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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS -


DCHT
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

JAMILLE MIRANDA SALES ARAUJO


JOANA SILVA OLIVEIRA CARMO

A FORMAÇÃO BACHARELESCA E SUA INFLUÊNCIA NA


CONSTRUÇÃO DA FIGURA DO ANTI-HEROI: ANÁLISE DE
DECISÕES NUMA COMARCA DO INTERIOR DA BAHIA.

BRUMADO – BA
2020
JAMILLE MIRANDA SALES ARAUJO
JOANA SILVA OLIVEIRA CARMO

A FORMAÇÃO BACHARELESCA E SUA INFLUÊNCIA NA


CONSTRUÇÃO DA FIGURA DO ANTI-HEROI: ANÁLISE DE
DECISÕES NUMA COMARCA DO INTERIOR DA BAHIA.

Trabalho de Conclusão de Curso do tipo Monografia


apresentado ao Curso de Graduação em Direito
vinculado ao Departamento de Ciências Humanas e
Tecnologias Campus XX da Universidade do Estado
da Bahia, como requisito parcial a obtenção do título
de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. João Batista de Castro Junior.


Professor de Monografia: Prof. Dr. Fernando Leite.

BRUMADO – BA
2020
FICHA CATALOGRÁFICA
JAMILLE MIRANDA SALES ARAUJO
JOANA SILVA OLIVEIRA CARMO

A FORMAÇÃO BACHARELESCA E SUA INFLUÊNCIA NA


CONSTRUÇÃO DA FIGURA DO ANTI-HEROI: ANÁLISE DE
DECISÕES NUMA COMARCA DO INTERIOR DA BAHIA.

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia –


UNEB, Campus XX como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em
Direito. Aprovada em __/__/__

BANCA EXAMINADORA/COMISSÃO AVALIADORA

Professor Orientador Dr. João Batista de Castro Júnior


(Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, Universidade do Estado da
Bahia – UNEB – Campus XX)

Professor Esp. Eunadson Donato de Barros


(Universidade do Estado da Bahia, UNEB – Campus XX)

Professor Msc. Murilo Martins Camelo


(Universidade do Estado da Bahia, UNEB – Campus XX)

BRUMADO
2020
AGRADECIMENTOS DE JAMILLE MIRANDA SALES ARAUJO

Por algum motivo, adiei escrever essa página, digitei e apaguei por diversas
vezes e me vi sem encontrar as palavras certas pra expressar meu sentimento de
gratidão e medo por encerrar um ciclo único e de tão grande importância pra mim.
Em meio a uma pandemia, em um ano em que absolutamente tudo esteve
fora do meu (nosso) controle, em que todos os meus planos sobre esta reta final,
idealizados e sonhados há tanto, foram remodelados, eu percebo com fascínio, mais
uma vez, minha impotência ante as surpresas da vida e a vontade do Criador.
Pelo fim (e por todo o processo até aqui) desta etapa, agradeço a Deus, que
esteve comigo em todos os momentos, até naqueles em que eu não merecia sua
presença e seu cuidado constante. Sou grata por Seu amor incondicional e por
sempre fazer por mim muito mais do que o que eu poderia sonhar! “Os teus olhos
viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim foram escritos no teu
livro antes de qualquer deles existir” (Salmo 139:16).
Agradeço também aos meus pais, Edson e Jane, em nome de quem
aproveito para agradecer a toda minha família pela presença e apoio.
Agradeço ao meu orientador, professor João Batista, por me ensinar tanto
sobre tudo, ao professor Fernando Leite, pelas orientações tão importantes para a
conclusão deste trabalho e à minha dupla, Joana, pela parceria e por passar comigo
por esta fase.
Agradeço a todos que estiveram ou passaram pela minha vida ao longo
destes anos, tornando minha vida mais leve, mais feliz, me fazendo crescer e me
mostrando que a vida é melhor quando é compartilhada com quem vibra pelas suas
conquistas!
AGRADECIMENTOS DE JOANA SILVA OLIVEIRA CARMO

A elaboração dessa monografia num momento tão difícil de pandemia, ao


mesmo tempo que foi um refúgio, para mim também foi uma vitória. Neste fim de
ciclo, resta a gratidão.
Primeiramente, agradeço à Deus por estar sempre ao meu lado e ter planos
tão grandes para mim.
Ao meu pai, João Oliveira Carmo, pela paciência e por se doar tanto para ver
meus sonhos se realizarem.
Faço um agradecimento especial pela força e apoio do meu amor Lucas
Moura. Sou imensamente grata por ter você em minha vida. Obrigada pelo incentivo
de sempre.
Ao Prof. Dr. João Batista de Castro Jr, estimado mestre e inspiração
profissional. Obrigada por me lembrar de quão precioso é o tempo e que quanto
mais nos dedicarmos, mais ele estará ao nosso favor.
Estendo meus agradecimentos à Jamille pela parceria e confiança neste
trabalho e ao professor Fernando Leite pelo cuidado e atenção nas orientações.
Por fim, aos meus amigos, parentes e colegas, especialmente Renato, Silvia,
Maiara e Stefani. Meu carinho por vocês é imensurável. Obrigada pelo
companheirismo e por tornarem essa jornada acadêmica um pouco mais leve.
“Porque o homem, ao contrário de qualquer
coisa orgânica ou inorgânica do universo,
cresce para além de seu trabalho, galga os
degraus de suas próprias ideias, emerge
acima de suas próprias realizações.”
(STEINBECK, 2012, p.180).
RESUMO

Considerando-se o contexto do desenvolvimento do legado colonial português


conhecido como ‘bacharelismo’, no início do século XIX, questiona-se o grau de
responsabilidade da formação bacharelesca na constituição da figura do juiz anti-
heroi. A presente pesquisa teve seus pilares calcados na questão supramencionada,
demonstrando os resultados desta por meio dos dados encontrados. Para tanto,
tenciona-se demonstrar a influência do início da formação bacharelesca no Brasil
com a formação dos juízes; averiguar como a formação dos juízes interfere nas
decisões judiciais; verificar como o crescimento do fenômeno do ativismo judicial
atua no processo de criação do juiz anti-heroi e investigar se houve a aplicação da
técnica correta em certas decisões prolatadas. Pretende-se demonstrar a hipótese
trazida por meio de uma pesquisa bibliográfica – com análise de artigos, livros, e
estudo de caso realizado por meio da coleta de dados documentais processuais do
Fórum do município de Carinhanha, no interior da Bahia. Trata-se de período
específico em que juiz atuou na referida comarca, ficando conhecido por frequentes
decisões desarrazoadas e por ignorar preceitos legais, sendo este período dos anos
de 1987 a 1989 e durante o ano de 1993. Assim, a figura trazida pela pesquisa é a
do juiz anti-heroi, personagem muito encontrado hoje com o avanço do ativismo
judicial, que busca fazer justiça sem preocupações com os meios utilizados. Ainda,
observa-se durante a pesquisa que desde o início da formação jurídica, há um
distanciamento do ensino acadêmico com o contexto social, evidente em relação
aos magistrados, que em sua maioria, vêm de uma classe social privilegiada. Por
fim, foi constatado que existe coerência na questão inicialmente trazida e que é
necessário reduzir esta distância ilustrativa entre juízes e sociedade a fim de garantir
às decisões eficácia legal e social.

Palavras-chave: Anti-heroi. Ativismo judicial. Bacharelismo. Decisões judiciais. Juiz.


ABSTRACT

Considering the context on the development of the Portuguese colonial legacy called
“bacharelismo” at the beginning of the 19th century, the study questions whether is
the level of responsibility of baccalaureate formation in the constitution of the figure of
the anti-hero judge. The present research had its pillars based on the
aforementioned question, demonstrating its results through the found data.
Therefore, it seeks to demonstrate the beginning of baccalaureate formation in Brazil
and the formation of judges legal background; ascertain how the legally formation of
judges interferes on judicial decisions; verify how the judicial activism phenomenon’s
growth acts in the process of creating the figure of the anti-hero judge and investigate
whether the correct technique was applied to certain decisions. The present study
also aims to demonstrate the hypothesis through means of bibliographic research
with study of articles, books and field study by the gathering of procedural
documentary data from the Forum municipality of Carinhanha, in the interior of Bahia.
This is about a specific period in which a judge served on the referred district court,
and became known by frequent unreasonable decisions and ignoring legal precepts
in the period of 1987 to 1989 and during the year of 1993. Thus, the figure brought
up by the research is the anti-hero judge, a character very much found nowadays
with the advance of judicial activism, which looks for making justice without the
concern with the utilized means. Still, the study points out that since the beginning of
legal training there has been a distance between academic education and social
context, evident regarding magistrates, who mostly come from a privileged social
class. Finally, it shows that there is consistency in the initially raised question and the
necessity of reduce this illustrative distance between judges and society in order to
guarantee legal decisions and social effectiveness.

Key-words: Anti-hero. Bacharelismo. Judicial activism. Judicial decisions. Jugde.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Matéria de 1993 contando um pouco de sua história como magistrado no


interior da Bahia. ....................................................................................................... 44
Figura 2: Relaxamento de prisão não fundamentada. ............................................... 45
Figura 3: Dosimetria da pena formulada de forma incorreta. .................................... 46
Figura 4: Dosimetria da pena formulada de forma incorreta. .................................... 47
Figura 5: Relaxamento de Prisão concedido sem fundamentação adequada. ......... 48
Figura 6: Prisão preventiva decretada sem fundamentação adequada. ................... 49
Figura 7: Juíza de Direito expressa descontentamento com os atos judiciais do
magistrado anterior. .................................................................................................. 51
Figura 8: Juíza de Direito expressa descontentamento com os atos judiciais do
magistrado anterior... ................................................................................................ 51
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CF – Constituição Federal
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CPC – Código de Processo Civil
LC – Lei Complementar
LINDB – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro
TJ – Tribunal de Justiça
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12

2 GÊNESE HISTÓRICA E INFLUÊNCIA DO BACHARELISMO DO SÉCULO XIX


NA ATUAÇÃO JUDICIAL ATUAL ............................................................................ 16

2.1 CONTEXTO E PERCEPÇÕES HISTÓRICAS ................................................. 16


2.2 ESCOLAS DE DIREITO .................................................................................. 19
2.3 FORMAÇÃO DA FIGURA DO JUIZ ................................................................. 23

3 COMO JULGA O JUIZ: OS LIMITES DO PODER DO MAGISTRADO E A


CRIAÇÃO DA FIGURA DO ANTI-HEROI................................................................. 30

3.1 O JUIZ, SUAS FUNÇÕES, PODERES E LIMITES ......................................... 30


3.2 PODERES ....................................................................................................... 32
3.3 LIMITES ........................................................................................................... 34
3.4 COMO JULGA O JUIZ ..................................................................................... 35
3.4.1 Decisões judiciais e a motivação........................................................... 36
3.5 PROTAGONISMO JUDICIAL: O ATIVISMO EXCESSIVO E A CRIAÇÃO DA
FIGURA DO ANTI-HEROI ..................................................................................... 38

4 ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS POR UM JUIZ NA COMARCA DE


