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A AUTORA

Professora adjunta de Cinema e Vídeo da Universidade Federal do


Rio de Janeiro - Núcleo de Tecnologia Educional para a Saúde
(Nutes), pesquisadora Faperj.

DA IMAGEM PEDAGÓGICA
A PEDAGOGIA DA IMAGEM
Uso inadequado da imagem cinematográfica
em atividades pedagógicas reforça estereótipos

uase meio século depois da pu- logia, a Geografia, a História.. . Embora

Q blicação de Image etpedagogie


(Imagem e pedagogia), de
Geneviève Jacquinot, vários
equívocos ali apontados pela autora em re-
lação à utilização do audiovisual em pro-
hoje façam parte da nossa formação cul-
tural, tanto quanto a Literatura, as imagens
em movimento ainda não constituem um
objeto de estudo em si. Elas ainda são um
simples meio para o estudo de outros ob-
cessos de aprendizagem ainda continuam jetos, prioritários, porque cientljcicos.
se reproduzindo, em detrimento da cons- Um equívoco leva a outro: por ser abor-
trução de um pensamento que dê conta da dada como ilustração, como mera referên-
complexidadedas imagens em movimen- cia a um discurso que a precede, o discur-
to. Um desses equívocos diz respeito ao so pedagógico, a imagem acaba tendo uma
próprio estatuto pedagógico da imagem, participação secundária na maioria dos
até hoje muitas vezes apreendida como processos educativos que a utilizam. Pre-
ilustração de conteúdo de cursos ou de valece ainda hoje aquela "pedagogia do
pesquisas científicas. A escola se apropria transporte", da "mensagem a ser transmi-
da imagem em movimento não como tida"', permitindo que essa imagem con-
quem se aproxima de uma arte, a cinema- tinue sendo absorvida pela educação sem
tografia, capaz, por si só, de pensar novas maiores exigências formais. O desinteres-
relações de espaço e de tempo, por exem- se pela ontologia desse novo objeto do
plo, mas como quem busca um aditivo qual a educação se apropria tem levado a
tecnológico para incrementar processos uma espécie de democratismo visual onde
educativos em andamento, desencadeados todas as imagens se equivalem, desde que
por ciênciasjá consolidadas,como a Bio- a intenção pedagógica seja assegurada. Os

1. JACQUINOT, Geneviève.Image et pédagogie. (Imagem e pedagogia.) Presses Universitaires de France, 1977. p. 16.

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-
Da imagem pedagógica a pedagogia da imagem

efeitos dessa política, aparentemente ino- mitiria confirmar uma tese tão progressis-
fensiva, são evidentes tanto na escolha dos ta. É Henri Giroux que o faz, em nome do
filmes a serem analisados em sala de aula filme e no lugar do espectador, oferecen-
quanto na própria produção dos chama- d o a esse último uma leitura erudita do
dos filmes educativos. enlatado hollywoodiano. O filme não con-
voca a inteligência do espectador, que, ao
IMAGEM P E D A G ~ G I C A contrário, se encontra mais uma vez cir-
E BOAS INTENÇÕES cunscrito ao círculo vicioso de sua misé-
ria cultural, tão bem alimentada pela in-
Em nome de uma suposta cultura popu- dústria da imagem.
lar e, aparentemente, com as melhores in- No campo da produção de materiais
tenções, vemos pensadores contemporâ- educativos, os efeitos dessa pedagogia do
neos da educação elegerem como objeto transporte não são menos nefastos. É gran-
de estudo o resíduo da produção cinema- de o número de filmes e vídeos realizados
tográfica hollywoodiana de ficção, estabe- em contextos de aprendizagem que, ape-
lecendo uma equivalência reducionista en- sar de sua intenção pedagógica evidente,
tre uma cultura de massa industrial e reproduzem convenções estéticas estabele-
populista, feita para o povo, e uma cultura cidas pela indústria cinematográficaou pela
intrinsecamentepopular, feitapelopovo. Henri televisão, como a submissão à continuida-
Giroux,por exemplo,vê num i i h e comoDirty de narrativa, a voz em off, a adoção siste-
Dance (Ritmo quente, Emile Ardolino, EUA, mática da variedade de pontos de vista, a
1987)uma autêntica manifestação cultural da montagem excessivamente rápida, o
juventude norte-americana2.Ora, todo o de- exibicionismo da técnica. Numa espécie de
bate ideológico construído por Giroux para mimetismo inconseqüentedo videoclipe ou
chegar a tal conclusão se situa na periferia do telejornalismo, em muitos filmes e
do filme, ou seja, na intenção pedagógica vídeos ditos educativos os planos ultrapas-
do autor. Em nenhum momento sua análi- sam raramente três ou quatro segundos e a
se se debruça sobre a própria matéria ligação entre eles é feita por meio de efei-
fíimica disponível. Ele se limita a uma apre- tos visuais banalizados pela sua utilização
ciação conteudista do filme, tomando-o excessiva e pouco criteriosa. É o caso da
como ilustração de uma tese segundo a qual fusão encadeada, por exemplo, código de
o corpo é uma construção da história. Em- pontuação habitualmente empregado no
bora totalmente defensável, a tese em ques- cinema para demarcar elipses temporais
tão extrapola a capacidade de argumentação ou mudanças de seqüência e usado de for-
do filme analisado.Fora o conteúdo da histó- ma exaustiva pela televisão a fim de evi-
ria (uma garota burguesa se depara com a tar interrupções narrativas que permitiriam
questão do aborto e enfrenta o moralismo ao telespectador uma eventual pausa para
da família), nenhum outro aspecto do filme, reflexão. A mesma fobia televisiva da
de um reacionarismo formal primário, per- descontinuidadevem sendo paradoxalmen-

