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41º Encontro Anual da Anpocs

SPG15 Formação, saberes e práticas: estudos sobre a atividade policial na


contemporaneidade.
Título: No limite do estado democrático de direito: uma análise das ações de
manifestantes e Polícia Militar durante o ciclo de protestos de 2013.
Autor: James William Santos
Introdução, questionamentos e tema.

Primeiramente, é necessária a ressalva sobre o estágio da presente pesquisa. O


desafio de buscar confluir os estudos da teoria crítica com o olhar genealógico sem
perder de vista as práticas sociais encontradas na empiria ainda está apenas começando.
A intenção é trazer ao debate as questões levantadas no projeto de doutorado que iniciou
esse ano. A escolha pelo estudo das práticas policiais se deu pela observação ainda prévia
de um possível padrão de atuação em certos conflitos. Principalmente, no que se referem
aos conflitos envolvendo questionamentos sobre a institucionalidade.
Os protestos e manifestações públicas de descontentamento com a classe política,
com a condução das políticas públicas e de estado se tornaram parte do cotidiano da
sociedade brasileira. Esta nova realidade tem causado nós de tensão entre a sociedade
civil e o aparato policial. A situação é limítrofe. O estado como representante da
institucionalidade tem o dever de intermediar as relações com os movimentos sociais que
representam a sociedade civil. O diálogo entre estas esferas é o centro do projeto
democrático. Todavia, as fricções ocorridas durante os protestos e manifestações são
recorrentes. Sem dúvida, os eventos que trouxeram a luz do grande público esta
conflitualidade entre institucionalidade e sociedade civil foi o chamado ciclo de protestos
de junho de 2013.
A interpretação é de Angela Alonso ao aproximar os ocorridos em junho de 2013 à
categoria ciclo de protestos da sociologia política. A autora afirma não se tratar de um
único movimento social, mas de vários, em mobilização consecutiva. Estas
manifestações (em ciclo) possuem um grau de frequência e intensidade superiores ao
rotineiro, e que tendem a se espalhar por diferentes setores da sociedade e recorrer a
formas novas de protesto e organização (ALONSO, 2013).
O ciclo de protestos de junho de 2013 como manifestações de ampla cidadania
(SCHERER-WARREN, 2014) possuía uma gama diversa de reinvindicações
conjunturais com pautas políticas heterogêneas que, inclusive, poderiam ser antagônicas
implícita ou explicitamente. Deste modo haviam ali presentes desde movimentos sociais
organizados, como o Movimento Passe Livre, um dos movimentos que deu início as
manifestações, ocupado com uma agenda social definida, como também cidadãos
dispersos “indignados” com a conjuntura política atual.
As manifestações ocorridas no curso do mês de junho de 2013 constituem um
fenômeno recente e complexo, ainda a ser compreendido de forma extensiva pela
literatura (DOWBOR; SZWAKO, 2013). Todavia, já existem pesquisas publicadas sobre
o fenômeno abordando diversos temas. Alguns exemplos são dignos de nota; caracterizar
os processos de engajamento e organização dos atores das manifestações (SILVA, 2014),
a conjuntura socioeconômica que permitiu a eclosão dos protestos (ZIZEK, 2013),
comentários sobre os conflitos violentos ocorridos entre manifestantes e policiais
(TAVARES DOS SANTOS; TEIXEIRA, 2014), o papel desempenhado pelas mídias na
cobertura aos atos (LIMA, 2013) e as disputas pela narrativa dos ocorridos pelos meios
de comunicação (GEORJÃO FERNANDES, 2016).
Apesar destes olhares mencionados acima, o escopo maior, o olhar para as
sementes destas manifestações enraizadas na nossa sociedade, na nossa democracia e
para o impacto deste ciclo para as instituições tradicionais (dentre elas, as policias) ainda
escapam o campo acadêmico.
Os registros de violência durante o ciclo foram amplos e reportados, depoimentos,
reportagens, vídeos e etc. Entre os manifestantes, os atos violentos se mantinham no
espectro do que a mídia na época nomeou como "vandalismo", dentro desta
nomenclatura estão a depredação de alguns comércios e principalmente de caixas
eletrônicos de bancos privados. Por outro lado, as demonstrações de violência não
ficaram cingidas aos atos de alguns manifestantes. Os casos de violência policial foram
recorrentes em várias cidades brasileiras.
A câmara de Vereadores de Porto Alegre, por intermédio da Comissão de Direitos
Humanos, chegou a registrar os depoimentos de pelo menos 20 jovens que reportaram
terem sofrido com a atuação violenta da polícia militar. Além dos relatos das agressões
que sofreram, os jovens denunciaram que presenciaram agressões a outras pessoas
detidas, especialmente na sede do 9º BPM, no Centro. Segundo eles, um homem foi
espancado atrás de um balcão até ter o rosto desfigurado pelos ferimentos. O fato,
disseram, está registrado inclusive em vídeo que circula pela Internet 1. Recentemente, a
Justiça de São Paulo condenou o Estado a indenizar a família de um jovem que foi morto

