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A (des)utopia da liberdade e igualdade

Possibilidades de sentido para construção de jurisdições


constitucionais democráticas

Valéria Ribas do Nascimento e


Jose Luis Bolzan de Morais

Sumário
1. Considerações iniciais. 2. Do Estado
Liberal ao Estado Social “igualitário”: notas
sobre a jurisdição e o processo no caminho da
(im)perfeição democrática. 2.1. Apontamentos
sobre a liberdade e igualdade: a (des)utopia
conceitual nos Estados contemporâneos. 2.2. A
jurisdição e o processo: ressignificações demo-
cráticas e o constitucionalismo. 3. Da jurisdição
constitucional liberal à jurisdição constitucional
social: a (re)construção de sentido do constitu-
cionalismo. 3.1. A jurisdição constitucional e a
(re)definição do constitucionalismo. 3.2. Contra
um “Leviatã” global e as “virtudes cosmopo-
Valéria Ribas do Nascimento é doutoranda líticas” em/para jurisdições constitucionais
em Direito Público pela Universidade do Vale democráticas. 4. Considerações finais.
do Rio dos Sinos (UNISINOS); Mestre em Di-
reito Público pela Universidade de Santa Cruz Eles o chamam de Zé-Ninguém ou Homem Co-
do Sul (UNISC); Graduada em Direito pela mum. Dizem que esta é a alvorada do seu tempo, a “Era
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); do Homem Comum”. (...) Um médico, um sapateiro,
Professora de Direito Constitucional da Facul- um mecânico, ou um educador terá de conhecer suas
dade de Direito de Santa Maria (FADISMA) e deficiências se quiser realizar seu trabalho e com ele ga-
UNISINOS; Advogada. nhar a vida. Já há algumas décadas você vem assumindo
o controle, em todas as partes do mundo. O futuro da
Jose Luis Bolzan de Morais é mestre pela
espécie humana dependerá dos seus pensamentos e atos.
PUC/RJ, Doutor em Direito do Estado pela No entanto, seus mestres e senhores não lhe dizem como
UFSC/Université de Montpellier I e Pós-Doutor você realmente pensa e o que você relmente é; ninguém
em Direito Constitucional pela Universidade de ousa confrontá-lo com a única verdade que poderia
Coimbra; Coordenador e professor do PPGD/ fazer de você o senhor inabalável do seu destino.Você
UNISINOS; Procurador do Estado do Rio Grande é “livre” apenas sob um aspecto: livre da autocrítica
do Sul. Professor da UNILE – Lecce – Itália; Con- que poderia ajudá-lo a governar sua própria vida (...).
(Wilhelm Reich – Escute Zé-Ninguém!)
sultor da Escola Doutoral Túlio Ascareli – Roma
Tre e professor convidado das Universidades de
Roma “La Sapienza”, Roma Tre, Napoli e Saler- 1. Considerações iniciais
no. Pesquisador do CNPq, FAPERGS. Consultor
ad hoc do MEC/SESu/INEP, CAPES e CNPq. A temática deste trabalho, inicialmente,
Coordenador do Círculo Constitucional Euro- remete à questão da utopia. Palavra concei-
Americano (CCEUAM) e Membro Conselheiro tuada, por meio dos radicais gregos, como
do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ). um “não lugar” ou “lugar que não existe”,

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essa mesma definição pode adquirir di- mais preocupada em constatar a existência
ferentes interpretações, tanto em sentido de conflitos individuais do que em sanar
negativo como em sentido positivo. No conflitos sociais. Posteriormente, tenta-se
decorrer do texto é apresentada a ideia de demonstrar as modificações ocorridas nos
invenção da utopia, como uma perspectiva Estados do pós-guerra, momento em que se
relacionada ao permanente processo de desenvolve uma nova concepção do consti-
modificação (SOUZA, 2007). Por isso, tam- tucionalismo e da própria jurisdição. Nesse
bém se ressalta a “desutopia constitutiva” momento, ocorre uma maior tutela dos
(NEGRI, 2002). direitos fundamentais, alçados a pedestal
Na verdade, abordar os princípios da normativo dos Estados contemporâneos.
igualdade e liberdade é extremamente No item 2, pretende-se relacionar Esta-
complexo, tendo em vista não só a extensa do, jurisdição e o constitucionalismo visan-
bibliografia sobre o tema, como também do à (re)construção de sentido do Direito
as próprias pré-compreensões dos pesqui- Constitucional, atualmente imerso em um
sadores envolvidos. Dessa forma, como o inevitável processo global, que altera os
próprio título indica, busca-se demonstrar elementos constitutivos do próprio Estado
algumas possibilidades de sentido desses e, junto com isso, os elementos formadores
preceitos no decorrer da evolução estatal, do constitucionalismo. É desenvolvida
bem como trazer questionamentos sobre a uma abordagem em torno do pensamento
prevalência de um ou de outro no decor- de Canotilho, quando este refere sobre as
rer do tempo. Além disso, são elencadas Constituições civis e a necessidade de se
algumas alternativas para que prevaleça trabalhar com o que chama de intercons-
a democracia e, junto com ela, uma maior titucionalidade.
igualização social. Entre essas propostas Vale observar que o surgimento do
está a implementação de jurisdições consti- Estado de Direito Moderno coincide com
tucionais voltadas à efetivação dos direitos as ideias capitalistas e liberais; por esse
sociais. motivo, quando se trata da globalização
No item 1 se faz uma relação entre a econômica atual, da mesma maneira é
evolução do Estado Moderno, desde sua necessário se questionar sobre formas de
primeira versão absolutista, passando pelo se deter a exploração e a desigualdade
Estado Liberal, Estado Social até o Estado provenientes desse sistema.
Democrático de Direito. Por meio desses Assim, destaca-se a atuação do Poder
apontamentos é possível perceber como se Judiciário influenciado pelas “virtudes
alternavam as narrativas, a favor ou contra, cosmopolíticas”, ou seja, uma jurisdição
a prevalência de um ou outro princípio. constitucional voltada ao reconhecimento
Com Immanuel Wallerstein constata-se das diferenças, da tolerância e da harmo-
que tanto o liberalismo como a democracia nização, ressaltando a preocupação com a
foram utilizados como palavras-ônibus, igualização e inserção popular no processo
reunindo diversas cores partidárias (WAL- jurisdicional. Nessa linha de orientação,
LERSTEIN, 2002, p. 123). Com efeito, o são elencados alguns julgados que visam
que se verifica é o permanente processo demonstrar a necessidade de se preservar
de (im)perfeição dos Estados Iluminados a jurisdição constitucional dos Estados
pelo paradigma racionalista. nacionais.
Dessa maneira, desenvolvem-se alguns Desse modo, mesmo ressaltando que
passos sobre a história da jurisdição e do um dos motivos mais claros para que a
processo para tentar demonstrar os mo- liberdade não tenha levado à igualdade seja
tivos pelos quais, ainda hoje, prevalece a manutenção do paradigma racionalista
uma atuação jurisdicional declaratória, e iluminista do século XVII e XVIII, tanto

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pelas Instituições estatais como pela pró- De fato, quando aconteceu o momento
pria sociedade, pretende-se uma (re)leitura de ruptura entre a civilização e a barbárie,
sobre a jurisdição e o constitucionalismo, o que se percebeu foi a necessidade de se
na busca de possibilidades de sentido para enfrentar os novos dilemas sociais que
implementações sociais democráticas. surgiam ao longo do tempo. Por isso, o
modelo estatal não foi absoluto, ocorrendo
2. Do Estado Liberal ao Estado modificações paradigmáticas no decor-
Social “igualitário”: notas sobre a rer da história. Do Estado Absolutista se
jurisdição e o processo no caminho passou ao Estado Liberal; posteriormente,
da (im)perfeição democrática ao Estado Social até o atual Estado Demo-
Ao pensar a história da evolução do crático de Direito. Ocorre que o modelo
Estado, em seus diversos modelos de- estabelecido na Idade Moderna foi marcado
senvolvidos na modernidade, é possível por um relevante momento histórico, ini-
perceber um rompimento, a partir das ciado no século XVIII, que se denominou
teorias contratualistas, em que a política Iluminismo ou “século das luzes”. Na épo-
rejeita qualquer ideia de finalidade inata ca, predominou o progresso das ciências
ao Estado1. Este é produto definido pela matemáticas, da técnica e a emancipação
racionalização do poder que objetiva aten- das ciências humanas da filosofia. Mas,
der aos anseios de segurança, certeza e ao mesmo tempo, o Iluminismo produziu
previsibilidade exigidos pelas emergentes uma visão unilateral, pois estabeleceu que
sociedades de massa. a razão era a única explicação para as coisas
Cabe pontuar que falar de Estado2 sig- do universo (STEIN, 2006, p. 41).
nifica discorrer acerca das condições de É possível perceber que o desenvolvi-
possibilidade de sua compreensão desde mento do racionalismo iluminista tenta, de
seu nascimento até a contemporaneidade, todas as formas, buscar um modelo ideal
salientando-o como uma experiência mo- de Estado e, junto com isso, um conceito
derna, que se inaugurou na passagem do exato de Direito4. Uma das peculiaridades
medievo.3 do chamado sistema de direito escrito, ou
civil law5, é a implementação da teoria da
1
Salienta-se que este trabalho adota a concepção
de Estado baseada em Heller, ou seja, busca entender parte das teorias contratualisas lato sensu (BOLZAN
o Estado enquanto realidade, como formação histórica DE MORAIS; STRECK, 2006, p. 23-24).
a partir de suas ligações com a realidade social. Dessa 4
Para compreender nossa formação jurídica, é necessá-
forma, não é possível uma Teoria Geral do Estado, mas rio ter presente os vínculos existentes entre o sistema e as
apenas uma Teoria do Estado, daquele Estado concre- fontes européias que o alimentam, especialmente a herança
to, inserido em sua totalidade e realidade específicas que nos foi transmitida pelo direito ilustrado, de influência
(BOLZAN DE MORAIS; STRECK, 2006, p. 20). marcante no Direito moderno, cujos traços essenciais, no
2
Segundo Reinhold Zippelius (1997), a realida- entanto, podem-se encontrar nas fontes romanas (SILVA,
de do Estado não se esgota inteiramente com fatos 2004, p. 35).
insensíveis a valores, nem tampouco na projeção de 5
Há, no mundo ocidental contemporâneo, dois
um normativismo extremo com um sistema de normas principais sistemas de direito: o sistema continental e o
puro, alheio a todas as realidades sócias. da common law. O sistema continental tem como base
3
Antes do medievo, pode-se citar outras formas o estudo do direito romano, por meio da interpretação
estatais pré-modernas, entre elas: Oriental ou teocrá- do Corpos Juris Civilis, elaborado por determinação do
tica, Polis Grega, Civitas Romana, etc. Sublinha-se que imperador Justiniano (527 a 565 d.C.), no qual as regras
inúmeras teorias existem para explicar e justificar a de direito são vistas como regras de conduta geral,
origem do Estado. Além da vertente contratualista, sendo a principal fonte a lei escrita. Na common law, que
podem ser mencionadas outras perspectivas, tais abrange o direito inglês e aqueles que se organizaram
como a de Augusto Comte, em que a origem está a partir dele, como por exemplo, os EUA e Austrália,
na força do número ou da riqueza; outras correntes segue-se a regra do precedente. Nesta, o que se pre-
pscicanalíticas relatam que a origem do Estado está tende é solucionar um caso concreto e tomá-lo como
na morte, por homicídio, do irmão ou no complexo parâmetro para solução de outros casos. A principal
de Édipo. No entanto, o trabalho ora desenvolvido fonte do direito é a jurisprudência (DAVID, 1996).

