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Artes verbais e
expressões performativas
Raposo, Paulo
58-79 minutes
1Como o título da minha comunicação não o indica, neste texto pretendo discutir e problematizar
alguns aspectos da relação entre a teoria cultural ea cultura popular. Evidentemente, a ausência de
prova não indicia a prova da ausência. Por isso, o título desta comunicação é acima de tudo um
pretexto para falar de uma equação, in absentia e possivelmente imponderável, entre artes verbais,
expressões performativas e oralidade enquanto “conceitos” da teoria cultural referentes a
“produtos” da cultura popular. Proponho assim uma reflexão, sob um olhar antropológico, em torno
de algumas implicações teórico-metodológicas que a “cultura popular” enquanto objecto parece
sugerir.
2Procurarei, mais do que precisar definitivamente certos conceitos, pelo menos optar por um
“léxico” conceptual elementarmente identificável, seguramente passível de apreciações críticas,
mas que permita assegurar um discurso minimamente compatível entre as diversas abordagens. Daí
resultará necessariamente a constatação da própria plasticidade dos conceitos (por vezes, a sua
vacuidade) earelevânciadasuaarticulação com o contexto de produção e de uso desses mesmos
conceitos. Finalmente, procurarei introduzir paralelamente algumas sugestões críticas à
investigação antropológica — e, eventualmente, também às reflexões dos estudiosos ou amantes
desse universo da dita “cultura popular” —, sugestões essas decorrentes dos seus “novos” usos,
representações, produções e consumos que, neste cenário da modernidade que é a “aldeia global”,
temos vindo a observar. Talvez sejam justamente essas mesmas condições originais da modernidade
a razão de ser desta súbita vaga de renovado interesse pelas “coisas” da “cultura popular”…
3Neste sentido, traçarei um percurso, seguramente acidental e parcelar, desde a integração e
constituição de uma conceptualização do “cultural”, enquanto esfera autónoma que impregna a era
moderna, até à sua mercadorização e mediatização contemporânea; em seguida, e sob este pano de
fundo, tentarei apresentar os constrangimentos sociológicos e ontológicos que relevam conceitos
como “cultura” e, sobretudo, “cultura popular”, bem como avaliar aquilo a que Signe Howell
(1995) chama de “contaminação das tradições”, e assim, em jeito de apreciação final, problematizar
em torno de algumas questões relativas à contemporânea investigação no universo da “cultura
popular”.
• 1 Trata-se de uma pesquisa antropológica, com vista à obtenção do grau de doutor, a realizar
em diver (...)
4Como mera nota circunstancial convirá ainda referir que este texto corresponde a um esforço
preliminar de demarcação dos limites conceptuais e de problematização de uma pesquisa de terreno
— ou melhor, de terrenos (porque são de facto vários!…) — em torno de expressões performativas
ou teatrais populares em Portugal1 que levarei a cabo durante os próximos dois anos (1996-98).
Culture is one of the two or three most complicated words in English language. [R.
Williams, Keywords, 1983]
5É, justamente, sintomático e curioso que neste colóquio — cujo título, Artes da Fala, não poderia
ser mais apropriado — se vejam reunidos académicos de várias tradições disciplinares, autarcas,
jornalistas, intelectuais e “artistas populares”, entre outros, para falarem das expressões e da
visibilidade desse objecto de interesse comum que a todos nos mobiliza, de modo diferenciado
necessariamente, e que é a “cultura popular”.
• 2 Apopularização do conhecimento e do discurso científico trata-se de um fenómeno que é
simultaneamen (...)
6Curioso pelo facto de estarmos aqui, numa região periférica de um país não menos periférico (ou
“semiperiférico”, como sugerem alguns autores da moderna sociologia portuguesa), a perspectivar
— na diversidade de abordagens — expressões de uma suposta “cultura popular” sob o signo da
era da mundialização — isto é, numa época onde a produção dos bens culturais e de “cultura”
parece ser feita a partir dos grandes centros hegemónicos e onde os modelos de consumo se
orientam freneticamente na óptica economicista da globalização. Sintomático, porque esse mesmo
efeito de globalização e de mercadorização da “cultura” parece estender os seus “sedutores”
tentáculos aos contextos locais ou regionais, alimentando-se e renovando-se continua e, nem
sempre, pacificamente desses mesmos particularismos. Tome-se como exemplo deste processo de
articulações global/local ou centros/períferias a própria mediatização e popularização do
conhecimento das ciências sociais (e antropológico, em particular) através do que podemos chamar
o efeito de dupla hermenêutica,2 cujo resultado é o estímulo da produção e do consumo de
“produtos culturais sobre a cultura”. Na verdade, as representações mediáticas da cultura tomam
forma e enformam os esquemas cognitivos e explicativos do senso comum quer seja através dos
modelos publicitários de tipo patchwork cultural como o do azeite “x” sob fundo musical dos
Madredeus e com os seus “falsos camponeses”, ou através dos modelos das reportagens, revistas e
documentários de “localismos exóticos” (rurais, primitivos, marginais. etc…) produzidos por esse
novo grupo de especialistas que são os jornalistas, ou melhor, os especialistas dos media; quer seja,
de outro modo, através do modelo da aparente democratização do acesso aos meios de comunicação
pelas populações nos programas tipo “Praça Pública”, “Canal Aberto” ou nos “Fórum TSF”; quer
seja ainda através dos mais ou menos sérios talk-shows; ou então, numa variante mais “radical”,
como nos concursos Produções Teresa Guilherme, nos programas tipo “Perdoa-me & Companhia”,
nas “novelas” e nas “comédias de situação”, etc., que abundam e marcam pontos nas tabelas de
audiências.
