perceber essas palavras de Immanuel Kant,
sofreria instantaneamente uma revolução.

RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA


Ministro do Superior Tribunal de Justiça


Agradeço imensamente a todos os que participaram desse Seminário, a todos os palestrantes
pelas magníficas contribuições que deram, à organização do evento, na pessoa da Maria Amélia, à
Professora Helena Elias, pela inestimável colaboração e, enfim, espero que esse seja mais um tijolinho
para construirmos aí uma compreensão um pouco mais acurada desse complexo fenômeno que é a
adjudicação.”

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