Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
Este artigo pretende visibilizar a divisão sexual do trabalho e as relações de gênero em diferentes ambientes (ter-
ra, água, mangue) utilizados na pesca artesanal em uma comunidade da costa nordeste paraense. O texto ancora-se
em entrevistas parcialmente estruturadas, observação participativa e grupos focais. Identificou-se uma nítida, mas
não inflexível divisão sexual do trabalho e uma rigidez dos lugares de gênero, ou seja, o que é de homem e o que é
de mulher. Há trânsitos de ambos entre as atividades, espaços e recursos naturais, mas o que é de homem é sempre
mais valorizado na hierarquia das atividades. E há uma inflexibilidade de gênero constituinte: o doméstico é das
mulheres. As relações de gênero se ancoram na menor valorização do que é do feminino e no princípio da materni-
dade e da reprodução como destino das mulheres.
ABSTRACT
This is visualized the sexual division of labor and gender relations in different environments (land, water, man-
grove) used in artisanal fishing in a coastal community of northeastern Pará. The anchor of the text on partially
structured interviews, participant observation and focus groups. It was identified a crisp, but not inflexible sexual
division of labor and a rigidity of the places of gender, in other words, what is of man and what is of woman. There
are both transits of between the various activities, the different spaces and natural resources, but what is of man is
always more value in the gendered hierarchy of activities. And there is an inflexibility constituent genre: the role
and tasks related to household are women. Gender relations are anchored on the lower valuation than is female and
the principle of motherhood and reproduction as the fate of women.
Doutoranda do PPGBA – Programa de PG em Biologia Ambiental/UFPA; professora da Faculdade de Educação/UFPA/Campus Bragança. nor-
macosta@ufpa.br.
Pós-doutora. Aposentada e colaboradora do Departamento de Sociologia da UnB; bolsista PQ do CNPq; bolsista do PVNS – Programa Pro-
fessor Visitante Nacional Sênior da Capes no PPGBA. deissiqueira@yahoo.com.br.
Doutoranda do PPGBA; professora da Faculdade de Turismo/UFPA/Campus Bragança. dflexa@ufpa.br.
1 Programa de PG em Biologia Ambiental/IECOS – Instituto de Estudos Costeiros/UFPA – Universidade Federal do Pará, Campus
de Bragança. O ESAC é coordenado por Deis Siqueira, PVNS/Capes e PQ/CNPq.
11
2. ESTRATÉGIAS INVESTIGATIVAS 3. O QUE É DE HOMEM E O QUE É DE MULHER
3 É bastante frequente na região a ideia de entidades sobre-humanas, parte do que Maués (2008) indica como uma espécie de ca-
tolicismo popular, que mantém relações com o xamanismo nativo (pajelança cabocla), cuja origem se remete a antigas práticas e
crenças dos índios Tupinambás, assim como a influências portuguesas e africanas. São encantados ou bichos do fundo, tais como
a Mãe D’Água. Este ente surge da água doce, incluindo a de poços de água, hipnotiza (flecha) a pessoa e a chama tentando afo-
gá-la. A flecha provoca dores, febres, depressão. Há também os “encantados” do mangue e da mata, como a Curupira e a Matin-
ta Perera. Trata-se, em todos os casos, de seres perigosos, que podem provocar mau-olhado (sofrimentos como febre, depressão,
dores, brigas familiares e separações matrimoniais) nas pessoas, ou fazer com que se percam na mata. Os serviços das curandeiras
e das rezadeiras, além dos pajés, são bastante utilizados pela população (rezas, chás e fitoterápicos, rituais de proteção das casas,
curas de enfermidades, etc.). O médico tende a ser o último a ser consultado.