7Aparentemente, tudo se passa, na “modernidade tardia” (cf. Giddens 1991), como se o modelo de
“cultura” da actual mundialização se concebesse como uma mestiçagem cultural e se dirigisse para
uma diluição de fronteiras entre as diversas formas de cultura: seja pela objectificação mediática de
todos os territórios culturais — à luz do “conhecimento instântaneo” dos media acerca dos eventos
globais e das consequências locais; seja pela sua emblematização na “sociedade do espectáculo” de
que falava o filósofo francês Guy Debord — a realidade surge no espectáculo e o espectáculo é
real!; seja pela mercadorização da “cultura” ou das “subculturas” — através do efeito de
“omnipresença do económico” (cf. Eduardo Lourenço, 1994); seja ainda pela emergência dos
próprios localismos ou de uma multipolaridade de centros. Isto é, um processo analisável já não
apenas em sentido unívoco — do centro para a periferia, do global para o local, das elites para as
massas — mas em termos de circularidade ou dialéctica de condicionamentos. Veja-se a este título a
explosão de celebrações, paradas e festivais de grupos sociais, étnicos ou de “subculturas” não
hegemónicas, que se tornam assim mais socialmente toleráveis do que de facto o são ofícial, cívica
e politicamente. Estas festas e celebrações são, pois, categorizadas, por um lado, como eventos
carnavalescos ou mascaradas, logo criadores de um tempo de liminaridade, de communitas e não
ameaçantes dos sistemas hegemónicos, mas, por outro, como expressões ou artes performativas de
resistência aos modelos hegemónicos (cf. Van Gennep 1908; Cohen 1993; V. Turner 1974 e 1982;
Miller 1995; Schechner e Appel 1990; Gutiérrez e Fabre 1995, entre outros). Como, então, avaliar
estes “novos” usos, representações, produções e consumos culturais?
8A traço grosso, os séculos XVIII e XIX, foram, no Ocidente europeu, séculos de deificação de
heróis culturais — e já não de príncipes ou de papas, como no passado. Heróis esses conotados ora
com uma certa exemplaridade, como Voltaire, Byron, Chateaubriand, V. Hugo ou Wagner, ora
filosófica e profeticamente criticando essa divinização, como Marx, Nietzsche ou Kierkegaard. Este
processo assume, nas palavras de Eduardo Lourenço, um especial contorno:
A ideia do cultural como esfera autónoma e, sobretudo, como expressão sublimada e
sublime da realidade humana — em suma, o seu panteão íntimo — é uma ideia
moderna. É mesmo a essência da modernidade. (…) Sob este pano de fundo, o reino da
cultura ou a cultura como reino privilegiado, expressão e instância crítica ou
voluntariamente estranha à sociedade capitalista onde enraíza, viveu, se assim se pode
dizer, a sua idade de ouro (1994, 21).
• 3 Eduardo Lourenço dizia a esse propósito que “culturalmente, essa hegemonia não é de
ninguém eédetod (...)
9Porém, é agora neste fim de século, como sugeria ainda Eduardo Lourenço, que, não sendo já
positivamente nada, a “cultura” toma o lugar de tudo. Não só a circulação de mercadorias se tornou
universal (a chamada “mcdonalização” dos consumos), não só o acesso (pelo menos, teórico) ao
mesmo tipo de bens de consumo parece fazer-se à escala planetária e, finalmente, não só o processo
de produção desses mesmos bens parece obedecer ao mesmo imperativo económico (o lucro), como
também o estatuto sociológico e mesmo ontológico dos produtos da “cultura” ou dos bens culturais
se alterou, mercantilizando-se e impondo, consequentemente, “ícones culturais exemplares” (cf.