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“separação de poderes”, com a substituição Essa mesma coletividade espera do
dos direitos costumeiros medievais pelo direito Estado normas que venham suprimir seus
produzido exclusivamente pelo Estado, ini- medos e temores. Ocorre que, quando se
cialmente pelos monarcas, depois pelo Poder discute sobre as funções do Estado, entre
Legislativo (SILVA, 2004, p. 35). Todavia, elas a função de elaborar leis e de julgar,
com o passar do tempo perceberam-se as necessariamente se fala dos homens, estes
deficiências de tal modelo. Conforme Franz é que atuam na realização do direito. Por
Kafka (apud SOUZA, 2007, p. 11-12): só há isso, Castanheira Neves (2000, p. 837-871)
um ponto fixo. É a nossa própria insuficiência. afirma que talvez a atual situação proble-
É daí que devemos partir. mática do direito encontra-se na busca do
Desse modo, é interessante trazer a me- sentido e de alternativas para o direito
táfora sugerida por Edson Luis André de enquanto direito. Dessa forma, quando se
Souza sobre a sapataria. Refere o autor que questiona sobre quais os fatores que contri-
entrar em uma sapataria talvez seja uma buíram para que a valorização da liberdade
das experiências mais fortes da imperfeição individual – princípio ovacionado durante
do mundo. Os sapatos fora de ordem, o ce- o Estado Liberal – não tivesse como conse-
nário precário e sublime resistindo à velocidade quência uma maior igualização, mas sim
do capital e das mercadorias, o pó e o cheiro da um aumento da desigualdade, na verdade,
graxa nos lembrando uma outra química do se indaga sobre uma rede complicada de
tempo. Naquele local surge a lembrança motivos existentes desde a primeira versão
que o corpo tem feridas e cicatrizes, que a do Estado de Direito.
vida é repleta de curativos, que os sonhos Nas palavras de Ovídio A. Baptista da
envelhecem e que inevitavelmente os obje- Silva, um dos fatos históricos reveladores do
tos estragam (SOUZA, 2007, p.12). vínculo entre Estado de Direito e capitalismo
A vida humana, e consequentemente a está na circunstância de ambos terem-se dado
evolução social e estatal, é cheia de tropeços simultaneamente. A passagem do medievo
que restauram a humanidade, muitas vezes ao Estado Moderno teve seu ponto de apoio
esquecida pela incessante razão iluminada no Direito. Esse é um detalhe a ser conside-
na busca da perfeição. Como pontua Jean rado no percurso da modernidade (SILVA,
Frémon (apud SOUZA, 2007, p. 12), a per- 2004, p. 304). Por isso, no decorrer do texto
feição é uma superfície muda que abandonou a serão apresentadas algumas colocações
vida, a perfeição é de um outro mundo na porta sobre o desenvolvimento do Estado de Di-
do qual está escrito: não se entra! reito Liberal, no qual prevaleceu, em tese,
Essa metáfora quer demonstrar que o o princípio da liberdade, até a emergência
paradigma racional e iluminista, que pre- do Estado Social que visa à igualdade
tendeu por meio da segmentação a busca como princípio basilar de sua estrutura.
da certeza, atualmente evidencia uma per-
da de sentido nas áreas do conhecimento, processos em curso com suficiente distanciamento.
como por exemplo: o Direito, a Sociologia, a O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1998, 2001),
um dos principais popularizadores do termo Pós-
Economia, entre outras, mas também acar- Modernidade, utiliza-o no sentido de uma forma pós-
retou um vazio existencial, o que leva à an- tuma da modernidade, preferindo ainda a expressão
siedade, ao stresse, entre outros problemas “modernidade líquida”, na qual tudo o que é sólido se
nos cidadãos que compõem a coletividade desmancha no ar. O filósofo francês Gilles Lipovetsky,
por sua vez, opta pelo termo hipermodernidade, por
da pós-modernidade6 (LIPOVETSKY, 2005, considerar não ter havido de fato uma ruptura com os
p. 65-78). tempos modernos, como o prefixo pós sugere. Segundo
Lipovetsky (2005, p. 65-78), os tempos atuais são mo-
6
O uso do termo pós-modernidade é controver- dernos, com uma exarcebação de certas características,
tido quanto ao seu significado e pertinência. Tais tais como o individualismo, o consumismo, a ética
correntes resultam da dificuldade de verificação dos edonista, a fragmentação do tempo e do espaço.

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Será demonstrado a seguir, tanto em um perceber que a relação entre o sonho e a
modelo como em outro, que a permanência realidade atual pode mesclar-se por meio
da (im)perfeição é uma constante; talvez da (des)utopia, que demonstra o incessante
somente ultrapassada pela invenção da processo de ir e vir: ir ao sonho, voltar à
(des)utopia. realidade, ir à realidade, voltar ao sonho.
A formação da sociedade atual, baseada
2.1. Apontamentos sobre a liberdade e totalmente na razão, por vezes, fez com que
igualdade: a (des)utopia conceitual nos se anestesiasse a imaginação. É assim que se
Estados contemporâneos desenvolveu o trabalho de todas as ideologias7,
A palavra utopia tem como um conceito na medida em que se pode conceituá-las como
comum a ideia de civilização perfeita. Pode mecanismos de interpretação e orientação da
referir-se a uma cidade ou a um mundo, práxis coletiva. Em outras palavras, formas
sendo possível tanto no futuro quanto no que aniquilam fundamentalmente o tempo. A
presente. A designação foi criada a partir crise busca recuperar parcialmente este tempo.
dos radicais gregos que designam um Ela surge como a força da esperança (SOUZA,
“não-lugar” ou “lugar que não existe”. 2007, p. 33).
Primeiramente, citada por Thomas More, Nesse sentido, Marc Jimenez evoca o
serviu de título para uma de suas obras princípio da esperança e sustenta que toda
para designar um lugar puro, onde existiria obra de arte teve e ainda tem uma janela utópica
uma sociedade ideal. A partir dessa ideia por onde podemos ver a paisagem no processo
pode-se fazer várias interpretações e extrair de constituição (SOUZA, 2007, p. 33). Toda
muitos significados. utopia coloca em discussão um desejo, as-
O desejo de utopia é apresentado pelo sim surge o termo desenvolvido por Roger
psicanalista Souza (2007, p. 30), em uma Dadoun: desejo de utopia (SOUZA, 2007, p.
perspectiva relacionada ao inacabado e à 33). Assim, movido pelo desejo de uma so-
permanente reinvenção. Com isso, o autor ciedade igualitária, Immanuel Wallerstein
quer demonstrar que, por meio da busca (2002, p. 137) afirma que, se a inclusão hoje
pelo ideal, mesmo aparentemente inatingí- é difícil, a exclusão é imoral.
vel, pode ser possível a criação e a invenção Entretanto, antes de mencionar algumas
de novas perspectivas para a sociedade. É (res)significações, atualmente, ocorridas
interessante observar que o mencionado com o princípio da liberdade e igualdade,
psicanalista cita Antonio Negri e a “desu- vale observar superficialmente certos as-
topia constitutiva”. pectos desenvolvidos ao longo da história
Negri (2002, p. 433-447) busca com o do Estado.
conceito de “desutopia constitutiva” se A visão do Estado na tradição contratu-
opor à autoridade perversa e moralista da alista mostra a instituição estatal como cria-
justa medida do sonho de cada um e do so- ção artificial dos homens, apresentando-o
nho coletivo. Mostra o inacabado processo 7
O conceito de ideologia e utopia é desenvolvido
constituinte e a abertura de projeto futuro. por Ovídio Araújo Baptista da Silva na obra Processo
Para o filósofo e cientista social italiano, e Ideologia. Citando Karl Mannheim, Silva afirma
a “desutopia constitutiva” é um conceito que, enquanto o pensamento ideológico identifica-se com
o passado que insiste em perenizar-se, a utopia procura
possível do poder constituinte, ou seja, a introduzir na realidade algo que seria desejável, porém ainda
utopia de um fracasso ou criação temporal inexistente, que o pensamento utópico imagina já realizado
que continua a alimentar um sonho. Romper na situação presente. Enquanto a ideologia contém um cariz
esta burocracia é fundamentalmente produzir essencialmente conservador, as utopias – distorcendo igual-
mente a realidade – têm sentido revolucionário. Segundo
novas metáforas. A utopia, neste sentido, tem Mannheim, qualquer situação histórica produzirá utopias,
que ser pensada dentro de uma química das pois a relação entre utopia e a ordem existente aparece como
metáforas (SOUZA, 2007, p. 33). É possível uma relação dialética (SILVA, 2004, p. 23).