2. GIROUX, Henry. A cultura popular como uma pedagogia d o prazer e significado: descolonizando o corpo. In:
. Cruzando as fronteiras do discurso educacional.Porto Alegre: Artrned, 1999. p. 215.
Comunicação & Educação, São Paulo, (21): 29 a 36, maio/ago. 2001

te reproduzida em vídeos educativos que de trabalho, local de realização do ato cri-


deveriam, a princípio, estar desenvolven- ador do homem e, portanto, de transforma-
do modelos de narração e de representa- ção do mundo: essa parece ser a pedagogia
ção inovadores, alternativos à linguagem essencial da imagem. A imagem pensa e
industrial e mais propícios à aprendizagem. faz pensar, e é nesse sentido que ela con-
tém uma pedagogia intrínseca. Se até hoje
A apropriação não não apreendemos seus ensinamentos e
continuamos a reproduzir a estética indus-
problematizada das imagens trial, meras "representações imagéticas
em movimento tem contribuído falantes", como diz Piaget4, é talvez por
para legitimar certas desconsiderarmoso verdadeiro alcance da
perversões, fazendo do filme a linguagem cinematográfica e audiovisual.
Seja por má fé ou por naiveté (ingenuida-
loura burra da pedagogia, que de), nos deixamos impressionar pela téc-
ilustra mas não pensa. nica e por seus efeitos mirabolantes. Daí
a crítica de Piaget à utilização do
Não é à toa que Piaget, atendo-se mais audiovisual na educação: posamos de
à natureza da imagem do que à má utili- modernos enquanto reproduzimos parado-
zação que dela se faz, proclama, como xalmente com imagens o verbalismo mais
lembra Jacquinot, a inadequação de uma tradicional, o blablablá improdutivo do
pedagogia fundada na imagem para a conteúdo sem forma ou o vertiginoso va-
formação do construtivismo operatório3. zio da forma sem conteúdo. Já na intro-
Piaget sustenta que a inteligência não se dução de seu livro, Jacquinot alertava
reduz às imagens de um filme. É verda- quanto a uma "inquietante desproporção"
de que a inteligência extrapola os limi- entre a riqueza técnica das soluções de
tes de um filme, principalmente o que produção, estocagem e difusão de men-
tem sido escolhido como objeto de es- sagens audiovisuais da época e a pobre-
tudo pelos nossos educadores e mesmo za de nosso saber sobre o que são essas
o que se tem produzido no gênero didá- mensagens e como elas funcionam5. Hoje
tico. Mas é verdade também que a inteli- essa desproporção persiste e é de se es-
gência das imagens não se reduz ao mo- perar que a inquietude dos educadores
delo narrativo hegemônico comumente aumente. Com o desenvolvimento da tec-
adotado nas escolas e que, uma vez abor- nologia do vídeo, a imagem tem sido cada
dadas sob o ponto de vista da criação, as vez mais amplamente assimilada pela
imagens são capazes de suscitar, da mes- educação, sem a contrapartida de uma
ma forma que o texto escrito, um verda- reflexão teórica mais aprofundada e de
deiro processo cognitivo. uma práxis mais conseqüente dessa mes-
O trabalho do filme, o filme como local ma imagem.