Lourenço 1994) — por exemplo, aqueles que têm uma relação privilegiada com a economia
dominante.3 Assistimos então a uma “mundialização do cultural”, que, sob o duplo efeito da
extensão dos limites ou das fronteiras culturais até à escala planetária e da sua compressão ou
incorporação num modelo global dominante, permite assim, por um lado, uma banalização de
práticas e modelos culturais entre culturas aparentemente até há pouco impenetráveis e não
dialogantes e, por outro, revelar-se fundamentalmente como uma hegemonização cultural do planeta
segundo um modelo e uma ideia do “cultural”. Ideia e modelo esses, afinal, de origem bem mais
concreta: é o que podemos chamar “americanização” da cultura decorrente do modelo económico
capitalista e do sistema político democrático de assinatura euro-americana.
• 4 Citado em Barber, K., e Waterman, C., “Traversing the global and the local”, in D. Miller
(1995, Wo (...)
10Todavia, esta algo banalizada percepção da globalização como uma mera invasão cultural made
in USA, arrasando ou diluindo culturas e submetendo-as a efeitos de homogenização (do mesmo
tipo da “cultura plástica” da Coca-Cola e da McDonald), é mais um exercício de autocrítica
reflexiva de discursos intelectuais cosmopolitas com contornos “politicamente correctos” do que
uma constatação empírica. Uma hipótese alternativa (e a meu ver mais interessante) tem vindo a ser
sugerida contemporaneamente (cf. Miller 1995; Fardon 1995; Storey 1993 ou Giddens 1991, entre
outros), a saber: nos contextos culturais periféricos manifesta-se uma apropriação selectiva de
elementos da cultura hegemónica metropolitana (ou central/global) no sentido de construir meios
híbridos próprios que permitam ser articuláveis com a experiência histórica e social local. Nas
palavras de Ulf Hannerz, estamos todos a ser “crioulizados”!4
11Eventualmente, este modelo da “crioulização” pode trazer algumas vantagens analíticas:
primeiro, ressalva o papel activo e criativo dos indivíduos como produtores culturais mais do que
como reprodutores passivos vítimas de uma gangrena global; em segundo lugar, destaca a
relevância dos processos de criação ou de transformação, dinâmicos e originais, em plena era de
“colonização ou neocolonização” cultural; e, em terceiro lugar, revela que este novo produto
cultural — a “crioulização” — érepresentado como uma linguagem generativa cujos significados e
funções dos seus elementos não são já determinados pela sua fonte cultural primeva ou de origem
nem pela mera penetração externa. Contudo, estas podem ser apenas vantagens aparentes, já que, de
um modo geral, não se dissipa a bipolarização analítica do campo da “cultura”; podem mesmo ser
reforçados os modelos opositivos entre elementos “indígenas, populares, tradicionais ou locais” e
elementos “importados, eruditos, modernos e globais”.
12Convirá então referir que estes são (ou foram) genericamente os eixos centrais dos debates sobre
a transformação, a transição e a mudança operadas nos sistemas sociais “tradicionalmente”
estudados pelos antropólogos, ou seja, as ditas sociedades primitivas — quer sob a soberania dos
impérios coloniais, quer após as diversas descolonizações ou neocolonializações. Mas são também,
de forma similar, os mesmos eixos que nos permitem pensar e equacionar as transformações
operadas, à escala mundial, nos sistemas sociais contemporâneos e, em particular, na relação entre
os centros e as periferias culturais, entre o global e o local, procurando encontrar os contornos das
dinâmicas metamorfoses dessa tal “cultura popular”.
13Assume-se, desde logo, como relevante o facto de neste cenário original da “modernidade tardia”
(cf. Giddens 1991) se tornar cada vez mais evidente — e não menos paradoxal — o que podemos, e
devemos porventura, começar a designar por a assinatura pessoalizada desse “popular”. E que até
“fala com arte” não já sob o manto do anonimato ou da nomeação colectiva, mas cujo rosto se torna
visível, expressando-se intencionalmente de modo artístico — como este colóquio, aliás, atesta.
Mas essa visibilidade e o reconhecimento de que existem conjuntos diversos de práticas, de normas
e de critérios culturais, de símbolos e representações, de criações e de objectos que exprimem e
respeitam à totalidade/diversidade da existência quotidiana popular, não se consolida sem alguma
polémica — social e sociológica, digamos assim.
• 5 Sobretudo pelos intelectuais alemães, que introduziram expressões novas como indício do
surgimento (...)
