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Sinopse

Primeiro livro da trilogia Dustbowl, que inclui "Ratos e Homens" e "Vinhas


da Ira", "Batalha Incerta" conta a história de uma greve de boias-frias da
Califórnia, tanto ajudada quando prejudicada pelo "Partido", não
identificado mas sabidamente o Partido Comunista.
Forças incontáveis de Espíritos armadas
Que ousaram não gostar do seu reino e, preferindo-me,
Ao seu poder supremo outro poder adverso opor
Em batalha incerta nas planuras celestes,
Fazendo tremer o seu trono. Que importa que perdido fosse o
campo?
Nem tudo está perdido: nem a vontade inconquistável,
Nem o planear da vingança, nem o ódio imortal,
Nem a coragem para nunca se submeterem ou cederem.
E que mais há que não possa ser vencido?

PARAÍSO PERDIDO

Capítulo 1
ERA noite, finalmente. Os candeeiros de iluminação pública
acenderam-se e o letreiro a neon do restaurante da esquina começou a
acender-se e a apagar-se, com a crua luz vermelha a explodir no ar e a
inundar o quarto de Jim Nolan de uma suave claridade avermelhada.
Durante duas horas Jim estivera sentado numa pequena e dura cadeira
de balanço, com os pés em cima da colcha branca. Quando escureceu
por completo, tirou os pés de cima da cama e bateu nas pernas
dormentes. Ficou um momento imóvel, enquanto o formigueiro lhe subia
e descia em ondas pelas barrigas das pernas. Depois levantou-se e
acendeu o candeeiro sem velador. O quarto mobilado iluminou-se e
mostrou o seu conteúdo: a grande cama branca, com a coberta de uma
brancura de giz; a escrivaninha de carvalho dourado e a carpete
encarnada, limpa, mas tão puída que estava praticamente reduzida à
urdidura castanha.
Jim dirigiu-se ao lavatório, ao canto, lavou as mãos e enfiou os dedos
molhados no cabelo. Olhou para o espelho, suspenso acima do
lavatório, e, por momentos, perscrutou os próprios olhos cinzentos,
pequenos. De uma algibeira interior tirou um pente de bolso, penteou o
cabelo castanho, liso, e fez um risco ao lado, muito direitinho. Vestia fato
escuro e camisa de flanela cinzenta, de colarinho desabotoado.
Enxugou o pequeno sabonete com uma toalha e meteu-o num saco de
papel, aberto em cima da cama, no qual já se encontravam uma gilete,
quatro pares de peúgas novas e outra camisa de flanela cinzenta. Olhou
em redor do quarto e depois fechou o saco, antes de apagar a luz e sair.
Desceu a escada estreita e sem alcatifa e bateu à porta que ficava ao
lado da entrada principal. A porta entreabriuse. Uma mulher espreitou
pela abertura e depois abriu mais a porta - era uma mulher loura e forte,
com uma verruga escura ao lado da boca.
— Mister Nolan! — exclamou, a sorrir.
— Vou-me embora. — informou Nolan.
— Mas voltará. Quer que lhe reserve o quarto?
— Não. Tenho de me ir embora de vez. Recebi uma carta nesse
sentido.
— Aqui não recebeu cartas nenhuma. — disse a mulher, desconfiada.
— Não, foi no meu trabalho que a recebi. Não voltarei. Tenho uma
semana de renda paga adiantada.
O sorriso da mulher dissipou-se lentamente e a sua expressão
pareceu tornar-se colérica, sem no entanto se modificar muito.
— Devia ter-me avisado com uma semana de antecedência. —
lembrou, agressiva — É essa a norma. Tenho de ficar com a semana
paga adiantadamente, porque não me avisou.
— Bem sei, não há problema. Não sabia quanto tempo poderia ficar.
O sorriso voltou ao rosto da senhoria, que declarou:
— Foi um bom hóspede, sossegado, apesar de não se ter demorado
muito por cá. Se alguma vez voltar, venha logo ter comigo, pois arranjar-
lhe-ei onde ficar. Conheço marinheiros que vêm cá todas as vezes que
atracam no porto e eu arranjo-lhes sempre alojamento. Não querem ir
para mais lado nenhum.
— Não me esquecerei disso, Mrs. Meer. Deixei a chave na porta.
— Apagou a luz?
— Apaguei.
— Bem, nesse caso só preciso de lá ir amanhã de manhã. Quer entrar
e beber um copo?
— Obrigado, mas tenho de ir andando.
Os olhos da mulher semicerraram-se, manhosos.
— Não está em apuros, pois não? Se estiver, talvez o possa ajudar.
— Não, ninguém me procura. Arranjei outro emprego, mais nada.
Bem, boas noites, Mrs. Meer.
A Mulher estendeu-lhe a mão empoada. Jim mudou o saco de papel
para o outro braço, apertou-lhe um momento a mão e sentiu a carne dela
ceder sob a pressão dos seus dedos.
— Não se esqueça, poderei arranjar-lhe sempre onde ficar. As
pessoas procuram a minha casa ano após ano, tanto marinheiros como
bateristas.
— Não me esquecerei. Boas noites.
Ela seguiu-o com o olhar até o ver sair e descer os degraus de
cimento, para o passeio.
Jim caminhou até à esquina da rua, e viu as horas na montra de uma
ourivesaria: sete e meia. Começou a andar depressa, para leste, através
de um bairro de armazéns e lojas de especialidades, a que se seguiu o
da venda por atacado, silencioso àquela hora da noite, com as ruas
estreitas desertas e as entradas dos armazéns fechadas com barras de
madeira e rede de arame. Por fim chegou a uma velha rua de prédios de
tijolo de três andares. Penhoristas e negociantes de ferramentas em
segunda mão ocupavam as lojas do rés-do-chão, enquanto dentistas e
advogados em maré de azar tinham consultórios e cartórios nos andares
de cima. Jim foi olhando para todas as portas até encontrar o número
que queria. Transpôs a entrada escura e subiu a escada estreita,
revestida de borracha, e com tiras de latão na borda dos degraus. No
cimo da escada estava acesa uma pequena lâmpada, mas das diversas
portas do comprido corredor só através do vidro fosco de uma se
escoava luz. Jim aproximou-se, viu o número “16” no vidro e bateu.
— Entre! — ordenou uma voz forte.
Jim abriu a porta e entrou num pequeno escritório que continha uma
secretária, um ficheiro metálico, uma cama do exército e duas cadeiras
de espaldar alto. Em cima da secretária estava uma chapa elétrica,
sobre a qual fumegava e fervilhava uma cafeteirinha de lata. O homem
sentado à secretária olhou-o solenemente, passou uma vista de olhos
pelo cartão que tinha à frente e perguntou:
— Jim Nolan?
— Sim.
O recém-chegado observou com atenção o homem baixo, de correto
fato escuro. Penteava o cabelo basto para baixo, do alto da cabeça, para
cada um dos lados, numa tentativa vã para disfarçar a cicatriz branca,
com 1,5 cm de largura, que lhe marcava horizontalmente a orelha direita.
Os olhos vivos e pretos, olhos irrequietos e nervosos que não paravam:
de Jim para o cartão e deste para o calendário da parede, Para um
despertador e novamente para Jim. Tinha o nariz grande, grosso em
cima e estreito na ponta, e a boca poderia ser simultaneamente cheia e
agradável se a tensão muscular constante não a apertasse com força e
não tivesse transformado cada um dos lábios numa linha funda. Embora
o indivíduo não devesse ter mais de quarenta anos, o seu rosto
apresentava dois sulcos vincados, parentéticos, de resistência ao
ataque. As mãos, tão nervosas como os olhos, eram grandes - quase
excessivamente grandes em relação ao corpo - com dedos compridos
de pontas espatuladas e unhas grossas e planas. moviam-se pela
secretária como as mãos exploradoras de um cego, apalpando papéis e
contornando os cantos do móvel, ou tocavam sucessivamente cada um
dos botões do colete do homem. A mão direita estendeu-se para a
chapa elétrica, e puxou a ficha.
Jim fechou a porta e aproximou-se calmamente da secretária.
— Mandaram-me vir aqui. — informou.
De súbito, o homem levantou-se e estendeu a mão direita.
— Sou Harry Nilson. Tenho aqui a sua inscrição. — Jim apertou-lhe a
mão — Sente-se, Jim. — a voz nervosa era suave, de uma suavidade
conseguida com esforço. Jim puxou a cadeira livre e sentou-se junto da
secretária. Harry abriu uma gaveta e tirou uma lata de leite aberta, com
os buracos tapados com fósforos, uma chávena de açúcar e duas
canecas de louça grosseira. — Vai uma caneca de café?
— Com certeza.
Nilson deitou o café forte nas canecas.
— Vou-lhe explicar como procedemos com os pedidos de filiação. O
seu cartão seguiu para o comitê de admissão e eu tenho de falar
consigo e fazer um relatório. O comitê estuda o relatório e depois vota a
sua admissão ou não admissão. Por isso, se eu o interrogar a fundo,
compreenda que tem de ser mesmo assim. — deitou leite no seu café,
levantou a cabeça e os seus olhos sorriram, por instantes.
— Compreendo, claro. — declarou Jim — já constou que vocês são
mais seletos do que o Union League Club.
—Temos de ser, com a breca! — empurrou a chávena do açúcar para
Jim e perguntou-lhe, de súbito: — Porque quer entrar para o Partido?
Jim mexeu o café e franziu o rosto para se concentrar. Baixou a
cabeça, e respondeu:
— Bem, podia indicar-lhe uma quantidade de pequenas razões.
Trata-se, principalmente do seguinte: toda a minha família foi destruída
por este sistema. O meu velho, o meu pai, levou tanta porrada por causa
de problemas laborais que acabou por se tornar malhadiço; a pancada
era uma espécie de bebedeira para ele. Meteu-se-lhe na cabeça que
havia de dinamitar um matadouro onde trabalhava. Bem, acabou por
levar.
Nilson puxou uma folha de papel e tomou alguns apontamentos.
— Como aconteceu isso de o prenderem por vagabundagem?
— Eu trabalhava no Tulman's Department Store, era chefe da seção
de embalagem. — respondeu Jim, em tom veemente — Uma noite fui ao
cinema e, ao regressar a casa, vi uma multidão na Lincoln Square. Parei
para ver o que se passava, No meio do parque tinha um sujeito falando.
Subi para o pedestal da estátua do senador Morgan, para ver melhor, e
de repente ouvi as sereias. Deixei-me ficar a ver as brigadas contra
desordens que avançavam do outro lado do parque... e não reparei que
vinha outra pela retaguarda, também. Um tira bateu-me mesmo na nuca.
Quando recuperei os sentidos já estava registrado como vadio. Estive
atordoado muito tempo... o tipo bateu-me mesmo aqui. — Jim levou os
dedos à base do crânio — Bem, disse que não era vagabundo, que
tinha emprego, e pedi-lhes que telefonassem a Mr. Webb, o gerente do
Tulman's,. e eles telefonaram. Webb perguntou onde me tinham
apanhado, o sargento respondeu que tinha sido num comício radical e o
tipo declarou que nunca ouvira falar em mim. Por isso fiquei dentro.
Nilson ligou de novo a chapa elétrica. O café começou a fazer
barulho na cafeteira.
— Mas você parece meio bêbedo, Jim. Que se passa?
— Não sei. Sinto-me morto. Todo o passado desapareceu. Despedi-
me da pensão antes de cá vir, embora ainda tivesse uma semana paga.
Não quero voltar a nada do que deixei para trás. Quero desligar-me por
completo, acabar com tudo.
Nilson voltou a encher as canecas de café.
— Escute, Jim, desejo dar-lhe uma ideia do que é ser membro do
Partido. Terá ensejo de votar em todas as declarações, mas uma vez a
votação feita será obrigado a obedecer ao que for decidido. Quando
temos dinheiro, tentamos dar aos ativistas vinte dólares por mês, para
comerem.. . Mas não me lembro de termos tido dinheiro para isso uma
única vez. Agora ouça em que consiste o trabalho: no campo, terá de
trabalhar ao lado dos homens e, depois, de fazer o trabalho do Partido,
umas vezes dezesseis, outras até dezoito horas por dia, terá de arranjar
comida onde puder. Acha que consegue aguentar isso?
— Acho.
Nilson tocou com as pontas dos dedos em várias coisas da
secretária.
— Na maior parte das vezes, até as pessoas que estiver a tentar
ajudar o odiarão. Sabia isso?
— Sabia.
— Nesse caso, porque quer filiar-se?
Os olhos cinzentos de Jim semicerraram-se, numa expressão de
perplexidade. Por fim respondeu:
— Na prisão havia alguns homens do Partido. Conversaram comigo.
A minha vida inteira tem sido uma confusão, uma desordem. A deles
não. Eles trabalhavam para qualquer coisa, com um fim, e eu também
quero trabalhar para qualquer coisa. Sinto-me morto. Pensei que talvez
pudesse voltar a viver.
— Compreendo. — murmurou Nilson, a acenar com a cabeça —
Pode ter a certeza de que compreendo. Quanto tempo andou na escola?
— Frequentei o segundo ano secundário e depois fui trabalhar.
— No entanto, fala como se tivesse mais estudos.
— Li muito. — explicou Jim, a sorrir — O meu velho não queria que eu
lesse, dizia que acabaria por abandonar a minha própria gente. Mas eu
lia, na mesma. Um dia conheci um homem no parque e ele passou a
fazer listas de coisas para eu ler. Oh, li muito e muito variado! O tipo
fazia listas com: A República de Platão, e a Utopia, e Bellamy, e
Heródoto, e Gibbon, e Macaulay, e Carlyle, e Prescott, e Espinosa, e
Hegel, e Kant, e Nietzsche, e Schopenhauer... Até me obrigou a ler O
Capital! Ele próprio dizia que era chalado, que gostava de saber coisas
sem acreditar nelas. Gostava de agrupar livros que apontavam todos na
mesma direção.
Harry Nilson não disse nada, durante um bocado.
— Espero que compreenda por que motivo precisamos de ser tão
cuidadosos. — observou, por fim — Só temos dois castigos: reprimenda
ou expulsão. É preciso ter uma vontade muito grande de pertencer ao
Partido. Vou recomendá-lo, porque penso que é um bom homem. No
entanto, talvez o recusem, na votação.
— Obrigado!
— Agora escute: tem alguma pessoa de família que possa ser
prejudicada se você usar o seu nome verdadeiro?
— Tenho um tio chamado Theodore Nolan. É mecânico. Nolan é um
apelido muito corrente.
— Sim, creio que é. Tem algum dinheiro?
— Cerca de três dólares. Tinha mais, mas gastei-o no funeral.
— Onde tenciona ficar?
— Não sei. Cortei com tudo, para começar de novo. Não quis deixar
nada pendente.
Nilson olhou para a cama de campanha e disse:
— Eu vivo neste escritório. Como, durmo e trabalho aqui. Se não se
importa de dormir no chão, poderá ficar alguns dias. Jim sorriu, satisfeito.
— Ficarei com muito gosto. As tarimbas da cadeia não eram mais
macias do que o seu chão.
— Já jantou?
— Não. Esqueci-me.
— Se lhe apetecer pensar que me estou a pendurar, pense. —
resmungou Nilson, irritado — Mas a verdade é que não tenho dinheiro
nenhum e você tem três dólares.
Jim deu uma gargalhada.
— Venha daí, compraremos arenques secos, queijo e pão e o
necessário para fazer um guisado, amanhã. Sei fazer um bom guisado.
Harry Nilson deitou o resto do café nas canecas e comentou:
— Está a acordar, Já está com melhor cara. Mas não imagina no que
se vai meter. Poderia informá-lo. mas isso não serve de nada enquanto
não passamos pelas coisas.
— Já alguma vez teve um emprego em que quando adquiria prática
suficiente para ser aumentado, era despedido e substituído por outro? Já
alguma vez trabalhou nalgum lado em que falassem de lealdade para
com a firma, lealdade que significava espiar as pessoas que o
cercavam? Com mil raios, não tenho nada a perder!
— Nada exceto ódio. — disse Harry, calmamente — Ficará
surpreendido quando verificar que deixou de odiar as pessoas. Não sei
porque é, mas costuma acontecer isso.
Capítulo 2
JIM passara o dia todo impaciente. Harry Nilson, que elaborava um
comprido relatório, olhara diversas vezes para ele, exasperado.
— Escute, — disse por fim — pode ir até lá sozinho, se quiser. Nada o
impede. No entanto, daqui a uma hora, poderei ir consigo. Tenho de
acabar esta coisa.
— Tenho estado a pensar se deverei mudar de nome. Tenho estado a
pensar se a mudança de nome exerce algum efeito sobre nós...
Nilson voltou a prestar atenção ao relatório, depois de lhe dizer:
— Um tipo recebe algumas missões duras, de vez em quando vai
parar à cadeia e muda de nome algumas vezes. Por isso, um nome
acaba por não significar mais do que um número.
Jim parou à janela, a olhar para o exterior. Defronte erguia-se um
muro de tijolo, que limitava o outro lado de um estreito terreno vago,
entre dois edifícios. Um grupo de rapazes jogava handebol, contra o
muro, e os seus gritos ouviam-se, embora abafados, através da janela
fechada.
— Quando era miúdo brincava assim, em terrenos desocupados. —
observou Jim — Parece-me que brigávamos a maior parte do tempo.
Pergunto a mim mesmo se os miúdos de hoje brigarão tanto como
dantes.
— Claro que brigam. — respondeu Harry, sem deixar de escrever —
Às vezes vejo-os, daí. Claro que brigam.
— Tive uma irmã.. — prosseguiu Jim — Era capaz de vencer
praticamente todos os rapazes. Nunca vi ninguém jogar melhor ao
berlinde do que ela. Palavra, Harry, vi-a lascar uma ágata a três metros,
e com os nós dos dedos para baixo.
— Não sabia que tinha tido uma irmã. — observou Harry, levantando
a cabeça — Que lhe aconteceu?
— Não sei.
— Não sabe?
— Não. Foi engraçado... não, não era isso que queria dizer. Não teve
graça nenhuma. Foi uma daquelas coisas que acontecem.
— Que quer dizer? Como é possível que não saiba o que lhe
aconteceu? — Harry largou o lápis.
— Bem. eu conto-lhe o que se passou. Chamava-se May e era um
ano mais velha do que eu. Dormimos sempre na cozinha. Cada um tinha
o seu divã. Quando May andava pelos catorze anos e eu pelos treze, ela
pendurou um lençol ao canto, para fazer uma espécie de armário onde
se vestia e despia. Começou também a dar gargalhadinhas por tudo e
por nada. Costumava sentar-se nos degraus da casa, com outras
raparigas, e dava gargalhadinhas com elas quando os rapazes
passavam. Tinha cabelo louro e creio que era a modos que bonita. Bem,
uma noite regressei a casa depois de ter estado a jogar bola no
cruzamento da 23 e da Fulton — nessa altura era um terreno vago, mas
agora há lá um banco. Subi para o nosso andar e a minha mãe
perguntou-me: “Viste a May na escada?” Respondi que não. Pouco
depois chegou o meu velho do trabalho, e perguntou: “Onde está a
May?” A minha mãe respondeu-lhe: “Ainda não veio.” É engraçado
como toda esta história está viva na minha memória Harry. Lembro-me
de todos os pormenores, do que toda a gente disse e do aspecto de
todos. Esperamos um bocado, sem jantar, mas a certa altura o meu
velho espetou o queixo, furioso, e ordenou; “Põe a comida na mesa. A
May anda a armar em esperta, já se julga muito crescida para levar
tareia. ” A minha mãe tinha olhos azuis claros. Lembro-me de que
pareciam pedras brancas. Bem, depois do jantar, o velho sentou-se na
sua cadeira, junto do fogão, e foi ficando cada vez mais danado. A
minha mãe sentou-se ao lado dele e eu fui para a cama. Vi a minha mãe
virar a cara, para o meu pai não a ver, e começar a mexer os lábios.
Creio que estava a rezar. Era católica, mas o meu pai detestava igrejas.
De vez em quando, o velho resmungava, a dizer o que faria à May
quando ela chegasse. Cerca das onze horas foram os dois para o
quarto, mas deixaram a luz da cozinha acesa. Ouvi-os falar durante
muito tempo. Acordei duas ou três vezes, de noite, e vi a minha mãe a
espreitar do quarto. Os seus olhos pareciam mesmo pedras brancas.
Quando acordei, na manhã seguinte, o sol brilhava, mas a luz ainda
estava acesa. Causa uma sensação estranha, uma sensação de
solidão, ver uma luz acesa de dia. Pouco depois a minha mãe saiu do
quarto e acendeu o fogão. Tinha o rosto rígido e os seus olhos quase
não se mexiam. Depois saiu o meu pai. Dir-se-ia que lhe tinham batido
mesmo entre os olhos, que o tinham derrubado. Não era capaz de dizer
uma palavra. Só pouco antes de sair para o trabalho é que murmurou:
“Acho que vou passar pela esquadra. Talvez ela tenha sido atropelada. ”
Bem, fui para a escola e assim que as aulas acabaram regressei a casa.
A minha mãe pediu-me que perguntasse a todas as raparigas se tinham
visto a May. Entretanto, espalhara-se a notícia de que a minha irmã
desaparecera. As outras raparigas disseram que não a tinham visto e o
caso pareceu deixá-las a todas nervosas. Depois o meu pai chegou a
casa. Tinha voltado à esquadra, no regresso. “Os tiras tomaram nota da
descrição dela. — informou — Disseram que ficariam de olhos bem
abertos. ” Essa noite foi exatamente igual à anterior, com o meu velho e
a minha mãe sentados ao lado um do outro. Só com a diferença de que
o meu pai não disse nada, nessa segunda noite. Voltaram a deixar a luz
acesa até de manhã. No dia seguinte o velho voltou à esquadra. A
Polícia mandou um detetive interrogar os miúdos do quarteirão e um
polícia falou com a minha mãe. Por fim repetiram que ficariam de olhos
abertos. E pronto. Nunca mais ouvi falar dela.
Harry partiu o bico do lápis, ao bater furiosamente com ele no tampo
da secretária.
— Ela andava com alguns rapazes mais velhos, com os quais
pudesse ter fugido?
— Não sei. As raparigas disseram que não, e elas deveriam saber.
— Mas você não faz nenhuma ideia do que lhe poderá ter
acontecido?
— Não. Um dia ela desapareceu, sumiu-se. Aconteceu a mesma
coisa à Bertha Riley, dois anos mais tarde: sumiu-se também.
Jim apalpou a linha do queixo, antes de acrescentar:
— Talvez tenha sido imaginação minha, mas pareceu-me que a
minha mãe ainda se tornou mais calada do que antes. Mexia-se a
modos como uma máquina e raramente dizia fosse o que fosse. Os seus
olhos adquiriram uma expressão apagada, sem vida. Mas o meu velho
ficou mais doido furioso do que antes. Tinha de lutar contra tudo com os
punhos. Foi para o trabalho e desancou o capataz do armazém
frigorífico Monel. Depois foi condenado a noventa dias por agressão.
Harry estava a olhar para a janela. De súbito, largou o lápis e
levantou-se.
— Vamos! Vou levá-lo à casa e livrar-me de si. Tenho de acabar o
relatório. Fica para quando voltar.
Jim foi ao irradiador buscar dois pares de peúgas úmidas, que
enrolou e meteu no saco de papel.
— Seco-as na outra casa. — murmurou.
Harry pôs o chapéu, dobrou o relatório e guardou-o na algibeira.
— De vez em quando os pulas metem aqui o nariz. — explicou —
Nunca deixo cá nada. Fechou o escritório à chave, quando saíram.
Atravessaram o centro comercial da cidade e passaram por
quarteirões de prédios de apartamentos. Por fim chegaram a um bairro
de casas velhas, cada uma erguida no seu próprio quintal.
Harry meteu por um caminho de carros e anunciou:
— Cá estamos. É nas traseiras desta casa.
Seguiram pelo caminho ensaibrado e nas traseiras encontraram uma
casinha pintada havia pouco tempo. Harry abriu a porta e fez sinal a Jim
para entrar.
A casa constava de uma sala grande e uma pequena cozinha. Na
sala havia seis divãs de ferro, com cobertores do exército. Estavam lá
três homens, dois deitados e um, forte e com cara de pugilista culto, a
escrever vagarosamente à máquina.
Levantou bruscamente a cabeça, quando Harry abriu a porta, e
depois levantou-se e aproximou-se, a sorrir.
— Olá, Harry! Que se passa?
— Este é Jim Nolan, lembras-te? Falou-se do nome dele, na outra
noite. Jim, este é o Mac. Sabe mais de trabalho no campo do que
qualquer pessoa deste estado.
— Prazer em vê-lo, Jim. — declarou Mac, a sorrir.
Ao virar-se para se ir embora Harry recomendou:
— Cuida dele, Mac, põe-no a trabalhar. Eu tenho de acabar um
relatório. — acenou aos dois homens deitados: — Adeus, rapazes.
Quando a porta se fechou, Jim olhou em seu redor. As paredes de
madeira estavam nuas e só havia uma cadeira: a que estava defronte da
máquina de escrever. Da cozinha vinha o cheiro de carne enlatada a
ferver. Olhou de novo para Mac, para os seus ombros largos e braços
compridos e para a sua cara, larga entre as maçãs do rosto e plana sob
os olhos, como a de um sueco. Mac tinha os lábios secos e gretados.
Observou Jim tão perscrutadoramente como estava a ser observado.
— É pena não sermos cães, pois resolveríamos o assunto num
instante. — disse, de súbito — Ou ficaríamos amigos ou já estaríamos a
lutar. O Harry disse que você era fixe, e ele sabe. Venha conhecer os
rapazes. Aqui este pálido é o Dick, um radical de quarto de cama.
Arranjamos muitos bolos graças ao Dick.
O rapaz pálido e de cabelo escuro, deitado na cama, sorriu e
estendeu a mão.
— Está a ver como é bonito? — prosseguiu Mac — Crismamo-lo de
“Chamariz”. Ele fala das classes trabalhadoras às damas e elas dão-nos
bolos com cobertura cor-de-rosa. Não é verdade, Dick?
— Vai para o Inferno. — replicou o outro, sorridente.
Mac deu o braço a Jim e virou-o para o homem da outra cama, cuja
idade era impossível calcular. Tinha o rosto mirrado e deformado, o nariz
achatado e o queixo forte torcido para o lado.
— Este é Joy. — apresentou Mac — É um veterano. Não é verdade
Joy?
— Verdadíssima! — os olhos do homem iluminaram-se, mas a luz
voltou a abandoná-los quase instantaneamente, enquanto ele acenava
com a cabeça diversas vezes; abriu a boca para falar, mas limitou-se a
repetir: — Verdadíssima! — muito solenemente, como se essa palavra
pusesse ponto final a uma discussão.
Acariciou uma das mãos com a outra e Jim viu que estavam ambas
espalmadas e cheias de cicatrizes.
— O Joy não aperta a mão a ninguém. — explicou Mac — Tem os
ossos todos partidos e um aperto de mão faz-lhe doer.
A luz lampejou de novo nos olhos do indivíduo.
— E porquê? — gritou esganiçadamente — Porque me espancaram!
Algemaram-me a uma barra e bateram-me na cabeça. Fui pisado por
cavalos. — voltou a gritar: — Fui espancado a mais não poder, não fui,
Mac?
— Foste, sim, Joy.
— E alguma vez me acobardei? Não continuei a chamar-lhes filhos
da puta até me deixarem sem sentidos.
— É verdade Joy. E se tivesses mantido a boca fechada não te teriam
deixado sem sentidos.
A voz de Joy ergueu-se, frenética: — Mas eles eram filhos da puta e
eu disse! Não me importei que me batessem na cabeça, enquanto me
mantinham as mãos algemadas. Não me importei que me pisassem.
Disseo! Vê esta mão? Passou um cavalo por cima. Mas eu disse, não
disse, Mac?
Mac inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha.
— Claro que disseste Joy. Ninguém te obrigará a ficar calado.
— Nunca! — afirmou Joy, e a luz apagou-se-lhe mais uma vez dos
olhos.
— Venha cá, Jim. — pediu Mac, e levou-no para o outro lado da sala,
onde se encontrava a máquina de escrever em cima de uma mesinha —
Sabe escrever à máquina?
— Um pouco.
— Graças a Deus! Pode começar já a trabalhar. — Mac baixou a voz
e aconselhou: — Não ligue importância ao Joy; está meio chalado.
Bateram-lhe demasiado na cabeça. Tomamos conta dele e tentamos
mantê-lo afastado de encrenca.
— O meu velho era assim. — disse Jim — Uma vez encontrei-o na
rua, a caminhar para a esquerda em grandes círculos. Tive de o guiar.
Um fura-greves tinha-lhe batido debaixo da orelha com uma soqueira de
metal e isso pareceu afetar-lhe o sentido da orientação.
— Agora preste atenção. Isto é uma circular e eu tenho quatro cópias
a papel químico na máquina. Precisamos de vinte exemplares. Importa-
se de os acabar enquanto preparo qualquer coisa para jantarmos?
— Com certeza, Mac.
— Bata nas teclas com força, pois o papel químico não é muito bom.
Mack levantou-se e, depois de arregaçar cuidadosamente as
mangas da camisa branca foi atrás de Mac para a cozinha.
Jim começara a escrever à máquina, com batidas pesadas e certas,
quando Joy se levantou e foi ter com ele.
— Quem produz as coisas? — perguntou.
— Bem, os trabalhadores.
Estampou-se no rosto de Joy um sorriso velhaco, um sorriso muito
matreiro e sabido, e ele voltou a perguntar:
— E quem recolhe os lucros?
— Os que têm capital investido.
— Mas eles não produzem nada! — gritou Joy — Que direito têm aos
lucros?
Mac espreitou pela porta da cozinha e depois aproximou-se
rapidamente, com uma colher de pau na mão.
— Escuta, Joy, deixa de tentar converter a nossa própria gente. Jesus,
parece-me que os nossos rapazes passam a maior parte do tempo a
converterem-se uns aos outros! Vai descansar, Joy. Tu estás cansado e
o Jim tem que fazer. Quando ele acabar, talvez te deixe endereçar
algumas das cartas.
— Deixas, Mac? Bem, eu disse, não disse, hem? Mesmo quando me
estavam a espancar, disse!
Mac agarrou-lhe no cotovelo e conduziu-o devagarinho para a cama.
— Temos aqui um exemplar do New Msses. Fique vendo as figuras
enquanto trato do jantar.
Jim continuou a escrever a carta. Escreveu-a quatro vezes e colocou
as vinte cópias ao lado da máquina.
— Já estão prontas, Mac. — gritou, para a cozinha.
Mac veio à sala e examinou algumas das cópias.
— Escreves bem à máquina, Jim. Quase não riscas nada. Agora mete
as cartas nestes envelopes. Endereçamos depois de comer.
Mac encheu os pratos de carne enlatada, cenouras, batata e rodelas
de cebola crua. Os homens sentaram-se cada um na sua cama, a comer.
A luz era fraca, mas Mac acendeu a lâmpada forte, sem proteção, que
pendia do centro do teto.
Quando acabaram de comer, Mac voltou à cozinha e regressou com
um prato de bolos caseiros.
— Aqui está parte do resultado do trabalho de Dick, que utiliza o
quarto para fins políticos. Cavalheiros, apresento-lhes o Du Barry do
Partido!
— Vai para o Inferno! — resmungou Dick.
Mac tirou os envelopes fechados de cima da cama de Jim.
— Estão aqui vinte cartas, o que significa que cada um de nós tem de
endereçar cinco.
Afastou os pratos que estavam em cima da mesa para o lado, tirou
de uma gaveta uma caneta e um tinteiro e endereçou cuidadosamente
cinco envelopes, copiando os nomes e as moradas de uma lista que
trazia na algibeira.
— É a tua vez Jim. Faz estes cinco.
— Para que é?
— Bem, suponho que não valerá de muito, mas talvez lhes dificulte
um bocadinho as coisas. O nosso correio anda a ser aberto com muita
regularidade e eu pensei que complicaria um pouco a vida aos detetives
se estes endereços fossem escritos com caligrafias diferentes. Metemos
um de cada num marco de correio. Não se perde nada em tentar evitar
aborrecimentos.
Enquanto os outros dois homens escreviam os endereços, Jim reuniu
os pratos, levou-os para a cozinha e pô-los no lava-louça.
Mac estava a estampilhar as cartas e a metê-las na algibeira quando
Jim voltou.
— Dick, tu e o Joy lavam a louça, esta noite; eu lavei-a sozinho
ontem. — disse Mac — Vou meter as cartas no correio. Queres vir
comigo, Jim?
— Quero. Tenho um dólar. Comprarei café para bebermos quando
voltarmos.
Mas Mac estendeu a mão:
— Ainda aí temos café. Empregaremos o dólar na compra de selos.
Jim entregou-lhe o dinheiro e comentou:
— Fico limpo, é o último que me resta. Saiu com Mac e caminharam
pela rua fora, à procura de caixas de correio.
— O Joy é realmente chalado?
— É. A última coisa que lhe aconteceu foi a pior de todas. Estava a
falar numa barbearia, o barbeiro telefonou para a Polícia e os tiras não
tardaram. O Joy era um lutador muito rijo e eles tiveram de lhe partir o
queixo com um bastão para o deter. Depois levaram-no para o xadrez.
Não compreendo como poderá ter falado muito com o queixo partido,
mas deve ter atazanado um bocado o médico da cadeia, pois este
declarou que não tratava de um maldito vermelho e o Joy esteve três
dias inteiros com o queixo partido e sem tratamento. Depois disso ficou
chalado. Suponho que em breve terá de ser internado. Levou
demasiada porrada na cabeça.
— Pobre diabo.
Mac tirou o maço de envelopes da algibeira e escolheu cinco, cada
qual na sua caligrafia.
— Enfim, o mal dele foi nunca ter aprendido a calar a boca. O Dick,
por exemplo, não tem nem uma marca e apesar do seu aspecto é capaz
de ser tão duro como o Joy, quando vale a pena. Mas quando o filam
começa a tratar os tiras por “Senhor” e às duas por três os tipos quase
lhe pegam ao colo. Quanto ao Joy, não tem mais discernimento do que
um buldogue.
Encontraram a última das quatro caixas de correio à entrada da
Lincoln Square e, depois de Mac lá ter metido as últimas cartas,
caminharam lentamente pelo carreiro de tijolo que os bordos
começavam a atapetar de folhas. Eram poucos os bancos dispostos ao
longo dos caminhos que se encontravam ocupados. As luzes do parque,
muito altas, estavam acesas e projetavam no chão as sombras negras
das árvores. Não longe do centro da praça, erguia-se a estátua de um
homem de barba e sobrecasaca. Jim apontou-a e disse:
— Eu estava em cima daquele pedestal, a tentar ver o que se
passava. Um tira deve ter levantado o braço e arriado, como quem mata
uma mosca. Compreendo um pouco o que o Joy sente. Só quatro ou
cinco dias depois é que consegui pensar normalmente. Desfilavam-me
imagens pelo cérebro, mas não conseguia captá-las. O tipo deu-me
mesmo na nuca.
Mac sentou-se num banco e observou:
— Bem sei; li o relatório do Harry. Foi só por essa razão que quiseste
filiar-te no Partido?
— Não. Quando fui preso, estavam outros cinco homens na minha
cela, apanhados ao mesmo tempo que eu: um mexicano, um negro, um
judeu e dois vulgares americanos como eu. Falaram comigo,
evidentemente, mas não se tratou disso. Eu lera mais do que eles
sabiam. — apanhou uma folha de bordo do chão e começou a retirar
cuidadosamente o revestimento do esqueleto em forma de mão — Em
casa passávamos a vida a lutar, a lutar contra qualquer coisa. a maior
parte das vezes contra a fome. O meu velho lutava contra os patrões e
eu lutava contra a escola. Mas perdíamos sempre. E ao fim de muito
tempo creio que passou a fazer parte da nossa estrutura cerebral a
convicção de que perderíamos sempre. O meu velho lutava exatamente
como um gato metido num canto com uma quantidade de cães à volta.
Mais cedo ou mais tarde, um cão acabaria com certeza por matá-lo, mas
isso não o impedia de continuar a lutar. Compreende a sensação de
inutilidade, de desespero, que isso causa? Foi nessa atmosfera que
cresci.
— Claro que compreendo. Há milhões de pessoas exatamente assim.
Jim sacudiu a folha descarnada à sua frente e depois fê-la girar entre
o polegar e o indicador. — Mas havia mais do que isso. A casa onde
vivíamos estava sempre cheia de ódio. O ódio pairava entre aquelas
paredes como fumo. Era o ódio cansado, perverso, contra o patrão,
contra o diretor, contra o merceeiro quando cortava o crédito, era um
ódio que nos indispunha, que nos revoltava o estômago, mas que não
podíamos evitar.
— Continua. — pediu Mac — Não compreendo aonde queres chegar,
mas talvez tu saibas.
Jim levantou-se bruscamente, parou diante do banco e bateu com o
esqueleto da folha na palma da mão. — Quero chegar ao seguinte:
naquela cela estavam cinco homens todos criados mais ou menos nas
mesmas circunstâncias. Alguns deles até em circunstâncias piores. Mas,
embora neles também houvesse ódio, não era do mesmo gênero. Eles
não odiavam um patrão ou um carniceiro: odiavam todo o sistema de
patrões, mas isso era diferente. Não era o mesmo gênero de ódio. E
havia ainda outra coisa, Mac: não existia neles a sensação de
inutilidade, de desespero. Estavam calmos e trabalhavam, e na sua
mente, lá bem no fundo, havia a convicção de que mais cedo ou mais
tarde venceriam, encontrariam o caminho de saída do sistema que
odiavam. Acredita, havia naqueles homens uma espécie de
tranquilidade, de serenidade.
— Estás a tentar converter-me? — perguntou Mac, sarcástico.
— Não, estou apenas a tentar explicar-te. Eu nunca conhecera
esperança nem tranquilidade e estava faminto delas. Provavelmente
sabia mais acerca dos chamados movimentos radicais do que qualquer
daqueles homens. Lera mais, mas eles possuíam aquilo que eu queria e
tinham-no obtido trabalhando.
— Bem, datilografaste algumas cartas esta noite. — observou Mac,
secamente — Sentis-te melhor?
Jim voltou a sentar-se e respondeu brandamente:
— Gostei de as datilografar, Mac. Não sei porquê. Pareceu-me que
estava a fazer uma coisa boa, pareceu-me que tinha algum significado.
Nada do que fizera antes tivera significado, fora tudo apenas uma
chatice, uma confusão. Creio que não era o fato de alguém tirar proveito
da chatice que me danava, mas detestava estar na gaiola dos ratos.
Mac estendeu as pernas à sua frente e meteu as mãos nas
algibeiras.
— Enfim, se o trabalho te torna feliz, espera-te um rico tempo. Se
aprenderes a datilografar stencils e a manejar um copiador, quase te
posso garantir vinte horas por dia. E se detestas o sistema do lucro,
também te posso garantir, Jim, que não lucrarás nem um cêntimo com
esse trabalho — declarou, bem disposto.
— Mac, tu és um chefe da barraca lá de baixo, não és?
— Eu? Não. Digo-lhes o que devem fazer, mas eles não são
obrigados a fazê-lo. Não posso dar quaisquer ordens. As únicas ordens
que têm realmente de ser obedecidas são as resultantes de uma
votação.
— Bem, de qualquer modo, tens uma certa voz ativa, Mac. O que
gostaria verdadeiramente de fazer seria ir para o campo. Gostaria de
entrar em ação.
Mac riu baixinho.
— O que queres é castigo, não é? Não sei, mas creio que o Comitê
atribuirá muito maior importância a um bom datilógrafo. Terás de adiar o
romance por uns tempos... O nobre Partido atacado pela besta do
capitalismo... — Mudou subitamente de tom ao prosseguir, virado para
Jim: — É sempre trabalho duro e perigoso, mas não julgues que na
barraca são tudo delícias. Nunca se sabe em que noite aparecerá um
magote de legionários americanos atestados de uísque e de música
sectária para nos desancar. Digo-te isto porque sei por experiência
própria. Não há veterano como o homem que foi recrutado para a tropa e
passou seis meses num campo de treino a espetar uma baioneta num
saco de serradura. Os homens que estiveram nas trincheiras são em
geral diferentes. Mas para incendimento puro e patriotismo de soqueiras
metálicas, não há como vinte ex-soldados de campo de treino. Vinte
tipos desses são capazes de defender o seu país contra cinco miúdos,
em qualquer noite escura em que tenham emborcado algum uísque. Na
sua maioria, eles obtiveram as fitinhas de feridos porque estavam tão
bêbedos que não foram capazes de ir a um posto profilático.
— Não gostas muito de soldados, pois não, Mac? — perguntou Jim, a
rir.
— Não gosto dos ex-soldados chapéu dourado. Estive na França. Lá
eram gado estúpido, sincero e bom. Não gostavam daquilo, mas eram
bons tipos. — a voz tornou-se-lhe mais calma e Jim viu-o sorrir,
embaraçado — Entusiasmei-me, hem, Jim? Eu explico-te porquê. Uma
noite, fui desancado por dez desses valentes pulhas. Depois de me
deixarem sem sentidos com porrada, saltaram-me em cima e partiram-
me o braço direito, e não contentes com isso deitaram fogo à casa da
minha mãe. Ela teve de me arrastar para o quintal.
— Mas que aconteceu? Que andavas a fazer?
— Eu? — o sarcasmo voltara à voz de Mac — Andava a subverter o
Governo. Proferira um discurso em que dissera que havia pessoas a
morrer de fome. — levantou-se — Regressemos, Jim. A esta hora já
devem ter lavado a louça. Não desejava mostrar-me azedo, mas aquele
braço partido ainda me faz perder a cabeça.
Retrocederam lentamente. Alguns homens sentados nos bancos
encolheram as pernas, para os deixarem passar..
— Se pudesses dizer uma palavrinha para que me mandem trabalhar
no campo, ficaria grato. — pediu Jim.
— Está bem... mas seria melhor para ti aprender a datilografar stencils
e manejar um copiador. És bom rapaz, estou contente por te termos
conosco.
Capítulo 3
JIM estava sentado sob a lâmpada de luz forte, crua, a datilografar
cartas. De vez em quando parava e escutava de ouvido atento à porta.
Tirando uma cafeteira que fervilhava na cozinha, não se ouvia mais
ruído nenhum dentro de casa. O barulho abafado dos elétricos, em ruas
distantes, e o som de pessoas na rua, tornavam o interior da habitação
ainda mais silencioso. Jim olhou para o despertador suspenso de um
prego, na parede. Levantou-se e foi à cozinha, mexeu o guisado e
baixou o gás, até cada bico ficar reduzido a um minúsculo globo azul.
Quando voltava para a máquina de escrever ouviu passos apressados
no caminho ensaibrado. Dick entrou, de rompante.
— O Mac ainda não chegou?
— Não. — respondeu Jim — Não esteve cá. Nem ele nem o Joy.
Arranjaste algum dinheiro?
— Vinte dólares.
— Palavra, não sei como consegues isso, mas a verdade é que
consegues. Podíamos comer um mês com esse dinheiro, mas
provavelmente o Mac gastará tudo em selos. Aquele homem parece que
devora selos!
— Olha, parece que estou a ouvir o Mac chegar.
— Ou o Joy.
— Não, o Joy não é.
A porta abriu e Mac entrou.
— Olá, Jim, olá, Dick. Hoje conseguiste apanhar algum dinheiro aos
simpatizantes?
— Vinte dólares.
— És um tipo porreiro!
— Escuta, Mac, o Joy fê-la bonita, esta tarde.
— Fê-la bonita o quê?
— Bem, começou a proferir um discurso doido na esquina de uma
rua, um tira filou-o e ele espetou-lhe o canivete no ombro. Levaram-no e
acusaram-no de agressão criminosa. Neste momento está sentado
numa cela gritando “filhos da puta” com toda a força dos pulmões.
— Efetivamente, esta manhã achei-o mais doido do que de costume.
Olha, Dick, tenho de partir daqui amanhã de manhã e agora preciso de
fazer umas coisas. Vai a uma cabina telefônica e liga para o George
Camp, Ottman 4211. Conta-lhe o que se passa e diz-lhe que o Joy é
chalado. Pede-lhe que venha cá, se puder, e se apresente como
advogado do Joy. Este tem um cadastro que é um mimo e está bem
arranjado se o tomam em conta: seis incitamentos à desordem, vinte ou
trinta prisões por vadiagem e umas doze resistências à autoridade e
agressões simples. Fazem-no ver uma fona se o George não se
apressar a fazer qualquer coisa. Diz-lhe que tente safá-lo como bêbedo.
— fez uma pausa e acrescentou — Jesus, se uma junta de sanidade
alguma vez lhe põe a mão, nunca mais soltam o pobre diabo! O George
que tente convencer o Joy a calar a boca. Depois de telefonares, dá a
volta do costume e tenta arranjar algum dinheiro para fiança, pelo sim,
pelo não.
— Não posso comer primeiro? — perguntou Dick.
— Não, com os diabos! Chama o George. Olha, dá-me dez desses
vinte dólares; o Jim e eu partimos amanhã para Torgas Valley. Depois
de telefonares ao George vem comer e a seguir começa a visitar os
simpatizantes, por causa da fiança. Oxalá o George consiga uma ordem
de soltura sob fiança, ainda esta noite.
— Está bem. — disse Dick, e saiu apressadamente.
— Creio que terão de fechar o pobre do Joy muito em breve e
definitivamente. — observou Mac, virando-se para Jim — O tipo está nas
últimas. Foi a primeira vez que se serviu de um canivete.
Jim apontou uma rima de cartas acabadas, em cima da secretária:
— Aí estão, Mac, só faltam três. Para onde disseste que vamos?
— Para o Torgas Valley. Há lá milhares de hectares de maçãs
prontas para colher. Deve haver muito perto de dois mil campos
fruteiros. O diabo é que a Associação dos Produtores acaba de anunciar
uma redução no preço a pagar aos apanhadores, que vão ficar pior que
estragados. Se conseguirmos desencadear lá uns bons distúrbios,
talvez possamos fazer com que alastrem aos campos de algodão de
Tandale. E então, sim, teríamos alguma coisa! Isso é que seria um
estardalhaço! — fungou, a aspirar o ar — O guisado cheira bem. Está
pronto?
— Vou servi-lo.
Jim foi à cozinha e voltou com dois pratos de sopa dos quais emergia
um monte de quadradinhos de carne, batatas, cenouras, nabos e
cebolas inteiras fumegantes.
Mac pôs o prato em cima da mesa e provou.
— Que delícia! Precisa de arrefecer. O caso é o seguinte, Jim: eu
sempre disse que não devíamos mandar novatos para áreas agitadas;
cometem demasiados erros. Podem ler todas as táticas que quiserem,
mas isso não muda. Bem, lembrei-me do que disseste no parque, na
noite em que chegaste, e por isso, quando me confiaram esta missão - e
trata-se de uma boa missão, - perguntei se te podia levar como uma
espécie de substituto, em caso de necessidade. Tenho prática,
percebes? Treinar-te-ei e depois tu poderás treinar outros homens
novos. É assim como ensinar cães de caça fazendo-os correr com os
veteranos, estás a topar? Aprende-se mais fazendo do que lendo seja lá
o que for. Alguma vez estiveste no Torgas Valley?
Jim soprou uma batata quente.
— Nem sequer sei onde fica. Só saí da cidade quatro ou cinco vezes
em toda a minha vida. Obrigado por me levares, Mac. — os pequenos
olhos cinzentos brilhavam-lhe de excitação.
— Provavelmente amaldiçoar-me-ás antes de chegarmos ao fim, se
arranjarmos por lá problemas. Não vai ser nenhum piquenique. Consta-
me que a Associação dos Produtores está muito bem organizada.
Jim desistiu de comer o guisado quente.
— Como agiremos, Mac? Que faremos primeiro?
Mac olhou-o, viu a sua excitação e riu-se.
— Não sei, Jim. É esse o mal das leituras... Na realidade, temos de
nos servir de qualquer material a que possamos deitar a mão. É por isso
que nem todas as táticas do mundo servirão. Não há duas exatamente
iguais. — comeu em silêncio até acabar o guisado e quando respirou
saiu-lhe vapor da boca — Posso repetir, Jim? Estou esfomeado.
Jim foi à cozinha e voltou a encher-lhe o prato.
— Vou explicar-te como as coisas são — disse Mac — Torgas é um
vale pequeno onde há principalmente pomares de macieiras, quase
todos pertencentes a um pequeno grupo de homens. Claro que também
há algumas propriedades pequenas, mas não são muitas. Quando as
maçãs estão maduras, a malta das colheitas apresenta-se e apanha-as.
Daí segue para sul e colhe algodão. Se pudermos iniciar a agitação nas
maçãs, talvez ela alastre naturalmentte para o algodão. Sucede que os
poucos tipos que são donos da maior parte do Torgas Valley esperaram
que a maioria da malta das colheitas já estivesse presente para darem o
golpe. Claro que os apanhadores gastaram quase tudo quanto tinham
para lá chegar, como sempre. E depois os proprietários anunciaram a
baixa do preço. Os apanhadores ficaram furiosos, com certeza, mas que
podem fazer? Têm de apanhar maçãs para não perderem por completo
o dinheiro que gastaram.
Jim esquecera-se do jantar. Distraído, mexia com a colher a carne e
as batatas. Inclinou-se para a frente e perguntou: — Portanto, vamos
tentar convencer os homens a fazer greve, não é?
— Certo. Talvez a coisa já esteja mesmo pronta para rebentar e
precisemos de dar apenas um empurrãozinho. Organizamos os homens
e depois colocamos piquetes nos pomares.
— E se os proprietários subirem os salários, para que lhes apanhem
as maçãs?
Mac afastou para o lado o segundo prato vazio.
— Bem, não tardaremos a arranjar trabalho noutro lado qualquer.
Com mil raios, não queremos apenas aumentos de salários temporários,
embora nos agrade ver alguns pobres diabos mais abonados! Temos de
ver as coisas de uma perspectiva mais vasta. Uma greve solucionada
demasiado depressa não ensina os homens a organizarem-se, a
trabalharem juntos. Uma greve difícil é benéfica. Queremos que os
homens descubram a força que têm quando trabalham juntos.
— Bem, supõe... — insistiu Jim —...supõe que os proprietários
resolvem satisfazer as reivindicações.
— Não creio que resolvam. O grosso do poder está nas mãos de um
punhado de tipos, e isso torna-os sempre arrogantes. Começamos a
nossa greve e o Condado de Torgas arranja um decreto que proíbe as
reuniões. Que acontece? Nós reunimos os homens. Um grupo de tipos
do xerife tenta dispersá-los e isso desencadeia uma desordem. Não há
como uma luta para unir a malta. Bem, depois os proprietários
organizam um comitê de vigilância, um magote de amanuenses idiotas
ou os meus amigos da Legião Americana, a fingir que não são homens
de meia-idade e a apertar bem o cinto, para disfarçar a barriga... Lá vou
eu outra vez! Enfim, os vigilantes começam a disparar. Se abaterem
alguns apanhadores, faremos um funeral público e depois disso teremos
ação a valer. Talvez eles tenham, até de chamar a tropa. — a respiração
acelerará-se-lhe, de tão excitado. — Jesus, claro que a tropa vencerá!
Mas cada vez que um guarda espetar uma baioneta num apanhador de
fruta, por esse país afora passarão mil homens para o nosso lado. Meu
Deus, se conseguirmos que chamem a tropa! — estendeu-se na cama
— Estou a ir demasiado longe nas previsões. A nossa missão consiste
apenas em dar um empurrãozinho à nossa grevezinha, se pudermos.
Mas, com a breca, Jim, se conseguíssemos que chamassem a Guarda
Nacional, agora que as colheitas estão à porta, na Primavera teríamos o
distrito organizado.
Jim acocorara-se na cama, de olhos brilhantes e dentes cerrados. De
vez em quando levava nervosamente os dedos à garganta.
Mac continuou:
— Os grandíssimos idiotas julgam que podem solucionar greves com
soldados. — deu uma gargalhada — Cá estou eu outra vez a falar como
se estivesse em cima de um caixote de sabão! Entusiasmo-me todo e
isso não é bom. Precisamos de pensar bem, com serenidade. É
verdade, Jim, tens algumas calças de ganga?
— Não. Este fato é toda a roupa que tenho.
— Nesse caso, temos de te comprar qualquer coisa numa loja de
roupa em segunda mão. Vais apanhar maçãs, rapaz, e dormir no mato...
e depois de dez horas nos pomares terás de trabalhar para o Partido.