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como um instrumento da vontade racional Essa intervenção estatal, basicamente,
dos indivíduos. Essa escola floresce no in- ocorre por meio do Direito caracterizado
tercurso dos séculos XVI a XVIII, sendo que pelo paradigma racionalista, sendo que,
a estrutura básica se dá pela contraposição nas palavras de Savigny, os juristas práticos
entre Estado de Natureza e Estado Civil, deveriam abandonar o exame dos casos
mediada pelo Contrato Social. Destaca-se concretos, dada a extrema complexidade
que o Estado Moderno é uma inovação, de que eles se revestem, subordinando-os
porque o poder passa para uma Instituição, a “regras gerais”. Conforme o autor, não
que possui um titular: o Estado, sendo o haveria remédio senão renunciar à sabedoria da
território, a nação, mais potência e autori- experiência, como já haviam preconizado os filó-
dade suas condições de existência. Ou, para sofos do Iluminismo, afastando-se cada vez mais
citar uma definição corrente e autorizada: o da realidade social (SILVA, 2004, p. 38).
Estado é composto por um ordenamento jurí- Entretanto, mesmo com esse exagerado
dico destinado a exercer o poder soberano sobre dogmatismo evidenciado acima, o Estado
um território, ao qual estão necessariamente de Direito Liberal apresenta-se como uma
subordinados os sujeitos a ele pertencentes evolução em relação ao modelo anterior
(MORTATI apud BOBBIO, 2003, p. 94). absolutista. Por meio do Direito e do desen-
Assim, na sua versão absolutista, o Es- volvimento do constitucionalismo, o poder
tado concentrava os poderes nas mãos do estaria limitado e possuiria uma subdivisão
monarca, o que permitia personificá-lo na em funções, bem como estariam tutelados
figura do rei. A centralização de poder foi os direitos e garantias fundamentais.
essencial para os propósitos da burguesia O mencionado modelo estatal se de-
no nascedouro do capitalismo, quando senvolveu, primeiramente, nos países que
esta, por razões econômicas, “abriu mão” iniciaram as revoluções liberais, como a
do poder político, delegando-ao soberano. França e os Estados Unidos. Isso levou
Todavia, na virada do século XVIII, essa Alexis de Tocqueville9 a viajar aos EUA no
mesma classe não mais se contentava em século XIX, para realizar pesquisas sobre
ter o poder econômico, queria também o a sociedade liberal americana. Ele pontua
político, até então privilégio da aristocracia. que uma das vantagens dos americanos foi
Assim, ocorreram as revoluções burguesas, o fato de a democracia ter chegado sem a
e, a partir delas, o surgimento de um Estado necessidade de revoluções democráticas,
de Direito Constitucional8, o qual visava a pois os americanos nasceram iguais, em
proteção dos direitos fundamentais indivi- vez de terem se tornado (TOCQUEVILLE,
duais e limitava o poder à Carta Maior de 2000, p. 124). Não havia a diferença entre
determinado Estado.
Segundo Matteucci, o constitucionalismo é cultura,
8
No tocante à recuperação histórica do Direito uma cultura com três dimensões: jurídica de liber-
dade; judicial de garantias e adjudicações; e política
Constitucional, salienta-se a obra de Nicola Matteucci
de mandatos, responsabilidades e controles. Se essas
intitulada Organización del poder y libertad. Este livro
características não estiverem presentes, não há cons-
traz um relato da história dos poderes, instituições,
titucionalismo, até poderá haver sistema jurídico,
agrupamentos e comportamentos políticos, explican- mas não constitucionalismo. Constitucionalmente,
do tanto o constitucionalismo histórico como o atual, não há acesso a poderes sem travessia de direitos e
estudando o passado para entender o presente. Desde não se pode dizer que um Estado é constitucional
seu início, o constitucionalismo caracteriza-se por simplesmente por pertencer a um tempo (MAT-
constituir, em determinado território, um sistema po- TEUCCI, 1998).
lítico, uma cultura jurídica e um sistema de liberdades 9
Não será objeto do presente trabalho aprofundar
antes do poder, de garantias antes da instituição, de a discussão sobre a obra de Tocqueville. Conforme
autonomia antes do agrupamento e de subjetividade Jon Elster (2001, p. 111), não se considera que Toc-
e prioridades antes do comportamento de participa- queville tenha sido uma figura muito importante no
ção. A história política guarda estreita relação com desenvolvimento das ciências sociais. Escreveu como
a liberdade, pois esta resulta da ação dos poderes. um historiador.

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nobres, aristocracia e burguesia. Igualmen- fraternidade. É possível conciliar liberdade
te, refere que o individualismo é de origem com igualdade? E quanto à fraternidade?
democrática, e ameaça desenvolver-se à medida Pergunta-se: fraternidade entre iguais ou
que as condições se igualam (TOCQUEVILLE, desiguais?
2000, p. 119). Na verdade, percebe-se que, no decorrer
Deve-se destacar o fato de que Tocque- do tempo, tanto o liberalismo como a demo-
ville, quando escreve que os americanos cracia são palavras-ônibus. Cada uma delas
nasceram iguais, não menciona a escra- recebeu múltiplas definições, frequentemente
vidão e grande discriminação racial que contraditórias. Wallerstein escreve que os
germinou já no início da história “democrá- dois termos têm tido entre si uma relação
tica” dos Estados Unidos. Com efeito, o que ambígua, principalmente quando começa-
o referido pesquisador quer dizer é que os ram a ser utilizados nos discursos políticos
homens que viviam nas eras aristocráticas modernos. Dessa forma, considera-os como
estavam ligados de uma maneira íntima a irmãos inimigos, que possuem uma rivali-
algo que estava posto, como por exemplo dade fraterna muito intensa; logo, repre-
a origem familiar. Isso os fazia esquecer, sentam iniciativas em direções diferentes
muitas vezes, seus próprios desejos e von- (WALLERSTEIN, 2002, p. 123).
tades. Nas eras democráticas, ao contrário, Castanheira Neves (2000, p. 51), citando
a dedicação para com os homens se torna Tocqueville, chega a afirmar que a igual-
cada vez mais rara. dade sem o correlativo da liberdade tem
Tocqueville menciona, várias vezes, sempre por resultado a entrega abdicante a um
a defesa da liberdade e igualdade, como poder-providência de que tudo depende e que,
valores essenciais aos americanos, ten- portanto, também tudo pode – é a raiz social
tando ressaltar as vantagens do sistema dos despotismos (...). Nas diferentes épocas
democrático que possibilita a tutela desses históricas, os irmãos permaneceram a se
princípios. Porém, nos EUA é difícil con- enfrentar, em constantes ciclos de disputa
ciliar os dois valores apresentados, sendo e aparente conciliação.
que se tem constatado uma prevalência da No século XVIII, cresceu o ideal liberal,
liberdade, mesmo com o desenvolvimento em que a autonomia da vontade e de pos-
das ações afirmativas e políticas envolvendo a sibilidades criadas pela capacidade de cada
discriminação positiva10. indivíduo deveria prevalecer. Porém, com
Essa discussão em torno da perma- o passar o tempo, as necessidades sociais
nência ou não de políticas afirmativas nos foram sendo alteradas, levando, no século
EUA remete à complicada relação entre os XIX, à consequente mudança do Estado
princípios basilares da revolução francesa Liberal para o Estado Social.
do século XVIII: a liberdade, igualdade e Entre os principais aspectos que oca-
sionaram essa nova transição, pode-se
10
O debate em torno da igualdade formal e ma- citar: motivos de ordem econômica, em
terial envolve intensas divergências que giram em
torno da possibilidade de que as funções estatais es-
razão de a liberdade de mercado propi-
tabeleçam determinadas diferenças para que se atinja ciar o surgimento de economias de escala
a igualdade material. Isso remete à questão da reserva que favoreciam posições monopolísticas;
de vagas sociais, raciais, para deficientes físicos, etc. as crises cíclicas do mercado capitalista
A discriminação positiva surgiu nos Estados Unidos
na década de 60 para combater a diferença entre os que aprofundavam as diferenças sociais;
brancos e negros. Entretanto, atualmente, muitos presença de efeitos externos à produção:
advogados americanos temem que a Suprema Corte poluição, congestionamento, esgotamento
reconsidere seu veredito no processo Bakke, no qual se
dos recursos naturais; consequências de
decretou que as preferências raciais são permissíveis
se sua finalidade for aumentar a diversidade racial ordem política, por meio da luta pelos
entre os alunos. (DWORKIN, 2005, p. 581). direitos fundamentais (desenvolvimento