14Depois da(re)invenção, pelos eruditos europeus do final do século XVIII, dessa categoria queéo
“povo”5 — uma multidão de gentes, de usos e costumes — edoespoletar do interesse pelas suas
expressões culturais tradicionais — quando justamente estas se encontravam aparentemente em
franca diluição, ou melhor, em confronto desigual com os modelos modernos em ascensão —,
encontramo-nos agora perante a necessidade de aferir as assinaturas particulares que relativizam os
modelos homogenizadores da(s) “cultura(s) popular(s)” — e da(s) “cultura(s) da(s) elite(s)”. Aliás,
a mercadorização recente dos produtos culturais coloca em questão as abordagens demasiado
polarizadas nos três principais patamares da cultura: grande cultura, cultura popular e cultura de
massas (cf. Lima dos Santos, 1988).
15Já Peter Burke (1978) nos havia revelado a imprecisão e vacuidade do termo “cultura”, porque
sujeito a múltiplas definições e usos correntes; para esse autor, “cultura” definia-se como um
sistema de significados, atitudes e valores partilhados, e as formas simbólicas (apresentações,
objectos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados. De um outro modo, Edgar Morin
referia-se às sociedades modernas como policulturais; Raymond Labourie (1979) falou em
pluralidade de culturas, tal como Michel de Certau (1974) havia explorado o tema da cultura no
plural, e Maurice Imbert (1979) propôs três níveis de advertência no debate sobre a definição de
“cultura”: em primeiro lugar, ao invés da concepção elitista e fechada, que circunscreve o campo da
cultura às obras do espírito e à criação artística, as definições das ciências sociais devem abranger
mais largamente o conjunto dos sistemas simbólicos, das regras sociais e dos saberes que organizam
as práticas quotidianas de uma classe social, de um grupo étnico, de uma sociedade, etc.; em
segundo lugar, a referência a critérios de “nível” ou a hierarquias de valor entre as diferentes formas
culturais presentes nas concepções elitistas (tipo artes maiores/artes menores; obras
consagradas/amadorismo; artes puras/artes aplicadas, etc.) deverá estar ausente das definições das
ciências sociais para as quais as noções de “subculturas” ou de “cultura popular”, etc., não implicam
nenhum julgamento de valor; finalmente, e em terceiro lugar, enquanto nas concepções elitistas a
cultura é valorizada prioritariamente nos seus produtos ou “obras” — implicando o interesse pelas
modalidades de criação, difusão e assimilação —, numa concepção mais ampla ela define-se
enquanto processo activo de expressão e de significação das práticas pelas quais cada indivíduo,
cada grupo, cada sociedade, actualiza a sua relação com o mundo — no trabalho, no jogo e nas
múltiplas actividades da vida quotidiana.
16Raymond Williams (1983) sugere outros três planos conceptuais para a definição de “cultura”:
(a) o termo pode ser usado para se referir a um processo geral de desenvolvimento estético,
espiritual e intelectual; (b) pode sugerir um particular modo de vida, seja de um povo, de um
período ou de um grupo, isto é, as suas vivências e práticas culturais; e finalmente (c) pode referir-
se a produtos e práticas de actividade intelectual e especialmente artística, ou seja, aos textos
culturais e às suas práticas significantes. Porém, a concepção de “cultura” foi, na era da chamada
descoberta do povo (cf. Burke, 1978), assimilada menos sob o ângulo das práticas culturais,
individuais e colectivas, do que do ponto de vista das “obras” nas quais elas se reflectem (canções,
provérbios, contos, etc.), referindo-se assim à arte, à literatura e à música. Por isso mesmo, não será
de estranhar que os folcloristas do século XIX tenham procurado equivalentes populares da música
clássica, da arte académica, da literatura erudita, etc; parecendo haver aí sem dúvida um indício
suplementar de uma concepção de “cultura” que se prende mais às produções culturais — ao
património — do que à cultura vivida, actualizada na quotidianidade da existência.
17No quadro contemporâneo das ciências sociais, a definição de “cultura” serve para referenciar
muito mais amplamente quase tudo o que pode ser apreendido numa dada sociedade ou num dado
grupo — como comer, beber, falar, andar, silenciar, nascer, morrer, etc. — e inclui,
simultaneamente, a análise das acções e das noções subjacentes à vida quotidiana. Referenciando a
notável definição de C. Geertz “os homens são artefactos culturais” (1973 36) e as “culturas”
articulam em simultâneo padrões simbólicos estruturados e padrões de acção ou simbólicos
estruturantes; isto é, quando como antropólogos interpretamos “culturas” estamos a interpretar
modelos de e para a realidade, para usar outra sugestiva imagem de Geertz. Afinal, não estamos
distantes daquilo que Bourdieu (1972, 1979, 1989) virá a chamar habitus — os princípios
geradores, os esquemas de percepção, apreciação e acção que estruturam a produçãoearecepção de
sentido de realidade. Deste modo, a acção humana tende a ser regulada por quadros de sentido e
referência, mas esses quadros, essas visões do mundo, são divisões do mundo, são marcações
diacríticas, são classificações e classificações em luta, porquanto as produções simbólicas se fazem
em contextos de lutas simbólicas e mais genericamente de tensões sociais (cf. Bourdieu, 1989; veja-
se a propósito a noção de “drama social” de Turner 1967, 1969, 1974).