13
co (Avicenniagerminaus), o fruto do mangue-de As tarefas domésticas são tidas como res-
-botão (Conocarpuserectus L.). Estudos reali- ponsabilidade da mulher, seu encargo primor-
zados na península de Ajuruteua por Carneiro, dial. Sendo estas atividades naturalizadas en-
Barboza e Menezes (2010) confirmam o uso de quanto obrigação da mulher, elas não são reco-
espécies nativas do mangue para fins medicinais. nhecidas como trabalho e tampouco as mulhe-
Correspondente a esta pluralidade de res são reconhecidas enquanto trabalhadoras.
atividades é a fragmentação do tempo das mu- O fato do uso dos espaços e dos tempos dedica-
lheres, marcado por uma superposição de ativi- dos por elas à pesca serem limitados pelo com-
dades, domésticas e extra-domésticas, enquan- prometimento da reprodução contribui para a
to o tempo do homem tem um caráter uni-cen- sua limitada visibilidade enquanto pescadoras.
trado, ou seja, realiza-se uma única atividade, A pesca feminina em Bonifácio, de mo-
ou duas no máximo (Alencar, 1993). As mulhe- do geral, está voltada para o autoconsumo4 fa-
res pescam mais próximo das residências e em miliar enquanto que a masculina, em pescarias
horários compatíveis com as atividades domés- mais distantes da costa, se destina à comerciali-
ticas. Os homens pescam mais distantes, geral- zação. Estudos realizados por Glaser (2005) na
mente fora do estuário. Seus horários de pesca região confirmam que a pesca para autoconsu-
são mais longos, com aproximadamente 10 a mo é realizada predominantemente por mulhe-
15 dias em mar aberto. res e por crianças. Ambos os tipos de pesca são
fundamentais à manutenção do grupo domésti-
4. HIERARQUIZAÇÃO, VALORAÇÃO E GÊNERO co. A primeira não gera receita financeira, mas
desempenha um papel fundamental na econo-
mia domiciliar. Entretanto, tem menor valor e
A realidade da comunidade de Bonifácio reconhecimento social em relação à pesca co-
confirma as afirmações de Segato (2005) sobre mercial. As mulheres não se reconhecem e não
comunidades rurais e aldeias indígenas. Nes- são reconhecidas como trabalhadoras e pesca-
sas, a sociedade é dual, dividida em espaços, ta- doras, mas como ajudantes. Ajuda que não tem
refas, direitos, deveres repartidos entre os gê- o mesmo valor, o mesmo estatuto de trabalho,
neros. “Essa dualidade é definida hierarquica- tal como ocorre em muitas unidades campone-
mente no que se refere ao poder e ao prestígio sas brasileiras.
desiguais, porém, constituída pelo que podería-
Esta realidade em que atividades de-
mos definir como duas comunidades ou coleti-
senvolvidas por mulheres, mesmo que idênti-
vos de gênero [...]” (Segato, 2005, p. 5). Assim,
cas àquelas feitas por homens, não são conside-
o tecido comunitário geral é dividido em dois
radas trabalho, e sim ajuda, é confirmada por
grupos, cada um deles com suas normas inter-
inúmeros estudos existentes em torno de agri-
nas de convivência e associação tanto para tare-
cultores familiares e de populações tradicio-
fas produtivas como para os ritos.
nais (artesãos, extrativistas, pescadores artesa-
4 Optou-se pelo uso de autoconsumo em lugar de subsistência por se acreditar que esse último implica uma ideia de inferiorida-
de em relação a uma condição humana de existência definida externamente.
14
nais), os quais indicam uma divisão sexual bem relações sociais de sexo são estruturantes, assi-
definida, a inexistência de ou pouco intercâm- métricas e hierárquicas.
bio de tarefas e obrigações, o prestígio masculi- O reconhecer-se e ser reconhecido par-
no, a invisibilidade do trabalho da mulher (Pau- te de um modelo histórico cultural calcado no
lilo e Brumer, 2004; Scoth e Cordeiro, 2007; princípio hierárquico de divisão sexual de tra-
Di Ciommo, 2007). Entre os estudos realiza- balho na pesca, ou seja, uma destinação priori-
dos na região podem ser indicados: Manes- tária dos homens à esfera produtiva e das mu-
chy (1993; 1994; 1995a, 1995b); Maneschy lheres à esfera reprodutiva. Simultaneamente, a
e Escallier (2002); Henrique (2005) e Maués ocupação por parte dos homens possui maior
(1993; 1994). Almeida (2002), referindo-se es- valor social agregado (Kergoat, 2009).
pecificamente ao nordeste do Pará, afirma que
Assim, a hierarquização presente visibi-
a mulher assume, em geral, uma sobrecarga de
liza-se quando os discursos apontam que o lu-
funções sem a correspondente visibilidade ou
gar do homem é no mar, pescando, e o da mu-
reconhecimento social de sua importância na
lher é em terra, cuidando da casa e da família.
lógica da produção.