1
Manifestantes relatam agressões de policiais durante protestos
http://www2.camarapoa.rs.gov.br/default.php?reg=19733&p_secao=56&di=2013-07-03
durante o ciclo de protestos em 20132. A soma de 8 milhões de reais foi determinada pelo
magistrado paulista em caráter de danos morais e sociais.
Os danos patrimoniais por ventura causados pelos manifestantes em nenhuma
hipótese justificam a violência policial causada. A relação da polícia com os
manifestantes não está condizendo com o papel que um Estado Democrático de Direito
reserva para o seu aparato policial. Não há como fechar os olhos para esta questão. A
lógica de confronto exposta pelo aparato policial perante as manifestações e protestos
desde então se tornou algo recorrente e problemático.
Daí surge o tema proposto: estudar a polícia que está sendo posta para mediar estas
ações políticas para então repensar a categoria de polícia repressiva/ostensiva dentro de
um projeto democrático contemporâneo. Uma questão será perene durante o trabalho a
policia que temos é a polícia que queremos? Obviamente, que dentro desta que questão
estão imbricadas outras questões suplementares, qual a polícia que temos? E qual é a
polícia que queremos? Para trilhar esse caminho recuperaremos os caminhos de
transformação da policia ostensiva no brasil (mais especificamente trabalharemos com a
Polícia Militar do RS), questionando quais são os discursos que informam suas práticas?
Qual é o esquema axiológico de validação destes discursos? Para reconstruirmos um
padrão de instituição polícia iremos espelhar os resultados destes questionamentos com
os demais. Qual é a relação entre a realidade social brasileira e os padrões normativos de
um Estado Democrático de Direito ocidental? E quais são os rumos para uma polícia
nova dentro dos padrões brasileiros e possíveis?
Para responder tais perguntas é necessário então recuperar historicamente os
eventos de transformação das práticas policiais e focar nos pontos de contato entre a
polícia, protestos e manifestações públicas histórica e contemporaneamente.
O presente estudo originou-se de uma primeira reflexão sobre os limites e
possibilidades do estado democrático de direito, sobre os entraves nos processos de
construção de política social e de apreensão das demandas sociais pelo poder público.
Em um primeiro momento, o interesse foi sobre as produções legislativas e nesse estágio
atual será na atuação no limite da democracia, entre protestos, movimentos sociais e
atuação policial.

2
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/politica/justica-condena-sp-por-violencia-policial-em-
protestos-de-2013
O descolamento da esfera estatal da sociedade civil tem se mostrado tema premente
e atual nos estudos de sociologia política brasileira. s mani esta es incu adas
inicia mente uest o do a or da tari a de transporte pu ico caracteri aram-se pelo
protagonismo de co eti os organi ados so a ógica da “hori onta idade” e se
propagaram encontrando terreno fértil no seio do tecido social. O sintoma disso fica
exposto pela adição de outros atores sociais diversos e a inserção de reivindicações não
necessariamente ligadas ao transporte publico (e, por vezes, ideologicamente
contraditórias entre si). A efervescência de atores sociais já podia ser sentida durante o
mês de junho e continua reverberando até hoje (ROLNIK, 2013).
Aparentemente a escolha do estudo pelo viés da polícia pode parecer pouco
ortodoxa ou inadvertida, porém é necessário frisar que as instituições policiais no Brasil
estão em uma posição privilegiada para o estudo sociológico. Isto se deve a sua
constituição institucional histórica e ao papel que cumpre na socialização da população,
muitas vezes sendo a única instancia de Estado reconhecida por parte da população.
Por outro lado, as questões policiais também tem se tornado pauta do legislativo. A
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51/2013, do senador Lindbergh Farias (PT-
RJ), reorganiza as forças policiais extinguindo o seu caráter militar e determinando que
atuem tanto no policiamento ostensivo quanto nas investigações dos crimes. A PEC
estabelece que cada estado poderá organizar suas forças policiais da forma que
considerar mais adequada, usando critérios territoriais, de tipos de crimes a seres
combatidos ou combinando as duas formas, desde que tenham sempre caráter civil e
atuem no ciclo completo da atividade policial, isto é, na prevenção e na investigação de
crimes. A questão abordada pela PEC circunda os problemas que serão abordados de
forma mais profunda neste trabalho.