CARINHANHA-BA.................................................................................................... 43

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 53

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 56
12

1 INTRODUÇÃO

Enquanto alguns países da América Latina já possuíam uma tradição


universitária, a vida acadêmica no Brasil era limitada, com poucas escolas e
bibliotecas e imprensa restrita. Antes da criação de cursos de Direito, alguns juristas
portugueses incorporaram-se à sociedade do país, deixando produções que
influenciaram o mundo jurídico como magistrados.
Conforme as necessidades técnicas de Portugal para a criação de um novo
Império, a cultura jurídica brasileira começou a se manifestar através de
monumentos legislativos notáveis e pela criação de uma elite jurídica. Dessa forma,
no início do século XIX o Brasil dava seus primeiros passos após o grito da
independência, e pouco após a outorga da Carta Constituinte de 1824, inicialmente
em Olinda em São Paulo, os primeiros cursos de Direito passaram a funcionar.
Nesse contexto, após a independência em 1822, jovens intelectuais
portadores de diplomas de Coimbra se uniram-se à nobreza, entre os quais se
destacam, para nosso estudo, os bacharéis em Direito.
A formação do bacharel no Brasil estava diretamente ligada ao prestígio
social e os cursos superiores foram implantados como um projeto de classe, em que
esta – a dos bacharéis – seria responsável pelo fim dos conflitos entre liberais e
conservadores, construindo o Estado brasileiro, recém-independente.
Recrutados de classes nobres e provenientes da elite econômica, depois de
formados, todos ocupavam cargos públicos somente como ostentação de poder, não
existindo quaisquer preocupações com a realidade social ou cultura local, o que
formava juristas distanciados do povo, com discurso utópico.
Assim, o discurso jurídico tem sua base em uma lógica normativista e
burocrata, distanciada do meio social. Se o bacharel “comum” já era dotado de tais
características, nos magistrados estas eram ainda mais perceptíveis, uma vez que
inicialmente possuíam a função de servir aos interesses da administração, o que
confundia o poder judicial com o poder político.
Doravante, iniciou-se uma aproximação do Direito e dos juízes às causas
sociais, no entanto faz-se necessário analisar quais as sequelas que esta formação
deixou. A figura do juiz, antes de tudo, é humana, carregada de valores e morais, os
quais podem distanciá-lo de uma imparcialidade.
13

Porém, para um resultado profícuo, é necessário que o processo atinja não


somente seus fins jurídicos, como também sociais e filosóficos. A tomada de decisão
pelo magistrado, bem como a técnica por ele utilizada, assim, devem estar em
consonância com os poderes e limites previstos por lei.
O juiz é aquele que detém poderes referentes a direção, fiscalização e
controle do processo e estes devem estar em equilíbrio com a limitação à essa
proatividade de modo a se evitar decisões arbitrárias. Desse modo, como
instrumento da justiça, é sabido que o juiz deve manter-se imparcial, além de
motivar suas decisões com fundamentos legais e razoáveis de modo a atender os
princípios constitucionais como o do devido processo legal.
Nesse sentido, com o ativismo judicial em pauta, a problemática a ser
discutida é: como encontrar o equilíbrio entre o juiz expectador, que se mantém
inerte até ser provocado, e o juiz ativo no processo, sem ultrapassar a tênue linha
entre os poderes e compromissos judiciais, e qual o grau de responsabilidade da
formação bacharelesca na constituição de um juiz anti-heroi?
“Anti-heroi” é o termo utilizado para definir protagonistas dotados de
características moralmente questionáveis, que, para combater o vil, não mensuram
suas ações. Em tempos de protagonismo judicial, a figura do anti-heroi surge com
certa frequência uma vez que munidos do poder conferido pela toga, alguns juízes
prolatam sentenças ao seu bel prazer, muitas vezes descompassadas com os
valores constitucionais.
Por conseguinte, o presente trabalho possui como objetivo geral: analisar
como o conteúdo de decisões proferidas judicialmente, pelo “anti-heroi” em uma
comarca do interior da Bahia, surtiram efeitos em oposição ao devido cumprimento
da tutela jurisdicional e qual a contribuição da formação bacharelesca neste
processo.
Para tanto, tenciona-se também especificamente, demonstrar a influência
do início da formação bacharelesca no Brasil com a formação dos juízes; averiguar
como a formação dos juízes interfere nas decisões judiciais; verificar como o
crescimento do fenômeno do ativismo judicial atua no processo de criação do juiz
anti-heroi e investigar se houve a aplicação da técnica correta em certas decisões
prolatadas.
A justificativa do presente estudo é motivada pelo sentido de que atualmente
ainda é visto com muito prestígio a obtenção de um diploma acadêmico de Direito
14

pela elite brasileira. Sendo assim, é relevante estudar na prática que desde o início
da formação das universidades a preocupação do bacharel estava longe de retornar
à sociedade os frutos da educação que recebeu, mas sim ser visto como “doutor”.
Dessa forma, o fascínio pelo pensamento jurídico alemão, bem como o
francês em suas ressignificações variadas em espaços e temporalidades fez com
que, aos poucos, o Brasil traçasse sua própria trajetória jurídico-intelectual.
Compreender essa formação é viável para entender o relacionamento atual entre o
magistrado e a sociedade haja vista que este é fruto de uma herança colonial
burguesa, estando a originalidade do estudo presente pela pouca discussão na
doutrina e acadêmicos em geral quanto ao tema em face a argumentos como “cada
juiz é uma sentença”.
Para concretização do trabalho, pretende-se, através de uma pesquisa
explicativa de método indutivo, que consiste em conectar ideias de forma a tentar
explicar as causas e os efeitos de determinado fenômeno, demonstrar a hipótese
trazida. Por meio de pesquisa bibliográfica - com análise de artigos e livros - e
estudo de caso realizado por meio da coleta de dados documentais – processos do
Fórum do município de Carinhanha, no interior da Bahia – chegar-se-á a um
resultado qualitativo. Conforme Antônio Carlos Gil (1994, p. 175) no caso de
análises experimentais e levantamentos fala-se em pesquisa quantitativa, no
entanto, em pesquisas definidas como estudos de campo os procedimentos são de
natureza qualitativa, como é o caso do presente estudo.
A investigação qualitativa foi feita de forma indutiva, que parte do particular e
coloca a generalização como um produto posterior do trabalho de coleta de dados
particulares (GIL, 1994, p. 10) com a pesquisa bibliográfica com base em diversos
autores como Sérgio Adorno, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando de Azevedo,
Mauro Cappeletti, José Murilo de Carvalho, Ronald Dworkin, Boaventura de Souza
Santos, entre outros.
Ademais, foram utilizadas de legislações brasileiras vigentes, como o Código
de Processo Penal, Código de Processo Civil e a própria Constituição Federal e
diversos artigos nas áreas de direito processual civil e penal, direito constitucional,
sociologia jurídica e história do direito.
A pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir de material já elaborado,
constituído principalmente de livros e artigos científicos (GIL, 1994, p. 50) e esta
15

parte da pesquisa é de extrema importância, uma vez que conecta os dados


encontrados a premissas gerais, chegando a um denominador.
Foi realizada ainda a investigação exploratória, consistente em estudo de
caso com a análise de processos oriundos do fórum do município de Carinhanha-
Bahia durante o período em que o juiz Ubaldino Vieira atuou (entre 1987 a 1989 e
em 1993) na referida comarca. As graduandas, autoras desta pesquisa, juntamente
com o orientador, realizaram visita à comarca no dia 18 de março de 2019, ocasião
em que verificaram o arquivo desta a fim de encontrar processos com manifestações
do Dr. Ubaldino, além de terem conversado com servidores que já trabalhavam no
fórum no período pesquisado.
O trabalho contou ainda com pesquisa documental, que muito se assemelha à
bibliográfica, tendo como a principal diferença o fato de que aquela vale-se de
materiais que não receberam ainda um tratamento analítico (GIL, 1994, p. 51) e
podem ser analisados de acordo o objetivo da pesquisa.
Sendo assim, o estudo terá caráter essencialmente qualitativo com ênfase na
pesquisa documental realizada por estudo de caso, sendo feito um cruzamento do
levantamento feito com a pesquisa bibliográfica. O produto final da pesquisa de
campo está no capítulo “Análise de decisões judiciais de um juiz na comarca de
Carinhanha-BA”.
A monografia compreende o primeiro capítulo do trabalho, o qual aborda a
formação histórica da atuação jurídica, a gênese das escolas de direito no Brasil,
bem como suas influências estrangeiras e a formação da figura do juiz. O segundo
capítulo busca demonstrar como julga o magistrado, suas funções, poderes e
limites, bem como discutir o equilíbrio que deve existir entre as suas prerrogativas e
o ativismo judicial. Por fim, o terceiro capítulo apresenta decisões judiciais de um juiz
que atuou na comarca de Carinhanha-Ba nos anos de 1987 a 1989 e 1993 e a sua
ligação com a herança do bacharelismo, como sua formação pode ter interferido nas
tomadas de decisões e se houve falta de técnica nas mesmas.
16

2 GÊNESE HISTÓRICA E INFLUÊNCIA DO BACHARELISMO DO SÉCULO XIX


NA ATUAÇÃO JUDICIAL ATUAL

Inicialmente, para contextualizar o tema aqui pesquisado, faz-se necessário


analisar a conjuntura do Brasil no século XIX, mais especificamente no início do
século, quando a sociedade brasileira começou a ser desenhada e passaram a
surgir os primeiros líderes e uma clara divisão em classes.
Pode-se afirmar que a formação bacharelesca do país tem suas raízes na
dependência que o ensino intelectual monárquico compartilhava com Coimbra,
centro formador do mundo jurídico lusitano. Desse modo, o título de bacharel era
relacionado com o prestígio social, sendo a Universidade de Coimbra um ponto
obrigatório para os brasileiros que desejassem fazer parte da vida acadêmica
efetivamente, até que fossem implantados os primeiros cursos aqui, como veremos
a seguir.

2.1 CONTEXTO E PERCEPÇÕES HISTÓRICAS

Os primeiros líderes da sociedade colonial foram recrutados entre fidalgos,


senhores de engenho e sacerdotes, estando assim a ascensão na escala social a
cargo do clero ou da posse de grandes terras, segundo Azevedo (1971, p. 279) e
ainda conforme o autor, do seio desta sociedade colonial inculta, não tardou a surgir,
com a instrução ministrada pelos jesuítas, a categoria social dos intelectuais, que
“iam bacharelar-se em Coimbra, para adquirirem, com o título de licenciados e de
doutores, acesso fácil à classe nobre pelos cargos de governo”.
Como destaca Holanda (1995. p. 157), “em quase todas as épocas da história
portuguesa uma carta de bacharel valeu quase tanto como uma carta de
recomendação nas pretensões a altos cargos públicos”, e em uma sociedade que
vulgarizava e menosprezava o trabalho – em especial o trabalho manual – a
estabilidade e ociosidade do cargo público e o status inerente à posse do título de
bacharel, permitia ao indivíduo atravessar a existência com a discreta compostura.

O que interessava nessa sociedade de estrutura elementar era, de


fato, um tipo de cultura que favorecesse o acesso da elite intelectual,
se não à nobreza, ao menos aos chamados cargos nobres, criando
17

uma nova aristocracia – a dos bacharéis e a dos doutores.


(AZEVEDO, 1971. p. 283)

Uma vez que, enquanto colônia, o Brasil não apresentava uma identidade
política própria, após o “grito da independência” que marcava o rompimento com
Portugal em 1822, o país recém-emancipado se viu obrigado a consolidar a elite
administrativa, social e intelectual nacional, com a formação de bacharéis para
preencher os quadros burocrático-institucionais.
Conservadores e liberais protagonizavam uma disputa de ideias no período
pós independência, no século XIX, tanto que tal disputa levou à dissolução da
Assembleia Constituinte e outorga da Carta Constitucional de 1824. Como
instrumento de homogeneidade ideológica e a fim de evitar os conflitos intra-elite é
que surgiu o fenômeno do bacharelismo na formação do Estado brasileiro.
Para Rudnicki (2007. p. 64), “a decisão de implantar os cursos superiores,
portanto, encampava um projeto de classe”, haja vista que, entre as opções mais
vantajosas à elite – criação de escolas superiores para os jovens mais afortunados –
e à maior parte da população – programa de alfabetização mais amplo que
atendesse a todos – aquelas sempre se sobrepuseram a estas, e não seria diferente
desta vez.
O bacharelismo surgiu como o “treinamento da elite”, sendo a via eleita para a
união dos interesses intra-elite, a fim de dirimir os conflitos dos liberais e
conservadores, enfrentando a tarefa de efetiva construção do Estado, para que,
distanciados dos interesses regionais e com forte identificação com o Estado, a nova
classe dos bacharéis assegurasse a unidade política e a supremacia do governo civil
do Estado Imperial.