Porém, na indicação da rotina das mu-
À diferença do que é mais valorizado,
lheres, elas fazem referência a um conjunto am-
como esfera econômica, mundo das mercado-
plo de atividades, tais como pescar nos furos
rias, o trabalho doméstico se efetiva em torno
(canais de maré – águas marítimas que se es-
de relações entre pessoas e ancora-se em uma
tendem sobre o continente/mangue - estuário),
disponibilidade permanente do tempo das mu-
pescar próximo de casa, pescar siri, camarão,
lheres a serviço da família (Fougeyrollas-Schwe-
gó, sardinha e outros peixes, consertar, limpar,
bel, 2009). Neste sentido, lembrando as contri-
confeccionar redes de pesca, pescar no mangue-
buições de Delphy (2009), o trabalho domésti-
zal turu, caranguejo, sururu, processar o pesca-
co determina a condição das mulheres também
do (limpar, eviscerar, retalhar, salgar o pesca-
na comunidade estudada. Ainda segundo esta
do para autoconsumo ou para a comercializa-
autora, a família pode ser lida também enquan-
ção). Essas são algumas das inúmeras atribui-
to um local de exploração econômica das mu-
ções das mulheres pescadoras desenvolvidas de
lheres, pois, nela, dá-se uma apropriação mate-
forma articulada às atividades domésticas, de-
rial pelos homens de sua força de trabalho, se-
senvolvidas na casa ou no quintal dessa.
jam elas esposas, mães, filhas.
O trabalho das mulheres é essencial para
Para Woortmann (1992), a identidade
a manutenção da cadeia de pesca, mas ele é in-
do grupo pesqueiro é constituída a partir da
visibilizado pelo lugar de gênero, pela assime-
identidade masculina. Logo, a atividade de pes-
tria da divisão sexual desigual e hierárquica do
ca tende a se remeter ao mar e não a terra. Ain-
da para esta autora, o universo masculino den- trabalho, a qual desvaloriza o que é considera-
tro das atividades pesqueiras relega ao silêncio do feminino.
o universo feminino, mesmo quando as ativida- A visão hegemônica do que é pesca e do
des das mulheres são cruciais para a reprodu- que é ser pescador ou pescadora não confere a
ção social do grupo como um todo. Porque as devida importância ao conjunto de tarefas que
15
a última assume, o qual é igualmente essencial Por outro lado, cabe à mulher: Ficar em
à reprodução das famílias (Maneschy, 1995a) terra ajudando o companheiro; Cuidar da ca-
O fato das mulheres compatibilizarem sa e dos filhos; Pescar próximo de casa; Traba-
vários encargos domésticos além de geração de lho doméstico; Limpar o peixe e os camarões;
renda concorre para excluí-las do estatuto pro- pescar na beirada jogando puçá (rede cesto) pa-
fissional de trabalhadoras da pesca (Maneschy, ra pesca do siri; Ir ao manguezal pegar turu, ca-
Siqueira, Alvares, 2012). ranguejo e sururu; Pescar nos furos; A mulher
Os homens coletam peixes de espécies que conserta rede e trata peixe não é pescado-
de maior valor comercial. Assim essa atividade ra, mas ajudante do marido; Cuidar do qui-
é considerada principal e masculina. As ativida- nhão (pescado para consumo da família); Ajuda
des no manguezal e as da linha de costa, con- o marido antes e depois que ele sai para pescar.