Reconstrução e genealogia, construindo ferramentas de interpretação

Dentre as signi icati as uest es enunciadas e e a oradas na o ra “Patho ogies o


Reason” de xe Honneth (2009), chamou a atenção deste pesquisador aquela que
envolve um ponto central da produção de conhecimento: como descrever e justificar um
ponto de vista a partir do qual sociedade e suas práticas institucionais podem ser
criticadas teoricamente de maneira significativa? Será que estaríamos presos a conclusão
de que apenas uma forma de crítica social "fraca", contextualmente localizada representa
um estudo legitimamente político e filosófico, enquanto qualquer forma "forte", que
transcende o contexto da crítica social traz necessariamente o risco de paternalismo ou
mesmo de despotismo?
Tais questões surgem a partir da produção dos mais recentes críticos à Escola de
Frankfurt. Os críticos afirmam que os textos clássicos representam uma forma de crítica
socia " orte” ue já n o possui mais ugar no espa o socia e ue os textos centrais
contemporâneos dão a impressão de que a Escola se distanciou tanto da ordem
institucional das sociedades que sua crítica perdeu todos os pontos de referência
normativos e, portanto, deve ser suspeita de possuir um objetivo totalizador (HONNETH,
2009).
Honneth (2009, p.45) afirma que sua defesa do modo clássico de crítica da Escola
de Frankfurt depende de alguns pressupostos, o primeiro é a busca por reconstruir a
forma ideal da crítica clássica e não se ater a sua execução nos escritos em especifico e o
segundo é que sua defesa não está de maneira alguma ratificando os conteúdos materiais
da própria teoria social. Pois, em sua opinião, os conceitos básicos histórico-filosóficos e
sociológicos da Escola de Frankfurt não podem mais ser defendidos.
Sua reconstrução passa pela inclusão do modelo genealógico não apenas como um
surplus ao exercício da crítica. Honneth encontra na genealogia mais um método de
produção de conhecimento e uma fonte epistemológica na busca de uma nova fundação
para o modelo clássico de crítica.
Em um primeiro momento, Honneth (2009) modifica o esquema tripartite de critica
social proposto por Walzer. O esquema é constituído pelos procedimentos de revelação,
invenção e interpretação. O autor se distancia do procedimento chamado por Walzer de
revelação, o qual está intimamente conectado com certa experiência religiosa ou
metafisica que substanciam as condições para a crítica. Honneth não acredita que tal
critica social oriunda de tais condições seja suficientemente relevante em termos
filosóficos.
Os demais procedimentos são reclassificados pelo autor, a invenção, procedimento
que toma como ponto de partida uma construção geral real ou fictícia para a produção de
normatividade, se torna construção. A interpretação, procedimento em que o próprio
Walzer se identifica e no qual ele localiza o que antes já foi chamado de crítica imanente,
é chamada de reconstrução. Estes dois procedimentos de critica social estão amplamente
difundidos e aparentemente possuem certa legitimação. A fundamental diferença entre os
dois modelos é que o segundo (a reconstrução) somente pode usar como fonte legítima
de critica social os princípios e ideais que, de alguma forma, já brotaram em dada
sociedade (HONNETH, 2009).
Honneth (2009) acredita que a diferenciação entre construtivismo e reconstrução
não é suficiente para exaurir todos os modelos de critica social encontrados na
contemporaneidade. É neste ponto que o autor traz a visão de Michel Foucault como
exemplo de escritos que exprimem um procedimento crítico e social. O autor é enfático
em ressaltar os méritos de Foucault em mostrar como um ideal normativo se torna prática
social. Nos escritos do autor francês não encontramos a crítica do confronto entre
ideologia, ideia e realidade, mas sim a exposição da sociedade como um acontecimento
social que há muito tempo não possui nenhuma justificativa normativa informada por
ideais dignos.
É a partir da avaliação de Honneth da relevância deste tipo de crítica que ele extrai
um terceiro modo de crítica. A genealogia, e por este conceito se refere a tentativa de
criticar a ordem social demonstrando historicamente a extensão de quanto dos ideais e
normas que definem certa sociedade já legitimam práticas disciplinares e repressivas.
Mais a frente o autor vai defender a inserção necessária de um viés genealógico na
produção de conhecimento crítico, porém antes de comentar sobre as implicações de tal
afirmação, é necessário elucidarmos que conceito é essa genealogia? E quais são as
possibilidades que sua utilização pode abrir para a crítica social?
Para além da interpretação de Honneth da genealogia instrumentalizada no trabalho
de Michel Foucault, o conceito carrega um potencial que agrega outras possibilidades. A
genealogia de Nietzsche se apresenta precipuamente de dois modos que aparentemente
são incompatíveis. A genealogia pode ser uma metodologia, método de interpretação,
procedimento ou explicação, uma modalidade conhecimento histórico. Por outro lado, a
genealogia pode ser uma filosofia da história, uma que vai de encontro as demais
histórias, a necessidade de um sentido para a história e busca um sentido que subverte as
construções de sentido até então postas (MOTA, 2008).
Para efeitos deste ensaio e do escopo desta pesquisa trataremos do viés
metodológico. É no prologo da Genealogia da Moral (1998, Prólogo-6) que o autor
define de certa forma os parâmetros da construção deste novo conhecimento que se
propõe "necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores
deverá ser colocado em questão - para isto é necessário um conhecimento das condições
e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram". A
proposta do autor é a critica dos valores a partir da reconstituição do momento de
criação, desenvolvimento e modificação.
Apesar do atrelamento metodológico inicial a questão dos valores, a genealogia
pode ser aplicada a diversos fenômenos, na Segunda Dissertação da Genealogia da
Moral, por exemplo, o castigo é investigado genealogicamente por diferentes aspectos;
morais, religiosos, políticos, jurídicos, psicológicos, epistemológicos e metafísicos. Da
mesma forma, a genealogia pode ser utilizada na transvaloração de outros valores que
não morais (MOTA, 2008).
Veja-se que a genealogia não é necessariamente a genealogia da moral. A
genealogia é precipuamente de valores e isto está caracterizado nos objetivos a ques
propõe, avaliar os valor dos valores: "sob que condições inventou-se o homem aqueles
juízos de valor, bom e mau? E que valor têm eles mesmos? Obstruíram ou favoreceram
até agora o prosperar da humanidade? São um signo de estado de indigência, de
empobrecimento, de degeneração da vida?" (1998, Prólogo-3).
É neste ponto que o autor revela seu fundamento último. A construção de uma
avaliação genealógica historicamente localizada e criticamente informada deve se
reportar a um valor último que é não permite ser avaliado, a vida. Acredito que neste
ponto, Honneth (2009, p. 48) se equivoca ao afirmar que "a genealogia é, em certo
sentido, um procedimento crítico parasitário, uma vez que ela pressupõe uma justificativa
normativa que não se propõe a dar".
É claro que a vida como valor último pode parecer quase como um constructo
filosófico e não uma justificativa normativa, porém na utilização da metodologia
genealógica se torna um parâmetro real e aplicável. Se a genealogia fosse simplesmente
parasitária ela estaria a serviço de qualquer esquema ético e, portanto, legitimaria um
relativismo radical e danoso.
Neste ponto, nos perguntamos, como enfrentar esta empreitada? Como encontrar
com sucesso as condições de criação, desenvolvimento e modificação dos fenômenos
sociais? Nietzsche (também indica este caminho, de forma poética através da cor que
genealogia que exsude: "o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatável,
o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita hieroglífica do
passado moral humano". Ao se contrapor a "essas hipóteses inglesas que se perdem no
azul", (azul do céu platônico), o autor busca nos documentos históricos a fonte para