Desde cedo, os cursos jurídicos nasceram ditados muito mais pela


preocupação de se constituir uma elite política coesa, disciplinada,
devota às razões do Estado, que se pusesse à frente dos negócios
públicos e pudesse, pouco a pouco, substituir a tradicional burocracia
herdada da administração joanina, do que pela preocupação em
formar juristas que produzissem a ideologia jurídico-política do
Estado Nacional emergente. (ADORNO, 1988, p. 236)

Nesse sentido, era digno de notoriedade aquele que possuía o título de


bacharel, independentemente de seu real conhecimento em relação ao que tenha
estudado, pois apenas a posse do diploma importava. A isto se denominou o
18

bacharelismo, que, nos dizeres de Kozima (2007, p. 324) seria “a situação


caracterizada pela predominância de bacharéis na vida política e cultural do país”, e
desta forma, as resistências contra o movimento da independência nacional foram
sendo vencidas e a elite nativa se consolidava cada vez mais no poder.
Uma vez recrutados das classes mais nobres, os estudantes das
universidades provinham da elite econômica do Brasil Imperial, posto que as escolas
cobravam anuidade e aqueles que desejavam formar-se bacharéis deveriam arcar
com os altos custos de vida nas capitais por cerca de cinco anos, no mínimo. Para
Carvalho (2008. p. 35), “seria pouco provável a existência de uma elite recrutada
exclusivamente em setores não-dominantes da sociedade a dirigir o Estado contra
os interesses dominantes”.
Com a inserção desta classe no poder, visto que os bacharéis assumiam os
cargos públicos, “o Estado era o maior empregador dos letrados que ele próprio
formava” (CARVALHO, 2008. p. 98) e a elite assegurou melhores condições em sua
tarefa de construção do Estado e manutenção da monarquia. “O título de bacharel e
de doutor mantinham-se como um sinal de classe, e às mãos dos filhos do senhor
de engenho ou do burguês dos sobrados continuavam a repugnar as calosidades do
trabalho” (AZEVEDO, 1971. p. 284).
O desemprego dos bacharéis era perigoso para a estabilidade imperial, como
bem observado por Carvalho (2008), pois tratava-se do grupo mais habilitado a
formular suas queixas contra a monarquia, podendo juntar-se com aqueles que
desejavam o fim deste sistema de governo, e por isso, observa-se que a maioria das
posições da elite política ligava-se ao Estado.
Ainda segundo o autor, o emprego público era procurado por representar uma
fonte estável de rendimentos, e a maioria dos bacharéis, independente do curso,
almejavam, após formados, o cargo público, conceituados por Azevedo (1971, p.
290) como “infiltrados de bacharéis, desertores dos quadros profissionais de que
guardaram, com a ilustração, apenas o título e o anel de rubi no dedo, como sinais
de classe e de prestígio”.
Para Adorno (1988), não se observa, no conteúdo programático ou nas
práticas didáticas, responsabilidade pela formação cultural ou profissional do
bacharel, uma vez que o intuito era pura e simplesmente o de forjar profissionais
politicamente disciplinados conforme os fundamentos ideológicos do Estado.
19

A classe dos intelectuais que se obstinava a desconhecer as


necessidades vitais do país, continuava, sob a influência de homens
de Estado, “com todos os hábitos peculiares aos legistas educados à
abstrata”, a limitar as suas atividades à política, às profissões liberais
e à literatura, enquanto o comércio, os negócios, as empresas
comerciais e industriais, como a ciência pura e a ciência aplicada, as
pesquisas e as investigações, não pareciam interessar senão aos
estrangeiros. Homens de educação abstrata, escreve Gilberto
Amado referindo-se aos políticos do Império, “a todos faltava uma
educação científica necessária à compreensão de um país que, mais
do que nenhum outro, precisava de uma política construtiva”.
(AZEVEDO, 1971. pp. 300-301)

Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda (1995) também aborda o


problema dos intelectuais na configuração da sociedade brasileira, assinalando a
satisfação com o saber aparente, cujo fim está em si mesmo e não possui aplicação
em um alvo concreto, não passando de um fator de prestígio para quem o tem.
Trata-se do saber de fachada, que busca realização pessoal e deixa os objetivos em
segundo plano, prezando pela forma e pelo exibicionismo, já que o bacharelismo
está relacionado à ideia de poder pelo povo.
Conforme o autor, o povo brasileiro é um povo "desterrado", pois cultura e
diversas práticas específicas da Europa foram trazidas ao Brasil sem consideração
às diferenças geográficas e sociais dos dois continentes. "A tentativa de
implementação da cultura europeia em extenso território [...] é [...] o fato mais
dominante em consequências". (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p.31).
Como consequência, sem preocupação com o conhecimento ou
aprofundamento da cultura e sociedade locais, as universidades, principalmente, se
distanciam do povo, criando um discurso utópico e formando profissionais de todos
os tipos que tinham em comum o desconhecimento da sociedade em que estavam
inseridos.

2.2 ESCOLAS DE DIREITO

A cultura jurídica brasileira, compreendida como uma associação de ideias


preponderantes nas faculdades, bem como institutos profissionais jurídicos, possui
influência dominante e definitiva à formação jurídica pelo dominador luso, pois, as
primeiras faculdades de Direito no Império foram inspiradas no modelo de Coimbra,
considerado como fulcro de um pensamento literário e cosmopolita.
20

A criação e fundação dos cursos jurídicos no Brasil, na primeira


metade do século XIX, nutriu-se da mesma mentalidade que norteou
a trajetória dos principais movimentos sociais que resultaram na
autonomização política dessa sociedade: o individualismo político e o
liberalismo econômico. A constituição do Estado Nacional reclamou
tanto a autonomização cultural quanto – e sobretudo – a
burocratização do aparelho estatal. (ADORNO, 1988, p. 77)

A criação de cursos jurídicos superiores no Brasil não decorria do anseio de


se constituir na colônia uma promoção de cultura. Buscava-se uma formação
acadêmica burocrática que correspondesse à política colonial de centralização,
demonstrando-se que no Brasil-Colônia a administração da justiça atuou sempre
como instrumento de dominação colonial, (WOLKMER, 2010, p.86).
Dessa forma, os cursos foram instituídos pela lei de 11 de agosto de 1827,
começando a funcionar em Olinda e São Paulo. Escrevendo sobre a cultura jurídica
no Brasil, Beviláqua (1997, p. 322) acentuou que, nos primeiros anos, os cursos
jurídicos de São Paulo e Olinda eram “bisonhos arremedos de Coimbra”, sendo a
influência retórica portuguesa predominante tanto no ensino quanto no foro até a
metade do século XIX.

Em São Paulo, a primeiro de março de 1828, inaugurou-se


solenemente o curso de Ciências Jurídicas e Sociais. Entre 1828 e
1879, no entanto, a Academia de Direito se defrontou com uma série
de problemas, desde aqueles relativos às reformas necessárias para
instalação do curso no edifício do convento franciscano [...] até
aqueles referentes ao programa curricular, contratação de
professores, matrícula de candidato, indicação de compêndios,
vencimento dos lentes, apontamento de frequência e ritos de
avaliação. Apesar desses problemas e de suas repercussões sobre o
ensino, a cultura jurídica no Império produziu um tipo específico de
intelectual: politicamente disciplinado conforme os fundamentos
ideológicos do Estado; criteriosamente profissionalizado para
concretizar o funcionamento e o controle do aparato administrativo; e
habilmente convencido senão da legitimidade, pelo menos da
legalidade da forma de governo instaurada. (ADORNO, 1988, p. 91)

Assim, nota-se que os primeiros resultados das novas escolas não foram dos
melhores, isso devido a uma série de fatores, principalmente pela característica dos
cursos de profissionalizar bacharéis. Ligados à Portugal e com programas
curriculares fracos, os cursos de Direito inicialmente sofreram duras críticas, mesmo
que, anos depois, tenham se tornado núcleos notáveis de cultura jurídica.
21

A faculdade de Direito Pernambucana, conhecida como a Escola de Recife,


acolheu ideias estrangeiras vinculadas ao ideário liberal, com uma inclinação ao
erudito, ao iluminismo. Com a pluralidade temática de tratamento do fenômeno
jurídico, houve o fomento de combate às instituições assentadas, com a adaptação
do Direito a teorias evolucionistas, se tornando uma vanguarda científica no Brasil.

Assim, tanto a Escola do Recife, ou Geração de 1871, contribuiu


para a confecção intelectual brasileira nos temas da sociologia, da
antropologia, crítica literária e estética. Seus postulados foram à
valorização da mestiçagem no Brasil, resultado do cruzamento de
raças; a valorização do homem brasileiro e a investigação do caráter
nacional, sempre em debate com correntes teóricas europeias, o
positivismo, o evolucionismo e talvez o marxismo.
(WENECZENOVICZ, BORRMANN, 2017, p. 147).

Destaca-se nesse sentido a contribuição do germanismo, objeto de certo


fascínio pelos brasileiros, via Tobias Barreto, permanecendo sua personalidade em
autores dos mais contemporâneos. Com as inovações trazidas, a Escola de Recife
representou um movimento em prol da concretização da tarefa das faculdades de
direito de ser um grande centro de estudo social e filosófico no Brasil.

O nome de escola parece realmente exagerado para o movimento de


Recife. Mas a agitação intelectual que ali se processou não só foi
deveras brilhante, como adquiriu caráter mais ostensivamente
iconoclasta dos antigos padrões mentais que o de qualquer outra
região. (HOLANDA, p. 367)

Por outro lado, enquanto a faculdade pernambucana se vinculava ao


cientificismo, a academia de São Paulo primava pela formação de políticos e
burocratas do Estado, e trilhou na direção da reflexão e da militância política, no
jornalismo e na “ilustração” artística e literária (WOLKMER, 2010, p.105).
O bacharelismo estava sendo preparado para sustentar setores do Judiciário,
do Legislativo e da administração política de modo a mediar interesses particulares e
públicos entre o Estado e os interesses sociais. Na verdade, a erudição do bacharel
nada mais era do que o simples uso da retórica, da fala ornamental e sofisticada,
enfatizando o culto à linguística em detrimento do conhecimento da realidade social
nacional.
22

Sustentam algumas interpretações que o rígido controle executado


pelo Estado sobre o currículo, sobre o método de ensino, sobre a
nomeação de professores, sobre os programas e sobre os livros
impediu uma prática educativa libertadora que se prestasse à
formação de uma consciência crítica da realidade brasileira àquela
época. Sob essa perspectiva, o ensino jurídico no Império teria se
caracterizado por uma visão lógica e harmônica do Direito, por uma
cultura abertamente desinteressada, por uma percepção ingênua da
realidade social, por uma concepção do mundo voltada para a
perpetuação das estruturas de poder vigentes e por um saber sobre
o presente como algo a ser normatizado e sobre o futuro como
eterna repetição do presente. (ADORNO, 1988, p. 92)

Desse modo, compreende-se que a formação fornecida pelas escolas de


Direito não estava de acordo com a realidade nacional, mas sim, com o discurso
sócio-político que girava em torno de interesses em detrimento da efetividade social.
Até porque a educação prestada por Coimbra possuía raízes gerais e universais,
não se prestando ao estudo de casos concretos brasileiros.
Não se buscava trazer justiça ao povo, mas assegurar o pagamento de
impostos, precaver-se de ameaças diretas à dominação, proteger os interesses do
governo real e manter o poder dos fazendeiros proprietários de terras.
O objetivo do governo estava claro e o controle direto e indireto da formação
dos juristas era uma de suas armas. Com os bacharéis em Direito ao lado do
governo eram mínimos os riscos de rebeliões, por isso mantinham o controle dos
cursos, desde as bases curriculares até a contratação de professores.