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das teorias socialistas); destruição e medo ram ao conceito de aristocracia, mas à ideia
ocasionado pelas guerras, etc. (BOLZAN de status definido pela origem genética. Daí
DE MORAIS; STRECK, 2006, p. 73-74). que é defendido o termo meritocracia, como
Com isso, ocorreu uma maior interven- um conceito igualitário, porque aberto a
ção no domínio econômico. Da propriedade todos. Isso pode evidenciar uma máscara
privada dos meios de produção passou a perniciosa, já que por meio de um discurso
viger a função social da propriedade; da universalista se objetiva manter os padrões
liberdade contratual passou-se ao diri- de hierarquia e desigualdade social (WAL-
gismo contratual. No entanto, o alicerce LERSTEIN, 2002, p. 128-132).
básico do Estado Liberal se manteve, ou Liberais e democratas destoaram fre-
seja, a permanência da separação entre tra- quentemente uns dos outros, defendendo
balhadores e os meios de produção, o que temas profundamente diversos. Os liberais
gerava mais-valia da apropriação privada não apenas dão prioridade à liberdade; eles se
pelos detentores do capital (BOLZAN DE opõem à igualdade, pois se opõem vigorosamente
MORAIS; STRECK, 2006, p. 75). a qualquer conceito medido em função do resul-
Ainda, na passagem para o Estado tado. Wallerstein (2002, p. 132) acresce que,
Social destaca-se um aumento das atribui- enquanto o liberalismo é a defesa do gover-
ções do Poder Executivo e diminuição do no racional, baseando no julgamento infor-
Poder Legislativo, devido à necessidade de mado dos mais competentes, a igualdade
imediatidade de medidas econômicas para se apresenta como um conceito nivelador e
regular o mercado. Ademais, foi derrogado extremista (WALLERSTEIN, 2002, p. 132).
o voto censitário pela pressão das massas Contudo, os democratas não se opõem à
excluídas, o que causou um aumento das liberdade, mas, sim, afirmam que só pode
propostas políticas a fim de alcançar o haver liberdade num sistema baseado em
novo eleitorado (BOLZAN DE MORAIS; igualdade, pois pessoas desiguais não po-
STRECK, 2006, p. 76). Assim, o Estado dem ter capacidades iguais de participarem
passou a intervir em maior escala devido, de decisões coletivas. Atualmente, essa teo-
em primeiro lugar, à vontade da própria ria tem recebido o nome de igualiberdade
burguesia, que se sentia ameaçada pelas ou de um processo único (BALIBAR apud
tensões sociais existentes e pelo fato de se WALLERSTEIN, 2002, p. 132).
beneficiar com a expansão do capital por É por essas e outras razões que, já no
meio das próprias verbas públicas. Cabe século XX, se desenvolve um novo conceito,
pontuar que o princípio de que “todos na tentativa de fortalecer o ideal democrá-
são iguais perante a lei” é, também, um tico ao Estado de Direito, no qual estão
pressuposto liberal criado pela ideologia presentes as conquistas sociais com ideais
capitalista. A igualdade é uma abstração que igualitários. De fato, o Estado Democrático
nos obriga a despir o homem concreto da riqueza de Direito tem um conteúdo de transfor-
de seu ser individual (SILVA, 2004, p. 303). mação da realidade, não se restringindo
Nesse viés, Wallerstein sublinha que ao Estado Social de Direito. Assim, seu
o discurso liberal racional permaneceu conteúdo ultrapassa o aspecto material de
durante o Estado Social “igualitário”. Ao concretização de vida digna do homem e passa
mesmo tempo em que o liberalismo tece a agir simbolicamente como fomentador da par-
imensos louvores ao pontencial de integra- ticipação pública na reconstrução na sociedade.
ção dos excluídos, permanece defendendo a (WALLERSTEIN, 2002, p. 97-98).
minoria. Mas não é o grupo minoritário que ele Atualmente, é necessário trabalhar em
defende, é sim a minoria simbólica, o indivíduo busca de um intercâmbio entre a liberdade
racional heróico contra a multidão – isto é, ele e igualdade, para que assim se realizem
mesmo. Com efeito, os liberais não se opuse- escolhas sociais para o século XXI. É impor-

162 Revista de Informação Legislativa


tante destacar que, mesmo depois dessas tém próximo a Thomas Hobbes, para quem
modificações paradigmáticas, os Estados a discussão em torno da justiça seria uma
e a sociedade como um todo permanecem atribuição do soberano, pois o juiz deveria
enfrentando diversas crises: as diferenças apenas limitar-se à aplicação legal desigual
sociais aumentaram, permanecendo a ex- (SILVA, 2004, p. 298). Entretanto, não há
clusão, a violência, a discriminação, entre como negar que o sistema processual e a
outras, em nível nacional e internacional. atuação jurisdicional possuem inevitáveis
Wallerstein (2002, p. 133-134) afirma que compromissos históricos e culturais, o que
essas desilusões podem ter sido causadas leva à necessidade de questionamentos e
por alguns elementos, como, por exemplo, interrogações sobre o momento em que se
a descrença na Velha Esquerda histórica, encontra o Direito.
a ofensiva maciça para desregulamentar o Verifica-se que, no decorrer da evolução
Estado de bem-estar social, a polarização estatal, o homem conquistou a plena liberdade,
econômica, social e demográfica, etc. É pa- mas não tem como usá-la; melhor, somente des-
tente que as sociedades contemporâneas se frutará da sensação de liberdade se permanecer
tornam cada vez mais desiguais. Segundo fiel ao sistema (SILVA, 2004, p. 298). Assim,
alguns dados do Programa das Nações Uni- Wallerstein (2002, p. 117) refere que os dile-
das para o Desenvolvimento (PNUD): mas que se enfrentam hoje são o resultado
“Em África, as mulheres levam 15 de um mundo capitalista. Entre os motivos
ou 17 horas por semana e andam 10 que fundamentam o fato de a liberdade não
quilómetros por dia para obter água ter como consequência natural a igualdade,
para suas famílias. É, igualmente, está a permanência do paradigma anterior,
chocante que os quinhentos indiví- pois todo o sistema estatal manteve-se atre-
duos mais ricos do mundo tenham lado ao individualismo, inclusive a atuação
tanto rendimento quanto o dos 40 jurisdicional, que permanece voltada aos
países mais pobres com 416 milhões conflitos pessoais subjetivos e com viés
de habitantes, ou que no Zimbabué, declaratório, como preconizavam os revo-
1 a 2% da população (brancos) ocupe lucionários franceses.
90% da terra agrícola e 4000 agriculto- Silva constata que o Direito moderno,
res (brancos) consumam 90% da água particularmente o direito da tradição roma-
disponível para o regadio. O nosso no-canônica, vem assumindo paulatinamente
é, de facto, um mundo desigual.” compromissos cada vez mais profundos com a
(SOUZA SANTOS, 2007). Política e, naturalmente, com a economia. É
A questão que se coloca é: como construir o fenômeno descrito como funcionalização do
estruturas e movimentos que avancem na direito processual civil. Além disso, mantém
direção da igualização social? No decorrer do o pressuposto iluminista de que a lei tem
texto, serão apresentadas algumas tentativas uma “vontade constante”, reduzindo o
de invenção, que vão da negação à busca pela ato jurisdicional a uma função oracular,
utopia. Uma primeira proposta é o desenvol- normativista, dispensando a compreensão
vimento de um novo olhar sobre a jurisdição hermenêutica11 e a fundamentação jurisdi-
e o processo dentro dos Estados envoltos cional (SILVA, 2008, Nota explicativa).
pelo constitucionalismo contemporâneo. 11
A história da hermenêutica é uma historiografia
2.2. A jurisdição e o processo: ressignificações a partir dos tempos e, portanto, uma construção. Esse
caminho desenvolveu-se até o século XVII ainda sem
democráticas e o constitucionalismo possuir nome, sendo antigamente chamado de ars
interpretandi, retomado e posteriormente desenvolvido
As verificações precedentes envidencia- por ramos da ciência como crítica da exegese ou da
ram que o sistema do Direito atual, mesmo filosofia. A explicação etimológica que gira em torno
imerso na pós-modernidade, ainda se man- de hermènêus e da hermèneutike é relacionada, em

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 163


Vale observar que os antropólogos de- nem mesmo poderia ser considerada uma
monstram que o Direito esteve presente em atividade análoga à função legislativa mo-
todas as comunidades humanas, por mais derna, porque a jurisdição não se identifi-
regulamentares que tenham sido. Daí que cava com um enunciado de normas, nem se
o Direito enquanto expressão do justo é limitava à resolução de controvérsias, mas
um fenômeno cultural que nada tem a ver era, sim, específica para o caso concreto
com o Estado. Ao contrário do que dissera (SILVA, 2008, p. 269).
o positivismo, não foi o Estado que inventou Dessa forma, percebe-se a diferença
o Direito, mas o contrário, o Direito que deu entre o que, hodiernamente, entende-se por
vida ao Estado (SILVA, 2008, p. 280). É por jurisdição relacionada à declaração do direi-
essa razão que se tentará demonstrar que to aplicável a espécie litigiosa e a jurisdição
a origem do termo iurisdictio, atualmente, praticada pelo direito romano clássico. No
deve ser (re)visitada para se pesquisar processo romano clássico, o direito nascia
sobre a efetivação da jurisdição do Estado do fato, para significar que o Pretor, como
Democrático contemporâneo. os atuais magistrados, ao receber a lide,
Existe uma crença de que o Direito não tratava de uma entidade abstrata, mas
Moderno é herança do Direito Romano. de um complexo conjunto de fatos (SILVA,
Entretanto, deve-se diferenciar a iurisdictio 2008, p. 277). Daí a importância de se ter
do período republicano da jurisdição prati- presente a necessária relação entre “direito”
cada nos estágios finais do império romano, e “fato”. Nesse viés, Castanheira Neves
a partir do terceiro século da era cristã. (1967) refere que é fundamental a necessi-
Nesse período, o Direito transforma-se em dade de observância da situação histórica.
assunto de Estado, institucionalizando-se, Menciona, ainda, o jurista português que
torna-se instrumento de governo. (SILVA, não se deve verificar o direito e o facto, mas,
2008, p. 264). e simultaneamente, o direito do facto e o facto
Silva refere que o retorno do Direito mo- do direito, pois (...) o facto e o direito existem
derno à iurisdictio confunde a função do iu- enquanto coexistem.
dex, que apenas julgava, com o exercício da Assim, ao tratar da jurisdição como
jurisdição, própria do Pretor. Com efeito, o transformação da realidade, é possível
juiz privado (iudex), que não era investido fazer uma ligação com o movimento que
do poder jurisdicional, dizia o direito já in- se denominou neoconstitucionalismo e
dicado pelo Pretor. Em outras palavras, ao com a modificação ocorrida na jurisdição
Pretor que possuía a iurisdictio cabia indicar constitucional contemporânea.
a norma que haveria de regular o caso, em É notório que o Direito Constitucional
uma função análoga à do atual legislador. Moderno, bem como a própria jurisdição
Já o iudex limitava-se a “aplicar” o direito constitucional, surgiu, juntamente, com
que o Pretor lhe indicara. De acordo com a a ideia de Estado Moderno; logo, Estado
explicação de Carlo Gioffredi, a iurisdictio de Direito Liberal, voltado à defesa dos
interesses da burguesia capitalista do
regra, com o deus mediador Hermes, portador da vara século XVIII. Entretanto, atualmente, o
mágica que possibilitava aos humanos compreender constitucionalismo apresenta-se como um
os desígnios divinos. Surge, assim, a ideia de um men-
sageiro divino, que transmite e esclarece o conteúdo da
espaço de “abertura” do direito interno ao
mensagem dos deuses aos mortais. Na realidade, não internacional, ou vice-versa, com vistas à
se sabia o que os deuses disseram, somente se sabia o superação do binômio monismo-dualismo12.
que Hermes disse acerca do que os deuses previam.
Daí aparece a (inter)mediação. Dessa maneira, Streck 12
Não é objeto do presente trabalho tratar dessa
(2007) refere que é na metáfora de Hermes que se lo- complicada questão, que envolve a relação entre o
caliza toda complexidade do problema hermenêutico, direito interno e o internacional. Apenas a título de
pois trata de como atribuir sentido às coisas. esclarecimento, observa-se que o dualismo percebe