questionar e avaliar a construção dos valores (1998, Prologo-3).
Foucault, um dos estudiosos da genealogia, destaca também a importância deste
cinza que deve predominar o o har do genea ogista " genea ogia cin a e a
meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados,
riscados árias e es reescritos. “ (2000 p. 17). Dentro desta is o da genea ogia os
documentos históricos são compreendidos por tanto os documentos propriamente ditos,
como leis, contratos, materiais impressos diversos que revelem práticas sociais
características de uma época, bem como o material arqueológico, como ruínas,
cerâmicas, ossadas (MOTA, 2008).
A genealogia trabalha nas minucias e exige paciência. Ela busca as pequenas
verdades inaparentes.
Para tanto, por vezes, é necessário buscar novos instrumentos de compreensão e
interpretação. A singularidade do olhar de Nietzsche não está exatamente na escolha das
fontes, mas sim no modo de como as interpreta, usando inclusive da etnologia como
instrumento de entendimento (MOTA, 2008).
É a partir daqui que começamos a delinear como é que construímos um exercício
genealógico. Para além das fontes é necessário interpreta-las e saber extrair o
conhecimento que se busca. Como dito acima, a etnologia foi um dos instrumentos usado
para interpretação na obra de Nietzsche, porém este não foi o único. A etimologia
também foi protagonista nos estudos da genealogia da moral, especialmente para que se
consiga compreender a "escrita hieroglífica do passado". Para que seja possível a
construção de uma genealogia é necessário um recorte transversal sobre diversas
contribuições de várias disciplinas e a partir daí o método genealógico se abre as mais
diversas ciências e nessa medida constrói seu rigor e efetividade (MOTA, 2008).
O trabalho do genealogista que se previne com as devidas ferramentas
interdisciplinares necessárias para compreensão da matéria cinzenta que está a sua frente
não é desvendar o lado oculto do objeto, ou a essência do fenômeno. Pois:
se o genea ogista tem o cuidado de escutar a historia em e de
acreditar na meta sica o ue ue e e aprende ue atrás das coisas há "algo
inteiramente diferente": não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo
que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a
partir de figuras que lhe eram estranhas (2000 p. 18)
Percebe-se que abdicando da busca megalomaníaca e metafisica pela verdade, pela
essência do objeto de pesquisa, as portas se abrem para as minucias, para se demorar nas
meticulosidades, nos acasos e nos começos que perfazem o objeto e sua multiplicidade
de sentidos durante o tempo.
É neste ponto que encontramos a critica de Nietzsche ao teleologismo. A
genealogia é avessa a confusão entre origem e finalidade. O teleologismo opera com base
nesta premissa de que ao conhecer a finalidade do objeto, estaríamos, de certa forma,
conhecendo sua origem. Para o autor "todo acontecimento do mundo orgânico é um
subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação, um
ajuste, no qual o "sentido" e a "finalidade" anteriores são necessariamente obscurecidos
ou obliterados." (1998, II-3).
Por essas razões o te eo ogismo estaria impossi i itado de compreender a história.
Pois a história de ua uer o jeto de estudo um processo ue se su mete a sucessi as
transformações e redirecionamentos. No pano de fundo da crítica de Nietzsche ao
teleologismo está sua aversão ao conceito moderno de progresso e as produções
cientificas que dele derivam (MOTA, 2008).
Enfim, a produção de um conhecimento que possa ser reconhecido como
genealógico deve atender a tais linhas definidas que indicam como navegar no mar
cinzento das fontes genealógicas. As definições postas em abstrato podem parecer pouco
palpáveis, porém se usarmos um exemplo de estudo genealógico que esteja mais próximo
das práticas sociais cotidianas acredito que seja possível visualizar a importância do
método genealógico.
Ta exemp o acreditamos ue possa ser encontrado na o ra "Os normais”. Nesta
obra, Michel Foucault descreve a ascensão de um novo saber, a psiquiatria. De acordo
com o autor (2010), este saber contem a potência de construir novas subjetividades, e o
faz por responder as questões que demais saberes não se propõem a responder. O saber
psiquiátrico ocuparia os limites entre o saber médico e o saber o jurídico, seu poder
reside nas respostas que escapam aos demais saberes. Originalmente, o saber
psiquiátrico, exercido através do exame médico-legal, era composto de construções
discursivas que não poderiam ser classificadas nem como médicas e nem como jurídicas.
Os exames se pautavam por julgamentos morais sobre a periculosidade do sujeito,
afirmações que se tomadas apenas por seu valor jurídico não possuiriam qualquer valor e
da mesma forma se avaliadas medicamente. Porém, neste espaço onde nenhum dos dois
saberes se aplica, a psiquiatria ascende como a detentora das respostas e se coloca como
engrenagem entre as relações médicas e legais. Entre os séculos XVIII e o XX, a
psiquiatria se expandiu e se consolidou como fonte de política pública de higiene social.
É claro que neste espaço exíguo não é possível exprimir todas as nuances do estudo
foucaultiano. Porém, veja-se que numa breve exposição podemos reconhecer a fonte que
o autor usou para encontrar a criação deste novo saber; os exames médico-legais
(documentos históricos) e podemos encontrar o caráter histórico posto em perspectiva,
quando nota-se que um saber como a psiquiatria atualmente de ampla difusão teve seu
momento de erupção através de julgamentos morais sobre casos que a lei e a medicina
não sabiam explicar.
Não é estranho o interesse da teoria crítica no método genealógico. Ele fornece
uma nuance maior que pode ser extremamente útil para a reconstrução de seus
paradigmas sociais e propostas teóricas.
Por fim, retornamos a Honneth para tratarmos do que já havíamos introduzido
anteriormente: a necessidade da introdução da genealogia nos estudos de teoria crítica. O
autor afirma que, provavelmente, foi a essencialmente devastadora experiência do
nacional-socialismo alemão que possibilitou a ascensão de algumas dúvidas entre os
membros da Escola de Frankfurt sobre se os ideais criados por suas teorias sociais de fato
ainda possuíam o significado com o qual eles originalmente se desenvolveram (2009, p.
52).
Segue o autor (2009) referindo que o significado dos ideais e princípios normativos
revelou-se muito mais poroso, aberto, até vulnerável do que o previsto pelo programa
crítico original. A norma moral não prescreve a si mesma, não regula sua própria
aplicação no espaço social. Pelo contrário, seu conteúdo pode ser transformado como
resultado de mudanças imperceptíveis de significado, de modo que, ao fim, o núcleo
normativo que inicialmente justificou seu desenvolvimento se perde.
Em face destes fatores, não é nenhum pouco surpreendente que, no final da década
de 1930, a Teoria Crítica sofreu uma convergência sistemática com a genealogia de
Nietzsche. No fim em toda tentativa de realizar uma crítica imanente da sociedade sob os
pré-requisitos da racionalização social, afirma Honneth (2009), não deve faltar a
presença do projeto genealógico com o fim de estudar o contexto real de aplicação das
normas morais.
O autor chega a referir que a pesquisa genealógica serve "como um detector para
descobrir as mudanças sociais de seus principais ideais" (2009, p. 53). No paragrafo
seguinte o autor refere que chega a uma conclusão que o irrita, pois não consegue escapar
de confluir as três classificações de critica social (construtiva, reconstrução e genealogia)
para que se possa produzir teoria crítica. Isto pois:
A justificação construtiva de um ponto de vista crítico fornece uma
concepção de racionalidade que estabelece uma conexão sistemática entre
racionalidade social e validade moral. É então reconstrutivamente
demonstrado que essa racionalidade potencial determina a realidade social na
forma de ideais morais. E esses ideais morais, por sua vez, devem ser vistos
sob a condição genealógica de que seu significado original pode tornar-se
socialmente irreconhecível. (HONNETH, 2009)