18Todavia, foram curiosamente os historiadores do período de transição para a chamada época
moderna (seja ela pensada como iniciada a partir do século XVI com o Renascimento europeu, ou
apenas quando consolidada pelo iluminismo, um pouco mais tarde após a Revolução Francesa) que
melhor questionaram os dualismos redutores, na expressão de Augusto Santos Silva (1994), entre
(culturas) dominantes/(culturas) dominadas. Tal facto justifica-se, de certo modo, porque se tratou
de um período particularmente fértil em trocas e interacções — nem sempre pacíficas — entre
culturas correspondentes a diferentes níveis sociais. São prova disso mesmo os estudos pioneiros de
Mikhail Bakhtin (1965) sobre a forma como a obra de Rabelais inspirou e se inspirou na “cultura
cómica popular” tardo-medieval, ou o trabalho de Carlo Ginzburg (1976) sobre a simbiose de traços
da cultura letrada e de traços de correntes camponesas tradicionais coexistentes no pensamento de
um moleiro quinhentista contestatário. Estas obras, aliás, tornaram-se paradigmáticas e são
referências fundamentais do argumento da circulação e reciprocidade de influências culturais.
19Jacques Revel, Michel de Certau e Dominique Julia (1990), a propósito do interesse que, neste
longo período de edificação da Idade Moderna, foi dedicado aos estudos consagrados à “cultura
popular” (que se tornou bela por estar supostamente morta ou moribunda) e delimitando as
diferentes atitudes político-ideológicas, pseudocientíficas e científicas face aquele objecto, revelam
também a ambiguidade da referida “cultura popular”. A afirmação segundo a qual as “culturas
populares” são apenas vestígios da sociedade pré-industrial e já só aparecem no estado de
sobrevivência arcaica nas regiões campestres mais atrasadas, inscreve-se em linha recta nas
concepções que apenas apreendem os factos culturais em referência aos critérios distintivos
codificados pela cultura dominante: tradições orais, preceitos, cosmogonias e rituais, jogos e
crenças, etc. É indiscutível que esses testemunhos do passado já só existem hoje em estado de traços
e é um facto que tanto em meio agrícola como na população operária das cidades o espaço deixado
vago pelo seu abandono está largamente exposto à acção banalizante da cultura de massa. Mas
ficar-se por esta concepção restritiva e redutora do facto cultural conduz a ocultar os seus
componentes esssenciais e mais significativos.
20Sem pretender esgotar as referências, também Roger Chartier (1995) concentra a sua atenção nos
usos diferenciados pelos grupos sociais (europeus e pós-renascentistas) dos géneros e das obras
literárias e nas formas editoriais que procuram e “produzem” públicos diversos — tentando reflectir
sobre uma possível história do “mundo do texto” e do “mundo do leitor”. O mesmo autor (Chartier,
1988) havia já assinalado três direcções para reequacionar a noção clássica de “cultura popular”: a
primeira focaliza as circulações fluidas, as práticas partilhadas que atravessam os horizontes sociais,
afastando-se assim das correspondências estritas entre clivagens culturais e hierárquias sociais; a
segunda propõe-se perspectivar a natureza compósita dos materiais portadores das práticas e dos
pensamentos da maioria, combinando formas e motivos, invenção e tradições, cultura letrada e base
folclórica em oposição a uma procura das genuinidades primordiais e das origens purificadas; e a
terceira pretende multiplicar os critérios de apreensão das diferenças sociais plurais em contraste
com a oposição macroscópica entre letrado e popular (cf. Chartier 1988, 134).
21Trata-se, então, de mobilizar cada vez mais a nossa atenção para a interacção entre os diversos
modelos culturais e para a relevância da “transgressão” dos limites ou das fronteiras entre os
mesmos (cf. Burke 1978). Entre o universo da literatura oral (paradoxo incontornável) e o da
literatura erudita os muros deixam de ser intransponíveis; do mesmo modo que a linha de
demarcação entre as artes verbais e as técnicas oratórias dos grupos tradicionais e o mundo da “arte
erudita” e da cultura letrada não é revelável e contrastável pela ausência ou presença de
características como o distanciamento ou a referencialidade, a abstracção ou a contextualização, a
descontinuidade ou as “quebras de racíocinios”, a criação ou o mimetismo, a inventabilidade ou a
conservação, ou ainda pelas diferenças de ritmos e de cadências mnemónicas, etc.
