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AS NEGOCIAÇÕES COMERCIAIS NO GOVERNO LULA

JOÃO PAULO CÂNDIA VEIGA

O objetivo do presente trabalho é avaliar a política internacionais, especificamente no que se refere à


comercial brasileira nos dois primeiros anos do Governo formação de coalizões. A premissa é a de que o
Lula. O recorte empregado está circunscrito ao que a contorno mais definido dos grupos de interesse
literatura chama de análise de política externa, posicionados contra a Alca, aliado a uma mudança
especificamente no campo da política de comércio na orientação governamental ,1 tornaram a integração
internacional. Nesse caso, acompanha-se os com os EUA o “patinho feio” das negociações do
movimentos do governo brasileiro no âmbito das Governo Lula.
negociações comerciais internacionais, ou seja, busca-
Ao mesmo tempo, a configuração de poder formada
se discutir o processo de tomada de decisão à luz dos
ao redor da agroindústria encontrou no Governo Lula
constrangimentos e possibilidades colocadas às
maior disposição para enfrentar os subsídios agrícolas
autoridades brasileiras nas diferentes mesas de
dos países desenvolvidos. A cautela do Governo FHC
negociação.
deu lugar a atitudes mais agressivas e de interesses
De maneira geral, o Governo Lula tem sinalizado, nas melhor definidos, em âmbito doméstico. Como
negociações comerciais, uma continuidade com os resultado, sugere-se que o Governo Lula, além de
eixos centrais da política econômica externa do Brasil alargar o processo decisório no que diz respeito às
herdada dos governos pós-abertura comercial no início escolhas em matéria de política comercial, pode ter
dos anos 90. Nesse aspecto, destaca-se a tradicional contribuído para a organização dos setores
prioridade conferida às negociações multilaterais, e interessados.
uma aposta inequívoca no sentido estratégico do
A segunda trata da contribuição do governo para o
Mercosul (e da integração regional na América do
avanço das negociações multilaterais da OMC depois
Sul), a despeito do aumento da fragilidade do bloco.
de Cancun. A decisiva participação brasileira para o
Ao mesmo tempo, percebe-se uma sensível mudança
fechamento do Framework Agreement em julho de
na hierarquia das agendas de negociação hemisférica
2004 aumentou o cacife do Brasil na construção de
e inter-blocos. Ao contrário do Governo FHC, há uma
consensos e manteve o G-20 em evidência. No
manifestação de preferência explícita pela integração
entanto, a consolidação dessa coalizão depende de
Mercosul-UE em detrimento da Alca.
como será definida a eliminação dos subsídios
Um balanço preliminar acerca dessas negociações agrícolas em uma agenda positiva a ser aprovada na
merece três ordens de considerações. A primeira diz reunião ministerial da OMC em Hong Kong. Além
respeito à dimensão doméstica das negociações disso, a coesão do G-20, até o momento bastante

João Paulo Cândia Veiga é doutor em Ciência Política pela USP, 1


Refiro-me às mudanças no plano retórico com a maior politização de
pesquisador do Caeni (Centro das Negociações Internacionais) e temas da agenda internacional, e na preferência explícita pela negociação
professor de Relações Internacionais da PUC-SP. com a UE em detrimento da Alca.