[...] A contradição entre o formalismo retórico do texto constitucional


e a realidade social agrária não preocupava nem um pouco a elite
dominante, que não se cansava de proclamar teoricamente os
princípios constitucionais (direito à propriedade, à liberdade, à
segurança), ignorando a distância entre o legal e a vida brasileira do
século XIX (WOLKMER, 2010, p. 108).

Outrossim, cumpre destacar a carência de estrutura adequada ao


funcionamento das faculdades de Direito em face do papel relevante que
desempenhavam, pois tiveram os cursos jurídicos de se abrigar à sombra de velhas
instituições eclesiásticas, o que ocorreu tanto em São Paulo quanto em Olinda
(VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 37). Havia ainda a desvalorização dos professores,
uma vez que tal ofício era considerado secundário, estando abaixo dos cargos
jurídicos, o que também favorecia a baixa qualidade de ensino.
23

Acerca do discurso jurídico, podemos afirmar que este é de tal forma


assentado numa lógica normativista e engessada, tão distanciada da realidade
social que as palavras do Direito são colocadas como uma espécie de ornamento,
adorno do discurso, nas palavras Cubas:

[…] Não tinha outra filosofia. […] Não digo que a universidade não
me tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o
vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três
versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e
políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a
história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a
casca, a ornamentação (ASSIS, 2010, p.87).

Desta forma, como preleciona Adorno (1988, p.75), os cursos jurídicos, desde
seu surgimento no Brasil, estavam muito mais voltados à preocupação de se
constituir uma elite política coesa e devota às razões do Estado, que se pusesse à
frente dos negócios públicos do que pela preocupação em formar juristas que
produzissem uma ideologia jurídico-política do Estado Nacional emergente.
Ainda segundo Adorno (1988, p. 75) “o bacharel, que se converteu em político
profissional e procurou ascender ao poder por intermédio do partido. Bacharel que
fez da política vocação”. Os cursos de Direito se tornaram então a porta de mais fácil
acesso à política, o que distanciou os juristas do meio social, uma vez que se
formavam verdadeiros burocratas.

2.3 FORMAÇÃO DA FIGURA DO JUIZ

A ideia de que havia um exclusivismo intelectual gerado pelos pensamentos


estrangeiros transformava os magistrados em uma elite distanciada da sociedade.
Assim, estes eram vistos como preparados para apenas servir aos interesses da
administração, o que confundia o poder judicial com o político, embora tenham
funções distintas.
Neste sentido, Wolkmer observa que:

[...] o bacharelismo nascido de uma estrutura agrário-escravista se


havia projetado como o melhor corpo profissional preparado para
sustentar setores da administração política, do Judiciário e do
Legislativo, viabilizando as alianças entre os segmentos diversos e a
24

mediação “entre interesses privados e interesses públicos, entre o


estamento patrimonial e os grupos sociais locais”. (2010, p.128)

Como a dominação portuguesa influenciou na formação do perfil dos juízes


que se formaram na colônia, observa-se que a magistratura brasileira possui um
berço burocrático e uma organização profissional administrativa e política ligada à
ideia de poder. Pois, considerada como a espinha dorsal do governo,
era essencial que fosse permeada por um processo seguro de eficiência.
Desta forma, Adorno (1988, p. 78) afirma que o Estado Brasileiro erigiu-se
como um “estado de magistrados, dominado por juízes, secundados por
parlamentares e funcionários de formação profissional jurídica”, e assim o bacharel
se constituiu em sua figura central, uma vez que estava como figura mediadora entre
os interesses privados e públicos. O autor aborda ainda as críticas existentes aos
magistrados no período.

As críticas à magistratura e aos magistrados inserem-se também no


universo temático da igualdade jurídica. Aqui, o foco de atenção do
redator dirigia-se contra o desleixo ou má habilitação técnica e
intelectual dos juízes, responsabilizados pelas dificuldades na
distribuição da justiça, impedindo de adequá-la aos requisitos de
equidade social, recomendáveis em uma sociedade que se repute
organizada segundo princípios do liberalismo econômico e político.
Polêmicas a propósito da incapacidade dos juízes na condução de
julgamentos eram insistentemente travadas na imprensa acadêmica.
(ADORNO, 1988, p. 196)

A magistratura era reconhecida como uma carreira inserida no contexto de


atendimento aos interesses da metrópole, e por isso, possuía alguns deveres de
lealdade e obediência em relação a Coroa. Ocorre que, nem sempre essas regras
eram respeitadas e os desvios acabavam por serem acomodados pelo controle
fiscal, sendo inevitável uma eventual aproximação com a sociedade.

A corrupção cobria um lastro de desvios da legislação e das regras


burocráticas. Evidentemente, os magistrados, em diversas ocasiões,
empregaram o “poder e a influência do seu cargo para obter
vantagens pessoais, conveniências ou para proteger suas famílias e
dependentes. Frequentemente o abuso do cargo se dava para a
obtenção de vantagens pessoais diretas, o que implicava
favorecimento e suborno capazes de subverter a própria justiça.
(WOLKMER, 2010, pp. 84-85).
25

Nesse sentido, a união com o povo, porém, não representou um socorro aos
seus anseios, e sim uma oportunidade aos magistrados em se ocuparem com suas
próprias vontades em consonância com as da elite da qual faziam parte.
A democratização do país, com a promulgação da Constituição de 1988
trouxe uma valorização do Poder Judiciário brasileiro, que passou a ser agente ativo
no enfrentamento de diversas questões sociais. Obra relevante à época, “Acesso à
Justiça” de Mauro Capelleti (1998) exerceu grande influência aos juristas naquele
cenário, tratando da necessidade de igualdade efetiva dentro da justiça e suas
instituições.

Afastar a “pobreza no sentido legal” – a incapacidade que muitas


pessoas têm de utilizar plenamente a justiça e suas instituições – não
era preocupação do Estado. A justiça, como outros bens, no sistema
do laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que pudessem
enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram
considerados os únicos responsáveis por sua sorte. O acesso formal,
mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal,
mas não efetiva. (CAPELLETI, 1998, p. 9)

Na obra, Capelleti critica o estudo jurídico, indiferente às realidades do


sistema judiciário e a fatores relevantes como as diferenças entre os litigantes ou a
disponibilidade de recursos para enfrentar o litígio. Segundo o autor “o estudo era
tipicamente formalista, dogmático e indiferente aos problemas reais do foro cível”
(CAPELLETI, 1998, p. 10), com preocupações de mera exegese, extremamente
distantes das preocupações reais da maioria da população.
A partir daí, busca-se uma aproximação dos magistrados à realidade social,
para que o poder judiciário consiga finalmente atender aos interesses de todos de
maneira efetiva. Exemplo disso é a Portaria 1.886 /1994 que representou importante
avanço no currículo dos cursos de graduação em Direito, instituindo, em seu artigo
10, obrigatoriedade de um núcleo de prática jurídica, mantida pela Resolução 9/2004
do Conselho Nacional de Educação.
O núcleo de prática jurídica foi previsto como uma fonte de treinamento que
permita ao bacharelando contato direto com atividades relacionadas à magistratura
e ao Ministério Público, e não somente com a advocacia. No ato regulamentar de
2004 detalhou-se de modo didático o modo de aferição do aprendizado prático.
26

Mesmo com tantas mudanças e com uma clara maior inclinação dos cursos
de Direito, hoje, à formação prática e aproximação de causas sociais, se analisado o
perfil dos juízes brasileiros, ainda é encontrado um perfil de homem branco, 47 anos,
casado e católico, vide dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Há um contraste maior quando se analisa o perfil étnico-racial:

No que se refere ao perfil étnico-racial, a maioria se declara branca


(80,3%), 18,1% negros (16,5% pardos e 1,6% pretos), e 1,6% de
origem asiática (amarelo). Apenas 11 magistrados se declararam
indígenas. Entre os magistrados que ingressaram até 1990, 84% se
declararam brancos. Entre os que ingressaram no período de 1991-
2000, 82% se classificaram como brancos, reduzindo para 81% entre
os que ingressaram entre 2001-2010, e ficando em 76% entre os que
entraram na carreira a partir de 2011. (CNJ – Conselho Nacional de
Justiça. Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, 2018)

O contraste estatístico mostra que apesar de significativas mudanças, ainda


ingressam em carreiras como a magistratura pessoas brancas e de classes sociais
privilegiadas, tal como ocorria no cenário da gênese do bacharelismo no Brasil.
É evidente que não é fácil a tarefa de julgar ou de exercer qualquer outra
função que lide com insolúveis problemas de desigualdade social, e essa tarefa se
torna ainda mais difícil se o juiz em questão não tem compreensão da realidade e
atua somente sobre as consequências e não sobre as causas dos problemas
sociais.

Dentre os variados e múltiplos predicados que se espera do


magistrado na contemporaneidade, a percepção do outro avulta em
importância. Desse reconhecimento decorrem feixes de direitos
fundamentais individuais e metaindividuais não só da parte litigante,
mas também de toda de toda coletividade na qual o juiz atua.
Hodiernamente, entremostra-se inconcebível um magistrado despido
da capacidade de reconhecimento do outro; convém a ele estar
cônscio de diferenças sociais e políticas, ser capaz de gerenciar
recursos humanos e materiais, não tolerar discriminações
inadequadas, além de ser comprometido com o meio ambiente em
todas as suas dimensões (natural, artificial, cultural e do trabalho).
(JUNIOR; BANNWART; CACHICHI, 2014, p. 01).

Walber Siqueira Vieira, ao iniciar seu artigo “Os poderes instrutórios do juiz e
a difícil tarefa de julgar”, utiliza uma citação de Jean Cruet, in verbis: “O juiz na
realidade, é a alma do processo jurídico, o artífice laborioso do direito novo contra as
27

fórmulas caducas do direito tradicional” (VIEIRA, 2000, p. 339), traduzindo a função


do juiz e sua importância social.
“O juiz, com seus poderes instrutórios, não é mais um mero espectador do
processo. Sem azo de dúvidas, passou a ser um protagonista deste processo,
atuando como um grande agente de transformação social” (VIEIRA, 2000, p. 340), e
como tal, deve ter muito mais do que apenas uma bagagem positivista. Toda a
consciência social necessária para que ele paute suas decisões deve vir desde o
início de sua formação.
Ao escrever a importante obra “Revolução Democrática da Justiça”, Santos
(2007, p. 54) cita as mudanças no ensino do Direito e na formação profissional como
uma grande transformação do judiciário, assumindo uma importância central no
aumento da eficácia do sistema judicial.