22Neste sentido, outra equação vulgarizada — oralidade/cultura escrita ou letrada — não deverá
ser, do mesmo modo, polarizada, ideia já defendida por Eric Havelock (1963, 1991). Os efeitos da
escrita ou da oralidade sobre o pensamento humano tem sido frequentemente exagerados e até
sujeitos a interpretações dúbias e falaciosas (cf. Deny, 1991); sob esse pressuposto, acreditou-se que
o pensamento ocidental, para o qual muito contribui a cultura escrita, seria mais reflexivo, mais
abstracto, mais complexo e mais lógico que o pensamento de sociedades agrícolas ou caçadoras-
colectoras sem escrita. Ainda não há muito tempo a palavra “primitivo” (um termo frequentemente
relacionado com a “cultura oral”) evocava a silhueta e os hábitos de um vago pitecantropo, mais
ocupado com os alimentos do que com qualquer outra coisa; a este selvagem, cuja língua devia
estar próxima das onomatopeias do macaco, atribuíam-se apenas meios de expressão limitados e
via-se nesta pretensa indigência do seu vocabulário uma das características do espírito “primitivo”.
Já em 1927, Olivier Leroy (La Raison Primitive, Paris) dizia:
Hoje sabemos que as línguas dos não civilizados são tão ricas pela abundância de
vocábulos como pela variedade das formas; se o Lapão tem termos especiais para
designar uma rena de um, dois, três, quatro, cinco, seis ou sete anos, se possui vinte
termos para o gelo, onze para o frio e quarenta e um para as diversas espécies de neve,
vinte seis verbos para exprimir o gelo e o degelo, uma tal variedade não é o resultado do
esforço voluntário, mas da necessidade vital de forjar uma aparelhagem verbal adaptada
às necessidades de uma civilização árctica. É porque, realmente, uma neve dura, friável
ou que se derrete são fenómenos distintos para a sua actividade que o Lapão as
distingue na sua linguagem (Ibid., p. 100).
• 6 Cf. Tony Bennett (1980), “Popular culture: a teaching object”, Screen Education, n.° 34, p.
18.
27Tony Bennett6, um investigador britânico que trabalha na área dos chamados cultural studies,
dizia já em 1980 que o conceito de “cultura popular” era não apenas virtualmente inútil mas mesmo
um verdadeiro melting pot de significados confusos e contraditórios. Outros, como o já citado
historiador-antropólogo Peter Burke (1978), optam por defini-la preliminarmente pela negativa,
pela exclusão, por aquilo que ela não é. De modo semelhante, a leitura articulada que tenho vindo a
fazer a partir das construções conceptuais da teoria da cultura em torno da definição de “cultura” ou
de “cultura popular” sugere, desde logo, um corolário particularmente próximo da posição de
Bennett ou de Burke — ou seja, a definição de cultura popular é um construto conceptual vazio que
pode ser carregado de significados através do confronto com categorias conceptuais opositivas
consoante os contextos do seu uso académico e/ou social. No fundo, trata-se de solicitar o concurso
de uma espécie de alteridade ou de jogo reflexivo permanente que, implícita ou explicitamente,
através de uma ausência ou presença de categorias conceptuais contrastantes, permite definir o que
é “cultura popular”.
28Um primeiro corolário diz respeito à dificuldade preliminar em se definir o que é o “povo” ou o
“popular” — e assumindo, desde já, as asserções feitas no mesmo sentido acerca do conceito de
“cultura”. Evidentemente que existe antes do mais uma história política dinâmica do uso social e da
definição de “povo” em contexto europeu. E por isso mesmo também a sua emergência como
conceito, os seus significados e as suas transformações estão intimamente associados aos locais em
que se formam — países, grupos sociais e étnicos, nações ou impérios, tradições académicas,
contextos políticos e sociais, etc. Seria, porventura, interessante delimitar uma cartografia histórica
e comparada da emergência do conceito povo e dos seus atributos, na Europa.