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resistente à pressão norte-americana, deve ser posta
à prova com a discussão de outros temas onde o Além de alargar o processo decisório
consenso é mais difícil de ser alcançado.
de escolhas em matéria de política
A terceira faz algumas observações a respeito do eixo
Mercosul-UE, processo de negociação inédito entre comercial, o Governo Lula pode ter
dois blocos. Nesse caso, a obrigatoriedade de ofertar contribuído para a organização dos
concessões em torno de temas muito sensíveis como
subsídios e compras governamentais contribuiu para setores interessados
o engessamento das posições. A utilização de
recursos táticos discutíveis (fatiamento da agenda
sem proposta geral, falta de transparência) não
ajudaram. A contaminação da agenda interblocos
pelas negociações multilaterais bem como o De fato, para que ela pudesse trazer efeitos benéficos
processo aberto pelo Brasil contra a UE no OSC às mesas de negociação era preciso uma estratégia
(Órgão de Solução de Controvérsias) da OMC, a mais acabada acerca das ofertas do Brasil-Mercosul,
respeito dos subsídios ao açúcar, não facilitaram as das possíveis concessões, e dos objetivos a serem
negociações. Por fim, o aumento da fragilidade do alcançados no processo de barganha entre EUA e
Mercosul se fez presente na mesa de negociações UE. As possibilidades de barganha em uma mesa
na discussão de vários temas. com os olhos voltados à outra estavam dadas pelo
timing entre as duas negociações. Os cronogramas
AS VANTAGENS DA SIMULTANEIDADE de ofertas do setor privado para a UE e para os EUA
NÃO SE CONFIRMARAM eram praticamente os mesmos.2 Ademais, havia
certa expectativa, partilhada por governos e pelo setor
Quatro idéias circularam no segundo Governo FHC, privado, de que uma negociação puxava a outra, ou
expressão de certo otimismo entre as elites políticas seja, as possibilidade de melhoria em relação a
e empresariais, acerca da margem de manobra acesso a mercados em uma mesa calibrava os
disponível para o presidente empossado em 2003 no objetivos e concessões na outra.3
que se refere às negociações comerciais internacionais:
No caso específico da Alca, a dificuldade em alcançar
1. a simultaneidade das mesas de negociações
o conceito de “equilíbrio” nos temas em negociação,
aumentaria o cacife brasileiro junto aos países
esteve presente nos governos FHC e Lula. O equilíbrio
desenvolvidos – Os EUA e a UE fariam maiores
refere-se à troca entre a oferta do Brasil em áreas
concessões para garantir o Brasil na Alca e no bloco
consideradas sensíveis e avanços na negociação da
Mercosul-UE; 2. ficaria para o próximo presidente
agricultura. Como os EUA querem tratar o tema dos
colher os eventuais resultados positivos da
subsídios agrícolas na OMC, a negociação da Alca teria
negociação da Alca com a co-presidência dividida
entre o Brasil e os EUA, e no acordo de livre-comércio
Mercosul-UE; 3. avançar-se-ia na luta contra os 2
No final de 2002, às vésperas da VII Reunião de Cúpula Ministerial da
Alca, o setor empresarial brasileiro se movimentava para apresentar suas
subsídios agrícolas nas negociações da Rodada Doha primeiras propostas (com listas de produtos). O cronograma de entrega
de propostas pelo setor privado era praticamente o mesmo para a Alca e
que continuaria a balizar os limites e obrigações do para a UE. Naquele momento, a decisão do Governo FHC foi deixar a
Brasil nos planos regional e bilateral e; 4. O tarefa de apresentar as ofertas para o novo governo eleito, isto é, as
eventuais propostas fechadas pela Coalizão Empresarial foram
“relançamento” do Mercosul, supostamente fortalecido apresentadas à equipe de transição do Governo Lula, processo conduzido
pelo então ministro Celso Lafer (ver Lívia Ferrari, Gazeta Mercantil, 30 de
pelas eleições presidenciais no Brasil e na Argentina, outubro de 2002.).
seria o ponto de partida comum para as demais 3
As possibilidades de a criação da Alca levar a UE a perder espaço no
Mercosul foi sugerida pelo presidente FHC ao primeiro-ministro francês,
negociações internacionais. Lionel Jospin em abril de 2001 (ver Reali Jr., O Estado de S. Paulo, 30 de
abril de 2001). Na perspectiva do setor privado, ao contrário, um avanço
nas negociações Mercosul-UE poderia colocar as empresas americanas
Passados mais de dois anos do novo governo, a maior em desvantagem no comércio com o Brasil. Por exemplo, um acordo
automotivo com os europeus baseado em cotas reduziria os impostos
parte dessas expectativas não se confirmou. A idéia para as montadoras com sede na Europa, o que diminuiria a competitividade
de que a simultaneidade, por si mesma, traria dos automóveis americanos no Brasil-Mercosul (ver Geraldo Samor, The
Wall Street Journal Americas, reproduzido por O Estado de S. Paulo, 15 de
vantagens ao Brasil acabou se mostrando ingênua. abril de 2004.).