Aliás, é o trabalho que querias.
— Obrigado, Mac. O meu velho teve de lutar sempre sozinho e foi
vencido todas as vezes.
Mac aproximou-se e disse-lhe:
— Acaba essas três cartas, Jim, para depois sairmos e te comprarmos
umas calças de ganga.
O sol acabava de subir acima dos edifícios da cidade quando Jim e
Mac chegaram à via férrea, onde as linhas reluzentes convergiam, se
separavam e alargavam, transformando-se na grande grelha dos
desvios de comboios de mercadorias, cheios de vagões.
— Parece que às sete e meia parte uma composição de mercadorias,
vazia. Caminhemos um pouco pela linha abaixo.
Atravessou, apressado, o desvio, na direção do ponto onde as muitas
linhas se juntavam na via principal.
— Temos de entrar com ele em movimento? — perguntou Jim.
— Oh, não irá muito depressa! Já não me lembrava de que nunca
tinhas saltado para um comboio de mercadorias.
Jim alargou a passada, para tentar pisar chulipa sim, chulipa não,
mas verificou que não o conseguia.
— Parece-me que nunca fiz praticamente nada. — admitiu — É tudo
novo para mim.
— Bem, agora é fácil. A companhia fecha os olhos e deixa a malta ir
de boleia, mas antigamente era difícil. O pessoal dos comboios atirava
os penduras das composições em movimento, sempre que os
apanhava.
Ao lado da linha erguia-se um grande depósito de água preto, com a
mangueira em pescoço de ganso empinada contra a parte lateral. A
multiplicidade de linhas ficara para trás e agora à sua frente, estendia-se
apenas uma via de carris gastos e brilhantes como espelhos.
— O melhor é sentarmo-nos e esperarmos. — sugeriu Mac — Já não
deve tardar.
Mal acabou de falar, ouviu-se o longo e solitário silvo do apito de um
comboio e o ruído seco da fuga de vapor. Ao ouvirem tal sinal
começaram a levantar-se homens da vala e a espreguiçarem-se
indolentemente sob o frio sol matinal.
— Vamos ter companhia. — observou Mac.
O comprido comboio de mercadorias atravessou lentamente o desvio;
vagões fechados vermelhos, vagões frigoríficos amarelos, plataformas
de ferro pretas e vagões cisterna redondos. A locomotiva avançava a
uma velocidade pouco superior à do andar de um homem e o motorista
acenou com uma luva preta e lustrosa aos homens da vala.
— Vão para o piquenique? — gritou-lhes e, brincalhão, fez sair um
jato de vapor branco por entre as rodas.
— Precisamos de um vagão fechado. — disse Mac — Olha, aquele ali
tem a porta um bocadinho aberta. — começou a trotar ao lado do vagão
e empurrou a porta — Dá uma ajuda! — gritou.
Jim agarrou a maçaneta de ferro e empurrou com toda a força. A
grande porta de correr deslizou, emperrada e ferrugenta, algumas
dezenas de centímetros. Mac apoiou as mãos no piso, içou-se, virou-se
no ar e aterrou sentado à entrada. Afastou-se rapidamente do caminho,
enquanto, Jim o imitava. O chão do vagão estava cheio de papel de
revestimento, arrancado das paredes. Com os pés, Mac amontoou uma
grande quantidade de papel junto de um dos lados.
— Faz o mesmo! — gritou — Dá uma boa almofada.
Antes de Jim ter acabado de amontoar o papel surgiu uma nova
cabeça à porta e saltou um homem, ao qual se seguiram mais dois. O
primeiro olhou rapidamente para o chão e depois aproximou-se de Mac,
a quem observou:
— Ficou com quase todo, hem?
— Com quase todo o quê? — perguntou Mac inocentemente.
— O papel. Foi uma limpeza.
Mac sorriu-lhe, simpático. e disse:
— Não sabíamos que teríamos companhia. — levantou-se e ofereceu:
— Sirva-se, tire algum.
O homem olhou-o um momento de boca aberta e depois baixou-se e
arrebanhou o papel todo.
Mac tocou-lhe ao de leve no ombro e disse, em tom monocórdico:
— Olha, vadio, larga tudo. Já que tens maiores olhos que barriga, não
levas nada.
— E você é que me vai obrigar a não levar nada? — perguntou,
largando o papel.
Mac inclinou-se indolentemente para trás, equilibrado nos
calcanhares e com as mãos pendentes, abertas e frouxas, ao longo do
corpo:
— Alguma vez foste ao Estádio de Luta Rosanna?
— Fui, e depois?
— És um grandíssimo mentiroso. — disse Mac — Se lá tivesses ido
saberias quem eu sou e terias mais cuidado contigo.
Estampou-se no rosto do outro uma expressão de dúvida.
Olhou, inquieto, para os dois homens que tinham saltado com ele. Um
estava à porta, a olhar para a paisagem que parecia correr do lado de
fora, e o outro limpava cuidadosamente o nariz, com um enorme lenço, e
observava com atenção o que retirava. O primeiro homem olhou de novo
para Mac e declarou:
— Não quero chatices. Só queria um pouco de papel para me sentar.
Mac acocorou-se e respondeu-lhe:
— Muito bem, podes tirar algum, mas deixa também algum.
O homem aproximou-se do monte e tirou uma pequena quantidade.
— Oh, podes levar mais do que isso!
— Não vamos para longe. — disse o outro, que se sentou ao lado da
porta, envolvendo as pernas com os braços e apoiando o queixo nos
joelhos.
O comboio ganhava velocidade e o vagão de madeira ressoava como
uma caixa de percussão. Jim levantou-se e acabou de abrir a porta, para
deixar entrar o sol matinal. Sentou-se na soleira, com as pernas
pendentes. Olhou um bocado para baixo, até o aparente deslizar veloz
do chão o deixar tonto. Depois espraiou o olhar pelos campos de
restolho amarelo que se estendia ao lado da via. O ar estava fresco e
sabia agradavelmente ao fumo da locomotiva.
Passados momentos, Mac reuniu-se-lhe e gritou-lhe:
— Tem cuidado, não caias! Conheci um tipo que entonteceu, a olhar
para o chão, e acabou por cair lá em baixo, de borco.
Jim apontou uma casa de lavoura branca e um barracão encarnado,
semiocultos atrás de uma enfiada de eucaliptos novos.
— A região para onde vamos é tão bonita como esta?
— É mais bonita. Só se vêem macieiras, quilômetros e quilômetros
delas. Nesta época devem estar todas cobertas de frutos, absolutamente
cobertas... com os ramos pendentes sob o peso das maçãs que na
cidade custam um níquel cada uma.
— Não sei porque não vim ao campo mais vezes. É estranho como
desejamos fazer uma coisa e por isto ou por aquilo nunca a fazemos,
uma vez, quando era miúdo, um desses acampamentos de férias levou
cerca de quinhentos putos a um piquenique, em caminhões. Fartamo-
nos de andar sempre à roda. Havia árvores muito grandes e lembro-me
de que subi para a copa de uma delas e passei lá a maior parte da tarde.
Pensei para comigo que voltaria ali sempre que pudesse... mas nunca
voltei.
— Levanta-te Jim, e fechemos a porta. — disse Mac — Estamos a
chegar a Wilson e não há necessidade de irritar os tiras dos caminhos
de ferro.
Fecharam juntos a porta e, de súbito, o vagão ficou escuro e quente e
a vibrar como o corpo de uma viola baixo. O ritmo da rodas nos carris
tornou-se rápido, à medida que a composição abrandava, para
atravessar a cidade. Os três homens levantaram-se.
— Saímos aqui. — disse o chefe do grupo. Abriu a porta uns dois
palmos e os seus companheiros saltaram. Em seguida virou-se para
Mac e disse-lhe: — Espero que não fique com ressentimentos,
companheiro.
— Não, claro que não fico.
— Bem, até à vista. — Saltou e, quando aterrou, gritou: —
Grandíssimo filho da puta!
Mac riu-se e fechou a porta quase por completo. Durante momentos
o comboio seguiu devagar e, depois, o ritmo das rodas nos carris
aumentou de novo. Mac escancarou de novo a porta e sentou-se ao sol.
— Foi uma beleza! — comentou.
— És realmente pugilista, Mac?
— Não, homem! Ele é que era um anjinho de marca maior. Calculou
que eu tinha medo dele, quando lhe ofereci uma parte do meu papel.
Claro que não se pode considerar uma regra geral, pois às vezes dá
bronca, mas frequentemente quando um tipo tenta assustar-nos isso
significa que pode ser assustado. -— virou para Jim o rosto pesado e
risonho e acrescentou: — Não sei porque é, mas todas as vezes que
falo contigo acabo a fazer comício ou a dar uma lição.
— Com os diabos, Mac, gosto de ouvir!
— Creio que é por isso. Temos de saltar em Weaver e apanhar outro
comboio de mercadorias que siga para leste. Weaver fica uns cento e
sessenta quilômetros mais abaixo. Se tivermos sorte, chegaremos a
Torgas a meio da noite. — tirou uma bolsa de tabaco e enrolou um
cigarro, tendo o cuidado de afastar a mortalha do ar que se engolfava no
vagão — Vai um cigarro, Jim?
— Não, obrigado.
— Não tens vícios, pois não? Mas também não és beato. Não
costumas, sequer, andar com pequenas?
— Não. Noutros tempos, quando começava a ficar nervoso, ia a um
bordel. Talvez não acredites, Mac, mas desde que comecei a crescer
comecei também a ter medo das raparigas. Creio que tinha medo de ser
caçado.
— Demasiado atraente, hem?
— Não, não se trata disso. Compreendes, todos os rapazes com
quem costumava andar ficaram lixados. Costumavam tentar levar as
miúdas à certa atrás das casas de madeira e no pátio da serração, mas
mais cedo ou mais tarde uma delas aparecia de barriga à boca e
então... Bem, Mac, eu tinha medo de ser caçado como a minha mãe e o
meu velho: uma casa com duas divisões e um fogão a lenha. Não
desejo luxo, palavra, mas também não quero levar a vida desgraçada
que levam todos os rapazes que conheci. Lancheira de manhã, com
uma fatia de torta espapaçada e um termo de café requentado...
— Se não é isso que queres, deixa-me dizer-te que escolheste um
raio de uma rica vida! Quando acabarmos este trabalho verás.
— Isso é diferente. — protestou Jim — Não me importo de levar uns
socos no queixo, só não quero é ser desancado até à morte, pouco a
pouco. Há uma certa diferença.
Mac bocejou.
— Mas não uma diferença que chegue para me manter acordado. —
declarou — Os bordéis não são muito divertidos. — levantou-se, voltou
para o monte de papéis, espalhou-os, deitou-se-lhes em cima e
adormeceu.
Durante muito tempo Jim continuou sentado à porta, a ver deslizar as
quintas. Havia grandes hortas, com renques de alfaces redondas, da
rama verde das cenouras e das folhas vermelhas da beterraba, e com
água a correr e a brilhar entre os canteiros. O comboio passou por
campos de alfafa e grandes vacarias brancas, das quais o vento trazia o
cheiro rico e saudável do estrume e do amoníaco. Depois a composição
meteu por uma passagem entre os montes e o sol deixou de brilhar.
Fetos e carvalhos americanos, verdes, cresciam nos aterros íngremes. O
barulho ritmado do comboio apoderou-se dos sentidos de Jim e tornou-o
sonolento. Tentou afastar o sono, para poder apreciar mais campos, e
abanou a cabeça violentamente, para despertar, mas por fim levantou-
se, fechou a porta quase por completo e estendeu-se no seu monte de
papéis. O seu sono assemelhou-se a uma caverna negra, cheia de ecos
e gritos, e pareceu prolongar-se até à eternidade.
Mac teve de o sacudir diversas vezes para conseguir acordá-lo.
— É quase altura de saltarmos! — gritou-lhe.
Jim sentou-se.
— Meu Deus, já percorremos cento e sessenta quilômetros?
— Falta muito pouco. O ruído a modos que droga um tipo, não é?
Nunca me consigo manter acordado num vagão fechado. Prepara-te,
isto vai abrandar dentro de poucos minutos.
Jim apertou a cabeça entorpecida entre as mãos, durante um
momento.
— Sinto-me estoirado. — queixou-se.
Mac escancarou a porta e recomendou:
— Salta no sentido em que seguimos e aterra a correr. — saltou e Jim
imitou-o.
Jim olhou para o sol, que se encontrava quase a prumo, por cima
deles. À sua frente viu o aglomerado de habitações e a sombra do
arvoredo de uma cidadezinha. O comboio passou e deixou-os parados.
— Há aqui um entroncamento — explicou Mac — A linha que nos
convém desvia aqui, na direção do Torgas Valley. Não passaremos pela
cidade; atravessaremos os campos e encontraremos a linha do outro
lado.
Atrás dele, Jim saltou uma vedação de arame farpado, atravessou um
campo de restolho e desembocou numa estrada de terra solta.
Contornaram os limites da cidadezinha e ao fim de uns oitocentos
metros encontraram outro aterro dos caminhos-de-ferro.
Mac sentou-se e convidou Jim a sentar-se a seu lado.
— Este lugar é bom. Há muito movimento de comboios e não sei
quanto tempo teremos de esperar. — enrolou um cigarro numa mortalha
castanha — Jim, tens de te habituar a fumar. É um hábito social
agradável. Terás de falar com uma quantidade de desconhecidos e eu
não conheço nenhuma maneira mais rápida de amaciar um
desconhecido do que oferecer-lhe - ou até pedir-lhe um cigarro. Além
disso, muitos tipos sentem-se insultados se oferecem um cigarro e não o
aceitamos. É melhor começares.
— Creio que tens razão. Quando era miúdo fumava com os outros.
Pergunto a mim mesmo se ainda me agoniará...
— Experimenta. Eu enrolo-te um.
Jim aceitou o cigarro e acendeu.
— Sabe bem. Já quase me tinha esquecido do gosto.
— Mesmo que não te saiba bem, é um hábito útil, no nosso trabalho.
É a única distração social que os tipos nas nossas circunstâncias têm.
Escuta, vem aí um comboio. — levantou-se e acrescentou: — E parece
de mercadorias.
O comboio avançava lentamente, pela linha fora.
— Oitenta e sete, com a breca! — exclamou Mac — É o nosso
comboio. Na cidade disseram-me que seguia para sul... Deve ter
largado alguns vagões e virado para aqui.
— Voltemos para o nosso velho vagão. — sugeriu Jim —- Agradou-
me.
Quando o comboio se aproximou, saltaram de novo para o vagão e
Mac instalou-se no seu monte de papéis — Podíamos ter continuado a
dormir. — comentou.
Jim sentou-se novamente à porta, enquanto o comboio avançava
entre montes redondos e castanhos e atravessava dois túneis curtos.
Ainda sentia o gosto do tabaco na boca, um gosto que não lhe
desagradava. De súbito, enfiou a mão na algibeira do casaco de cotim e
gritou: — Mac!
— Que é, homem?
—Tenho aqui duas barras de chocolate que arranjei a noite passada.
Mac desembrulhou uma das barras, indolentemente, e comentou:
— Estou a ver que serás uma aquisição útil na revolução de qualquer
indivíduo.
Decorrida cerca de uma hora a sonolência apoderou-se de novo de
Jim. Contrafeito, fechou a porta e aninhou-se em cima dos papéis.
Voltou quase ato contínuo à caverna preta e ressonante, cujos sons se
transformaram em sonhos de água a cair sobre ele. Vagamente, via
resíduos e bocados de madeira na água, a qual o empurrava cada vez
mais para o buraco escuro que ficava abaixo do sonho.
Acordou quando Mac o sacudiu.
— Apostava que serias capaz de dormir uma semana, se te deixasse.
Hoje choinaste mais de doze horas. Jim esfregou os olhos com força.
— Sinto-me outra vez estoirado. — queixou-se.
— Bem, arrebita, pois estamos a chegar a Torgas.
— Jesus, que horas são?
— Perto da meia-noite, suponho. Cá estamos. Estás pronto para
saltar?
— Claro.
— Então, vamos.
O comboio afastou-se lentamente. A estação de Torgas ficava a
pouca distancia e a luz vermelha do semáforo estava acesa. O guarda-
freio fazia oscilar uma lanterna para trás e
para, a frente. À direita, os finos e solitários postes de iluminação
pública da cidade lançavam para o céu uma luminosidade pálida. O ar
tornara-se frio e soprava um vento cortante e silencioso.
— Tenho fome. — anunciou Jim — Tens algumas ideias quanto a
comermos, Mac?
— Espera até chegarmos a um candeeiro. Creio que tenho na lista um
bom possível fornecedor.
Estugou o passo, na escuridão, e Jim trotou atrás dele. Chegaram
num instante aos limites da cidade e, a uma esquina, debaixo de um
candeeiro Mac parou e tirou uma folha de papel da algibeira.
— Temos aqui uma rica cidade, Jim. Quase cinquenta simpatizantes
ativos, tipos com quem podemos contar para nos darem uma ajuda. Cá
está o que procurava: Alfred Anderson, Towsend, entre a 4ª e a 5ª Al's
Lunch Wagon. Que te parece?
— Que papel é esse?
— É uma lista de todas as pessoas da cidade que sabemos serem
simpatizantes. Com esta lista podemos conseguir tudo, desde regalos
de malha a uma caixa de cartuchos para caçadeira. Mas o Al's Lunch
Wagon... Estes vagões convertidos em restaurantes costumam estar
abertos toda a noite, Jim. A Towsend deve ser uma das ruas principais.
Vamos. Deixa-me ser eu a dirigir a manobra.
Pouco depois meteram pela rua principal e percorreram-na até, quase
no fim , onde havia lojas desocupadas e terrenos vagos entre os
prédios, encontrarem o Al's Lunch Wagon, uma carruagem pequena, de
aspecto acolhedor, com vidros vermelhos nas janelas e uma porta de
correr. Através da montra viram dois clientes sentados em tamboretes e
um homem novo e gordo, com os braços pesados e brancos nus, atrás
do balcão.
— Clientes de café e torta. — observou Mac — Esperemos que
acabem.
Enquanto esperavam, aproximou-se um polícia, que olhou,
desconfiado.
— Não quero ir para casa sem comer uma fatia de torta. — disse Mac,
muito alto.
Jim reagiu imediatamente:
— Vamos embora. Tenho tanto sono que não me apetece comer.
O polícia passou adiante, mas quase pareceu farejá-los, ao cruzar-se
com eles.
— Julga que estamos a arranjar coragem para cravar a loja. — disse
Mac, baixinho.
O polícia girou nos calcanhares e retrocedeu.
— Pronto, vai tu para casa, se queres. — resmungou Mac — Eu vou
comer uma fatia de torta. Subiu os três degraus e abriu a porta de correr
do restaurante. O proprietário sorriu-lhes.
— Boas noites, cavalheiros. Está a arrefecer, não está?
— Sem dúvida. — confirmou Mac, ao mesmo tempo que ia sentar-se
na ponta do balcão, o mais longe possível dos outros dois clientes.
Uma sombra de contrariedade toldou o rosto de Al.
— Escutem, amigos, se não têm dinheiro podem beber uma chávena
de café e comer dois sonhos, mas não peçam um jantar para depois me
mandarem chamar a Polícia Jesus estou farto de mendigos!
— Café e sonhos será excelente, Alfred. — disse Mac, e deu uma
gargalhadinha.
O proprietário olhou-o, desconfiado, tirou o barrete alto e branco de
cozinheiro e coçou a cabeça.
Os clientes acabaram de beber o café ao mesmo tempo e um deles
perguntou:
— Costumas dar de comer a todos os vadios, Al?
— Bem, que pode um tipo fazer? Se um indivíduo quer uma chávena
de café, numa noite fria, não posso correr com ele só porque não tem um
mísero níquel.
— Bem, vinte chávenas de café fazem um dólar, Al. — lembrou o
cliente, a rir — Se continuas assim, acabas por fechar a loja. Vens, Will?
Levantaram-se os dois, pagaram a conta e saíram. Al saiu de trás do
balcão seguiu-os e fechou bem a porta depois de eles saírem. Voltou
para trás do balcão e inclinou-se para Mac, a quem perguntou:
— Quem são vocês?
Tinha braços gordos e brancos nus até aos cotovelos, e segurava
num esfregão úmido com o qual limpava e tornava a limpar o balcão, em
pequenos movimentos circulares. A sua maneira de se inclinar para a
frente, enquanto falava, emprestava-lhe às palavras um tom de mistério.
Mac piscou o olho, muito sério, Como um conspirador, e respondeu:
— Mandaram-nos da cidade, tratar de negócios.
Um rubor de excitação animou as bochechas gordas de Al.
— Ah! Foi exatamente o que pensei quando entraram. Como
souberam que podiam vir ter comigo?
Mac explicou-lhe:
— Tem sido bom para a nossa gente e nós não esquecemos essas
coisas.
Al sorriu, desvanecido e importante, como se estivesse a receber um
presente e não a ser cravado para uma refeição.
— Esperem... provavelmente ainda não comeram nada hoje. Preparo-
lhes num instante uns bifes hamburgueses.
— Isso será ótimo! — afirmou Mac, entusiasticamente — Estamos a
bem dizer esfomeados.
Al abriu o frigorífico e tirou dois punhados de carne picada, que
espalmou entre as mãos. Passou um píncelinho pela chapa que tinha no
fogão a gás e colocou-lhe os bifes em cima. Pôs cebola picada em cima
e à volta da carne, enquanto um odor delicioso se espalhava pelo ar.
— Jesus, até me apetece saltar o balcão e aninhar-me nesse
hamburguês! — exclamou Mac.
A carne chiava e a cebola começava a acastanhar. Al inclinou-se
outra vez por cima do balcão e perguntou: — Que os trouxe até cá?
— Bem, vocês têm aí uma quantidade de belas maçãs... —
respondeu-lhe Mac.
Al endireitou-se e apoiou-se na fortaleza gorda dos braços. Os seus
olhinhos assumiram uma expressão muito sabida e secreta!
— Ah! — exclamou — Ah, estou a topá-lo!
— Não se esqueça de virar a carne. — lembrou Mac.
Al virou os bifes e comprimiu-os com a espátula. Reuniu a cebola,
que se espalhara, repô-la em cima da carne e voltou a comprimir. Os
seus movimentos eram muito certos e deliberados, tão certos e
deliberados que faziam lembrar uma vaca a ruminar. Por fim virou-se e
parou de novo diante de Mac.
— O meu velho tem um pomarzinho e um pouquinho de terra... Não
lhe farão mal, pois não? Fui bom para vocês.
— Claro que foi bom para nós, e claro que não prejudicaremos os
pequenos agricultores. Diga ao seu pai que não tem nada a recear de
nós e que, se nos ajudar, arranjaremos maneira de a sua fruta ser
colhida.
— Obrigado, direi.
Al tirou os bifes da chapa, pôs colheradas de purê de batata nos
pratos aquecidos, abriu um buraco em cada montanha de batata e
encheu as crateras brancas de molho castanho claro.
Mac e Jim comeram vorazmente e beberam as canecas de café que
Al lhes pôs à frente. Depois limparam os pratos com pão e comeram o
pão embebido em molho, enquanto Al voltava a encher as canecas de
café.
— Foi ótimo, Al. — disse Jim — Estava esfaimado.
— Foi realmente ótimo. — confirmou Mac — Você é bom tipo, Al.
— Estaria a vosso lado se não tivesse um negócio e se o meu velho
não fosse proprietário de terra. — explicou o rapaz — Creio que me
destruiriam isto tudo se alguém descobrisse...
— Por nós nunca descobrirão, Al.
— Claro que não, bem sei.
— Escute, Al, já vieram muitos trabalhadores para a colheita?
— Sim, já chegou um grupo deles. Muitos comem aqui. Forneço uma
refeição muito jeitosa por um quarto de dólar: sopa, carne, dois tipos de
vegetais, pão e manteiga, torta e duas chávenas de café por um quarto
de dólar. Contento-me com um lucro pequeno, mas vendo mais.
— Bom trabalho. — elogiou Mac — Olhe, Al, ouviu alguns dos tipos
falar de um chefe?
— De um chefe?
— Sim, de um gajo que lhes diga onde devem pôr os pés.
— Percebo o que quer dizer. Mas não, não me lembro de nada desse
gênero.
— Bem, onde estão os tipos reunidos?
Al esfregou o queixo mole.
— Que eu saiba, há dois grupos. Um está na Pao Road, ao longo da
auto-estrada do condado, e outro encontra-se reunido junto do rio. Têm
uma espécie de acampamento entre os salgueiros.
— É isso que nos interessa. Como se vai para lá?
Al esticou um dedo gordo e explicou:
— Metem por aquela rua transversal e seguem por ela até ao limite da
cidade, onde encontrarão o rio e a ponte. Depois procuram um carreiro
entre os salgueiros, à esquerda. Sigam-no durante uns quatrocentos
metros, e pronto. Não sei quantos tipos lá se encontram.
Mac levantou-se e pôs o chapéu.
— É um tipo fixe, Al. Agora já nos saberemos orientar. Obrigado pelos
morfos.
— O meu velho tem um barracão com uma tarimba, se lá quiserem
ficar.
— Não podemos, Al. Se queremos trabalhar, temos de nos misturar
com a malta.
— Bem, se precisarem de comer qualquer coisa, de vez em quando,
apareçam. Mas escolham uma altura como esta, em que não esteja
ninguém, sim?
— Esteja descansado, Al, nós compreendemos. Mais uma vez
obrigado.
Mac deixou Jim sair à sua frente e depois fechou a porta.
Desceram os degraus e meteram pela rua que Al lhes indicara. À
esquina, o polícia saiu de uma porta, e perguntou-lhes, ríspido:
— Qual é a vossa idéia?
Jim deu um salto para trás, surpreendido com o aparecimento súbito
do polícia, mas Mac parou e respondeu calmamente:
— Somos dois apanhadores, mister. A nossa ideia e apanhar umas
maçãs.
— Que fazem na rua a esta hora da noite?
— Com os diabos, saltamos daquele comboio de mercadorias que
passou há uma hora!
— E para onde vão agora?
— Pensamos acampar com a malta, junto do rio.
O polícia continuou parado diante deles e perguntou:
— Têm algum dinheiro?
— Viu-nos pagar uma refeição, não viu? Temos o suficiente para não
sermos presos por vadios.
O polícia desviou-se, finalmente, e disse:
— Bem, ponham-se a andar... e desapareçam das ruas à noite.
— Pois sim, mister.
Afastaram-se rapidamente.
— Soubeste falar-lhe nas calmas, Mac.
— Porque não? Essa é a primeira lição: nunca discutas com um tira,
especialmente de noite. Seria giro se apanhássemos trinta dias por
vadiagem numa altura destas, não seria?
Aconchegaram os casacos de cotim ao peito e estugaram o passo.
Os candeeiros tornaram-se menos frequentes.
— Como é que vais começar? — inquiriu Jim.
— Não sei. Temos de aproveitar qualquer pretexto. Partimos com um
plano geral, mas os pormenores têm de ir sendo arranjados com
qualquer material que nos apareça. Tudo serve. É a única coisa que
podemos fazer. Observaremos a situação e depois logo se vê.
Jim estugou de novo o passo, num ímpeto de energia.
— Bem, deixa-me fazer coisas, ouviste, Mac? Não quero passar a
vida só a fazer perguntas.
— Hás de ter que fazer, descansa. — respondeu-lhe o outro, a rir –
Hás de ter tanto que fazer que desejarás estar de novo na cidade, com
um emprego de oito horas por dia.
— Acho que não desejarei tal coisa, Mac. Nunca me senti tão bem
como agora. Estou todo eufórico, tenho uma sensação agradável...
Também costumas sentir isso?
— Às vezes. Mas geralmente tenho tanto que fazer que nem sei o que
sinto.
Os prédios ao longo da rua tornavam-se mais velhos à medida que
avançavam. Iam deixando para trás oficinas de soldadura, parques de
carros usados e grandes montes de sucata, proveniente de desastres de
viação e carros velhos. A luz dos candeeiros brilhava nas janelas vazias
e mortas de casas velhas e descuidadas e projetava sombras de
arbustos que tinham secado. Os homens caminhavam depressa, sob o
aguilhão do frio noturno.
— Parece-me que já vejo as luzes da ponte. — disse Jim — Vês
aquelas três luzes de cada lado?
— Vejo. Ele não disse que virássemos à esquerda?
— Sim. à esquerda.
Era uma ponte de betão de dois arcos e atravessava um rio estreito,
reduzido naquela estação a um fio de água que corria indolentemente
no meio de um leito arenoso. Jim e Mac atravessaram para a esquerda
e, junto da margem do leito do rio, encontraram o início de um carreiro
aberto entre os salgueiros. Mac seguiu à frente. Pouco depois estavam
fora do alcance das luzes da ponte e cercados de matagal por todos os
lados. Viam os ramos dos salgueiros recortados nos pontos mais claros
do céu e, à direita, na margem do leito do rio, uma parede escura de
grandes choupos do canadá.
— Não consigo ver o carreiro. — queixou-se Mac — Tenho de o
procurar com os pés. — avançava cuidadosa e lentamente — Levanta
os braços, para protegeres a cara.
— É isso que estou a fazer, pois há cerca de um minuto fui fustigado
na boca.
Continuaram a caminhar ao longo do carreiro duro e batido. De
súbito, Jim anunciou:
— Cheira-me a fumo. Já não deve ser longe.
Mac parou, de repente — Há luzes em frente. Escuta, Jim, mais uma
vez, deixa-me ser eu a falar.
— Está bem.
Capítulo 4
O CARREIRO desembocou bruscamente numa grande clareira,
tremulamente iluminada por uma pequena fogueira. Do lado oposto
havia três tendas brancas, sujas, numa das quais estava a luz acesa e
se viam grandes sombras pretas a mover-se na lona. Na clareira
propriamente dita encontravam-se talvez uns cinquenta homens, alguns
deles a dormir no chão, enchouriçados em cobertores, enquanto outros
se sentavam à roda da pequena fogueira acesa no meio da clareira.
Quando desembocaram do salgueiral, Jim e Mac ouviram um grito breve
e agudo, rapidamente sufocado e proveniente da tenda iluminada. No
mesmo instante, as grandes sombras negras moveram-se nervosamente
na lona.
— Está alguém doente. — disse Mac, baixinho — Finjamos que não
ouvimos nada. É sempre conveniente dar a impressão de que só nos
preocupa a nossa vida.
Avançaram na direção da fogueira, onde os homens estavam
sentados a envolver os joelhos com os braços.
— Podemos entrar para este clube? — perguntou Mac — Ou temos
de ser eleitos?
Os rostos dos homens voltaram se para ele, rostos de barba crescida,
em cujos olhos se refletia a luz da fogueira. Um deles chegou-se para o
lado, para arranjar espaço, e respondeu: — O chão é grátis, homem.
— Donde venho não é. — replicou Mac, com uma gargalhadinha.
Um rosto magro brilhou, do outro lado da fogueira, e um homem
disse:
— Chegou a um bom lugar, amigo. Aqui é tudo grátis: comes, bebes,
automóveis, casas... Entre e sente-se para saborear um jantar de peru.
Mac acocorou-se e fez sinal a Jim, para se sentar a seu lado. Tirou a
bolsa do tabaco e fez um excelente cigarro. Depois, como se a ideia lhe
acudisse de repente, perguntou:
— Algum dos senhores capitalistas deseja fumar?
Estenderam-se diversas mãos e a bolsa passou de homem para
homem.
— Acaba de chegar? — perguntou o da cara magra.
— É verdade. Conto apanhar umas maçãs e depois reformar-me e
viver dos rendimentos.
— Sabes o que eles estão a pagar? — indagou, furioso, o mesmo
homem — Quinze cêntimos, quinze miseráveis cêntimos.
— Bem, que quer você? — perguntou Mac — Jesus Cristo, homem,
não tem com certeza o atrevimento de dizer que quer comer, pois não?
Pode comer uma maçã enquanto trabalha. Há por aí tantas belas maçãs!
— e acrescentou, em tom que se tornou duro: — E se não as
apanhássemos?
— Temos de as apanhar! — gritou o da cara magra — Gastamos até
ao último cêntimo para cá chegar.
Mac repetiu, docemente:
— Tantas belas maçãs! Se não as apanharmos, apodrecem.
— Se não as apanharmos, alguém as apanhará.
— E se não deixássemos ninguém apanhá-las? — insinuou Mac.
Os homens reunidos à volta do fogo tornaram-se tensos.
— Está a falar de... greve? — perguntou o da cara magra.
— Não estou a falar de nada! — replicou Mac, a rir.
Um homem baixo, que tinha o queixo apoiado nos joelhos, interveio
na conversa:
— Quando London soube o que estavam a pagar quase teve um
ataque. — virou-se para o homem que estava a seu lado e acrescentou:
— Tu viste-o, Joe. Não teve quase Um ataque? Ficou verde. Apanhou
um pau e fê-lo em fanicos, com as mãos.
A bolsa do tabaco voltou ao ponto de partida, mas quase vazia. Mac
apalpou-a com os dedos e meteu-a na algibeira.
— Quem é o London?
Foi o da cara magra que lhe respondeu:
— London é um tipo porreiro... um tipo fixe. Viajamos com ele. É um
grande tipo.
— O chefe, não?
— Bem, não. Não é o chefe, mas é porreiro. Viajamos a modos com
ele. Devia ouvi-lo falar a um polícia! Ele...
O grito soou de novo, desta vez mais prolongado. Os homens viraram
a cabeça na direção da tenda e depois olharam de novo, apáticos, para
o lume.
— Está alguém doente? — perguntou Mac.
— É a nora do London. Está a ter um miúdo.
— Mas isto não é lugar para ter um miúdo! — exclamou Mac —
Chamaram um médico?
— Não, homem! Onde iam arranjar um médico?
— Porque não a levam para o hospital do condado?
— Não querem malta das colheitas no hospital do condado —
respondeu o da cara magra, em tom sarcástico — Não sabe isso? Não
têm vagas, estão sempre cheios.
— Bem sei. — declarou Mac — Só queria saber se vocês sabiam.
Jim tremeu de frio, pegou numa vara e meteu a ponta no lume, até
irromper em chamas. A mão do amigo aproximou-se sorrateiramente, na
escuridão, e apertou-lhe o braço.
— Tem alguém que perceba alguma coisa do assunto? — perguntou
Mac.
— Tem uma velha. — respondeu o da cara magra, cujos olhos se
tornaram desconfiados com tanta pergunta — Mas que tem você com
isso?
— Tenho um certo treino. — disse o interpelado, em tom casual —
Percebo alguma coisa do assunto e pensei que talvez pudesse ajudar.
— Bem, vá ter com o London. — aconselhou o da cara magra, que
não queria responsabilidades — Nós não temos nada que responder a
perguntas a respeito dele.
Mac levantou-se, fingindo não perceber a desconfiança, e declarou:
— É isso mesmo que vou fazer. Anda, Jim. London está naquela
tenda com a luz acesa?
— Está, sim.
Um círculo de rostos iluminados pelas chamas acompanhou Jim e
Mac com o olhar e depois as cabeças voltaram-se de novo para o fogo.
Os dois homens atravessaram a clareira com cuidado, para não pisarem
as trouxas de roupa em que se tinham transformado os trabalhadores
adormecidos.
— Que grande aberta! — segredou Mac — Se me conseguir safar,
estamos lançados!
— Que queres dizer? Não sabia que tinhas conhecimentos médicos.
—- Há muitíssima gente que também não o sabe.
Aproximaram-se da tenda em cuja lona se recortavam figuras negras.
— London. — chamou Mac.
Quase imediatamente a aba da tenda abriu e saiu um homem
corpulento. Tinha uns ombros imensos e cabelo escuro, espetado, a
formar uma tonsura, deixando o alto da cabeça completamente calvo.
Um encordoado de músculos sulcava-lhe a cara e os seus olhos
escuros raiados de sangue tinham a ferocidade dos de um gorila.
Emanava dele uma força de autoridade, sentia-se que conduzia homens
com a mesma naturalidade com que respirava. Manteve a aba da tenda
fechada atrás de si, com uma das grandes mãos.
— Que querem?
— Acabamos de chegar. — explicou Mac — Uns tipos, ali junto da
fogueira, disseram que estava uma rapariga a ter um filho.
— E depois?
— Pensei que talvez pudesse ajudar, uma vez que não tem médico.
London abriu a aba da tenda, para que um pouco de luz incidisse na
cara de Mac.
— Que julga poder fazer?
— Trabalhei em hospitais, já tenho feito isto outras vezes... Não dá
resultado correr riscos, London.
O homenzarrão baixou a voz e convidou:
— Entrem. Temos cá uma velha, mas desconfio de que é chalada.
Entrem e deitem uma vista de olhos. — segurou a aba da tenda, para os
deixar entrar.
A tenda estava atravancada de gente e o calor era muito. Ardia uma
vela, num pires. No meio da tenda estava um fogão feito de uma lata de
petróleo e, sentada a seu lado, uma mulher velha e engelhada. A um
canto, de pé, encontrava-se um rapaz pálido e, encostado à parede do
fundo, no chão, um colchão onde estava deitada uma rapariga nova,
com rosto muito pálido, sulcado de sujidade escura, e cabelo
empastado.
Os olhos dos três fitaram-se em Mac e Jim. Os da velha foram os
primeiros a baixar-se de novo para o fogão em brasa enquanto ela
coçava as costas de uma das mãos com as unhas da outra.
London acercou-se do colchão e ajoelhou-se. A rapariga desviou de
Mac os olhos assustados e fitou-os em London.
— Temos aqui um médico. — disse o homem — Já não precisas de
ter medo.
Mac olhou para a rapariga e piscou o olho. O rosto dela estava
petrificado de pavor. O rapaz veio do seu canto e agarrou o ombro de
Mac.
— Ela vai ficar boa, doutor?
— Claro que vai ficar boa.
Mac virou-se para a velha e perguntou-lhe:
— É parteira?
A mulher coçou as costas das mãos engelhadas e olhou-o
vagamente, mas não respondeu.
— Perguntei-lhe se era parteira. — insistiu Mac, mais alto.
— Não... mas já aparei um ou dois bebês.
Mac inclinou-se, agarrou-lhe uma das mãos e aproximou dela a vela
acesa. As unhas estavam compridas, partidas e sujas e a cor das mãos
era cinzenta azulada.
— Se aparou alguns bebês estavam mortos. Que ia usar como pano?
A velha apontou para uma rima de jornais e guinchou:
— A Lisa ainda só teve duas dores. Temos papéis para apanhar a
porcaria.
London inclinou-se para a frente, com a boca ligeiramente aberta
num esforço de concentração e os olhos a fitarem os de Mac,
perscrutadores. A tonsura brilhava à luz da vela.
— É verdade. Lisa teve duas dores. — corroborou — A segunda
acabou há pouco.
Mac fez um pequeno gesto com a cabeça na direção do exterior. Saiu,
seguido por London e Jim.
— Viu aquelas mãos. — disse a London — O miúdo poderá
sobreviver, se for aparado por elas, mas a rapariga não se safará. É
melhor correr com a velha.
— Então faz você o trabalho?
Mac ficou um momento silencioso, antes de responder:
— Claro que faço. Aqui o Jim me ajudará um bocado, mas preciso de
mais ajuda, de muito mais ajuda.
— Bem, eu ajudo. — prontificou-se London.
— Não chega. Alguns dos rapazes ali da fogueira estarão dispostos a
ajudar?
— Pode ter a certeza de que estarão, se eu lho disser. — afirmou
London, e soltou uma pequena gargalhada.
— Então diga-lho. Diga-lho já.
Dirigiu-se à frente dos outros para a fogueira, à roda da qual os
homens continuavam sentados. Levantaram a cabeça, ao senti-los
aproximarem-se.
— Olá, London. — saudou o da cara magra.
London falou-lhes em voz alta:
— Quero que vocês escutem aqui o “doutor”.
Aproximaram-se mais alguns homens, que pararam à espera.
Mostravam-se apáticos e ensonados, mas tinham acorrido à voz da
autoridade. Mac pigarreou.
— London tem uma nora e a nora vai ter um bebê. Ele tentou interná-
la no hospital do condado, mas não a aceitaram. Estão cheios e, além
disso, nós não passamos de uma corja de miseráveis apanhadores de
fruta. Muito bem. Já que eles não nos ajudam, temos nós de fazer o que
é necessário.
Os homens pareceram tornar-se um pouco tensos e juntaram-se mais.
A apatia começou a abandoná-los. Chegaram-se para mais perto da
fogueira. Mac prosseguiu:
— Trabalhei em hospitais e por isso posso ajudar, mas preciso que
vocês também ajudem. Temos de ajudar a nossa própria gente, pois se
não formos nós a ajudá-la ninguém a ajudará.
O da cara magra empertigou-se e interrompeu:
— Está bem, amigo. Que quer que façamos?
Iluminado pela luz da fogueira, o rosto de Mac abriu-se num sorriso de
satisfação e triunfo.
— Ótimo! — exclamou — Vocês sabem trabalhar juntos. Para
começar, precisamos de água a ferver. Quando estiver a ferver, temos
de lhe meter dentro pano branco e deixá-lo ferver também. Não me
interessa onde ou como arranjem o pano. — apontou três homens e
acrescentou: — Agora você e você acendam uma grande fogueira. E
você arranje duas grandes vasilhas. Deve haver por aí algumas latas de
vinte litros. Os restantes arranjem tecido. Tudo serve: lenços, camisas
velhas, tudo, desde que seja branco. Quando a água estiver a ferver,
metam-lhe os panos dentro e deixem ferver durante meia hora. Preciso
de uma vasilha de água quente o mais depressa possível. — ao ver que
o homens começavam a impacientar-se, Mac prosseguiu: — Esperem,
há mais uma coisa. Preciso de uma boa lanterna. Arranjem-me uma. Se
ninguém lha quiser dar, roubem-na. Preciso de luz.
Operara-se uma mudança, a apatia abandonara os homens.
Acordaram-se os que dormiam, que se juntaram ao grupo depois de
saberem o que se passava. Percorria o acampamento uma corrente de
excitação, mas de uma excitação alegre. Acenderam-se fogueiras e
puseram-se quatro grandes latas de água a ferver. Depois começou a
aparecer o pano; todos os homens pareciam ter qualquer coisa para
acrescentar ao monte. Um despiu a camisola interior, meteu-a na água e
voltou a enfiar a camisa. Pareciam subitamente felizes e riam juntos
enquanto partiam ramos mortos de choupos-do-canadá para alimentar o
lume.
Ao lado de Mac, Jim observava toda aquela atividade.
— Que queres que eu faça?
— Anda comigo, Jim; podes ajudar-me na tenda. — nesse momento
ouviu-se um grito da rapariga e Mac acrescentou, apressado: —Arranja-
me uma lata de água quente o mais depressa que puderes. — estendeu
um frasquinho e recomendou: — Deita umas quatro pastilhas destas em
cada uma das latas grandes. Quando me levares a água entrega-me o
frasquinho — e afastou-se a correr, na direção da tenda.
Jim contou as pastilhas e deitou-as nas latas e depois tirou um grande
balde de água quente de uma delas e foi também para a tenda. A velha
estava acocorada a um canto, para não estorvar. Coçou as mãos e
olhou desconfiadamente enquanto Mac deitava duas pastilhas na água
quente e mergulhava nela as mãos.
— Pelo menos podemos desinfectar as mãos. — murmurou.
— Que tem o frasco?
— Bicoloreto de mercúrio. Trago-o sempre comigo. Lava também as
mãos, Jim, e depois traz-me mais água limpa.
Uma voz informou, fora da tenda:
— Tem aqui as suas lanternas, “doutor”.
Mac abriu a aba da tenda e recebeu um candeeiro Rochester de vela
redonda e uma potente lanterna a gasolina.
— Um pobre diabo qualquer vai ordenhar as vacas no escuro. —
disse a Jim.
Deu pressão à lanterna a gasolina e quando a acendeu os vidros
coaram uma crua luz branca e o silvo da chama encheu a tenda. Do
exterior chegava o estalar da lenha a ser partida e o som de vozes.
Mac colocou a lanterna ao lado do colchão.
— Vais ficar boa Lisa. — prometeu, ao mesmo tempo que
delicadamente, tentava levantar a manta imunda que a cobria.
London e o rapaz pálido observavam-no e, num furioso acesso de
pudor, a rapariga não deixava levantar a manta.
— Vamos, Lisa, preciso de te preparar. — insistiu Mac, em tom
persuasivo, mas ela continuou a agarrar a manta.
London interveio:
— Faz o que ele te diz Lisa.
A rapariga fitou os olhos assustados no sogro e depois,
relutantemente, largou a colcha. Mac dobrou-a para trás, para cima do
peito da jovem, e em seguida desabotoou-lhe a roupa interior de
algodão.
— Jim, vai lá fora buscar um pano e arranja-me sabão. Quando Jim
lhe entregou um pano fumegante e um pequeno e duro bocado de
sabão, Mac lavou as pernas, as coxas e o ventre da rapariga, mas fê-lo
tão suavemente que parte do medo abandonou o rosto de Lisa. Os
homens trouxeram os panos fervidos. O intervalo entre as dores tornou-
se cada vez menor. O nascimento começou ao alvorecer. A certa altura,
a tenda abanou violentamente. Mac olhou por cima do ombro e disse:
— London, o seu rapaz desmaiou. É melhor levá-lo lá para fora, para
o ar.
Com uma expressão de profundo embaraço, London atravessou o
débil rapaz no ombro e saiu com ele.
A cabeça do bebê apareceu. Mac amparou-a com as mãos e,
enquanto Lisa gritava debilmente, o nascimento completou-se. Mac
cortou o cordão umbilical com um canivete esterilizado.
O sol brilhava na lona da tenda e a lanterna continuava a silvar. Jim
torceu os panos quentes e estendeu-os a Mac, para lavar o bebê
pequenino e enrugado, e lavou também minuciosamente as mãos da
velha antes de Mac permitir que ela pegasse na criança. Uma hora
depois saiu a placenta e Mac voltou a lavar cuidadosamente Lisa.
— Agora leve toda esta porcaria lá para fora — disse a London —
Queimem toda esta trapagem.
— Até os trapos que não usou? — perguntou London.
— Sim, queime tudo. Não prestam.
Tinha os olhos cansados. Lançou uma última olhadela em redor da
tenda. A velha tinha o bebê embrulhado ao colo e Lisa, de olhos
fechados, respirava serenamente, deitada no colchão.
— Vamos, Jim, precisamos de dormir um bocado.
Os homens dormiam novamente na clareira, e o sol incidia na copa
dos salgueiros. Mac e Jim enfiaram-se numa pequena caverna, no meio
do matagal, e deitaram-se juntos.
— Ardem-me os olhos e estou cansado. — murmurou Jim — Não
sabia que tinhas trabalhado num hospital.
Mac cruzou as mãos debaixo da cabeça e disse:
— Não trabalhei.
— Então onde aprendeste acerca de partos?
— Nunca aprendi nada, a não ser hoje. Foi a primeira vez que vi
nascer uma criança. A única coisa que sabia era que a higiene tinha um
papel importante. Meu Deus, que sorte ter corrido tudo bem! Se tivesse
acontecido algum precalço estaríamos lixados. A velha sabia muito mais
do que eu... e desconfio de que o percebeu muito bem.
— Atuaste com segurança.
— Que remédio! Temos de utilizar o material que se nos oferece, seja
ele qual for. Tratava-se de uma aberta feliz e tínhamos pura e
simplesmente de a aceitar. Claro que foi agradável ajudar a pequena,
mas, com os diabos, mesmo que ela tivesse morrido... Temos de
aproveitar tudo! - virou-se de lado e apoiou a cabeça no braço, a servir
de almofada.
— Estou arrombado, mas sinto-me bem. Graças a uma noite de
trabalho conquistamos a confiança dos homens e de London. Mais:
fizemos com que os homens trabalhassem para si mesmos, em sua
defesa, como um grupo. É para isso que estamos aqui, para os ensinar a
lutar em grupo, como um todo. Sabes muito bem que não é só o
aumento dos salários que nos interessa.
— Pois sei. Mas não sabia como irias atuar.
— Bem, só existe uma regra: usar o material de que dispusermos,
seja ele qual for. Não temos metralhadoras nem soldados. Esta noite foi
excelente; o material estava preparado e nós também. O London está
conosco, é um chefe natural. Nos o ensinaremos a chefiar, mas temos
de proceder com o máximo cuidado. A chefia tem de partir dos homens.
Podemos ensinar-lhes método, mas eles próprios é que terão de fazer o
trabalho. Dentro em breve começaremos a ensinar método a London,
que por sua vez poderá ensiná-lo aos homens sob a sua orientação.
Verás como a história desta noite se espalhará num instante por toda a
região. Já temos as coisas encaminhadas, e melhor do que eu
esperava. Arriscamo-nos a, mais tarde, ir malhar com os ossos na
cadeia por prática ilegal de medicina, mas se isso acontecer ainda ligará
mais os homens a nós.
— Como foi que aconteceu? Tu não disseste muito, mas eles
começaram a trabalhar como um relógio, e gostaram. Sentiram-se
ótimos.
— Claro que gostaram. Os homens gostam sempre de trabalhar
juntos, há neles uma fome, uma ânsia de trabalhar juntos. Sabias que
dez homens conseguem erguer uma carga cerca de doze vezes maior
do que um homem só? Basta uma pequena centelha para os lançar na
ação. A maior parte das vezes mostram-se desconfiados, pois sempre
que alguém os leva a trabalhar em grupo o lucro do seu trabalho é-lhes
tirado; mas espera até trabalharem para si próprios e verás! Esta noite o
trabalho dizia-lhes respeito, era deles, e bem viste como se
desempenharam dele.
— Não precisavas de todos aqueles trapos. Porque disseste ao
London que os queimasse?
— Não compreendeste, Jim? Cada homem que deu parte da sua
roupa sentiu que participava, que o trabalho era seu. Sentem-se todos
responsáveis pelo bebê. É seu, porque contribuíram com algo que lhes
pertencia para ele. Devolver os trapos seria excluir os seus donos. Não
há melhor maneira de conseguir que os homens se tornem parte de um
movimento do que levá-los a contribuir com qualquer coisa para ele.
Aposto que se sentem todos porreiros, neste momento.
— Hoje vamos trabalhar?
— Não. Esperemos que a história da noite passada se espalhe. Verás
como amanhã estará transformada numa história formidável.
Trabalharemos mais tarde; agora precisamos de dormir. Mas, Jesus, que
bem nos correu tudo, até agora!
Os salgueiros buliam por cima deles e algumas folhas caiam-lhes em
cima.
— Não me lembro de estar tão cansado, mas sinto-me ótimo. —
observou Jim.
Mac abriu um momento os olhos e afirmou:
— Estás a sair-te muito bem, rapaz. Acho que darás um bom ativista.
Ainda bem que vieste comigo. Ajudaste muito, a noite passada. Mas
agora tenta fechar o raio dos olhos e da boca e dormir um bocado.
Capítulo 5
O SOL da tarde roçava pelas copas das macieiras e depois desfazia-
se em faixas e camadas de luz oblíqua, de baixo dos ramos pejados, e
projetava rodelas luminosas no chão. O espaço largo entre as árvores
prolongava-se, até os renques de macieiras parecerem convergir num
infinito visual. O grande pomar fervilhava de atividade. Escadas
compridas encostavam-se aos ramos e nas alamedas amontoavam-se
caixotes novos, amarelos. De longe chegava o ruído das máquinas
calibradoras e dos martelos que fechavam os caixotes. Os homens, com
os grandes baldes suspensos de cinturões, corriam pelas escadas
acima, soltavam as enormes maçãs com um torcegão e enchiam os
baldes até mais não poder. Depois desciam as escadas, também a
correr, e despejavam os baldes nos caixotes. Camionetas avançavam
por entre os renques. carregavam as maçãs colhidas e levavam-nas
para a seção de calibragem e acondicionamento. Ao lado dos caixotes
encontrava-se um conferente, que fazia um sinal a lápis no seu livrinho à
medida que os homens dos baldes apareciam. Reinava enorme
atividade no pomar. Os ramos das árvores tremiam, debaixo das
escadas, e as maçãs demasiado maduras caíam no solo, com plops!
surdos. Algures, escondido na copa de uma árvore, um virtuoso do
assobio trinava.
Jim desceu apressadamente a escada, levou o balde para o monte de
caixotes e despejou-o. O conferente, um homem novo e louro, de calças
de belbutina branca, limpas, fez um sinal no livro e acenou com a
cabeça.