Estou convencido de que, para a concretização do projeto político-


jurídico de refundação democrática da justiça, é necessário mudar
completamente o ensino e a formação de todos os operadores de
direito: funcionários, membros do ministério público, defensores
públicos, juízes e advogados. É necessária uma revolução.
(SANTOS, 2007, p. 54)

Ao desenhar um perfil do magistrado em Portugal, supondo ser este também


o perfil do magistrado brasileiro, salvo exceções, o autor aponta que as
características do perfil geral traçado são fruto de uma cultura normativista, técnico-
burocrática, pautada em três pilares:

[...] A ideia de que o direito é um fenômeno totalmente diferente de


tudo o resto que ocorre na sociedade e é autônomo em relação a
essa sociedade; uma concepção restritiva do que é esse direito ou
do que são os autos aos quais o direito se aplica; e uma concepção
burocrática ou administrativa dos processos. (SANTOS, 2007, p 55-
56)

Essas características se manifestariam de diversas formas, como, por


exemplo, devido à prioridade dada ao Direito Civil e Penal pela tradição dogmática
jurídica; pela cultura generalista de que a lei seria o único fator eficaz para a
resolução de litígios e o magistrado o único com capacidade para aplicá-la; o
privilégio do poder, que faz com que agentes do poder em geral não sejam vistos
28

como cidadãos com iguais direitos e deveres, dando privilégios a membros do poder
político; o refúgio burocrático, que define como:

A quinta manifestação desta cultura é a preferência por tudo o que é


institucional, burocraticamente formatado. São os seguintes os
sintomas mais evidentes desta manifestação: uma gestão burocrática
dos processos, privilegiando-se a circulação à decisão – o chamado
andamento aparente dos processos; a preferência por decisões
processuais, em detrimento de decisões substantivas; a aversão a
medidas alternativas, por exemplo, penas alternativas, por não
estarem formatadas burocraticamente. (SANTOS, 2007, p. 57)

A sexta manifestação desta cultura, e talvez a mais importante aqui, é a da


“sociedade longe”, definida por Boaventura como sendo a capacidade de interpretar
o direito, versus a incapacidade de se interpretar a realidade, “ou seja, conhece bem
o direito e a sua relação com os autos, mas não conhece a relação dos autos com a
realidade” (SANTOS, 2007, p. 57).
Em relação ao perfil dos juízes brasileiros, hegemonicamente branco, vê-se
uma necessidade de conscientização também acerca de racismo para que as
decisões sejam tomadas de forma imparcial, livres de qualquer preconceito. Neste
sentido, aponta Boaventura:

O relatório do projeto “Sistema Judicial e Racismo” do Centro de


Estudios de Justicia de las Américas refere que as instituições do
movimento negro brasileiro apontam para uma carência de formação
sobre o racismo entre os operadores do sistema judicial. Para a
grande maioria prevalece o senso comum da democracia racial do
Gilberto Freyre. Não há racismo, por outras palavras. E, portanto,
assumem nas suas sentenças o preconceito racial de se julgarem
sem preconceito racial. (SANTOS, 2007, p. 55)

A sociedade brasileira é uma sociedade racista, assim como todas as outras


que foram historicamente envolvidas de alguma forma em processos de
colonialismo, desta forma, seus membros devem se reconhecer como tal para que
possam abolir tal comportamento.
A fim de eliminar elementos extranormativos de seus componentes
curriculares, as faculdades de Direito cometeram o equívoco de criar uma “cultura de
extrema indiferença ou exterioridade do Direito diante das mudanças
experimentadas pela sociedade” (SANTOS, 2007, p. 58), se distanciado ainda mais
das preocupações sociais e formando profissionais sem comprometimento social.
29

Em regra, o ensino jurídico até hoje praticado (180 anos depois da


implantação dos primeiros cursos em São Paulo e Olinda) parte do
pressuposto de que o conhecimento do sistema jurídico é suficiente
para a obtenção de êxito no processo de ensino-aprendizagem. A
necessária leitura cruzada entre o ordenamento jurídico e as práticas
e problemas sociais é ignorada, encerrando-se o conhecimento
jurídico e, consequentemente, o aluno, no mundo das leis e dos
códigos. As pesquisas no direito estão ainda muito centradas na
descrição de institutos, sem a devida contextualização social.
(SANTOS, 2007, p. 59)

É preocupante a observação de que faltam a alguns magistrados atributos


básicos para que possam desempenhar suas funções de transformadores da
sociedade. A fim de suprir as deficiências da formação bacharelesca dos juristas,
foram criadas as escolas de magistratura, instituídas com o objetivo de preparar os
interessados em seguir esta carreira:

Como se pressente, descortina-se vigorosa a fundamental relevância


e responsabilidade de preditas Escolas, em cujo recôndito se
fomenta o debate dos principais temas de direitos humanos que
atualmente desafiam a magistratura como um todo. O magistrado
esclarecido, bem e continuamente formado, incentiva a participação
pública dos concernidos e favorece a ampliação do acesso à ordem
jurídica justa. (JUNIOR; BANNWART; CACHICHI, 2014, p. 23)

A magistratura é uma carreira exigente, onde são necessários conhecimentos


técnicos e científicos, mas também práticos e sociais. No contexto atual, o juiz não é
mais mero espectador do processo, mas agente de transformação social, e em meio
a muitos magistrados que agem com lisura e coerência, no entanto, existem os que
tomam decisões desarrazoadas, incoerentes e inconstitucionais.
Desta forma, se o magistrado não interpreta a realidade, passa a ser refém de
ideias dominantes, normalmente as de uma classe política muito pequena, tendo
uma falsa ideia de imparcialidade, quando na verdade está agindo de acordo um
senso comum restrito.
O preparo intelectual do magistrado faz-se necessário, mas é importante,
sobretudo, compreender o juiz como ser humano, despido de qualquer “poder
heroico” atribuído a alguns, que embora possua poderes, deve obedecer a limites
estabelecidos por princípios constitucionais, como o da imparcialidade e legalidade.
30

3 COMO JULGA O JUIZ: OS LIMITES DO PODER DO MAGISTRADO E A


CRIAÇÃO DA FIGURA DO ANTI-HEROI

O magistrado atua no processo como um julgador participante, pois é detentor


de poderes que norteiam o andamento processual. Ocorre que, o Direito como
ciência dinâmica abre caminhos para diferenciadas lacunas e interpretações do
ordenamento jurídico.
Nesse sentido, levanta-se a discussão quanto ao ativismo judicial, haja vista
que não se deve confundir a proatividade do magistrado com a discricionariedade,
pois o juiz não deve se distanciar de princípios norteadores do processo e da
legalidade.

3.1 O JUIZ, SUAS FUNÇÕES, PODERES E LIMITES

A Constituição Federal, em seu artigo 93, demanda ao Supremo Tribunal


Federal a iniciativa de Lei Complementar para dispor acerca do Estatuto da
Magistratura. Ademais, são elencados pela CF vários requisitos que devem ser
obedecidos pelo juiz, como: três anos de atividade jurídica; participação em cursos
oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção; obrigatoriedade de residir na
respectiva comarca em que atua; entre outros.
Pois bem, em 1979 entrou em vigor a Lei Complementar n º 35, que dispõe
sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. A referida lei trata e regulamenta
diversos temas como, por exemplo, a divisão dos órgãos do poder judiciário, sejam
eles: I – Supremo Tribunal Federal; II – Conselho Nacional da Magistratura; III –
Tribunal Federal de Recursos e Juízes Federais; IV – Tribunais e juízes militares; V
– Tribunais e juízes eleitorais; VI – Tribunais e juízos do trabalho; VII – Tribunais e
juízes estaduais; e VIII – Tribunais e juízes do Distrito Federal e dos Territórios.
Conforme a doutrina de Dirley (2016, p. 971) o dispositivo “consiste num
conjunto de normas constitucionais e legais, destinadas à disciplina da carreira da
magistratura, forma e requisitos de acesso, critérios de promoção, aposentadoria,
subsídio, vantagens, direitos, deveres, responsabilidades, impedimentos e outros
aspectos relacionados à atividade do magistrado”.
Sendo assim, o primeiro apontamento a ser feito é o de que os juízes fazem
parte do próprio Poder Judiciário. Eles representam tal poder dentro das demandas
31

judiciais e devem estar sempre pautados na lei, aplicando-a. Destaca-se então a


importância do Poder Judiciário, e “daí a necessidade de se dotar esse poder de
fortes garantias constitucionais indispensáveis à sua atuação livre, autônoma e
independente” (DIRLEY, 2016, p.978). Esses privilégios/garantias podem ser
funcionais ou institucionais, ao que daremos ênfase à vitaliciedade:

Art. 26 – O magistrado vitalício somente perderá o cargo (vetado):


I – em ação penal por crime comum ou de responsabilidade;
II – em procedimento administrativo para a perda do cargo nas
hipóteses seguintes:
a) exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra função,
salvo um cargo de magistério superior, público ou particular;
b) recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de
percentagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho e
julgamento;
c) exercício de atividade político-partidária. (BRASIL. 1979).

A garantia da vitaliciedade faz-se necessária uma vez que permite que o


magistrado possa atuar de forma independente no exercício da função jurisdicional,
evitando assim qualquer pressão interna ou externa por agir de maneira diversa da
esperada por alguma das partes. O Juiz vitalício somente perde seu cargo após
sentença judicial transitada em julgado, o que dificulta também que sofra ameaças
de demissão. Além da vitaliciedade, os juízes são dotados de inamovibilidade,
irredutibilidade de subsídios, entre outras garantias de suma importância.
Insta ressaltar que entre os órgãos do Poder Judiciário está o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), ao que, conforme o artigo 50 da LC n º 35, “cabe
conhecer de reclamações contra membros de Tribunais, podendo avocar processos
disciplinares contra Juízes de primeira instância e, em qualquer caso, determinar a
disponibilidade ou a aposentadoria de uns e outros, com vencimentos proporcionais
ao tempo de Serviço”.
Ao juiz, a Constituição Feral atribui diversas funções, sendo a mais importante
delas, a função decisória. O juiz criminal, verbi gratia, pode limitar o exercício
arbitrário do jus puniendi pelo Ministério Público, agindo para evitar excessos e dar a
qualquer caso a solução mais coerente, com base nos princípios constitucionais.
No âmbito do Processo Penal, o artigo crucial que trata sobre a função do juiz
é o artigo 251 do Código de Processo Penal, in verbis: “Ao juiz incumbirá prover à
32

regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos, podendo,


para tal fim, requisitar a força pública”. Sendo assim, “recai sobre o juiz, portanto, o
poder-dever de aplicar o direito objetivo ao caso concreto, de maneira imparcial,
substituindo-se à vontade das partes, pondo fim ao conflito” (LIMA, 2018, p. 708).

Se utilizados corretamente, isto é, à luz do “modelo constitucional do


Direito Processual Civil”, os instrumentos processuais colocados à
disposição do juiz permitirão que o processo deixe, cada vez mais,
de ser um fim em si mesmo, tornando-se efetivamente, meio hábil de
realização de tutela jurisdicional adequada, condizente com o Estado
Democrático de Direito (REDONDO, 2012, p. 101).

Existem diversos dispositivos nos Códigos de Processo Civil e Penal que


regem a atuação judicial, provendo garantias para que os magistrados possam
exercer suas funções de forma livre e impondo limites para que não ajam com
arbitrariedade.

3.2 PODERES

A divisão quanto aos tipos de poderes exercidos pelo juiz é objeto de uma
discussão doutrinária diversificada, não havendo uma uniformidade quanto à sua
classificação. Desse modo, o presente estudo irá apresentar brevemente alguns
deles.
O Código de Processo Civil brasileiro traz em seu Livro I, Título IV o Capítulo I
intitulado “Dos poderes, dos deveres e das responsabilidades do Juiz”. No exercício
de sua função o magistrado goza de poderes processuais, os quais não devem ser
considerados como privilégios a este, mas sim benefícios à ação da justiça e da lei.
Neste sentido, conforme KIM e AMENT (2013, p.47), os poderes jurisdicionais
podem ser classificados em poderes-meio e poderes-fim:

Os poderes-meio possuem caráter instrumental e são divididos em


ordinatórios, instrutórios e de coerção. [...] Além dos poderes-meio, o
Juiz possui poderes-fim, que se dividem em decisórios e os
executórios [...]. (KIM, AMENT, 2013, p. 47).