A irritação do autor é justificada. A construção de um programa de teoria crítico


que engloba todas as possibilidades de pesquisa pode parecer um tanto ingênua, ou
totalizante e até vazia. O que acreditamos que esteja impedindo o autor de construir um
modelo mais simples é o subaproveitamento da genealogia.
O autor percebe a genealogia como um mero método de verificação e como
havíamos dito anteriormente se engana ao afirmar que o caráter genealógico pode se
apresentar como parasitário. Em nosso entendimento, o papel do construtivismo no
esquema do autor está superestimado. A genealogia com o seu esquema de validação em
última instancia no valor vida, pode suprir essa conexão entre racionalidade social e
validade moral. E mais, supriria sem qualquer esforço metafisico.
Um esquema de teoria critica de reconstrução genealógica/genealogia reconstrutiva
é possível. A complexidade da conceituação genealógica permite que ela fundamente e
verifique as criticas sociais. A critica social propositiva da reconstrução deve conviver
com a desconstrução genealógica e sem necessitar de qualquer esforço construtivista. E é
esta a tarefa que este estudo pretende cumprir, demonstrar a possibilidade de aliar estas
duas abordagens sem se escorar em conceitos construtivistas.
Para podermos refletir sobre o que será produzido na presente pesquisa o trecho
seguinte, elucidará a relação do tecido social brasileiro e sua instituição policial, numa
tentativa de explorar este caminho ainda que de forma breve e sucinta.

Brasil, continuidades problemáticas e problemas contínuos.