sideradas uma extensão da casa, são femininas, O termo pescador se sustenta claramente
da mulher. As suas atividades na pesca (confec- no ato de pescar e nas palavras dinheiro, traba-
ção, conserto de redes, salga de peixes) consi- lho, mar, experiência, conhecimento, definições
deradas estas como sendo dos homens, são con- que se fazem presentes nas entrevistas de homens
sideradas como ajuda. e de mulheres. E o lugar da mulher está associa-
As demais atividades de pesca que elas do ao cuidado, à ajuda, à terra, ao manguezal.
desenvolvem, geralmente em companhia de Estudo realizado por Di Ciommo (2007)
outras mulheres e de crianças, são menos valo- sobre equidade de gênero em uma Reserva Ex-
rizadas e têm menor valor comercial. Estabele- trativista do Sul da Bahia confirma que as ativi-
ce-se um continuum valorativo entre o merca- dades de pesca desempenhadas pelas mulheres
do e o autoconsumo. Nesse, as mulheres mo- como a salga e a limpeza dos peixes (necessárias
vem-se em direção às atividades de menor valor para o consumo próprio, mas que agregam va-
comercial, menor monetarização, menor valo- lor ao pescado vendido) não são remuneradas e
rização da atividade enquanto trabalho. O au- nem valorizadas socialmente.
toconsumo se desvaloriza junto com as demais
Resultado similar foi apresentado por
atividades do mundo da reprodução.
Lisboa e Lusa (2010) em pesquisa realizada em
Para os e as participantes da pesquisa, a três países (Brasil, México e Cuba) sobre desen-
categoria pescador remete-se a: Ter seu próprio volvimento sustentável com perspectiva de gê-
dinheiro; Questão de sobrevivência; Ter expe- nero no meio rural. Para as autoras, o mode-
riência e conhecimento; Sustentar a família; Sa-
lo de desenvolvimento, nos três países, ainda
ber fazer tudo que exige a função; Quem vai
prioriza a figura masculina no espaço agríco-
para o alto mar, quem pesca no mar.
la e a contribuição das mulheres e dos mais jo-
Desse modo, cabe aos homens: Pescar; vens (crianças e adolescentes) para a economia
O homem na pesca é tudo porque faz e sabe fa- de mercado é totalmente negligenciada e nega-
zer tudo; Pescar é duro, não dá para a mulher; da. Nessa mesma lógica vivem as mulheres pes-
Trazer renda para a família, pouco ou muito; cadoras da comunidade do Bonifácio quando
Consertar e tecer rede; Sustentar a família, Sa- suas atuações nos diferentes domínios – terra,
ber tudo sobre a pesca; Trabalhador da pesca.
16
água e manguezal– não lhes dão status de traba- pesqueiros”. E segundo o art. 4º. no seu pará-
lhadoras da pesca. grafo único “[...] os trabalhos de confecção e
Nesta lógica, Maneschy (2001) ao estu- de reparos de artes e petrechos de pesca, os re-
dar populações pesqueiras da região indica que paros realizados em embarcações de pequeno
as mulheres estão quase sempre assumindo fun- porte e o processamento do produto da pesca
ções nos limites estabelecidos pelas hierarquias artesanal” são considerados atividade pesquei-
de gênero, articulando os requisitos da produ- ra artesanal (Brasil, 2009).
ção e da reprodução do grupo familiar. Mais abrangente que as legislações an-
Bennet (2005) ressalta que entender co- teriores, esta lei contempla as atividades desen-
mo o gênero influencia nos modos como o se- volvidas no cotidiano das mulheres; abre espa-
tor pesqueiro é administrado, é olhar sobre co- ço para a pesca com fins de autoconsumo e pos-
mo homens e mulheres interagem com o re- sibilita mais visibilidade para o trabalho delas
curso (processo já presente nas formas de inte- na pesca, especialmente quando considera par-
ração de meninos e de meninas). Porque só se te das atividades de pré e pós captura, as quais
avança na compreensão de gênero, se pensado são realizadas sobretudo pelas mulheres.