— Não as despeje com tanta força, amigo. — advertiu — Assim ficam
tocadas.
— Está bem. — disse Jim e voltou para a sua escada a bater com o
joelho no balde.
Subiu a escada e suspendeu o gancho do balde de um ramo. Nesse
momento viu que se encontrava na árvore outro homem, que saíra da
escada e estava de pé num grande ramo. O homem estendeu os braços
por cima da cabeça, para uma pernada cheia de maçãs, sentiu a árvore
estremecer sob o peso de Jim e olhou para baixo.
— Olá, rapaz. Não sabia que esta árvore era tua.
Jim levantou a cabeça e olhou para o velho magro, de olhos pretos e
barba rala e espigada. As veias das suas mãos eram grossas e azuis e
as suas pernas pareciam magras e tesas como paus, demasiado
magras em contraste com os grandes pés metidos nas botifarras de sola
grossa.
— Quero lá saber da árvore para alguma coisa! — respondeu-lhe Jim
— Mas você não será demasiado velho para andar por aí a trepar como
um macaco?
O velho cuspiu e seguiu com o olhar a grande bola de saliva branca,
até ela se esparrinhar no chão. Havia orgulho nos seus olhos
remelosos.
— Isso é o que pensas. Não faltam catraios como tu a julgarem-me
demasiado velho, mas eu sou capaz de trabalhar mais do que tu em
qualquer dia da semana. Não te esqueças disso!
Imprimiu aos joelhos uma elasticidade forçada, enquanto falava,
estendeu de novo os braços e arrancou o cacho inteiro de maçãs, com
pernada e tudo. Tirou as maçãs para o balde e, desdenhosamente,
atirou a pernada nua para o chão.
Ouviu-se logo a voz do conferente:
— Eh, aí em cima, cuidado com as árvores!
O velho sorriu maliciosamente, mostrando dois dentes de cima e dois
dentes de baixo, amarelos, grandes e inclinados para fora, como os de
um rato. — É um sacana muito atarefado, não é? — perguntou a Jim.
— Universitário. Aonde quer que vamos, tropeçamos neles.
O velho acocorou-se no seu ramo e perguntou:
— E que sabem eles? Vão para essas universidades e não aprendem
coisíssima nenhuma. Aquele menino espertalhão, com o seu livrinho,
não seria capaz de conservar o cu seco num estábulo. — cuspiu de
novo.
— Lá gostar de armar em espertalhões, gostam. — concordou Jim.
— Mas tu e eu, — prosseguiu o velho — tu e eu sabemos... talvez não
saibamos muito, admito, mas o que sabemos sabemos bem.
Jim ficou um momento calado e depois espicaçou o orgulho do velho,
como ouvira Mac fazer a outros homens. — Você não sabe o suficiente
para não subir a árvores, já com setenta anos no lombo, e eu não sei o
suficiente para usar calças de belbutina branca e fazer sinais a lápis
num livrinho.
— Não temos influência nenhuma, é o que é. — rosnou o velho —
Não temos influência para arranjar um trabalho fácil. Deixamo-nos pisar
porque não temos influência.
— E que tenciona fazer para remediar isso?
A pergunta produziu no velho o efeito de uma picada de alfinete num
balão. A sua cólera extinguiu-se e os seus olhos pareceram perplexos e
um pouco assustados.
— Só Deus sabe. — murmurou — Nós resignamo-nos, mais nada.
Andamos por aí fora como uma vara de porcos e um universitário dá-nos
porrada no cu.
— A culpa não é dele. O rapaz limitou-se a arranjar um emprego e se
o quer conservar tem de fazer o que lhe mandam.
O velho estendeu os braços para outro cacho de maçãs, colheu-as
com torcidinhas e colocou-as uma por uma no balde com cuidado.
— Quando era novo, pensava que era possível fazer qualquer coisa,
mas agora tenho setenta e um... — sua voz exprimia cansaço.
Passou uma camioneta, carregada de caixotes cheios, e o velho
prosseguiu:
— Estive nas florestas do Norte quando os Wobblies andavam a
pintar a manta. Sou lenhador, e dos bons, dos muito bons. Talvez tenhas
reparado como trepo por uma árvore, com a minha idade? Bem, nesse
tempo tinha esperanças... Claro que os Wobblies fizeram algumas
coisas boas. Em vez de pias havia um buraco no chão e quanto a lugar
para tomar banho, nicles. A carne estragava-se. Bem, os Wobblies
obrigaram-nos a construir casas de banho e chuveiros mas, com os
diabos estragou-se tudo. — levantava automaticamente as mãos, para
colher mais maçãs — Aderi a sindicatos. Elegíamos um presidente e,
quando mal nos precatávamos, ele andava a beijar o cu do
superintendente e a trair-nos. Pagávamos quotas e o tesoureiro pirava-
se com o nosso dinheiro... Não sei, francamente. Talvez vocês, rapazes
novos, consigam encontrar qualquer solução. Nós fizemos o que
pudemos.
— Está disposto a desistir? — perguntou Jim, olhando-o de novo.
O velho acocorou-se no ramo e agarrou-se com uma grande mão
escanzelada.
— Tenho pressentimentos na minha pele... Talvez penses que sou
um velho doido. Aquelas outras coisas foram planeadas e delas não
resultou nada, mas eu tenho pressentimentos...
— Que gênero de pressentimentos?
— É difícil dizer, rapaz. Um bom bocado antes de a água ferver
começa a subir nas bordas, não é? É esse o gênero de coisa que sinto.
Tenho trabalhado com apanhadores toda a minha vida. Não há plano
nenhum nisto, é assim como a água a subir antes de ferver. — tinha os
olhos vagos, sem ver, e endireitou a cabeça de modo que duas badanas
de pele se lhe retesaram entre o queixo e a garganta — Talvez se tenha
passado demasiada fome, talvez demasiados patrões tenham explorado
os homens... Não sei. É uma sensação, uma coisa que sinto na pele.
— Mas de que se trata afinal? — perguntou Jim.
— Trata-se de ira! — gritou o velho — Aí está de que se trata. Quando
um homem está prestes a lutar, quando está louco furioso, tem uma
sensação de calor, de fraqueza e agonia nas tripas, não tem? Bem, é
isso, com a diferença de que não se trata apenas de um homem. É como
se todos eles, milhões e milhões, fossem um homem, um homem que
tem sido espancado, que tem passado fome e que começa a sentir
aquela coisa estranha nas tripas. A malta dos apanhadores não sabe o
que está a acontecer, mas quando o calmeirão se danar, eles estarão
todos com ele... e, meu Jesus, nem quero pensar no que vai ser!
Rasgarão gargantas com os dentes e arrancarão beiços com as garras.
É ira, é o que é. — cambaleou, no ramo, e agarrou-se melhor, para se
equilibrar.
— Sinto-o na pele. — repetiu — Em todos os lados para onde vou, é
como a água antes de começar a ferver.
Jim tremia de excitação.
— Tem de haver um plano! — afirmou — Quando a coisa estoirar, terá
de haver um plano prontinho para a orientar, para que se colham alguns
resultados.
O velho parecia cansado, depois do seu desabafo.
— Quando aquele calmeirão estoirar, não haverá plano capaz de o
deter. O tipo desatará a correr como um cão raivoso e morderá tudo
quanto se mexer. Passa fome há muito tempo, tem sido demasiado
espezinhado... e, o que é pior, têm-lhe ferido demasiado as
susceptibilidades.
— Mas se um número de homens suficiente esperasse essa explosão
e tivesse um plano... — insistiu Jim.
— Oxalá eu morra antes disso acontecer. — declarou o velho, a
abanar a cabeça — Rasgarão gargantas com os dentes, matarão uns
aos outros, e depois de estarem todos esfalfados ou mortos voltará a ser
tudo o mesmo. Quero morrer para ser poupado a isso. Vocês, novos, têm
esperanças... — tirou o balde cheio do ramo — Eu não tenho esperança
nenhuma. Sai do caminho, que vou descer a escada. Nós não
ganhamos dinheiro a falar; isso é para os meninos universitários.
Jim desviou-se para um ramo e deixou-o descer. O velho despejou o
balde e foi para outra árvore. Embora Jim esperasse por ele, não voltou.
A correia de calibragem continuava a deslizar ruidosamente nos
cilindros e os martelos martelavam, na seção de acondicionamento. Na
auto-estrada passavam grandes caminhões de transportes. Jim pegou
no balde cheio e levou-o para a pilha de caixotes. O conferente fez um
sinal no livro.
— Ainda acaba por nos dever dinheiro, se não acelera. — observou.
— Trate lá do seu maldito livro e não se meta no resto. — replicou
Jim, corando e deixando pender os ombros.
— Gajo duro, hem?
Jim dominou-se e sorriu, embaraçado.
— Estou cansado. — confessou, em tom de quem se desculpa — É
um gênero de trabalho novo para mim.
— Eu compreendo. — disse o conferente louro, a sorrir — Uma
pessoa torna-se muito sensível, quando está cansada. Porque não sobe
para uma árvore e fuma um cigarro?
— Creio que é isso mesmo que vou fazer.
Jim voltou para a árvore, suspendeu o balde de um ramo e
recomeçou a apanhar maçãs. “Até eu, como um cão raivoso!”, disse em
voz alta. Não devo fazer isso. Foi o que o meu velho fez. Não trabalhou
mais depressa, mas reduziu os movimentos até adquirirem uma
perfeição de máquina. Pouco a pouco, o sol abandonou por completo o
solo e permaneceu apenas nas copas das árvores. Muito ao longe, na
cidade, soou um apito. Mas Jim continuou a trabalhar, com movimentos
seguros e certos. Começava a escurecer quando o barulho da seção de
acondicionamento cessou, finalmente. e os conferentes gritaram:
— Desçam, homens! São horas de largar.
Jim desceu a escada, despejou o balde e empilhou-o junto dos
outros. O conferente marcou os baldes e depois fez a soma da apanha.
Os homens demoraram-se uns momentos a enrolar cigarros e a
conversar em voz baixa, ao lusco-fusco. Afastaram-se devagar, por uma
alameda abaixo, na direção de uma estrada onde ficavam os dormitórios
do pomar.
Jim viu o velho à sua frente e estugou o passo, para o alcançar. As
pernas magras moviam-se rigidamente.
— És outra vez tu? — comentou, quando Jim o apanhou.
— Apeteceu-me ir consigo.
— Bem, quem te impede? — era evidente que estava satisfeito.
— Tem aqui alguma família?
— Família? Não.
— Então se não tem ninguém porque não entra para uma instituição
de caridade qualquer e não obriga o condado a tomar conta de si?
O velho respondeu-lhe num tom que o desdém gelava:
— Escuta, fedelho, se nunca estiveste nas florestas, isso não significa
nada para ti, mas sou um derrubador de copas. Pouquíssimos
derrubadores de copas chegam à minha idade. Conheci fedelhos como
tu que quase morreram com ataques de coração só de me verem
trabalhar. E agora aqui me tens a subir miseráveis macieiras. Eu aceitar
caridade! Ao longo da minha vida fiz trabalho que exigia coragem.
Estive empoleirado a 27 metros de altura e o topo partiu-se e rasgou-me
o cinto de segurança. Trabalhei com tipos que ficaram feitos em polpa
debaixo de um ramo. Eu, aceitar caridade! Diriam: “Dan, toma a tua
sopa”, e eu molharia o pão na sopa e chuparia. Jesus, preferia atirar-me
de uma macieira abaixo e partir o pescoço a aceitar! Sou um derrubador
de copas.
Continuaram a caminhar, entre as árvores. Jim tirou o chapéu e levou-
o na mão.
— Não ganhou nada com isso. — observou — Deram-lhe um pontapé
no cu e correram consigo, quando ficou velho.
A grande manápula de Dan fechou-se no braço de Jim. logo acima do
cotovelo, e apertou até lhe fazer doer.
— Tive proveitos enquanto trabalhei. — afirmou — Amarinhava por
uma árvore acima e sabia que o patrão, o dono das árvores e o
presidente da companhia não tinham coragem para fazer o que eu fazia.
Era eu. Lá de cima, olhava de alto para tudo, e tudo me parecia
pequeno. Os homens eram pequenos, mas eu estava lá em cima, eu era
do meu tamanho. Tirei proveitos, olá se tirei!
— Mas quem lucrou com o seu trabalho foram eles. Foram eles que
enriqueceram, e quando você já não podia trepar correram consigo.
— É verdade, foi isso que fizeram. Creio que estou a ficar muito velho,
filho. Não me importo que o tenham feito, não me importo mesmo nada...
estou-me nas tintas.
Em frente via-se já o barracão baixo e caiado que os proprietários
tinham destinado aos apanhadores: uma construção baixa com quase
cinquenta metros de comprimento, e uma porta e uma janelinha
quadrada de três em três metros. Através de algumas das portas abertas
viam-se candeeiros e velas acesas. Estavam diversos homens sentados
à porta, a olhar para o anoitecer. Defronte da comprida construção havia
uma torneira à volta da qual se reunira um magote de homens e
mulheres. À medida que chegava a sua vez, os homens punham as
mãos em concha sob o jorro, atiravam água para a cara e para o cabelo
e esfregavam as mãos uma na outra, uns momentos. As mulheres
enchiam latas e panelas. Ranchadas de crianças entravam e saíam do
barracão como ratos desassossegados. Do grupo erguia-se um som de
conversas fatigadas, em voz baixa. Homens e mulheres regressavam,
eles do pomar e elas da seção de calibragem e acondicionamento. O
armazém do pomar, brilhantemente iluminado, fora construído de
maneira a formar um ângulo breve, na porta norte do barracão. Ali se
vendia a crédito, contra a apresentação de folhas de trabalho, comida e
roupas de trabalho. Uma bicha de homens e mulheres aguardava a sua
vez, enquanto outra saía com alimentos enlatados e pães.
Jim e o velho Dan dirigiram-se para o barracão.
— Cá está o canil. — observou Jim — Penso que não seria tão mau
que tivéssemos uma mulher que cozinhasse para nós.
— Creio que vou ao armazém comprar uma lata de feijões. Estes
grandes idiotas pagam dezessete cêntimos por meio litro de feijões
enlatados, quando pelo mesmo dinheiro poderiam comprar dois litros de
feijão seco, que depois de cozinhados dariam quase quatro litros.
— Porque não faz isso, Dan?
— Não tenho tempo. Chego cansado e quero comer.
— Então e os outros têm tempo? As mulheres trabalham todo o dia e
os homens também, e o proprietário leva mais três cêntimos por uma
lata de feijões porque os trabalhadores estão tão cansados que não têm
coragem de ir comprar mercearias à cidade.
— Tu móis e móis, hem? — perguntou Dan, virando para Jim a barba
rala — Exatamente como um cachorrinho com um osso de tutano.
Mordes e tornas a morder, mas não deixas marcas... e talvez não tardes
a partir um dente.
— Se um número suficiente de tipos mordesse também, acabariam
por abrir o osso.
— Talvez... mas há setenta e um anos que vivo com cães e homens e
tenho-os visto principalmente tentar roubar o osso uns aos outros.
Nunca vi dois cães ajudarem-se um ao outro para partir um osso, mas
tenho-os visto morderem-se todos para o roubarem ao companheiro.
— Fala de uma maneira que um tipo sente que não vale a pena...
O velho Dan mostrou os seus quatro grandes dentes de roedor e
desculpou-se:
— Tenho setenta e um anos... Continua às voltas com o teu osso e
não te importes comigo. Talvez os cães e os homens já não sejam o que
foram, noutro tempo.
Ao aproximarem-se do terreno entorroado um vulto saiu do meio da
multidão que cercava a fonte e dirigiu-se ao encontro deles.
— Aquele é o meu companheiro. — informou Jim — É o Mac, um tipo
formidável.
Mas o velho Dan respondeu-lhe grosseiramente:
— Não me apetece falar com ninguém. Creio que nem sequer
aquecerei os feijões.
Mac alcançou-os.
— Olá, Jim! Como te sentes?
— Muito bem. Este é o Dan, Mac. Esteve nas florestas do Norte
quando os Wobblies andaram por lá a trabalhar.
— Prazer em conhecê-lo. — disse Mac, em tom diferente — Ouvi falar
desse tempo. Houve uma certa sabotagem...
O tom agradou a Dan, que disse:
— Não fui nenhum Wobblie. Sou derrubador de copas. Os Wobblies
eram um bando de velhacos filhos da puta, mas fizeram o trabalho.
Deitavam fogo a uma serração quase tão depressa como olhavam para
elas!
— Bem, se eles fizeram o trabalho, creio que não se lhes podia exigir
mais. — comentou Mac, sem abandonar o tom de deferência.
— Eram um bando de duros, um homem não tinha prazer nenhum em
falar com eles. Odiavam tudo. Bem, mas vou andando, para comer os
meus feijões. — virou-se para a direita e afastou-se.
Estava quase escuro. Jim olhou para o céu e viu um V a voar através
dele.
— Que é aquilo, Mac?
— Patos bravos. Apareceram muito cedo, este ano. Nunca tinhas
visto patos?
— Creio que não. Mas parece-me que li qualquer coisa a respeito
deles.
— Olha, Jim, não te importas se jantarmos apenas sardinhas e pão,
pois não? Esta noite temos umas coisas que fazer e não me convém
perder tempo a cozinhar.
Jim, que ia a andar pachorrentamente, fatigado por aquele novo tipo
de trabalho, sentiu os músculos retesarem-se-lhe e levantou a cabeça.
— De que se trata, Mac?
— Bem, hoje trabalhei ao lado de London e àquele tipo não escapa
praticamente nada. Foi ele que avançou cerca de dois terços do
caminho ao meu encontro... Agora diz estar convencido de poder
influenciar este grupo de apanhadores. Conhece um tipo que dirige a
modos outro grupo no maior pomar de todos: dois mil hectares de
maçãs. O London está tão danado com a baixa do salário que fará seja
o que for. O tal amigo dele, o da propriedade Hunter, chama-se Dakin,
Esta noite vamos falar com ele.
— Puseste a coisa realmente em andamento, hem?
— Assim parece.
Mac entrou por uma das portas às escuras e pouco depois saiu com
uma lata de sardinhas e um pão. Pôs o pão no degrau da entrada e
abriu a lata das sardinhas.
— Sondaste os homens, como te disse, Jim?
— Não tive muita oportunidade disso, mas falei um bocado com o
velho Dan.
Mac interrompeu o ato de abrir a lata.
— Para quê, homem? Que te interessou falar com ele?
— Bem, estivemos em cima da mesma árvore.
— Então porque não foste para outra? Escuta, Jim, há muitos dos
nossos que desperdiçam tempo. O Joy, por exemplo, seria capaz de
tentar converter uma ninhada de gatinhos. Não percas tempo com
velhos como esse, ele não presta. Se falares com velhos acabarás por
te converter tu à desesperança. Os tipos já perderam toda a genica. —
enrolou a tampa da lata até ao fim, com a chave, e colocou-a à sua
frente — Toma, põe sardinhas numa fatia de pão. O London já está a
jantar e não tardará a despachar-se. Vamos no Ford dele.
Jim tirou o canivete, colocou três sardinhas numa fatia de pão e
carregou um bocadinho nelas. Regou-as com um pouco de azeite da
lata e cobriu-as com outra fatia de pão.
— Como vai a rapariga? — perguntou.
— Que rapariga?
— A do bebê.
— Oh, vai bem. Mas pelo modo como London fala alguém diria que
sou o próprio Deus. Já lhe disse que não sou médico, mas ele continua
a tratar-me por “doutor”. Tem-me numa alta conta. Sabes, ela ficará uma
gatinha jeitosa com vestidos bonitos e um pouquinho de pintura. Faz
outro sanduíche.
Já escurecera por completo. Muitas das portas estavam fechadas e a
luz fraca do interior dos quartinhos projetava quadrados luminosos no
chão do exterior. Mac ia comendo a sua sanduíche.
— Nunca vi uma coleção de estafermos tão grande como a deste
grupo. A única decente do acampamento tem treze anos. Admito que
tem um pandeiro de dezoito anos, mas eu não estou tentado a cumprir
uma pena de cinquenta anos.
— Parece que tens dificuldade em manter a tua economia fora do
quarto de dormir...
— Haverá alguém que deseje mantê-la fora? — perguntou Mac, a rir
— Sempre que o sol me bate nas costas toda a tarde fico em brasa. Há
algum mal nisso?
As estrelas brilhantes, duras, começaram a aparecer. Não eram
muitas, mas distinguiam-se perfeitamente no frio céu noturno. Dos
quartos próximos vinha o rumor, que ora subia, ora descia, de muitas
vozes a conversar, no meio das quais se erguia de vez em quando uma
única voz clara. Jim virou-se na direção do som e perguntou:
— Que se passa ali?
— Jogo de dados. Começou cedo e eu não faço ideia do que lhes
serve de dinheiro. Provavelmente já estão a jogar o salário da próxima
semana... embora a maioria deles não tenha nada a receber depois de
pagar ao armazém. Há bocado vi um homem comprar dois grandes
boiões de mincemeat (iguaria feita de bacon, passas, corintos e casca
de frutas cristalizadas, geralmente utilizada para rechear tortas). É muito
capaz de devorar tudo esta noite e amanhã está doente. Adquirem uma
fome terrível de coisas boas. Já notaste que quando tens fome a tua
mente se fixa numa única coisa? No meu caso é sempre purê de batata
a escorrer manteiga derretida. Creio que este tipo de hoje andava a
pensar em mincemeat há meses.
Defronte da construção surgiu um indivíduo forte que a luz das
janelas iluminava à medida que ia passando por elas.
— Aí vem o London. — anunciou Mac.
Aproximou-se deles balançar os ombros e com a calva brilhando,
branca, em contraste com a orla de cabelo preto.
— Já acabei de comer. — informou — Vamos. O meu Ford está nas
traseiras.
Virou-se e retrocedeu na direção de onde viera. Mac e Jim seguiram-
no. Atrás do barracão viram um Ford modelo T sem tejadilho. O oleado
dos bancos estava gasto e rasgado de modo que se viam as molas e
dos buracos saíam bocados de crina. London sentou-se ao volante e
girou a chave.
— Dá à manivela, Jim. — disse Mac.
Jim apoiou todo o seu peso na manivela.
— Está a carregar no contato? Não quero ficar sem cabeça.
— Estou. Tire o regulador do ar. — respondeu London. A gasolina
entrou, com um silvo, e Jim deu à manivela. O motor afogou-se e ,a
manivela desandou velozmente.
— Quase me apanhou! Não largue o contato!
— Salta sempre um bocado. — informou
London — Não lhe dê mais ar.
Jim girou de novo a manivela e o motor roncou. As luzinhas fracas
acenderam-se. Jim saltou para o banco de trás, onde reinava uma
barafunda de câmaras-de-ar velhas, aros de pneus e sacos de
sarapilheira.
— Faz barulho, mas ainda anda. — gritou London enquanto saía em
marcha-atrás e depois seguia pela estrada de cascalho através do
pomar, até à estrada principal.
O carro roncava e chocalhava e o ar frio assobiava ao entrar pelo
para-brisa partido, o que levou Jim a acocorar-se atrás da proteção do
banco da frente. As luzes da cidade brilhavam no céu, à retaguarda
deles. De ambos os lados da estrada havia grandes madeiras escuras,
através das quais se coava por vezes a luz das casas. O Ford alcançou
e ultrapassou grandes caminhões de transporte, caminhões-cisterna e
caminhões de leite cor de prata, assinalados com luzinhas azuis. Um
cão pastor saiu a correr de uma pequena casa e London guinou
violentamente, para não o atropelar.
— Não durará muito. — gritou Mac.
— Detesto atropelar cães. — disse London — Gatos não me importo.
Matei três gatos no caminho de Radcliffe para cá.
O carro continuou a avançar, barulhento, a cerca de 50 quilômetros
por hora. De vez em quando, dois dos cilindros paravam, o que fazia o
motor “tossir” até os dois preguiçosos voltarem ao trabalho.
Ao fim de cerca de oito quilômetros, London afrouxou.
— A estrada deve ficar algures por aqui.
Uma fileira de caixas de correio prateadas indicou onde devia virar
para a estrada de terra solta, na qual se via um arco de madeira com as
palavras: “Hunter Bros Fruit Co. Maçãs Marca S.” O carro avançou
lentamente, aos solavancos. De súbito um homem saiu para o meio da
estrada e levantou a mão. London parou.
— Vocês trabalham aqui? — perguntou o homem.
— Não, não trabalhamos.
— Não precisamos de mais gente. Estamos cheios.
— Vimos apenas visitar uns amigos. — explicou London — Estamos
a trabalhar no Talbot.
— Não vêm vender álcool?
— Claro que não.
O homem fez incidir a luz da lanterna na parte de trás do carro e olhou
para a balbúrdia de ferro-velho e câmaras-de-ar velhas. A luz apagou-
se.
— Está bem, mas não se demorem muito.
London carregou no pedal, a resmungar:
— Filho da puta espertalhão! Não há tiras mais bisbilhoteiros do que
os particulares. Ratazana!
Virou brutalmente, numa curva, e parou atrás de um barracão muito semelhante àquele de
onde tinham vindo. uma construção comprida e baixa, dividida em pequenos quartos.
— Está aqui a trabalhar um grupo muito grande. — informou London
— Têm três dormitórios como este.
Apeou-se e bateu à primeira porta. Ouviu-se um resmungo, no interior,
e passos pesados. A porta entreabriuse e uma mulher gorda, de cabelo
espigado, espreitou pela fresta.
— Onde está instalado o Dakin? — perguntou-lhe London, brusco.
A mulher reagiu imediatamente ao tom autoritário da sua voz:
— É a terceira porta. Está lá ele, a mulher e dois miúdos.
London disse “obrigado” e afastou-se, deixando a mulher de boca
aberta, como se quisesse dizer mais alguma coisa. Ela voltou a espreitar
e observou os três homens, enquanto London batia à terceira porta. Só
se meteu para dentro quando a porta de Dakin se fechou, depois de eles
entrarem.
— Quem era? — perguntou um homem atrás dela.
— Não sei. Um grande calmeirão, a perguntar pelo Dakin.
Dakin era um homem de rosto magro, olhos velados e observadores e boca imóvel. Tinha
uma voz aguda e monótona.
— Meu velho filho da mãe! Entra. Não te via desde que partimos de
Radcliffe. — recuou para os deixar entrar.
— Estes são o “doutor” e o seu amigo, Dakin. -—apresentou London
— O “doutor” ajudou a Lisa, na outra noite. Talvez já tenhas ouvido
contar.
Dakin estendeu a Mac a mão comprida e branca.
— Claro que ouvi. Estavam lá dois tipos que trabalham aqui. Até
parece que a Lisa pariu um elefante, pois não falam doutra coisa. Esta é
a minha patroa, “doutor”. Pode também dar uma vista de olhos aos
miúdos; são fortes.
A mulher levantou-se. Era uma criatura simpática, de peito grande e cara cheia, com uma
sombra de rouge nas faces e uma ponte de ouro, num dente que brilhava à luz do candeeiro.
— Prazer em conhecê-los, rapazes. — disse, em voz abafada —
Querem uma chávena de café ou uma pinguita?
Os olhos de Dakin enterneceram-se um pouco, orgulhosos dela.
— Bem, apanhamos um bocado de frio, para vir até cá... — respondeu
Mac, a deitar o barro à parede. A ponte de ouro cintilou.
— Já calculava. Uma pinga calha bem. — apresentou uma garrafa de
uísque e um copo — Sirvam-se. Não poderão deitar mais do que pelas
bordas.
A garrafa e o copo andaram de mão em mão. Mrs. Dakin foi a última a beber, depois do
que rolhou a garrafa e a guardou num pequeno armário.
No aposento havia três cadeiras articuladas, de lona, e dois divãs também de lona para os
garotos. Encostada à parede via-se uma grande cama de campanha.
— Está muito bem instalado, Mr. Dakin. — observou Mac.
— Tenho uma camioneta que me permite fazer uns transportes, de
vez em quando, trazer as minhas coisas, quando é preciso. A patroa tem
umas ricas mãos, nos bons tempos ganha dinheiro a trabalhar de
empreitada, à peça.
Mrs Dakin sorriu do elogio.
De súbito, London abandonou o tom de conversa de caráter social e disse:
— Precisamos de ir falar para qualquer lado.
— Porque não falamos aqui?
— Queremos falar de um assunto particular.
Dakin voltou-se devagar para a mulher e a sua voz reassumiu o tom monótono:
— É melhor ires com os miúdos visitar Mrs. Schmidt, Alla.
O rosto da mulher denunciou a sua decepção. Os seus lábios esboçaram um trejeito de
amuo e ocultaram a ponte de ouro. Olhou, por momentos, interrogadoramente para o marido,
que por sua vez fitou nela os olhos frios. As compridas mãos brancas tremiam-lhe ao longo do
corpo. De súbito, Mrs. Dakin voltou a sorrir, com o mesmo sorriso aberto:
— Podem ficar aqui, rapazes, e falar à vontade, já devia ter ido visitar
Mrs. Schmidt há mais tempo. Henry, dá a mão ao teu irmão. — vestiu um
casaco curto de pele de coelho, e ajeitou o cabelo dourado — Divirtam-
se por cá.
Os homens ouviram-na afastar-se e bater a uma porta, mais adiante.
Dakin puxou as calças e sentou-se na grande cama, e depois apontou aos outros as
cadeiras de lona. Os seus olhos estavam velados e inexpressivos.
— Qual é a tua ideia, London?
O interpelado coçou a cara e perguntou por seu turno:
— Que pensas da baixa do salário, quando já cá estávamos?
Os lábios compridos de Dakin estremeceram.
— Que queres que pense? Não dou vivas.
London inclinou-se para a frente na cadeira, e indagou:
— Tens alguma ideia quanto ao que se deve fazer?
— Não. — os olhos velados iluminaram-se um pouco — E tu?
— Já pensaste que nos podíamos organizar e conseguir alguma
ação? — London olhou rapidamente e de soslaio para Mac.
Dakin, a quem o olhar não passou despercebido, inclinou a cabeça
na direção de Mac e Jim e perguntou:
— Radicais?
Mac riu explosivamente e exclamou:
— Seja quem for que deseje um salário que lhe dê para viver é
radical!
— Não tenho nada contra os radicais. — afirmou Dakin, depois de o
fitar alguns instantes — Mas meta bem isto na cabeça: não estou
disposto a ir parar à prisão seja por que grupo for. Se vocês pertencem a
qualquer coisa, não quero tomar conhecimento. Tenho mulher e filhos e
uma camioneta, não cumprirei nenhuma pena por o meu nome constar
do livro seja de quem for. Agora, London, diz-me qual é a tua ideia.
— As maçãs têm de ser apanhadas, Dakin. E se organizássemos os
homens?
Os olhos de Dakin não exprimiram nada, a não ser uma leve ameaça. Foi em voz sem
timbre que respondeu:
— Muito bem, organizas os apanhadores e eles ficam todos
inflamados por causa de um amontoado de tretas e votam uma greve.
Passadas cerca de doze horas chega um comboio de fura-greves E
depois?
London voltou a coçar a cara.
— Depois creio que organizamos piquetes.
— E eles recorrem a um decreto a proibir os ajuntamentos e mandam
para cá cem ajudantes de xerife com caçadeiras.
London olhou interrogadoramente para Mac, a pedir-lhe que respondesse por ele. Mac
refletiu um momento, antes de dizer:
— Pensamos apenas que gostaríamos de saber a sua opinião acerca
do assunto, Mr. Dakin. Suponha que três mil homens de uma fábrica de
aço entram em greve e fazem piquetes. Há uma cerca de arame à volta
da fábrica e o patrão manda eletrificar a cerca com uma voltagem alta e
coloca guardas no portão. Tudo isso é fácil. Mas quantos ajudantes de
xerife lhe parece que serão necessários para guardar um vale
inteirinho?
Os olhos de Dakin iluminaram-se um momento, mas voltaram a velar-se.
— Caçadeiras. — murmurou — Suponha que fazemos ver uma fona
aos fura-greves e as caçadeiras começam a disparar. Esta malta de
apanhadores sazonais não aguenta fogo. Se pensa o contrário,
desiluda-se. Assim que alguém disparar uma calibre dez, correm para o
mato como coelhos, E a apanha?
Os olhos de Jim pareciam saltar de um interlocutor para o outro. De
súbito, intrometeu-se:
— A maioria dos fura-greves desistirá, se lhes falarmos.
— E os restantes?
— Bem, um grupo de homens rápidos podia resolver isso. Eu também
ando nas árvores, a colher, e sei que os rapazes estão furiosos com a
descida no pagamento. E não se esqueça de que as maçãs têm de ser
apanhadas! Não se pode isolar um pomar como se isola uma fábrica de
aço.
Dakin levantou-se, foi ao armário e serviu-se de uma pequena
quantidade de uísque. Estendeu a garrafa aos outros, mas os três
homens abanaram a cabeça.
— Dizem que temos direito à greve neste país e depois aprovam leis
contra os piquetes. — murmurou Dakin — No fim de contas, resume-se
tudo a termos o direito de nos irmos embora. Não gosto de me envolver
em coisas deste gênero. Tenho uma camioneta.
— Para onde... — começou Jim, mas tinha a garganta seca e teve de
tossir, para continuar a falar: — Para onde vai depois de apanhadas as
maçãs, Mr. Dakin?
— Para o algodão.
— Bem os ranchos de lá ainda são maiores. Se aceitarmos uma baixa
aqui, os tipos do algodão farão um corte ainda maior. — Mac sorriu-lhe,
com um sorriso de encorajamento e elogio. — Sabe perfeitamente que
farão isso mesmo. — confirmou — Farão todas as vezes, irão cortando,
cortando, até os homens lutarem.Dakin repôs a garrafa em cima do
armário, devagarinho, voltou para a grande cama e sentou-se. Olhou
para as compridas e brancas mãos, que o uso de luvas conservava
macias, e depois para o chão, por entre as mãos.
— Não quero encrenca. A patroa os miúdos e eu temo-nos safado
bem até agora... mas com os diabos, vocês têm razão. Haverá uma
baixa no algodão, tão certo como dois e dois serem quatro! Porque não
deixam eles as coisas como estão?
— Parece-me que não temos outro remédio senão organizar-nos. —
observou Mac.
Dakin estremeceu, nervosamente.
— Sim. também me parece... embora não o deseje muito. Que querem
vocês que eu faça?
— Dakin, tu podes convencer este grupo e eu talvez possa convencer
o meu. — respondeu London.
Mac interveio:
— Não se pode convencer ninguém que não queira ser convencido.
Vocês dois têm de começar a falar, mais nada. Levem os homens a falar
também. Eles já estão furiosos, mas ainda não discutiram o assunto.
Temos de conseguir que se comece igualmente a falar em todos os
outros lugares. Eles que discutam amanhã e no dia seguinte. Depois
convocaremos uma reunião. A coisa alastrará depressa, com os tipos
furiosos como estão.
— Lembrei-me de uma coisa. — disse Dakin — Se entrarmos em
greve não poderemos acampar aqui e eles não nos deixarão acampar
nas estradas, quer do condado, quer do estado. Para onde iremos?
— Já tinha pensado nisso e até tenho uma ideia. — respondeu Mac
— Se houvesse uma boa propriedade privada, seria ótimo.
— Talvez, mas não se esqueça do que fizeram em Washington:
expulsaram-nos a pretexto de constituírem um perigo para a saúde
pública e depois queimaram as barracas e as tendas.
— Sei tudo isso, Mr. Dakin. Mas suponha que um médico tomava tudo
a seu cargo... Nesse caso, pouco ou nada poderiam fazer.
— Você é realmente médico? - perguntou Dakin desconfiado.
— Não, mas tenho um amigo que é e que provavelmente não se
importaria de aceitar o encargo. Tenho pensado no assunto, Mr. Dakin.
Li muito acerca de greves...
— Tenho a impressão de que, no capítulo de greves, fez muito mais
do que ler. — observou Dakin, com um sorriso gelado — Sabe
demasiado. Não quero que me diga nada a seu respeito, não quero
saber nada.
London voltou-se para Mac e perguntou-lhe:
— Pensa sinceramente que podemos vencer estes gajos, “doutor”?
— Escute, London, mesmo que percamos, faremos com certeza
barulho suficiente para eles desistirem de diminuir o salário do algodão.
Haverá pelo menos esse benefício, ainda que percamos.
Dakin acenou lentamente com a cabeça, a concordar. — Pois sim,
começarei a falar aos homens logo de manhã. Vocês têm razão quanto
aos rapazes estarem furiosos; estão danados, de fato, mas não sabem
que fazer.
— Nós lhe daremos uma ideia. — disse Mac — Tentem contactar com
o maior número possível de outros chefes de grupo, sim? Agora creio
que é melhor irmos andando. — levantou-se e estendeu a mão — Tive
prazer em conhecê-lo, Mr. Dakin.
Os lábios finos de Dakin entreabriram-se e deixaram ver os dentes postiços, brancos e
regulares.
— Sabe o que eu faria se tivesse dois mil hectares de maçãs?
Escondia-me atrás de uma moita e quando você passasse estoirava-lhe
a maldita cabeça! Evitaria uma data de encrenca. Mas não tenho nada a
não ser uma camioneta e algum material para acampamento...
— Boas noites, Mr. Dakin. — despediu-se Mac — Até à vista.
Jim e Mac saíram e ouviram London a conversar com Dakin:
—- Estes tipos são fixes. Podem ser vermelhos, mas são bons
rapazes.
London saiu e fechou a porta. Um pouco mais adiante abriu-se outra porta e Mrs. Dakin
saiu com os dois filhos e dirigiu-se para eles.
— Boas noites, rapazes. — despediu-se — Estava à coca, para ver
quando saíam.
O Ford regressou aos trancos e solavancos e London estacionou-o
nas traseiras do barracão. Mac e Jim despediram-se e foram para o seu
quartinho escuro. Jim deitou-se no chão, enrolado num bocado de
passadeira e numa manta, e Mac encostou-se à parede, a fumar.
Passado um bocado, apagou o cigarro.
— Estás acordado, Jim?
— Estou.
— Foi uma boa cunha, Jim. A conversa estava a começar a arrastar-
se quando tiveste aquela ideia do algodão. Foi uma cunha inteligente.
— Quero ajudar! Com a breca, Mac, esta história está a inflamar-me
todo! Nem quero dormir, quero continuar a ajudar!
— Mas é melhor dormires. Espera-nos muito trabalho noturno.
Capítulo 6
NA MANHÃ seguinte, o vento assobiava entre os renques de
macieiras, cujos ramos agitava, e as maçãs soltavam-se e caíam no
chão com baques surdos. O vento trazia geada e entre as geadas
adivinhava-se já a singular quietude do Outono. Os apanhadores
trabalhavam a correr, com os casacos bem abotoados. Quando os
caminhões de recolha possavam, levantavam uma nuvem de poeira,
que o vento levava consigo.
O conferente do posto de carga vestia um casaco de pele de carneiro
e quando não estava a conferir enfiava as mãos juntamente com o
livrinho e o lápis, nas algibeiras do peito e batia friorentamente os pés.
Jim levou o seu balde ao posto e perguntou-lhe:
— Está um friozinho, hem?
— Não tanto como estará se este vento não mudar. Gela os tomates
de um macaco de latão.
Um rapaz carrancudo chegou e despejou o balde. Tinha as
sobrancelhas escuras muito junto dos olhos, cabelo escuro e espetado,
testa baixa e olhos raiados de sangue.
— Cuidado, as maçãs assim ficam tocadas. Basta uma amolgadela
para apodrecerem.
— Ah, sim?!
— Sim, foi isso que eu disse. — o conferente riscou o sinal que fizera
— Esse balde não conta. Experimente outra vez.
Os olhos raiados de sangue fitaram-o com hostilidade.
— Anda mesmo a pedir e há de levar a sua conta.
O conferente corou, furioso.
— Se tenciona armar em esperto o melhor é pôr-se a andar, ir-se
embora.
A boca do rapaz cuspiu, venenosamente:
— Daremos a sua conta, há-de ser um dos primeiros. — olhou para
Jim, com ar cúmplice, e acrescentou: — Não é verdade, camarada?
— É melhor continuar a trabalhar. — respondeu-lhe Jim — Não
poderemos receber se não trabalharmos.
O rapaz apontou pela alameda abaixo e informou, antes de se
afastar:
— Estou na quarta árvore, amigo.
— Que raio se passa? — perguntou o conferente — Estão todos
melindrosos esta manhã.
— Talvez seja por causa do vento. Deve ser. O vento enerva as
pessoas.
O conferente fitou-o, pois o tom da sua voz fora sarcástico.
— Você também?
— Também.
— Anda alguma coisa no ar, Nolan?
— “Alguma coisa” o quê?
— Sabe muito bem o que quero dizer.
Jim bateu ao de leve com o balde na perna. Desviou-se, quando um
caminhão passou, e uma nuvem de poeira ocultou-o
momentaneamente.
— Talvez o livrinho preto o mantenha na ignorância. Devia entregar o
livrinho e depois ver se descobria o que se passa.
— É então isso... Estão a organizar-se para arranjar sarilho, não é?
Bem, o ar anda cheio disso.
— O ar anda cheio é de poeira.
— Já vi esse gênero de poeira noutras ocasiões, Nolan.
— Então já sabe como é.
Começou a afastar-se, mas o outro chamou-o:
— Um momento, Nolan. — Jim parou e virou-se — Você é bom tipo e
bom trabalhador. Que se passa?
— Não consigo ouvi-lo. Não sei de que está a falar.
— Porei o sinal preto no seu nome.
Jim deu dois passos na direção dele e gritou-lhe:
— Ponha o sinal preto e vá para o diabo. Eu não disse nada. Você
inventou tudo isso só porque um rapaz armou em esperto consigo.
O conferente olhou à sua volta, cuidadosamente.
— Estava a brincar. Escute, Nolan, eles precisam de um conferente
no extremo norte e eu pensei que você podia servir para o trabalho.
Poderia começar amanhã. A paga é melhor.
Os olhos de Jim toldaram-se momentaneamente de cólera, mas
depois ele sorriu e voltou a aproximar-se do conferente.
— Que quer? — perguntou, baixinho.
— Vou ser franco, Nolan. Está a passar-se qualquer coisa e o super
disse que tentasse descobrir o que é. Você informe-se e diga-me e eu
falarei a seu favor para o tal trabalho de conferente. São cinquenta
cêntimos por hora.
Jim pareceu refletir. — Não sei de nada. — disse devagar – Podia
tentar, se ganhasse alguma coisa com isso...
— Cinco dólares interessavam-lhe?
— Sem dúvida.
— Muito bem. Circule por aí. Eu assinalarei a entrada de baldes seus,
para que não perca nada hoje. Veja o que consegue descobrir para
mim.
— Como sei que não me pregará a partida e não roerá a corda?
Poderei descobrir alguma coisa e dizer-lhe, mas se os homens sabem,
esfolam-me.
— Não se preocupe com isso, Nolan. Quando o “super” encontra um
bom homem como você não o deita fora, aproveita-o. Talvez até consiga
aqui um emprego certo quando a apanha terminar, a tomar conta de uma
bomba ou qualquer coisa do gênero.
Jim voltou a refletir. — Não prometo nada mas estarei de ouvido alerta
e se descobrir alguma coisa digo-lhe.
— Excelente! Haverá cinco dólares para si e um emprego.
— Começarei por experimentar aquele tipo valentaço. Pareceu-me
que sabia qualquer coisa.
Meteu pela alameda abaixo, na direção da quarta árvore. Quando
chegou, vinha o rapaz a descer com um balde cheio.
— Vou despejá-las e volto já.
Jim subiu a escada e sentou-se num ramo. O vento permitia ouvir
claramente o murmúrio de uma correia de calibragem, na seção de
acondicionamento, e trazia consigo o cheiro da sidra nova dos lagares.
Muito ao longe, Jim ouvia o apitar e o resfolegar de uma locomotiva.
O rapaz carrancudo subiu a escada a correr como um macaco e
disse, furioso;
— Quando passarmos a fatos hei-de arranjar uma grande pedra e
tratar da saúde daquele sacana.
Jim utilizou o método de Mac: — Porque há-de fazer uma coisa
dessas a um tipo simpático como ele? E que quer dizer com isso de
“quando passarmos a fatos”?
O rapaz acocorou-se ao lado dele. — Não ouviu?
— Não ouvi o quê?
— Não é alcoviteiro?
— Claro que não.
— Vamos para a greve, aí tem! — exclamou o rapaz.
— Para a greve? Com empregos tão bons? Por que raio querem fazer
greve?
— Porque estamos a ser lixados, é por isso. Porque os dormitórios
estão cheios de bicharada, porque o armazém está a levar cinco por
cento a mais e porque eles baixaram o salário depois de cá chegarmos!
E se nós consentirmos, se os deixarmos levar a sua avante será ainda
pior no algodão. Seremos lá lixados também e você sabe muito bem que
é assim.
— Parece razoável. — admitiu Jim — Quem vai para a greve além de
você?
Os olhos raiados de sangue do rapaz semicerraram-se para o fitar. —
Está a armar em engraçadinho, não está?
— Não. Estou a tentar descobrir uma coisa que você não me diz.
— Não lhe posso dizer nada, temos de guardar segredo. Ficará a
saber o que se passa quando chegar a altura. Temos os homens todos
organizados, temos tudo praticamente pronto e vamos pintar a manta.
Esta noite haverá uma reunião para alguns de nós e depois
informaremos os restantes.
— Quem está por trás disso?
— Não digo. Poderia estragar tudo, se dissesse.
— Está bem, se pensa assim...
— Diria se pudesse, mas prometi que não diria. Sabe a seu tempo.
Vai conosco, não vai?
— Não sei. Não os acompanharei se não souber mais do que sei
agora.
— Carago, mataremos seja quem for que nos fure a greve! Isso
posso-lhe dizer desde já.
— Bem, não me agradaria ser morto... -— Jim pendurou o balde numa
pernada e começou a enchê-lo, devagar. — Há alguma possibilidade de
assistir a essa reunião?
— Absolutamente nenhuma. Só irão os tipos importantes.
— Você é um tipo importante?
— Estou no segredo.
— E quem são esses tipos importantes?
Os olhos avermelhados fitaram-no desconfiadamente. — Está-me cá
a parecer que faz muitas perguntas, mas eu não lhe direi nada. Acho-lhe
ar de espião...
O balde de Jim estava cheio e ele tirou-o da pernada. — Os rapazes
estão a discutir o assunto empoleirados nas árvores?
— Acha que sim? Onde esteve toda a manhã?
— A trabalhar. — respondeu Jim — A ganhar o meu pão de cada dia.
É um trabalho agradável.
— Não me provoque, a não ser que queira ir lá para baixo comigo! —
explodiu o rapaz.
Jim piscou-lhe o olho, como vira Mac fazer, e disse: — Não se exalte,
rapaz. Estarei com vocês quando a coisa começar.
O rapaz sorriu estupidamente. — Você apanha um tipo
desprevenido...
Jim levou o balde e despejou-o cuidadosamente num caixote. — Tem
horas?
— São onze e meia. — respondeu o conferente — Descobriu alguma
coisa?
— Não, homem. O rapaz estava apenas a falar por falar. Julga que é
um jornal. Misturar-me-ei um bocado com a malta, depois do almoço, e
verei.
— Saiba o que se passa o mais depressa possível. É capaz de guiar
um caminhão?
— Porque não?
— Talvez consigamos pô-lo num caminhão.
— Isso seria porreiro.
Jim afastou-se, pela alameda abaixo. Os homens falavam nas árvores
e nas escadas. Subiu a uma árvore carregada, onde já estavam dois
apanhadores. — Olá, rapaz. Junte-se à malta.
— Obrigado. — Jim começou a apanhar maçãs — Esta manhã fala-se
muito. — observou.
— Pois fala. Nós estávamos a fazer o mesmo. Toda a gente fala de
greve.
— Quando um número suficiente de tipos fala de greve, geralmente
acaba mesmo por haver greve.
O segundo homem, que estava empoleirado mais alto, meteu-se na
conversa: — Eu estava precisamente a dizer ao Jerry que não me
agrada a ideia. É verdade que não estamos a ganhar muito, mas se
formos para a greve não ganhamos nada.
— Neste momento, não, mas mais tarde ganharemos. — contrapôs
Jerry — Esta chatice da apanha de maçãs não dura muito, mas a
apanha do algodão dura mais. No meu ver, os tipos do algodão estão
atentos ao que se passa aqui. Se nos resignarmos como um rebanho de
reles carneiros, os gajos do algodão farão um corte ainda maior. No meu
ver é assim.
— Parece razoável. — concordou Jim, a sorrir.
— Bem a mim não me agrada. — teimou o outro homem — Não me
agradam encrenca, sempre que os posso evitar. Muitos homens ficarão
prejudicados. Ná, não vejo benefício nenhum. Ainda não vi nenhuma
greve levantar os salários durante muito tempo.
— Se os homens forem para a greve, furas? — perguntou-lhe Jerry.
— Não, não faria uma coisa dessas! Se os homens forem para a
greve, irei também. Furar não furo, mas a ideia não me agrada.
— Eles já têm alguma organização? — perguntou Jim.
— Que me conste, não. — respondeu Jerry — Ainda ninguém
convocou nenhuma reunião. Estamos à espera, mas se os rapazes
forem para a greve, também vou.
Soou um apito fanhoso na seção de acondicionamento.
— Meio-dia. — disse Jerry — Tenho umas buchas ali debaixo
daquela pilha de caixotes. Quer?
— Não, obrigado. — agradeceu Jim — Tenho de me ir encontrar com
o tipo com quem viajei.
Deixou o balde no posto do conferente e seguiu na direção da seção
de acondicionamento. Através das árvores distinguia um edifício alto,
caiado, com uma plataforma de carregamento a um lado. A correia de
calibragem estava silenciosa. Ao aproximar-se viu homens e mulheres
sentados na plataforma, de pernas penduradas a almoçar. A uma das
extremidades do edifício reunira-se um grupo de uns trinta homens, no
centro do qual alguém falava animadamente. Jim ouvia o subir e o
baixar da voz, mas não distinguia as palavras.
O vento abrandara e o calor do sol fazia-se sentir. Ao ver Jim
aproximar-se Mac saiu do grupo e foi ter com ele, com dois embrulhos.
— Aqui está o almoço, Jim: pão francês e fatias de presunto.
— Excelente. Estou esfomeado.
— Entre os nossos homens, são mais os que morrem de úlcera do
estômago do que das balas de um pelotão de fuzilamento. Como
correram as coisas pelas tuas bandas?
— Bichana-se, bichana-se à farta. Encontrei um miúdo que sabe tudo
quanto se passa. Esta noite haverá uma reunião dos tipos importantes.
Mac riu-se. — Ótimo! Perguntava a mim mesmo se os homens com
conhecimentos secretos já teriam começado a trabalhar. Podem ser-nos
muito úteis. Os homens dos teus lados estão a ficar entusiasmados?
— Estão pelo menos a falar muito. A propósito, Mac, o conferente
prometeu-me cinco dólares e um emprego permanente se eu descobrir o
que se passa. Prometi-lhe conservar os ouvidos atentos.
— Bom trabalho. Talvez consigas ganhar umas massas à margem.
— Que queres que lhe diga?
— Ora vejamos... Diz-lhe que é apenas conversa, barulho, mas se
dissipará sem dar nada. Diz-lhe que não há motivo para se preocupar.
Virou a cabeça, pois aproximara-se silenciosamente um homem
pesado, de fato-macaco sujo e com a cara quase preta de porcaria.
Chegou-se mais e olhou em redor, para se certificar de que não os
ouviam. — Venho mandado pelo comitê. — informou, baixinho — Como
vão as coisas?
Mac olhou-o, surpreendido, e perguntou: — De que coisas está você
a falar?
— Sabe a que me refiro. O comitê quer um relatório.
Mac olhou para Jim e sorriu. — O homem é maluco. Que comitê é
esse?
— Sabe a que me refiro... — baixou a voz e acrescentou: — .. .
camarada.
Mac deu um passo para ele, de rosto congestionado de cólera. —
Onde foi buscar essa história de “camarada”? Se é um desses
miseráveis radicais, não quero nada consigo. E ponha-se a andar, antes
que chame alguns dos rapazes.
A atitude do intruso modificou-se: — Tem cuidadinho, meu menino,
pois temos os olhos postos em ti. — recomendou, e afastou-se devagar.
Mac suspirou. — Estes gajos das maçãs pensam depressa, embora
não pensem muito bem!