O período ditatorial brasileiro foi protagonista no abandono de pautas como
reformas institucionais e mais especificamente da defesa dos direitos humanos. Somente
no final dos anos 70 uma nova configuração institucional proporcionou condições para
um processo de abertura política. O processo de abertura política foi longo e muito bem
acordado. Muitas das instituições que suportaram o regime ditatorial se mantiveram
exatamente como estavam durante o regime de exceção.
Conforme Zaluar, o processo de democratização, que começou no fim dos anos
1970, não modificou o dito jogo entre Executivo e Legislativo, na época do regime
militar, o governo utilizava a corrupção combinada ao clientelismo como estratégia para
controlar os parlamentares, manipulando-os através da concessão e de contratos
privilegiados para as empresas e governos estaduais e municipais indicados pelos que
corroboravam as decisões dos militares. O processo de democratização foi progressivo,
no que se refere aos direitos civis do cidadão, no período de abertura do regime os
direitos contemplados foram direitos políticos e ao sistema eleitoral. Desta forma houve
uma recuperação progressiva de práticas democráticas nas eleições e na liberdade de
imprensa, mas não nas demais práticas sociais que estão diretamente conectadas a cultura
democrática. Pode-se dizer, então, que o pior efeito do regime de exceção foi que ele
destruiu a cultura democrática que se manifesta nas práticas sociais cotidianas de respeito
e civilidade e não somente isso ela acaba por prejudicar a recuperação destas práticas
democráticas (ZALUAR, 2007).
A autora destaca que não ocorreram reformas profundas no sistema de justiça e,
principalmente, não houve quase nenhuma mudança nas práticas policiais. Podemos
verificar este fato diariamente, pois os efeitos do regime militar ainda estão presentes no
funcionamento dessas instituições que não respeitam os direitos civis dos cidadãos.
Refere, ainda, a autora que a inércia institucional, com certeza em razão da falta de
oxigenação dentro do processo de redemocratização, explica as violações persistentes
dos direitos civis, bem como a ineficácia do sistema de justiça tem raízes históricas
profundas e se articula com o campo político (ZALUAR, 2007).
O crescimento dos crimes violentos, sobretudo sequestros, roubos e homicídios
com a utilização de arma de fogo se deu próximo do fim do regime militar no Brasil.
Além das capitais e das regiões metropolitanas, o aumento também atingiu diversas
cidades do interior. Desde a década de 70, o aumento da violência urbana e o
crescimento do crime organizado possuem plena visibilidade na mídia, bem como na
percepção social das populações urbanas, que foram medidas pelas pesquisas de opinião.
Todavia, entre as décadas de 80 e 90, a percepção social do crime potencializou-se. Os
crimes de tráfico de drogas, contrabando de armas e a corrupção passaram a fazer parte
do cotidiano das cidades brasileiras. Deste modo, o fenômeno criminal passa a se tornar
experiência coletiva e contribui para o aumento o medo e a insegurança no espaço
público. (MISSE, 1993; CIFALI, 2015).
Adorno refere que até os primeiros anos da década de 80, as políticas públicas
desenvolvidas pelo Estado brasileiro caracterizavam-se pela centralidade das decisões na
esfera federal, pelo caráter setorial, pela fragmentação institucional e pela exclusão da
sociedade civil no processo de formulação das políticas públicas, de sua implementação
e, muito mais do controle, controle da ação governamental. Ao longo da década de 1980
o aumento da criminalidade urbana violenta com certeza influenciou, senão provocou
grande impacto nas agências e instituições responsáveis pelo controle social. Este
impacto pressionou a expansão dos serviços de polícia judiciária e de vigilância e
influenciou, ao menos nos anos iniciais da década, a operacionalização das políticas de
segurança e justiça (ADORNO, 1996).
Este contexto de ascensão da criminalidade e iminente mudança de diretivas
institucionais no Brasil foi um campo aberto para novas especulações políticas sobre os
rumos da política criminal e penitenciaria. Como afirmamos, a partir da metade dos anos
70 há um movimento de conscientização sobre a questão da política criminal e todos os
problemas endêmicos oriundos do cárcere no Brasil, porém os anos que seguiram foram
de notáveis acréscimos nos níveis de criminalidade, muito em conta a migração para os
centros urbanos no período (AZEVEDO, 2004).
A soma destes fatores não impediu o enfrentamento da pauta política de
esgotamento do sistema penitenciário brasileiro pelo menos na esfera normativa. Este
fato demonstrou que enquanto nos países ditos centrais o debate político e econômico
girava em torno do esgotamento do modelo de Estado provisão, no Brasil o processo de
redemocratização gestado durante este período permitiu a retomada das discussões sobre
a necessidade de serem pensadas novas práticas e políticas informadas pela doutrina do
Estado Social. Os debates políticos que se instauraram a partir da abertura política
contemplavam e propunham ideais de conquistas sociais e de afirmação dos direitos
humanos em resposta ao período de ditadura militar.
A abertura política deu espaço aos debates sobrestados sobre os caminhos do
sistema penitenciário, ainda que no seio do regime ditatorial. Todavia, apesar de alguns
sucessos normativos que estes debates atingiram, os segmentos políticos de natureza
conservadora - ainda muito influentes - resistiam, reclamando o recrudescimento da
política carcerária brasileira (ALVAREZ et al. 2013).
Deste modo, apesar do processo de reconstrução democrática ter tido sucesso no
desenvolvimento de um novo regime político, que permitiu consolidação de uma série de
mudanças substantivas, as quais visaram munir a sociedade de instrumentos de defesa
contra o arbítrio do poder de Estado, a instauração efetiva de um Estado de Direito não
foi alcançada (CIFALI, 2015). A ausência de quebra institucional contribuiu para que a
efetivação de uma cultura democrática fosse minorada, os efeitos de uma
institucionalização democrática de nível baixo podem ser percebidos até hoje.
O'donnell sustenta a hipótese de um déficit de institucionalização do regime
democrático. Afirma que a maioria dos países da América Latina não foi capaz de
consolidar sistemas de Estados de Direito nos seus respectivos períodos de transição para
a democracia. A elevada desigualdade na região é um dos maiores empecilhos para uma
implementação mais imparcial do Estado de Direito, pois as distâncias sociais acabam
por alimentar múltiplos padrões de relações autoritárias em todos os tipos de contato
entre os privilegiados e os n o pri i egiados (O’DONNELL 1998).
Os direitos e garantias não estão postos simplesmente, mas sim precisam ser
constantemente defendidos contra as mais diversas tentações autoritárias. O Brasil, um
dos países mais desiguais do continente latino-americano, não escapa de ser
caracterizado como um país não democrático ou com uma democracia incompleta. Não
são poucos os obstáculos que contribuem para impedir a universalização da cidadania
plena no tecido social brasileiro. Entre eles estão as extremas desigualdades sociais, os
corporativismos que introduzem sério desequilíbrio na organização de interesses
coletivos, e as baixas participações dos cidadãos nas organizações representativas dos
distintos grupos sociais (ADORNO, 1996).
O próprio desenvolvimento constitucional não escapou deste paradoxo do discurso
e prática que impera recorrentemente na normatização brasileira. No alvorecer da
Constituição de 1988, o Brasil se encontrava em uma situação de tensão do tecido social
na qual os movimentos político-sociais procuravam sua afirmação e reconhecimento
normativo, bem como os representantes das instituições políticas remanescentes do
período ditatorial também partiam em busca da subsistência hegemônica de seus ideais.
A Constituição Federal, não obstante o fato de ser invocada como instrumento de
promoção da vida e dos direitos do cidadão brasileiro, se mostra, no que concerne ao
trato da conflitualidade social, como verdadeiro dispositivo criminal e, por vezes, como
epistême justificadora da lógica de punitiva. (SANTOS; RAMOS, 2015). Não há como
negar que a constituição mostrou avanços político-sociais, porém tais demonstrações se
mostraram de caráter demasiadamente programático, enquanto a normatização
criminalizante se mostrou tanto autoaplicável como programática. Lembra-se que na
época da constituinte ainda havia um dito novo vetor que se mostrou de grande
influência, nada menos que a doutrina Neoliberal que estava se propagando como
resposta a falência do Estado Social. O ator que ficou reconhecido como impulsor da
doutrina Neoliberal no Brasil foi o Consenso de Washington, notório pelas prescrições
econômicas e políticas para os países em desenvolvimento que tivessem interesse em
manter relações estreitas com o Tesouro Americano, Fundo Monetário Internacional e
Banco Mundial (AZEVEDO, 2004).
Pode-se perceber que a realidade brasileira pós-1988, sem dúvida, possui como
caractere marcante a priorização da resolução dos conflitos sociais sob a ótica da
resolução penal. E o resultado desta política continua de criação de políticas públicas via
sistema penal pode ser depreendido nos números recentes de encarceramento. Em 2014 o
CNJ publicou o Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil do Departamento de
Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de
Medidas Sócio educativas – DMF. Neste documento podem-se apreender alguns
indicativos das escolhas político-criminais brasileiras: O Brasil possui 711.463 mil
pessoas sob o controle penal, 563.526 mil estão presos nos estabelecimentos
penitenciários e 147,937 mil restantes estão em prisão domiciliar. O número de prisões
por 100 mil habitantes é 358. O Brasil só perde para China (1.701.344 mil presos) e
Estados Unidos (2.228.424 mil presos) em número absoluto de presos (contando as
prisões domiciliares)3.
Este movimento encarcerador não deu conta de reduzir a violência endêmica no
tecido social brasileiro, e este fato pode ser ilustrado pela taxa de homicídios que mais
que duplicou entre 1980 e 2000 (de 11,4 por 100 mil habitantes em 1980, a 27,8 em