em termos de relações. As relações de gênero Sobre a referida lei, Maneschy, Siqueira
são constituintes da organização da família, da e Alvares (2012) enfatizam que ela abriu portas
comunidade, da sociedade. para o reconhecimento das mulheres enquanto
Associando as falas dos e das partici- agentes produtivas. A categoria “atividade pes-
pantes da pesquisa, conclui-se que ser pescador queira artesanal”, na qual é grande a presença
equivale a masculino porque é o homem que das mulheres, passou a incluir os trabalhos de
vai ao mar, que conhece e faz tudo na pesca, é confecção e de reparos de artes e de petrechos
aquele que gera renda. Neste contexto as mu- de pesca, além do processamento do produto
lheres tendem a não serem consideradas pesca- da pesca artesanal.
doras. Por que não se inclui o conjunto de tare- Mas o avanço na legislação parece não
fas assumidas pelas mulheres na atividade pes- ter encontrado ainda eco na comunidade estu-
queira como pesca, restando para elas apenas o dada, pois a pescadora de Bonifácio continua a
lugar de ajudante? Afinal, o que é pescar? ser identificada como ajudante. A realidade lo-
Em 2009, foi sancionada a lei nº 11.959 cal ilustra a hierarquização e a desigualdade da-
que dispõe sobre a Política Nacional de De- quilo que é considerado do homem e o que é da
senvolvimento Sustentável da Aquicultura e da mulher, ou seja, os lugares de gênero construí-
Pesca (Brasil, 2009), a qual passou a regular a dos pela cultura e sociedade.
atividade de pesca e revogou-se o decreto-lei nº Para Hirata e Kergoat (2007), a divisão
221, de 28 de fevereiro de 1967. sexual do trabalho, mesmo que varie no tempo
Nesta, a atividade de pesca é definida no e no espaço porque é adaptável, tem dois prin-
art. 2º da lei nº 11.959/2009 como “[...]toda cípios organizativos: a) o da separação - há tra-
operação, ação ou ato tendente a extrair, co- balhos de homens e trabalhos de mulheres; e b)
lher, apanhar, apreender ou capturar recursos o hierárquico - maior valor ao trabalho dos ho-
17
mens, ou o trabalho de um homem vale mais do rença sexual, mas pela emergência das relações
que o trabalho de uma mulher. Na pesca artesa- de parentesco flexibilizando a pressuposta divi-
nal a divisão sexual do trabalho funda-se em um são sexual do trabalho”. Essa pesquisadora re-
modelo assentado nos lugares de gênero. Re- fere-se a estes pressupostos como uma forma
presentação social que se revela no dito popu- distorcida “como os antropólogos recorrente-
lar, A pesca é do homem, o peixe é da mulher, mente leem as relações de trabalho, ou melhor,
ou seja, no mar o homem, em terra a mulher. a distribuição do trabalho entre os membros da
As variáveis força e resistência física se família, mais especificamente entre homens e
apresentam neste discurso como características mulheres” (Ferrugem, 2010, p.426, 438).
masculinas, legitimando os homens enquan- As atividades de processamento de pes-
to os agentes capazes da atividade (Cavalcan- cado realizadas em terra, de modo geral, são
ti, 2008). Essa visão polarizada tem reforçado atribuições das mulheres, especialmente aque-
a ideia de pesca enquanto atividade masculina, las voltadas para uso da família, mas quando os
valorizando-se e enfatizando-se as atividades homens estão no mar, nos barcos, eles mesmos
em alto mar. realizam essas tarefas, assim como cozinham
para si mesmos.
5. SEXO E GÊNERO: RIGIDEZ E TRÂNSITO Homens e mulheres no Bonifácio pes-
cam no manguezal, ainda que a pesca delas não
possua a mesma regularidade que a deles. Os
Um olhar superficial sobre as práticas homens pescam eventualmente, sendo esta co-
realizadas na comunidade pode identificar a leta mais usual no período da andada do caran-
inexistência de uma divisão sexual do trabalho. guejo5 ou quando necessitam de madeira para a
Afinal, de modo geral, homens e mulheres rea- manutenção dos currais.
lizam as mesmas tarefas mesmo que em tempos
A comercialização do pescado, princi-
e em ambientes diferentes: pescam peixe, crus-
palmente de peixes e de camarão, é realizada
táceos e moluscos, consertam e confeccionam
preferencialmente pelos homens e em boa me-
instrumentos de pesca.