Segundo Ada Pellegrini Grinover (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2011,


p. 319), todos os poderes de que dispõe caracterizam-se como poderes-deveres.
33

Pois, o magistrado não possui apenas o poder da decisão, mas também de conduzi-
la segundo a ordem legal, garantindo aos jurisdicionados os seus direitos
processuais em amplitude.
O magistrado atua no processo como um julgador participante exercendo,
além do poder instrutório, o controle e a fiscalização do processo. A título de
exemplo do poder de direção, pode-se mencionar o art. 139 do CPC em seus incisos
II e III, os quais atribuem ao juiz, a possibilidade de gestão do processo, buscando
uma duração razoável do mesmo e reprimindo atos atentatórios à dignidade da
justiça.
Cabe notar orientação em mesmo sentido no art. 5º da Lei 9.099 de 95, que
regula os Juizados Especiais no plano Estadual, e que dispõe que “o Juiz dirigirá o
processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para
apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica”.
Por outro lado, embora contenha uma maior posição frente à gestão
processual, o magistrado não deve se afastar dos princípios que norteiam o devido
processo legal e se desvincular das regras estabelecidas pela lei.
Além disso, o juiz possui o poder instrutório, o qual pode ser compreendido
como o ato do julgador participante, que conduz o processo na busca de sua
efetividade, buscando trazer aos autos as provas suficientes para o seu
convencimento de modo que seja tomada uma decisão.
Essa iniciativa probatória está prevista no art. 370 do Código de Processo
Civil Brasileiro, dispondo que caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte,
determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. Veja-se entendimento
jurisprudencial sobre o tema:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO C/C


INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. IMPUTAÇÃO DE FRAUDE
NO MEDIDO DE ENERGIA ELÉTRICA. LAUDO TÉCNICO. PROVA
UNILATERAL. AUSÊNCIA DE PROVA PERICIAL. OFENSA AOS
PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DO LIVRE
CONVENCIMENTO MOTIVADO. INICIATIVA PROBATÓRIA DO
JUIZ (ART. 370 NCPC). 1. Pela sistemática neoconstitucionalista, o
Juiz não é mais mero expectador do processo, devendo o julgador, à
guisa da norma inserta no art. 370 do CPC/2015, determinar, de
ofício, a produção de prova necessária à resolução do mérito da
causa. Dada a complexidade da matéria tratada nos autos, que
envolve conhecimento técnico para chegar a uma conclusão acerca
da existência ou não de adulteração do medidor de energia elétrica
da unidade consumidora, imprescindível a produção de prova pericial
34

completa e conclusiva, uma vez que aquela constante dos autos fora
confeccionada unilateralmente pela concessionária, e sem
observância da Resolução nº 414/1010, editada pela ANEEL.
RECURSO PREJUDICADO. SENTENÇA CAÇADA DE OFÍCIO. (TJ-
GO – Apelação (CPC): 0205917-76.2017.8.09.0011, Relator: Norival
Santomé, Data de julgamento: 19/07/2019, 6ª Câmara Cível, Data de
publicação: 19/07/2019). Grifo nosso.

Dessa forma, é dada ao magistrado uma certa liberdade de interpretação da


norma (limitada pela legalidade), não significando que há discricionariedade, haja
vista que todas as suas decisões devem ser fundamentadas. Logo, o juiz deve pôr
em prática seu poder instrutório de modo a chegar o mais próximo da verdade dos
fatos alegados a partir da condução formal e material do processo.

3.3 LIMITES

O magistrado é detentor de deveres e poderes durante o processo. Assim,


deve dirigir, controlar e fiscalizar este, mas seus atos devem estar sempre em
consonância com o ordenamento jurídico. Desse modo, a legalidade processual
impõe limitações à proatividade do juiz.
Esse limite processual atua de modo a evitar decisões arbitrárias justificadas
pelos “superpoderes” do juiz, evitando que este atue senão em virtude da lei e pode
ser visualizada no art.5º, II da CF/88 quando prevê que “ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Também, a título de
exemplo, no art. 4º da LINDB “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de
acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, e
consubstanciando o princípio da obrigatoriedade da lei ser aplicada.
Além disso, outro limite aos poderes do juiz está no próprio objeto do
processo. Isso pode ser constatado ao se fazer a leitura do art. 141 do CPC, o qual
regra que “o juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe
vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da
parte”. Dessa forma, o magistrado não pode julgar além, aquém ou fora do pedido
pelo autor da demanda, estando limitado à causa de pedir e aos pedidos.
Ainda, o princípio do contraditório pelo qual “ambas as partes terão
necessariamente conhecimento de todas as alegações e provas produzidas pela
35

parte adversária, com a oportunidade de discuti-las e contrariá-las” (CINTRA;


GRINOVER; DINAMARCO, 2011, p. 38), é um limitador do seu poder instrutório.
Nesse mesmo sentido de atuação no controle sobre o exercício da função
jurisdicional, encontra-se a obrigatoriedade da fundamentação das decisões
judiciais, pela qual é possível observar se foram asseguradas as garantias
constitucionais e processuais e que será tópico de discussão do presente estudo.

3.4 COMO JULGA O JUIZ

Como consequência do presente estudo, que se pauta na compreensão de


decisões judiciais, e diante da realidade do mundo jurídico, levanta-se a questão de
como os juízes chegam a uma decisão, qual o processo de “criação” desta. É
importante compreender aqui qual abordagem é por ele utilizada de modo a cumprir
a finalidade da justiça, respeitando sempre seus limites de atuação, legalmente
estabelecidos.
De um modo geral, subtende-se que por trás de uma decisão há sempre um
viés pessoal que de algum modo influencia no resultado. A par da compreensão de
estudos voltados a este tema foi que surgiu a teoria realista da decisão judicial que,
em breve síntese, estabelece:

(i). as decisões são tomadas com base não apenas em elementos


jurídicos, mas também em elementos extrajurídicos; enquanto o
segundo enunciado estabelece que (ii). Os juízes primeiro decidem
intuitivamente, somente depois raciocinam e racionalizam a decisão
com base em argumentos jurídicos. (CESTARI, R.T., 2016, p. 23)

A teoria realista da decisão judicial busca tanto prever decisões futuras, como
tentar explicar decisões passadas já tomadas. Consolidada pelos norte-americanos,
tal teoria é vista como um movimento de críticas ao formalismo burocrático do
ensino, atuação jurídica, bem como da política ante aos acontecimentos
acadêmicos, políticos e sociais dos anos de 1920 a 1930.
Desse modo, para entender como as decisões são formadas, se fez
necessário buscar o conceito de Direito, se produto da atuação dos seus operadores
ou se a previsão dos tribunais, dentre outras diversas disputas interpretativas e,
além disso, a interdisciplinaridade com a psicologia e outras ciências humanas.
36

[...] Jerome Frank e Joseph Hutcheson – acreditavam que fatores


intrínsecos psicológicos na personalidade do juiz determinavam a
sua decisão (o famoso bordão “o que o juiz comeu no café da manhã
determina como ele irá decidir”, apesar de que nenhum realista
proferiu esta frase). (CESTARI, R.T., 2016, p. 59).

Por outro lado, estudiosos, como Hart, criticavam essa visão da


imprevisibilidade do Direito, assim como conceitos como o fato deste ser resultado
das decisões a priori pautadas pela vontade do julgador para então serem
analisadas com base na lei, afirmando ser evidente que grande parte das decisões,
“como sucede nos movimentos do jogador de xadrez, são obtidas ou através de um
esforço genuíno de obediência às regras [...] ou por regras que o juiz se dispunha
anteriormente a observar”. (HART, 2001, p. 155).
Neste sentido, o realismo norte-americano deixou um legado teórico quanto
ao estudo do comportamento judicial, que auxilia na compreensão da formação
histórica da figura do juiz em consonância com os aspectos sociais ao seu redor.
Assim, de modo a evitar o solipsismo é que se exige aos agentes públicos a
exposição dos fatos e razões no desenvolvimento da decisão.

3.4.1 Decisões judiciais e a motivação

A decisão judicial, segundo Monteiro, pode ser definida como a produção


judicial do próprio Direito, ou ainda, conforme Nagibe de Melo Jorge Neto (2019, p.
19), como ato argumentativo-pragmático formado por níveis internos e externos de
relação processual, decisões judiciais, doutrina, bem como o debate público.
Como critério da fundamentação da decisão judicial, a Carta Magna de 1988
estabelece que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” (BRASIL,
1988) conferindo status constitucional às garantias do processo.
Essa fundamentação não é somente uma garantia às partes e aos tribunais
quanto ao seguimento do devido processo legal, mas também à comunidade, que
pode examinar se aquela condiz com a devida finalidade da justiça. Pois, a
autoridade julgadora cumpre um dever de Estado com a necessidade de conciliar o
37

seu subjetivo com o dever de imparcialidade visando ao desenvolvimento da


sentença.
O art. 489 do CPC/2015, principalmente em seus parágrafos 1º e 2º, abarca
um rol exemplificativo do que deve constar numa sentença para que ela seja
suficiente e satisfatoriamente motivada:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:


§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja
ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato
normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão
decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o
motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra
decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo
capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem
identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o
caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou
precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de
distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e
os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões
que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas
fáticas que fundamentam a conclusão. (CPC, 2015)

Por outro lado, como bem pontua Zaffaroni (1995, p. 92) “é insustentável
pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de ideias,
que não tenha uma compreensão do mundo, uma visão da realidade”. Porém, ainda
que magistrados possuam ideologias e valores diferentes, é necessária a
integridade de julgamento que exige a observância e o cumprimento da coerência,
tal qual ela deve ser compreendida, com respeito ao passado e aos precedentes, e
não como uma pluralidade de decisões distintas (DWORKIN, 2007, p.203).
Neste sentido, a motivação deve estar em acordo com a profundidade
demandada em razão da complexidade da matéria auferida, sendo completa, clara e
coerente de modo a assegurar o caráter democrático da atividade jurisdicional. Os
argumentos falam por si e, se de conteúdo racional e se logicamente apresentados,
38

podem justificar suficientemente a posição adotada pelo Judiciário, além de


possibilitar o seu controle pelos cidadãos (CAMBI, HELLMAN, 2015, p.9).
Logo, atuando sob a fundamentação, a sentença está apta a passar tanto
pelo controle recursal quanto pelo realizado pela própria sociedade, condições
necessárias ao processo democrático.

3.5 PROTAGONISMO JUDICIAL: O ATIVISMO EXCESSIVO E A CRIAÇÃO DA


FIGURA DO ANTI-HEROI

Julgar e proferir uma decisão sobre o caso que lhe foi confiado é atribuição
principal do juiz, não podendo este se eximir de tal responsabilidade. No entanto, é
sabido que o Direito está em constante evolução, tratando-se de uma ciência
dinâmica, e por isso alguns juristas entendem que ele é incompleto e a maioria dos
doutrinadores brasileiros aborda a problemática das lacunas do nosso ordenamento
jurídico. Já para autores como Ronald Dworkin e Karl Larenz o ordenamento seria
“dinamicamente, completável, através de uma auto-referência ao próprio sistema
jurídico” (STRECK, 1999, p. 85).

Assim, resumindo a discussão, não existem lacunas técnicas, sendo


todas elas axiológicas. Sua colmatação passa por critérios definidos
hermeneuticamente, passando a ter relevância – retórica – os assim
denominando princípios gerais do Direito, que, aliás, fazem parte da
dicção do art. 4 da Lei de Introdução ao Código Civil: “Art. 4. Quando
a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais do direito”. Este texto é
complementado pelo art. 126 do CPC – com o que ocorre o
fechamento do sistema, originalmente estabelecido pelo art. 4 do
Código Civil Napoleônico: “Art. 126. O juiz não se exime de
sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No
julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as
havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais
de direito”. (STRECK, 1999, pp. 85-86)

Desta forma, entende-se que o magistrado nunca deverá legislar ou julgar a


seu bel-prazer. Lênio Streck é um importante crítico do ativismo judicial, pauta
relevante para o Direito nos últimos anos. Importa salientar que todos os atores do
processo devem ter a mesma relevância, não podendo o juiz colocar-se no lugar de
protagonista, muito menos de acusador – no caso do processo penal.
39

A atuação do juiz, como sabemos, deve ser imparcial, livre de interesses


políticos, “uma vez que se esses interesses seriam atendidos ou decepcionados não
seria problema do juiz, que apenas aplicaria a lei” (ROMÃO, 2017, p. 107)
No entanto, vários fatores, como v.g, o crescimento do Estado Social, fizeram
com que o Judiciário trouxesse para si a responsabilidade de zelar pelas questões
sociais, o que acarreta para ele, muitas vezes, a atípica tarefa de legislar.