3
Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf>. Acesso em
31/01/16.
2000) e se mantém estável nestes altos níveis desde então (29 por 100 mil habitantes em
2012).4 Tampouco se mostrou efetivo para diminuir o abismo social provocado pela
seletividade penal e o sentimento de insegurança difundido e impregnado no tecido social
(CAMPOS, 2010).
Há alguns anos nas grandes cidades brasileiras, nota-se que o sentimento de medo e
insegurança diante do crime é cada vez mais alimentado pelo sentimento de que os
cidadãos se encontram desprotegidos. A organização material e institucional cujo escopo
é proteger as vidas e os bens, sejam eles materiais ou simbólicos da população, não tem
demonstrado eficiência no cumprimento destas tarefas. Nas últimas duas décadas, os
cidadãos, influenciados pelas intermináveis demonstrações de falibilidade das
instituições estatais, tem se manifestado constantemente com descrença perante os
governantes, as autoridades constituídas e até mesmo no poder do estado, pelo menos
quando a matéria é de segurança pública (ADORNO, 1996)
Esse sentimento de insegurança diante das percepções coletivas de aumento do
crime e da violência urbanas é potencializado pelo gerenciamento administrativo da
Justiça penal. Uma série de fatores são paradigmáticos na construção desta imagem do
poder público; morosidade nos trâmites processuais, excesso de formalidades
burocráticas e de ritos judiciais, estéril, inadequada e insuficiente instrução dos inquéritos
policiais contribuindo para o fracasso das ações penais, acúmulo de processos cujas
sentenças decisórias acabam não possuíram efetividade, e do outro lado do espectro
temos, também, a preservação de um modelo patrimonial de gestão da justiça penal, no
qual o magistrado assimetricamente se sobrepõe ao jurisdicionado, impondo seu
entendimento sobre os fatos (ADORNO, 1996). No âmbito das polícias os fatos que
denotam a crise da administração da justiça penal parecem não desmentir ninguém. As
imagens oriundas das violências na atuação principalmente da polícia militar são
deploráveis.
O esquema institucional da polícia brasileira é sui generis perante todas as polícias
dos demais países. A divisão entre polícia ostensiva e investigativa, a primeira de
categoria militar e a segunda dita civil, e a entrada diferenciada na carreira (praças x
oficiais e agentes x delegados) é ímpar na constituição dos estados democráticos de