dida no momento em que estes chegam da pes-
E se poderia concluir, como o faz Fer- caria. Na maioria das vezes, antes mesmo da
rugem (2010), por uma divisão não sexuada partida para o alto mar, o pescador já se com-
do trabalho a partir de investigações realizadas promete com o atravessador/marreteiro6 para
em Novo Airão, na Amazônia, com artesãos de a compra e venda do material da produção. O
produção de arumã, com fibra vegetal, organi- que não é vendido no momento da chegada da
zados em uma associação. Essa autora afirma pescaria, assim como a pequena produção rea-
que “a distribuição das tarefas, na produção do lizada no estuário, quando não se destinam ao
artesanato de arumã, não é pautada pela dife- autoconsumo são comercializados, em geral,
5 Período reprodutivo em que os caranguejos machos e fêmeas saem de suas tocas e andam pelo manguezal, para acasalamento
e liberação de ovos.
6 Atravessador ou marreteiro são expressões locais para aqueles que compram a produção pesqueira diretamente do pescador e
a vendem para outros (comerciantes, feirantes, consumidores finais).
18
nas próprias residências. Na ausência do mari- goso, mais difícil, mais arriscado, mas rentá-
do, as mulheres assumem este lugar de comer- vel, mais complexo e tem maior valor social se
cializar o recurso. comparado ao que é de mulher.
Apesar da quase ausência dos homens Interessante que entre as atividades de
no mundo da domesticidade, cabe a eles algu- confeccionar e reparar os instrumentos de pes-
mas tarefas, como pegar água no poço (poço ca, os homens dedicam-se em grande medida
amazonas)7 e fazer as despesas da casa (efetuar mais às funções do reparo. Segundo vários pes-
a compra de gêneros alimentícios, de limpeza e cadores entrevistados, essas são mais difíceis e
outros para uso da família). Por sua vez, as mu- exigem maior habilidade. Em contrapartida, as
lheres também as realizam, quando necessário. atividades de confecção dos mesmos, sobretu-
Contudo, esta flexibilidade e trânsito do das redes, são consideradas como femininas,
não se identificam nos lugares rígidos de gêne- pois exigem menos habilidade, são mais sim-
ro, ou seja, o que é de homem e o que é de mu- ples. Portanto as mulheres estão mais presentes.
lher, o que é masculino e o que é feminino. As Porque o que é de homem, geralmente, é sem-
gerações também são formadas no emaranhado pre mais difícil, arriscado,
das determinações de gênero. Assim, como os E a âncora mais poderosa desta rigidez
homens desde a infância (Vieira, Moraes, Nu- de gênero que garante privilégios aos homens
nes, 2013) estão ligados às redes produtivas de é o lugar da maternidade e da reprodução, en-
espécies para a comercialização de peixes cos- quanto destino das mulheres. Em contextos co-
teiros e marinhos, bem como de crustáceos munitários deve-se pensar em mundo das mu-
aquáticos, principalmente camarão, o mangue, lheres e mundo dos homens (Segato, 2003, p. 8)
local de pesca para autoconsumo, constituiu-se, e não unilateralmente em mulheres e homens in-
desde a infância, enquanto espaço feminino. dividualmente, sem mediações de seus respecti-
À diferença de outras comunidades pró- vos coletivos-mundos dentro das comunidades.