3. Apud JACQUINOT, Geneviève. Image et pédagogie. op. cit. p. 16.


4. PIAGET, Jean. Psicologia e pedagogia. São Paulo: Editora Forense, 1972. p. 72.
5. JACQUINOT, Geneviève. Image et pédagogie. op. rir. p. 14.
Da imagem pedagógica a pedagogia da imagem

PEDAGOGIA DA IMAGEM: UMA pendente, o Cinema Novo7, propõe atra-


QUESTÃO DE METODO vés das imagens a construção de uma cul-
tura revolucionária que seja ao mesmo
Se, como diz Moacir Gadotti, numa tempo épica
- - e didática. Nela, a dimensão
sociedade em crise a educação é um lugar didática corresponde ao caráter científico
onde toda essa sociedade "se interroga a e ético de uma obra, visando "alfabetizar,
respeito dela mesma, se debate, se bus- informar, educar, conscientizar as massas
ca'"j, um processo educativo com imagens ignorantes, as classes médias alienada^"^.
não poderia fugir a esse papel histórico, Quanto à dimensão épica, ela é a prática
destinado às Ciências Humanas. Uma poética dessa mesma obra, que deve ser
imagem que justifique sua inserção num revolucionária do ponto de vista estético.
contexto de aprendizagem deve ser capaz "A didática sem a épica gera a informa-
de provocar um questionamento ao mes- ção estéril e degenera em consciência pas-
mo tempo ético e estético. siva nas massas e em boa consciência nos
intelectuais. É inofensiva. A épica sem
Ao informar um conteúdo, essa didática gera o romantismo moralista e
degenera em demagogia histérica. É tota-
imagem tem que ser capaz de lit~úia"~. Nesse sentido, a utilização das
estimular intelectualmente o imagens na educação só se justifica na
espectador através da forma, medida em que o educador, guardião da
.- ética, do didático, seia também um cria-
do estilo. dor de imagens, de formas, e que o
roteirista, diretor ou cameraman, criado-
As lições de pedagogia das imagens não res do épico, do estético, sejam também
poderiam se restringir a um conteúdo éti- pedagogos em potencial. Lá onde a esté-
co. O aprendizado com imagens exige tica audiovisual dominante separa conteú-
também revoluções formais. Não chega- do e forma, o estilo épico-didático os une.
remos, por exemplo, a produzir filmes e O que o cinema teria a nos ensinar sobre
vídeos de aprendizagem que mereçam este a arte das imagens em movimento? Ou,
nome se não nos inserirmos na própria como prefere Jacques Aumont, em que
história das imagens em movimento, pro- pensam os filmeslO?O autor propõe um
curando no cinema, que veio bem antes método de análise de filmes que parte da
do vídeo, lições de imagem e de som. própria obra, abordando-a como um obje-
Gláuber Rocha, cineasta que liderou um to singular, cuja pedagogia, se ela existe,
dos maiores movimentos de cinema inde- deve necessariamente encontrar-se no in-

6. GADOTTI, Moacir. Educação e poder. Introdução à pedagogia do conflito. São Paulo: Cortez, 1985. p. 16.
7. O movimento cinemanovista inicia-se no final da década de 50, com a edição de curtas metragens; tinha como
princípio a produção independente de baixo custo e a crítica ao sistema; os principais cineastas do movimento foram
Paulo César Saraceni, Nélson Pereira dos Santos, Gláuber Rocha, Leon Hirzman, Ruy Guerra, entre outros. (N. Ed.)
8. ROCHA, Gláuber. A revolução é uma estética In: Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981. p. 66-68.
9. ROCHA, Gláuber. A revolução é uma estética. In: Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981. p. 66-68.
10. O título de um de seus livros, A quoipensent lesfilms?, pressupõe de antemão que os filmes pensam. Ver AUMONT,
J. A quoi pensent lesjlms? (O que pensam os filmes'?) Paris: Séguier, 1996.
Comunicação & Educação, São Paulo, (21):29 a 36, maio/ago.2001