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um dos responsáveis pela articulação política do
A criação do G-20, em continuidade G-20”. Dessa forma, segundo destacado negociador
brasileiro em Genebra, “ao permitir a participação
à estratégia negociadora definida no
mais decisiva dos países em desenvolvimento no
Governo FHC, é o resultado mais núcleo da negociação, o G-20 criou uma nova matriz,
um novo paradigma para a tomada de decisões na
importante do Governo Lula no
OMC”. 8 Na visão do ministro Celso Amorim, esse
cenário internacional na primeira novo “paradigma” teria modificado o processo de
tomada de decisão no interior da OMC: de uma
metade de seu mandato negociação centrada no “presidente de uma
comissão ou de um conselho e os [representantes]
dos grandes países, para uma negociação com a
participação efetiva dos principais interlocutores, algo
ficado desequilibrada, o que explica a atual posição que só ocorreu por causa do G-20”.9
brasileira. Ocorre que congelar a Alca significa, em
grande medida, tirar da agenda a negociação comercial MERCOSUL É PARTE DO PROBLEMA
com os EUA. Esse aspecto da política comercial do
Governo Lula tem sido alvo de críticas de setores Paradoxalmente, no caso do Brasil e da Argentina, a
empresariais importantes que enxergam nessa posição combinação de governos supostamente “de
uma possibilidade perdida de melhorar o acesso dos esquerda”, teoricamente comprometidos com uma
produtos brasileiros ao mercado americano.4 estratégia regional de “relançamento” do Mercosul,
No caso da UE, a disputa em torno dos subsídios não se concretizou. A retórica do “relançamento” vem
agrícolas no âmbito multilateral contaminou a sendo utilizada desde a desvalorização do real em
negociação intrabloco e acabou jogando os dois janeiro de 1999 quando os limites da agenda da
lados em uma barganha posicional da qual não houve integração regional ficaram evidentes em razão das
saída possível até 31 de outubro, momento em que assimetrias macroeconômicas. Desde então, o
terminava o mandato dos comissários europeus Mercosul continua padecendo das fragilidades
envolvidos na negociação.5 Parte das dificuldades estruturais10 que marcaram seus dez anos de vida.
na condução das negociações com a UE deveu-se Chama a atenção o fato de o período Lula ser marcado
à divergência entre Brasil e Argentina em diferentes pela ascensão de uma nova onda de conflitos
temas da mesa de negociações.6 comerciais com a Argentina. Esses conflitos, sempre
Ao mesmo tempo, o Brasil mostrou grande presentes na agenda de negociação entre os dois
capacidade de negociação multilateral ao contribuir países, principalmente depois da desvalorização do
decisivamente para destravar a agenda da Rodada real em 1999, ganharam uma dimensão mais
Doha, em agosto de 2004. O Brasil, no âmbito do dramática. Parte dessa sensibilidade é resultado da
G-20, articulou a “construção de consensos”7 e “foi forma como o Governo Kirchner vem lidando com os
conflitos. A maior parte deles foi incorporada à agenda
de política econômica externa do governo argentino
4
Os EUA são os maiores compradores de produtos manufaturados do
Brasil. de forma automática, quase sem mediação. Em
5
As negociações continuam depois desta data mas a nova Comissão
Européia, empossada em novembro de 2004, certamente vai sofrer uma
inflexão em seu posicionamento ante a negociação com o Mercosul. O
ingresso dos dez países do Leste europeu deve reorientar a formação das 8
Entrevista do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Zero Hora,
preferências e dos interesses europeus com reflexos significativos para 02/01/2005.
a negociação inter-blocos. 9
Entrevista com o ministro Celso Amorim, revista Carta Capital, ano XI,
6
Um dos mais salientes foi a discussão a respeito das cotas de veículos número 330, 28 de fevereiro de 2005.
automotores oferecidas pelo bloco aos europeus. Voltou à tona um dos 10
O dilema entre a organização do bloco em uma área de livre-comércio
maiores conflitos comerciais do Mercosul, nunca resolvido, qual seja, as ou uma união aduaneira, as divergências entre os modelos de política
diferentes políticas industriais direcionadas à indústria automotiva pelos externa adotados pelos governos Menem e Collor no início dos anos 90,
dois governos. a ambigüidade entre o intergovernamentalismo e a institucionalidade, e
7
“Ninguém duvida de nosso compromisso com o sistema multilateral de as enormes assimetrias macroeconômicas e setoriais (e a inexistência
comércio e todos apreciam a capacidade do Brasil de construir consensos”. de mecanismos para dirimi-las), podem ser vistos em Janina Onuki,
Entrevista com o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Zero Hora, “O Mercosul enfrenta Brasil e Argentina”, artigo publicado no jornal Valor
02/01/2005. Econômico, 13-15 de novembro de 2004.