Neste diapasão, ainda segundo Tércio Sampaio, o Judiciário, antes


neutralizado, passa a sustentar-se por meios políticos, como a busca
pela opinião pública, consenso popular, manutenção da imagem (o
juiz progressista), na busca de prestígio (decisões de repercussão
nacional, entrevistas em televisão), correndo-se o risco “de uma
rendição da Justiça à tecnologia do sucesso, com a transformação
do direito em simples e corriqueiro objeto de consumo. (ROMÃO,
2017, p. 107)

Uma pequena margem de liberdade dada ao magistrado não significa


necessariamente que a neutralidade foi afrontada, uma vez que a própria legislação
permite que o juiz analise o caso com base em outros aspectos que não os legais,
quando preciso. Para tanto, Luís Roberto Barroso conceitua ativismo judicial como:

A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais


ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins
constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos
outros dois Poderes. [...] O oposto do ativismo é a autocontenção
judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir ao mínimo sua
interferência nas ações dos outros Poderes. [...] Até o advento da
Constituição de 1988, essa era a inequívoca linha de atuação de
juízes e tribunais no Brasil. A principal diferença metodológica entre
as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial
procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional,
sem contudo invadir o campo da criação livre do Direito. A
autocontenção, por sua vez, restringe o espaço de incidência da
Constituição em favor do legislador ordinário. (BARROSO, 2009, pp.
283-285).

O ativismo judicial é defendido por muitos, os quais citam decisões


inovadoras, justas e que só encontraram justiça fora do que já estava posto pela
norma legal; criticado por muitos, os quais citam decisões particularistas,
inexequíveis, e o pior dos problemas: que causam instabilidade e ameaçam a
segurança jurídica.
40

Claro, em tempos de ativismo judicial desenfreado, instaura-se uma


espécie de império da vontade. O ativismo deita suas raízes no
utilitarismo supostamente moral e na vontade de poder de quem o
pratica, algo muito perigoso ao regime democrático. A violação à
Constituição é sempre uma ameaça à democracia. O senso comum
costuma pensar a Democracia como um processo cujo fim é a sua
conquista, ou como algo do qual a coletividade se apropria. Não é
visto tal qual é: uma relação, sempre instável e sujeita a altos e bai-
xos, a avanços e retrocessos, a continuidades ou rupturas. Nossa
história mostra isso. A democracia precisa ser vista numa
perspectiva histórica e de lutas políticas. (STRECK, et. al., 2015, p.
59).

Quando se fala em uma formação para magistrado que carece de alguns


ajustes e de juízes que ainda precisam – e muito – se adequar à realidade social da
maioria, essas decisões se tornam ainda mais perigosas, pois acabam sendo
decisões completamente deslocadas da realidade.
Aqui, surge então a figura do “anti-heroi”, apresentado nas estórias como
sendo um ser híbrido, entre o heroi – o mocinho, que “vence o bem” e tem sempre
atitudes corretas, morais e éticas, e o vilão – “mal” por natureza, antiético, amoral,
muitas vezes com fortes traços de psicopatia.
O anti-heroi não se preocupa com os meios, somente com os fins. Sua
intenção é fazer o bem, no entanto, para isso, este personagem não se importa nem
hesita em passar por cima de valores éticos e morais, e de muitas vezes, estar
acima da lei. Assim, é criado o juiz anti-heroi.
Em sua obra “Juízes Legisladores”, Cappelletti (1999, pp. 20-21), afirma que
“encontra-se implícito, em outras palavras, o reconhecimento de que na
interpretação judiciária do direito legislativo está ínsito certo grau de criatividade”, o
que é normal na aplicação de qualquer norma, “o verdadeiro problema é outro, ou
seja, o do grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do
direito por obra dos tribunais judiciários”.
Quando o juiz, no uso da discricionariedade, a fim de “fazer justiça”,
ultrapassa limites legais que não poderiam ser ultrapassados, temos um problema.

Discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e


o juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é
necessariamente um criador completamente livre de vínculos. Na
verdade, todo sistema jurídico civilizado procurou estabelecer e
aplicar certos limites à liberdade judicial, tanto processuais quanto
substanciais. (CAPPELLETTI, 1999, pp. 23-24)
41

Para Cappelletti, então, o juiz, a priori, é sim criador do Direito, uma vez que
faz escolhas de aplicação das fontes deste ao julgar um caso, se tornando
importante personagem dentro do processo. No entanto, não cabe a ele criar
decisões sem fundamentação, sem base legal, haja vista a obrigação da motivação
em qualquer decisão judicial no Direito Brasileiro, seja ela interlocutória, sentença ou
acórdão, seguindo as regras do supracitado artigo 489, parágrafo 1º do Código de
Processo Civil e do artigo 93, IX, da Constituição Federal.
Então, cabe ao juiz (ao órgão julgador), a interpretação da norma e extração,
a partir desta, daquelas aplicáveis ao caso concreto em questão, havendo, por
óbvio, certo grau de liberdade, desde que sempre coerente e justificado.

A atividade interpretativa não consiste em simples ato (arbitrário) de


vontade, por meio do qual o juiz, de forma discricionária, escolhe a
solução (interpretação) que reputa mais adequada para o caso
concreto. Trata-se de atividade eminentemente criativa, por meio da
qual se estrutura uma norma jurídica individualizada,
consubstanciada em uma decisão judicial, a regulamentar um caso
concreto e estabilizar, em definitivo – quando do trânsito em julgado,
determinada situação jurídica. As atividades jurisdicional e legislativa
estão, em alguma medida, vinculadas à observância de parâmetros
jurídicos preestabelecidos, ambas podendo se desenvolver com
certa liberdade dentro daqueles marcos. (SOUSA, ALMEIDA, 2017,
p. 248).

É inegável que o magistrado deva atuar com certa proatividade,


principalmente em relação à fiscalização, controle e direção do processo. O ativismo
judicial não deve, desse modo, se confundir com discricionariedade.
Quando não fundamentada, a decisão é considerada nula, no entanto,
existem as decisões mal fundamentadas, ora impugnadas, ora não, nos casos em
que decisões carentes de fundamentação acabam passando batido pelo judiciário e
gerando efeitos que atingem toda uma sociedade.
São corriqueiras as decisões judiciais não fundamentadas, e não se trata
somente de decisões formalmente carentes de fundamentação, mas sim de
fundamentações genéricas, vazias muitas vezes até mesmo de sentido. É
necessário que a fundamentação permita a percepção dos argumentos das partes,
v.g., e dos fatores que levaram ao convencimento do magistrado.
42

A motivação das decisões por muito tempo foi negligenciada ante a


interesses pessoais e políticos, prática herdada desde o período colonial. O dever de
motivação das decisões é resultado de uma construção histórica, da formação
acadêmica à formação da figura do juiz, que atravessou diferenciadas concepções
de poder dada a herança do bacharelismo.
Assim, resta evidente em virtude do exposto que até os dias atuais há
influência do bacharelismo na formação dos juízes, o que por sua vez, interfere
diretamente na tomada de decisões judiciais.
43

4 ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS POR UM JUIZ NA COMARCA DE


CARINHANHA-BA

Ubaldino Vieira Leite Filho é juiz aposentado que fez história no município de
Carinhanha-BA. Isso porque, durante a sua atuação como magistrado da cidade, no
período de 1987 a 1989 e 1993, praticou atos em desconformidade com a lei. Diante
disso, seus colegas redigiram um ofício ao desembargador do estado da Bahia,
solicitando o impedimento do retorno do juiz à comarca.
Desse modo, o presente capítulo aborda uma análise de algumas de suas
decisões judiciais na comarca de Carinhanha-BA que fogem à atuação do
magistrado que é estabelecida legalmente e já aqui discutida.
Uma matéria de jornal do ano de 1993 que trata sobre a sua aposentadoria
provisória, vide figura 1, apresentou um pouco da história do magistrado e seus
abusos de poder, como uma ameaça de morte sofrida por um advogado pelo fato de
este ter apelado de uma sentença proferida por Ubaldino.
No ano de 1988, o referido juiz chegou ao ponto de se autodeclarar
empossado prefeito de Carinhanha, aproveitando um período em que o então
prefeito, Luiz Pinto Meneses, se encontrava ausente, por problemas de saúde em
Salvador. Além disso, conforme a matéria, fora acusado por agressões, improbidade
e tortura.
Como já abordado no presente estudo, o bacharelismo rendeu a ideia de
cidadania plena à elite que utiliza a educação não como instrumento de mudança
social, mas como método de controle e de prestígio social. Neste sentido, observa-
se que a atuação desse magistrado é reflexo de uma defesa dos privilégios
herdados de hierarquias sociais criadas na época colonial.
Outrossim, com a discussão quanto ao modo de decidir do juiz, é possível
observar com a análise a seguir que o magistrado se distancia do objetivo da busca
pela finalidade da justiça. Por outro lado, suas decisões correm de acordo com a sua
vontade, utilizando o cargo que detém para abusar do poder investido, distanciando-
se dos seus limites de atuação.
Apesar de ser um protagonista da lei, este juiz é exemplo claro da figura do
anti-heroi aqui retratado, pelos seus atos moralmente questionáveis e por não ter
mensurado suas ações para “combater o mal”, aproximando-se mais a sua figura
para o de vilão da história.
44

Título 1 - Matéria de Jornal sobre o


Magistrado Ubaldino Leite.

Figura 1: Matéria de 1993 contando um


pouco de sua história como magistrado no
interior da Bahia.

Fonte: Integração do Vale, 1993.

Em várias peças processuais, como, por exemplo, em manifestações do


Ministério Público, o juiz em questão somente dá decisões genéricas, como “Recebo
a denúncia”, sem fundamentar com os motivos que o levaram a isso (como nas
figuras 2 e 3). Tal comportamento, inclusive, é comum e vários juízes costumam não
fundamentar a peça de recebimento da acusatória.
Existe uma discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da necessidade da
fundamentação da peça de recebimento da denúncia ou queixa-crime, e boa parte
da jurisprudência dos tribunais entende pela dispensa de fundamentação, no entanto
é nítida a carga decisória da decisão que admite a peça acusatória, portanto, o
45

entendimento doutrinário majoritário é no sentido de que não deve ser dispensada a


fundamentação, em respeito ao já citado artigo 93, IX, da Constituição Federal, in
verbis: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, (...)”.

Título 2 - Decisão Judicial.

Figura 2: Relaxamento de prisão não fundamentada.

Fonte: Própria, 2019.

Nas Figuras 3 e 4 constam duas sentenças prolatadas no tribunal do Júri pelo


Juiz Ubaldino, ambas no ano de 1993. Nestas e em outras decisões do referido
magistrado, foram encontrados cálculos da dosimetria da pena feitos de forma
incorreta.
46

Título 3 - Decisão Judicial.

Figura 3: Dosimetria da pena formulada de forma incorreta.

Fonte: Própria, 2019.

Na sentença do processo crime de nº 840/92 (figura 3), em que foi réu Valdeci
Magalhães Lima, a fundamentação é feita da seguinte forma, in verbis: “Assim
sendo, face o referido artigo de lei, somando-se a pena mínima de seis anos com a
pena máxima de 20 (vinte anos) fixo de acordo com a lei a pena base em treze
anos”, citando depois agravantes e causas de diminuição da pena, fixando pena
definitiva em 7 (sete) anos e 8 (oito) meses.
Sendo assim, o juiz em questão, ao fazer a dosimetria da pena, tirou uma
média das penas mínima e máxima cominadas à época ao crime de homicídio
privilegiado, o que vai contra a legislação, que define uma ordem a ser seguida para
o cálculo da pena aplicada, baseada em um sistema trifásico.
Conforme o artigo 68 do Código Penal: “A pena-base será fixada atendendo-
se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as
47

circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de


aumento”.
Vale salientar que a redação do artigo acima foi dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984, o que significa que esta já estava em vigor à data da sentença e deveria
ter sido observada pelo juiz. Assim, ao formular a sentença deveria o juiz ter fixado
a pena inicialmente na pena-base ao invés de conceber um método de dosimetria
inexistente.
Título 4 - Decisão Judicial.