— Era um detetive? — perguntou Jim.
— Com certeza. Um homem não conseguia ficar com a cara tão suja
sem dar uma ajudazinha à natureza. Mas a verdade é que nos toparam
depressa, hem? Senta-te e come qualquer coisa.
Sentaram-se no chão e fizeram grandes sanduíches de presunto.
— Lá se vai a tua possibilidade de um suborno. — comentou Mac,
que fitou Jim, muito sério, e citou: — “Tem cuidadinho, meu menino”, e
olha que o conselho é bom. Agora não nos podemos dar ao luxo de
desistir. Lembra-te de que uma quantidade destes tipos se venderam
facilmente por cinco dólares. Faz com que os outros falem, mas tu
conserva-te muito caladinho.
— Como nos terão topado?
— Não sei. Suponho que algum gajo da cidade nos indicou. Talvez
seja melhor arranjar ajuda aqui, no caso de tu ou eu termos de partir.
Esta coisa está a andar e precisa de orientação. É um plano muito bom.
— Achas que nos prenderão?
Mac comeu uma côdea de pão, antes de responder: — Primeiro
tentarão assustar-nos. Agora escuta: se em qualquer altura em que eu
não estiver presente alguém te disser que vais ser linchado, concorda
com tudo. Não consintas que te assustem, mas também não recorras
aos truques do Joy. Jesus, os gajos estão a andar depressa! Bem,
amanhã começaremos também nós a avançar. A noite passada mandei
pedir uns panfletos, que devem chegar amanhã de manhã, se o Dick
acelerou. E até à noite devem chegar notícias pelo correio.
— Que queres que eu faça? Tenho-me limitado a escutar e quero
fazer qualquer coisa. Mac sorriu-lhe. — Servir-me-ei de ti cada vez mais,
verás. Gastar-te-ei até ao osso. Pelas aparências, isto promete ser bom.
Aquela tua saída acerca do algodão foi porreira. Já ouvi meia dúzia de
tipos utilizá-la como se fosse ideia deles, esta manhã.
— Aonde vamos esta noite, Mac?
— Lembraste do Al, do tipo do restaurante? Ele disse que o pai tinha
um pequeno pomar e eu pensei que talvez não fosse má ideia irmos
visitar o velho.
— Era nisso que pensavas quando falaste em arranjar um lugar para
onde os tipos pudessem ir, quando entrassem em greve?
— Pelo menos vou tentar consegui-lo. A coisa chegou a um ponto
que rebentará de um momento para o outro. É como encher um balão.
Nunca se sabe quando estoirará, pois não há dois que estoirem do
mesmo modo.
— Contas com o plenário para amanhã à noite?
— Sim, é com isso que conto; mas nunca se sabe. Os tipos estão
cheios de vapor e qualquer coisa poderá fazê-los descarregar antes.
Nunca se sabe. Quero estar preparado. Se conseguir arranjar o lugar
para os homens, mandarei chamar o Dr. Burton. É um tipo esquisito, que
não pertence ao Partido, mas está sempre a trabalhar para nós.
Planejará a instalação e se encarregará da saúde, de modo que a Cruz
Vermelha não possa nos expulsar.
Jim estendeu-se no chão e meteu os braços debaixo da cabeça. —
Que discussão importante é aquela, ali ao pé da seção de
acondicionamento?
— Não sei. Suponho que os homens têm vontade de discutir, mais
nada. Nesta altura talvez já se trate de Darwin versus Antigo
Testamento... Prefeririam com certeza lutar por causa disso. Quando
chega ao ponto em que estão, lutam seja pelo que for. Tem muito
cuidado contigo, Jim. Pode dar a algum tipo para te arriar, só por se
sentir nervoso.
— Quem me dera que começasse de uma vez! Estou ansioso. Tenho
a impressão de que poderei ajudar mais quando a coisa começar.
— Aguenta, tem calma.
Descansaram, estendidos no chão, até o apito fanhoso anunciar a
uma hora. Quando se separaram, Mac recomendou: — Vem a correr,
quando largares. Temos muito terreno a percorrer esta noite. Talvez o Al
nos ofereça outro jantar.
Jim voltou ao posto de conferência, onde deixara o balde. As correias
de calibragem recomeçavam a trabalhar e os motores dos caminhões
roncavam, a arrancar. Por entre as árvores, os apanhadores
regressavam, carrancudos, ao trabalho. Encontravam-se diversos
homens parados no posto, quando Jim pegou no balde. O conferente
não lhe falou, nessa altura, mas quando ele levou o primeiro balde a
pergunta não se fez esperar:
— Descobriu alguma coisa, Nolan?
Jim inclinou-se para o caixote e despejou o balde à mão. — Creio que
acabará tudo por ficar em nada. A maioria dos tipos não me parecem
muito danados.
— Porque pensa isso?
— Sabe o que os enfureceu?
— Não. Julguei que tinha sido a baixa do pagamento.
— Não, homem. Um tipo do Hunter comprou no armazém de lá uma
lata de peixe estragado e adoeceu. Você sabe como os trabalhadores
são; ficaram chateados e o sentimento alastrou até aqui. Mas eu falei
com alguns, ao meio-dia e pareceu-me que lhes estava a passar.
— Tem a certeza de que foi isso?
— Claro que tenho. E os meus cinco dólares?
— Arranjar-lhos-ei amanhã.
— Bem, quero a pasta e quero que não se esqueça de que me
prometeu um emprego melhor.
— Tratarei disso e amanhã direi.
— Devia ter exigido o dinheiro primeiro, antes de lhe dizer. —
queixou-se Jim.
— Não se preocupe, receberá.
Jim voltou para o pomar. Quando começou a subir uma escada, uma
voz recomendou-lhe, de cima: — Cuidado com essa escada, que está
pouco firme. — Jim viu o velho Dan de pé, na árvore. — Oh, meu Deus,
é o rapazinho radical!
Jim subiu a escada com cuidado. Os degraus estavam soltos. —
Como vai isso, Dan? — perguntou, enquanto pendurava o balde.
— Oh, muito bem... embora eu não me sinta grande coisa. Os feijões
frios pesaram-me toda a noite no estômago como um ferro de engomar.
— Devia comer um jantar quente.
— Estava tão cansado que não tive coragem para acender o lume.
Estou a ficar velho. Esta manhã não me apetecia levantar. Estava frio.
— Porque não experimenta uma das instituições de caridade?
— Não sei... Os homens andam todos a falar em greve e vai haver
sarilho. Estou cansado, não quero encrenca agora. Que farei, se os
homens entrarem em greve?
— Ora essa, entre em greve com eles, conduza-os. — respondeu Jim,
a tentar animá-lo através do orgulho — Os homens respeitarão um velho
trabalhador como você. Podia chefiar os piquetes.
— Lá isso, creio que podia. — Dan limpou o nariz com a grande
manápula e sacudiu os dedos — Mas não quero. Esta tarde vai arrefecer
cedo. Queria uma sopinha quente para o jantar... mesmo a ferver, com
bocadinhos de carne e pão torrado quente para molhar. Adoro ovos
escalfados. Quando regressava da floresta à cidade, com dinheiro, às
vezes pedia meia dúzia de ovos escalfados em leite e punha-os em
torradas, a abeberar. Depois esmagava os ovos em cima da torrada e
comia-os. Algumas vezes comia até oito ovos! Ganhava dinheiro, na
floresta. Podia muito bem comprar duas dúzias de ovos escalfados, se
me apetecesse. Quem me dera tê-lo feito! Montes de manteiga e tudo
polvilhado de pimenta...
— Hoje não está tão valente como ontem, hem, avô? Ontem era
capaz de levar a palma a qualquer, a trabalhar.
A luz da recordação apagou-se dos olhos de Dan, que esticou a
barbicha rala para a frente. — Ainda sou capaz de levar a palma, a
trabalhar, a uma corja de miseráveis
fedelhos que passam o tempo a tagarelar.
Estendeu indignadamente os braços para as maçãs, a tatear por cima
da cabeça. Depois uma das grandes mãos ossudas agarrou-se a um
ramo.
— Está a exibir-se, avô. — disse-lhe Jim, a observá-lo, divertido.
— Achas? Nesse caso, vê se és capaz de me acompanhar.
— Para que havemos nós dois de trabalhar à compita, se no fim o
único a ganhar alguma coisa com isso é o dono do pomar?
O velho Dan foi deitando maçãs para o balde. — Vocês, fedelhos,
ainda têm alguma coisa que aprender. O trabalho tem muito mais que se
lhe diga do que julgam. Como uma manada de cavalos, só o que
querem é mais feno! Passam a vida a relinchar por mais feno, querem
todo o feno que há! Deixam um homem doente com tanto relincho. — o
seu balde estava demasiado cheio e quando ele o soltou do gancho
cinco ou seis maçãs rolaram, foram batendo de ramo em ramo e caíram
no chão, debaixo da árvore — Sai do meu caminho, fedelho! Vá, sai do
caminho, deixa-me chegar à escada.
— Está bem, avô, mas tenha calma. Não ganhará nada com a pressa.
Jím afastou-se do cimo da escada e subiu para um ramo. Pendurou o
balde e estendeu a mão para uma maçã. Atrás de si, ouviu um ruído de
madeira a partir-se e um baque surdo. Olhou e viu o velho caído de
costas, debaixo da árvore. Dan tinha os olhos abertos, como que
pasmados, e o rosto azulado sob a barbicha branca. Dois dos degraus
da escada tinham desaparecido.
— Que trambolhão! — gritou Jim — Maguou-se, avô?
O velho permaneceu imóvel, com os olhos a transbordar
perplexidade e interrogação. A boca estremeceu-lhe e ele lambeu os
beiços.
Jim desceu da árvore e ajoelhou-se ao lado dele. — Onde se
magoou?
— Não sei. — respondeu Dan, ofegante — Não me posso mexer.
Creio que espatifei a bacia. Não me dói nada, por enquanto.
Começaram a correr homens na sua direção. Jim via-os descer das
árvores a toda a volta, e correr para eles. O conferente deixou também o
seu monte de caixotes e acorreu. Os homens comprimiram-se em redor
do velho.
— Onde se feriu?
— Como aconteceu?
— Partiu a perna?
— Velho dessa maneira não devia andar empoleirado em árvores.
O anel de homens era empurrado para a frente pelos que
continuavam a chegar. Jim ouviu o conferente gritar: — Deixem-me
passar.
Os rostos mostravam-se estupidificados, carrancudos e calmos.
— Cheguem-se para trás, por favor! — gritou Jim — Não apertem.
Os homens mexeram os pés. Na fila de trás ouviu-se uma espécie de
pequeno grunhido e depois uma voz gritou: — Olhem para aquela
escada!
Todas as cabeças se levantaram, como que num só movimento, e
todos os olhos se fitaram no ponto onde os velhos degraus soltos se
tinham partido.
— É com aquilo que nos fazem trabalhar! — disse alguém.
— Reparem!
O velho Dan fechara os olhos. O seu rosto estava branco, imóvel e
com sinais de choque. Nas últimas filas os homens começaram a gritar:
— Olhem para a escada! É com aquilo que nos fazem trabalhar! — o
rugido dos homens e o da sua cólera aumentou. Os olhos brilhavam de
raiva. Numa questão de poucos momentos o seu vago desassossego e
a sua vaga ira tinham encontrado um ponto em que fixar-se, em que
encontrar-se. O conferente continuava a gritar: — Deixem-me passar!
De súbito, uma voz histericamente esganiçada gritou: — Desapareça
daqui, seu filho da puta! — seguiu-se uma sarrafusca.
— Cuidado, Joe! Tem calma, Joe! Não o deixem! Agarrem-lhe os pés!
Agora, homem,
pire-se e depressa.
Jim endireitou-se de novo e pediu: — Rapazes, afastem-se. Temos de
levar este pobre homem daqui.
Os homens pareceram despertar de um sono e o circulo interno
empurrou violentamente para trás.
— Arranjem duas varas. Podemos fazer uma maca com dois casacos.
Isso, enfiam-se as varas pelas mangas... Agora abotoam-se à frente.
Jim recomendou: — Cuidado com ele, agora. Creio que fraturou a
bacia. — olhou para o rosto branco e sereno de Dan e acrescentou: —
Parece-me que desmaiou. Vá com cuidado...
Ergueram Dan para a maca improvisada com casacos.
—Vocês dois levem-no. — continuou Jim — Abram caminho, andem.
Entretanto, tinham-se juntado ali pelo menos cem homens. Os que
transportavam a maca afastaram-se. Os que chegavam olhavam para a
escada partida. Repetiam-se incessantemente as palavras: “Vejam com
o que nos fazem trabalhar!”
Jim virou-se para um homem que olhava estupidamente para a árvore
e perguntou-lhe:
— Que aconteceu ao conferente?
— O quê? Ah, sim! O Joe Teague deu-lhe. Tentou estoirar-lhe os
miolos a pontapé, mas os rapazes agarraram-no. O Joe perdeu os
trambelhos.
— Foi uma grandíssima sorte não o ter matado. — comentou Jim.
O grupo de homens afastou-se atrás da maca, enquanto chegavam
outros a correr de todo o pomar. Quando se aproximavam da seção de
acondicionamento o barulho da correia de calibragem cessou. Homens
e mulheres saíram dos seus postos nas portas de carregamento. A
multidão cada vez maior tornara-se silenciosa. Os homens caminhavam
de corpo hirto, como num funeral.
Mac surdiu, a correr, da esquina da seção de acondicionamento, viu
Jim e dirigiu-se para ele: — Que foi? Sai do magote e chega aqui.
A multidão ominosa e calada continuou a acompanhar a maca. Dizia-
se em voz baixa aos que chegavam: “A escada. Uma escada velha.” O
grosso da turba passou à frente de Mac e Jim.
— Que aconteceu? Conta-me depressa. Temos de bater o ferro
enquanto ele está quente.
— Foi o velho Dan. Armou em valente, quis mostrar que era forte,
partiu dois degraus da escada e estatelou-se de costas. Pensa que
fraturou a bacia.
— Bem, aconteceu. De certo modo, esperava-o. Não é preciso muito,
quando os homens se sentem como estes se sentiam; qualquer pretexto
lhes serve. No fim de contas, o velho ainda serviu para alguma coisa.
— Serviu para alguma coisa?
— Claro. Pôs tudo em andamento. Agora podemos utilizá-lo.
Estugaram o passo, atrás da multidão. A poeira levantada por muitos
pés formava uma nuvem castanha, que alastrava lentamente. Vindo da
direção da cidade ouvia-se o ruído monótono de uma locomotiva de
manobra a compor um comboio. Nas franjas da multidão viam-se
algumas mulheres a correr de um lado para o outro, mas os homens
seguiam firme e silenciosamente atrás da maca, a caminho dos
dormitórios
— Mais depressa Jim. — gritou Mac — Temos de nos despachar.
— Aonde vamos?
— Primeiro temos de encontrar o London e de lhe dizer o que deve
fazer; depois temos de enviar um telegrama. Também quero ir falar
imediatamente com o velho do Al. Olha, o London está ali — Eh,
London! — Mac desatou a correr e Jim correu atrás dele. — Já estoirou,
London. — anunciou Mac, ofegante — Aquele velho, o Dan, caiu de
uma árvore. Agora está em ponto de rebuçado.
— Era isso que queríamos, não era? — perguntou London, enquanto
tirava o chapéu e coçava a tonsura.
— Pois sim, mas estes tipos darão em malucos se não tomarmos
conta das coisas. Olhe, ali vai o seu compincha comprido e magrinho.
Chame-o.
London levou as mãos à boca e gritou:
— Sam!
Jim reconheceu o homem da cara magra que vira sentado junto da
fogueira, no acampamento.
— Escutem, London e Sam. — pediu Mac — Vou-lhes dizer uma
quantidade de coisas depressa, pois tenho de me despachar. Estes
tipos encontram-se num tal estado que são capazes de estoirar de um
momento para o outro. Você, Sam, vá ter com eles e diga que devem
fazer um plenário. Depois indicam aqui o London para presidente. Eles
o nomearão, com certeza. Farão praticamente tudo. Quanto a você,
Sam, é só isso que tem a fazer. — Mac apanhou um punhado de terra e
esfregou entre as mãos, enquanto os seus pés inquietos davam
pontapés no chão — Agora você, London: assim que for presidente diga
que precisamos de ordem. Apresente-lhes uma lista, de uns dez tipos e
diga que votem neles, para formarem um comitê a fim de decidir o que
há a fazer. Percebeu?
— Claro que percebi.
— Agora vou-lhe dizer como deve proceder. Quando quiser que
votem a favor de qualquer coisa, diga: “Querem que isto se faça?”, e eles
votarão a favor. E se quiser que votem contra, pergunte-lhes: “Não
querem que isto se faça!, pois não?”, e eles votarão contra. Ponha tudo,
tudo, à votação e faça-os votar, compreende? Eles estão maduros para
isso.
Olharam na direção da multidão e do dormitório. Os homens
continuavam silenciosos, não se detinham muito tempo num lugar e
moviam os braços. Tinham o rosto tão descontraído como se estivessem
a dormir.
— Aonde vão vocês agora? — perguntou London.
— Vamos tratar de arranjar o lugar para a malta se instalar quando a
coisa estoirar: a pequena quinta. Outra coisa, escolha uma dúzia desses
tipos mais inflamados e mande-os aos outros ranchos, falar. Escolha os
que falam mais. Está pronto?
— Estou pronto.
— Deixa-nos usar o seu Ford? Temos um bocado de terreno a
percorrer.
— Claro que deixo, se conseguirem fazê-lo andar. Tem os seus
truques.
Mac virou-se para Sam e disse-lhe: — Vá para ali, empoleire-se em
cima de qualquer coisa e grite: “Rapazes, temos de fazer um plenário!” E
depois acrescente: “Proponho o London para presidente.” Vá, Sam, vá.
Anda, Jim.
Sam partiu a trote na direção dos dormitórios e London seguiu-o, mais
devagar. Mac e Jim contornaram o barracão e dirigiram-se para o velho
Ford.
— Entra Jim, serás tu a conduzir a chocolateira. — ouviu-se um
alarido de vozes, vindo do outro lado do dormitório. Jim girou a chave e
retardou o contato. Os tubos zumbiram como pequenas cascavéis. Mac
deu à manivela, tirou o regulador do ar e deu de novo à manivela. Ouviu-
se um segundo rugido da multidão. Mac ajudou com o ombro, o motor
pegou e o seu barulho abafou os gritos dos homens. Mac saltou para o
automóvel, também a gritar: — Bem, creio que o London é o nosso novo
presidente. Vamos.
Jim fez marcha-atrás e dirigiu-se para a auto-estrada, que estava
deserta. As árvores verdes, sobrecarregadas, projetavam a sua sombra
obliquamente, sob o sol que declinava. O carro ia andando, com os
pistões a bater nos cilindros.
— Primeiro para o telégrafo e depois para o posto dos Correios. —
gritou Mac.
Entraram na cidade e Jim meteu pela rua principal e estacionou
defronte de um posto da Western Union.
— Os Correios ficam apenas um quarteirão mais adiante, estás a ver?
Olha, Jim, enquanto eu mando o telegrama, vai lá perguntar se chegou
correspondência para William Dowdy.
Jim voltou passados poucos momentos com três cartas. Mac já estava
sentado no automóvel. Abriu as cartas e leu-as. — Raios partam! Esta é
do Dick a dizer que o Joy fugiu. Não sabem onde está. Iam levá-lo para
ser ouvido e ele agrediu um tira e pirou-se. Telegrafei a pedir mais ajuda
e que mandassem o Dr. Burton, para se encarregar da sanidade.
Espera, vou dar à manivela. Vamos ao restaurante do Al.
Quando Jim parou defronte do restaurante, viu Al através das janelas,
a olhar para o passeio por cima do balcão deserto. Al reconheceu-os e
levantou o braço gordo, numa saudação.
— Olá, Al! — cumprimentou Mac, depois de abrir a porta de correr —
Como vai o negócio?
Os olhos de Al brilhavam de interesse. — Vai muito bem. A noite
passada esteve aí um grupo enorme de tipos dos pomares.
— Tenho-lhes andado a dizer que você serve um bife excelente.
— Muito obrigado. Querem comer alguma coisa?
— Com certeza. — respondeu Mac — E até podíamos pagar. Imagine,
nós a pagarmos!
— Oh, isto será a vossa parte, uma espécie de comissão por terem
aconselhado os homens a vir cá! — Al abriu o frigorífico, tirou dois
hamburgueses, pô-los na chapa do fogão e em seguida envolveu-os em
cebola picada. — Como vão as vossas coisas?
Mac inclinou-se, confidencialmente, por cima do balcão e disse-lhe:
— Sei que posso confiar em si, Al. Temo-lo nos nossos livros. Tem sido
porreiro para nós.
Al corou de prazer. — Bem, eu próprio andaria com vocês, se não
tivesse de tomar conta do negócio. Um homem vê o estado em que as
coisas estão, as injustiças... e se tem miolos não pode proceder de outro
modo.
— Claro. — apressou-se a concordar Mac — Um tipo com miolos não
precisa de ser ensinado, sabe ver as coisas.
Al virou-se, para ocultar o contentamento. Voltou os bifes, comprimiu-
os com a espátula, juntou a cebola acastanhada e pô-la em cima da
carne, sempre a comprimir com a espátula. Raspou a gordura para o
sulco que o fogão tinha ao lado. Quando conseguiu devolver ao rosto
uma expressão de conveniente gravidade, virou-se de novo.
— Claro que podem confiar em mim, como aliás devem saber. Que há
de novo? — encheu duas chávenas de café e fê-las deslizar pelo balcão
fora.
Mac bateu delicadamente no balcão com a lâmina da faca. — É
possível que apareçam por aí sabujos a perguntar por mim e pelo Jim.
— Sem duvida. Mas eu não sei nada a vosso respeito.
— Exatamente. Agora as novidades, Al. Este vale está prestes a
estoirar... até já estoirou onde trabalhamos. Nas outras propriedades é
possível que a coisa estoire esta noite.
— Sabem, pelo modo como os tipos estiveram aqui a falar, calculei
que não devia faltar muito. — disse Al, baixinho — Que querem que eu
faça?
— Não se esqueça da carne.
Al segurou dois pratos em leque, com uma das mãos, e encheu cada
um deles com um bife, purê de batata, cenouras e nabos. — Molho,
amigos?
— Bem salpicadinho. — respondeu Mac.
Al deitou molho por cima do monte de comida e colocou os pratos
diante deles.
— Agora fale. — pediu.
Mac encheu a boca e a voz saiu-lhe abafada e espaçada, ao ritmo da
mastigação:
— Disse que o seu velho tinha uma fazendinha.
— Tem. Querem esconder-se lá'?
— Não. — Mac apontou o garfo a Al e declarou: — Não se apanhará
uma maçã neste vale.
— Bem, mas...
— Espere e ouça. Há alguma terra de lavoura na propriedade do seu
pai?
— Há, uns dois hectares e meio. Tem tido lá feno, mas já o apanhou.
— Eis o que se passa: vamos ter mil ou dois mil homens sem terem
para onde ir. Os patrões os expulsarão dos pomares e não os deixarão
ficar na estrada. Se eles pudessem acampar nesses dois hectares e
meio estariam em segurança.
O rosto de Al tornou-se flácido, de medo e dúvida. — Não, amigo, não
creio que o meu velho consinta.
— Ficaria com as maçãs apanhadas, apanhadas depressa e grátis.
O preço subirá, com as outras nas árvores.
— E os tipos da cidade não o fariam ver uma fona depois?
— Quem?
— A Legião, esses gajos. Viriam na moita e o espancariam.
— Não creio. Ele tem o direito de acolher homens na sua
propriedade. Encarregarei um médico de planear o acampamento e
velar para que se mantenha limpo, e o seu velho terá as maçãs
apanhadas de graça.
— Não sei... — murmurou Al, a abanar a cabeça.
— Podemos resolver isso depressa. — declarou Mac — Vamos falar
com o seu velho.
— Tenho de manter o estabelecimento aberto, não posso sair daqui.
Jim reparou subitamente no prato que tinha à frente, e de que se
esquecera, e começou a comer. Os olhos semicerrados de Mac não se
desviavam do rosto de Al, enquanto ia comendo.
Al começou a enervar-se. — Julga que estou com medo... —
tartamudeou.
— Não julgo nada enquanto não tenho motivos para isso. Só não
compreendo que um tipo não possa fechar o estaminé durante uma
hora, se lhe apetecer.
— Bem. os homens que comem cedo começarão a chegar dentro de
uma hora...
— E você também poderá estar de volta dentro de uma hora.
— Não creio que o meu velho consinta. Tem de pensar nele, de ter
cuidado, não é verdade?
— Ainda ninguém lhe fez mal. Como sabe o que acontecerá? — a voz
de Mac começava a tornar-se gelada a exprimir uma vaga hostilidade.
Al pegou num esfregão e passou-o pelo balcão, em movimentos
circulares. Os seus olhos nervosos encontraram os de Mac, desviaram-
se e voltaram a encontrá-los. Por fim, aproximou-se. — Farei o que diz.
— decidiu-se — Deixarei um cartãozinho à porta. Não me parece que o
meu velho aceite, mas levo-os lá.
— É um gajo porreiro! — exclamou Mac, todo sorridente — Não o
esqueceremos. Sempre que vir um apanhador com um quarto de dólar,
hei-de mandá-lo cá comer um dos seus bifes.
— Forneço um bom jantar por esse preço. — disse Al, e tirou o barrete
alto de cozinheiro, desarregaçou as mangas da camisa e desligou o
gás.
— Estava bom. — elogiou Mac, ao acabar de comer.
Jim teve de engolir a comida à pressa, para não se atrasar.
— Tenho um carrinho no parque, aqui atrás. — informou Al — Se
forem atrás de mim eu não me meterei em encrenca e poderei continuar
a ser-lhes útil.
— Tem toda a razão, Al. — concordou Mac e acabou de beber o café
— Não ande com más companhias.
— Sabe muito bem o que quis dizer.
— Claro que sei. Vamos, Jim.
Al escreveu umas palavras num cartão e colocou-o no lado de dentro
da porta virado para fora. Enfiou os braços gordos no casaco e segurou
a porta enquanto Mac e Jim saíam.
Mac deu à manivela do Ford, instalou-se e Jim pôs o motor em ponto
morto até Al surdiu aos solavancos do parque de estacionamento, numa
velha baratinha Dodge. Depois seguiu-o pela rua abaixo, para leste,
atravessou a ponte de betão e desembocou no campo. O sol quase a
pôr-se estava vermelho e tépido, com tons outonais. Poeira cinzenta
cobria as incontáveis macieiras, ao longo da estrada.
Mac virou-se no banco e olhou para os renques, enquanto
passavam.
— Não vejo ninguém a trabalhar. — gritou a Jim — Já terá
começado? Há caixotes, mas ninguém a trabalhar.
À estrada pavimentada sucedeu-se outra de cascalho que fez o velho
Ford saltar e estremecer todo. Cerca de quilômetro e meio mais adiante
a nuvem de poeira levantada por Al virou e entrou num pátio e Jim fez o
mesmo e parou ao lado do Dodge. Erguia-se do solo uma cisterna
branca, encimada por um moinho de vento que cintilava ao sol. A bomba
trabalhava, com um som profundo e gutural. Era um lugar agradável. As
macieiras começavam perto de uma pequena casa branca. Patos
chafurdavam na lama provocada pela água que vinha por fora debaixo
da cisterna. Num canil com uma cerca de arame, ao lado de um grande
barracão, dois gordos pointers ingleses soltaram pequenos ladridos, ao
ver os homens. A casa propriamente dita estava cercada por uma sebe
baixa de estacas, atrás da qual cresciam grandes sardinheiras
encarnadas. Ornamentava o alpendre uma trepadeira da Virgínia, de
folhas vermelhas pendentes. Grandes frangos plymouth Rock andavam
por ali à solta a debicar regaladamente e inclinaram a cabeça para ver
os recém-chegados.
— Reparem nos cães. — disse Al, ao descer do automóvel — São os
melhores pointers do vale. O meu velho gosta mais deles do que de
mim.
— Onde ficam os dois hectares e meio Al? — perguntou Mac.
— Ali, atrás das árvores, na outra estrada.
— Ótimo. Vamos então falar com o seu velho. Disse que ele gosta
dos cães não disse?
— Se gosta. — exclamou Al e deu uma gargalhadinha — Tente fazer
mal a um dos bichos e verá. É capaz de o comer!
Jim olhou para a casa e para o barracão caiado de fresco e declarou:
— Isto é bonito. Dá a um homem vontade de viver num lugar assim.
— É preciso muito trabalho para manter tudo em condições. O meu
velho trabalha do alvorecer até à noite e nem mesmo assim consegue
fazer o trabalho todo.
— Onde está o seu velho? — perguntou Mac — Vamos falar-lhe.
— Olhem, aí vem ele, do pomar.
Mac olhou, um momento, e depois aproximou-se do canil. Os
desassossegados pointers atiraram-se contra a rede a gemer de amor.
Mac enfiou os dedos pelas malhas e esfregou-lhes o focinho.
— Gostas de cães, Mac? — perguntou Jim.
— Gosto de tudo. — replicou o outro, irritado.
O pai de Al continuou a aproximar-se. Era baixo e vivo como um
terrier, completamente diferente do filho. Dir-se-ia que tinha um
reservatório interno do qual a energia lhe corria para os braços, para as
pernas e para os dedos, de modo que todo dele estava continuamente
em atividade. Tinha cabelo branco áspero e as sobrancelhas e o bigode
hirsutos. Os seus olhos castanhos saltitavam de um lado para o outro,
irrequietos como abelhas, e os seus dedos como não podiam fazer mais
nada, davam estalinhos ritmados, enquanto ele caminhava. Quando
falou, as suas palavras, rápidas, nervosas e vivas, não destoaram do
resto: — Aconteceu alguma coisa ao teu negócio? — perguntou ao filho.
Al pôs-se na defensiva desajeitadamente: — Bem, compreende...
pensei...
— Quiseste ir-te embora da propriedade, ir para a cidade, abrir um
estabelecimento, quiseste ser um rapaz da cidade, flanar por lá. Não
gostavas de caiar, nunca gostaste. Que se passou com o negócio ? —
entretanto os seus olhos mediam cada um dos homens, observavam-
lhes os sapatos e a cara.
Mac continuava a olhar para o canil e a acariciar o focinho dos cães.
— Bom trouxe estes tipos... — explicou Al. — Eles queriam falar
consigo.
O velho tratou imediatamente de excluir o filho: —Muito bem, eles já
cá estão e tu podes voltar para o teu negócio.
Al olhou para o pai com a expressão magoada de um cão a que vão
dar banho e depois, relutante, meteu-se no automóvel e partiu
desconsolado.
— Há muito tempo que não via uns pointers assim — observou Mac.
O pai de Al aproximou-se, até ficar ao lado dele, e disse, num tom em
que havia um certo calor de camaradagem: — Homem, você nunca viu
pointers assim na sua vida!
—Caça muito com eles?
—Todas as épocas... e apanho pássaros. Há uma grande
quantidade de idiotas que usam setters, mas o setter é um cão de rede e
hoje já ninguém apanha pássaros à rede. O pointer é o cão apropriado
para caçar com espingarda.
— Gosto do aspecto daquele com o lombo cor de fígado.
— É bom sem dúvida. Mas não chega aos calcanhares daquela
querida cadelinha. Chama-se Mary e é mansa como Jesus, aqui no
canil, mas no campo salta como um demônio. Nunca vi nenhum cão
capaz de cobrir o terreno que ela cobre.
Mac fez mais uma festa no focinho dos cães.
— Vejo que têm buracos para entrarem no barracão. Deixa-os andar
por lá?
— Não, mas têm a cama encostada à parede. É mais quente.
— Se a cadela parir, gostava que me desse um cachorrinho.
— Ela teria de parir todos os dias do ano para fornecer as pessoas
que desejam cachorros seus. — resmungou o velho.
Mac virou-se, devagar, e fitou os olhos castanhos do homem. —
Chamo-me McLeod. — apresentou-se, de mão estendida.
— E eu Anderson. Que deseja?
— Falar-lhe claro.
Entretanto o sol pusera-se e os frangos tinham desaparecido do
pátio. O frio do anoitecer começou a descer entre as árvores.
— Pretende impingir alguma coisa, Mr. McLeod? Não quero comprar
nada.
— Desejamos impingir uma coisa como diz, mas não se trata de
nenhum novo produto.
O tom em que falou pareceu tranquilizar Anderson, que convidou: —
Porque não entram para a cozinha e tomam uma chávena de café?
— Não me importo. — respondeu Mac.
A cozinha era como tudo o mais: caiada, varrida. Os niquelados do
fogão brilhavam tanto que pareciam molhados.
— Vive aqui sozinho, Mr. Anderson?
— O meu Al vem cá dormir. É bom rapaz.
O velho tirou de um saco de papel um punhado de aparas,
cuidadosamente cortadas, que pôs no fogão e em cima das quais
colocou algumas lascas de pinho e, por fim, três bocados redondos de
madeira de macieira bem seca. Foi tudo feito tão bem e com tanta
prestreza que as chamas irromperam mal chegou um fósforo às aparas.
O fogão crepitou e irradiou calor. O velho pôs ao lume uma cafeteira e
mediu café moído, que deitou nela, juntamente com duas cascas de
ovos que tirou de um saco.
Mac e Jim sentaram-se à mesa, forrada de oleado amarelo novo.
Anderson acabou o que tinha a fazer no fogão, sentou-se muito direito e
apoiou as mãos na mesa, onde ficaram muito quietas, como bons cães
mesmo quando querem ir-se embora.
— Então de que se trata McLeod? — no rosto musculoso de Mac
estampara-se uma expressão de perplexidade.
— Mr. Anderson não tenho muitos trunfos. — confessou, hesitante —
Preciso de os jogar com cuidado e obter todo o seu valor. Mas, não sei
porquê, não me apetece fazê-lo. Creio que prefiro pôr as cartas todas na
mesa. Se ganharem, muito bem; se não ganharem, paciência, acaba-se
o jogo.
— Pois então ponha-as lá na mesa.
— Trata-se do seguinte: amanhã dois mil homens entram em greve e
a colheita das maçãs parará.
As mãos de Anderson pareceram farejar, retesar-se, e depois
imobilizaram-se de novo.
Mac prosseguiu: — O motivo da greve é a baixa do pagamento. Os
proprietários chamarão fura-greves e haverá sarilho. Mas há um grupo
de homens suficientes para fazerem piquetes no vale e dispostos a isso.
Está a perceber o quadro?
— Em parte, mas não sei aonde quer chegar.
— Então ouça o resto: muito em breve haverá um decreto municipal
a proibir ajuntamentos na estrada ou em qualquer propriedade publica.
Os proprietários expulsarão os grevistas das terras, alegando invasão
de propriedade.
— Bem, eu sou proprietário. Que quer de mim?
— O Al disse-nos que o senhor tinha dois hectares e meio de terra de
lavoura. — as mãos de Anderson continuavam imóveis e tensas, como
cães à espera de caça — Os seus dois hectares e meio são propriedade
privada, pode recolher homens neles.
— Está de fato a querer vender qualquer coisa, mas ainda não disse o
quê. — observou Anderson cautelosamente.
— Se as maçãs de Torgas Valley não forem para o mercado, o preço
subirá, não subirá?
— Claro que subirá.
— Bem, as suas maçãs serão apanhadas gratuitamente.
Anderson descontraiu-se um pouco na cadeira. A cafeteira estava
quase a ferver.
— Homens desses encheriam a terra de lixo.
— Não, não encheriam. Há um comitê para manter a ordem e nem
sequer será permitido o consumo de bebidas alcoólicas. Estamos
também à espera de um médico para se encarregar da sanidade.
Organizaremos um acampamento muito bem ordenado, por ruas.
Anderson soltou um suspiro rápido.
— Escute, rapaz, esta terra é minha, mas tenho de me entender com
os meus vizinhos. Nem sei o que me fariam se eu consentisse numa
coisa dessas.
— Disse que esta propriedade era sua. Mas está livre? Tem alguma
hipoteca?
— Não, não está livre.
— E quem são os seus vizinhos? — apressou-se Mac a perguntar —
Eu digo-lhe quem são: Hunter, Gillray e Martin. Quem tem a sua
hipoteca? A Torgas Finance Company. De quem é a Torgas Finance
Company? De Hunter, Gillray e Martin. Têm andado a apertar consigo?
Sabe muitíssimo bem que sim. Quanto tempo aguentará? Talvez um
ano. Depois a Torgas Finance fica-lhe com isto. Não é assim? Agora
suponha que consegue uma colheita sem despesas e que a vende num
mercado em alta. Conseguiria resgatar a hipoteca?
Os olhos de Anderson brilhavam e pareciam terem-se tornado mais
pequenos. Duas rosetas de cólera animavam-lhe as faces. As mãos
deslizaram-lhe sorrateiramente da mesa e esconderam-se. Por
momentos pareceu não respirar, sequer.
— Afinal não as pôs na mesa, rapaz, jogou-as. — disse por fim,
baixinho — Se conseguisse me livrar da hipoteca... se conseguisse
cravar uma faca em...
— Dar-lhe-emos dois regimentos de homens para cravar a sua faca.
— Sim, mas os meus vizinhos me destruirão.
— Não destruirão nada. Se lhe tocarem, ou na sua propriedade, não
deixaremos um barracão de pé em todo o vale.
O queixo magro e velho de Anderson empertigou-se. — Que ganham
vocês com tudo isso?
Mac sorriu. — Pude expor-lhe o assunto francamente, mas não sei se
acreditará ou não na resposta a essa pergunta. Eu e aqui o Jim levamos
um soco nas trombas, de vez em quando, e cumprimos frequentemente
sessenta dias de cadeia por vadiagem.
— É um desses vermelhos?
— Acertou. Somos vermelhos, como lhes chama.
— E que pretendem com a vossa greve?
— Não nos interprete mal, Mr. Anderson. Não fomos nós que
provocamos a greve e, sim, Gillray, Martin e Hunter. Foram eles que lhe
disseram o que deveria pagar aos homens, não foram?
— Bem, foi a Associação de Produtores. É a Torgas Finance
Company que a dirige.
— Como dizia, não fomos nós que provocamos a greve. No entanto,
uma vez desencadeada, queremos contribuir para que saia vencedora.
Queremos evitar que os homens percam os trabalhos, ensiná-los a
trabalhar juntos. Acompanhe-nos e nunca terá problemas laborais
enquanto viver.
— Não sei se posso confiar num vermelho. — observou Anderson.
— Nunca experimentou, mas já experimentou confiar na Torgas
Finance.
Anderson sorriu friamente. As suas mãos voltaram à mesa a
brincarem uma com a outra, como cachorrinhos. — Provavelmente será
minha ruína, vai me jogar na rua. Mas Deus sabe que estou condenado
a ir lá parar e não perderei nada se me divertir um pouco. Daria muito
para tramar o Chris Hunter.
O café ferveu, veio por fora e crepitou no fogão enquanto o seu cheiro
impregnava o ar. A luz elétrica brilhava nas sobrancelhas brancas e no
cabelo espetado de Anderson. O velho tirou a cafeteira do lume e limpou
cuidadosamente o fogão com um jornal.
— Vou deitar-lhes uma caneca de café, Mr. Vermelho.
Mac, porém, levantou-se, apressado: — Obrigado, mas temos de ir
andando. Faremos tudo para que não fique prejudicado com isto. Tenho
ainda que fazer um milhão de coisas, mas amanhã voltaremos a vê-lo.
Deixaram o velho de pé, com a cafeteira na mão. Mac atravessou o
pátio a trote e murmurou: — Jesus, foi melindroso! Estive sempre cheio
de medo de escorregar de um momento para o outro. O tipo é duro, mas
eu sabia que um caçador seria duro.
— Gosto dele. — confessou Jim.
— Não comeces a gostar das pessoas rapaz. Não podemos perder
tempo com isso.
— Onde obtiveste as informações a respeito dele e da Torgas
Finance?
— Chegaram pelo correio. Mas graças a Deus pelos cães! Salta para
o volante, Jim. Eu dou à manivela.
Partiram ruidosamente através da noite clara. Os pequenos faróis
piscavam, sonolentos. Jim olhou um momento para o céu e exclamou:
— Meu Deus, estou todo excitado. Olha para as estrelas, Mac. Milhões
delas!
— Olha mas é para a estrada. — resmungou o outro — Escuta Jim,
lembrei-me de uma coisa da conversa daquele tipo, hoje ao meio-dia,
significa que nos toparam. Doravante tem cuidado e não te afastes muito
do grupo. Se quiseres ir a algum lado, arranja maneira de levar uns doze
homens contigo.
— Queres dizer que tentarão caçar-nos?
— Não duvides disso! Calcularão que conseguirão evitar o barulho
se nos afastarem.
— E quando me darás alguma coisa que fazer, Mac? Por enquanto
tenho-me limitado a seguir-te como um cãozinho.
— Estás a aprender muito, rapaz. Quando houver alguma coisa em
que possas ser útil, descansa que não te pouparei. Daqui a um dia ou
dois talvez tenhas de conduzir um grupo de piquetes. Vira à esquerda,
Jim. Doravante não nos convém andar muito pela cidade.
Jim conduziu o carro por esburacadas estradas secundárias e só
passada uma hora chegou à propriedade e meteu pela estrada às
escuras entre as macieiras. Diminuiu a velocidade. Os faróis pareciam
saltar e tremer. De súbito, uma luz ofuscante rasgou a escuridão e
incidiu no rosto dos homens. Ao mesmo tempo, dois vultos de sobretudo
apareceram na estrada, em frente. Jim deteve o Ford.
Uma voz anunciou, atrás da luz: — São estes os tipos.
Um dos homens de sobretudo contornou o carro e encostou-se à
porta. O motor vibrava irregularmente. Por causa da luz da lanterna, o
homem encostado à porta era quase invisível. — Queremos os dois fora
de Torgas Valley amanhã ao nascer do dia, entendido? Fora!
O pé de Mac levantou-se e comprimiu a perna de Jim, ao mesmo
tempo que a sua voz, transformada numa lamuria suave, perguntava: —
Mas que se passa? Nunca fizemos mal nenhum.
— Deixa-te de tretas, amigo. — replicou o homem, irritado —
Sabemos quem vocês são e o que são. Queremo-os fora daqui.
— Se vocês são a autoridade, nós somos cidadãos. — insistiu Mac,
no mesmo tom lamuriento — Temos o direito de ser julgados. Pagamos
impostos, na nossa terra.
— Pois voltem para lá e paguem-nos. Nós não somos a autoridade,
somos um comitê de cidadãos. Se julgam que os malditos vermelhos
podem vir para aqui armar desordem, são doidos. Ou saem daqui para
fora nessa lata, ou numa caixa de madeira. Entendidos?
Jim sentiu o pé de Mac esgueirar-se sob a sua perna, até ao pedal da
embraiagem e bater-lhe com a biqueira do sapato, para o avisar de que
estava a compreender. O velho motor ia girando, chiando. Umas vezes
falhava um cilindro, outras vezes dois.
— Estão equivocados conosco. Somos apenas trabalhadores, não
queremos encrenca.
— Eu disse fora!
— Bem, deixe-nos ir buscar as nossas coisas.
— Ouça, vão dar a volta e desaparecer.
— São uns amarelos, uns cobardes! — gritou Mac — Têm vinte
homens escondidos na estrada. São uns amarelos!
— Quem é amarelo? Somos apenas três, mas se de manhã não
estiverem fora do vale seremos cinquenta.
— Pisa a fundo, Jim!
O motor rugiu e o Ford saltou para a frente como um cavalo. O
homem do lado rodopiou e desapareceu na escuridão e o da frente deu
um pulo, para não ser atropelado. A velha geringonça galgou pela
estrada fora aos saltos, com um barulho dos demônios.
Mac olhou por cima do ombro e gritou: — A lanterna desapareceu.
Jim conduziu o carro para a parte de trás do comprido barracão.
Saltaram para terra, e correram para a esquina do dormitório, que
contornaram. O espaço defronte da porta estava coalhado de grupos de
homens, que falavam em voz baixa. As mulheres estão sentadas nas
soleiras, a aconchegar as saias à volta dos joelhos. Dos grupos erguia-
se um ruído monótono e abafado de vozes. Estavam ali pelo menos
quinhentos homens, alguns de outros ranchos. O rapaz valentaço com
quem Jim falara aproximou-se, sorrateiro, e perguntou: — Não quis
acreditar em mim, hem? E agora, que lhe parece isto?
— Viu o London? — perguntou-lhe Mac.
— Claro que vi. Elegemo-lo presidente. Agora está no quarto com o
comitê. — e de novo para Jim: — Julgou que eu era chalado, não
julgou? Eu bem lhe disse que estava no segredo.
Mac e Jim abriram caminho através dos grupos de homens e do
murmúrio de vozes. A porta e a janela de London estavam fechadas e
um grupo em bicos de pés olhava através do vidro para o quarto
iluminado. Mac subiu os degraus e dois homens atravessaram-se-lhe no
caminho.
— Que diabo querem vocês?
— Queremos falar com o London.
— Sim? E ele quer falar com vocês?
— Porque não lhe perguntam?
— Como se chamam?
— Digam ao London que o “doutor” e o Jim lhe querem falar.
— Foi você o tipo que ajudou a pequena dele a ter um miúdo?
— Fui.
— Bem eu pergunto-lhe.
O homem abriu a porta e entrou. Um segundo depois voltou e
segurou a porta.
— Entrem já, rapazes, o London espera-os.
O quarto de London tinha sido apressadamente transformado em
escritório, com caixotes a servirem de assentos. London estava sentado
na cama, com a cabeça tonsurada inclinada para a frente. Um comitê de
sete homens fumava, uns sentados nos caixotes e outros de pé. Viraram
a cabeça quando Jim e Mac entraram, e London pareceu contente.
— Viva. “doutor”, viva, Jim! Ainda bem que vieram. Já ouviram as
notícias?
— Não ouvimos nada. — respondeu Mac, deixando-se cair num
caixote — Eu e o Jim ainda não paramos. Que aconteceu?
— Parece que corre tudo como convém. O grupo do Dakin parou.
Está aí um tipo chamado Burke, presidente da propriedade Gillray, e
convocou-se um plenário para amanhã.
— Ótimo, está tudo a andar bem. Mas não poderemos fazer grande
coisa enquanto não tivermos um comitê executivo e um presidente-
geral.
— Como correu esse assunto de que foram tratar? — perguntou
London — Não disse nada aos rapazes, pois podia não dar certo...
— Conseguimos. — Mac voltou-se para os sete homens e explicou:
— Um tipo empresta-nos dois hectares e meio para os homens
acamparem. É propriedade privada, por isso ninguém nos pode expulsar
de lá, a não ser as autoridades sanitárias. Mas vem aí um médico para
se encarregar disso. — os homens do comitê sorriram entusiasmados, e
Mac continuou: — Prometi a esse lavrador que lhe apanharíamos as
maçãs gratuitamente. Não é trabalho que leve muito tempo. Há muita
água e o lugar é bom e central.
Um dos homens levantou-se excitado, e perguntou:
— London, posso ir dizer aos rapazes, lá fora?
— Sem dúvida. Onde fica essa propriedade, "doutor"? Podemos fazer
lá o nosso plenário, amanhã.
— É o pomar do Anderson, a pouca distância da cidade.
Três membros do comitê correram para a porta, a fim de dar a notícia.
Primeiro houve silêncio e depois um clamor de vezes, de vozes que não
gritavam, mas falavam animadamente. E o clamor alastrou e aumentou
de volume, até encher o ar.
— Que aconteceu ao velho Dan? — perguntou Jim.
— Queriam levá-lo para um hospital, mas ele não se daria bem lá. —
respondeu London. — Arranjamos um médico para lhe consertar a
bacia. Está ali em baixo e duas boas mulheres cuidam do pobre velho...
que está, aliás, a passar um bom bocado. Agora ninguém o arrancaria
daqui. Faz a vida negra a toda a gente, incluindo às mulheres.
— Ainda não tiveram notícias dos proprietários? — perguntou Mac.
— Já. O superintendente esteve aí e perguntou se voltávamos para o
trabalho. Respondemos que não e ele disse-nos: “Então quero-os fora
daqui de manhã.” Diz que de manhã terá cá um comboio cheio de
trabalhadores.
— Não terá nada. — afirmou Mac — Não poderá tê-los cá antes de
depois de amanhã. É preciso tempo para escolher a dedo um grupo de
fura-greves. Depois de amanhã estaremos preparados para eles.
Escute, London, uns tipos que se intitularam um comitê de cidadãos
tentaram expulsar-nos. a mim e ao Jim, do vale. É melhor avisar os
rapazes para não saírem sozinhos. Digam-lhes que se quiserem ir a
algum lado levem um grupo de amigos como companhia.
London fez sinal a um dos membros do comitê e disse-lhe:
— Passa a palavra, Sam.
Sam saiu. Ouviu-se de novo o clamor de vozes, que alastrou como
uma onda sobre pedras redondas. Desta vez o tom era profundo e irado.
Mac enrolou lentamente um cigarro numa mortalha castanha.
— Estou cansado. — confessou — Temos muito que fazer, mas creio
que o podemos deixar para amanhã.
— Vá para a cama. — aconselhou London — Tem andado numa
correria como um doido.
— Pois tenho, é verdade. Parece tudo difícil quando nos sentimos
cansados. Eles têm armas e nós não as podemos ter. Eles têm dinheiro
e podem comprar os nossos rapazes. Cinco dólares parecem uma
quantidade de pasta a estes pobres diabos meio-esfomeados. Tenha
muito cuidado antes de dizer qualquer coisa, London. No fim de contas,
não poderemos censurar muito os rapazes se eles se venderem. Temos
de ser espertos, velhacos e rápidos. — a sua voz entristecera — Se não
vencermos, haverá que começar tudo de novo, e será uma pena.
Poderemos vencer tão facilmente se os homens se mantivessem unidos!
Fazíamos ver uma fona dos diabos aos proprietários. Sem armas nem
dinheiro. Temos de fazer as coisas com as nossas mãos e os nossos
dentes.
Endireitou a cabeça bruscamente. London sorria compreensivo e
embaraçado, como acontece aos homens quando um deles abre o
coração.
O rosto pesado de Mac corou de vergonha. — Estou cansado.
Aguentem vocês o barco, rapazes, enquanto eu e o Jim dormimos um
bocado. A propósito, London, no correio de amanhã deve chegar uma
encomenda para Alex Little. São panfletos. Devem chegar por volta das
oito. Mande um grupo de tipos buscá-los, sim? E trate de os distribuir.
Talvez ajudem. Vamos, Jim toca para a cama.
Deitaram-se no quarto às escuras. No exterior os homens esperavam
e o murmúrio das suas vozes traspassava as paredes e parecia
traspassar também o mundo. Longe, na cidade, uma locomotiva de
manobras andava ruidosamente de um lado para o outro, a compor um
comboio. Os caminhões do leite passaram, barulhentos, na estrada ao
lado do pomar. De súbito, estranhamente, docemente, alguém tocou
umas melodias numa gaita de beiços e o murmúrio de vozes emudeceu,
enquanto os homens escutavam. Tirando o som da gaita de beiços,
reinava silêncio no exterior, um silêncio tão grande que Jim ouviu um
galo cantar antes de adormecer.
Capítulo 7
O DIA rompia, frio e cinzento, quando um ruído de vozes, do lado de
fora da porta, acordou Jim.
— Estão aqui, provavelmente ainda a dormir.
A porta abriu e Mac sentou-se.
— Estás aí, Mac? — perguntou uma voz familiar.
— Dick! Com o diabo, chegaste tão cedo?
— Vim com o Dr. Burton.
— O doutor também veio?
— Veio, está lá fora, à porta.
Mac riscou um fósforo e acendeu uma vela colada a um pires partido.
— Olá, miúdo. — disse Dick a Jim — Como te vais safando?
— Bem. Para que vens todo apinocado, Dick? Calças vincadas,
camisa lavada...
— Alguém neste buraco tem de parecer respeitável. — respondeu o
outro, constrangido.
— O Dick tenciona invadir todos os salões cor-de-rosa de Torgas. —
comentou Mac — Escuta, Dick, tenho aqui mesmo uma lista de
simpatizantes. Precisamos de dinheiro, claro, mas precisamos
sobretudo de tendas, retalhos de lona e camas. Tendas, não te
esqueças! Aqui tens a lista. Tem muitos nomes, como vês. Estabelece
os contatos e nós mandaremos carros buscar o material. Muitos dos
rapazes têm carro.