29A Revolução Francesa é sem dúvida um marco histórico importante na construção dessa
categoria — o povo = cidadão com direitos e deveres perante o Estado — porque antes dela a sua
associação ao conjunto dos súbditos, das comunidades locais e profissionais só adquiria pertinência
no quadro do controlo estatal do território e dos seus recursos. Assim, a forte associação entre a
chegada à cena sociopolitica das “massas populares” e a emergência do “estado-nação moderno”
estabelece uma marca e uma aliança simbólica importante entre essas categorias: os “usos e
costumes” desse “povo” são também a “alma” e o “espírito” nacionais e parecem fornecer a síntese
do carácter cultural e identitário colectivo. É, pois, natural que boa parte do interesse inicial sobre a
“cultura popular” esteja intimamente ligada à produção das identidades nacionais europeias —
ainda que em ritmos históricos diferenciados. Pina-Cabral (1990), referindo-se ao caso português,
diz que
(…) a produção e reprodução de uma identidade nacional no contexto de uma
hegemonia burguesa parece, assim, ter dependido da constante reformulação da noção
de “povo” — no seio da qual se deveria encontrar a “verdadeira” identidade nacional
(1990, 15).
30Todavia, e de maneira bastante irónica, a ideia de uma “nação” veio dos intelectuais e foi imposta
ao “povo” com quem aqueles se queriam identificar. Em 1800, os artesãos e os camponeses
europeus tinham uma consciência mais regional do que nacional (cf. Burke 1978).
31Esta equação povo/nação sugere um outro corolário: a partir da ascensão da burguesia ao poder
(em Portugal, só após a primeira metade do século XIX), o estudo da “cultura popular” procura
atestar o carácter de autenticidade que a sociedade burguesa pensa não encontrar na sua cultura. Os
costumes populares são pensados como autênticos na medida em que são ancestrais e se opõem aos
costumes da burguesia urbana, que, embora inequivocamente hegemónicos, não são “típicos”
porque “modernos”. Mas a este processo de “culto” das “coisas populares” associa-se um outro que
é o da estigmatização da multidão urbana (ou “turba”, conforme conceito de Hobsbawn (1959) e
das “massas operárias” que se tornavam aos olhos da burguesia (e da aristocracia) liberal
hegemónica como verdadeiras “classes perigosas”, no final do século XVIII e no início do século
XIX. Assim, tal como sugere Revel (1990) e Burke (1978), o nascimento do exotismo popular
refere-se a uma concepção particular desse mesmo “popular”.
• 7 Em 1790, o abade de Grégoire lançou um questionário sobre os costumes e dialectos
regionais frances (...)
32Havia, no entanto, já uma tradição latente desde o Renascimento que estava interessada nos usos
e costumes antigos, mas que só ganhou expressão mais evidente no século XVIII; a diversidade de
crenças e práticas em diferentes partes do mundo (vejam-se os estudos sobre Taiti e Iroqueses) foi
um passo para lançar o olhar sobre os próprios “primitivos” europeus que estavam, afinal, tão
distantes nas suas crenças e estilos de vida. A “cultura popular” de 1800 foi descoberta sob o
pretexto de ser uma cultura a desaparecer, precária, em sobrevivência mas susceptível às
transformações… mesmo antes da Revolução Industrial, a “cultura popular” vinha sendo minada
pelo crescimento das cidades, a melhoria das vias de comunicação e a alfabetização. O centro
invadia a periferia. E este processo de transformação social deu aos intelectuais uma consciência
ainda maior da importância da tradição. As lentes românticas e nacionalistas dos intelectuais do
início do século XIX (Burke, 1978, 44)7 lançam-se sobre a pureza, a inocência perdida, o símbolo
da virtude e da infância, supostamente conservadas desde os tempos imemoriais do “povo” rural,
camponês — os selvagens do interior. Aliás, com a importante vantagem de estarem civilizados
pelos costumes cristãos que os torna súbditos fiéis, dóceis e laboriosos.
• 8 Herder, em 1778, dizia num ensaio sobre a influência da poesia nos costumes dos povos
antigos e mod (...)