4
Fonte: <http://www.mapadaviolencia.org.br/>. Acesso em 31/01/16.
direito. Essa separação entre as polícias faz com que a cultura institucional destas, seja
muito diferente, o que provoca uma desconfiança mútua (NASCIMENTO, 2008)
As informações obtidas acabam se fragmentando o que facilita a apropriação
particularizada, uma vez que não há, necessariamente, uma linha de integração entre as
instituições, dificultando o planejamento da segurança pública numa perspectiva global e
o controle das atividades institucionais. Até poderia se interpretar a divisão da polícia
como algo benéfico ao se considerar a possibilidade de evitar a concentração de poder.
Porém, de uma maneira geral, as divisões externas e internas das polícias geram uma
insatisfação com a distribuição das atividades e também com os salários, minando a
coesão das instituições. (MIRANDA, 2008: NASCIMENTO; 2008)
A produção e reprodução destes conflitos se refletem na atuação policial e na sua
relação com a sociedade, comprometendo a circulação de informações, o controle das
ações e a qualidade do atendimento oferecido a população. O resultado desta combinação
de instituição policial pré-constitucional com um sistema democrático representativo
liberal e elitista com certeza contribuem para o distanciamento entre cidadão e estado e
mais do que isso contribui para a fricção entre policia e manifestantes que eclodiu mais
significativamente em junho de 2013.

Horizontes dos desafios enfrentados e notas metodológicas

A trajetória das questões levantadas até agora já desvelam alguns dos desafios que
estarão no caminho da construção deste estudo. Um destes desafios é navegar sobre as
nuanças do debate da teoria critica que permanece, conscientemente, se alterando e
reformulando novas abordagens para uma critica imanente, reconstrutiva, uma
reconstrução racional ou normativa. Tais abordagens não necessariamente se superam,
mas procuram se colocar em espaços de constante reflexão e por vezes diferenciam-se
entre si (REPA, 2016). Para além dos problemas conceituais, o maior desafio da Teoria
Crítica, aqui englobando as diversas abordagens mencionadas, é a articulação produtiva
entre teoria e pesquisa. Os desenvolvimentos teóricos recentes da Teoria Crítica têm
tratado com desídia a preocupação com a pesquisa social. Isto por que
contemporaneamente o "teste" empírico das ideias teóricas perdeu importância
acadêmica, oriunda de uma ausência de estímulo a novos projetos de pesquisa empírica
no campo da Teoria Crítica (VOIROL, 2012).
Outro desafio é o processo de recuperação de documentos para a produção de um
estudo eminentemente genealógico. Sim, a genealogia é cinza, porém as instituições
brasileiras, principalmente aquelas de controle social, nem sempre cooperam com a
academia. A produção e publicidade de dados referente a atuação de instituições como as
polícias ainda é sobrestada diversas vezes por freios institucionais tradicionais. A
frustração do pesquisador fica clara quando sua pesquisa perde uma esfera de analise por
decisões institucionais arbitrárias, Nascimento (2014) refere e demonstra o quão difícil é
a produção de conhecimento dentro das polícias:
Conseguir acesso à Ouvidoria de Polícia foi trabalhoso, pois não havia tido
nenhum contato anterior com essa instituição. O jeito foi enviar um ofício,
guardar a cópia e de e em uando “passar” por á para er se ha ia a guma
resposta, até que um dia a resposta veio, com uma ligação agendando a
entrevista com o ouvidor. Os dados anteriores a 2005 não puderam ser
utilizados porque não estavam disponibilizados no site. Eles existiam apenas
na forma impressa e apesar da insistência da pesquisadora em ter acesso a eles
isso não foi possível porque na época eles não foram encontrados. A
Ouvidoria, segundo o que foi relatado pelo próprio ouvidor, tem um
funcionamento bem simples, uma vez que não realiza investigações e,
portanto, não lida com inquéritos ou processos. Segundo ele, o papel da
instituição é o de fiscalizar o trabalho das corregedorias e ver se as denúncias
recebidas estão de fato tendo o encaminhamento adequado. A instituição fica
localizada no mesmo prédio da CGU.

O desafio é grande e a construção do estudo demandará não apenas análise


documental, pois para que possamos sentir o pulso da instituição no estado em que está e
pensar as perspectivas possíveis será necessário o emprego de entrevistas. Os
interlocutores serão atores que participaram ativamente no ciclo de protestos dentro e
fora da esfera policial. Alguns interlocutores poderão ser gestores de segurança pública
que estavam no poder na época dos fatos ocorridos. As entrevistas poderão ser
padronizadas abertas ou assistemáticas. Nas padronizadas as perguntas são apresentadas
a todas as pessoas exatamente com as mesmas palavras e na mesma ordem, de modo a
assegurar que todos os entrevistados respondam à mesma pergunta, no tipo aberta a
resposta é livre, não-limitada por alternativas apresentadas, o pesquisado fala livremente
sobre o tema que lhe é proposto. As assistemáticas solicitam respostas espontâneas, não-
dirigidas pela pesquisa. A escolha dependerá da abertura do campo e do desenvolver da
pesquisa (GOLDENBERG, 2004).
Toda essa empreitada está centrada na necessidade de confluir teoria e prática,
superar o mais básico dos preconceitos tradicionais que ainda assola a vida comum e até
a academia em certos setores. Propostas como essa só podem ser cumpridas se a relação
entre teoria e pesquisa se realiza de uma maneira dialética. A pesquisa deve sempre ter
um poder de redefinir construções teóricas e oferecer possibilidades para novos
diagnósticos (VOIROL, 2012).

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