terior da obra e não no discurso externo ou possam pensar e, com isso, ensinar a pen-
na intenção pedagógica de quem dela se sar mais e melhor, é necessário introduzir
apropria. Se adotamos essa perspectiva uma questão de ética no debate sobre sua
metodológicaenquanto princípio ético para utilização na educação. Jean-Luc Godard
a análise de filmes, constatamos que, infe- diz que "o único e grande problema do
lizmente, apenas algumas imagens, aliás cinema parece ser onde e por que começa
muito raras, ensinam verdadeiramente" . um plano e onde e por que ele termina"12.
O que é, essencialmente, uma questão de
Talvez por isso o cinema seja a método, de escolha de um ponto de vista
(onde começa e onde termina o meu pla-
arte que solicita, que exige no), de uma duração (por que o meu pla-
mais pedagogia. no começa e por que ele termina), esco-
lhas no espaço e no tempo que remetem a
Em cinema, para se fazer entender, é uma ética. Compartilhar um tal método
preciso estar sempre se justificando, de equivale a abrir mão de qualquer verdade
maneira extremamente didática: porque sobre a imagem audiovisual que extrapole
Gláuber Rocha, em vez de Valter Salles; essa mesma imagem. Por isso, ao incor-
porque Jean-Luc Godard, e não Luc porarmos o audiovisual na educação, nos-
Besson; porque John Cassavetes e não so objetivo não deve ser a aquisição ou a
Steven Spielberg ... Em literatura não é confirmação de um método definitivo,mas
preciso mencionar nenhum fenômeno li- a sua (re)construção permanente, em par-
terário de mídia, como Regine Déforges ceria com o objeto de estudo, e só com o
ou Paulo Coelho, por exemplo, para justi- objeto, sem o compromisso apriorístico
ficar o interesse por um Proust ou por um com nenhum discurso que lhe seja exte-
Guimarães Rosa. É que a literatura, ao rior, nem mesmo o discurso pedagógico.
contrário do cinema, já adquiriu um esta- Jacques Aumont fala de uma certa "exi-
tuto pedagógico: ela tem um em si literá- gência de moral pedagógica" que deve mo-
rio, ela já construiu vários "planos de ver o trabalho do crítico, exigência que con-
imanência", como diria Deleuze, onde flo- siste na interdição feita à palavra de impri-
rescem conceitos que formam um campo mir ao objeto analisado um discurso subje-
de conhecimento, a literatura, e que con- tivo, pessoal, que se tomou dominante. Essa
solidam um saber, o saber literário, que exigência é válida tanto para o trabalho ana-
merece ser difundido. O livro pensa, en- lítico quanto para o de criação de imagens.
quanto o filme diverte. A imagem é movimento, luz, cores, ritmos,
Para que as imagens também possam sons, ilusão de volumes, de profundidades,
ser abordadas como espaço de construção de texturas. São esses os "verdadeiros per-
do conhecimento, para que elas também sonagens" do cinema, como diria Deleuze13.

11. Jacques Aumont se diz convencido de que existem objetos dignos de interesse, portanto, de estudo, e outros sobre
os quais não vale a pena transmitir mais do que o savoir-faire (saber fazer). In: . Mon très cher objet. (Meu
querido objeto.) Tra$c 6. Paris: POL, Printemps, 1993.
12. GODARD, Jean-Luc. Histoire(s) du cinéma-4. (História(s) do cinema - 4.) Paris: Gallimard, 1998. p. 193.
13. Entrevista de Gilles Deleuze a Serge Toubiana. Le cerveau c'est l'écran. (O ckrebro é a tela.) Cahiers du Cinéma.
(Cadernos de Cinema.) n. 380, fevereiro de 1986. p. 31.
Da imagem pedagógica a pedagogia da imagem