164 Revista de Informação Legislativa


O momento histórico do novo direito de duas décadas de autoritarismo para um
constitucional na Europa Ocidental foi regime democrático; e, mais do que isso, a
marcado pelo constitucionalismo do pós- Carta atual tem propiciado o mais longo
guerra, especialmente na Alemanha e período de estabilidade institucional da
na Itália. No Brasil, por sua vez, foi com história republicana.
a Constituição de 1988 e o processo de Ao longo de sua vigência, destituiu-
redemocratização que ela ajudou a pro- se por um processo de impeachment um
tagonizar. Streck (2007, p. 7) afirma que o Presidente da República; houve também
neoconstitucionalismo significa ruptura, tanto julgamentos referentes a graves escândalos
com o positivismo, como com o modelo de cons- envolvendo a Comissão de Orçamento da
titucionalismo liberal. Por isso, o direito deixa Câmara dos Deputados; foram afastados
de ser regulador para ser transformador. Senadores envolvidos em esquemas de
A reconstitucionalização da Europa, corrupção; foi eleito um Presidente de opo-
logo após a Segunda Grande Guerra e no sição e do Partido dos Trabalhadores; foram
decorrer da segunda metade do século XX, investigadas denúncias em torno de finan-
redefiniu o lugar da Constituição e a im- ciamento de campanhas e de vantagens re-
portância do direito constitucional sobre as cebidas por parlamentares, etc. (BARROSO,
instituições contemporâneas. Dessa forma, 2007). Entre os exemplos citados, pode-se
ocorreu uma aproximação entre as ideias perceber a centralidade assumida pela
de constitucionalismo e democracia, o que Corte Constitucional, decidindo claramente
produziu uma nova forma de organização problemas políticos e não apenas jurídicos.
política. O Direito Constitucional brasileiro iniciado
A principal referência no desenvolvi- com o Estado Democrático em 1988 adqui-
mento do novo direito constitucional é a riu uma importância não apenas técnica,
Lei Fundamental de Bonn de 1949, e, par- mas passou a simbolizar conquistas e,
ticularmente, a criação do Tribunal Consti- também, adquiriu um papel de mobilização
tucional Federal, instaurado em 1951. Foi a do imaginário das pessoas.
partir desse momento que teve início uma Isso demonstra a prevalência de um
fecunda produção teórica e jurisprudencial, sentimento constitucional que, nas palavras
responsável pela ascensão científica do de Pablo Lucas Verdú (1998, 2004), significa
direito constitucional no âmbito dos países a expressão de valores que transcendem
da tradição romano-germânica. Posterior- ao Texto Constitucional, porque tendem a
mente, destaca-se a Constituição da Itália, realizar-se por meio e para além dele, pela
de 1947, com a subsequente instauração da comunidade na qual estão inseridos (VER-
Corte Constitucional, em 1956, bem como DÚ, 2004; VERDÚ, 1998). Esse sentimento
ao longo da década de 70, a Constituição constitucional mencionado por Verdú
de Portugal, em 1976, e a da Espanha, em vem ao encontro da vontade de Constituição
1978 (BARROSO, 2007). desenvolvida por Hesse13, que procura na
No Brasil, o ambiente de reconstitu- 13
Konrad Hesse, em seu livro A força normativa da
cionalização que a Constituição de 1988
Constituição, contrapõe-se à tese defendida por Ferdi-
instaurou foi capaz de promover a travessia nand Lassalle em 1863, para intelectuais e operadores
da antiga Prússia. Hesse pretende demonstrar que o
o direito internacional e o direito interno como dois desfecho entre fatores reais de Poder e a Constituição
sistemas iguais, independentes e separados, enquanto não há de verificar-se em desfavor desta. Para ele, a
o monismo percebe uma unidade lógica das regras Constituição não é apenas uma folha de papel; é essen-
internas e internacionais, o que implica um imperativo cial buscar sua força normativa, por meio da vontade
de subordinação entre uma e outra; logicamente há de Constituição, ou seja, o desenvolvimento de uma
quem defenda a primazia do direito interno e quem consciência geral que a conceba como Lei Funda-
sustente o primado do direito internacional sobre o mental do Estado, como padrão jurídico superior das
interno. (SEITENFUS; VENTURA, 2001, p. 26). relações sociais (HESSE, 1991; LASSALLE, 2001).

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relação de coordenação entre Constituição com as atuais circunstâncias históricas de-
e sociedade a implementação das normas mocráticas, pode-se trazer, como exemplo:
constitucionais. Assim, percebe-se que a o funcionamento dos Juizados Especiais;
contemporaneidade, paulatinamente, foi as juntas de conciliação e julgamento; as
assumindo a preocupação com a questão ações coletivas, bem como a necessária
da efetividade da Constituição e do sentido redução dos recursos. Esta última medida
da democracia, a partir da reformulação do é apresentada por Silva como uma exigên-
seu perfil interno, como Estado Democrá- cia. Com ela, ocorrerá o abrandamento do
tico de Direito. sentido burocrático da administração da justiça,
A chamada jurisprudencialização da restituindo à jurisdição de primeiro grau legiti-
Constituição vem marcada pela transição midade política que lhe dê condições de exercer
de um direito constitucional legislativo as elevadas atribuições que a ordem jurídica lhe
para um direito constitucional jurispruden- confere. Além disso, sublinha a prática de
cial, ou seja, passa-se do texto da norma um verdadeiro regime federativo, a busca
para o texto da decisão judicial. Tal po- da descentralização administrativa, de modo
sição leva a uma mudança de paradigma a fortalecer a vida política das comunidades
do constitucionalismo, antes pautado na locais (SILVA, 2004, p. 319-320).
postura positivista, para percebê-lo em sua Além do que foi colocado até o momen-
forma aberta e viva, para além da neutra- to sobre a necessidade de igualização social
lidade do texto normativo (BOLZAN DE por meio de ressignificações estatais inter-
MORAIS, 2006). Entretanto, deve-se atentar nas no que tange à jurisdição, ao processo
para que o Poder Judiciário, no uso de suas e ao constitucionalismo, vale elencar que
atribuições concedidas pelas Constituições os Estados estão imersos em um processo
dos Estados, não se torne arbitrário e não que se pode chamar de mundialização ou
se reduza, apenas, a instrumento funcio- globalização14. Não se objetiva aqui traçar
nalizado que serviria de suporte político a aspectos gerais referentes a esse tema, mas
outros interesses. sim mostrar a possibilidade de um outro
Com Castanheira Neves é possível en- olhar, que pode levar à (re)construção do
xergar que em muitos momentos o Direito sentido democrático para o constituciona-
aparece, simplesmente, como regulador lismo e para a jurisdição constitucional.
funcional de uma sociedade individualista
e sem valores, apenas interessada em rei- 14
Os termos mundialização e globalização são, hoje
vindicantes “liberdades”, tornadas direitos em dia, parte do vocabulário corrente. Significam
que, em escala mundial, as trocas multiplicaram-se
subjetivos sem deveres. Isso pode reduzir e que esta multiplicação deu-se rapidamente. Essa
o Direito a simples instrumento ideológico multiplicação tornou-se possível graças a sistemas de
e político (CASTANHEIRA-NEVES, 2000, comunicação mais eficazes e, na maioria das vezes,
p. 11). Cabe pontuar ainda, com Silva, que instantâneos. Mas, de alguns anos para cá, o sentido
das palavras mundialização e globalização tornou-se
é importante se pensar em uma profunda um pouco mais preciso. Por mundialização, pode ser
descentralização do poder, capaz de reme- entendida a tendência que leva à organização de um
tê-lo ao povo, permitindo o exercício autêntico governo mundial único. A tônica é, portanto, colocada
de um regime democrático. Isso permitiria ao sobre a dimensão política da unificação do mundo. Em
sua forma atual, tal tendência foi desenvolvida por
Judiciário ser um agente “pulverizador” do diversas correntes estudadas pelos internacionalistas
Poder, o órgão produtor de micro-poderes, que (NEGRI, 2001). Para Otfried Höffe (2005, p. 5-6), a
possam contrabalançar o sentido centralizador globalização é uma palavra de ordem da filosofia
que os outros dois ramos zelosamente praticam política revestida de emoções contraditórias, em
parte contendo esperanças e temores. Além disso,
(SILVA, 2004, p. 316). vem sendo empregada de maneira inflacionária e, ao
Entre algumas alternativas para for- mesmo tempo, em contornos tão tênues que se prefere
mação de um Poder Judiciário condizente evitá-la. Na sua definição, apresenta a globalização como