Figura 4: Dosimetria da pena formulada de forma incorreta.

Fonte: Própria, 2019.

Outrossim, na sentença do processo crime nº 547/86, em que foi réu


Francisco Alves Do Nascimento, repetindo o mesmo método peculiar de aplicação
de pena, ele diz, in verbis: “Aplicando-se como ora aplico inicialmente a pena base
48

em 21 anos rezultado da soma da pena mínima de 12 anos com 30 anos e dividindo


tal soma por dois[...]”.
Fica claro aqui que o juiz formulava suas sentenças como bem entendia,
calculando as penas de acordo um sistema próprio de dosimetria, que não
respeitava o estabelecido pelo Código Penal.
Além disso, nas figuras 5 e 6, o juiz Ubaldino Vieira se manifesta de maneira
favorável em um pedido de relaxamento e em um pedido de prisão preventiva,
respectivamente. Mais uma vez é patente a carência de fundamentação das
decisões, que sequer foram datilografadas.
No pedido de relaxamento de prisão, o magistrado dá parecer favorável ao
requerente Joaquim Dos Santos Montalvão, no entanto a decisão não é
fundamentada e o juiz diz apenas “concedo o relaxamento da prisão” e aplica
medidas diversas, também sem citar o dispositivo legal.

Título 5 - Decisão Judicial.

Figura 5: Relaxamento de Prisão concedido sem fundamentação adequada.

Fonte: Própria, 2019.


49

Ademais, em caso ainda mais grave, no processo 547/86, em que foi réu
Francisco Alves do Nascimento, Ubaldino manifesta-se favorável à prisão
preventiva, em uma peça pouco fundamentada e citando de forma genérica os
elementos que comprovariam os requisitos para a prisão, sendo estes o fato de que
o réu “manifestou explícita vontade de evadir-se do distrito da culpa” e “não possui
ocupação definida”.

Título 6 - Decisão Judicial.

Figura 6: Prisão preventiva decretada sem fundamentação adequada.

Fonte: Própria, 2019.

É sabido que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de


sentença penal condenatória”, conforme o artigo 5º, LVII da CF/88, e sendo assim a
50

prisão preventiva, espécie de prisão cautelar, que ocorre antes do trânsito em


julgado, quando decretada deve obedecer a uma série de requisitos, presentes nos
artigos 282 e 312 do Código de Processo Penal.
A prisão é pena privativa de liberdade, e como tal, deve ser aplicada somente
quando necessária, uma vez que a liberdade é direito de todos, previsto
constitucionalmente. Para tanto, devem ser observadas a necessidade da prisão e
adequação da medida à situação jurídica em questão (para evitar sofrimento
desproporcional).
Por adequação entende-se o “fumus boni iuris e periculum libertatis”, sendo
estes, a prova da ocorrência de um crime e indícios de ser aquele o agente, e a
probabilidade de perigo para a sociedade no caso de não ser aplicada a cautelar
naquele momento.

O fumus comissi delicti é o requisito da preventiva, e é composto


pela prova da existência de um crime e pelos indícios suficientes de
autoria. O periculum libertatis, por sua vez, é o fundamento da prisão
preventiva, que pode decorrer em razão do risco para a ordem
pública, para a ordem econômica, para a aplicação da lei penal ou
para a conveniência da instrução criminal. (LIMA, 2017)

Todos estes requisitos aqui citados devem constar da peça que decreta a
prisão cautelar, no caso em tela, a preventiva, o que, como observamos, não ocorre,
uma vez que o juiz somente se manifesta favoravelmente, sem citar os dispositivos
legais e motivos que o levaram ao convencimento acerca da decretação da medida.
Diante disso, o magistrado chegou a ser criticado por colegas que assumiram
o cargo posteriormente, que a exemplo das figuras 7 e 8, deixaram registrado em
autos a insatisfação com as irregularidades haja vista que a carência de técnica do
juiz em seus atos incorreu em prejuízo no andamento de lides.
51

Título 7 - Mensagem de Juíza de Direito.

Figura 7: Juíza de Direito expressa descontentamento com os atos judiciais do magistrado anterior.

Fonte: Própria, 2019.

Título 8 - Mensagem de Juíza de Direito.

Figura 8: Juíza de Direito expressa descontentamento com os atos judiciais do magistrado anterior.
Fonte: Própria, 2019.
52

A Juíza de Direito Leonidas dos Santos Silva alegou no próprio processo, in


verbis: “Se aquela época o douto juiz houvesse feito a “coisa certa”, a esta altura o
processo estaria prescrito”, e prossegue “Como não seguiu os mandamentos legais,
por uma questão de consciência profissional não posso cruzar os braços e
simplesmente decretar a extinção do feito pela prescrição”.
É notório o sentimento de decepção da magistrada com os atos judiciais do
colega, visto que ele deveria ser o sujeito que dirige o processo com o cuidado com
a tutela jurisdicional e a preocupação de que o processo corra devidamente.
A atuação de Ubaldino demonstra certo ativismo quando ele se afasta da lei
para decidir conforme entende ser conveniente. Cabe ressaltar, dessa forma, que o
ativismo judicial atuou no processo da criação de sua figura como juiz anti-heroi.
A partir do exposto, portanto, pode-se observar que os atos praticados pelo
magistrado foram resultados de uma formação jurídica deficiente, pois a finalidade a
qual se chegou não foi a de coesão com o que se é almejado democraticamente
pela sociedade. Resta evidente que as decisões foram tomadas intuitivamente, por
meio de fatores extrajurídicos, o que não condiz, nesse caso com o objetivo principal
da justiça.
Desta forma, o presente trabalho demonstra que o conteúdo das decisões
proferidas judicialmente pelo magistrado em pauta se distancia do devido
cumprimento da tutela jurisdicional. Ao se observar que houve carência de
motivação das decisões, fica explícito o desrespeito aos princípios fundamentais de
direito dos sujeitos participantes da lide.
A contribuição da formação bacharelesca neste processo pode ser observada
quando o juiz não se preocupa com a verdadeira função da justiça, atuando como
um mero detentor de poder desprovido de técnica. A própria formação jurídica, como
abordado no primeiro capítulo, é a fonte do descaso com a tutela jurisdicional.
53

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente, o presente estudo pretendeu buscar uma relação entre a


formação bacharelesca e o comportamento de magistrados hoje. Apesar da
aparência de ser uma tarefa difícil, com um exame de forma aprofundada sobre as
origens de tal formação no Brasil, notou-se a existência de vários traços históricos
no comportamento do judiciário atualmente, principalmente no que diz respeito às
decisões judiciais.
As Escolas de Direito começaram no Brasil como locais de treinamento da
elite, para que membros desta pudessem, além de ganhar prestígio social, ocupar
cargos públicos, mantendo-se no poder e assegurando a manutenção da monarquia.
Desta forma, em vista do exposto, observa-se que esta filosofia do bacharel
do século XIX, dotada de superficialidade, retórica de ornamentação, individualismo
e outros valores burgueses e fortemente influenciada pelas ideias liberais ainda
permanece presente no ensino jurídico atual. Atualmente permanece perceptível o
discurso jurídico totalmente distante do linguajar comum, o que dificulta a forma de
compreensão do Direito pelo povo.
Assim, a formação bacharelesca, no tocante ao discurso jurídico, permanece
de certa forma distante das práticas do Direito, o que dificulta o entendimento da
realidade pelo bacharel, podendo ser observado por meio da análise bibliográfica.
Ao formar bacharéis pouco familiarizados com contexto social as academias criam
um problema, pois esses, ao atuarem como juristas, perpetuam dogmas e – como
juízes – decidem de forma desarrazoada.
Como debatido durante a pesquisa, existem limites constitucionais à atuação
do magistrado, que devem ser obedecidos mesmo dentro das práticas do ativismo
judicial, como por exemplo, imparcialidade e obrigatoriedade de fundamentação das
decisões prolatadas.
Por trás de uma decisão existem elementos que auxiliam o juiz a chegar a
uma decisão final, uma vez que cada caso possui suas peculiaridades e deve ser
julgado de forma individual. O que deve ser observado, nesse sentido, é até que
ponto tais elementos podem influenciar a interpretação judicial, que também deve
ser pautada sempre em elementos judiciais, a priori, de modo a manter a segurança
jurídica.
54

Desse modo, a pesquisa trouxe a discussão sobre como o magistrado chega


a uma decisão haja vista que, antes de tudo, ele é uma pessoa com seus próprios
valores, moral, ideologias políticas e econômicas. Ocorre que, esses fatores
extrajurídicos não devem servir de interferência nas lides, pois a neutralidade não se
confunde com a imparcialidade, característica essencial que deve ser mantida pelo
juiz.
Para tanto, faz-se necessário que o juiz seja antes cidadão, com
compreensão do mundo e respeito à norma, aos costumes e aos precedentes.
Quando ele pega para si o dever de fazer justiça a qualquer custo, como se
estivesse acima da lei, torna-se não heroi, mas anti-heroi, uma vez que ultrapassa
os limites da imparcialidade, causando instabilidade jurídica e problemas maiores do
que os que tenta resolver.
Levando em conta a análise das decisões do juiz Ubaldino Vieira, na comarca
de Carinhanha-BA, é possível notar um exemplo da figura ora retratada. A partir das
notícias, sentenças, decisões interlocutórias, críticas de outros colegas juntadas à
pesquisa, observa-se que o magistrado se encaixa no personagem do anti-heroi.
O anti-heroi se enxerga acima da lei, e mesmo quando dotado de boa-fé,
peca ao buscar a “justiça” a todo custo, mesmo que isso traga consequências
desastrosas para alguém ou para algum grupo social, pois o que importa aqui são
somente os fins, e não os meios.
Nesse sentido, os objetivos do trabalho foram atingidos haja vista que foi
possível a observância da influência da formação bacharelesca na atuação jurídica
do magistrado Ubaldino Leite, a consequência da sua atuação proativa, bem como
seus efeitos em oposição ao devido cumprimento da tutela jurisdicional face a
carência de técnica.
Cumpre salientar que isso poderia ter sido evitado quando da observância de
princípios do ordenamento jurídico brasileiro, como o devido processo legal, o qual
atua na aproximação da efetividade do processo a normas técnicas, sendo contrário
à qualquer manifestação arbitrária.
Também, a motivação das decisões, elemento garantidor às partes não só de
que a sentença seguiu esse devido processo, mas dispõe à sociedade o poder de
fiscalização quanto a finalidade da justiça. A previsão de limitações constitucionais
como as citadas durante a monografia são importantes para garantir a segurança
55

jurídica de um processo efetivo e justo perante aos poderes que a própria lei
concede aos juízes.
Além disso, o presente trabalho trouxe apenas um caso que poderia ser
melhor elucidado quando em comparação a outros, uma vez que não significa que
esse comportamento e falta de técnica seja latente na maioria dos juristas em
questão.
A pesquisa quanto a decisão judicial é muito interessante, todavia os exames
de análises judiciais de magistrados em diferentes comarcas são pouco encontrados
em trabalhos doutrinários, monografias e artigos científicos sob o argumento de que
“cada caso é um caso”. Esse é um objeto de estudo o qual poderia ser mais
incentivado, até mesmo pelas academias de Direito.
A partir da observância e de análises de casos como esse, é possível que a
formação de magistrados seja mais cuidadosa no Brasil, pois, a figura do juiz precisa
ser desprendida das amarras da herança colonial do bacharelismo e atender com
eficácia à democracia brasileira.
56

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