IMAGEM E DISCURSODOMINANTE aparelhos do~ninantes"'~. Ao produzir, nos


anos 70 e 80, filmes que fazem alusão ao na-
A imagem é então portadora de uma ma- zismo, os cineastas inscrevem totalmente no
terialidade que lhe outorga um discurso ex- presente uma problemáticado passado, mos-
tremamente concreto, imanente, cuja com- trando os resquícios atuais da não-reconcili-
plexidade raramente temos a oportunidade ação dos povos alemão e judeu consigo mes-
de examinar. As imagens que
.
povoam
- o nos- mos. "No sistema straubiano, uma moda
so cotidiano - a imagem de televisão, o ci- retrô é simplesmente impossível: tudo está
nema produzido em escala industrial, a pu- no presente"15. E ancorar os filmes no pre-
blicidade - aparecem e desaparecem numa sente é, como diz Daney, "levar a sério a
tal rapidez que não temos tempo nem para heterogeneidade ffimica", é mostrar que
analisá-las nem para memorizá-las, e me- uma imagem só é possível ali, e não em
nos ainda para aprender a fabricá-las, uma outro lugar.
vez que a aprendizagem não é o seu objeti- Uma imagem ensina na medida em que
vo. O que se espera então de uma práxis do ela, tanto do ponto de vista formal quanto
audiovisual na educação é uma contraparti- de conteúdo, veicula um pensamento, en-
da a essa estética comercial, ou seja, uma corajando assim o pensamento no espec-
produção de imagens que considere o tem- tador. Em vez de se questionar sobre a
po da reflexão, da assimilação do saber, da imagem ou em torno dela, Jacques
consolidação da memória e que, assim fa- Aumont propõe um questionamento dire-
zendo, nos descortine o mistério da realiza- to à imagem, pois ela tem um pensamen-
ção plástica de uma moral, de uma ética. to a transmitir. Pensar com imagens e sons
é fazer frente ao modo hollywoodiano e
,
E didático o material televisivo de produção, é fazer do cinema
ou do vídeo um ato de resistência. Jean-
audiovisual que ensina o Luc Godard, apesar de ser um dos cineas-
espectador a resistir h estética tas mais fortemente ligados 2 técnica, diz
dominante. construindo um que "um pensamento que se entrega ao
pensamento crítico em relação ritmo de suas mecânicas se proletariza" e
que "a verdadeira condição do homem é
ao PróPrio meio utilizado no pensar com suas mãos7316. Pensar com as
processo educativo. próprias mãos é, de acordo com o cineas-
ta, um ato eminentemente artesanal que
Em seu estudo sobre os filmes de Jean- garante a propriedade, a autoria do que se
Marie Straube Danielle Huillet, Serge Daney produz. E um cinema assim produzido ten-
mostra que a pedagogia desses cineastas con- de a gerar um Pensamento "perigoso Para
siste em "alojar discursos de resistência nos O pensador e transformador do real"17. Pe-

14. Ver DANEY, Serge. Un tombeau pour l'oeil (pédagogie straubienne). (Um túmulo para o olho - pedagogia
straubiana.). La rampe. (A rampa.) Paris: Cahiers du cinéma, 1996 (1983). p. 82.
15. DANEY, Serge. Un tombeau ...op. cit. p. 79.
16. GODARD, Jean-Luc. Histoire(s) du cinéma-4. op. cit. p. 45.
17. DANEY, Serge. Un Tombeau ...op. cit. p. 79.
Comunicação & Educação, São Paulo, (21): 29 a 36, maiolago.2001

rigoso e transformador porque retira o pro- gar porque nela, segundo Daney, "é possí-
duto do trabalho, no caso as imagens, do vel reter um máximo de pessoas o maior
contexto mercadológico da relação de tro- tempo possível". Outra vantagem da esco-
ca, restituindo-lhe seu valor de uso. la em relação ao cinema: "nela não é preci-
so adular os alunos", que estão lá para tra-
Se a sociedade de mercado balharI9.O espectador de Godard tem que
trabalhar para que o filme seja concluído.
recusa uma verdadeira entrada A força de Godard, diz Deleuze, "não está
do cinema na escola, tragamos somente em utilizar esse modo de constru-
então a escola para dentro do ção em toda a sua obra (construtivismo),
cinema, transformando-o numa mas em fazer da construção um método a
partir do qual o cinema deve se interrogar
escola marginal. É o que ao mesmo tempo que ele o utiliza"20.
propõe Godard. A criação de imagens audiovisuais a
baixo custo por televisões comunitárias,
Nesse sentido sua obra se encontra bem cineastas independentes, pequenas produ-
mais próxima de uma pedagogia revolucio- ções populares, universitárias ou escola-
nária do que muitos filmes ditos educativos. res, e mesmo o filme de família, podem
ser armas eficazes nessa "guerra das ima-
Desde o final dos anos 60, Godard vem gens" na qual inevitavelmente entramos
produzindo filmes que funcionam como quando iluminamos o audiovisual com
aulas, filmes que são verdadeiros cursos de uma práxis pedagógica (e com certeza, a
política (Lu chinoise -A chinesa -, 1967), situação precária do cinema na educação
de educação sexual (Numéro deux - Nú- nacional se deve também a uma recusa do
mero dois -, 1975), de roteiro (Scénario sistema de ensino a entrar nessa guerra).
du$lm "Passion " - Cenário do filme "Pai- Na escolha dos filmes a serem analisa-
xão" -, 1982), de história (Histoire(s) du dos com nossos alunos, podemos procurar
cinéma, 1988- 1998). A pedagogia lições de didática no cinema experimental,
godardiana consiste desde então em subs- no documentário e em várias outras práti-
tituir o cinema pela escola, a fruição passi- cas cinematográficas que nos fazem dádiva
va do espectador pelo trabalho ativo do alu- de um saber sobre a imagem.
no: "a escola é o bom lugar, aquele onde se Da mesma forma que os grandes filmes
fazem progressos e de onde se sai, neces- foram possíveis a partir de um pacto es-
sariamente, enquanto o cinema é o mau crupuloso com o mundo filmado, é preciso
lugar, aquele onde se regride e de onde não também abordá-los à escuta de eventuais
se sai"18. A escola é vista como o bom lu- ensinamentos, fazendo com eles um pacto