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outras palavras, o presidente Kirchner assumiu a “linha
de frente” da relação com o Brasil, potencializando Os conflitos, sempre presentes na
as pressões dos setores econômicos prejudicados
agenda Comercial de negociação entre
com as importações brasileiras. Essa dinâmica
reforçou os grupos de interesse contrários à estratégia Brasil e Argentina, ganharam dimensão
de integração regional em ambos os países e passou
a sensação para a opinião pública de que o Mercosul
mais dramática pela forma como o
está irremediavelmente comprometido. governo Kirchner vem lidando com eles
Um aspecto pouco abordado para a avaliação do
Mercosul diz respeito à (não) posição brasileira em
relação ao default argentino, adotado no final de 2001,
em meio à crise política que resultou na eleição do que condicionaram o Governo FHC em início de seu
presidente Kirchner alguns meses depois. Segundo segundo mandado depois da desvalorização do real.
essa interpretação, o Governo Kirchner estaria No caso de Lula, uma crise de confiança generalizada
descontente com o baixo perfil do Governo Lula quando submeteu o governo, em seus primeiros meses, à
o assunto é a governabilidade dos fluxos financeiros forte pressão dos indicadores macroeconômicos
internacionais. Com uma posição de confronto com o (desvalorização do real, expectativa de elevação de
FMI, e com os demais credores da dívida externa, a juros, incerteza sobre a balança comercial, etc.).
movimentação do governo argentino contrasta com o
Ao menos no plano da retórica, o Governo Lula impõe
suposto conservadorismo da política econômica
uma mudança de ênfase sobre os issues da agenda
brasileira. O governo brasileiro, incluindo suas
econômica internacional, em sentido mais amplo do
autoridades lotadas nos cargos do FMI em Washington,
que a discussão da política comercial. Em geral, pode-
não teria feito o que lhe cabia, em razão de sua liderança
se dizer que o governo dá continuidade à política de
regional, para apoiar a posição argentina e enfrentar o
FHC com um discurso mais politizado e com uma
governo americano. O resultado disso é o silêncio das
hierarquia baseada nas seguintes variáveis: 1. de forma
autoridades brasileiras, o que teria irritado o governo
mais incisiva, acentua-se a insuficiência da globalização
argentino. Se essa variável for verdadeira, ela ajuda a
como remédio “para os problemas do desenvolvimento
entender o atual distanciamento entre os dois governos
e a superação da pobreza”; 2. a necessidade do
e as dificuldades presentes do Mercosul.11
crescimento econômico vir acompanhado de uma
agenda para o desenvolvimento social;12 3. um recorte
AS PEÇAS SÃO AS MESMAS mais “Sul-Sul” para a diplomacia presidencial com
MAS HÁ NOVA HIERARQUIA implicações para a política comercial;13 e 4. a utilização
de programas de governo, de forma mais explícita, como
Assim como aconteceu com o segundo mandato de
recurso de poder (principalmente na relação com
FHC, o Governo Lula iniciou 2003 diante de um grande
organismos internacionais)14 são algumas variáveis que
desafio, no âmbito da agenda de política econômica
organizam o tabuleiro de forma diferente sem mexer,
externa, qual seja, o de enfrentar simultaneamente
necessariamente, em suas peças.
quatro mesas de negociação com graus variados de
interdependência e hierarquia: as negociações pós-
12
“Inserção global do Brasil: OMC, Mercosul, Alca, Zona de Livre Comércio
default com a Argentina (Mercosul), bloco a bloco com do Brasil com a União Européia”, Palestra do ministro Celso Amorim,
a UE, com os EUA na Alca e para a definição da agenda pronunciada pelo ministro interino, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães,
no XV Fórum Nacional, 21 de maio de 2003, Brasília; Política Externa,
da Rodada Doha no plano multilateral. É bom v.12, n. 02, setembro/outubro/novembro de 2003.
13
A principal implicação comercial é o maior distanciamento/independência
considerar que, da perspectiva brasileira, o governo dos tradicionais parceiros comerciais do Brasil, fundamentalmente os
se inicia em condições adversas, similares àquelas Estados Unidos, e uma aproximação com países do Terceiro Mundo,
principalmente do Oriente Médio e da África.
14
Vale mencionar o programa Fome Zero, a proposta do Software Livre,
11
“Foi um grande erro diplomático o Brasil não ter sido solidário com a única e os esforços para equilibrar o respeito às patentes com o atendimento à
posição possível para a Argentina. O governo brasileiro teve medo de que saúde pública. Nesse campo, ganhos obtidos no Governo Lula foram a
a crise do vizinho nos contaminasse e manteve-se distante. Isso terá fundamental participação brasileira para o fechamento do Acordo sobre
repercussões negativas, de longo prazo, no Mercosul” (Rubens Ricupero, Medicamentos Genéricos, divulgado no final de agosto, cerca de duas
revista Carta Capital, ano XI, número 332, 09 de março de 2005.). semanas antes do início da reunião ministerial de Cancun (2003).