— Está bem, Mac. Como vai a coisa?
— Como um morcego saído do Inferno. Temos de trabalhar depressa
para acompanhar o ritmo. — Mac atou os sapatos — Onde está o
doutor? Porque não o mandas entrar?
—Entre, doutor.
Entrou no quarto um homem novo e louro. A sua cara era quase
feminina, de tão delicada, e o seus grandes olhos tinham uma
expressão triste e meiga como os de um perdigueiro. Trazia na mão o
estojo de médico e uma pasta. — Como está, Mac? O Dick recebeu o
seu telegrama e foi-me buscar.
— Agrada-me muito que tenha chegado tão depressa, doutor.
Precisamos de si imediatamente. Este é o Jim Nolan.
Jim levantou-se, ao mesmo tempo que enfiava os pés nos sapatos. —
Prazer em conhecê-lo, doutor.
— É melhor começares, Dick. — aconselhou Mac — Podes apanhar
um pequeno-almoço no Al's Lunch Wagon, na Townsend. Não o craves
com mais nada além do café. Já apanhamos um rancho ao velho dele.
Pira-te, Dick, e lembra-te: tendas, lona, dinheiro... e tudo o mais que
conseguires.
— Está bem, Mac. Todos os nomes da lista são fixes?
— Não sei. Experimenta. Ou queres que os experimente por ti?
— Vai para o Diabo.
Dick saiu e fechou a porta. A vela e a luz do alvorecer lutavam entre
si, de modo que pareciam proporcionar menos claridade do que
qualquer delas poderia dar sozinha. O quarto estava frio.
— O seu telegrama não era muito explícito. — disse o Dr. Burton —
Em que consiste o trabalho?
— Um momento, doutor. Espreite pela janela e veja se estão fazendo
café lá fora.
— Bem, há uma fogueirinha acesa e tem uma panela, ou melhor, uma
lata, em cima.
— Espere só um pouquinho.
Mac saiu e pouco depois voltou com uma lata de café fumegante e
mal cheiroso.
— Jesus, isso parece quente! — exclamou Jim.
— E bera. — acrescentou Mac — Bem, doutor, há muito tempo que
não me aparecia uma coisa tão prometedora. Preciso de assentar umas
ideias, pois não quero que este barulho saia dos eixos. — bebeu um
gole de café — Sente-se naquele caixote. Temos dois hectares e meio
de propriedade privada e o doutor terá todo o auxílio de que precisar.
Pode projetar um acampamento, um acampamento perfeito, todo em
linhas retas? Mandar abrir latrinas, dispor do lixo, encarregar-se da
sanidade? E inventar uma maneira qualquer de se tomar banho? E
encher de tal maneira o ar de ácido fênico ou cloreto que cheire a ar
saudável? É capaz de fazer com que toda a região cheire a limpo?
— Sim, é possível. Dê-me ajuda suficiente e faço tudo isso. — os
olhos tristes tornaram-se ainda mais tristes — Arranje-me vinte litros de
fênico bruto e perfumarei quilômetros e quilômetros deste país.
— Ótimo. Vamos transferir os homens hoje. Examine-os o mais
depressa que puder e veja se nenhum deles tem nada contagioso, sim?
As autoridades sanitárias vão bisbilhotar muito e se nos apanharem em
falta vão nos expulsar. Deixam-nos viver como porcos aqui, nos
acampamentos, mas a partir do momento em que iniciamos uma greve
tornam-se tremendamente zelosos da saúde pública.
— Está bem, está bem.
— Parece que tenho corda, não é? — murmurou Mac, confuso — O
doutor sabe bem o que é necessário. Agora vamos falar com o London.
Os três homens que estavam sentados nos degraus do quarto de
London levantaram-se e desviaram-se para Mac entrar. London que
estava deitado a dormitar, soergueu-se num cotovelo: — Jesus, já é dia!
— E dia de Natal. — declarou Mac — Mr. London, apresento-lhe o Dr.
Burton, diretor da Saúde Pública. Precisamos de alguns homens.
Quantos quer, doutor?
— Bem, quantos vão ser instalados?
— Hum... entre mil e mil e quinhentos.
— Nesse caso, é melhor arranjarem-me quinze ou vinte homens.
— Eh, um de vocês! — chamou London e uma das sentinelas abriu a
porta e espreitou. — Vê se me encontras o Sam.
— Com certeza!
— Convocamos uma reunião para as dez da manhã. — informou
London — Um grande plenário. Mandei informar os outros
acampamentos acerca da propriedade do Anderson. Começarão a
dirigir-se para lá muito em breve.
A porta abriu e Sam entrou, com o rosto magro cheio de curiosidade.
— Sam, este é o Dr. Burton e precisa de ti para seu braço direito. Vai
lá fora e diz aos rapazes que queres voluntários para ajudar o doutor.
Arranja vinte homens bons.
— Está bem, London. Quando os quer?
— Imediatamente. — respondeu Burton — Vamos já para o local e
planejamos o acampamento. Posso levar oito ou nove na minha velha
carripana. Arranjem alguém com carro para levar os restantes.
Sam olhou de London para Burton e de novo para London, para obter
confirmação. London acenou com a cabeçorra. — Trata disso, Sam.
Tudo quanto o doutor disser.
Burton levantou-se para sair com ele. — Gostaria de ajudar a escolher
os homens. — declarou.
— Um momento. — pediu Mac — Está completamente limpo na
cidade, não está, doutor?
— “Limpo”? Que quer dizer?
— Enfim, não há nada que possa ser considerado prática incorreta e
de que o possam acusar?
— Que eu saiba, não. Claro que eles poderão fazer o que lhes
apetecer, se o desejarem muito.
— Sim, bem sei. Mas poderia levar-lhes um certo tempo. Adeus,
doutor, até logo.
Quando Burton e Sam saíram, Mac disse a London: — É bom tipo.
Parece larila, com a sua carinha bonita, mas é suficientemente duro e
tão eficaz como óleo de cróton. Tem alguma coisa que se coma,
London?
— Tenho um pão e um bocado de queijo.
— Então porque esperamos? O Jim e eu esquecemo-nos de comer a
noite passada.
— Eu acordei de noite e lembrei-me. — observou Jim.
London foi buscar um cartucho, a um canto, e tirou um pão e um naco
de queijo. Houve uma certa agitação, no exterior, e as vozes que tinham
estado emudecidas voltaram a ouvir-se. Abriam-se e fechavam-se
portas, homens pigarreavam, limpavam a garganta de mucosidades,
cuspiam e assoavam-se. O dia clareara e o sol brilhava, vermelho,
através das janelas. Mac, a falar com a boca cheia de queijo, perguntou
a London:
— Que pensa do Dakin como presidente-geral do comitê da greve e
chefe absoluto?
London pareceu um pouco decepcionado, mas respondeu: — O
Dakin é bom tipo, conheço-o há muito tempo.
Mac percebeu a decepção de London e decidiu extirpá-la de vez: —
Vou ser absolutamente franco consigo. Você dava um presidente
formidável se não se enfurecesse. Quanto ao Dakin, não me parece
homem para perder a cabeça e enfurecer-se. Se o chefe deste barulho
alguma vez perder a tramontana e se enfurecer, estamos lixados.
A tentativa foi coroada de êxito.
— Sim, eu dano-me como um raio. — concordou London — Dano-me
tanto que até fico doente. E você tem razão acerca do Dakin, ele é uma
espécie de jogador. Nunca abre completamente os olhos, nunca perde o
domínio da voz. Quanto piores as coisas se tornam, mais calmo ele fica.
— Nesse caso, no plenário, ponha todo o seu peso a favor do Dakin,
combinado?
— Combinado.
— Não sei nada acerca desse tipo, do Burke, mas creio que com os
nossos rapazes e os rapazes do Dakin poderemos amaciá-lo se ele se
tornar difícil. É melhor começarmos a transferir os homens em breve,
pois ainda é longe.
— Quando lhe parece que os furas começarão a chegar?
— Não antes de amanhã. Não creio que os patrões daqui já estejam
convencidos de que isto é a sério e estamos decididos. Não poderão ter
cá furas antes de amanhã.
— Que faremos quando eles desembarcarem?
— Bem, esperaramos o trem e entregamos as chaves da cidade.
Devo receber um telegrama antes de eles partirem. Alguns dos rapazes
irão ver em que param as modas às agências de emprego.
Levantou a cabeça e olhou para a porta. O ruído das vozes, no
exterior, mantivera-se natural e monótono, mas de repente emudecera.
Nisto, o silêncio foi rasgado por um assobio, a que se seguiram diversos
gritos. Travava-se uma discussão qualquer no exterior.
London foi à porta e abriu-a. As três sentinelas estavam lado a lado, à
frente da porta, e diante delas encontrava-se o superintendente do
pomar, de calças de fustão e botas altas, ladeado por dois homens com
o distintivo de ajudantes de xerife e armados de caçadeiras.
O superintendente olhou por cima da cabeça das sentinelas e disse:
— Quero falar consigo, London.
— Não há dúvida de que traz um ramo de oliveira. — comentou o
interpelado.
— Deixe-me entrar e talvez possamos decidir qualquer coisa.
London olhou para Mac, que acenou afirmativamente. O grande grupo
de homens estava silencioso, à escuta. O “super” avançou, com os
ajudantes de xerife à ilharga, e as sentinelas não se mexeram. Uma
delas aconselhou:
— Ele que deixe os seus sabujos cá fora, chefe.
— É boa ideia. — concordou London — Não são precisas caçadeiras
para se conversar.
O “super” olhou nervosamente para os homens silenciosos e
ameaçadores.
— Que garantias tenho de que fará jogo limpo? — perguntou.
— Praticamente as mesmas que eu tenho a seu respeito.
O super decidiu-se: — Fiquem cá fora e mantenham a ordem. — disse
aos seus homens.
Desta vez as sentinelas afastaram-se, deixaram-no entrar sozinho e
retomaram o seu lugar. Os ajudantes de xerife estavam nervosos,
apalpavam as armas e olhavam, acossados, à sua volta.
London fechou a porta e observou:
— Não sei porque não pôde dizer o que tinha a dizer lá fora, para os
rapazes o ouvirem.
O superintendente viu Mac e Jim e ordenou, furioso, a London: —
Ponha esses homens lá fora!
— Ná, ná!
— Escute, London, você não sabe o que está a fazer. Ofereço-lhes a
oportunidade de voltarem ao trabalho se expulsarem estes homens.
— Porquê? São bons tipos.
— São vermelhos e estão a meter em encrenca uma quantidade de
bons homens. Eles estão-se absolutamente nas tintas para vocês todos,
o que lhes interessa é poder desencadear barulho. Livre-se deles e
poderão voltar ao trabalho.
— Suponhamos que os expulsamos. Obtemos o dinheiro pelo qual
estamos em greve? Recebemos o que receberíamos antes da baixa do
preço?
— Não. Mas poderão regressar ao trabalho sem mais complicações.
Os proprietários fecharão os olhos a tudo quanto aconteceu.
— Nesse caso, para que terá servido a greve?
— Vou-lhe dizer o que estou disposto a propor. — disse o “super”,
baixando a voz. — Consiga que os homens voltem para o trabalho e terá
aqui um emprego certo, como ajudante de superintendente, com o
salário de cinco dólares por dia.
— E estes rapazes, estes amigos meus?
— Cinquenta dólares para cada um, se saírem do vale.
Jim olhou para o rosto pesado e soturno de London e Mac sorriu,
velhaco.
— Gosto de conhecer os dois lados de uma questão. — prosseguiu
London. — Suponhamos que estes meus amigos não aceitam. Que
acontecerá?
— Nesse caso, correremos com vocês daqui em meia hora e depois
poremos todo o maldito grupo na lista negra! Não poderão ir para lado
nenhum, não arranjarão trabalho seja onde for. Disporemos de
quinhentos ajudantes de xerife, se precisarmos deles. Aí tem o outro
lado da questão. Encontraremos maneira de você nunca mais arranjar
trabalho neste mundo e, além disso, meteremos os seus compinchas no
xadrez e faremos o necessário para que apanhem a pena máxima.
— Não poderá prendê-los se eles tiverem dinheiro.
O superintendente aproximou-se mais, a tentar tirar partido da sua
vantagem.
— Não seja parvo. London. Sabe tão bem como eu o que são as leis
da vadiagem. Sabe que vadiagem é uma coisa que o juiz não quer que
se faça,... e, se o ignora, o nome do juiz daqui é Hunter. Vamos, London,
mande os homens regressar ao trabalho. Isso significará, para si, um
emprego seguro, a cinco dólares por dia.
London olhou para Mac, a pedir-lhe mudamente instruções. Mac
deixou que o silêncio se prolongasse.
— Então, London? Aqui os seus amigos vermelhos não o podem
ajudar e você sabe isso muito bem.
Jim tremia de olhos muito abertos e serenos. Mac observou London e
viu o que o superintendente não via: os ombros a retesarem-se e a
alargarem, o grande pescoço musculoso a descer entre eles, os braços
a arquearem e a subirem lentamente, uma cintilação perigosa a iluminar
os olhos e um rubor a alastrar pelo pescoço e pelas faces.
De súbito, Mac gritou, vivamente: — London!
London estremeceu e descontraiu um pouco.
— Conheço uma saída, London. — disse Mac, calmamente —
Enquanto esse cavalheiro aqui está, façamos um plenário e informemos
os homens do que nos foi oferecido para traí-los. Poremos em votação
se você fica ou não com o emprego de cinco dólares por dia e depois...
bem, depois tentaremos evitar que os rapazes linchem o cavalheiro.
O superintendente ficou escarlate de cólera. — Foi a minha última
oferta. — declarou — Aceitem-na ou vão-se embora.
— Estávamos precisamente a preparar-nos para nos irmos embora.
— informou Mac.
— Terão de sair de Torgas Valley, ou correremos com vocês.
— Oh, não, não correrão! Temos parte de uma propriedade privada
onde poderemos ficar. O dono convidou-nos.
— Isso é mentira!
— Escute, mesmo assim, vamos ter uma certa dificuldade em
conseguir que saia daqui com os seus guarda-costas. — lembrou Mac
— Não complique mais as coisas.
— Mas onde pensam vocês que vão ficar?
Mac sentou-se num caixote e a sua voz tornou-se mais fria, ao
responder: — Vamos acampar na propriedade do Anderson. A primeira
coisa em que vocês vão pensar, meus filhos, é na maneira de nos
expulsarem de lá. Correremos o risco. A segunda coisa em que vocês,
suas doninhas, pensarão, será na maneira de se vingarem do Anderson.
Por isso, ouça bem o que lhe vou dizer: se algum dos seus rapazes
tocar naquela propriedade ou fizer mal ao Anderson, se lhe destruírem
uma só macieira, poremos mil homens em campo, cada um deles com
uma caixa de fósforos. Entendeu bem, mister? Considere isto uma
ameaça, se quiser: toquem no rancho do Anderson e por Cristo lhe juro
que lançaremos fogo a todas as malditas casas e celeiros de todos os
ranchos do vale! — havia lágrimas de fúria nos olhos de Mac e o seu
peito estremecia, como se ele estivesse prestes a chorar.
O “super” virou bruscamente a cabeça para London e perguntou-lhe:
— Está a ver com que gênero de homens se meteu, London? Sabe
quantos anos poderá apanhar por fogo posto?
— É melhor pirar-se, mister. — respondeu London, rouco, quase
sufocado — É melhor pirar-se, pois se não o fizer mato-o. Mac, faça-o ir-
se embora! — gritou. — Pelo amor de Deus faça-o ir-se embora!
O superintendente afastou-se, às arrecuas, do corpo pesado e
ofegante de London e estendeu a mão para trás, à procura da maçaneta
da porta. — Ameaça de assassínio. — disse, em voz pastosa, ao mesmo
tempo que a porta se abria.
— Para provar que existiu ameaça precisa de testemunhas. —
lembrou-lhe Mac.
Do lado de fora, os ajudantes de xerife tentaram ver para o interior do
quarto, por entre os corpos rígidos das sentinelas.
— São doidos, todos vocês. — disse o superintendente — Se eu
precisasse, arranjaria dúzias de testemunhas fosse para o que fosse.
Ouviram as minhas últimas palavras.
As sentinelas desviaram-se para o deixar passar e os ajudantes de
xerife ladearam-no. Nem um som saiu da boca dos homens agrupados,
que abriram espaço para eles passarem. Os homens silenciosos
seguiram-nos com o olhar, com um olhar intrigado e colérico. Os três
indivíduos dirigiram-se para um grande carro que os esperava a uma
extremidade do edifício, instalaram-se e partiram. Depois a multidão
virou a cabeça lentamente e voltou a olhar para a porta aberta do quarto
de London. Este estava encostado à ombreira, desfigurado e como que
sem forças.
Mac aproximou-se e passou o braço pelos ombros de London.
Estavam sessenta centímetros acima das cabeças dos homens
silenciosos. Mac gritou: — Escutem, rapazes. Não lhes quisemos dizer
antes de eles se irem embora, pois tínhamos receio de que vocês os
desancassem até à morte. Aquele canalha veio aqui tentar convencer o
London a traí-los: o London ficaria com um emprego certo e vocês
seriam lixados.
Começou a ouvir-se um rugido, um rugido de dentes cerrados. Mac
levantou a mão e acalmou-os: — Não há necessidade de se
enfurecerem. Basta que se lembrem disto mais tarde: eles tentaram
comprar o London e não conseguiram. Agora calem-se um momento e
prestem atenção. Precisamos de sair daqui. Temos um rancho onde
poderemos ficar. Terá de haver ordem, pois só dessa mameira
conseguiremos vencer. Todos nós teremos de acatar as ordens que
recebermos. Todos os homens que tiverem carros levam as mulheres e
as crianças e as coisas que não puderem ser transportadas de outra
maneira. Os restantes terão de ir a pé. Peço-lhes que sejam decentes.
Não partam nada... por enquanto. E mantenham-se juntos. Enquanto
preparam as suas coisas, o London deseja falar com o comitê.
Mal se calou, estabeleceu-se uma certa turbulência. Gritos e risos,
enquanto os homens dispersavam, em remoinhos. Pareciam repletos de
uma alegria terrível, de uma alegria sanguinária e concupiscente. O seu
riso era pesado. Entraram nos quartos, tiraram as suas coisas e
empilharam-nas no chão: panelas, cafeteiras, cobertores e trouxas de
roupa. As mulheres trouxeram carrinhos de mão para as crianças. Seis
dos membros do comitê abriram dificilmente caminho e entraram no
quarto de London.
O sol já subira acima das árvores e aquecera o ar. Atrás do barracão,
velhas carripanas amachucadas começaram a arrancar, ruidosamente.
Ouviam-se marteladas, enquanto os homens encaixotavam os seus
haveres. Reinava uma atividade intensa, com a agitação de
intermináveis idas e vindas de opiniões gritadas, de decisões tomadas e
vencidas.
London deixou entrar o comitê e fechou a porta, por causa do barulho.
Os homens estavam silenciosos e tinham um ar cheio de dignidade,
grave e importante. Sentaram-se nos caixotes, envolveram os joelhos
com os braços e lançaram olhares carregados de presságios às
paredes.
— London, importa-se que fale com eles? — perguntou Mac.
— Claro que não; fale.
— Não quero armar em estrela do espetáculo, rapazes, mas tenho
alguma experiência. Já passei por isto antes. Talvez lhes possa mostrar
onde a coisa costuma falhar e talvez consigamos evitar algumas das
dificuldades que nos tramam.
— Continue, amigo. — pediu um dos homens — Ouviremos.
— Muito bem, agora temos fogo suficiente. Mas é esse o mal destes
trabalhadores. Num momento estão cheios de vapor, como um barril de
cerveja, e no seguinte estão frios como o coração de uma prostituta.
Temos de reduzir o vapor e de aquecer o frio. Desejo apresentar uma
sugestão. Vocês a estudarão e depois talvez consigam que o grupo todo
vote nela, Na sua maioria, as greves falham por falta de disciplina.
Suponhamos que dividíamos os homens em brigadas e cada brigada
elegia um chefe, o qual se tornava responsável por ela. Depois disso
poderemos trabalhar em grupos. Um dos homens observou:
— Muitos destes tipos estiveram na tropa e não gostaram nada.
— Claro que não gostaram. Tratava-se de travar a guerra de outro
gajo qualquer. Enfiavam-lhes os oficiais pelas goelas abaixo. Se
tivessem elegido os seus oficiais e travado a sua própria guerra, teria
sido diferente.
— Muitos destes tipos não gostam de oficiais nenhum.
— Mas terão de os ter. Levaremos uma trepa mestra se não tivermos
disciplina. Se a brigada não gostar do chefe, corre com ele e elege
outro. Isso deverá satisfazê-los. Além dos oficiais, precisamos de ter um
chefe principal. Pensem no assunto. Haverá um plenário dentro de cerca
de duas horas e temos de ter um plano elaborado.
London coçou a tonsura.
— A mim parece-me bem. Discutirei o caso com o Dakin assim que o
vir.
— Entendido. — disse Mac — Vamos. Jím, não te afastes de mim.
— Dá-me qualquer trabalho.
— Não. Ficas perto de mim. Posso precisar de ti.
Capítulo 8
Os dois hectares e meio de terra arável da propriedade de Anderson
estavam rodeados em três lados por grandes macieiras escuras e no
quarto pela estrada municipal, estreita e poeirenta. Os homens tinham
chegado aos magotes, a rir e a gritar uns com os outros, e encontrado
preparativos feitos. À sua espera havia estacas cravadas na terra macia,
a definir as ruas do acampamento: cinco ruas correndo paralelamente à
estrada municipal e, defronte do fim de cada rua, um buraco fundo, para
servir de retrete.
Antes do trabalho da construção do campo começar, efetuaram o
plenário com certa ordem, elegeram Dakin presidente e aceitaram o seu
comitê. Aceitaram também com entusiasmo a sugestão das brigadas.
Mal tinham começado a reunir-se, cinco motociclistas da Polícia
apareceram e pararam na estrada municipal. Os ocupantes encostaram
as motos e observaram o trabalho. Ergueram-se tendas e planearam-se
abrigos. O Dr. Burton dos olhos tristes estava em toda a parte, a orientar
o levantamento do acampamento. Havia pelo menos cem velhos
automóveis ao longo da estrada alinhados como carretas num parque
de artilharia e todos com a frente virada para a estrada. Viam-se Fords
antigos, com os estofos numa desgraça; Chevrolets e Dodges de
“focinho” ferrugento, tinta caída e guarda-lamas soltos — e até sem
guarda-lamas —, e Hudsons nas últimas, que faziam um barulho
parecido com o das metralhadoras, quando arrancavam. Pareciam
velhos soldados numa reunião. Ao fim da fila de automóveis via-se a
camioneta Chevrolet de Dakin, limpa, nova e reluzente. Era de todos os
veículos, o único que estava em bom estado, e Dakin, nas suas voltas
pelo acampamento, rodeado pelos membros do seu comitê, raramente a
perdia de vista. Enquanto falava ou escutava, os seus olhos feios e
semicerrados voltavam-se vezes sem conta para a sua reluzente
camioneta verde.
Erguidas as velhas tendas cinzentas, Burton insistiu em que a lona
fosse esfregada com água e sabão. Um veículo trouxe barris de água da
cisterna de Anderson e as mulheres lavaram as tendas com vassouras
velhas. Anderson aproximou-se e assistiu, com olhos preocupados, à
transformação dos seus dois hectares e meio num acampamento. Cerca
do meio-dia estava pronto e novecentos homens foram trabalhar no
pomar, colhendo maçãs para dentro de cafeteiras, chapéus e sacas de
sarapilheira. As escadas estavam longe de ser suficientes e os homens
amarinhavam pelos troncos. Ao escurecer, a colheita estava feita e os
renques de caixotes cheios foram levados para o celeiro de Anderson e
armazenados. Dick tinha trabalhado depressa. Mandou um rapaz pedir
que lhe enviassem à cidade homens e um caminhão, o qual regressou
carregado com tendas de todas as espécies: tipo sombrinha, de lona
castanha clara; baixas e em bico, e grandes tendas militares com
espaço para dez homens. O caminhão trouxe também duas sacas de
massa, sacas de farinha, caixotes de alimentos enlatados, sacas de
batatas e cebolas e uma vaca já abatida.
As novas tendas ergueram-se ao longo das ruas e o Dr. Burton
superintendeu às instalações para cozinhar. Mandaram-se carros à
lixeira da cidade, os quais voltaram com três fogões ferrugentos, cuja
parte superior esburacada foi remendada com bocados de folha.
Escolheram-se cozinheiros, encheram-se recipientes de água,
esquartejou-se a vaca e puseram-se a cozinhar batatas e cebolas, em
colossais guisados. Cozeram-se também baldes de feijão. À noite,
terminada a apanha, os homens regressaram e encontraram à sua
espera tinas de guisado. Sentaram-se no chão e comeram de bacias,
canecas e latas de folha.
Quando escureceu, os polícias das motocicletas foram rendidos por
cinco ajudantes de xerife armados de espingardas. Durante algum
tempo andaram para trás e para diante na estrada, marcialmente, mas
por fim sentaram-se na valeta e observaram os homens. Havia pouca luz
no acampamento. Aqui e ali uma lanterna iluminava uma tenda e as
chamas de pequenas fogueiras projetavam sombras. Num dos extremos
da primeira rua, que ficava mesmo atrás da sua reluzente camioneta
verde, erguia-se a tenda de Dakin, uma tenda grande, com uma parede
de lona ao meio, a fazer dois quartos. A mesa e as cadeiras articuladas
estavam armadas e o chão coberto por um pano, e do centro pendia
uma sibilante lanterna a gasolina. Dakin vivia bem e viajava com toda a
comodidade. Não tinha vícios e tudo quanto ele ou a mulher ganhavam
ia para a manutenção da família, para a camioneta e para a compra de
novo equipamento de campismo.
Quando escureceu, London, Mac e Jim dirigiram-se para a tenda dele
e entraram. Com Dakin já se encontravam Burke, um irlandês
carrancudo e ameaçador, e dois italianos baixos, muito parecidos um
com o outro. Mrs. Dakin recolhera-se à outra divisão da tenda. A pele
rosada do crânio de Dakin brilhava, através do cabelo louro, à luz
branca da lanterna. Os seus olhos reservados não paravam, inquietos.
— Olá, rapazes. Sentem-se onde puderem.
London escolheu a única cadeira que restava e Mac e Jim
acocoraram-se no chão. Mac tirou a bolsa do tabaco e fez um cigarro. —
Parece estar tudo a correr bem. — observou.
Os olhos de Dakin detiveram-se nele, mas desviaram-se logo. —
Assim parece, de fato — concordou.
— Mandaram para cá os tiras muito depressa. — comentou Burke —
Teria um grande prazer em esmurrar alguns deles.
Dakin repreendeu-o, calmamente: — Deixa os tiras em paz até não
poderes aguentar mais. Eles não estão a fazer mal nenhum.
— Como vão as brigadas? — indagou Mac.
— Bem. Elegeram os chefes, mas algumas já correram com eles e
elegeram outros. Devo dizer que o Dr. Burton é um tipo formidável.
— Sim, é fixe. — concordou Mac — Onde estará? Não seria mau se
uma das brigadas o protegesse. Quando começarmos o trabalho,
tentarão levá-lo daqui, e se conseguirem levá-lo a ele poderão correr
conosco. Tudo em nome do “perigo para a saúde pública”, como dizem.
— Encarrega-te disso, sim Burke? — pediu Dakin — Diz a uma boa
brigada que tome conta do doutor. Os rapazes gostam dele.
Burke levantou-se e saiu da tenda.
— Diz-lhe o que me disseste, Mac. — pediu London.
— Bem, os rapazes julgam que isto é uma espécie de piquenique,
Dakin, mas amanhã de manhã o piquenique acaba e começa a dança.
— Furas?
— Sim, um comboio deles. Tenho um rapaz na cidade que vai ao
telégrafo por mim. Chegou um telegrama, esta noite: partiu hoje um
comboio de mercadorias cheio de furas, que deve cá estar amanhã de
manhã.
— Bem, acho que o melhor é irmos esperar o comboio e ter uma
conversa com os novos tipos. — disse Dakin — Talvez sirva de alguma
coisa, antes de dispensarem todos.
— Foi o que eu pensei. — concordou Mac — Já uma ocasião vi uma
leva completa de furas passar-se para o nosso lado, quando lhe
explicamos como as coisas eram.
— Nós explicaremos a estes.
— Escute, os tiras tentarão impedir-nos. Não seria possível deixar os
tipos passarem-se à sorrelfa por entre as árvores, antes de nascer o dia,
e deixar os tiras a ver navios, aqui?
Durante um segundo os olhos de Dakin cintilaram. — Acham que
daria resultado? — os homens riram-se, encantados, e Dakin
acrescentou: — Então vão informar os rapazes.
— Um momento. — pediu Mac — Se disser aos rapazes esta noite,
deixará de ser segredo.
— Que quer dizer?
— Não imagina que não temos espiões no campo, pois não? Aposto
que temos pelo menos cinco, disfarçados, além daqueles capazes de
dizer tudo e mais alguma coisa na esperança de ganharem umas
coroas. Foi sempre assim, com os diabos! Não lhes diga nada até estar
pronto para partir.
— Não acredita nos rapazes, hem?
— Bem, se quer correr o risco, corra. Aposto que descobrirá que os
tiras nos acompanham.
— Que pensam vocês?
— Creio que ele tem razão, Dakin. — respondeu um dos italianos.
— Está decidido, então. Temos de deixar cá um grupo para tomar
conta do acampamento.
— Pelo menos cem homens. — sugeriu Mac — Se abandonarmos o
acampamento, eles vão incendiá-lo, tão certo como estarmos aqui.
— Os rapazes apanharam as maçãs do Anderson num instante.
— É verdade. — confirmou Dakin — Neste momento estão duzentos
ou trezentos no pomar, aqui ao lado. O Anderson terá uma colheita
maior do que imaginava.
— Espero que não causem encrenca por enquanto. — murmurou Mac
— Mais tarde não faltarão.
— Quantos furas vêm? Conseguiu saber?
— Entre quatrocentos e quinhentos, amanhã. Creio que depois virão
mais! Não se esqueça de dizer aos rapazes que levem pedras com
fartura nas algibeiras.
— Não esquecerei.
Burke voltou e informou: — O doutor vai dormir numa daquelas
grandes tendas militares. Dormirão dez rapazes com ele, na mesma
tenda.
— Onde está agora o doutor? — perguntou Mac.
— Descobriu vestígios de tinha num tipo e está a tratar dele junto dos
fogões.
Nesse momento soou um coro de gritos no acampamento, e depois
ouviu-se uma voz gritar, irritada. Os seis homens saíram a correr da
tenda. O barulho partira de um grupo que se encontrava do lado da
frente da rua voltada para a estrada. Dakin abriu caminho através dos
homens e perguntou: — Que se passa aqui?
A voz irritada respondeu-lhe: — Eu digo-lhe o que se passa: os seus
homens começaram a atirar pedras. Aviso-o de que, se voltarem a fazer
o mesmo, dispararemos e não nos interessará quem atingimos.
Mac virou-se para Jim, que estava a seu lado, e disse-lhe baixinho: —
Quem me dera que começassem mesmo a disparar. Esta corja de
idiotas é capaz de se fazer em frangalhos se não acontecer nada
desagradável muito em breve. Estão a sentir-se demasiado bem. Não
tarda que comecem à porrada uns com os outros.
London avançou, furioso, para o grupo de homens e gritou-lhes: —
Vão-se embora! Não lhes falta que fazer, não precisam de estar com
brincadeiras de garotos. Toca a andar, voltem para os seus lugares!
A autoridade de London fê-los retroceder, amuados, mas foi com
relutância que dispersaram.
O ajudante de xerife gritou: — Se não mantiverem esses tipos na
ordem, mantê-los-emos nós, com Winchesters.
— Pode meter a cabeça debaixo da asa e voltar a dormir. — disse
Dakin, friamente.
— Os tiras estão cheios de cagaço. — segredou Mac a Jim — Isso
torna-os perigosos. São como cascavéis assustadas: dispararão contra
tudo.
O grupo afastara-se e os homens estavam a dirigir-se para as suas
tendas.
— Vamos ver como está o doutor, Jim. Disseram que se encontrava
junto dos fogões.
Descobriram o Dr. Burton sentado num caixote, a ligar o braço de um
homem. Uma lanterna a petróleo fazia incidir um feixe de luz amarela no
seu trabalho e iluminava um pequeno círculo no chão. Prendeu a
ligadura com adesivo.
— Pronto. Para a próxima não deixe infectar tanto, pois arrisca-se a
ficar sem um braço.
— Obrigado, doutor. — agradeceu o homem, e afastou-se, a baixar a
manga da camisa.
— Olá! — exclamou o médico, ao ver Mac e Jim — Creio que acabei.
— Era o da tinha?
— Não. Apenas um golpezinho, mas já com uma infecção bem
lançada. Não há meio de aprenderem a tratar os golpes.
— Se o doutor detectasse um caso de bexigas e tivesse de montar
uma enfermaria de quarentena, ficaria feliz da vida. — observou Mac —
Que vai fazer agora?
Os olhos castanhos, tristes, olharam, fatigados, para Mac.
— Bem, creio que já fiz tudo. Mas tenho de ir ver se a brigada
desinfectou as retretes como eu mandei.
— Cheiram a desinfectadas. Porque não vai antes dormir? Não
dormiu nada a noite passada.
— Estou cansado, mas não tenho sono. Há coisa de uma hora que
tenho estado a pensar que, quando acabasse, talvez fosse até ao pomar
e me sentasse encostado a uma árvore, a descansar.
— Importa-se de ter companhia?
— Não. Até me agrada. — Burton levantou-se e acrescentou: —
Deixem-me só lavar as mãos. — enfiou as mãos numa lata de água
quente, ensaboou bem e passou-as por água limpa. — Vamos então.
Os três homens afastaram-se vagarosamente das ruas de tendas, na
direção do pomar às escuras. Os seus pés esmagavam suavemente
pequenos torrões de terra.
— Mac, você é um enigma para mim. — confessou Burton, em tom de
fadiga — Adapta-se a qualquer conversa em que esteja a participar.
Quando está com o London e o Dakin fala como eles. É um ator.
— Não, não sou nada um ator. Falar tem uma espécie de tom, de
atmosfera... Quando os capto, a coisa sai-me naturalmente. Não tento
imitar. Creio até que não poderia deixar de fazer o que faço, mesmo que
quisesse. Compreende, doutor, os homens desconfiam daqueles que
não falam à sua maneira. Pode-se insultar gravemente um indivíduo
pelo simples emprego de uma palavra que ele não compreende. Ele
poderá calar-se, mas ficará a detestar quem assim proceder. No seu
caso não é a mesma coisa doutor. Já esperavam que fosse diferente e
nem confiariam em si se o não fosse.
Entraram nas alamedas abobadadas, fechadas pelas árvores, viram os cachos de folhas e
os ramos recortados, escuros no céu. O sussurro abafado do acampamento já não se ouvia.
Uma coruja piou estridentemente e assustou-os.
— É uma coruja, Jim. — explicou Mac — Anda a caçar ratos. — e
acrescentou, dirigindo-se ao médico: — O Jim conhece pouco o campo.
As coisas que nós conhecemos são novidade para ele. Sentemo-nos
aqui.
Mac e o médico sentaram-se no chão, encostados ao tronco largo de
uma velha macieira; Jim sentou-se diante deles, de pernas dobradas. A
noite estava serena e as folhas pretas não buliam no ar parado.
— O senhor é um enigma para mim, doutor. — disse Mac, baixinho,
pois a noite parecia estar à escuta.
— Eu? Um enigma?
— Sim, o senhor. Não é do Partido, mas trabalha constantemente
conosco e nunca recebe nada por isso. Não sei se acredita no que
estamos fazendo ou não, pois nunca o diz. Limita-se a trabalhar. Já
trabalhei consigo noutras ocasiões e ainda não tenho a certeza se
acredita sequer na causa.
O médico soltou uma gargalhada breve. — É difícil explicar. Podia
dizer-lhe algumas das coisas que penso, mas você talvez não
gostasse... tenho mesmo a certeza de que não gostaria.
— De qualquer maneira, ouçamos.
— Diz que não acredito na causa. Bem isso é como não acreditar na Lua, Já houve
comunas antes e voltará a havê-las. Mas vocês estão convencidos de que se conseguirem
instituí-las, o trabalho estará feito. Nada pára, Mac. Se você conseguisse pôr uma ideia em
execução, amanhã, ela começaria imediatamente a mudar. Estabeleça uma comuna e o
mesmo fluxo gradual continuará.
— Então não acha que a causa seja boa?
Burton suspirou. — Está a ver? Vamos malhar outra vez nessa velha
pedra. É por isso que não gosto muito de falar. Escute, Mac, os meus
sentidos não estão acima de censura, mas são tudo quanto tenho.
Quero ver o quadro completo... o mais completamente que puder. Não
quero pôr os antolhos do “bom” e do “mau” e limitar a minha visão. Se
utilizasse o termo “bom” numa coisa, perderia a autoridade para a
inspecionar, pois poderia haver mal nela. Não compreende? Quero
poder olhar para o todo.
— E a injustiça social? — perguntou Mac, acaloradamente — O sistema do lucro? Tem de
dizer que são maus.
O médico inclinou a cabeça para trás e olhou para o céu. — Mac,
pense na injustiça fisiológica... a injustiça do tétano, a injustiça da sífilis,
os métodos de gangsterismo da disenteria amebiana... É esse o meu
campo.
— A revolução e o comunismo curarão a injustiça social.
— Sim, e a desinfecção e a profilaxia evitarão as outras.
— Mas é diferente! Uma é feita pelos homens, as outras fazem-nas os
germes.
— Não vejo grande diferença, Mac.
— Com a breca, doutor, há tétano em toda a parte, pode encontrar
sífilis na Park Avenue. Sendo assim, porque anda conosco, se não é por
nós?
— Quero ver. Quando se corta um dedo e os estreptococos invadem a
ferida, há inchaço e dor. O inchaço é a luta que o corpo trava, a dor é a
batalha. Não se sabe qual dos dois vai ganhar, mas a ferida é o primeiro
campo de batalha. Se as células perdem a primeira batalha, os
estreptococos invadem e o combate prossegue pelo braço acima. Estas
pequenas greves são como a infecção, Mac. Há qualquer coisa que
entrou nos homens, manifestou-se um pouco de febre e os gânglios
linfáticos estão a enviar reforços. Como quero ver, vou para a sede da
ferida.
— Acha que a greve é uma ferida?
— Acho. Os homens-grupo estão sempre a contrair qualquer espécie
de infecção. Esta parece grave. Quero ver, Mac. Quero ver estes
homens-grupo, pois parecem-me um indivíduo novo, nada semelhante
aos homens individuais. Um homem no grupo não é ele próprio e sim
uma célula de um organismo tão diferente dele como as células do seu
corpo são diferentes de você. Quero observar o grupo e ver como ele é.
Já tenho ouvido dizer: “As multidões são loucas, nunca se sabe o que
farão.” Porque será que as pessoas não vêem as multidões como
multidões, mas sim como homens? Uma multidão parece quase sempre
agir razoavelmente, para uma multidão.
—Que tem isso a ver com a causa?
— Encaremos as coisas deste modo, Mac, pois pode ser isso que se
passa: Quando o homem-grupo quer fazer qualquer coisa, arranja um
chavão. “Deus quer que recuperemos a Terra Santa.” Ou: “Apagaremos
a injustiça social com o Comunismo.” Mas o grupo não quer saber para
nada da Terra Santa, da Democracia, ou do Comunismo. Talvez o grupo
queira simplesmente atuar, lutar, e utilize essas palavras apenas para
tranquilizar o cérebro dos homens individuais. Note, eu disse que podia
ser isto.
— Com a causa, não é! — afirmou Mac.
— Talvez não. Trata-se apenas do modo como penso.
— O seu mal, doutor, é estar muitíssimo à esquerda para ser
comunista. Leva a coletivização demasiado longe. Como explica as
pessoas como eu, que dirigem coisas, põem coisas em andamento?
Isso faz cair pela base o seu homem-grupo.
—Você tanto pode ser um efeito como uma causa, Mac. Pode ser uma
expressão do homem-grupo, uma célula encarregada de uma função
especial — como uma célula ocular — pode retirar a sua força do
homem-grupo e ao mesmo tempo dirigi-lo, como um olho. Os seus olhos
recebem ordens do seu cérebro e dão-lha, também.
— Isso não é prático. — declarou Mac, descontente — Que tem todo
esse gênero de conversa a ver com homens famintos, com suspensões
e desemprego?
— Talvez tenha muito a ver com tudo isso. Ainda não há muito tempo,
o tétano e o trismo não eram relacionados um com o outro. Ainda há no
mundo povos primitivos desconhecedores de que as crianças são o
resultado de relações sexuais. Sim, talvez valesse a pena saber mais
coisas acerca do homem-grupo, conhecer a sua natureza, os seus
objetivos e os seus desejos, que não são os mesmos que os nossos. O
prazer que sentimos ao coçar qualquer sítio onde temos comichão
causa a morte a um grande número de células. Talvez o homem-grupo
sinta prazer quando os homens individuais são dizimados numa guerra.
Quero simplesmente ver o mais que puder, Mac, com os meios de que
disponho.
Mac levantou-se e sacudiu os fundilhos das calças. — Quando se vê
demasiado, não se faz nada. — sentenciou.
Burton levantou-se também, a rir baixinho. — Talvez um dia... Ora,
deixemos isso! Não devia ter falado tanto... Mas clarifica um pensamento
exprimi-lo por palavras, mesmo que ninguém ouça.
Retrocederam, a esmagar com os pés os torrões friáveis, a caminho do acampamento.
— Não podemos observar nada, doutor. De manhã temos de vencer
uma corja de fura-greve.
— Deus vult. Viu aqueles pointers do Anderson? Belos cães. Causaram-me um prazer
sensual, quase sexual.
Ainda havia luz na tenda de Dakin. O acampamento dormia e apenas algumas brasas
amodorradas brilhavam nas ruas. A fila silenciosa de carripanas velhas continuava no mesmo
lugar e, na estrada, brilhavam espasmodicamente os cigarros dos vigilantes ajudantes de
xerife.
— Ouviste aquilo, Jim? Mostra o que o Burton é. Vê um casal de
belos cães, de bons cães de caça, mas para ele não são cães: são
sensações. Para mim são cães. E estes tipos que dormem para aí são
homens e têm estômago, mas para o doutor não são homens e sim uma
espécie de Colosso coletivo. Se não fosse médico, não o poderíamos ter
conosco. Precisamos da sua arte, mas o seu cérebro só serve para nos
lançar na confusão.
Burton riu-se, mas como quem se desculpa. — Não sei porque
continuo a falar. Vocês, homens práticos conduzem sempre homens
práticos, que têm estômago. E há sempre qualquer coisa que descarrila,
que não corre como se previa. Os seus homens descontrolam-se, não
respeitam as normas do senso comum, e vocês, homens práticos, ou
negam que é assim ou recusam-se a pensar no assunto. E quando
alguém pergunta a si mesmo que será que torna um homem com
estômago algo mais do que as vossas regras permitem, gritam:
“Sonhador, místico, metafísico!” Não sei porque falo destas coisas a um
homem prático. Não há em toda a história homens que tenham chegado
a uma confusão tão tremenda, a tão grande perplexidade, como os
homens práticos, condutores de homens com estômago.
— Temos um trabalho a fazer. — teimou Mac — Não podemos
desperdiçar tempo com ideias complicadas.
— Sim, e por isso iniciam o trabalho sem conhecerem o meio. E a
ignorância mete-lhes sempre uma rasteira.
Já estavam perto das tendas.
— Se falasse com outras pessoas desse modo, teríamos de correr
consigo. — comentou Mac.
Um vulto negro ergueu-se de súbito do chão e uma voz perguntou:
— Quem vem lá? — e logo a seguir: — Ah, são vocês! Não sabia
quem vinha aí.
— O Dakin montou guardas? — perguntou Mac.
— Montou.
— É um homem fixe. Eu sabia que era um homem fixe, de cabeça fria.
Pararam junto de uma grande tenda bicuda, do exército.
— Acho melhor recolher-me. — disse o médico — É aqui que dormem
os meus guarda-costas.
— Boa idéia. Provavelmente amanhã terá de fazer uns curativos.
Quando o médico desapareceu no interior da tenda, Mac virou-se
para Jim e disse-lhe:
— Não há motivo nenhum para não dormires também um bocado.
— E tu, que vais fazer?
— Eu? Lembrei-me de dar por aí uma vista de olhos, para ver se está tudo em ordem.
— Quero ir contigo. Limitar-me-ei a acompanhar-te.
— Não fales tão alto. — Mac dirigiu-se, devagar, na direção da fila de
automóveis — Ajudas-me, Jim. Posso parecer-te piegas como uma
velha, mas evitas que me assuste.
— Não faço outra coisa senão andar atrás de ti.
— Bem sei. Talvez esteja a ficar mole... Tenho um medo danado de
que te aconteça alguma coisa. Não te devia ter trazido, Jim. Estou a
habituar-me a contar contigo.
— Que vamos fazer agora, Mac?
— Desejava que te fosses deitar. Eu vou tentar meter conversa com os tiras da estrada.
— Para quê?
— Ouve lá, não ficaste perturbado com o que o doutor disse, pois não?
— Não. Nem lhe dei ouvidos.
— Tudo aquilo são tretas, mas o que te vou dizer não o é. Ganha-se
uma greve de duas maneiras: porque os homens lutam com firmeza e
porque a opinião pública está do nosso lado. Mas a maioria deste vale
pertence a meia dúzia de tipos, o que significa que o resto das pessoas
não tem grande coisa, seja do que for. Os poucos proprietários têm de
lhes pagar ou de lhes mentir. Aqueles tiras que estão na estrada são
ajudantes especiais, simples trabalhadores eventuais com uma estrela,
uma arma e um emprego de duas semanas. Lembrei-me de tentar
sondá-los, descobrir o que pensam desta greve. Suponho que o que
eles sentem é o que os patrões lhes disseram que sentissem, mas de
qualquer modo não faz mal nenhum experimentar.
— E se eles te prenderem? Lembra-te do que aquele tipo disse na estrada, ontem à noite.
— Estes são apenas ajudantes, Jim. Não me reconhecerão como um
polícia efetivo reconheceria.
— Bem, quero ir contigo.
— Pois sim. Mas se alguma coisa te parecer estranha, pira-te para o acampamento e
desata a berrar.
Numa tenda, atrás deles, um homem gritou, a sonhar. Um coro abafado de vozes acordou-
o e interrompeu-lhe o sonho.
Mac e Jim esgueiraram-se silenciosamente por entre dois automóveis
e aproximaram-se de um pequeno grupo de cigarros acesos. As brasas
quase se apagaram e mudaram de posição, quando a sua presença foi
detectada.
— Eh, podemos chegar aí? — perguntou Mac.
— Quantos são? — perguntou uma voz do grupo.
— Dois.
— Então venham.
Ao acercarem-se, uma lanterna elétrica acendeu-se e o seu feixe
luminoso tocou-lhes momentaneamente o rosto e apagou-se. Os
ajudantes do xerife levantaram-se e o porta-voz perguntou: — Que
querem?
— Não conseguimos dormir. — respondeu Mac — Lembramo-nos de
vir até aqui conversar.
O homem riu-se. — Esta noite não nos tem faltado companhia.
No escuro, Mac tirou a sua bolsa de Bull Durham e convidou: —
Algum de vocês quer fumar?
— Temos cigarros. Que desejam?
— Eu explico-lhes. Muitos dos rapazes querem saber o que pensam da greve e
mandaram-nos perguntar-lhes. Sabem que vocês são apenas trabalhadores, como eles, e
desejam saber se não estarão dispostos a ajudar os vossos iguais.
As suas palavras foram escutadas em silêncio e Mac olhou à sua volta, inquieto.
— Muito bem, tansos. — disse uma voz, suavemente — Levantem as
mãos. Se dão um pio disparamos.
— Mas que diabo é isto? Qual é a ideia?
— Passa para trás deles Jack, e tu Ed, e encostem-lhes as armas às
costas. Se se mexerem, disparem. Agora! Toca a marchar!
Os canos das espingardas encostaram-se-lhes às costas e
empurraram-nos, através da escuridão. A voz do que comandava voltou
a ouvir-se:
— Julgavam-se uns grandes espertalhões, hem? Não sabiam que os
polícias que estiveram aqui de dia nos disseram quem vocês são. —
atravessaram a estrada e meteram por entre as árvores, do outro lado —
Julgaram-se muito espertos, fazendo sair os homens antes de nascer o
dia e deixando-nos a ver navios. Mas nós tomamos conhecimento da
tramóia dez minutos depois de vocês tomarem a decisão!
— Quem lhe disse isso?
— Gostaria de saber, hem?
Continuaram a marchar e a cravar-lhes os canos nas costas.
— Vai levar-nos para a cadeia?
— Qual cadeia, qual carapuça! Vamos levá-los ao Comitê de
Vigilância, seus vermelhos de uma figa. Se tiverem sorte, eles dão-lhes
uma valente carga de porrada e largam-nos fora do condado; se não
tiverem, penduram-nos numa árvore. Não queremos radicais neste vale.
— Mas vocês polícias, têm de nos levar para a cadeia!
— Isso é o que vocês pensam. Há uma agradável casinha a pouca distancia daqui e é para
lá que os levamos.
Nem a pouca luz das estrelas chegava debaixo das macieiras.
— Agora calem a boca.
— Foge, Mac.— gritou Jim e, no mesmo instante, atirou-se ao chão.
O homem que o guardava tropeçou nele e caiu também. Jim rebolou à
volta do tronco de uma árvore, levantou-se e desatou a correr. No
segundo renque de árvores trepou por uma macieira acima e ocultou-se
entre as folhas. Ouviu uma luta e um grunhido de dor. A luz da lanterna
elétrica saltou de um lado para o outro e por fim a lanterna caiu e
iluminou inutilmente uma maçã podre. Ouviu-se um rasgar de tecido e
depois o bater firme de pés que corriam. Alguém apanhou a lanterna e a
apagou. Vozes abafadas e irritadas, como se discutissem, soaram no
lugar da briga.
Jim deixou-se escorregar suavemente da árvore, ofegando,
apreensivo, todas as vezes que as folhas estremeciam. Começou a
andar em silêncio, chegou à estrada e atravessou-a. Um guarda deteve-
o junto da fila de carros.
— Já é a segunda vez esta noite, rapaz. Porque não vais para a cama?
— O Mac passou por aqui? — perguntou Jim.
— Passou, como se trouxesse o Diabo atrás dele. Está na tenda do Dakin.
Jim estugou o passo, levantou a aba da tenda castanha e entrou.
Dakin, Mac e Burke estavam no interior. Mac, que falava excitadamente,
parou quando Jim entrou e fitou-o.
— Jesus, que alegria! Íamos mandar um grupo procurar-te. Que
grande idiota eu fui! Imagine, Dakin, que eles nos conduziam com os
canos das espingardas encostados às nossas costas! Pensei que não
disparassem, mas, poderiam ter disparado. Que diabo fizeste tu, Jim?
— Limitei-me a cair, o tipo caiu por cima de mim e a sua arma enterrou-se na terra. Era um
truque que costumávamos empregar no recreio da escola.
Mac riu-se, constrangido. — Suponho que tiveram receio de se matar
uns aos outros assim que as armas deixaram de nos tocar. Saltei para o
lado e dei um pontapé na barriga do que me guardava.
Burke estava de pé atrás de Mac e Jim viu o amigo piscar o olho a
Dakin. Os olhos frios quase desapareceram atrás das pálpebras de
pestanas claras.
— Burke, é melhor ires fazer a ronda e ver se os guardas estão todos acordados.
Burke hesitou. — Acho que eles são de confiança, Dakin.
— Mesmo assim, é melhor ires certificar-te. Não queremos mais ataques. Com que estão
eles armados, Burke?
— Com belos cacetes.
— Bem, vai dar uma vista de olhos.
Burke saiu da tenda e Mac aproximou-se mais de Dakin e disse-lhe, em voz baixa:
— As paredes da tenda são muito finas. Quero falar consigo a sós. Vamos dar um
passeiozinho?
Dakin acenou com a cabeça, em dois movimentos sacudidos, e os
três homens embrenharam-se nas trevas, na direção em que o Dr.