33Assim no final do século XVIII, o “povo” era interessante de uma certa forma exótica e no início
do século XIX existia um culto do “povo” e uma imitação. Houve para tal três ordens de razões. (1)
Razões estéticas: a revolta contra a “arte”; o “artificial” (polido) tornou-se um termo pejorativo e
em contraste ‘natural e selvagem’ elogiosos. Exalta-se o apelo estético do inculto, do não clássico e
primitivo, donde a descoberta da cultura popular fazia parte de um movimento de primitivismo
cultural no qual o antigo, o distante e o popular eram igualados. (2) Razões intelectuais: uma reação
contra o Iluminismo (tal como se caracterizava em Voltaire), contra o seu elitismo, contra o seu
abandono da tradição, contra a sua ênfase na razão. Os irmãos Grimm — pioneiros, com Herder, no
enobrecimento da poesia e literatura populares — valorizavam a tradição acima da razão, o surgido
naturalmente acima do planejado conscientemente, os instintos do “povo” acima dos argumentos
intelectuais. A revolta contra a razão pode ser ilustrada pelo novo respeito pela religião popular e
pela atração dos contos populares relacionados com o sobrenatural. (3) Razões políticas: a
descoberta da cultura popular estava intimamente ligada com a ascensão do nacionalismo ou dos
sentimentos de autodeterminação nacional — “nenhuma pátria pode existir sem poesia popular. A
poesia popular não é senão o cristal em que uma nacionalidade se pode espelhar; é a fonte que traz à
superfície o que há de verdadeiramente original na alma do povo” como disse um intelectual
filandês no início do século XIX citado por P. Burke (1978, 40).8
34A descoberta da “cultura popular” esteve assim associada a uma série de movimentos
“nativistas”, enquanto tentativas organizadas de sociedades sob domínio estrangeiro para reviver a
sua cultura tradicional (ou como explicitação do carácter e da identidade nacionais em sociedades
cuja afirmação própria já há muito havia sido consolidada). Esse interesse por diversos tipos de
literatura tradicional era, ele mesmo, parte de um movimento mais amplo de descoberta do “povo”
— da religião popular, das festas populares, da música popular, da história do povo ao invés da
história dos governantes, e mais tarde das artes, tecnologias e objectos populares.
35Evidentemente, a herança dos textos recolhidos, colectada e revelada por poetas, antiquários,
editores (por exemplo Almeida Garrett foi ao mesmo tempo o revitalizador da poesia nacional e o
redescobridor das cantigas populares), foi algo complexa, nomeadamente para os historiadores, e
gerou múltiplas controvérsias no sentido de investigar a validade e a autenticidade das traduções,
das emendas, correcções ou omissões e cortes, das cópias e das interpretações e dos processos de
recolha, etc. Nas recolhas musicais, os temas populares eram “harmonizados” pela escrita musical
erudita, também as festas eram “restauradas”. Assim, ler um texto de uma balada, de um conto
popular ou até uma melodia numa colectânea da época era como olhar para uma igreja gótica
“restaurada” no mesmo período. E destes factos advém, uma outra asserção: a “cultura popular”, se
estava a ser “descoberta” pelos grupos eruditos e politicamente hegemónicos, estava também
simultaneamente a ser docilizada, domesticada, reformada e “(re)inventada”.
36Os historiadores em uníssono reclamam que destes intelectuais do início do século XIX
herdámos também as ideias enganosas: na medida em que não discriminaram o suficiente; não
seleccionaram e separaram rural de urbano, o camponês do conjunto da nação, o primitivo do
medieval, etc., e, como gostavam de comparar sociedades camponesas com tribais, os Grimm e
Herder e os seus seguidores acabaram por definir a “cultura popular” sob três postulados altamente
questionáveis. (1) Primitivismo estático: situando os “achados” num vago período primitivo, como
tendo sido transmitidos oralmente durante séculos, quando, de facto, o que se poderia
eventualmente provar é que a cultura popular, de 1500 a 1800, esteve sujeita a transformações. (2)
Colectivismo ou comunitarismo: a tese da criação colectiva dos Grimm (das Volk dichtet) chamava
a atenção para o papel diminuto do indíviduo na criação versus o papel da tradição colectivamente
partilhada (por oposição à cultura erudita); todavia os estudos feitos sobre cantores e contadores de
histórias revelou que a transmissão de uma tradição não inibe o desenvolvimento de um estilo
individual. (3) Purismo e homogeneidade: ocasionalmente, o “povo” era concebido como todas as
pessoas de uma nação, mas a maioria das vezes o termo era mais restritivo: pessoas incultas, rurais,
camponesas e não a “turba” urbana, vivendo perto da natureza, menos marcadas pela influência
estrangeira, tendo preservado os costumes primitivos, etc., mas essa atitude revelou a ignorância
face aos processos de transformação e mudança social e cultural, subestimou a interacção entre
cidade/campo e popular/erudito — pelo que, portanto, não haveria razão para se excluir os urbanos
— turba, artesãos ou operários, etc. — de um estudo sobre a cultura popular.
37O corolário que se segue é que a dificuldade em se definir o “povo” sugere que a cultura popular
não era monolítica nem homogénea. De facto, era extremamente variada e heterogénea. Aliás, o
termo “cultura popular” dá uma falsa impressão de homogeneidade e seria melhor usá-lo no plural.
Peter Burke (1978), tal como António Gramsci, fala em substituí-lo por uma expressão como “a
cultura das classes populares” e afirma que
(…) a fronteira entre as várias culturas do povo e as culturas de elite (e estas eram tão
variadas quanto aquelas) é vaga e por isso a atenção dos estudiosos do assunto devia
concentrar-se na interacção e não na divisão entre elas (Burke 1978, 20)