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principais opositores ao ingresso dos então
Pode-se dizer que o governo chamados “novos temas” (investimento, propriedade
intelectual e serviços) no âmbito multilateral de
dá continuidade à política de FHC
comércio. Mais tarde, fecharam posição contra os
com um discurso mais politizado temas do meio ambiente e de padrões trabalhistas.
O importante aqui é notar que essa aliança vem
e com uma hierarquia baseada ganhando densidade desde o lançamento da Rodada
em algumas variáveis Doha em novembro de 2001.

Durante o segundo mandato de FHC, o governo


implementou uma política de combate à AIDS que
se transformou em modelo para a ONU. Com ela o
país desenvolveu um programa para a indústria de
Há também contribuições originais do Governo Lula
medicamentos genéricos, cujo principal objetivo era
que merecem uma consideração à parte.15 A principal
reduzir os gastos com a compra de retrovirais.
delas é a criação do G-20 – grupo de países em Para isso, era preciso pressionar os laboratórios
desenvolvimento organizado no âmbito das
multinacionais para que reduzissem os custos dos
negociações multilaterais da OMC. 16 Mesmo os
remédios, sob a ameaça de quebra da patente
críticos mais destacados da política exterior de Lula (licença compulsória concedida a outro laboratório).
reconhecem ser essa uma “válida aliança (...) para a
O Governo Lula foi adiante e definiu uma política
condução das difíceis e ainda indefinidas negociações
industrial focada no setor de medicamentos.
[multilaterais]”.17 De fato, o principal resultado aferido
pelo G-20 até o momento foi a decisiva atuação, em No plano internacional, a política de combate à AIDS
âmbito multilateral, para definir as diretrizes e princípios esteve baseada em uma interpretação discutível do
da agenda da Rodada Doha. Como se sabe, o acordo de Trips. A disputa basicamente estabelece
documento síntese foi consensuado em Genebra, em um conflito de interesses entre os laboratórios
julho de 2004, dez meses depois do fracasso da reunião farmacêuticos multinacionais, que buscam proteger
ministerial da OMC em Cancun. seus investimentos no desenvolvimento de
medicamentos, e os países pobres que precisam, a
A SUBSTÂNCIA DO G-20 curto prazo, oferecer remédios baratos para o combate
a doenças que ameaçam a saúde pública, como são
Há dois elementos a respeito do G-20 que ajudam a os casos da AIDS, da Tuberculose e da Malária.
entender os movimentos do Governo Lula na parte
Contudo, a política brasileira para o combate da AIDS
final de seu mandato. Em primeiro lugar, o núcleo
foi suficientemente bem-sucedida para conquistar
duro do G-20 é composto por Brasil e Índia. Na
grande apoio internacional e esvaziar o processo
realidade, há um revival desta aliança, muito presente
movido pelos EUA contra o Brasil, com base no acordo
ao longo da negociação da Rodada Uruguai do GATT
de Trips, no OSC da OMC. Ademais, ela aproximou
(1986-93). Naquele período, os dois países foram os
ainda mais o Brasil da Índia, o maior produtor mundial
de medicamentos genéricos e um país com uma vasta
15
Segundo o ministro Celso Amorim, além do G-20, as outras duas população portadora do vírus HIV.
contribuições do Governo Lula foram o programa Fome Zero e a criação
da área de livre-comércio sul-americana, revista Carta Capital, ano XI,
número 330, de 23 de fevereiro de 2005. Depois da vitória na OMC em 2001, a disputa continuou
16
São 20 países membros, todos do Mercosul, exceto o Uruguai. Segundo
o informe oficial do grupo, o G-20 foi criado em 20 de agosto de 2003, no na OMS e o Brasil e a Índia conseguiram que esse
período final de preparação da V Conferência Ministerial da OMC, realizada órgão das Nações Unidas manifestasse seu apoio à
em Cancun, entre 10 e 14 de setembro daquele ano (ver o website
www.g-20.mre.gov.br, acesso em 14 de abril de 2005). idéia de que a saúde pública está acima dos
17
Celso Lafer identifica em uma “movimentação mais abrangente do
tema Sul-Sul outra nota própria do governo Lula”. No entanto, Lafer interesses dos laboratórios. Depois disso, o mais
aponta certo desconforto com uma politização exagerada na afirmação difícil era conseguir um acordo multilateral sobre o
dos interesses do país, posicionamento cuja conseqüência poderia ser a
de “enrijecer o quadro internacional com uma nova polarização ideológica”, comércio de medicamentos genéricos, o que foi obtido
(A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira, Editora
Perspectiva. Segunda edição revista e ampliada, São Paulo, 2004). três semanas antes da reunião de Cancun em 2003.