ximas, onde a atividade geradora de renda mais Esta constituição deve pautar as refle-
importante é a coleta de caranguejo, executa- xões e as políticas públicas, para que, de fato,
da, sobretudo por homens, o mangue é espaço se reforce o papel “[...] do mundo das mulhe-
masculino e não feminino como em Bonifácio, res no atravessamento e mediação dos projetos
onde o mar é considerado o espaço masculino. e ações quando do que se trata é da proteção
Aqui, a pesca do manguezal é coisa de mulher, da natureza”. Porque nas comunidades como a
embora ela também não seja reconhecida como de Bonifácio, o gênero se constitui de forma ní-
pescadora. tida em termos de mundo dos homens e mun-
O que determina o que é masculino e o do das mulheres, cada um com seu tecido pró-
que é feminino é a hierarquização das ativida- prio de relações. A igualdade de valoração, de
des. O mundo do masculino é o que tem mais prestígio, de poder entre estes dois mundos de-
valor, o que é considerado melhor, mais peri- ve ser promovida. “Somente desta forma emer-
7 Dentre as diversas práticas tradicionais de armazenamento de água, o poço amazonas consiste no aprimoramento destas práti-
cas. É feito de diversas formas, usando principalmente tijolos e terra batida e na parte superior é comum o uso de anéis de cimento
19
girão mulheres, isto é, indivíduos mulheres que Atividades exercidas por mulheres e por
se destacarão dentro de suas respectivas comu- crianças e, eventualmente idosos têm sido li-
nidades de gênero e a partir delas, e não desen- das como tendo um caráter marginal à ativida-
raizadas delas” (Segato, 2003, p. 12). de propriamente pesqueira, mas elas são funcio-
nais, articuladas, essenciais para a prática da pes-
CONCLUSÕES ca artesanal em seu conjunto, sobretudo quan-
do diminuem as capturas ou os preços do pesca-
Na comunidade de Bonifácio, localizada do de maior valor comercial. Isto porque a pes-
em Bragança/PA, as práticas sociais são relati- ca do pescador se articula com as várias relações
vamente fluidas na ocupação dos territórios, na sociais, tarefas, responsabilidades familiares.
divisão do trabalho entre homens e mulheres, Assim, a ordem social está demarcada
na relação com os recursos naturais. Há trân- pela divisão sexual do trabalho, articulada, por
sito de homens e de mulheres entre o variado sua vez, ao modelamento do tempo, da territo-
conjunto de tarefas executadas na localidade. rialidade, dos recursos naturais pelas relações de
Mas este trânsito não pode ser lido apressada- gênero. Trata-se de mundos construídos a par-
mente, como se indicasse que não há uma divi- tir do gênero, com seus respectivos coletivos,
são sexuada do trabalho e que a sociedade não internamente estruturados que condicionam e
se estrutura nas relações de gênero. mesmo determinam os lugares, as atividades, as
Porque há uma hierarquia de gênero. funções de homens e de mulheres. Mas as rela-
Por detrás deste trânsito de atividades, há uma ções de gênero se ancoram na menor valoriza-
invariante: aquelas que são consideradas como ção do que é feminino, mesmo que os homens
de homem são mais valorizadas do que as ati- realizem, eventualmente, uma atividade que se-
vidades de mulher. Ou seja, o masculino está ja de mulher (gênero e sexo); e no princípio da
sempre melhor localizado na hierarquia de gê- reprodução e da maternidade como destino na-
nero do trabalho e da vida. turalizado das mulheres (sexo e gênero).
E este jogo assimétrico se articula dire- E o amoldamento da vida pelo gêne-
tamente com o destino da reprodução. Um dia ro é tão poderoso que se apossa inclusive da
de vida de uma pescadora demonstra o quan- produção de conhecimento e de categorias que
to atividades de trabalho remunerado e ativida- alimentam a construção de políticas públicas.
des de trabalho doméstico são enredadas e con- Tanto assim que apesar do avanço recente da
dicionadas pelas relações de gênero. Mas nes- legislação, a pesca continua a ser pensada co-
te arranjo, destaca-se a recorrência das ativida- mo pesca em alto mar, realizada por homens e
des reprodutivas (domesticidade, filhos, famí- desassociada das inúmeras práticas que a com-
lia) como destino das mulheres. põem e que incorporam os demais membros do
grupo doméstico.
O sistema de gênero conta com a divi-
são sexual de trabalho como uma de suas bases
Trabalho recebido em 02/02/2014
mais importantes, se não a mais importante, pa-
Aprovado para publicação em 27/08/2014
ra produzir e reproduzir as relações de gênero.
20
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 33062010000400017>. Acesso em: 03/
11/2013.
WOORTMANN, E. Da complementaridade à
dependência: Espaço, tempo e gênero em co-
munidades pesqueiras. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, 18, p. 41-61, 1992.