Burton seguira algum tempo antes. Um guarda observou-os, quando
passaram.
— Já anda alguém a atraiçoar-nos. — anunciou Mac — Os ajudantes
do xerife sabiam que íamos sair à sorrelfa antes de nascer o dia.
— Pensa que é o Burke? — perguntou Dakin, friamente — Ele nem sequer estava
presente.
— Não sei quem é. Alguém que andasse perto podia ter ouvido através da tenda.
— Bem, que vamos fazer a esse respeito? Parece saber tudo acerca
destas coisas. — A voz fria prosseguiu: — Desconfio de que vocês,
vermelhos, não nos vão ajudar nada. Esteve aí um tipo esta noite a dizer
que se corrêssemos com vocês talvez os patrões concordassem em
discutir o caso.
— E pensa que eles farão isso? Não se esqueça de que baixaram os
salários antes de nós chegarmos. Com mil raios, parece até que fomos
nós que desencadeamos a greve, mas você sabe muitíssimo bem que
não fomos. Estamos apenas a ajudar. para que corra bem, em vez de o
tiro sair pela culatra.
A voz monocórdica de Dakin interrompeu-o: — Que lucram com isto?
— Não lucramos nada! — replicou Mac acaloradamente.
— Como sei que é assim?
— Não poderá saber, a não ser que acredite. Não há nenhum modo de o provar.
A voz de Dakin tornou-se um pouco menos fria, ao redarguir: — Não
sei se confiaria em vocês, se fosse assim. Se um homem lucra alguma
coisa, sabemos que só pode fazer uma de duas coisas: receber ordens
ou trair. Mas se um homem não lucra nada, não podemos saber o que
ele fará.
— Está bem, deixemo-nos dessas tretas. — resmungou Mac, irritado
— Quando os rapazes quiserem correr conosco deixe-os fazê-lo por
votação. E deixe-nos defender a nossa causa. Creia no entanto que não
ganhamos nada em brigar um com o outro.
— Que vamos fazer, afinal? Se os tiras já sabem, é inútil mandar sair os tipos à sorrelfa, ao
nascer do dia.
— Claro. Temos de nos limitar a marchar pela estrada fora e a arriscar. Quando virmos os
furas, e como eles agem, saberemos se teremos de falar ou lutar.
Dakin parou e virou o pé para o lado, a arrastar na terra. — Porque
quis que viesse cá fora?
— Desejei dizer-lhe, apenas, que estamos a ser atraiçoados. Se houver alguma coisa que
não queira que os tiras saibam, não a diga a ninguém.
— Está bem, percebi. Se toda a gente souber, é o mesmo que dizer-lhes a eles também.
Vou-me deitar. Vejamos se conseguem não se meter em encrencas até de manhã.
Mac e Jim compartilhavam uma tenda pequena, sem cobertura no
chão. Entraram de gatas e enrolaram-se nas mantas.
— Creio que o Dakin é fixe, mas não acata ordens. — murmurou Mac.
— Achas que será capaz de tentar correr conosco daqui?
— Capaz, acho-o, mas não creio que o faça. Amanhã à noite haverá
tantos tipos feridos e furiosos que serão canja para nós. Não podemos
deixar esta história desfazer-se em nada. Jim. É demasiado boa.
— Mac...
— Que é?
— Porque não se limitaram os tiras a entrar e a levar-nos, a ti e a mim?
— Tiveram medo. Receiam que os homens percam os trambelhos.
Poderia acontecer o mesmo que aconteceu quando o velho Dan caiu da
escada. Os tiras sabem muito bem quando devem deixar os
trabalhadores em paz. Agora é melhor dormirmos.
— Ainda te quero perguntar como te safaste no pomar. Lutaste, não lutaste?
— Lutei, mas estava tão escuro que eles não conseguiam ver quem estavam a esmurrar.
Eu porém sabia que podia esmurrar à vontade, fosse quem fosse.
Jim permaneceu uns momentos calado e depois perguntou: —
Tiveste medo, quando nos encostaram os canos das espingardas às
costas?
— Se tive! Já me vi a contas com vigilantes de outras vezes... e o pobre do Joy também.
Dez ou quinze atiram-se a um homem e fazem-no em polpa. Oh, são uns gajos valentes!
Usam quase sempre máscaras. Claro que tive medo. E tu?
— Suponho que sim. Ao princípio. Depois eles obrigaram-nos a
marchar e fiquei todo gelado. Vi exatamente o que aconteceria se me
deixasse cair. Palavra, vi o gajo cair por cima de mim, vi-o antes de
acontecer. O meu medo maior era que te dessem um tiro.
— É estranho, Jim, mas quanto maior é o perigo em que nos
metemos, menos nos assusta. Quando a sarrafusca começou, perdi o
medo. Ainda me arrepia pensar naquela arma encostada às costas.
Jim olhou para o exterior, através da abertura da tenda. A noite
parecia cinzenta em contraste com o negrume do interior. Passou
alguém, esmagando com os pés os pequenos torrões de terra. — Achas
que ganharemos esta greve, Mac?
— Acho que devemos dormir. No entanto, Jim, não acho que
tenhamos probabilidades de a ganhar. Este vale está organizado.
Começarão a disparar e ficarão impunes. Não temos nenhuma
probabilidade. Penso que estes tipos são capazes de começar a
desertar assim que as complicações aumentarem. Mas não te deves
preocupar com isso, Jim. A coisa irá continuando, alastrará, e um dia...
um dia dará resultado. Um dia venceremos. Temos de acreditar nisso. —
apoiou-se num cotovelo e acrescentou: — Se não acreditássemos nisso
não estaríamos aqui. O doutor teve razão quando falou de infecção, mas
essa infecção é capital investido. Temos de acreditar que
conseguiremos expulsá-la, antes que nos chegue ao coração e nos
mate. Tu nunca mudas, Jim, estás sempre presente. Dás-me força.
— O Harry disse logo ao princípio o que tinha a esperar. Toda a gente
nos odeia.
— Isso é o mais duro. Toda a gente nos odeia, o nosso próprio lado e
o inimigo. E se ganhássemos, Jim, se levássemos a coisa a bom termo,
o nosso próprio lado matar-nos-ia. Pergunto a mim mesmo porque o
fazemos... Bolas, vamos dormir!
Capítulo 9
AINDA a noite não terminara por completo e já a voz dos homens que
acordavam se ouvia através do acampamento. Rachava-se lenha e os
fogões ferrugentos crepitavam. Em poucos momentos o cheiro
agradável do pinho e da lenha de macieira a arder encheu o ar. A
brigada de cozinheiros não parava! Os baldes de café estavam
dispostos perto dos fogões crepitantes. As caldeiras cheias de feijões
começaram a aquecer. As pessoas foram saindo das tendas e dirigiram-
se para junto dos fogões, onde formaram um grupo tão compacto que os
cozinheiros não tinham espaço para trabalhar.
A camioneta de Dakin foi a casa de Anderson e voltou com três barris
de água. Depois a palavra de ordem andou de boca em boca: — O
Dakin quer falar com os chefes de brigada. Quer falar com eles
imediatamente.
Os chefes de brigada dirigiram-se, todos importantes, para a tenda
do chefe.
A linha das copas das macieiras recortava-se já claramente no lado
oriental do céu e os carros estacionados tinham-se tornado visíveis, de
uma tonalidade cinzenta. Os baldes de café começaram a ferver e das
caldeiras de feijões evolou-se um cheiro rico, nutritivo. Os cozinheiros
deitavam conchas de feijão em tudo quanto as pessoas lhes
apresentavam: frigideiras, boiões, latas e pratos de folha. Muitos dos
homens tinham-se sentado no chão e, com os canivetes, afeiçoavam
umas pequenas pás de madeira, para comerem com elas os feijões O
café era simples e amargo, mas os homens e as mulheres que se tinham
mostrado silenciosos e inquietos sentiram-se aquecidos e confortados e
começaram a falar, a rir e a cumprimentar-se uns aos outros. A claridade
do dia começou a romper por cima das árvores e o chão tornou-se azul
acinzentado. No céu voavam grandes bandos de gansos, em plena luz.
Entretanto, Dakin, ladeado por Burke e London, estava parado
defronte da sua tenda. À sua frente, os chefes de brigada esperavam,
Mac e Jim encontravam-se entre eles. Mac explicara ao amigo: “Temos
de proceder com muita calma durante uns tempos, pois não nos convém
que os rapazes corram conosco agora.”
Dakin vestira um casaco curto, de cotim, e pusera um boné de
fazenda. Os seus olhos claros fitaram sucessivamente os homens. —
Vou-lhes dizer o que se passa — começou — e depois podem desistir,
se quiserem. Não quero que nos acompanhe quem não nos quiser
acompanhar. Está a chegar um comboio de furas e nós tencionamos ir à
cidade e tentar detê-lo. Falaremos com eles e depois talvez tenhamos
também de lutar. Que lhes parece?
Ergueu-se um murmúrio de assentimento.
— Muito bem, então. Mantenham os homens na ordem, sossegados e
na berma da estrada. — sorriu friamente e acrescentou: — Se algum
deles quiser apanhar umas pedras e metê-las na algibeira não vejo
nenhum mal nisso.
Os homens riram-se, contentes.
— Pronto, se perceberam bem, vão falar com os seus homens. Quero
tomar conhecimento de todas as objeções antes de partirmos. Deixarei
aqui uns cem homens, para tomarem conta do acampamento. Vão
comer qualquer coisa, andem.
Os homens voltaram, apressados, para junto dos fogões.
Mac e Jim aproximaram-se dos chefes e ouviram London dizer: —
Não creio que eles sejam capazes de brigar muito... Não me parecem
nada assanhados.
— Ainda é muito cedo. — tranquilizou-o Mac — Ainda não beberam o
café. Os homens são diferentes antes de comerem.
— Vocês também vão? — perguntou Dakin.
— Claro que vamos. — respondeu Mac — Mas olhe, Dakin, temos
homens que andam a recolher comida e outras coisas. Dê ordem para
que alguns carros vão buscar os mantimentos. quando eles pedirem.
— Está bem. Vamos precisar disso tudo esta noite, pois os feijões
estão quase gastos. É precisa muita comida para alimentar uma malta
destas.
— Acho que devemos provocar zaragata assim que os furas
descerem do comboio. — declarou Burke — Devemos meter-lhes um
cagaço valente.
— É melhor falar primeiro. — discordou Mac — Já vi meio comboio de
furas bandear-se com os grevistas depois de se lhes ter falado. Se
cairmos logo em cima deles assustaremos alguns, mas enfureceremos
outros.
Dakin observava-o desconfiadamente enquanto ele falava. — Bem.
vamos andando. — disse. — Tenho de escolher os tipos que ficam. O
doutor e os seus homens poderão limpar o acampamento. Vou na minha
camioneta e posso levar o London e o Burke. Acho melhor deixarmos
ficar aqui todas essas velhas carripanas.
O sol começava a subir quando a coluna longa e irregular partiu. Os
chefes de brigada mantinham os seus homens a um lado da estrada.
Jim ouviu um homem dizer: “Não percas tempo a apanhar torrões. No
aterro dos caminhos-de-ferro há boas pedras de granito.”
Cantou-se. O canto desafinado e irregular de homens que não
estavam habituados a cantar. A camioneta verde de Dakin partiu à
frente, devagar, seguida pela coluna. Os gritos de adeus das mulheres
foram ficando para trás, no acampamento.
Mal tinham começado, apareceram polícias de motocicleta, que se
colocaram, espaçados, ao longo da linha de marcha. Quando tinham
percorrido já uns oitocentos metros, um grande carro aberto, cheio de
homens, dirigiu-se para a frente da coluna e parou atravessado na
estrada. Todos os homens empunhavam espingardas e usavam
distintivos de ajudantes de xerife. O motorista levantou-se do banco e
gritou:
— Não se esqueçam de que têm de se manter na ordem! Podem
marchar quanto lhes apetecer, desde que não bloqueiem o trânsito e
não interfiram com ninguém. Perceberam?
Sentou-se, passou o carro para a frente do veículo de Dakin e
conduziu a coluna.
Jim e Mac marchavam quinze metros atrás da camioneta de Dakin.
— Preparam-nos um comitê de recepção. — observou Mac —
Amáveis, hem? — os homens que se encontravam perto deram
gargalhadinhas e Mac prosseguiu: — Dizem: “Têm o direito de fazer
greve, mas não podem fazer piquetes”, e sabem que uma greve sem
piquetes não dá resultado.
Desta vez ninguém se riu. Os homens soltaram uma espécie de
grunhido, mas sem sombra de cólera.
Mac olhou nervosamente para o companheiro e disse, baixinho: —
Isto não me está a agradar. Esta malta não está estimulada. Oxalá
aconteça depressa qualquer coisa que os enfureça. Caso contrário, vai
tudo ao ar.
A coluna irregular entrou na cidade e seguiu pelos passeios. Os
homens tinham-se calado e alguns pareciam envergonhados. Os
habitantes observavam-nos através das janelas e as crianças que
brincavam nos jardins olhavam, até os pais as levarem para casa e
fecharem as portas. Havia muito poucos cidadãos nas ruas. As
motocicletas da Polícia seguiam tão devagar que, de vez em quando, os
motociclistas tinham de pôr os pés no chão, para se equilibrarem.
Conduzido pelo carro do xerife, o cortejo percorreu ruas secundárias até
chegar ao pátio dos caminhos-de-ferro. Os homens pararam no caminho
de passagem, pois a linha estava guardada por vinte indivíduos
armados com caçadeiras e granadas de gás lacrimogêneo.
Dakin estacionou junto ao passeio e os homens foram-se espalhando
silenciosamente, voltados para a fila de polícias especiais. Dakin e
London percorreram a densa frente, para um lado e para o outro, dando
instruções. Os homens não deviam iniciar qualquer recontro com a
Polícia, se lhes fosse possível evitá-lo. Primeiro falava-se e mais nada.
Defronte deles estavam paradas filas de vagões frigoríficos.
— Talvez parem o comboio de mercadorias lá mais em cima e
desembarquem os tipos. — disse Jim a Mac — Nesse caso não teremos
possibilidade de comunicar com eles.
— Mais tarde, talvez fossem capazes de fazer isso, mas agora creio
que lhes interessa uma confrontação. Imaginam que conseguem
assustar-nos e levar-nos a desistir. Quem me dera que o comboio
chegasse depressa! A espera é um desastre para tipos como os nossos,
que se assustam e enervam quando têm de esperar.
Entretanto, um grupo de homens sentara-se no passeio. Ouvia-se um
murmúrio de conversas em voz baixa. Os homens, apertados uns contra
os outros, estavam como que encurralados, com os guardas da via
férrea de um lado e os motociclistas da Polícia e os ajudantes de xerife
do outro. Talvez por isso, mostravam-se nervosos e constrangidos. Os
ajudantes do xerife agarraram nas espingardas com as duas mãos, à
frente do corpo.
— Os tiras também estão acagaçados. — disse Mac.
London tranquilizou um grupo de homens: — Eles não disparam. Não
se podem arriscar a disparar.
Alguém gritou: — Aí vem ele!
Ao longe, o braço do semáforo estava levantado. Via-se uma nuvem
de fumo acima das árvores e os carris vibravam com a aproximação das
rodas do comboio. Os homens que estavam sentados no passeio
levantaram-se e esticaram o pescoço, na direção de onde vinha a
composição.
— Mantenham os rapazes nos seus lugares! — gritou London aos
chefes de brigada.
Já se via a locomotiva e os vagões, a avançar lentamente, e pernas
dependuradas na soleira das portas abertas. A máquina aproximou-se
devagar, a expelir jatos de vapor sob as rodas. Entrou num desvio e os
travões funcionaram. As carruagens chocaram umas com as outras e a
locomotiva parou, ofegante.
Do outro lado do caminho de passagem, com a rua de permeio, havia
uma enfiada de lojas e restaurantes velhos, com quartos alugados nos
andares superiores. Mac olhou por cima do ombro. As janelas dos
quartos estavam cheias de cabeças de homens, a espreitar. — Não me
agrada o aspecto daqueles tipos. — confessou.
— Porquê?
— Não sei, Jim. Deviam ver-se também algumas mulheres, mas não
se vê nem uma. Havia fura-greves sentados na soleira das portas dos
vagões fechados e atrás deles avistavam-se mais. Olhavam em frente,
inquietos, e não esboçavam qualquer movimento para saltar do
comboio.
London avançou, avançou tanto que o cano da caçadeira de um dos
guardas se virou para a frente e visou-lhe a barriga, ao mesmo tempo
que o guarda recuava um passo. A locomotiva ofegava ritmadamente,
como um grande animal cansado. London pôs as mãos em concha na
boca e a sua voz profunda fez-se ouvir: — Venham, rapazes! Não lutem
contra nós! Não ajudem os polícias!
A sua voz foi abafada por uma descarga de vapor e um jorro branco
saiu do flanco da locomotiva e abafou a voz de London e todos os outros
sons, exceto o seu próprio grito sibilante. A coluna de grevistas moveu-
se, impacientemente alargada no meio, na direção dos guardas. Os
canos das caçadeiras apontaram, num movimento que abarcava as
fileiras completas. Os rostos dos guardas retesaram-se, tensos mas a
ameaça deteve a coluna. O vapor continuou a jorrar, sibilante, enquanto
a sua pluma branca subia no ar e se desfazia.
À porta de um dos vagões estabeleceu-se uma certa confusão. Um
homem esgueirou-se por entre os furas sentados e saltou para o chão.
Mac gritou ao ouvido de Jím: — Jesus é o Joy!
A figura disforme, quase anã, do indivíduo voltou-se para a porta e
para os homens, a agitar violentamente os braços. O vapor continuava a
silvar. Os homens da porta saltaram para o chão e pararam diante do
frenético e agitado Joy. que se virou e acenou com os braços na direção
dos grevistas. O seu rosto deformado pela pancada estava contorcido.
Cinco ou seis homens colocaram-se atrás dele e o grupo avançou,
direito aos grevistas. Os guardas viraram-se de lado, a tentar
nervosamente vigiar uns e outros.
Foi então que, acima do barulho do vapor, soaram nítidos três
estampidos. Mac olhou para trás, para as lojas. Cabeças e espingardas
desapareciam rapidamente das janelas do quarto, que se fechavam.
Joy parara, de olhos muito abertos. Escancarou a boca e uma golfada
de sangue rolou-lhe pelo queixo e pela camisa abaixo. Os seus olhos
percorreram, num espanto louco, a multidão de homens. Os guardas
olharam, incrédulos, para o corpo que estrebuchava no chão. De súbito
os jatos de vapor pararam e o silêncio caiu sobre os homens como uma
vaga sonora. A coluna de grevistas estava imóvel e o rosto dos homens
tinha uma expressão estranha, como se estivessem a sonhar. Joy
soergueu-se apoiado nos braços como um lagarto, e voltou a cair. Um
regatinho espesso, de sangue, corria pelas pedras miúdas do caminho.
Desencadeou-se entre os homens um movimento pesado, estranho.
London avançou, como se fosse um boneco de pau, e os homens
avançaram também. Estavam hirtos. Os guardas apontaram as armas,
mas eles continuaram a avançar, cegos e alheios. Os guardas andaram
rapidamente de lado, para saírem do caminho, pois as portas do vagão
estavam a vomitar homens silenciosos, que se aproximavam devagar.
As extremidades da coluna encurvaram-se e, lentamente, fecharam-se
num círculo em redor do morto, como carneiros à volta de um núcleo.
Jim agarrou-se, a tremer, ao braço de Mac, que se virou para ele e
murmurou: — Fez a primeira coisa autêntica, útil, da sua vida. Pobre
Joy! Ficaria tão contente, se soubesse! Olha para os tiras, Jim. Larga-me
o braço e não percas a tramontana. Olha para os tiras.
Os guardas estavam assustados. Eram capazes de impedir zaragatas
e amotinações, mas aquele movimento lento e silencioso de homens de
olhos arregalados como sonâmbulos, aterrava-os. Mantiveram-se nos
seus postos, mas o carro do xerife arrancou e os motociclistas foram-se
esgueirando imperceptivelmente na direção das suas motos.
Entretanto, os fura-greves tinham desembarcado. Alguns deles
esgueiraram-se por entre os vagões e as rodas e desapareceram,
apressados, do outro lado, mas a maioria aproximou-se e comprimiu-se
no ponto onde Joy jazia.
Mac viu Dakin parado na franja exterior da multidão. Pela primeira vez
os seus olhinhos deslavados estavam imóveis e olhava a direito, em
frente. Foi ao seu encontro e disse-lhe: — É melhor metê-lo na
camioneta e levá-lo para o acampamento.
Dakin virou-se devagar e disse: — Não lhe podemos tocar. Os tiras
terão de o levar.
— Porque não perseguiram os tiras aqueles tipos das janelas? —
perguntou-lhe Mac, ríspido. — Olhe para eles. Estão mortos de medo. Já
lhe disse que temos de o levar. Temos de nos servir dele para estimular
os nossos homens, para os manter unidos. Isto os unirá, isto os fará
lutar.
— Você é um pulha insensível. — acusou o outro, com uma careta —
Não é capaz de pensar em mais nada senão na greve?
— Dakin, este homenzinho foi abatido ao tentar ajudar-nos. —
interveio Jim — Quer impedi-lo agora de o fazer?
Os olhos de Dakin passaram lentamente de Mac para Jim e depois de
novo para Mac.
— Que sabem vocês acerca do que ele estava a fazer? Não ouvi
nada além daquele maldito vapor.
— Conhecíamos. — respondeu Mac. — Era nosso amigo.
Os olhos de Dakin encheram-se de antipatia. — Era seu amigo e
agora não o deixam descansar, querem utilizá-lo. Não passam de uma
parelha de pulhas insensíveis.
— Que sabe você disso? — gritou Mac — O Joy não queria
descansar, o Joy queria trabalhar e não sabia como. — Sua voz ficou
histericamente esganiçada. — E agora tem uma possibilidade de
trabalhar e você quer impedi-lo!
Um certo número de homens voltara-se na direção das vozes, com
uma curiosidade vaga. Dakin fitou um momento Mac e depois disse
apenas: — Venham.
Abriram caminho, à cotovelada e ao empurrão, através da massa
compacta de homens, que só relutantemente se afastou.
— Vamos, rapazes, deixem-nos passar! — gritava Mac — Temos de
levar este pobre diabo daqui.
Os homens abriram uma estreita passagem, empurrando
violentamemte para trás.
London juntou-se ao grupo e ajudou a abrir caminho. Joy estava de
fato morto. Quando conseguiram um pequeno espaço para se mexer,
London virou-o e começou a limpar-lhe a terra suja da boca. Joy tinha
uma expressão manhosa nos olhos abertos e um sorriso terrível
distendia-lhe os lábios.
— Não faça isso, London. — ordenou Mac — Deixe-o como está,
exatamente como está.
London levantou o frágil corpo nos braços. Joy parecia muito
pequeno, encostado ao forte peito de London. Desta vez abriram
facilmente caminho. London avançou e os homens formaram uma
coluna tosca e seguiram-no.
O xerife encontrava-se ao lado da reluzente camioneta verde de
Dakin, cercado pelos seus ajudantes. London parou e os homens que o
seguiam pararam também.
— Quero esse corpo. — disse o xerife.
— Não, não o terá.
— Vocês abateram um fura-greves e responderão por isso. Quero
esse corpo, para o juiz de instrução.
Os olhos de London brilharam, vermelhos, mas ele limitou-se a dizer:
— O senhor conhece os tipos que mataram esse homenzinho, o senhor
sabe quem foi. Tem leis e não as cumpre.
A turba escutava silenciosa.
— Já lhe disse que quero esse corpo.
— Não compreende? — perguntou London, em tom de queixume —
Não compreende que se não se piram depressa daqui para fora serão
mortos? Não é capaz de compreender isso? Não sabe quando não pode
ir mais longe?
Da multidão subiu como que um silvo de respiração libertada.
— Isto não fica assim! — ameaçou o xerife, mas recuou e os seus
ajudantes imitaram-no.
A multidão rugiu, mas tão docemente que mais pareceu um gemido.
London depositou Joy na camioneta, subiu e levantou o corpo até o
encostar à parte de trás da cabina.
Dakin ligou o motor, deu a volta em marcha-atrás e meteu pela rua
acima, seguido pela multidão entorpecida e ameaçadora. Tudo em
silêncio. Os passos pesados dos homens pareciam abafados.
Desta vez os motociclistas não ladearam a estrada. Ruas e estradas
estavam desertas ao longo de todo o trajeto. Mac e Jim caminhavam um
pouco ao lado da camioneta.
— Foram vigilantes, Mac?
— Foram. Mas desta vez exageraram. Correu-lhes tudo mal. Aquele
vapor... Se os nossos tivessem ouvido melhor os tiros, provavelmente
teriam desatado a fugir. Mas o barulho da descarga do vapor era muito
forte... E terminou tudo muito depressa, os nossos não tiveram tempo de
se assustar. Não há dúvida, desta vez cometeram um erro.
Continuaram a caminhar vagarosamente, ao lado da coluna de
homens.
— Mac, quem diabo são afinal esses vigilantes? Que gênero de
indivíduos são?
— São a escória mais reles de qualquer cidade. São os mesmos que
queimaram as casas de velhos alemães, durante a guerra. São os
mesmos que lincham negros. Gostam de ser cruéis. Gostam de fazer
mal às pessoas, mas dão-lhe sempre um nome bonito: patriotismo ou
defesa da Constituição. Não passam porém, sempre, dos velhos
torturadores de negros em ação. Os proprietários utilizam-nos, dizem-
lhes que têm de proteger o povo dos vermelhos, o que lhes permite
incendiar casas e torturar e espancar pessoas impunemente, sem
qualquer perigo. Aliás, é só isso que eles querem fazer. Coragem não
têm nenhuma. Disparam escondidos ou atacam um homem quando são
dez contra um. Acho que devem ser a pior escumalha do mundo. — os
seus olhos procuraram o corpo de Joy, na camioneta — Durante a
guerra, havia na minha cidade um alemãozinho gordo, alfaiate, e uma
quadrilha desses nojentos patriotas, uns cinquenta, incendiaram-lhe a
casa e fizeram-no em papas à porrada. São uns grandes valentes esses
vigilantes! Não há ainda muito tempo, dispararam balas traçadoras para
um depósito de petróleo e provocaram assim um incêndio num
dormitório. Nem sequer tiveram a coragem de o fazer com um fósforo.
A coluna marchava através do campo, levantando grande poeira. Os
homens despertavam lentamente do sonho. Falavam em voz baixa e
arrastavam pesadamente os pés.
— Pobre Joy! — exclamou Jim — Era um bom homenzinho. Tinha
levado tanta pancada... Lembrava-me o meu velho, sempre danado.
Mac repreendeu-o: — Não tenhas pena do Joy. Se ele soubesse o
que fez, estaria todo contente e arrogante. O Joy sempre desejou
comandar pessoas, e agora vai fazê-lo, ainda que seja num caixão.
— E os furas, Mac? Veio um magote deles conosco.
— Sim, veio um magote deles conosco, mas muitos piraram-se. E
alguns dos nossos também. Temos mais ou menos o mesmo número
com que partimos. Não os viste meterem-se debaixo do comboio e
fugirem? Olha para estes tipos. Estão a acordar. É como se os tivessem
anestesiado com gás, durante um bocado. Não há tipo de homens mais
perigoso.
— Os tiras também o perceberam.
— Claro que perceberam. Quando uma multidão não faz barulho,
quando se limita a avançar de rosto inexpressivo, os polícias sabem que
é altura de se afastarem do caminho.
Aproximavam-se da propriedade de Anderson.
— Que fazemos agora, Mac?
— Bem, tratamos do funeral e começamos a fazer piquetes. A coisa
agora assentará. Eles trarão furas em caminhões.
— Ainda pensas que seremos vencidos, Mac?
— Não sei. Este vale está organizado. E como, meu Deus! Aliás não
é muito difícil consegui-lo quando um pequeno punhado de homens
controla tudo: terra, tribunais e bancos. Podem cortar o crédito, arranjar
maneira de meter um tipo na cadeia e subornar a torto e a direito.
A camioneta de Dakin parou ao fim da fila de carripanas e estacionou
em marcha-atrás, no seu lugar costumado. Os guardas do acampamento
acorreram e a coluna dos homens que regressavam desfez-se e
misturou-se com eles. Formaram-se grupos para ouvir contar e recontar
a história. O Dr. Burton correu para a camioneta de Dakin e London
levantou-se pesadamente. A frente da sua larga camisa azul estava
manchada com o sangue de Joy. Burton lançou um olhar ao cadáver e
perguntou: — Mataram-no, hem?
— Nós o trouxemos. — respondeu London.
— Levem-no para a minha tenda, para o examinar. — pediu o médico.
De súbito, ouviu-se atrás das tendas um grito rouco, prolongado, e os
homens viraram-se todos e ficaram como que petrificados.
— Estão a matar um porco. — explicou o médico — Um dos carros
trouxe um porco vivo. Levem o cadáver para a minha tenda.
London inclinou-se, fatigado, e pegou novamente em Joy, um grupo
de homens seguiu-o e ficou reunido à volta da grande tenda. Mac e Jim
entraram com o médico. Observaram silenciosamente, enquanto Burton
desabotoava a camisa, que o sangue tornara tesa e revelava uma ferida
no peito.
— Foi isto. — murmurou o médico — Era mortal.
— Reconhece-o, doutor?
Burton olhou com mais atenção para o rosto contorcido e respondeu:
— Acho que já o tinha visto antes.
— Claro que tinha. É o Joy. O doutor consertou-lhe praticamente
todos os ossos do corpo.
— Bem, desta vez não tem conserto. Valente homenzinho. Têm de
enviar o cadáver para a cidade, o juiz de instrução precisa dele.
— Se fizermos isso eles enterram-no, escondem-no. — disse London.
— Podemos mandar alguns tipos acompanhá-lo, para termos a
certeza de que nos será devolvido. Farão piquetes na morgue até o
corpo lhes ser entregue. Os malditos vigilantes cometeram um erro e a
esta hora já se aperceberam disso.
Dakin levantou a aba da grande tenda e entrou.
— Estão a fritar carne de porco. — informou — Não há dúvida de que
esquartejaram o animal muito depressa.
— Dakin, pode mandar os rapazes construir uma espécie de
plataforma? — perguntou Mac — Precisamos de um lugar para o
caixão... e também de um lugar para falar.
— Quer dar espetáculo, não?
— Acertou. Você está, digamos, está enganado a meu respeito,
Dakin. De que armas dispomos para lutar? Pedras e paus. Até os índios
tinham arcos e flechas. Se nós, porém, arranjarmos uma armazinha para
nos defendermos, eles chamam a tropa para deter a revolução. Temos
muitíssimo poucas coisas com que lutar e somos obrigados a utilizar
tudo quanto podemos. Este homenzinho era meu amigo. Pode ter a
certeza de que ele queria ser utilizado de todas as maneiras em que
pudéssemos utilizá-lo. Temos de o utilizar. — fez uma pausa e
perguntou: — Não compreende, Dakin? Conquistaremos uma grande
quantidade de gente para o nosso lado se fizermos um funeral publico.
Temos de influenciar a opinião pública.
London acenava com a cabeça lentamente. — O tipo tem razão,
Dakin.
— Pois sim, London se também o queres. Suponho que alguém terá
de fazer um discurso, mas não contem comigo.
— Fá-lo-ei eu, se for preciso! — gritou London — Vi este homenzinho
avançar para nós, vi-o ser atingido... Farei eu o discurso se tu não o
quiseres fazer.
— Lembra Cock Robin. — murmurou Burton.
— O quê?
— Nada, estava a falar comigo. Agora é melhor levarem o corpo e
entregarem-no ao juiz de instrução.
—Mandarei um grupo dos meus próprios homens, para não o
abandonarem. — disse London.
Jim chamou de fora da tenda: — Vem cá, Mac. Anderson quer falar
contigo.
Mac saiu apressado. Anderson estava ao lado de Jim e parecia velho
e cansado.
— Você fez um jogo do Inferno! — gritou ferozmente ao ver Mac.
— Que se passa Mr. Anderson?
— Disse que nos protegeria, não disse?
— Claro que disse. Os rapazes se encarregam disso. Mas que
aconteceu?
— Eu digo-lhe o que aconteceu: um grupo de homens deitou fogo ao
restaurante do Al, a noite passada. Depois agrediram o meu filho e
partiram-lhe um braço e seis costelas. Deitaram-lhe fogo ao restaurante,
deixaram-no arder por completo!
— Jesus! Não pensei que fizessem tal coisa...
— Você não pensou, mas isso não os impediu de o fazerem.
— Onde está Al, Mr. Anderson?
— Está em casa. Tive de o trazer do hospital.
— Vou chamar o doutor, para o ir ver.
— Mil e oitocentos dólares! — gritou o velho — Ele arranjou algum,
eu emprestei-lhe algum... e depois apareceram vocês e agora não tem
nada!
— Lamento muitíssimo. — murmurou Mac.
— Claro que lamenta, mas isso não impede que o restaurante do Al
tenha ardido, isso não impede que lhe tenham partido o braço e as
costelas! E que estão a fazer para me proteger? A seguir deitam-me fogo
à casa!
— Mandaremos guardas para a sua casa.
— Qual guardas, qual carapuça! Para que serve esta corja de vadios?
Maldita a hora em que os deixei vir para aqui! Serão a minha ruína! — a
voz esganiçara-se-lhe e os seus velhos olhos estavam molhados — Fez
um jogo do Inferno foi o que você fez. É o resultado de nos metermos
com um bando de malditos radicais.
Mac tentou acalmá-lo: — Vamos ver o Al. Ele é um tipo formidável e
eu quero vê-lo.
— Está uma desgraça. Também lhe deram pontapés na cabeça.
Mac foi-se afastando lentamente com ele, pois começavam a acorrer
homens, atraídos pela voz esganiçada do velho.
— Porque nos censura? Não fomos nós que fizemos isso, foram os
seus simpáticos vizinhos.
— Pois foram, mas não teria acontecido nada se não nos tivéssemos
metido com vocês.
— Escute, sabemos que levou um soco nos dentes. — replicou Mac,
já irritado — Tipos insignificantes como você e eu estão constantemente
a levá-los. Mas nós estamos a tentar conseguir que isso acabe, que
tipos como você não levem murros nos dentes!
— Aquele restaurante custou mil e oitocentos dólares! E eu nem
sequer posso ir à cidade sem que os miúdos me atirem pedras. Vocês
arruinaram-nos.
— Que pensa o Al do que aconteceu?
— Desconfio que o Al também é vermelho como o próprio Inferno! As
únicas pessoas contra quem está furioso são os homens que fizeram o
trabalho.
— O Al tem uma boa cabeça, vê as coisas como deve ser. De
qualquer maneira, eles correriam consigo. Agora, se for expulso, terá um
grande grupo de homens atrás de si, homens que não esquecerão o que
está a fazer por eles. Esta noite colocamos guardas à volta da sua casa.
Vou-lhe mandar o médico daqui a bocadinho, ver o Al.
O velho virou-lhe as costas, cansado, e foi-se embora. O fumo dos
fogões ferrugentos pairava, baixo, sobre o acampamento. Os homens
tinham começado a deixar-se atrair pelo cheiro da carne de porco que
estava a fritar.
Mac seguiu com o olhar o vulto de Anderson que se afastava e
perguntou: — Que sensação te causa agora seres membro do Partido,
Jim? É formidável quando lemos a tal respeito... romântico. As damas
gostam de se levantar e palrar acerca da “classe dirigente” e do
“trabalhador explorado”. É um fardo pesado Jim. Aquele pobre diabo!
Aos seus olhos, o restaurante afigura-se maior do que o mundo. E eu
sinto-me responsável pelo que aconteceu. Irra, julguei que te trazia
comigo a fim de te ensinar, de te dar confiança e para aqui estou a
desperdiçar o meu tempo com lamúrias! Pensei que ia animar-te,
encorajar-te, e em vez disso... Com mil raios, é terrivelmente difícil
conservar os olhos fixos no principal, no grande fim em vista! Por que
demônio não dizes nada?
— Não me dás oportunidade de dizer.
— Creio que tens razão. Diz qualquer coisa agora, ainda. Eu só
consigo pensar no pobre Joy abatido a tiro. Ele não tinha muito juízo,
coitado, mas também não tinha medo de nada.
— Era um homenzinho simpático.
— Lembraste do que ele disse? Ninguém o impediria de chamar
filhos da puta a filhos da puta! Gostaria de não sentir, às vezes, esta
sensação de desamparo, de estar perdido.
— Um pouco de carne de porco frita talvez ajude.
— Com os demônios, tens razão! Comi pouco esta manhã. Vamos.
Uma furgoneta comprida apareceu na estrada e parou defronte da
fila de carros. Um homenzinho todo agitado desceu do lugar e entrou no
acampamento.
— Quem manda aqui? — perguntou a Mac.
— Dakin. Está naquela tenda grande.
— Sou o juiz de instrução e quero o cadáver.
— Onde estão os seus guarda-costas?— inquiriu Mac.
— Para que preciso de guarda-costas? — disse o homenzinho, de
peito inchado como um peru. — Sou o juiz de instrução. Onde está o
cadáver?
— Naquela grande tenda além. Espera-o.
— Porque não o disse já? — e afastou-se, puf, puf. como uma
pequena locomotiva.
— Graças a Deus que não temos de lutar com muitos como ele. —
observou Mac, a suspirar — O homenzinho é valente, veio sozinho. É
uma espécie de Joy à sua maneira.
Continuaram o seu caminho na direção dos fogões. Passaram dois
homens transportando o cadáver de Joy, seguidos pelo desembaraçado
e empertigado juiz de instrução.
Alguns homens afastavam-se dos fogões com bocados gordurentos
de carne de porco frita nas mãos. Limpavam a boca às mangas. As
chapas dos fogões estavam cobertas de pequenos nacos de carne
rechinante.
— Que bem cheira! — exclamou Mac. — Vamos arranjar um bocado.
Estou esganado de fome.
Os cozinheiros entregaram-lhes bocados mal cortados e mal fritos de
carne e eles afastaram-se, a comer.
— Come só a parte de fora. — recomendou Mac — O doutor disse
que não devíamos deixar os homens comer carne de porco crua pois
adoeceriam todos.
— Eles têm tanta fome que não podem esperar.
Capítulo 10
A apatia abatera-se sobre os homens, que se sentavam de olhos
parados e fixos à sua frente. Pareciam não ter sequer energias para
falar. Entre eles sentavam-se as mulheres sujas e descontentes.
Estavam todos indiferentes e macambúzios, mastigavam
pensativamente a carne e quando ela se acabava limpavam as mãos ao
vestuário. A sua apatia e o seu descontentamento impregnavam o ar.
Mac, ao percorrer o acampamento com Jim sentiu-se também
descontente. — Eles deviam ter qualquer coisa que fazer. — queixou-se
— Não interessa o quê, Seja o que for. Não podemos permitir que
estejam para aí sentados, desta maneira. Assim a greve escapa-nos,
foge-nos por entre os dedos. Mas que raio têm eles? Viram matar um
homem esta manhã, isso devia mantê-los estimulados. Pouco passa do
meio-dia e já estão para aí espapaçados. Temos de os pôr a fazer
qualquer coisa. Repara nos olhos deles, Jim.
— Não estão a ver nada, têm apenas os olhos fixos em frente.
— Estão a pensar neles próprios. Cada um desses homens está a
pensar nas ofensas que lhe têm sido feitas ou no dinheiro que ganhou
durante a guerra. Tal qual como o Anderson. Estão a ir-se abaixo.
— Façamos qualquer coisa, vamos obrigá-los a se mexer. O que é
preciso fazer?
— Não sei. Se pudéssemos convencê-los a abrir um buraco daria
tanto resultado como qualquer outra coisa. Se conseguirmos levá-los a
empurrar seja o que for, ou levantar seja o que for, ou andar numa
direção, já terá alguma utilidade e a diferença entre uma coisa e outra
será pequena. Desatarão à porrada, uns aos outros se não os
obrigamos a mexer-se. Não tardarão a tornar-se beras.
London, que ia a passar, apressado, ouviu as últimas palavras e
perguntou: — Quem é que se tornará bera?
— Olá, London. Estávamos a falar destes tipos. Estão a ficar
desmoralizados.
— Bem sei. Trabalho com eles há tanto tempo que me basta olhá-los
para perceber.
— Estava a dizer ao Jim que não tardarão a lutar uns com os outros
se não os pusermos a trabalhar.
— Já começaram. O grupo que deixamos mo acampamento, esta
manhã, armou zaragata. Um dos tipos tentou atirar-se à mulher de outro,
este chegou e espetou-lhe uma tesoura. O doutor tratou-o. Creio que
podia ter-se esvaído em sangue e morrido.
— Estás a ver, Jim? Eu bem te disse. Escute, London, o Dakin está
chateado comigo, não quer ouvir nada do que lhe digo. Mas a você
ouvirá. Temos de fazer estes caras se mexerem antes de arranjar
encrenca. Vamos fazê-los andar em círculo, abrir buracos e depois tapá-
los... Seja o que for, é indiferente.
— Bem sei. E se organizássemos piquetes?
— Seria excelente, embora não me pareça que já estejam muitos
furas a trabalhar.
— Que nos importa isso, se obrigar os tipos a levantar o eu?
— Você tem cabeça, London. Veja se convence o Dakin a mandá-los
em grupos de cinquenta, mais ou menos, e em direções diferentes.
Recomendem-lhes que se mantenham nas estradas e que se virem
colher maçãs o impeçam.
— Esteja descansado. — respondeu London, que lhes voltou as
costas e partiu na direção da tenda de Dakin.
— Mac. disseste que eu poderia ir com os piquetes...
— Bem, preferia que ficasses comigo.
— Eu quero participar, Mac.
— Pois sim. vai com um dos grupos. Mas não te afastes deles, Jim.
Sabes muito bem que somos homens marcados, aqui. Não permitas que
te apanhem isolado.
Viram Dakin e London sair da tenda, este último a falar muito
depressa.
— Sabes uma coisa? — perguntou Mac — Creio que cometemos um
erro ao dar a chefia ao Dakin. Está muito ligado à sua camioneta, à sua
tenda e aos seus métodos. É demasiado cuidadoso. O London teria sido
melhor escolha; não tem nada a perder. Conseguiremos que os rapazes
corram com o Dakin e elejam o London? Creio que gostam mais dele. O
Dakin tem bens a mais. Reparaste no seu fogão articulado? Nem sequer
come com os rapazes! Talvez seja melhor começarmos a trabalhar no
sentido de o substituirmos pelo London. Pensei que o Dakin era calmo,
frio, mas o gajo é gelado. Precisamos de alguém capaz de agitar um
bocado os rapazes, de os inflamar.
— Anda. — pediu Jim — O Dakin está a formar os piquetes.
Jim juntou-se a um piquete de cerca de cinquenta homens. Meteram
por uma estrada numa direção oposta à da cidade. Praticamente assim
que começaram a andar, a apatia começou a abandoná-los. O grupo
irregular foi andando, em passo rápido e firme.
O comando pertencia a Sam, o homem da cara magra, o qual
recomendou aos outros enquanto caminhavam: — Apanhem pedras.
Encham bem as algibeiras. E não se esqueçam de ir olhando pelas
alamedas abaixo, entre os renques.
Mas os pomares pareciam desertos. Os homens começaram a cantar,
desafinadamente:
— Era Natal na ilha E os forçados que lá estavam...
Mexiam os pés ritmadamente. Marcharam através da estrada
interseccional rodeados por uma nuvem de poeira cinzenta.
— Como em França. — observou um homem — Se houvesse lama
seria exatamente como em França.
— Deixa-te de tretas, tu não estiveste em França.
— Estive, sim. Estive lá cinco meses.
— Não andas como um soldado.
— Não quero andar como um soldado. Fiquei farto disso. Fui atingido
por estilhaços, fica sabendo.
— Onde raio estão os furas?
— Parece que conseguimos detê-los. Não vejo ninguém a trabalhar.
Esta greve já está no papo.
— Claro que está ganha, rapaz. — resmungou Sam — Bastou-te
sentar o pandeiro no chão para a ganhares, não foi? Não seja idiota.
— Bem, esta manhã metemos um cagaço dos diabos aos tiras. Não
os vês por aí, pois não?
— Ainda verás muitos, antes de te livrares desta, amigo. — insistiu
Sam — És como todos os outros apanhadores eventuais... Neste
momento és rei do Inferno, daqui a bocadinho começas com dores de
barriga e quando mal nos precatamos piras-te. Respondeu-lhe um coro
irritado e discordante.
— É assim que pensas, espertalhão? Manda-nos fazer qualquer
coisa e verás.
— Não tens o direito de falar desse modo. Que raio fizeste tu, alguma
vez, para te dares esses ares?
Sam cuspiu para o chão, antes de responder: — Eu digo-te o que fiz.
Estive em São Francisco, na Quinta-Feira Sangrenta. Atirei um tira do
cavalo abaixo e fui um dos tipos que entraram na oficina de carpinteiro e
se apoderaram dos bastões que os tiras tinham mandado fazer. Tenho
aqui um deles, como recordação.
— Isso é uma grandíssima mentira. Não és estivador, és um
miserável apanhador de fruta.
— Claro que sou apanhador de fruta. E sabes por quê? Porque estou
na lista negra de todas as companhias de navegação do maldito país. Aí
tens! — Sam falava orgulhosamente e as suas palavras foram acolhidas
com silêncio — Já assisti a mais encrenca do que vocês, reles vadios,
jamais verão. — o seu desdém subjugou-os — Agora tratem de estar de
olhos nessas alamedas todas e de acabar com a conversa.
Caminharam um bocado em silêncio.
— Olhem, caixotes!
— Onde?
— Ao fundo daquele renque, lá em casa do Diabo.
Jim olhou na direção apontada e gritou:
— Estão lá homens.
— Vamos, estivador, queremos ver-te agir. — disse um homem.
— Acatarão as minhas ordens? — perguntou Sam, parado na
estrada.
— Claro que acataremos, se forem boas.
— Muito bem, então. Dominem-se. Não quero atirar-me para a frente
à doida e depois vê-los desatar a fugir como se levassem fogo no rabo,
quando o barulho começar. Vamos e não se afastem uns dos outros.
Saíram da estrada, atravessaram uma funda vala de irrigação e
meteram pela alameda, entre as grandes árvores. Quando se
aproximaram da pilha de caixotes começaram a descer homens das
árvores e a juntarem-se, nervosos, num grupo.
Junto dos caixotes encontrava-se um conferente que, quando o
piquete se aproximou, tirou uma caçadeira de dois canos de um caixote
e avançou alguns passos na direção dos homens.
— Querem trabalhar? — gritou-lhes.
Respondeu-lhe um coro de gritos trocistas.
Um homem levou os indicadores à boca e assobiou, nervosamente.
— Saiam desta terra. — ordenou o conferente — Não têm nenhum
direito de estar aqui.
Os grevistas avançaram lentamente. O conferente recuou para a
pilha de caixotes, onde os apanhadores se tinham reunido, nervosos e
assustados.
— Vocês parem aqui. — ordenou Sam, por cima do ombro, enquanto
ele próprio avançava mais alguns passos.
— Escutem, trabalhadores, passem para o nosso lado. Não nos
apunhalem pelas costas, juntem-se a nós.
Foi o conferente que lhe respondeu: — Leve os seus homens desta
terra ou mandá-lo-ei
correr à força.
Os gritos trocistas recomeçaram, assim como os assobios.
Sam virou-se, irritado, e ordenou: — Calem-se, seus sacanas sem
juízo! Acabem com a música.
Os apanhadores olharam à sua volta, à procura de uma via de fuga, e
o conferente tranquilizou-os: — Não se deixem assustar por ele,
homens. Têm o direito de trabalhar, se quiserem.
Sam insistiu: — Escutem, rapazes, damo-lhes esta oportunidade de
regressarem conosco.
— Não consintam que lhes dêem ordens. — gritou o conferente, em
voz mais forte — Eles não podem dizer a um homem o que deve ou não
deve fazer.
Os apanhadores permaneceram imóveis.
— Vêm? — perguntou-lhes Sam.
Não responderam e Sam começou a avançar lentamente para eles.
O conferente avançou e avisou: — Esta arma está carregada.
Disparo, se não se vão embora.
— Não dispara nada, amigo. — respondeu-lhe Sam, docemente, e
continuou a avançar — Poderia acertar num de nós, mas os restantes
davam-lhe cabo do canastro. — falava em voz baixa e desapaixonada.
Os seus homens avançavam também, três metros atrás dele. Sam parou
mesmo defronte do conferente. A espingarda tremia, apontada ao seu
peito. — Só queremos falar...
De súbito, Sam inclinou-se, mergulhou como um médio de futebol e
puxou os pés do conferente. A arma disparou e abriu um buraco no
chão. Sam virou-se, cravou os joelhos entre as pernas do conferente e
depois levantou-se, deixando-o no chão, a torcer-se e a gemer de dor.
Durante um segundo tanto os apanhadores como os grevistas se tinham
mantido imóveis. Os primeiros só tarde de mais se viraram para fugir. Os
homens atiraram-se a eles, a praguejar guturalmente. Os apanhadores
ainda lutaram durante alguns momentos, mas depois foram-se abaixo.
Jim, um pouco de lado, viu um apanhador libertar-se, como uma
enguia, e começar a correr. Apanhou um grande torrão e atirou-o com
força ao homem que, atingido nos rins, caiu. O grupo cercou-o, aos
pontapés e às pisadelas, enquanto o homem gritava, no chão. Jim
observou friamente o conferente, que tinha o rosto lívido de dor e coberto
de suor.
Sam libertou-se e saltou para os homens, que continuavam aos
pontapés e a saltar em cima dos furas. — Parem, malditos, parem! —
gritou-lhes, mas eles continuaram aos pontapés e a rugir, com os lábios
úmidos de saliva.
Sam pegou um caixote e o quebrou numa cabeça. — Não os matem!
— gritou — Não os matem!
A fúria dissipou-se tão depressa como começara. Os grevistas
afastaram-se das vítimas, a ofegar ruidosamente. Jim olhou sem emoção
para os dez homens que gemiam no chão e cujos rostos os pontapés
tinham tornado disformes. Aqui e ali via-se um lábio rasgado, pondo a
descoberto dentes e gengivas ensanguentadas. Um homem chorava
como uma criança. pois tinha um braço virado para trás, partido no
cotovelo. Agora que a fúria se dissipara, os grevistas estavam
agoniados, envenenados pela secreção das próprias glândulas da
cólera. Sentiam-se fracos. Um deles apertava a cabeça entre as mãos,
como se lhe doesse terrivelmente.
De súbito, um homem rodopiou sobre si mesmo, com um grito
sufocado. Ouviu-se um estampido, vindo do fundo da alameda, e
aparecerem cinco homens a correr, que paravam de vez em quando
para disparar. Os grevistas desataram a fugir, ziguezagueando entre as
árvores para não ficarem na linha de fogo.
Jim fugiu com eles, a gritar para si mesmo: “Não podemos aguentar
fogo! Não podemos aguentar fogo!” As lágrimas cegavam-no. Sentiu
como que uma pancada forte num ombro e cambaleou um pouco. O
grupo chegou à estrada e continuou a fugir, olhando para trás por cima
do ombro.
Sam corria atrás deles, ao lado de Jim. — Pronto, eles pararam! —
gritou.
Mas alguns dos homens continuaram a correr, num pânico cego, e
desapareceram no cruzamento da estrada. Sam alcançou os restantes.
— Acalmem-se. — gritou-lhes — Acalmem-se! Já ninguém os persegue.
— os homens pararam, trêmulos, na berma da estrada — Quantos
atingiram eles? — perguntou Sam.
Os fugitivos olharam uns para os outros e Jim respondeu: — Só vi um
tipo atingido.
— Bem, talvez não tenha sido nada de grave... Foi atingido no peito.
— olhou com mais atenção para Jim e indagou: — Que lhe aconteceu,
rapaz? Está a sangrar.
— Onde?
— Pelas costas abaixo.
— Devo ter chocado com algum ramo.
— Qual ramo, qual carapuça! — Sam baixou o casaco de cotim do
rapaz, no ombro. — Uma bala atravessou-lhe o ombro. Pode mexer o
braço?
— Posso. Mas sinto-o dormente.
— Creio que não atingiu nenhum osso. Foi apenas o músculo do
ombro. Deve ter sido uma bala de ponta de aço. Nem sequer sangra
muito. Vamos, rapazes, regressemos. Não tardarão a aparecer por aí
tiras aos magotes.