14 RBCE - LATN
Nessa fase, o Governo Lula começa a utilizar de forma pontuais estabelecem um padrão de inserção
mais explícita e incisiva o programa brasileiro como internacional e, dessa forma, consubstanciam uma
um recurso de poder18 para dar conteúdo à aliança estratégia de inserção internacional? Até que ponto
com a Índia e a África do Sul. o G-20 é resultado direto dessa suposta estratégia?

FHC E LULA: UM NOVO PADRÃO CONCLUSÃO


DE INSERÇÃO GLOBAL?
O Governo Lula define os contornos políticos de uma
O segundo elemento levanta uma hipótese acerca estratégia internacional que tem início no governo
de um suposto padrão de inserção internacional do FHC. O G-20 é, até o momento, o resultado político
Brasil, no qual o G-20 é a roupagem política, a dessa estratégia. A real influência de suas lideranças
ossatura de ligação do país com outras nações em (Brasil, Índia, África do Sul e mais recentemente a
desenvolvimento. Nesse aspecto, há dois movimentos China), a coesão do grupo com a discussão de novos
concomitantes. De um lado, as políticas domésticas temas, e os desdobramentos para o sistema
estimulam os fluxos privados de comércio, tecnologia internacional desse movimento entre países em
e investimentos. De outro, sua projeção internacional, desenvolvimento são ainda questões sem resposta.
potencializada pelo apoio de agências e organismos De qualquer forma, a criação do G-20, em continuidade
multilaterais, ajuda a forjar consensos entre os países à estratégia negociadora definida no Governo FHC, é
em desenvolvimento e reforça a capacidade o resultado mais importante do Governo Lula no
negociadora do Brasil nos foros multilaterais. O G-20, cenário internacional na primeira metade de seu
dessa forma, é o resultado político desse processo mandato. „
que tem início no governo FHC.

Tal como a política para as patentes de medicamentos,


a hipótese levantada aqui para a compreensão de uma
suposta estratégia de inserção global adotada pelo
Brasil (governos FHC e Lula), no âmbito multilateral,
seguiria uma regularidade, um padrão de comportamento
com três elementos fundamentais:

1. O país desenvolve um (a) programa/política


doméstico(a) com grande visibilidade internacional.

2. Utiliza ao máximo sua capacidade de influência junto


aos organismos internacionais para forjar consensos
e projetar os programas/políticas.

3. O tema em discussão sempre resvala para um


problema global com claro recorte Norte-Sul, tendo
um inequívoco valor ético-moral como pano de fundo –
o que garante o apoio de ONGs e da opinião pública.

O caso das patentes farmacêuticas, o programa


O principal resultado aferido
Fome Zero e, mais recentemente, a discussão do
software livre são alguns exemplos de programas e pelo G-20 foi a decisiva atuação,
políticas domésticas que se encaixam na suposta
estratégia brasileira. Em que medida esses casos em âmbito multilateral, para definir
as diretrizes e princípios da
18
Na linguagem Neo-realista, o conceito de capability é entendido como
uma condição específica do país, da qual o Estado consegue projetar agenda da Rodada de Doha
influência na forma de um recurso de poder sobre os demais estados.

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