166 Revista de Informação Legislativa


3. Da jurisdição constitucional essa não será um tarefa fácil, considerando
liberal à jurisdição constitucional o perigoso estado atual da esfera público/
social: a (re)construção de sentido do privada, na qual “o público” recua para buscar
constitucionalismo abrigo em lugares politicamente inacessíveis
e “o privado” está a ponto de retirar-se para
Como já foi mencionado no item 1, o a própria auto-imagem (BAUMAN, 2000,
Estado, a jurisdição e o constitucionalismo p. 112-113). É importante perceber que,
estão ligados, de forma que o qualificativo para ocorrer a relação mencionada por
de um pode ser utilizado pelos outros. No Bauman, é necessário retomar o discurso
caso, cita-se como exemplo: Estado Liberal, do bem comum como um valor a ser rei-
jurisdição liberal, constitucionalismo liberal; vindicado. Nesse sentido, é importante a
ou, por outro lado, Estado Social, jurisdição busca pela democratização da jurisdição
social, constitucionalismo social. Assim, constitucional.
como o objeto deste trabalho gira em torno Vale mencionar que a discussão em tor-
dos princípios da liberdade e da igualdade, no da legitimidade do Judiciário está para
da mesma forma é possível relacioná-lo com além de suas marcas históricas monárqui-
a jurisdição constitucional e o sentido da cas, uma vez que, na atualidade, destacam-
Constituição na contemporaneidade. se momentos diversos. Hoje, a jurisdição se
As Constituições falam com frequên- apresenta como arena privilegiada para a
cia em povo, principalmente devido à realização de um “novo” constitucionalis-
necessidade de legitimação democrática. mo (BOLZAN DE MORAIS, 2006, p. 263).
No entanto, a democracia não pode ser
entendida como a simples fórmula do go- 3.1. A jurisdição constitucional e a
verno do povo, mas, ao contrário, deve ser (re)definição do constitucionalismo
compreendida como dificuldade progressiva O entendimento acerca do constitucio-
do governo por meio do povo (CHRISTENSEN nalismo contemporâneo, ancorado pelos
apud MÜLLER, 2000, p. 42). princípios do neoconstitucionalismo, ou
Na verdade, deve-se observar que constitucionalismo do Estado Democrático
existem outras formas de se conceber uma de Direito, supõe a necessária compreensão
democracia, além da mera participação da relação existente entre Constituição e
eleitoral, como, por exemplo, em protestos, jurisdição constitucional. Nesse sentido,
manifesto público, ingresso e participação Kägi (apud CANOTILHO, 2006, p. 886)
em instituições sociais, ONGs, ações em afirma: diz-me a tua posição quanto à jurisdi-
processos coletivos, etc. ção constitucional e eu digo-te que conceito de
Zygmunt Bauman afirma que uma boa Constituição tens.
sociedade deve tornar livre seus integran- Enquanto a Constituição é o funda-
tes, não apenas livre do ponto de vista mento de validade do ordenamento e da
negativo, com o significado de não ser coa- própria atividade político-estatal, a juris-
gido a fazer algo; mas positivamente livres, dição constitucional passa a ser condição
com o poder de influenciar as condições da de possibilidade do Estado Democrático
própria existência, dar um significado para de Direito (STRECK, 2006, p. 13). Esse é
o “bem comum” e fazer as instituições se um detalhe a ser salientado, para uma
adequarem a esse significado. Com certeza adequada compreensão da problemática
constitucional nos dias de hoje, a normati-
crescimento e consolidação das relações internacionais. vidade da Constituição vê-se realizada por
Também Zygmunt Bauman (1999, p. 7) refere que a
globalização para alguns é o que se deve fazer para ser
meio da jurisdição quando seu conteúdo
feliz; para outros, é a causa da infelicidade. Para todos, material está relacionado diretamente à
porém, globalização é o destino irremediável do mundo. vontade popular.

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 167


Entretanto, é inegável que os elemen- cal”, isto é, a síntese relacional entre o local
tos que formam o Estado, quais sejam, e o global (SOUZA SANTOS, 2007).
território, povo e soberania, bem como o Isso leva à superação do debate sobre
documento maior desse Estado que é a o universalismo dos direitos humanos e
Constituição, têm sofrido intensas modifi- o relativismo cultural, pois se trata de um
cações nos últimos tempos. As fronteiras se falso debate, cujos conceitos polares são
transformaram; a concepção de cidadania igualmente prejudiciais para uma concep-
foi alterada – hodiernamente se utiliza a ção emancipatória dos direitos humanos.
expressão “cidadãos do mundo”15, rela- Ocorre que todas as culturas são relativas e
cionada à diminuição das distâncias entre ao mesmo tempo aspiram e defendem valo-
os países, devido ao desenvolvimento da res universais. Há que se desenvolver critérios
tecnologia dos meios de transporte e da políticos para distinguir política progressiva de
internet; a ideia de soberania ou de poder política conservadora, capacitação de desarme,
estatal interno/externo encontra-se em emancipação e regulação. Na verdade, Souza
permanente mutabilidade. Santos refere, também, sobre a necessida-
Dessa forma, a globalização econômi- de de globalização de baixo para cima, ou
ca se refere à intensificação do fluxo de globalização contra-hegemônica baseada
capitais, produtos e serviços, diretamente na ideia de cosmopolitismo16 e patrimônio
imbricados na transnacionalização do capi- comum da humanidade (SOUZA SANTOS,
talismo. Com isso, pode-se entender que a 2007).
ideia de capital do século XVIII retorna em Nessa mesma perspectiva, ressaltando
uma perspectiva mais ampla. Souza Santos a importância da relação entre os Estados,
(2007) identifica a globalização econômica de participação popular e da preservação
como eixo da mundialização de cima para dos direitos fundamentais, Canotilho vem
baixo, por ampliar as diferenças entre desenvolvendo pesquisas em torno do
pobres e ricos, beneficiando grandes capi- que denomina interconstitucionalidade.
talistas à custa de trabalho, muitas vezes Segundo o autor, atualmente, não é possível
semiescravo. conceber os Estados, e também as Consti-
Entretanto, para combater o lado ne- tuições, fechados em si mesmos. Vale ob-
gativo desse atual processo global, Souza servar que essa ideia objetiva transformar
Santos busca uma definição mais sensível o constitucionalismo para aproximá-lo do
às dimensões sociais, políticas e culturais, povo, em uma perspectiva democrática.
definindo globalização como um conjunto Ademais, busca uma participação ativa do
diferenciado de relações sociais, o que leva à cidadão na busca pela igualização e defesa
não existência de uma única globalização; dos direitos sociais.
em vez disso, globalizações, no plural. Daí Revendo posições anteriores, Cano-
que, sob a perspectiva global-local, o local tilho defende que a Constituição deve evitar
intensifica sua relação com o global, a partir
do marco de mercado estatal, empresarial
16
A palavra cosmopolitismo passou por muitas
conceituações no decorrer da história. Com Deisy
e das diversas formas de vida. Chega-se a Ventura (2007): A irrupção da ideia é atribuída ao cínico
pensar em globalização como um tipo de Diógenes. À pergunta “de onde tu és? teria ele respondido
difusão cultural, com a denominação “glo- “cidadão do cosmos, arvorando-se em condomínio de uma
razão universal residente no homen, não na cidade. Já
15
Otfried Höffe (2005, p. 394-397) faz uma disti- pintalgado entre os gregos, o cosmopolitismo grassou em
ção entre “cidadão mundial” e “cidadão do mundo”. novas matizes com os romanos e fez esteio religioso, em
Aquele possui um sentido exclusivo e relacionado a particular no cristianismo. Tendo alvoroçado o Iluminismo,
um Estado Mundial, enquanto este teria um signi- a ótica cosmopolita, assaz camaleônica, adquiriu incontáveis
ficado complementar, ampliando seu engajamento sentidos ao longo da história (...). Mas, foi precisamente
a partir do próprio Estado até alcançar a República Immanuel Kant quem ofereceu à humanidade o proje-
Mundial. to de cosmopolitismo vinculado à paz perpétua.

168 Revista de Informação Legislativa


converter-se em lei da totalidade social, para a autoexclusão dos temas nevrálgicos do
não perder sua força normativa. Afirma que os debate mundial é injustificável e compro-
textos constitucionais de cunho dirigente, mete seriamente os interesses estratégicos
como a atual Constituição portuguesa e dos países em via de desenvolvimento
brasileira, perderam a capacidade de absor- (VENTURA, 2007).
ver as mudanças e inovações da sociedade, Por tudo que foi exposto, vale destacar
não podendo mais integrar o todo social, temas centrais abordados pelo doutrinador
tendendo a exercer uma função meramente coimbrano em torno do constitucionalismo
supervisora da sociedade. As Constituições moralmente reflexivo e da constitucionali-
Dirigentes padeceriam de uma “crise de zação da responsabilidade, propostas que
reflexividade”, ou seja, não mais consegui- visam uma maior igualização social. Assim,
riam gerar um conjunto unitário de respostas, primeiramente sublinha ser necessário evi-
dotado de racionalidade e coerência, às cada tar duas unilateralidades:
vez mais complexas demandas (...) da sociedade “1. o peso do discurso da metanarrati-
(BERCOVICI, 1999). va que hoje só poderia subsistir como
Canotilho (2001) chega a afirmar que a relíquia da má utopia do sujeito do
Constituição dirigente está morta se o dirigismo domínio e da razão emancipatória;
constitucional for entendido como normativis- 2. a desestruturação moral dos pactos
mo constitucional revolucionário capaz de, só fundadores escondida, muitas vezes,
por si, operar transformações emancipatórias. num simples esquema processual da
Dessa maneira, a teoria constitucional deve razão cínica econômica-tecnocrática.”
levar em consideração que as sociedades (CANOTILHO, 2006, p. 184).
modernas pluralistas estruturam-se em Nesse sentido, como linha de força do
termos de complexidade. constitucionalismo reflexivo, Canotilho
Entretanto, doutrinadores brasileiros (2006, p. 126-128) apresenta três sugestões:
pontuaram perguntas ao autor português, a) Constitucionalização e “desmoralização da
considerando as diferenças existentes com liberdade”, na qual o constitucionalismo
o constitucionalismo dos países em desenvolvi- continua a fornecer exigências mínimas,
mento, no qual existem problemas sociais como o complexo de direitos e liberdades
e políticos diferentes (COUTINHO, 2006). definidoras das cidadanias pessoal, políti-
Como resposta, Canotilho afirma ter a ca e econômica intocáveis pelas maiorias
sensação de que não se deve falar em teoria parlamentares; b) Constitucionalizações e
da Constituição, mas talvez em teorias das teoria da justiça, baseando-se em estruturas
Constituições e possivelmente em uma rede básicas da sociedade sem se comprometer
de interconstitucionalidade, dos vários com situações particulares; c) Constitu-
constitucionalismos, dos vários questiona- cionalismo moralmente reflexivo através da
mentos (COUTINHO, 2006, p. 31-37). mudança da direção para a contratualização.
Deisy Ventura pontua que Canotilho Nesse modelo, existiriam formas de efi-
é compreensivo diante das angústias dos cácia reflexiva, ou seja, outras formas de
autores de países de “modernidade tardia”, acoplamentos estruturais que apontam
mas salienta que o debate em tela interes- para o desenvolvimento de instrumentos
sa não apenas aos países desenvolvidos, cooperativos que recuperam as dimensões
mas, ao contrário, também é de suma juntas do princípio da responsabilidade,
relevância para Estados em processo de apoiando-se também a sociedade, ao que
desenvolvimento. Ainda, menciona que o denomina Constituições civis.
gesto de apartar os debates que “interessam” e Falar em participação da sociedade civil
não “interessam” ao mundo não-desenvolvido remete ao constitucionalismo societal, que
só pode ser resíduo do colonialismo. Ademais, sugere vários subsistemas sociais inter-