Estugaram o passo, pela estrada fora, e Sam ofereceu: — Se se sentir
fraco eu ajudo-o, rapaz.
— Estou bem. — tranquilizou-o Jim — Não aguentamos, Sam.
— Portamo-nos nobremente quando éramos cinco contra um. — disse
Sam, sarcástico — Deixamos os furas num estado lastimoso.
— Matamos alguns?
— Creio que não, embora alguns nunca mais voltem a ser os
mesmos.
— Foi horrível, não foi? Viu aquele tipo com o beiço rasgado?
— Eles cosem-lho. Tivemos de proceder assim, rapaz. não havia
outro remédio. Quando eles não nos dão ouvidos e não se juntam
conosco, a única coisa a fazer é assustá-los.
— Bem sei, não estou preocupado com eles.
Ouviram o silvo de uma sereia, ao longe, e Sam gritou: — Saltem para
a vala, rapazes, e deitem-se. Vêm aí os tiras.
Observou-os, enquanto se deitavam todos na funda vala de irrigação.
As motocicletas passaram, ruidosas, e atravessaram o cruzamento,
seguidas por uma ambulância. Os homens só levantaram a cabeça
depois de os veículos desaparecerem, para lá do cruzamento. Sam
levantou-se, ágil, e ordenou: —Vamos! Temos de nos safar depressa.
Seguiram a trote pela estrada fora. O sol punha-se e uma sombra
azulada envolvia tudo. Uma nuvem carregada avançou como um barco
na direção do sol e a sua orla escura tornou-se avermelhada, ao
aproximar-se dele. Os homens voltaram a saltar para a vala quando a
ambulância regressou. Os motociclistas passaram mais devagar, desta
vez, com os polícias a olharem ao longo dos caminhos entre as árvores.
Mas não revistaram a vala.
Os homens do piquete chegaram ao acampamento ao cair da noite.
As pernas de Jim tremiam-lhe e tinha fortes picadas no ombro, pois os
nervos despertavam depois do entorpecimento causado pela bala. Os
componentes do grupo dispersaram pelo campo.
Mac foi ao encontro de Jim e quando viu a sua palidez desatou a
correr.
— Que te aconteceu, Jim? Feriste-te?
— Não... isto é pouca coisa. O Sam diz que levei um tiro no ombro.
Não consigo ver a ferida e não me dói muito.
— Com mil raios, eu sabia que não te devia deixar ir! — praguejou
Mac, muito corado.
— Porquê? Não sou nenhuma flor de estufa.
— Pois não, mas se eu não tiver cuidado contigo talvez não tardes a
alimentar algumas. Anda mostrar isso ao doutor. Ele estava aqui há
bocadinho... Olha, vai ali! Doutor! — levaram Jim para uma tenda branca
— Esta acaba de chegar. — explicou Mac — O doutor vai utilizá-la como
hospital.
A escuridão outonal alastrava depressa, acelerada pela grande
nuvem preta que parecia crescer no lado ocidental do céu. Mac segurou
numa lanterna enquanto o médico afastava a camisa do ombro de Jim.
Burton lavou cuidadosamente o ferimento com água quente esterilizada,
e comentou:
— Felizardo. Uma bala de chumbo ter-lhe-ia espatifado o ombro.
Assim tem apenas um buraquinho aberto através do músculo. Vai senti-
lo um pouco emperrado, durante uns tempos. A bala entrou e saiu. — as
suas mãos hábeis limparam a ferida com uma sonda, pensaram-na e
prenderam a ligadura com adesivo. — Ficará bom, basta ter cuidado uns
dois ou três dias. — voltou-se para Mac e acrescentou: — Mais logo irei
ver o Al Anderson. Quer ir também?
— Claro que quero. Mas agora quero que o Jim beba uma pinga de
café. — meteu na mão do amigo uma lata cheia de café simples e pouco
apetecível. — Senta-te, anda. — puxou um caixote, sentou Jim nele e
estendeu-se no chão a seu lado. — Conta-me o que aconteceu.
— Atiramo-nos a uns furas. Os nossos deram-lhes pontapés de criar
bicho... deram-lhes pontapés na cabeça.
— Bem sei, Jim. — murmurou Mac, suavemente — É terrível, mas não
se pode fazer outra coisa se eles se recusam a passar para o nosso
lado. Temos de fazer isso. Também não é agradável matar um carneiro,
mas nós precisamos da carne. Que aconteceu, afinal?
— Surdiram de repente cinco homens a correr e aos tiros. Os nossos
fugiram como coelhos. Não aguentaram o fogo.
— E por que diabo haviam de aguentar, se só dispunham das mãos
nuas para se lhe opor?
— Praticamente nem dei por isso quando me atingiram. Um dos
nossos caiu; não sei se morreu, se não.
— Foi uma rica festa! Os outros grupos trouxeram cerca de trinta furas.
Não tiveram dificuldade nenhuma, convidaram-nos e eles vieram. —
estendeu o braço e tocou um momento na perna do amigo — Como vai
o ombro?
— Dói um bocadinho, mas não muito.
— Sabes uma coisa, Jim? Parece que vamos ter novo chefe.
— Correste com o Dakin, tratante?
— Não, mas ele já cá não está. O Dick mandou avisar que tinha um
carregamento de cobertores e o Dakin escolheu seis homens e foi
buscá-los, na sua reluzente camioneta. Um dos seis tipos conseguiu
pirar-se e veio contar o que se passou. Carregaram os cobertores e
iniciaram o caminho de regresso. Já deste lado da cidade encontraram
pregos espalhados na estrada e tiveram de parar para mudar um pneu.
Nessa altura apareceram uns doze homens armados, que os
mantiveram em respeito. Seis deles tomaram conta dos rapazes
enquanto os outros seis destruíam a camioneta do Dakin, espatifavam o
cárter e lhe deitavam fogo. O Dakin estava imobilizado com uma arma
apontada a ele. Ficou branco, depois azul e depois soltou um uivo como
um coiote e avançou para eles. Dispararam para uma perna, mas isso
não o deteve. Como não podia correr, rastejou, a espumar pela boca
como um cão raivoso... Endoideceu, endoideceu por completo! Creio
que amava a camioneta mais do que a tudo no mundo. O tipo que
conseguiu pirar-se e regressou, disse que foi horrível a maneira como
rastejou para eles e tentou morder-lhes. Rosnava como um cão... como
um cão raivoso. Depois apareceram uns polícias de trânsito e os
vigilantes sumiram-se. Os polícias levantaram o Dakin e levaram-no. O
rapaz que regressou e contou a história observou tudo do alto de uma
árvore. Diz que o Dakin mordeu a mão de um polícia e eles tiveram de
lhe enfiar uma chave de parafusos entre os dentes para lhos abrirem. E
julguei eu que aquele tipo não perderia a tramontana! Agora está no
xadrez e creio que os rapazes elegerão o London como seu substituto.
— Bem, ele a mim também me pareceu calmo. — observou Jim —
Ainda bem que nunca lhe toquei na camioneta.
Mac amontoou um pouco de terra no chão, com a mão, arredondou-a
e achatou-a em cima. — Estou um bocado preocupado, Jim. Hoje o Dick
não mandou provisões nenhumas, não tivemos notícias dele a não ser a
anunciar que tinha os cobertores. Estão a cozinhar o resto dos feijões
com ossos de porco, mas não há mais nada, a não ser aveia para umas
papas. É tudo quanto há para amanhã.
— Achas que terão apanhado o Dick?
Mac achatou mais o montinho de terra.
— O Dick é esperto como uma doninha, não creio que conseguissem
apanhá-lo. Mas também não sei o que se passa. Temos de arranjar
comida, pois assim que os rapazes tiverem fome, acabou-se.
— Talvez ele não tenha arranjado nada. Mandou o porco esta
manhã...
— Claro, e agora o porco está nos feijões. O Dick sabe o muito que é
necessário para alimentar esta malta e já deve ter organizado os
simpatizantes.
— Que tal se sentem agora os rapazes?
— Oh, estão melhores! Levaram uma injeção de vida, esta tarde. Sei
que é cedo, mas temos de fazer o funeral amanhã. Isso talvez os
estimule por uns tempos. — olhou para a entrada da tenda e exclamou:
— Olha para aquela nuvem!
Saiu e olhou para o céu que a nuvem densa e preta escurecia quase
por completo. Começou a soprar um ventinho agreste, que levantava
poeira, arrastava o fumo das fogueiras, fazia bater a lona das tendas e
sacudia as macieiras que rodeavam o acampamento.
— Parece uma nuvem de chuva. — disse Mac — Oxalá não chova!
Se chover, esta turma vai se afogar como ratos.
— Preocupas-te demasiado com o que poderá acontecer, Mac.
Passas a vida a preocupar-te. Estes homens estão habituados à vida ao
ar livre, uma pinga de chuva não os afetará. Preocupas-te demasiado.
Mac sentou-se outra vez no chão. — Talvez tenhas razão. Tenho
tanto medo de que a greve dê em nada que talvez imagine coisas. Já
participei em tantas greves que falharam!
— Pois sim, mas que te importa a ti que falhe? Solidificará a
agitação, como tu próprio disseste.
— Bem sei, bem sei... Creio que não teria importância se a greve
acabasse agora mesmo. Os rapazes nunca mais esquecerão como
mataram o Joy e também não esquecerão o episódio da camioneta do
Dakin.
— Estás a ficar como uma velha, Mac.
— Que queres, é a minha greve... Quero dizer, sinto que é minha. Não
quero vê-la ir por água abaixo, agora.
— Não irá, Mac.
— Não? Que sabes tu a esse respeito?
— Esta manhã estive a pensar... Leste alguma coisa de História,
Mac?
— Um bocadinho, na escola. Porquê?
—Lembraste como os Gregos venceram a batalha de Salamina?
— Talvez tenha sabido como foi, mas não me lembro.
— Os gregos estavam aqui, com alguns barcos, encurralados num
porto. Queriam fugir, pôr-se na alheta a toda a mecha mas tinham pela
frente uma grande quantidade de barcos persas. Bem, o almirante grego
sabe que os seus homens vão tentar a fuga e manda avisar o inimigo,
para que os cerque bem. Na manhã seguinte os gregos vêem que não
podem fugir, que têm de combater para o conseguir, combatem e
vencem. Infligiram uma derrota tremenda a esquadra persa.
Jim calou-se. Começaram a passar homens, na direção dos fogões.
Mac calcou bem o montinho de terra com a mão aberta.
— Compreendo o que queres dizer, Jim. Não precisamos disso agora,
mas se precisarmos, com mil raios, é uma ideia! — e acrescentou, em
tom pesaroso: — Trouxe-te para te ensinar coisas e afinal foste tu que
me começaste logo a ensinar a mim.
— Não digas asneiras.
— Está bem, são asneiras. Como será que os homens sabem quando
a comida está pronta? Suponho que é uma espécie de telepatia. Ou
talvez possuam aquele tipo de sentido especial que os abutres têm. Lá
vão eles. Anda, Jím, vamos também comer.
Capítulo 11
A comida constava de feijões a nadar em gordura de porco. Mac e
Jim levaram as latas da tenda e puseram-se na fila, até lhes servirem um
pouco da mistela. Afastaram-se e Jim tirou uma tosca colher de madeira
da algibeira e provou os feijões.
— Não posso comer isto, Mac.
— Estás habituado a melhor, hem? Mas tens de comer. — provou a
sua ração e despejou imediatamente a lata. — Não comas. Jim. Feijões
e gordura deixam um tipo doente. Os rapazes vão fazer chinfrim por
causa disto.
Olharam para os homens sentados defronte das tendas, a tentar
comer. A nuvem de tempestade alastrou no céu e devorou as estrelas
acabadas de nascer.
— Creio que são capazes de tentar assassinar o cozinheiro, Jim.
Vamos até à tenda do London.
— Não vejo a do Dakin.
— Mrs. Dakin desarmou-a e levou-a para a cidade. Estranho gajo, o
Dakin. Não chegará a velho sem ter dinheiro. Mas vamos lá procurar o
London.
Seguiram, por entre as tendas, até à de London, através de cuja lona
brilhava uma luz. Mac levantou a aba e entrou. Lá dentro London estava
sentado num caixote, com uma lata de sardinhas aberta na mão. A
rapariga morena, Lisa, estava encolhida no colchão estendido no chão,
a amamentar o bebê. Ao ver os homens entrar ocultou o bebê e o seio
descoberto com um bocado de cobertor. Sorriu-lhes, mas voltou logo a
olhar para o filho.
— Chegamos mesmo à hora do jantar! — exclamou Mac.
— Ainda tinha para aí uns restos... — murmurou London,
embaraçado.
— Provou aquela porcaria?
— Provei.
— Oxalá os outros rapazes também tenham ainda alguns restos.
Temos de lhes dar melhor comida, caso contrário piram-se.
— Deixaram de chegar provisões. — explicou London — Tenho mais
uma lata de sardinhas. Querem-na?
— Se queremos! — Mac aceitou sofregamente a lata que o outro lhe
estendeu e começou a abri-la — Pega na faca, Jim. Vamos repartir isto.
— Como está o seu braço? — perguntou London.
— Começa a ficar rígido.
Fora da tenda uma voz informou: — É ali, aquela com a luz acesa.
A aba da tenda levantou-se e Dick entrou. Trazia um boné cinzento
na mão e tinha o cabelo muito bem penteado. O seu fato cinzento estava
limpo, mas amarrotado, e só os seus sapatos cobertos de poeira
denunciavam que viera a pé, através dos campos. Parou à entrada da
tenda, a olhar em redor.
— Viva Mac, viva Jim. — e para a rapariga — Olá, jóia! — Os olhos da
moça brilharam e as suas faces coraram, ao mesmo tempo que,
garridamente, ajeitava o bocado do cobertor à roda dos ombros.
Mac encarregou-se das apresentações: — Este é o London e este é o
Dick.
Dick inclinou um pouco a cabeça. — Como tá? Escuta, Mac, os tipos
da cidade têm andado a receber lições.
— Que queres dizer? Aliás, que raio tens tu andado por lá a fazer?
Dick tirou um jornal da algibeira e estendeu-lho. Mac abriu-o e
London e Jim espreitaram por cima do seu ombro.
— Saiu antes do meio-dia. — informou Dick.
— Filhos da puta! — praguejou Mac.
O jornal tinha o seguinte cabeçalho: “Os supervisores votaram a favor
de aumentar os grevistas. Numa reunião pública efetuada ontem à noite
a junta de Supervisores votou por unanimidade a favor de alimentarem
os homens que estão em greve contra os produtores de maçãs.”
— Não há dúvida de que andam a receber lições. — comentou Mac
— Já começou a dar resultado, Dick?
— Creio que sim.
London intrometeu-se: — Não vejo razão para nos irritarmos. Se eles
quiserem mandar presunto com ovos, acho muito bem.
— Claro, se eles quiserem! — replicou Mac, sarcástico — Esse jornal
não fala da outra reunião que se efetuou logo a seguir e em que a
votação foi revogada.
— Mas qual é o furo? — perguntou London — Que raio significa
isso?
— É um estratagema velho, mas que continua a dar resultado,
London. Aqui o Dick organizou os simpatizantes e nós estávamos a
receber comida, cobertores e dinheiro. Mas depois saiu isto. O Dick vai
fazer a sua ronda e os simpatizantes dizem-lhe: “Mas que brincadeira
vem a ser esta? O condado está a alimentá-los. Dick responde: “É? O
estás!” e eles replicam-lhe: “Vem no jornal, que eu vi. Diz que lhes estão
a mandar comida. Que esperam vocês lucrar com isto?” É assim
London. Viu chegar hoje alguma comida mandada pelo condado?
— Não...
— Pois o Dick também não conseguiu arranjar nada. Agora já sabe
qual é o jogo deles: vencer-nos pela fome. E, diabos, conseguirão, se
não arranjarmos auxílio! Estavas indo tão bem, Dick...
— Pois estava, era canja. Vou precisar de algum tempo para
organizar tudo outra vez. Quero um papel aqui deste tipo a dizer que não
estão a receber comida nenhuma. Assinado pelo chefe da greve.
— Está bem. — aquiesceu London.
— Há muitos simpatizantes em Torgas. — prosseguiu Dick — Mas
claro que tudo isto está organizado pela Associação dos Produtores e,
por isso, os simpatizantes escondem-se como toupeiras. Mas existem e
o essencial é conseguir convencê-los.
— Estavas a sair tão bem até aparecer esta porcaria! — repetiu Mac.
— Pois estava. Tive umas certas dificuldades com uma velhota, que
tinha uma vontade terrível de ajudar a causa.
— Nunca me constou que o teu pudor de donzel te afastasse da
manjedoura — comentou Mac, a rir — Suponho que ela queria dar-se
toda à causa?
Dick não conteve um estremecimento. — Ela toda eram dezeseis
cabos de machado colocados ao lado uns dos outros.
— Bem, vamos arranjar-te o papel e depois piras-te daqui para fora.
Ainda não te identificaram, pois não?
— Não sei, mas tenho a impressão de que identificaram. Escrevi ao
Bob Schwatz, a dizer-lhe que viesse, pois tenho a impressão de que me
filarão muito em breve. O Bob poderá substituir-me.
London procurou num caixote e tirou um bloco de papel e um lápis.
Estendeu-os a Mac, que redigiu a declaração.
— Escreve muito bem. — elogiou London, cheio de admiração.
— Pois escrevo. Também quer que assine por si, London?
— Pode assinar à vontade.
— Afinal, podia ter feito isso eu próprio. — observou Dick, enquanto
aceitava o papel e o dobrava cuidadosamente — Ouvi dizer que um dos
rapazes tinha sido abatido, Mac...
— Ainda não sabias? Foi o Joy.
— Oh, diabo!
— Veio com um magote de furas e estava a tentar convencê-los a
passarem-se para nós quando o abateram.
— Pobre diabo.
— Foi rápido, não sofreu mais do que um minuto.
— Bem, estava escrito, para o Joy. — disse Dick, a suspirar — Estava
escrito que o abateriam mais cedo ou mais tarde. Vão-lhe fazer um
funeral?
— Amanhã.
— Os rapazes todos vão acompanhá-lo?
Mac olhou para London, antes de responder:
— Claro que vão. Talvez consigamos atrair a simpatia do público
para o nosso lado.
— O Joy gostaria disso. — afirmou Dick — Nada lhe daria maior
prazer. Só é pena que não o possa ver. Bem, tenho de ir. Até breve. —
virou-se para sair, ao mesmo tempo que Lisa levantava a cabeça —
Adeus, jóia. Havemos de nos ver, qualquer dia.
A rapariga voltou a corar, os lábios entreabriram-se-lhe e quando a
aba da tenda se fechou, depois de Dick sair, os olhos continuaram por
momentos fixos na lona.
— Não há dúvida de que eles têm isto bem organizado. — observou
Mac — O Dick é competente, se não consegue obter morfos é porque
não é possível consegui-lo.
— A respeito da plataforma para o discurso? — perguntou Jim.
— É verdade, já tratou disso, London?
— Os rapazes a ergueão amanhã de manhã. A única coisa que
consegui arranjar, para a fazer, foram estacas velhas, de vedação. Terá
de ser pequena.
— Não importa. Basta que seja suficientemente alta para que todos
os rapazes possam ver o Joy.
— Que diabo vou eu dizer aos homens? — perguntou London,
preocupado — Você disse que eu tinha de fazer um discurso...
— Descanse, acabará por se entusiasmar. — tranquilizou-o Mac —
Diga que o homenzinho morreu por eles, e que se ele foi capaz de fazer
isso, eles poderão pelo menos lutar por si mesmos.
— Nunca fui muito de fazer discursos...
— Também não é preciso fazer nenhum discurso. Basta que fale aos
rapazes, e isso é coisa que tem feito muitas vezes. Diga apenas o que
se passou. Aliás, isso será melhor do que qualquer discurso.
— Bem, assim.,, assim está bem.
— Como vai o miúdo? — perguntou Mac à rapariga.
Ela corou e aconchegou melhor o bocado de cobertor. As pestanas
sombrearam-lhe as faces. — Muito bem. — murmurou baixinho — Não
chora nada.
A aba da tenda abriu de repelão e o médico entrou. Os seus
movimentos rápidos e bruscos estavam em desacordo com os olhos
tristes, de cão. — Vou ver o jovem Anderson. Mac. Quer vir?
— Claro que quero, doutor. London, mandou os rapazes guardar a
casa do velho?
— Mandei. Eles não queriam ir, mas eu mandei-os.
— Muito bem, doutor, vamos lá. Anda também, Jim, se vês que podes.
— Sinto-me ótimo.
— Devia estar na cama. — afirmou o médico a olhar o ferido com
firmeza.
— Tenho medo de o deixar. — declarou Mac, a rir — Se o deixo um
bocado sozinho arranja logo encrenca. Até logo, London.
A escuridão era muito densa, fora da tenda. A grande nuvem alastrara
até cobrir o céu todo e não se via uma única estrela. Reinava no
acampamento um estranho silêncio e os homens que se encontravam
sentados à roda das poucas fogueiras falavam muito baixinho. O ar
estava parado, quente e úmido. O médico, Mac e Jim escolheram
cuidadosamente o caminho, saíram do acampamento e mergulharam na
escuridão que o cercava.
— Tenho medo que chova. — queixou-se Mac — Ficaremos aflitos
com os rapazes se se molharem. A chuva é pior do que tiros, para tirar a
genica aos homens. Suponho que a maioria das tendas deixa passar a
água.
— Ah, pois deixa! — concordou Burton.
Chegaram à entrada do pomar e continuaram a andar, entre dois
renques de árvores. Estava tão escuro que tinham de estender as mãos
em frente, para se orientarem.
— Que lhe parece agora a sua greve? — perguntou o médico a Mac.
— Não me parece grande coisa. Têm este vale tão bem organizado
como na Itália. O fornecimento de alimentos está cortado e se não
conseguimos arranjar comida estará tudo perdido. Além disso, se esta
noite chover bem, os homens começarão a dar-nos o fora. Não
resistirão. Há uma coisa engraçada, doutor. Você não acredita na causa,
mas provavelmente será o último a partir. Não o entendo mesmo nada.
— Eu também não. — murmurou o médico, suavemente — Não
acredito na causa, mas acredito nos homens.
— Que quer dizer?
— Não sei. Creio que acredito apenas que são homens e não
animais. Suponho que se entrasse num canil e os cães tivessem fome e
estivessem doentes e sujos, os ajudaria, se pudesse. Eles não teriam a
culpa de se encontrar em semelhante estado. Não se poderia dizer:
Estes cães estão assim porque não têm ambição nenhuma. Não
poupam os ossos. Os cães são sempre assim. Tentaria limpá-los e
alimentá-los. Suponho que é isso que acontece comigo. Tenho alguns
conhecimentos que me permitem ajudar homens e quando vejo alguns
necessitados de ajuda, ajudo-os e pronto. Não penso muito no caso. Se
um pintor encontrasse uma tela e tivesse tintas, desejaria pintar sem
perguntar a si mesmo porquê.
— Compreendo-o. De certo modo, afigura-se cruel um tipo pôr-se de
parte e ver os homens dessa maneira, sem nunca se misturar com eles.
Mas por outro lado, doutor, parece excelente e limpo.
— A propósito, Mac, estou quase sem desinfetante. Vai-se o bom
cheiro se não me arranjar fenol.
— Verei o que posso fazer.
A uns cem metros de distancia brilhava uma luz amarela.
— Não é a casa do Anderson? — perguntou Jim.
— Creio que sim. Devemos encontrar as sentinelas, em breve.
Continuaram a andar na direção da luz, mas ninguém os mandou
parar. Chegaram ao portão do pátio, e nada.
— Com os diabos, onde estão os gajos que o London mandou? O
doutor siga, que eu vou ver se os encontro.
Burton seguiu por um carreiro e entrou na cozinha iluminada. Mac e
Jim dirigiram-se para o celeiro, onde encontraram os homens deitados a
fumar em cima do feno. Um candeeiro a petróleo pendia de um gancho,
na parede, e envolvia numa claridade amarela as baias vazias e a
grande pilha de maçãs encaixotadas — a colheita de Anderson à espera
de ser transportada.
Mac fervia de cólera, mas conseguiu dominar-se e foi em voz suave
e amigável que falou:
— Ouçam, rapazes, isto não é brincadeira nenhuma. Fomos avisados
de que os malditos vigilantes se preparam para fazer uma das suas ao
Anderson, para se vingarem de ele nos deixar estar na sua propriedade.
Já pensaram no que teria acontecido se ele não nos tivesse acolhido lá?
A esta hora andariam a correr conosco de toda a parte. O Anderson é
bom homem, não devemos permitir que ninguém lhe faça mal.
— Não está ninguém perto. — protestou um dos homens.
— Jesus, não podemos passar a noite inteira lá fora, de guarda.
Passamos a tarde toda a fazer piquetes.
— Pois então deixem-nos atacar isto! — gritou Mac, furioso — Depois
o Anderson vai jogá-los no olho da rua... e para onde diabos iremos?
— Podemos acampar junto do rio.
— Isso é o que vocês julgam. Eles expulsá-los-iam tão depressa do
condado que o vosso cu até deitaria fumo, e vocês sabem muito bem
que seria assim!
Um dos homens levantou-se, devagar. — Ele tem razão, é melhor
sairmos daqui. A minha velha está no acampamento e eu não quero
arranjar-lhe encrenca.
— Estabeleçam uma linha e não deixem ninguém passar. —
aconselhou Mac — Sabem o que eles fizeram ao filho do Anderson...
Deitaram-lhe fogo ao restaurante e deram-lhe uma tareia mestra.
— O Al servia um bom guisado. — disse um dos homens.
Levantaram-se todos, cansados, e quando saíram do celeiro Mac
apagou o candeeiro.
— Os vigilantes gostam de disparar para a luz. — explicou.
— Correm grandes riscos desse gênero. É melhor recomendarmos
também ao Anderson que corra as cortinas.
Os guardas afastaram-se na escuridão e Jim perguntou: — Achas que
eles agora ficarão de guarda, Mac?
— Gostaria de acreditar nisso, mas creio que estarão outra vez no
celeiro dentro de uns dez minutos. Na tropa podem fuzilar um tipo se ele
adormece, mas nós não podemos fazer outra coisa senão falar. Jesus,
esta impossibilidade de agir, põe-me doente! Se ao menos
dispuséssemos de armas! Se pudéssemos aplicar castigos para manter
a disciplina! — o ruído dos passos dos guardas dissipou-se ao longe —
Voltarei a tentar acordá-los antes de nos irmos embora.
Chegaram ao alpendre da cozinha e bateram à porta. Respondeu-
lhes o ladrar e o rosnar dos cães. Ouviram os animais saltar dentro de
casa e Anderson sossegá-los. A porta entreabriu-se, apenas.
— Somos nós, Mr. Anderson.
— Entrem. — convidou brusco.
Os pointers saltitaram, a agitar a cauda fina e dura e ganindo de
prazer. Mac inclinou-se e afagou-os.
— Devia deixar os cães lá fora para guardarem a casa Mr. Anderson.
Está tão escuro que os guardas não vêem nada, mas os cães farejam a
aproximação de qualquer pessoa.
Al, deitado num divã junto do fogão, estava pálido e fraco. Parecia ter
emagrecido, pois tinha a pele das bochechas frouxa. Estava deitado de
costas e tinha um braço ligado à sua frente. O médico sentou-se numa
cadeira ao lado do divã.
— Olá, Al. — saudou Mac — Como vai isso, rapaz?
— Vai bem. — respondeu Al, cujos olhos brilhavam — Dói um bocado
e o médico diz que terei de ficar na cama algum tempo. — Mac inclinou-
se e pegou-lhe na mão sã — Devagarinho! — pediu o ferido, muito
depressa — Tenho costelas partidas desse lado.
Anderson observava de olhos coruscantes. — Agora estão a ver,
agora estão a ver o que se ganha. O restaurante incendiado, o Al
ferido... Agora estão a ver.
— Pelo amor de Deus, pai, não recomece com isso! — pediu Al, em
voz fraca — Tratam-no por Mac, não tratam?
— Exatamente.
— Escute, Mac, acha que eu poderia entrar para O Partido?
— Quer dizer que deseja passar a ativista?
— Isso mesmo. Acha que poderei entrar?
— Acho que sim... — respondeu Mac, devagar — Dar-lhe-ei um
cartão de inscrição. Mas porque quer filiar-se, Al?
O rosto pesado franziu-se numa careta e Al abanou a cabeça de um
lado para o outro.
— Tenho estado a pensar... desde que eles me espancaram que
tenho estado a pensar. Não consigo afastar aqueles tipos da ideia. O
meu restaurantezinho a arder e eles a saltarem-me em cima... e dois
tiras à esquina, a observar tudo, sem intervir! Não o consigo esquecer.
— E por isso quer juntar-se a nós, Al?
— Quero estar contra eles! — gritou Al. — Quero lutar contra eles
toda a minha vida. Quero estar do outro lado.
— Eles ainda lhe baterão mais, Al. Estou a avisá-lo francamente.
Vão moê-lo de pancada.
— Não me importarei, pois então estarei a lutar contra eles,
compreende? Mas eu estava sossegadamente a explorar um
restaurantezinho, e a dar um prato de comida aos vadios, de vez em
quando, e eles... — a voz morreu-lhe na garganta e correram-lhe
lágrimas dos olhos.
— Não fale mais, Al — recomendou o Dr. Burton, e bateu-lhe ao de
leve na cara.
— Arranjar-lhe-ei um cartão de inscrição. — prometeu Mac de novo —
É muito estranho! Não têm conta os tipos que são empurrados para o
nosso lado pelo bastão de um tira! Todas as vezes que eles espancam
um grupo de homens, recebemos uma data de pedidos de admissão.
Em Los Angeles há um tira da Brigada Vermelha que nos manda mais
membros do que uma dúzia dos nossos organizadores! E os idiotas
ainda não foram capazes de perceber isso. Esteja descansado, Al, terá
o seu cartão de pedido de admissão. Claro que não sei se será
aprovado, mas se eu puder dar uma ajuda, será com certeza. — deu
uma palmadinha no braço ileso de Al — Espero que seja. Você é bom
tipo, não me culpa do que aconteceu ao seu restaurante.
— Claro que não o culpo, Mac. Sei de quem é a culpa.
— Tenha calma, Al.—recomendou de novo o médico.
— Descanse, precisa de descansar.
Anderson andava às voltas pelo aposento, interminavelmente
seguido pelos cães, que esticavam o focinho cor de fígado, farejavam e
sacudiam a cauda esticada, como se fosse um chicotinho. — Espero
que estejam satisfeitos! — explodiu por fim o velho, desanimado —
Destroem tudo quanto tenho... até me levam o Al. Espero que lhes faça
bom proveito.
— Não se preocupe, Mr. Anderson. — disse Jim — A casa está
cercada por guardas e o senhor é o único homem do vale que tem as
maçãs apanhadas.
— Quando tenciona levá-las? — perguntou-lhe Mac.
— Depois de amanhã.
— Quer alguns guardas, para os caminhões?
— Não sei...—respondeu o velho, constrangido.
— Acho que é melhor colocarmos guardas nos caminhões, não vá
alguém tentar destruir-lhe a colheita. Agora vamos andando. Boas
noites, Mr. Anderson. Boas noites, Al. Num certo sentido, estou contente
com o que aconteceu.
— Boas noites, rapazes. — despediu-se Al, a sorrir — Não se
esqueça do cartão, Mac.
— Não esquecerei. É melhor correr as cortinas, Mr. Anderson. Não
creio que disparem através das suas janelas, mas são muito capazes
disso. Já o têm feito noutros lados.
A porta fechou-se imediatamente, assim que saíram, e o quadro
luminoso projetado pela janela no chão desapareceu, quando as
cortinas foram corridas. Mac tateou o caminho até ao portão, que fechou
depois de saírem.
— Esperem aqui um momento. Vou outra vez ver os guardas. —
afastou-se, na escuridão.
Jim ficou à espera, ao lado do médico.
— Tenha muito cuidado com esse ombro. — recomendou-lhe Burton
— Poderá incomodá-lo, mais tarde.
— Não me importo, doutor. Causa uma sensação agradável estar
ferido.
— Já calculava que fosse assim.
— Assim como?
— Você tem um não-sei-quê nos olhos, Jim, algo religioso. É uma
coisa que já lhe tenho visto, noutras ocasiões.
— Mas não é nada religioso! — protestou Jim — Não quero saber da
religião para nada.
— Acredito que não queira. Não me ligue importância, Jim, não
consinta que o confunda com as minhas expressões. Você está a viver a
boa vida, seja qual for o nome que lhe queira dar.
— Sinto-me feliz... e feliz pela primeira vez. Estou eufórico.
— Bem sei. Não deixe morrer essa sensação, que é a visão do Céu.
— Não acredito no Céu. Não acredito na religião.
— Está bem, não discuto mais. Não o invejo tanto quanto deveria,
Jim, porque às vezes amo os homens tanto quanto você, embora talvez
de modo diferente.
— Também sente isso, doutor? É como... como soldados e soldados
a marcharem para nós, e nós a cerrarmos fileiras com eles...
— Sim, qualquer coisa desse gênero. Sobretudo quando fizeram algo
estúpido, quando um homem cometeu um erro e morreu em
consequência disso. Sim, sinto isso... com muita frequência.
Ouviram a voz de Mac: — Onde estão? Está tão escuro!
— Estamos aqui.
Reuniram-se-lhe e penetraram os três no pomar, sob as árvores
negras.
— Os guardas não estavam no celeiro. — informou Mac.
— Estavam no seus postos. Talvez lá se aguentem.
Muito ao longe, na estrada, ouviram o barulho de uma camioneta, que
vinha na sua direção.
— Tenho pena do Anderson.—disse Burton, serenamente.
— Tudo quanto respeita, tudo quanto teme se está a voltar contra ele.
Que fará? Eles o expulsarão daqui, evidentemente.
— Não o podemos evitar, doutor. — disse Mac, ríspido — Acontece
que lhe calhou a ele ser sacrificado, em favor dos homens. Alguém tem
de abrir caminho para que toda a manada possa fugir do matadouro.
Não podemos pensar nos sofrimentos de um homem. É necessário,
doutor.
— Não estava a pôr em causa os seus motivos nem os seus
objetivos. Limitei-me a dizer que tinha pena do pobre velho. O seu
respeito próprio está muito em baixo. É uma pílula amarga para ele, não
acha, Mac?
— Não posso perder tempo a pensar nos sentimentos de um homem!
— replicou o interpelado, vivamente — Estou muito ocupado com
grandes grupos de homens.
— Foi diferente com o homenzinho abatido a tiro. — insistiu o médico,
como se falasse consigo mesmo — Ele gostava do que fazia, não
desejaria que fosse de outro modo.
— Está a despedaçar-me o coração, doutor. — resmungou Mac,
irritado — Tenha cuidado, não se perca numa confusão de patetice
sentimental. Há um fim a alcançar, um fim real, que não tem nada a ver
com o fato de alguém perder o respeito próprio. Trata-se de meter pão
na barriga das pessoas. É real, não se trata de nenhuma das suas ideias
complicadas. Como vai o velho da bacia partida?
— Está bem, mude de assunto, se lhe agrada. O velho está a tornar-
se mau como um escorpião. Logo ao princípio, foi alvo de grandes
atenções e durante uns tempos sentiu-se todo inchado de orgulho, mas
agora enfureceu-se porque os homens não aparecem e não o ouvem
falar.
— Irei vê-lo de manhã. — prometeu Jim — Era um velho simpático.
— Escutem! — pediu Mac, de súbito — A camioneta não parou?
— Creio que sim. Parece que parou no acampamento.
— Que raio se passará? Vamos mais depressa. Cuidado com as
árvores.
Tinham percorrido uma pequena distância quando a camioneta
roncou, num manobrar de mudanças, e se pôs de novo em movimento.
O barulho por ela produzido foi diminuindo, ao longe, até se fundir com o
silêncio.
— Oxalá não tenha acontecido nada. — murmurou Mac.
Saíram do pomar a correr e entraram no acampamento. Ainda havia
luz na tenda de London, perto da qual se encontrava um grupo de
homens. Mac estugou o passo, levantou a aba da tenda e entrou. No
chão encontrava-se um comprido e tosco caixão de pinho. London,
sentado num caixote, olhou melancolicamente para os recém-chegados.
A rapariga estava toda encolhida no colchão, enquanto o marido,
moreno e pálido. lhe afagava o cabelo, sentado ao lado dela. London
apontou com o polegar para o caixão e perguntou:
— Que raio vou fazer com isso? Quase matou a rapariga de medo.
Não pode ficar aqui.
— É o Joy?—perguntou-lhe Mac.
— É. Acabam de trazê-lo.
Mac apertou o lábio inferior e olhou para o caixão.
— Creio que podíamos levá-lo lá para fora... ou senão os seus
pequenos vão dormir para a tenda do hospital, esta noite, e ele fica aqui.
A não ser que o assuste, London?
— Não significa nada para mim. — protestou o homenzarrão — É
mais outro cadáver, e eu já vi muitos na minha vida.
— Nesse caso, deixemo-lo aqui. O Jim e eu ficamos cá, também. O
tipo era nosso amigo.
O médico deu uma gargalhadinha abafada, atrás dele, e Mac corou e
virou-se, brusco, para Burton.
— Digamos que ganhou, doutor. E depois? Eu conhecia o tipo.
— Eu não disse nada, Mac.
London falou baixinho à rapariga e ao rapaz moreno, os quais saíram
momentos depois da tenda, ela a aconchegar bem o bocado do cobertor
à roda dos ombros e do filho.
Mac sentou-se numa das extremidades do caixão e esfregou a
madeira com o indicador. Os grãos ásperos do pinho ziguezagueavam
como riozinhos sinuosos, na madeira. Jim estava de pé atrás de Mac e
olhava por cima do seu ombro, fixamente. London andava de um lado
para o outro, nervoso, e os seus olhos evitavam o caixão.
— O condado não se alargou com a despesa, antes pelo contrário. —
murmurou Mac.
— Que queria você em troca de nada? — perguntou London.
— Para mim, quero apenas uma fogueira, uma boa fogueira que
acabe comigo, para não ficar para aí.
Levantou-se, apalpou a algibeira das calças de cotim e tirou um
grande canivete. Uma das lâminas terminava numa chave de parafusos.
Mac introduziu-a na ranhura da cabeça de um dos parafusos da tampa
do caixão e girou.
— Para que vai abrir isso? — gritou London — Não servirá de nada.
deixe-o em paz.
— Quero vê-lo.
— Para quê? Está morto... é um matacão de esterco.
— Às vezes penso que vocês, realistas, são as pessoas mais
sentimentais do mundo — observou o doutor, em tom muito suave.
Mac soltou um resmungo desdenhoso e depositou cuidadosamente
o parafuso no chão.
— Se julga que se trata de sentimento, está maluco, doutor. Quero
apenas verificar se será boa ideia os rapazes verem-no amanhã. Temos
de lhes injetar alguma genica, seja lá como for. Estão a morrer em pé.
— A brincar com cadáveres, hem?
— Temos de utilizar todos os meios, doutor. — lembrou Jim,
veementemente — Temos de utilizar todas as armas.
Mac olhou-o, apreciador, e confirmou: — É essa a ideia, é assim que
tem de ser. Se o Joy puder fazer algum trabalho mesmo depois de
morto, terá de o fazer. Entre nós não há essa coisa a que chamam
sentimentos pessoais. Não pode haver. E também não há o chamado
bom gosto. Não se esqueçam disso.
London escutava, parado, a acenar lentamente com a grande
cabeça.
— Vocês têm razão. — concordou — Vejam o Dakin. Permitiu que a
maldita camioneta o endoidecesse daquela maneira... Ouvi dizer que é
julgado amanhã... por agressão.
Mac ia tirando rapidamente os parafusos, que colocava ao lado uns
dos outros no chão. A tampa estava encravada, mas ele soltou-a com
uma pancada do salto do sapato.
Joy parecia espalmado, pequeno e dolorosamente limpo. Vestia
camisa azul lavada e as suas calças de ganga sujas de óleo. Tinha os
braços cruzados sobre o estômago.
— Deram-lhe uma injeção de iodo, mais nada. — murmurou Mac.
A barba crescera um pouco nas faces de Joy e parecia muito escura,
em contraste com a pele cinzenta e cerosa. A amargura e o sarcasmo
tinham-lhe desaparecido do rosto, que estava sereno e composto.
— Parece tranquilo — observou Jim.
— Sim, é esse o mal. Não servirá de nada mostrá-lo. Tem um ar tão
confortável que todos os rapazes quererão fazer-lhe companhia.
O médico aproximou-se, olhou um momento para o caixão e depois
foi sentar-se num caixote. Os seus grandes olhos queixosos fitaram-se
em Mac, que continuava a fitar Joy.
— Era um homenzinho tão bom! Não queria nada para ele. Sabem,
não era muito inteligente, mas mesmo assim conseguiu compreender
que havia qualquer coisa que não estava certa. Não compreendia por
que motivo se deitavam alimentos fora e se deixavam apodrecer quando
havia gente com fome. Pobre tontinho, nunca conseguiu perceber isso.
E meteu-se-lhe na cabeça que talvez pudesse ajudar a acabar com esse
estado de coisas. Pergunto a mim mesmo em que medida terá ele
ajudado... É muito difícil de dizer. Talvez nada... talvez muito. Não se
sabe.
A voz de Mac tornara-se trémula. O doutor continuava a fitá-lo com
um curioso sorriso, meio sardônico, meio bondoso.
— O Joy não tinha medo de nada. — declarou Jim.
Mac pegou na tampa do caixão e repô-la no seu lugar. — Não sei
porque estamos sempre a dizer pobre homenzinho. O Joy não era
pobre, era maior do que ele próprio. Não o sabia nem se importava, mas
havia sempre nele uma espécie de êxtase, mesmo quando o
espancavam. E, como o Jim disse, não tinha medo. — pegou num
parafuso, meteu-o na cavidade e colocou-o com a chave de parafusos.
— Isso parece um discurso. — observou London — Talvez seja
melhor ser você a discursar, amanhã. Eu não percebo nada de falar e
esse foi um bonito discurso. Soou bem.
Mac levantou a cabeça, envergonhado, procurou ler sarcasmo na
cara do outro e não o encontrou. — Não foi um discurso. — declarou
calmamente — Creio que poderia ter sido, mas não foi. Quis dizer ao
tipo que não foi desperdiçado.
— Porque não faz o discurso amanhã? Sabe falar.
— Chiça, não! O chefe é você. Os rapazes ficariam ofendidos se eu
abrisse a boca. Esperam que seja você a fazê-lo.
— Bem, mas que tenho eu a dizer?
Mac colocou os parafusos, um após outro. — Diga o costume. Que o
Joy morreu por eles, que estava a tentar ajudá-los e que o melhor que
poderão agora fazer por ele será ajudarem-se a si mesmos,
conservando-se unidos. Percebeu?
— Percebi, sim.
Mac levantou-se e olhou para a madeira áspera da tampa do caixão.
— Oxalá alguém tente deter-nos, oxalá alguns desses malditos
vigilantes se atravessem no nosso caminho! Oh, meu Deus oxalá eles
tentem impedir-nos de atravessar a cidade em cortejo!
— Compreendo-o. — murmurou London.
— Oxalá! — replicou Jim, de olhos brilhantes.
— Os rapazes vão querer lutar, vão ficar magoados por dentro,
quererão espatifar qualquer coisa... — disse Mac.
— Os vigilantes não são muito espertos. Oxalá sejam
suficientemente doidos para provocar qualquer coisa!
Burton levantou-se, fatigado, do caixote e dirigiu-se a Mac. — Mac. —
disse-lhe, tocando-lhe ao de leve no ombro — você é a mais louca
mistura de crueldade e sentimentalismo de hausfrau, de visão clara e
óculos cor-de-rosa, que jamais conheci. Não sei como consegue ser
todas essas coisas ao mesmo tempo.
— Tolice!
— Está bem, digamos que é tolice.— o médico bocejou — Vou para a
cama. Sabem onde me poderão encontrar, se precisarem de mim, mas
espero que não precisem.
Mac olhou muito depressa para o teto da tenda. Caíam na lona pingos
grossos, indolentes. Um... dois... três, e depois uma dúzia, num
tamborilar suave.
— Esperava que não chovesse. — murmurou Mac, a suspirar — De
manhã, os rapazes se sentirão como ratos afogados. Não terão mais
coragem do que um porco-da-índia.
— Mesmo assim, vou para a cama. — declarou o médico, e saiu.
Mac sentou-se pesadamente no caixão. O ritmo do tamborilar
acelerou-se. No exterior, os homens começaram a chamar-se uns aos
outros e a chuva abafou-lhes a voz.
— Não creio que haja no acampamento uma só tenda que não deixe
passar a água. Jesus, por que diabo não podemos ter uma
probabilidade, sem a vermos logo cancelada? Porque temos de levar
sempre para baixo, Jim, porquê?
Jim sentou-se com cuidado ao lado dele, no caixão. — Não te
preocupes, Mac. Às vezes, quando um tipo se sente mesmo nas lonas,
infeliz, ainda luta com mais ardor. Foi o que aconteceu comigo, Mac,
quando a minha mãe estava a morrer e nem sequer me quis falar. Senti-
me tão desgraçado que naquela altura teria corrido todos os riscos. Não
te preocupes.
— Apanhaste-me outra vez, hem? — perguntou-lhe Mac, virando-se
para ele — Olha que me chateio a valer se me continuares a apanhar
em falso com excessiva frequência! Deita-te ali, no colchão da rapariga.
Esse braço já te deve doer.
— Arde um bocadinho, de fato.
— Deita-te, anda, e vê se consegues dormir.
Jim fez menção de protestar, mas depois estendeu-se no colchão. A
ferida ardia-lhe e o braço e o peito latejavam-lhe. Ouviu a chuva
aumentar, até varrer a lona da tenda como uma vassoura. Ouviu cair
grandes pingos no interior e depois, quando a água começou a entrar
pelo meio do teto, ouviu os pingos grossos esparrinharem-se no caixão.
Mac continuava sentado no caixão, com a cabeça apoiada nos
braços. E os olhos de London, como os olhos insones de um lince, não
se desviavam da lanterna. O silêncio voltara ao acampamento e a chuva
caía, incessante, de um céu sem vento. Jim não tardou a mergulhar num
sono febril. A chuva foi caindo, hora após hora. Na viga da tenda, a luz
ia-se tornando amarelada. Uma chama azul brilhou, como que aos
soluços, na orla da torcida e depois apagou-se.
Capítulo 12
JIM teve a sensação de acordar dentro de um caixote. Tinha todo um
lado do corpo como que tomado por uma rigidez dolorosa. Abriu os
olhos e olhou em redor da tenda. Nascia uma alvorada cinzenta e
lânguida. O caixão continuava no seu lugar, mas Mac e London tinham
desaparecido. Ouviu o ruído que o devia ter acordado: o bater de
martelos em madeira. Ficou um bocado quieto, a olhar sossegadamente
à volta, e por fim tentou sentar-se. Mas o caixote de dor não o deixou,
tolheu-o. Rebolou sobre si mesmo, conseguiu erguer-se de joelhos e
levantou-se, deixando descair o ombro ferido para o proteger da tensão.
A aba da tenda abriu e Mac entrou, com o casaco azul brilhando de
umidade.
— Olá, Jim! Dormiste um bocado, hem? Como vai o braço?
— Está rígido. Continua a chover?
— Uma morrinha lixada. O doutor não tarda, para te ver o ombro. Não
calculas como está úmido lá fora! Quando os rapazes andarem por aí
um bocado, o chão ficará transformado em papas.
— Que barulho é este?
— Temos estado a construir um estrado para o Joy. Até conseguimos
descobrir uma bandeira velha para o cobrir.
Desenrolou um pano de aspecto miserável que trazia na mão e
revelou uma bandeira americana muito puída e suja. Estendeu-a
cuidadosamente em cima do caixão. — Não, parece-me que não é
assim... Creio que o campo deve ficar em cima do coração, assim, não
é?
— É uma miserável bandeira suja.
—Bem sei, mas servirá muito bem. O doutor deve estar a chegar de
um momento para o outro.
— Tenho uma fome danada.
— Quem não tem? Vamos ter papas de aveia para o pequeno-
almoço: simples, sem açúcar nem leite. Só aveia.
— Até isso me parece excelente. Não estás tão em baixo esta
manhã, pois não, Mac?
— Eu? Bem, os rapazes também não estão todos nas lonas como eu
receava. As mulheres fazem um chinfrim dos demônios, mas os homens
estão em muito bom estado, atendendo às circunstâncias.
Burton entrou, apressado. — Como está isso, Jim?
— Muito dorido.
— Sente-se ali, para lhe pôr um penso limpo.
Jim sentou-se num caixote e preparou-se para a dor que esperava,
mas o médico trabalhou com perfeição, removeu a ligadura e o penso
sujos e substitui-os por outros, sem o magoar.
— O velho Dan está preocupado. — informou — Tem medo de não ir
ao funeral. Diz que foi ele que desencadeou esta greve e agora todos o
esquecem.
— Acha que podíamos metê-lo numa camioneta e levá-lo, doutor? —
perguntou Mac — Seria uma publicidade excelente, se pudéssemos.
— Lá poder, podíamos, mas ele teria dores terríveis e poderiam surgir
complicações, resultantes do choque. É velho... Esteja quieto, Jim; estou
quase a acabar. O melhor será dizer-lhe que o levamos. Depois, quando
começarmos a levantá-lo, creio que ele próprio desistirá. Sente o
orgulho ferido, é natural. Pensa que o Joy lhe roubou o papel de
estrela... — deu uma palmadinha na ligadura — Pronto, Jim. Como se
sente agora?
Jim mexeu o ombro, cautelosamente. — Melhor. Sim, muito melhor!
— Porque não vais ver o velhote depois de comer, Jim? É teu amigo.
— Acho que irei, Mac.
— Ele está um bocadinho fracote. — lembrou o médico — Não o
aborreça, Jim. Toda esta agitação lhe subiu um pouco à cabeça.
— Esteja descansado, farei o jogo dele. — levantou-se e acrescentou:
— Não há dúvida, sinto-me muito melhor.
— Vamos comer umas papas. — disse Mac — Desejamos iniciar o
funeral a tempo de interromper o trânsito do meio-dia na cidade, se nos
for possível.
— Sempre um amigo do homem! — troçou o médico — Jesus, Mac,
você é um escorpião! Se eu fosse o chefe do outro lado apanhava-o e
fuzilava-o.
— Bem, eles farão isso mesmo, qualquer dia. Também é só o que
falta fazerem-me. O resto já fizeram tudo.
Saíram da tenda, uns atrás dos outros. O ar estava cheio de
minúsculos pingos de chuva, que formavam uma morrinha cinzenta e
nevoenta. As árvores do pomar só vagamente se distinguiam atrás de
uma cortina de gaza cinzenta. Jim olhou para as filas de tendas
ensopadas. As ruas, entre elas, já tinham sido transformadas em lama
mole pelos pés das pessoas, que não paravam à procura de um sítio
seco para se sentarem. Grandes filas de homens esperavam a sua vez
para se servirem das retretes, ao fundo das ruas.
Burton, Mac e Jim seguiram na direção dos fogões, de cujas
chaminés saía uma fumarada azul, densa, da lenha úmida. Em cima das
chapas fervilhavam caldeiras de papa que os cozinheiros mexiam com
paus compridos. Jim sentiu a umidade penetrar-lhe pelo pescoço
abaixo. Aconchegou mais o casaco e abotoou o botão de cima.
— Preciso de um banho. — murmurou.
— Toma um de esponja; é o único que podemos tomar aqui. Olha,
trouxe-te a tua lata de comida.
Foram para o fim da fila dos homens que esperavam junto dos fogões.
Os cozinheiros iam enchendo as vasilhas de papas à medida que a fila
passava. Jim encheu a colher improvisada e soprou.
— Sabe bem. — declarou — Creio que estou meio esfomeado.
— Se não estivesses é que seria de admirar. O London está a
supervisionar a construção da plataforma. Vamos até lá.
Afastaram-se a chapinhar na lama, desviando-se do caminho sempre
que aparecia algum bocado de solo ainda relativamente seco. A nova
plataforma erguia-se atrás dos fogões, um pequeno estrado feito de
velhas estacas de vedação e pranchas de valas de escoamento. Tinha
sido erguida cerca de 1,20 metros acima do nível do solo e naquele
momento London estava a pregar um corrimão.