18. DANEY, Serge. Le théorisé (Pédagogie godardienne). (A teorização: pedagogia godadiana) La Rampe. (A ram-
pa.) op. cit. p. 87 e 91.
19. DANEY, Serge. Le théorisé op. cit.
20. DELEUZE, Gilles. Zrnage-temps. (Imagem-tempo.)Paris: Editions de Minuit, p. 234. Na acepção deleuziana, o
constmtivismo é um método que "exige que toda criação seja uma construção num plano que lhe dê uma existência
autônoma". Cf. GUATTARI, Félix et DELEUZE, Gilles. Qu'est-ce que la philosophie. (O que é a filosofia.) Paris:
Editions de Minuit, 1991. p. 12.
Da imagem pedagógica a pedagogia da imagem

de aprendizagem, de descoberta: "ser in- superfície onde a verdade pode inespera-


ferior ao objeto sobre o qual falamos é a damente se imprimir, à revelia de nossa
exigência mínima e primeira, sem a qual intenção (pedagógica ou outra). Fora
o objeto não vale nada"21. Da mesma for- isso, fora as imagens visionárias que
ma que os grandes cineastas, é preciso que sabem nos mostrar o invisível, o cine-
o educador seja uma espécie de visioná- ma, como diz Godard, é uma indústria,
rio, aquele que, literalmente, vê. Como uma grande e poderosa indústria onde
Godard, por exemplo, que quer ver um o ato pedagógico, essencialmente
roteiro, antes de escrevê-lo, comparando minoritário e de resistência, não tem
a tela do cinema ao santo sudário, uma lugar de ser.

Resumo: A autora discute a necessidade de (From teaching image to image teaching)


se estabelecer um diálogo com as grandes
obras cinematográficas e produzir filmes e Abstract: The author discusses the need to
vídeos educativos que sejam eles próprios um establish dialogue with the great movies and
espaço de aprendizagem sobre a imagem em produce educational films and videos that in and
movimento. O artigo salienta que, via de re- of themselves are a learning space on images in
gra, a educação vem se apropriando da ima- movement. The article highlights the fact that,
gem em movimento como quem busca uma largely, education has been appropriating itself of
tecnologia suplementar para a sustentação images in movement as if it were in search of a
de processos educativos já existentes, sem supplementary technology to sustain the
que estes sejam transformados na sua essên- educational processes that already exist without
cia a partir do contato com aquele novo objeto. such images being transformed, in their essence,
Quando muito, professores de Português ten- based on the contact with the new object.
tam, através da literatura comparada, fazer Sometimes,teachers of the Portugueselanguage
uma ponte com o cinema. Mas são iniciativas do try, using comparative literature,to bridge over
localizadas, que infelizmentenão conseguiriam, to cinema. But these are localized initiatives,which
por exemplo, dar conta da dimensão ao mesmo unfortunately have been unable, for example, to
tempo ética e estética que encerra a questão account for the dimension that is both ethical and
"o que é uma imagem?". Para a autora, en- aesthetical that could answer the following
quanto não se puder responder a esta questão question: 'What is an image?" To the author, as
simples, mas fundamental, estaremos conde- long as it is not possible to answer this simple, but
nados ao analfabetismo visual, a políticada boa fundamental question, we are condemned to vi-
intenção, fazendo da imagem uma utilização sual illiteracy, to the policy of good intentions,
pedagógica, certo, mas sem que isso nos leve turning images into a proper teaching tool, but
a uma verdadeira práxis do audiovisual ou without this leading us to a true praxis of
do cinema, uma práxis que questionaria a pe- audiovisualor cinema, a praxisthat would question
dagogia da própria imagem. the image's teaching capabilities.

Palavras-chave: pedagogia da imagem, ima- Key wods:image teaching, image and education,
gem e educação, cinema e educação cinema and education

21. AUMONT, Jacques. Mon cher objet. op. cit.

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