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nacionais, sendo que estes podem adotar Salienta-se que a teoria da intercons-
esquemas reguladores semelhantes aos de titucionalidade é, também, uma teoria da
uma Constituição. É o caso, por exemplo, da interculturalidade constitucional. A defini-
“constituição da Internet”, da “constituição do ção de intercultura faz realçar basicamente
sistema de saúde”, da “constituição da investi- a partilha de cultura de ideias ou formas de
gação genética e dos sistemas reprodutivos”, da encarar o mundo e os outros.
institucionalização do “diálogo interreligioso” Pelo que foi exposto, conclui-se que o
(CANOTILHO, 2006, p. 286-290). Essas constitucionalismo, indiscutivelmente, vem
ideias superam antigas formas totalizantes sofrendo modificações em seus elementos
abrindo o caminho para ações locais, o que constitutivos. É notório que as propostas
privilegia a diversidade cultural. Pontua-se, de Canotilho estão inseridas no contexto
novamente, uma abertura para instrumentos europeu, mas também se deve pontuar
regulativos diferentes. A lei dirigente cede lugar que não é pertinente afastar o debate dos
ao contrato, o espaço nacional alarga-se à trans- demais Estados, inseridos em um contexto
nacionalidade e globalização, mas o ânimo de global.
mudanças aí está de novo nos “quatro contratos Assim, essa abordagem em torno da
globais” (CANOTILHO, 2006, p. 128). (re)definição do constitucionalismo tem
Dentro deles está: o contrato para as ne- como objetivo evidenciar que existem
cessidades globais, que implica em remover propostas em torno de um novo tipo de
as desigualdades; o contrato cultural, estabe- democratização. Sem negar a globalização,
lecendo a tolerância e diálogo de culturas; o buscam-se novas formas de esta ocorrer de
contrato democrático, que prevê a democracia baixo para cima17, dando especial atenção às
como governo global; e o contrato do planeta necessidades culturais, ao desenvolvimento
terra, versando sobre o desenvolvimento sustentável e à participação popular.
sustentado (CANOTILHO, 2006, p. 128). As colocações postas por Canotilho
O jurista coimbrano quer transmitir que a estão em processo de estudo e desenvolvi-
Constituição dirigente, assim, ficará menos mento. De forma alguma o professor coim-
densa e menos autoritária, enriquecida pela brano objetiva trazer conclusões definitivas
constitucionalização da responsabilidade, que sobre o tema. Entretanto, deve-se destacar
dispõe sobre garantias que possibilitem a que o papel do Estado e da jurisdição cons-
coexistência de valores, conhecimento e titucional é de fundamental importância
ação (CANOTILHO, 2006, p. 129). na implementação dessas propostas, como
Essa nova visão do direito constitu- será demonstrado abaixo.
cional possibilita que se trabalhe com
os elementos básicos de uma teoria da 3.2. Contra um “Leviatã” global e as
interconstitucionalidade: a) Autodescrição “virtudes cosmopolíticas” em/para jurisdições
e autosuficiência nas constituições nacionais; constitucionais democráticas
assim os textos constitucionais nacionais No Antigo Testamento, o Leviatã signi-
conservam a memória e a identidade políti- fica um animal, que pode ser um crocodilo,
ca quando inseridos numa rede internacio- uma serpente ou um dragão, que se destaca
nal; b) Texto interorganizativo, que apontam por seu inefável poder. Daí ter causado
para a necessidade autodescritiva da or- horror o pai da filosofia moderna, Thomas
ganização superior. É discutível saber se a Hobbes, comparar o Estado e o soberano
autodescrição interorganizativa pressupõe ao referido monstro. No entanto, na famosa
necessariamente um texto constitucional obra, o Leviatã aparece com uma forma
autodescritivo ou se poderia pensar em
convenções internacionais (CANOTILHO, 17
Terminologia adotada por Boaventura de Souza
2006, p. 268-271). Santos (SOUZA SANTOS, 2007).

170 Revista de Informação Legislativa


humana, sentado em um trono por trás e democrático ou em um fazer democrático
acima de uma paisagem tranquila irradian- sem que se considere a importância da
do bem-estar (HÖFFE, 2005, p. 369). Constituição e da jurisdição constitucio-
Otfried Höffe afirma que, à semelhança nal.
do Estado nacional, a República Mundial tam- Quando se pensa jurisdição constitu-
bém deverá ser um poder eminente a serviço cional, ou seja, em uma atuação do Poder
da paz e do Direito. Mas não pode sê-lo de Judiciário que visa garantir a supremacia
uma maneira absoluta, como era o Leviatã da Constituição e tutela dos direitos e
de Hobbes, devendo seguir delimitações garantias fundamentais, está ocorrendo
e atuações específicas. Dessa maneira, também o estabelecimento de limites às
importa ocorrer um fortalecimento dos demais funções do Estado. Essas funções,
princípios da subsidiaridade global, do exercidas por maiorias circunstanciais
federalismo e do nível continental inter- eleitas por meio do voto popular, muitas
mediário, ocorrendo, também, prevenção vezes enebriadas por paixões políticas
contra uma interpretação expansiva das momentâneas, acarretam o que Paulo
competências, uma opinião pública mun- Bonavides denominou crise de legitimidade
dial eficaz e direitos estatais garantidos de (BONAVIDES, 2003, p. 169).
forma clara e efetiva. Quando se menciona É importante lembrar que o processo
sobre questões políticas, é possível retornar eleitoral é apenas uma das formas de se
à antiguidade clássica, pois naquela época verificar o conteúdo da vontade popular.
já se falava em “virtudes cosmopolíticas”, Além disso, é necessário que o exercício
que se identificam como o contraponto a democrático dependa da conjugação de
uma teoria democrática meramente insti- condições materiais – como, por exemplo,
tucional (HÖFFE, 2005, p. 393). educação, moradia, dignidade humana,
Höffe (2005, p. 394) é claro ao dizer etc. – que permitam um nível mínimo de
que: quando se quer implantar as instituições inclusão do indivíduo na comunidade.
necessárias, quando se lhes quer dar vida e apri- Igualmente, não se deve ter em mente
morar os métodos ora vigentes a determinadas apenas a ideia de one man one vote, mas,
situações, faz-se mister o concurso de virtudes sim, pensar o povo em termos de política
cosmopolíticas. Ainda menciona que, se não constitucional. Isso não se refere a nenhuma
podem substituir as instituições, pelo menos posição rígida em termos “ou-ou” ou a uma
as podem complementar. Com efeito, é ne- relação entre “eu-tu”, mas deve acontecer
cessário que as próprias instituições ajam, em uma perspectiva “entre” (BUBER, 2001,
internamente, de acordo com “virtudes cos- p. 40). A democracia é algo em construção
mopolíticas” contra uma supervalorização que deve “acontecer” na sociedade, além da
de outras instituições globais, como forma perspectiva “cidadão” e “Estado”, na esfera
de implementar uma globalização de baixo do “entre” os dois. A jurisdição constitucio-
para cima, difundindo a cultura de diversos nal democrática existe para além da ima-
locais do planeta. gem construída pela pirâmide normativa
Aqui, retoma-se a abordagem em torno kelseniana. É preciso que se busque novas
da jurisdição constitucional local, mas que opções teóricas e perspectivas substanciais
não esteja desvinculada de uma perspectiva que levem em consideração a realidade
cosmopolita. Assim, na medida em que se sociopolítica, sobretudo no que diz respeito
busca uma compreensão contemporânea de à compreensão da Constituição, como uma
democracia, e uma maior igualização, alguns referência normativa criada pelo povo e
elementos se intercruzam, apresentando-se para o povo.
como imprescindíveis. Não há que se pen- Quando o Poder Judiciário aprecia o
sar em processo democrático, em um agir caso concreto e age de acordo com a acep-

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ção material da Constituição, revela-se a (Lei no 9.868/99 e Lei no 9.882/99), a inter-
expressão da vontade popular. Na verdade, venção do amicus curiae aprimorou-se; não
a jurisdição constitucional apresenta-se mais se identifica previamente quem deve
como uma possibilidade de se vencer as ser o auxiliar, que pode ser qualquer um,
indeterminações dos textos legais ou como pessoa física ou jurídica, desde que tenha
uma potencial alternativa para solução dos representatividade e possa contribuir para
problemas sociais. Como afirma Streck, a solução da causa.
Constituição, enquanto conquista, progra- Apresentando-se o Poder Judiciário
ma e garantidora substancial dos direitos como uma das funções do Estado, é crucial
individuais e sociais, depende fundamen- que se encontrem alternativas para desen-
talmente de mecanismos que assegurem volver formas de acesso a ele. Também, é
as condições para a implementação do seu indispensável uma cultura de credibilidade
texto. Ou seja, é necessário que existam da população, pois a jurisdição constitu-
meios de acesso popular18. cional se apresenta como alternativa para
Esses instrumentos, atualmente, no efetividade constitucional.
Brasil se mostram extremamente frágeis, Uma forma de se vencer o liame que
pois o cidadão não possui nenhuma forma separa o povo do sentido material da Cons-
direta para ingressar com ações na busca tituição é por meio de decisões democráti-
pelo controle concentrado de constitucio- cas que resgatem o sentido, não apenas da
nalidade. Observa-se que o inicial projeto Constituição, como também das “virtudes
de Lei da arguição de descumprimento de cosmopolíticas” que estão para além das
preceito fundamental (ADPF) – que hoje fronteiras estatais. Nesse sentido, cita-se
se converteu na Lei no 9.882/99 – dispôs acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Gran-
sobre a possibilidade de o cidadão ingressar de do Sul, que traz o direito fundamental à
diretamente com a arguição de descumpri- moradia e à propriedade. No caso ora em
mento de preceito fundamental; todavia, análise, Apelação Cível no 70016241440, o
esse artigo foi vetado pelo Presidente da cidadão havia tomado posse pacífica de
República. Ainda pode-se mencionar o uma área de propriedade do município de
instituto do amicus curiae, que se apresenta Esteio, RS. A entidade estatal alegou que
como um auxiliar do juízo, com o objetivo não podia o interesse privado prevalecer
de aprimorar as decisões proferidas pelo sobre o público. Todavia, o que se extraiu
Poder Judiciário. dos fatos foi que a área em questão, mes-
Com a edição das leis que regulamen- mo sendo pública, não estava atingindo
taram os processos de controle concentrado a sua finalidade social já há muitos anos,
conforme se constou da prova testemu-
18
Para Souza Santos, é urgente que se tome como nhal, havendo somente a intenção de se
ponto de partida uma nova concepção do acesso ao implantar programas habitacionais no local
direito e à justiça. Na concepção convencional, busca-se
o acesso a algo que já existe e não muda em consequência
(BRASIL, 2007).
do acesso. Mas, ao contrário, o acesso deve mudar a Enquanto isso, a família que tomou
justiça a que se tem acesso. Assim, o autor propõe sete posse do imóvel utilizava a casa que cons-
vetores principais para que ocorra essa transformação truíram no terreno como única moradia.
recíproca, jurídico-política: profundas reformas proces-
suais; novos mecanismos e novos protagonismos no acesso
É indiscutível que o Poder Público não
ao direito e à justiça; nova organização e gestão judiciárias; precisa deter fisicamente a posse ou habitar
revolução na formação de magistrados desde as Faculdades e praticar atos de vigilância permanente-
de Direito até à formação permanente; novas concepções de mente, mas há de dar uma destinação ao
independência judicial; uma relação do poder judicial mais
transparente com o poder político e a média, e mais densa
bem. Sublinha-se que o direito à moradia
com os movimentos sociais; uma cultura jurídica democráti- é assegurado pela própria Carta Maior, no
ca e não corporativa (SOUZA SANTOS, 2007, p. 33). seu art. 6o, capítulo Dos Direitos Sociais, e

172 Revista de Informação Legislativa


deve ser providenciado pelo Poder Públi- Brasil foi condenado pela morte violenta de
co. Se é certo que a Constituição Federal, Damião Ximenes Lopes, ocorrida no dia 4
em seu art. 5o, XXII, garante o direito de de outubro de 1999, na Clínica de Repouso
propriedade, no mesmo artigo 5o, inciso Guararapes, localizada no município de
XXIII, dispõe que esta deve atender sua Sobral, interior do Ceará. A Corte Interame-
função social. ricana declara em sua sentença que o Brasil
Outra decisão que resgata a materialida- violou sua obrigação geral de respeitar e
de constitucional foi a que julgou o HC no garantir os direitos humanos; infringiu o
82.424-2, em que ocorreu manifestação do direito à integridade pessoal de Damião e
Superior Tribunal Brasileiro sobre questões de sua família e violou o direito à proteção
envolvendo preconceito, discriminação e judicial a que têm direito seus familiares.
racismo. No mencionado acórdão, vários Como medida de reparação à família de
Ministros do Supremo Tribunal Federal Damião Ximenes, a Corte condenou o Brasil
procuraram compreender o caso a partir de a indenizá-los (JUSTIÇA ..., 2007).
uma suposta colisão entre os valores: liber- Nessa sentença condenatória, a Corte
dade de expressão e dignidade da pessoa deixa claro que o Brasil tem responsabi-
humana, decidindo ao final, pela prevalên- lidade internacional por descumprir seu
cia da dignidade humana e manutenção dever de cuidar e de prevenir a vulneração
da prisão do editor de livros antisemitas da vida e da integridade pessoal e dever
(BRASIL, 2007). De fato, no atual Estado de regulamentar e fiscalizar o atendimento
Democrático de Direito, não é possível médico de saúde. A Corte também conclui
aceitar qualquer tipo de manifestação que que o Estado não proporcionou aos familiares
dê ensejo à discriminação, em qualquer de Ximenes Lopes um recurso efetivo para
de suas formas: cor, procedência nacional, garantir acesso à justiça, a determinação da
opção sexual, etc. verdade dos fatos, a investigação e identificação.
Insta observar, como já foi mencionado (JUSTIÇA ..., 2007). A condenação do Brasil
no decorrer do texto, que, atualmente, pela mais alta Corte de Direitos Humanos
não é mais possível se pensar o direito do continente americano é, sobretudo,
constitucional, a Constituição ou o consti- uma repreensão internacional pela sua
tucionalismo de forma isolada. Atualmen- incapacidade e falta de vontade política de
te está ocorrendo uma (re)definição do enfrentar as graves e sistemáticas violações
direito constitucional em uma sociedade e de combater a impunidade.
globalizada e cosmopolita. Quando a ju- O Direito, e especialmente o Direito
risdição constitucional interna não atender Constitucional, como área social que é,
aos anseios democráticos e sociais, pode exige continuamente uma interação entre o
ocorrer a intervenção de organismos inter- povo e a Carta Maior do país, que serve de
nacionais. fundamento às demais normas e legitima
Cita-se, como exemplo, o Caso Damião os poderes constituídos. Se o cidadão não
Ximenes Lopes, em que a Corte Interameri- consegue proteção dentro das fronteiras
cana de Direitos Humanos da Organização territoriais, contemporaneamente, pode
dos Estados Americanos (OEA) condenou buscar a proteção de uma jurisdição exter-
o Brasil por violação de direitos humanos. na. A grande questão é como resgatar essa
O caso foi inédito, pois foi a primeira vez interação, dentro das fronteiras do próprio
que a Corte decidiu sobre um caso brasi- Estado, que possui – a princípio – juízes co-
leiro, bem como por se tratar do primeiro nhecedores da cultura e identidade local?
pronunciamento da Corte sobre violações Com efeito, o incentivo a programas
de direitos humanos de portadores de educacionais e culturais, sublinhando um
transtornos mentais. No caso em voga, o sentimento de pertencimento a uma comu-

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 173


nidade, bem como a busca de um discurso efetividade e aplicabilidade de princípios,
decisório que evidencie a materialidade da geralmente saltam aos olhos os preceitos
Constituição podem ser formas de se (re) das primeiras revoluções burguesas, entre
constituir ou de buscar o sentido demo- eles: o princípio da liberdade e igualdade.
crático do constitucionalismo, atualmente No decorrer do trabalho, destacou-se que
baseado não apenas em um ordenamento Wallerstein (2002, p. 132) os trata como
fechado e desvinculado da ordem interna- irmãos inimigos, ou seja, irmãos rivais
cional, mas em “virtudes cosmopolíticas” que caminham em diferentes direções. Isso
em/para uma jurisdição constitucional que não quer dizer que a igualdade se oponha
busque a efetivação dos direitos sociais. à liberdade, pois só pode haver liberdade
Segundo Hannah Arendt (2003, p. 42), num sistema baseado na igualdade.
a igualdade, longe de estar relacionada O desenvolvimento do Estado de Di-
apenas à justiça, está na própria essência reito, na Idade Moderna, sublinhando o
da liberdade; ser livre significa ser isento racionalismo iluminista, levou à positiva-
de desigualdade. ção do Direito e acarretou a segmentação
Dessa forma, fazendo uma alusão a das funções estatais. Ou seja, o princípio
Canotilho (2006, p. 345), talvez assim a da separação dos poderes; também separou
Constituição, sem abandonar as memórias, o Poder Judiciário, o processo e a própria
possa continuar a ter história, neutralizan- jurisdição da ideia de justiça existente no
do o perigo de ser definitivamente colocada direito romano clássico.
no lugar de memória. Na dimensão da Na verdade, o que se pretendeu de-
convivência humana, é possível conhecer monstrar, no transcorrer do texto, foi que
o autor dos “milagres”. São os homens que as Instituições e funções estatais, bem
os realizam – homens que, por terem recebido como a sociedade em geral, permaneceram
o dúplice dom da liberdade e da ação, podem aprisionadas pelo paradigma racionalista
estabelecer uma realidade em que lhes pertence e iluminista do século XVII e XVIII, o que
de direito (ARENDT, 2005, p. 220). dificultou o reconhecimento da diferença,
a preocupação com o outro, o desenvolvi-
mento da igualização e a inserção popular
4. Considerações finais
nos problemas do Estado. Mesmo sabendo
Cita-se na epígrafe deste trabalho um dessas dificuldades, acredita-se que a (re)
trecho do livro Escute Zé-Ninguém, de Wi- construção de um sentido para o direito
lhelm Reich, em que o autor tenta chamar constitucional e para a jurisdição consti-
a atenção dos leitores para a autocrítica. Na tucional pode servir de alternativa para se
verdade, a mencionada obra é recheada de combater a concepção individualista atual.
ironia, constando claramente a informação Castanheira Neves (2002, p. 17) pontua que
de que o povo é constituído por “Zés- a problemática do direito no nosso tempo não
Ninguéns”, ressaltando-se, assim, uma exprime senão uma dimensão da nossa própria
completa apatia do homem, principalmente problemática situação histórico-existencial;
relacionada às questões sociais. situação em que nós mesmos (...) nos pomos em
Essa mesma inércia está ancorada na causa até o limite.
ideia de uma suposta liberdade, ainda Nesse viés, retomaram-se algumas
baseada nas revoluções do século XVIII. ideias voltadas para o desenvolvimento de
A questão é de que liberdade se está fa- condições de hospitalidade; reconhecimen-
lando? Com Reich (2001), repisa-se: “livre” to das diferenças; estabelecimento de uma
apenas sob um aspecto: livre da autocrítica que federação de Estados; e, até mesmo, para a
poderia ajudá-lo a governar sua própria vida. possibilidade de formação de Constituições
Com efeito, quando se questiona sobre a civis de Estados Republicanos. Canotilho

174 Revista de Informação Legislativa


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