— Viva! — saudou-os — Que tal estava o pequeno-almoço?
— Esta manhã até cascalho assado teria sabido bem. — respondeu-
lhe Mac — Foi o resto, não foi?
— Foi. Não haverá nada quando essa aveia acabar.
— Talvez o Dick tenha mais sorte hoje. — disse Jim — Porque não
me deixas sair e tentar arranjar comida, Mac? Não estou aqui a fazer
nada.
— Ficas no acampamento. London, este rapaz está marcado. Já
tentaram apanhá-lo duas vezes e mesmo assim quer sair e andar pelas
ruas sozinho.
— Não seja idiota, Jim. Vamos pô-lo na camioneta, com o caixão.
Com esse ferimento não poderá andar muito e por isso vai na
camioneta.
— Mas que raio... — começou Jim a protestar, mas London franziu-lhe
o cenho.
— Não arme em pimpão comigo, aqui sou eu o chefe. Quando for a
sua vez de mandar me dará ordens; agora dou eu.
Os olhos de Jim coruscaram, num acesso de rebelião. Depois olhou
para Mac e viu que ele sorria, à espera. — Está bem, farei o que disser.
— resignou-se.
— Há uma coisa que podes fazer, Jim. — disse Mac — Veja lá se
concorda, London: que tal se o Jim andar por aí e for falando com os
rapazes? Se os for sondando, para saber o que sentem e pensam?
Precisamos de saber até que ponto podemos avançar e eu creio que os
rapazes falarão com ele.
— Que quer saber? — perguntou London.
— Bem, precisamos de saber o que pensam da greve, agora.
— Acho bem.
Mac virou-se para o amigo e disse-lhe: — Vai primeiro visitar o velho
Dan e depois mete conversa com o maior número de tipos que puderes,
uns poucos de cada vez. Não tentes convencê-los de nada, limita-te a
concordar com eles até descobrires quais são os seus sentimentos. És
capaz de fazer isso, Jim?
— Claro que sou. Onde está o velho Dan?
— Vês aquela tenda mais branca do que as restantes, ali na
segunda fila? É a tenda-hospital do doutor. Creio que o velho Dan lá
está.
— Vou vê-lo.
Rapou o resto das papas e ao passar por um dos barris de água lavou
a lata e atirou-a para dentro da pequena tenda que lhes tinham
destinado, a ele e a Mac. Houve um ligeiro movimento no interior da
tenda e Jim ajoelhou-se e entrou, de gatas. Lisa estava lá, a amamentar
o bebê, e cobriu apressadamente o seio.
A rapariga corou e disse, baixinho: — Olá...
— Julguei que tinha ido dormir na tenda-hospital.
— Estavam lá homens.
— Espero que não se tenha molhado aqui, a noite passada.
A rapariga dobrou cuidadosamente o pedaço de
cobertor. — Não, a lona não deixou passar água
nenhuma.
— De que tem medo? Não lhe farei mal. Ajudei-a uma vez, isto é, o
Mac e eu ajudamo-la.
— Bem sei. É por isso.
— De que quer falar?
A cabeça da rapariga quase desapareceu debaixo do cobertor. —
Viu-me... sem roupa. — respondeu-lhe baixinho.
Jim começou a rir, mas deteve-se. — Isso não significa nada. Não se
devia sentir envergonhada por esse motivo. Tínhamos de ajudá-la.
— Bem sei. — ergueu momentaneamente os olhos — Mas faz-me
sentir esquisita.
— Não pense nisso. Como vai o bebê?
— Bem.
— Não tem dificuldade em amamentá-lo?
— Não. — acrescentou, toda vermelha e em voz trémula — Gosto de
amamentar.
— Claro que gosta, é natural.
— Gosto porque... sabe bem. — ocultou o rosto. — Não lho devia ter
dito.
— Porquê?
— Não sei, mas não lho devia ter dito. Não é... decente, pois não? Não vai dizer a
ninguém?
— Claro que não.
Jim desviou os olhos dela e olhou para fora, através da entrada baixa.
A névoa descia, devagarinho, e grandes pingos escorriam pela parede
inclinada da tenda, como contas de um colar. Jim continuou a olhar para
fora, instintivamente consciente de que ela queria observá-lo e não seria
capaz disso se ele não olhasse para outro lado.
O olhar da rapariga percorreu-lhe o rosto, um perfil escuro recortado
na luz. Ao ver o volume do ombro ligado, perguntou: — Que tem no
braço?
Ele virou a cabeça e desta vez os olhos dela não se desviaram. —
Levei um tiro, ontem.
— Oh! Dói-lhe?
— Um bocadinho.
— Só um tiro? Quero dizer, um tipo chegou e deu-lhe um tiro?
— Lutei com uns furas. Um dos proprietários atingiu-me com um tiro de espingarda.
— Você esteve a lutar? Você?
— Com certeza que estive.
Continuou a olhar-lhe fascinadamente para o rosto, de olhos muito
abertos. — Não tem nenhuma arma, pois não?
— Não.
Lisa suspirou. — Quem era aquele rapaz que foi lá à tenda, ontem à
noite?
— O tipo novo? Era o Dick. É meu amigo.
— Parece bom rapaz.
— Claro que é. — confirmou Jim, a sorrir.
— Mas um bocado atrevido. O Joey - é o meu marido - não gostou
nada dele. Mas eu achei-o simpático.
Jim ajoelhou-se e preparou-se para sair da tenda. — Já tomou o
pequeno-almoço?
— O Joey foi-mo buscar. — os seus olhos tinham-se tornado mais
ousados — Vai ao funeral?
— Vou.
— Eu não posso ir. O Joey diz que não posso.
— Está um tempo muito úmido e desagradável.. — Jim saiu, de gatas
— Adeus, pequena, tenha cuidado consigo.
— Adeus. — e, após uma pausa: — Não diga a ninguém, ouviu?
Jim olhou para dentro da tenda, sem perceber.
— Não digo o quê? Ah, acerca do bebê! Esteja descansada que não
direi.
— Compreende, você viu-me daquela maneira e por isso eu disse-lhe. Não sei porquê.
— Eu também não. Adeus, pequena.
Levantou-se e afastou-se da tenda. Eram poucos os homens que
andavam no exterior, devido à névoa. A maior parte dos grevistas
comera as papas e voltara para as tendas. Um ventinho fraco agitava a
morrinha, num ângulo lento, de derivação. Quando passou pela tenda
de London, Jim olhou para o interior e viu uma dúzia de homens à volta
do caixão, todos de olhos baixos. Ainda pensou em entrar, mas mudou
de ideias e dirigiu-se para a branca tenda hospitalar, ao fundo da fila. No
interior da tenda reinava uma arrumação curiosa e eficiente: dentro de
um grande caixote encontravam-se, bem arrumados, alguns remédios,
ligaduras, frascos de tintura de iodo, um grande boião de sais e uma
maleta de médico.
O velho Dan estava deitado num divã, amparado com almofadas, e no
chão via-se uma garrafa de boca larga, que servia de urinol, e um bacio
antiquado. A barba do velho crescera e tornara-se mais agressiva e as
suas faces estavam mais chupadas. Os olhos fitaram Jim com um brilho
colérico.
— Vieste, finalmente! Vocês obtêm o que querem, seus fedelhos dos
demônios, e depois abandonam um homem.
— Como se sente, Dan? — perguntou Jim, apaziguador.
— Quem se importa com isso? O doutor é um homem simpático, é o
único decente no meio desta corja de piolhosos.
Jim puxou um caixote e sentou-se. — Não esteja zangado, Dan! Olhe,
eu também levei, deram-me um tiro no ombro.
— Foi muito bem feito. — resmungou o velho, ácido — Vocês, seus
fedelhos, não sabem olhar por si próprios. Até admira que não estejam
todos a morrer em pé. — Jim manteve-se silencioso — Deixaste-me
para aqui deitado, julgando que não me lembro de nada. Lá em cima
daquela macieira não falavas noutra coisa senão em greve, greve... E
quem desencadeou a greve? Tu? Oh, não! Fui eu, eu é que a
desencadeei! Julgam que não sei, mas fui eu que a desencadeei
quando caí e parti a bacia. E depois deixaram-me para aqui sozinho.
— Nós sabemos. Dan, todos nós sabemos.
— Então porque não me ouvem? Tratam-me como um raio de um
miúdo! — gesticulou furiosamente e acabou por gemer.
— Vão-me deixar aqui, enquanto a malta vai toda ao funeral! Ninguém quer saber de mim!
— Não é assim, Dan. Nós vamos metê-lo numa camioneta e levá-lo, à frente do cortejo.
A boca de Dan entreabriuse, de espanto, e mostrou os quatro
compridos dentes de esquilo. Baixou lentamente as mãos e pousou-as
na cama. — Sério? Numa camioneta?
— Foi o que o chefe disse. Disse que o verdadeiro chefe era você e
que tinha de ir.
Dan assumiu uma expressão muito grave. A sua boca tornou-se séria e marcial.
— Nem podia dizer outra coisa. Ele sabe muito bem. — olhou
fixamente para as mãos e os seus olhos tornaram-se mais brandos e
infantis — Eu conduzi-los-ei. — murmurou, suavemente — Em todos
estes séculos é disso que os trabalhadores têm precisado, de um chefe.
Conduzí-los-ei à luz. Eles terão apenas de fazer o que eu disser. Eu
direi: “Vocês rapazes, façam isto”, e eles farão. E eu direi: “Vocês, seus
sacanas preguiçosos, vão para ali”, e, por Deus, eles irão, porque eu
não tolerarei sacanas preguiçosos. Quando eu falar, terão de saltar logo
e obedecer! — sorriu, afetuoso, e acrescentou: — Pobres ratos! Nunca
tiveram ninguém que lhes dissesse o que deviam fazer, nunca tiveram
nenhum chefe verdadeiro.
— Isso é verdade. — concordou Jím.
— Bem, agora verás algumas mudanças! — afirmou Dan.
— Diz-lhes que fui eu que o disse, diz-lhes que estou a estudar um plano. Já estarei em pé
daqui a uns dias... Diz-lhes que tenham paciência, até poder sair daqui e guiá-los.
— Esteja descansado que lhes direi.
O Dr. Burton entrou na tenda. — Bons dias, Dan. Olá, Jim. Dan, onde
está o homem que encarreguei de tomar conta de si?
— Saiu. — respondeu o velho, lamentosamente — Disse que me ia
buscar o pequeno-almoço, mas nunca mais voltou.
— Precisa do bacio, Dan?
— Não.
— Ele deu-lhe o clister?
— Não.
— Tenho de lhe arranjar outro enfermeiro.
— Ouça, doutor, aqui este fedelho diz que vou ao funeral numa camioneta.
— É verdade, Dan. Pode ir, se quiser.
Dan recostou-se na almofada, a sorrir. — Já era tempo de alguém me
prestar alguma atenção. — declarou, satisfeito.
Jim levantou-se do caixote e despediu-se: — Então até logo, Dan.. —
Burton acompanhou-o à saída e Jim perguntou-lhe: — Ele está a ficar
chalado, doutor?
— Não. É velho, sofreu um choque e os seus ossos não soldam facilmente...
— No entanto, fala como um doido.
— Bem, o homem que encarreguei de tomar conta dele não fez o que
lhe mandei e o velho precisa de um clister. Às vezes a prisão de ventre
torna-nos a cabeça leve... Mas ele é apenas um velho, Jim. Você fê-lo
muito feliz. Deve vir visitá-lo muitas vezes.
— Acha que ele irá mesmo ao funeral?
— Não. Os solavancos da camioneta causar-lhe-iam muitas dores. Temos de arranjar
maneira de contornar essa dificuldade. Que tal vai o seu braço?
— Já nem me lembrava dele.
— Ótimo. Não o deixe arrefecer; pode ser muito desagradável, se não
tiver cuidado. Até logo... Os homens não deitam terra nas retretes e o
desinfectante acabou-se. Tenho de arranjar desinfectante seja como for
e seja o que for... — entrou na tenda a falar baixinho consigo próprio.
Jim olhou em seu redor, à procura de alguém com quem falar. Os
homens que estavam à vista caminhavam rapidamente, sob a morrinha,
de uma tenda, para outra. Entretanto, a lama das ruas tornara-se
profunda e preta. Ali perto erguia-se uma das grandes tendas castanhas
das brigadas. Jim ouviu vozes no interior e entrou. À luz fraca viu uma
dúzia de homens acocorados em cima dos cobertores. A conversa
terminou, quando ele entrou, e os homens olharam-no, à espera. Jim
tirou da algibeira a bolsa de tabaco que Mac lhe dera. — Viva! —
saudou, mas os homens continuaram calados, à espera. — Tenho um
braço ferido. Algum de vocês é capaz de me enrolar um cigarro?
Um homem que estava sentado defronte dele estendeu a mão, pegou
na bolsa e fez rapidamente um cigarro. Jim aceitou-o e apontou para os
outros homens. — Passe o tabaco. Deus sabe que não há muito neste
acampamento.
A bolsa andou de mão em mão. Um homenzinho baixo e atarracado,
de bigode curto, convidou: — Sente-se aqui na minha cama, rapaz. Foi a
você que deram o tiro, ontem?
— Fui um deles. — respondeu Jim, a rir — Não sou o morto, sou o
que conseguiu safar-se.
Riram-se da piada e um homem de cara chupada e maçãs do rosto
lustrosas interrompeu as gargalhadas para perguntar: — Porque vão
enterrar o homenzinho hoje?
— E por que não? — dissee Jim.
— Bem, toda a gente espera três dias...
O homenzinho atarracado expeliu um jato de fumo e comentou: —
Quando um tipo está morto, está morto, acabou-se.
— Mas, supondo que ele não está morto — insistiu o da cara chupada, sinistramente —
Supondo que está apenas numa espécie de desmaio e o enterramos vivo? Acho que
devíamos esperar três dias, como toda a gente.
Respondeu-lhe uma voz suave e sarcástica e Jim olhou e viu um
homem alto, de testa branca e sem rugas. — Podem estar descansados
que ele não está a dormir. Não tenham duvidas nenhumas a esse
respeito. Se soubessem o que os cangalheiros fazem aos cadáveres,
teriam a certeza de que o tipo não está em nenhuma espécie de
desmaio..
— Podia muito bem estar. — teimou o da cara chupada. — Não vejo
razão nenhuma para corrermos esse risco.
— Bem, se ele consegue dormir com as veias cheias de fluido embalsamante, tem o sono
muitíssimo pesado! — troçou o da fronte branca.
— É isso que eles fazem?
— É. Conheço um homem que trabalhou para um cangalheiro e que me contou coisas em
que não acreditariam.
— Prefiro não ouvir. — declarou o da cara chupada. — Não se lucra
nada em falar dessas coisas.
— Quem era o homenzinho? — perguntou, o indivíduo baixo e
atarracado — Vi-o tentar passar os furas para o nosso lado, vi-o começar
a avançar e depois, bang!, foi parar ao chão.
Jim manteve o cigarro apagado nos lábios, durante alguns momentos.
— Eu conhecia-o. — respondeu — Era um homenzinho fixe, uma
espécie de guia laboral.
— Parece haver uma praga contra os guias laborais. — comentou o
da fronte branca — Não duram muito. Aquela cascavel do Sam por
exemplo... Diz que é estivador e eu aposto que estará morto dentro de
seis meses.
— E o London? — perguntou um rapaz moreno — Acham que o
apanharão como apanharam o Dakin?
— Não, carago. — afirmou. o da cara chupada — O London sabe
cuidar de si, tem uma cabeça em cima dos ombros
— Se o London tem uma cabeça em cima dos ombros, por que diabo estamos aqui
sentados? — perguntou o da fronte branca — Esta greve está lixada, há alguém que está a
ganhar dinheiro com ela. Quando a coisa se tornar dura, alguém nos atraiçoará e nos deixará
para sermos nós a levar porrada nos queixos.
Um homem forte e musculoso ajoelhou-se e ficou assim, como um
animal. Os lábios arreganhados deixavam ver os dentes e os olhos
coruscavam, injetados de sangue.
— Basta de conversa dessa, espertalhão. — ordenou — Conheço o
London há muito tempo. Se o que pretendes dizer é que o London se
está a preparar para nos trair, nós dois vamos resolver esse assunto lá
fora, imediatamente. Não percebo nada desta greve e estou a fazê-la
porque o London diz que é justa. Mas tu deixa-te de piadas desse
gênero.
O da fronte branca olhou-o friamente e disse: — És muito duro, hem.
— Suficientemente duro para te deixar a pão e laranja, em qualquer altura.
— Deixem-se disso. — interveio Jim — Para que havemos de brigar
uns com os outros? Se lhes apetece lutar, estou convencido de que vai
haver luta que chegue para fartar todos.
O homem forte resmungou qualquer coisa e voltou a sentar-se nos
cobertores.
— Quando eu estiver presente, não consentirei que ninguém diga mal do London nas suas
costas.
O homenzinho atarracado voltou-se para Jim e perguntou-lhe: —
Como te acertaram, rapaz?
— Quando vinha a fugir. Desasaram-me quando fugia.
— Ouvi dizer que vocês deram uma tareia mestra a alguns furas.
— É verdade.
O da fronte branca observou: — Dizem que estão a chegar furas em
caminhões e que cada fura traz granadas de gás lacrimogêneo na
algibeira.
— Isso é mentira. — apressou-se Jim a afirmar — Eles espalham
sempre mentiras dessas para assustar os grevistas.
O da fronte branca prosseguiu: — Constou-me que os patrões
mandaram dizer ao London que não negociarão enquanto houver
vermelhos no acampamento.
O homem forte e musculoso voltou a ouvir-se: — Mas quem são afinal
os vermelhos? Tu falas mais como um vermelho do que todos quantos
tenho ouvido.
Mas o da fronte branca não se perturbou: — Bem, creio que o médico
é vermelho. Que pode um médico querer daqui? Não ganha nada... Ou
melhor, quem lhe paga? Sim, porque ele recebe o seu, a esse respeito
não se preocupem. — sorriu, com ar sabido. — Talvez esteja a recebê-lo
de Moscovo.
Jim cuspiu para o chão, muito pálido, e disse, calmamente: — Você é
o mais miserável filho da puta que jamais conheci! Considera toda a
gente o tipo de ratazana que você próprio é!
O homem forte voltou a ajoelhar-se e declarou: — O rapaz tem razão.
Ele não te pode desancar, meu pulha, mas eu posso. E, por Deus,
desanco-te mesmo a valer se não fechas essa pia que te serve de boca!
O da fronte branca levantou-se, devagar, e dirigiu-se para a entrada
da tenda. Chegado aí voltou-se e acrescentou: — Está bem, rapazes,
mas estejam atentos. Muito em breve London dirá que terminem a greve
e depois terá um carro novo ou um emprego certo. Estejam atentos e
verão.
O calmeirão começou a levantar-se, mas o da fronte branca apressou-se a sair da tenda.
— Quem é aquele tipo? — perguntou Jim — Dorme aqui?
— Não. Apareceu aí há bocado, apenas.
— Algum de vocês já o tinha visto?
— Eu, não.
— Nunca.
— Jesus, então foram eles que o mandaram! — exclamou Jim.
— Eles quem? — indagou o homem gordo.
— Os proprietários. Mandaram-no cá para falar daquele modo e
conseguir que vocês suspeitassem do London. Não compreendem?
Querem dividir os homens do acampamento. Acho melhor fazerem o
necessário para ele ser expulso daqui.
O homem forte levantou-se e declarou: — Eu próprio me encarregarei
disso. Nada me agradaria mais! — e saiu da tenda.
— Têm de ter cuidado e estar vigilantes. — recomendou Jim — Tipos
como aquele pretendem convencê-los de que a greve está praticamente
acabada. Não dêem ouvidos a mentiras.
— O que não é mentira é que a comida acabou. — observou o gordo,
a olhar para fora da tenda — Também não é mentira que ração de vaca
cozida não é grande coisa, como pequeno-almoço. Não são
necessários espiões para espalhar essas coisas.
— Temos de aguentar. — afirmou Jim — Temos pura e simplesmente
de aguentar. Se perdermos isto, estaremos tramados. .. e não só nós:
todos os outros trabalhadores itinerantes do país sofrerão um bocado,
por tabela.
O gordo abanou com a cabeça a concordar. — Conjuga-se tudo. Não
há nada separado. Há tipos que querem conseguir alguma coisa boa,
para eles próprios, mas só o conseguirão quando todos o conseguirem.
Um homem de meia-idade, que permanecera deitado no fundo da
tenda, sentou-se e perguntou: — Sabem qual é o mal dos
trabalhadores? Eu digo-lhes qual é: falam demais. Se arriassem mais e
falassem menos, conseguiriam alguma coisa.
Calou-se e os ocupantes da tenda ficaram também calados, à escuta.
Do exterior chegava o ruído de uma certa azáfama, o som de passos e o
murmúrio de vozes, um som de gente, um som penetrante como um
odor, mas suave. Os homens da tenda continuaram imóveis, à escuta. O
ruído tornou-se um pouco mais forte. Ouvia-se o arrastar de passos na
lama. Um grupo de pessoas passou pela tenda.
Jim levantou-se e foi à entrada ao mesmo tempo que uma cabeça
espreitava para o interior. — Vão trazer o caixão cá para fora. Venham,
rapazes.
Jim saiu por entre as abas da tenda. A umidade continuava a cair,
soprada lateralmente pelo vento fraco e pairando no ar como minúsculos
e leves flocos de neve. Aqui e ali o vento fazia bater a lona solta e
saturada de chuva de uma tenda Jim olhou pela rua abaixo. A notícia
propagara-se, pois estavam a sair homens e mulheres das tendas.
Avançavam lentamente, juntos, e convergiam para a plataforma. À
medida que o grupo se tornava mais e mais compacto, o som das suas
muitas vozes fundiu-se numa só voz e o som dos seus passos
transformou-se numa grande agitação. Jim olhou para as caras. Havia
uma cegueira nos olhos e as cabeças estavam inclinadas para trás,
como se farejassem qualquer coisa. Pararam junto da plataforma,
apertados uns contra os outros.
Da tenda de London saíram seis homens com o caixão. Como este
não tinha pegas, os homens davam-se as mãos sob ele, a dois e dois, e
suportavam o peso com os antebraços. Cambaleavam, tentando acertar
o passo, e quando conseguiram estabelecer um ritmo certo avançaram
lentamente, chape-que-chape na lama, na direção da plataforma. Iam de
cabeça descoberta e os pingos de umidade sobressaíam-lhes no cabelo
como poeira cinzenta. O ventinho ora levantava, ora baixava, uma ponta
da bandeira suja. A multidão abriu caminho à frente do féretro e os
homens avançaram, de rosto petrificado numa expressão de solenidade
cerimonial, pescoço hirto e queixo pendente. As pessoas que ladeavam
o caminho aberto para eles passarem olharam para o caixão. Assistiram
à sua passagem em silêncio e depois cochicharam nervosamente umas
com as outras. Alguns homens benzeram-se, subrepticiamente. Os
portadores chegaram à plataforma. O par da frente colocou a ponta do
caixão nas tábuas e os outros empurraram, até ele ficar assente e em
segurança.
Jim dirigiu-se a correr à tenda de London, que encontrou com Mac.
— Gostaria que fosse você a falar, Mac. Eu não sou capaz.
— Não, London, você se sairá muito bem. Lembre-se do que lhe disse, tente levá-los a
reagir às suas palavras, a responder-lhe. Quando começar a obter respostas ao que
perguntar. tem-nos na mão. É um velho procedimento de comício, mas dá resultado numa
multidão como esta.
— Fale você, Mac. — insistiu London, assustado — Palavra, eu não
sou capaz. Nem sequer conhecia o homem.
— Bem, suba à plataforma e experimente. — disse Mac, irritado — Se
se espalhar, eu estarei lá e substituí-lo-ei.
London abotoou o colarinho da camisa azul e virou-o para cima. Em
seguida abotoou o velho casaco de sarja preta e deu-lhe uma
palmadinha, em cima do estômago. Levou a mão ao cabelo tonsurado e
alisou-o, aos lados e atrás, e por fim pareceu impregnar-se de uma
solenidade pesada e tensa. Sam entrou e colocou-se ao lado dele.
London saiu da tenda, inchado de autoridade. Mac, Jim e Sam saíram
também, mas London avançou sozinho pela rua enlameada abaixo,
seguido pelo pequeno cortejo. Viraram-se cabeças, quando se
aproximou, e as conversas travadas em voz baixa emudeceram. Abriu-
se uma nova ala para o chefe passar e as cabeças viraram-se com ele, à
sua passagem.
London subiu para a plataforma. Estava sozinho, acima das cabeças
dos homens e das mulheres. Os rostos erguiam-se para ele, de olhos
inexpressivos como se fossem de vidro. London olhou uns momentos
para o caixão de pinho e depois endireitou os ombros. Parecia relutante
em quebrar o silêncio pesado. Foi em voz distante e digna que disse:
— Vim aqui para fazer uma espécie de discurso, e eu não sei
discursar. — fez uma pausa e olhou por cima dos rostos voltados para
ele — Este homenzinho foi morto ontem. Vocês todos viram. Ele vinha
para o nosso lado e alguém o abateu. Não estava a fazer mal a
ninguém. — parou de novo, desta vez com uma expressão intrigada —
Bem, que pode um homem dizer? Vamos enterrá-lo. É um dos nossos e
foi morto a tiro. Que posso eu dizer? Vamos sair daqui, numa marcha, e
enterrá-lo. Todos nós. Porque ele era um dos nossos. Era assim como
que igual a todos nós. O que lhe aconteceu pode acontecer a qualquer
tipo dos que estão aqui. — calou-se, mas a sua boca continuou aberta
— Eu... eu não sei fazer discursos. — confessou, constrangido — Está
aqui um tipo que conheceu o homenzinho e eu vou deixá-lo falar. —
virou lentamente a cabeça para Mac. — Venha, Mac, fale-lhes do
homenzinho.
Mac libertou-se da rigidez que o tolhia e quase se atirou para a plataforma. Os seus
ombros pareciam ondular como os de um pugilista.
— Claro que lhes falarei! — gritou, apaixonadamente — O nome dele
era Joy. Era um radical! Ouviram? Um radical. Queria que os tipos como
vocês tivessem o suficiente para comer e um sítio onde dormirem sem
se molharem. Não queria nada para ele. Era um radical!
Compreenderam o que ele era? Um bandalho, um perigo para o
Governo! Não sei se lhe viram a cara, toda desfigurada da porrada que
levou. Os tiras fizeram-lhe isso porque ele era um radical. Partiram-lhe
as mãos e o queixo. De uma das vezes que lhe partiram o queixo foi
quando fazia parte de um piquete. Levaram-no para a cadeia e um
médico viu-o. “Não trato um maldito vermelho”, declarou o senhor doutor.
Por isso o Joy ficou com o queixo defeituoso. Era perigoso. Queria que
tipos como vocês tivessem o suficiente para comer. — a sua voz
tornava-se cada vez mais suave e os seus olhos estavam atentos. Viam
os rostos tornarem-se tensos, a tentarem apreender as palavras suaves
que proferia, e as pessoas inclinarem-se para a frente — Eu conhecia-o.
— de súbito, gritou: — Que vão vocês fazer? Metê-lo num buraco
lamacento e cobri-lo de lama. Esquecê-lo.
Uma mulher da multidão começou a soluçar histericamemte. — Ele
estava a lutar por vocês! — gritou Mac — Vão esquecer isso?
— Não, por Deus! — gritou um dos homens.
Mac continuou a malhar no ferro: — Vão resignar-se a que o tenham
matado, vão ficar encolhidos e aguentar?
Desta vez foi um coro que lhe respondeu: — Nã-ão!
A voz de Mac baixou de novo, tornou-se monocórdica: — Vão enterrá-
lo na lama?
— Nã-ão! — os corpos balançavam um nadinha, embalados.
— Ele lutou por vocês. Vão esquecê-lo?
— Nã-ão!
— Vamos marchar através da cidade. Permitirão que os malditos tiras
nos detenham? Desta vez foi um rugido: — Nã-ão!
A multidão oscilava, ritmadamente, preparada para a próxima resposta.
Mac quebrou o ritmo e a ruptura foi, para eles, como que um safanão:
— Este homenzinho é o espírito de todos nós. — disse Mac,
serenamente — Não rezaremos por ele, pois ele não precisa de rezas. E
nós também não precisamos de rezas. Precisamos de cacetes!
Desesperadamente a multidão tentou restaurar o ritmo: — Cacetes! —
gritaram — Cacetes! — e depois esperaram, em silêncio.
— Muito bem, vamos enterrar o maldito radical na lama, mas isso não
o impedirá de continuar conosco. — disse Mac, secamente — Deus livre
quem quer que tente deter-nos!
De súbito, desceu da plataforma, deixando a multidão faminta e
irritada. Olhos mergulharam, perplexos, noutros olhos.
London desceu também da plataforma e disse aos homens que
tinham transportado o caixão: — Coloquem-no na camioneta do Albert
Johnson. Partiremos dentro de poucos minutos. — e seguiu Mac, que
abria caminho através da multidão.
O Dr. Burton começou a andar ao lado de Mac, quando ele conseguiu
sair do meio do aglomerado de gente.
— Não há dúvida, você sabe pô-los em ponto de rebuçado. —
comentou o médico, calmamente — Jamais pregador algum obteve
resultados mais rápidos. Porque não prolongou um pouco mais a coisa.
Mais um minuto e tê-los-ia a berrar e a gingar-se.
— Deixe de me atezanar, doutor. — pediu Mac, irritado. — Tenho um
trabalho a fazer e sou obrigado a servir-me de todos os meios para o
fazer.
— Mas onde aprendeu, Mac?
— Onde aprendi o quê?
— Todos esses truques.
— Não tente ver demasiado, doutor. — respondeu Mac, fatigado —
Eu queria-os danados, e eles estão danados. Que lhe importa como o
consegui.
— Eu sei como o conseguiu. Só lhe perguntei onde aprendeu. A
propósito, o velho Dan está resignado a não ir. Tomou essa decisão
quando o levantamos.
London e Jim alcançaram-nos.
— É melhor deixar aqui um bom número de homens de guarda,
London.
— Está bem. Direi ao Sam que fique com cerca de cem homens. Fez
um bom discurso, Mac.
— Não tive tempo para o preparar com antecedência. É melhor irmos
andando antes que estes tipos arrefeçam. Uma vez em movimento, não
haverá novidade, mas não nos convém que fiquem para aí a arrefecer.
Viraram-se todos para trás. Os portadores abriam caminho através da multidão,
equilibrando o caixão nos antebraços. O magote de gente ficou para trás e começou a
dispersar. A morrinha continuava a cair. A ocidente um rasgão na nuvem deixou ver um
pedaço de céu azul-claro. Um vento alto, silencioso, esfrangalhou as nuvens, enquanto os três
olhavam para cima.
— Ainda se pode pôr um dia bonito. — observou Mac — Quase me
esquecia do teu ombro, Jim. Como te sentes?
— Bem.
— Não creio que seja conveniente percorreres a pé toda aquela distância. Vais na
camioneta.
— Não. Vou a pé. Os rapazes não gostariam, se eu fosse na camioneta.
— Também pensei nisso. Mas os portadores do caixão irão igualmente na camioneta e
assim não haverá novidade. Tudo pronto, London?
— Tudo pronto.
Capítulo 13
O CAIXÃO repousava no fundo plano de uma velha camioneta
Dodge. Os portadores tinham-se sentado de ambos os lados, de pernas
pendentes, e Jim ia na retaguarda. O motor roncou e tossiu e Albert
Johnson tirou o veículo do parque e parou na estrada enquanto o cortejo
se formava em filas de oito homens, mais ou menos. Depois arrancou e
avançou lentamente ao longo da estrada, seguido pela enorme multidão
de homens. Os cem guardas que ficaram no acampamento assistiram à
partida do cortejo.
Ao princípio, os homens tentaram andar a compasso, dizendo de vez
em quando “hep, hep!”, mas cansaram-se depressa. Arrastavam os pés
pela estrada ensaibrada. Ouvia-se um pequeno murmúrio de vozes,
embora cada um deles se sentisse constrangido a falar baixinho, por
respeito para com o morto. Na auto-estrada de cimento aguardavam-nos
os polícias de trânsito: doze, em motocicletas. O capitão gritou: — Não
estamos aqui para interferir com vocês. É costume conduzirmos sempre
os cortejos.
O bater dos pés tornou-se mais nítido no cimento. As fileiras se
desorganizaram um pouco. Só quando chegaram aos arredores da
cidade é que os homens voltaram a organizar-se com mais aprumo. Nos
quintais e nos passeios paravam pessoas a ver passar o cortejo. Muitas
tiravam o chapéu, à passagem do caixão. Mas o desejo de Mac não se
cumpriu. Em cada esquina do trajeto havia polícias a dirigir o trânsito, a
desviá-lo e a abrir caminho para o funeral. Quando entraram no bairro
comercial de Torgas o sol venceu a resistência das nuvens e brilhou nas
ruas molhadas. As roupas úmidas dos homens começaram a fumegar,
devido ao calor inesperado. Os passeios estavam pejados de gente
curiosa, que queria ver passar o caixão, e os homens aprumaram-se de
novo, cerraram fileiras e começaram a andar a compasso, com ar
importante. Ninguém interferiu e a estrada manteve-se livre de veículos.
Atrás da camioneta, atravessaram a cidade e voltaram ao campo, a
caminho do cemitério do condado, um cemitério pequeno e invadido por
ervas daninhas, a cerca de quilômetro e meio da cidade. Nas sepulturas
novas havia pequenas chapas galvanizadas, com nomes e datas
gravadas. Ao fundo, erguia-se uma palha de terra fresca e úmida. A
camioneta parou ao portão e os portadores desceram e transportaram de
novo o caixão nos braços. Na estrada os polícias de trânsito encostaram
as motocicletas e esperaram.
Albert Johnson tirou dois baraços de corda de baixo do banco e
seguiu o caixão. Os homens desmancharam as fileiras e seguiram-no.
Jim desceu também do veículo e fez menção de se juntar aos outros,
mas Mac deteve-o.
— Deixa o resto com eles. O principal era a marcha. Esperamos
aqui.
Um homem novo, de cabelo ruivo, transpôs o portão do cemitério e
aproximou-se.
— Conhecem um tipo a que chamam Mac? — perguntou.
— Chamam-me Mac.
— Conhece um tipo a que chamam Dick?
— Conheço.
— Conhece? Qual é o apelido dele?
— Halsing. Que lhe aconteceu?
— Nada. Ele manda-lhe este bilhete.
Mac abriu o papel dobrado e leu. — Com mil raios — exclamou. —
Olha, Jim!
Jim pegou no bilhete e leu por sua vez: “A dama venceu. Tem um
rancho, R. F. D. Caixa 221, Gallinas Road. Manda lá uma camioneta
imediatamente. Têm duas vacas velhas, um bezerro e dez sacas de
feijão-de-lima. Manda alguns tipos para matar as vacas. Dick.
P. S. A noite passada quase fui apanhado. P. P. S. São só doze
cabos de machado.”
Mac ria à gargalhada. — Oh, Jesus! Duas vacas, e um bezerro, e
feijão! Isso dá-nos tempo. Jim, vai depressa procurar o London e diz-lhe
que venha cá imediatamente.
Jim meteu por entre a multidão e pouco depois voltou, com London a
correr ao lado dele.
— Ele disse-lhe, London? — gritou Mac — Disse-lhe?
— Disse que você arranjou comida.
— É verdade, com mil raios! Duas vacas e um bezerro. E dez sacas
de feijão! Os rapazes podem ir lá imediatamente, nesta camioneta.
Do lado do cemitério vinha o ruído da terra molhada a cair no caixão
de pinho.
— Os rapazes vão sentir-se porreiros quando encherem as barrigas
de carne e feijão! — exclamou Mac.
— Eu próprio não faria cara a um naco de carne. — confessou
London.
— Olhe, eu vou na camioneta. Arranje-me uns dez homens para a
guardarem. Podes vir comigo, Jim. — hesitou um momento e depois
perguntou: — Onde arranjaremos lenha? Já gastamos quase toda.
London, diga aos homens que arranjem um bocado ou dois de madeira
cada um: estacas de vedações, pranchas de vala, tudo serve. Diga para
que é. Quando chegarem ao acampamento, abram um buraco e
acendam lá dentro uma fogueira. Arranjarão sucata suficiente para
improvisar uma grelha naquelas malditas carripanas. Tenham o lume
bem esperto! — voltou-se para o jovem ruivo e perguntou-lhe:
— Onde fica essa Gallinas Road?
— A cerca de quilômetro e meio daqui. Poderão deixar-me no
caminho.
— Vou buscar o Albert Johnson e alguns homens. — disse London, e
desapareceu entre a multidão.
Mac continuava a rir baixinho. — Que grande sorte! É mais um
adiamento! O Dick é um tipo formidável, um gajo porreiro!
Jim, que não perdia a turba de vista, via-a como que ganhar nova
vida, agitar-se. Houve uma espécie de redemoinho, enquanto os
homens se viravam e começavam a dirigir-se para a camioneta. London,
à frente, apontava alguns homens com o dedo. A multidão cercou a
camioneta, a rir e a gritar. Albert Johnson guardou as cordas
enlameadas debaixo do banco e instalou-se ao volante. Mac sentou-se
ao lado dele e ajudou Jim a subir.
— Mantenha os rapazes juntos, London! — gritou — Não os deixe
dispersar.
Os dez homens escolhidos saltaram para a caixa da camioneta.
Depois a multidão brincou. Os homens penduraram-se nas traseiras
do veículo até os pneus se enterrarem na terra mole e fizeram bolas de
lama e atiraram-nas aos que se tinham instalado na camioneta. Na
estrada, os polícias continuavam parados, a esperar calmamente.
Albert Johnson engatou e livrou-se da turba. O motor ofegou, cansado
quando chegaram à estrada. Dois dos polícias saltaram para as
motocicletas e seguiram ao lado da camioneta. Mac virou-se para trás e
olhou, através da janelinha da cabina, para a multidão. Os homens
saíam do cemitério como uma onda. Desembocaram na estrada,
apressados, enchendo-a de lado a lado, enquanto os polícias tentavam
em vão manter aberta uma passagem para automóveis. Jubilosos, os
trabalhadores troçavam deles, empurravam-nos e cercavam-nos, a rir
como garotos. A camioneta, com a sua escolta, dobrou uma esquina e
afastou-se rapidamente.
Albert consultou, cauteloso, o conta-quilômetros. — Creio que
aqueles meninos gostariam de me apanhar por excesso de velocidade...
— Tem toda a razão. — concordou Mac, que em seguida disse a Jim:
— Baixa a cabeça se passarmos por alguém. — E de novo para Albert:
— Se alguém tentar deter-nos, passe-lhe por cima. Lembre-se do que
aconteceu à camioneta do Dakin.
Albert acenou afirmativamente e baixou a velocidade para 65
quilômetros.
— Ninguém me deterá. Toda a minha vida guiei camionetas...
sempre que pude, claro.
Em vez de atravessarem a cidade contornaram uma das suas
extremidades, atravessaram uma ponte de madeira sobre o rio e
entraram na Gallinas Road. Albert afrouxou, para deixar o rapaz ruivo
saltar. O jovem acenou-lhes alegremente com a mão, quando se
afastaram. A estrada seguia entre filas intermináveis de macieiras.
Percorreram cinco quilômetros até ao sopé dos montes, antes de os
pomares começarem a rarear e a serem substituídos por campos de
restolho. Jim ia observando as caixas de correio metálicas, ao longo da
estrada.
— Duzentos e dezoito. — anunciou — Já não deve ser muito longe.
Um dos polícias voltou para trás, na direção da cidade, mas o outro
continuou a acompanhá-los.
— É ali! — disse Jim — Aquele grande portão branco. Albert virou e
parou, enquanto um dos homens se apeava e abria o portão. O polícia
parou também e desmontou.
— Propriedade privada! — gritou-lhe Mac.
— Eu ficarei por aqui, amigo. — respondeu-lhe o polícia — Ficarei
apenas por aqui.
Uns cem metros adiante erguia-se uma casinha branca sob uma
enorme aroeira de ramos estendidos e, atrás dela, um grande barracão,
também branco. Um camponês atarracado de bigode cor de palha, saiu
vagarosamente de casa e ficou parado, a esperá-los. Alfred travou e
Mac disse: — Viva, amigo. A senhora disse-nos que viéssemos buscar
umas coisas.
— Sim, bem sei. Duas velhas vacas leiteiras e um bezerro.
— Podemos abatê-los aqui?
— Podem, mas tratem vocês disso. E depois limpem tudo, não façam
chiqueiro.
— Onde estão os animais?
— No barracão. Mas não os matem lá. Faria chiqueiro no barracão.
— Sem dúvida. Para junto do barracão, Albert.
Quando a camioneta parou, Mac apeou-se, contornou o veículo e
perguntou: — Algum de vocês já matou uma vaca?
— O meu velho trabalhava num matadouro. — informou Jim — Posso
indicar-lhes como é. Tenho o braço demasiado dorido para tratar eu do
assunto.
— Está bem.
O camponês aproximara-se e Jim perguntou-lhe:
— Tem uma marreta?
O homem apontou um polegar na direção de um pequeno telheiro
contíguo ao barracão.
— E uma faca?
— Tenho uma boa faca, mas devolvam-ma. — e afastou-se, de novo
na direção da casa.
Jim virou-se para os homens e disse: — Dois de vocês vão ao
barracão e tragam primeiro o bezerro, que deve ser o mais arisco.
O camponês voltou, apressado, trazendo numa das mãos um martelo
de cabo curto e cabeça pesada e na outra uma faca. Jim pegou na, faca
e observou-a. A lâmina estava tão afiada que se tornara esguia e
brilhante e o bico parecia o de uma agulha. Experimentou o gume, com
o polegar.
— Afiada. — disse o homem — Está sempre afiada. — tirou a faca
das mãos de Jim, limpou na manga e a deixou cintilando — Aço alemão.
— elogiou, com o seu sotaque germânico — Bom aço.
Quatro homens saíram a correr do barracão, ladeando um bezerro
vermelho, de um ano. Agarravam uma corda que lhe tinham passado ao
pescoço e conduziam-no empurrando-o com os ombros. Enterraram os
calcanhares no chão para o imobilizar, irrequieto, entre eles.
— Aqui. — disse o camponês — Aqui o sangue pode ser absorvido
pelo solo.
— Devíamos aproveitar o sangue. — disse Mac — É um bom
alimento, forte. Se tivéssemos qualquer coisa para o levar...
— O meu velho costumava bebê-lo. — observou Jim — Eu não sou
capaz. Agonia-me. —Mac, pega no martelo — Agora bate-lhe aqui
mesmo, na cabeça, com uma pancada certeira e forte. — entregou a
faca a Albert Johnson e disse-lhe: — Vê onde está a minha mão? É aqui
que deve cravar a faca, assim que Mac lhe der com o martelo. Há aí uma
grande artéria. Abra-a.
— Como saberei se acertei?
— Esteja descansado que saberá: esguichará sangue como um
cano de meia polegada. Vocês afastem-se do caminho.
Dois homens, aos lados, seguraram o bezerro, que não parava. Mac
fê-lo ajoelhar, com a pancada, e Albert cravou a faca, cortou a artéria e
saltou para trás, para fugir do jorro de sangue. O bezerro estremeceu e
depois deixou-se cair devagar. Apoiou o focinho no solo plano e
encolheu as pernas. A poça de sangue grosso, escuro, alastrou no chão
molhado.
— É uma pena não o podermos aproveitar. — lamentou Mac — Se ao
menos tivéssemos um barrilito...
— Tragam uma vaca. — gritou Jim — Tragam-na para aqui.
Os homens tinham sentido curiosidade, aquando do primeiro abate,
mas quando as duas vacas foram mortas não se chegaram tanto para a
frente para verem. Depois de abatidos os animais e enquanto o sangue
lhes borbotava lentamente da garganta, Albert limpou a faca peganhenta
a um bocado de serapilheira e devolveu-a ao camponês. A seguir
aproximou a camioneta em marcha atrás, e os homens içaram os corpos
pesados e flácidos para a caixa, deixando as cabeças pendentes para
poderem sangrar para o chão. Por fim empilharam as sacas de feijão-de-
lima na parte da frente da caixa e sentaram-se-lhes em cima.
— Obrigado, amigo. — disse Mac ao camponês.
— A propriedade não é minha. Nem as vacas. Sou rendeiro de uma
parte.
— Bem, nesse caso, obrigado pelo empréstimo da faca.
Mac ajudou um pouco Jim a subir para a camioneta e a chegar-se
para Albert Johnson que tinha a manga da camisa suja de sangue até
ao ombro. Albert ligou o motor preguiçoso e meteu cuidadosamente pelo
caminho irregular. O policia de trânsito esperava-os ao portão, e quando
chegaram à estrada municipal seguiu-os de certa distância.
Os homens sentados nas sacas começaram a cantar: — Sopa, sopa,
dêem-nos um pouco de sopa... Não queremos mais nada além de um
pouco de sopa.
O polícia sorriu-lhes e um dos homens cantou, para ele: — Ai
queridinhas, ai queridinhas, Até o chefe da Polícia é mariquinhas.
Na cabina, Mac inclinou-se para a frente, para falar com o motorista:
— Albert, convinha-nos evitar a cidade. Temos de levar este material
para o acampamento. Veja se consegue, sei lá, contorná-la, mesmo que
seja mais longe.
Albert acenou com a cabeça, melancolicamente. Entretanto o sol
começara a brilhar, mas estava muito alto e não aquecia.
— Os rapazes vão-se sentir ótimos com isto. — comentou Jim.
Albert acenou de novo. — Deixe-os encher barriga de carne e cairão
no sono. — comentou.
— Estou surpreendido consigo, Albert! — confessou Mac, rindo —
Não tem ideias bonitas acerca da nobreza do trabalhador?
— Não tenho nada. Nem ideias bonitas, nem dinheiro, nem nada.
— Não tem nada a perder além das cadeias que o prendem. —
murmurou Jim, baixinho.
— Tretas! Não tenho nada a perder além do cabelo.
— Tem esta camioneta. — lembrou Mac — Como levar provisões sem
uma camioneta?
— A camioneta é que me tem a mim. — protestou Albert. — A
malvada suga-me até ao osso. — olhou tristemente em frente, quase
sem mexer os lábios enquanto falava — Quando tenho trabalho, arranjo
três dólares à maior e decido engatar uma gaja, há sempre qualquer
coisa que se vai ao ar nesta campana e custa três dólares. Nunca falha.
A maldita camioneta é pior do que uma mulher.
— Em qualquer bom sistema você teria uma boa camioneta. —
sentenciou Jim, todo inflamado.
— Sim? Em qualquer bom sistema eu teria uma gaja. Não sou o
Dakin. Se a camioneta dele soubesse cozinhar, o tipo não precisaria de
mais nada.
— Estás a falar com um homem que sabe o que quer. — disse Mac a
Jim — E o que ele quer é um automóvel.
— É isso mesmo. — confirmou Albert — Creio que fiquei assim
depois de matar as vacas. Antes sentia-me bem.
Estavam novamente nos intermináveis pomares. A chuva escurecia
as folhas e a terra. Nas valas ao lado da estrada corria um pouco de
água lamacenta e agitada. O polícia de trânsito seguia-os enquanto
Albert mudava de uma estrada para outra, fazendo um circuito anguloso
da cidade. Através das árvores viam as casas onde moravam os
proprietários ou os meeiros residentes.
— Se não fosse por deteriorar tanto o moral dos nossos homens,
desejaria que a chuva continuasse. Não faria nada bem às maçãs. —
observou Mac.
— Também não está a fazer bem nenhum aos meus cobertores. —
resmungou Albert.
Na caixa, os homens cantavam em coro: — Oh, cantamos, cantamos,
cantamos Sobre Lydia Jenkham e sua dádiva à espécie humana...
Albert contornou uma curva e desembocou na estrada para a
propriedade de Anderson.
— Bom trabalho, Albert. — elogiou Mac — Não se aproximou da
cidade. Seria uma chatice se nos obrigassem a parar e perdêssemos a
carga.
— Olha para o fumo Mac. — disse Jim — Eles não se esqueceram de
acender a fogueira.
O fumo azul enovelava-se entre as árvores como se tivesse
dificuldade de subir acima das suas copas.
— É melhor seguir ao longo do acampamento, junto das árvores. —
aconselhou Mac — Será necessário esquartejar os animais e não há
onde pendurá-los, a não ser nas macieiras. Havia homens na estrada, a
esperá-los. Quando a camioneta passou por eles, os que vinham
sentados nas sacas de feijão levantaram-se, tiraram o chapéu e
inclinaram-se. Albert afrouxou e passou devagarinho por entre os
homens até ao fim do acampamento, onde se erguiam as macieiras.
London com Sam atrás, abriu caminho através do grupo de homens e
mulheres que gritavam histericamente.
— Pendurem os animais! — gritou Mac — Escute, London, diga aos
cozinheiros que cortem a carne fina, para cozinhar mais depressa. Esta
gente está esfomeada.
Os olhos de London estavam tão brilhantes como os dos homens que
o cercavam.
— Jesus, que vontade de comer! — exclamou — Já quase tínhamos
perdido a esperança de os ver chegar.
Os cozinheiros abriram por sua vez caminho através da multidão. Os
animais foram suspensos dos ramos mais baixos das árvores,
estripados e esfolados.
Mac gritou: — London, não os deixe desperdiçar nada! Aproveitem os
ossos, as cabeças e as patas para sopa.
Levaram para a fogueira uma vasilha de bocados de carne e a turba
foi atrás deixando aos magarefes mais espaço de manobra. Mac
observava a cena do estribo da camioneta, mas Jim continuava sentado
na cabina, com uma perna de cada lado da alavanca de mudanças. Mac
virou-se, preocupado, para ele.
— Que se passa, Jim? Não te sentes bem?
— Sinto-me bem, mas tenho o ombro de tal maneira rígido que quase
não me atrevo a mexê-lo.
— Deves ter apanhado frio. Vamos ver se o doutor pode remediar
isso um bocado.
Ajudou Jim a descer da camioneta e segurou-lhe no cotovelo, para o
amparar, enquanto caminhavam na direção da cova onde ardia a
fogueira. Pairava por todo o acampamento o cheiro da carne a cozinhar
e a gordura que pingava para as brasas fazia jorrar pequenas e ardentes
labaredas, que a devoravam. Os homens comprimiam-se tão
densamente à volta da fogueira que os cozinheiros, que viravam a
carne com compridos paus aguçados, tinham dificuldade em
movimentar-se. Mac levou Jim para a tenda de London.
— Vou pedir ao doutor que venha cá. Deixa-te ficar aqui sentado.
Depois trago-te carne, quando estiver cozinhada.
O interior da tenda estava na penumbra. A pouca luz que se filtrava
através da lona era cinzenta. Quando os olhos de Jim se habituaram à
luz ambiente, viu Lisa sentada no colchão, com o bebê ao colo, debaixo
do pequeno cobertor. Fitou-o, com os olhos escuros e interrogadores, e
Jim saudou-a: — Olá! Como vai isso?
— Vai bem.
— Posso-me sentar no seu colchão? Sinto-me um pouco fraco.
A rapariga meteu as pernas debaixo do corpo e desviou-se. Jim
sentou-se ao lado dela.
— Que cheiro bom é este?
— Carne. — respondeu Jim — Vamos ter muita carne.
— Gosto de carne. Creio que até era capaz de viver só de carne.
O filho magro e moreno de London entrou na tenda e parou a olhar
fixamente para os dois.
— Ele está ferido — apressou-se Lisa a explicar — Não está a fazer
mal nenhum. Está ferido no ombro.
— Ah! — murmurou o rapaz, suavemente — Não pensei que
estivesse a fazer mal. — e para Jim: — A Lisa pensa sempre que a
estou a olhar com esse sentido, mas não estou. — e acrescentou,
sentencioso: — Penso que quando não somos capazes de confiar numa
rapariga não vale a pena vigiá-la. Uma vadia é uma vadia, e a Lisa não
o é. Não tenho direito nenhum de a tratar como vadia. — fez uma pausa
— Têm carne, lá fora, muita carne. E feijão-de-lima, também. Mas o
feijão não é para agora.
— Também gosto de feijão. — disse a rapariga.
— Os homens nem querem esperar que a carne esteja cozinhada. —
continuou o rapaz. — Querem comê-la rosada por dentro. Ainda
adoecem, se não têm cuidado.
As abas da tenda abriram-se de novo, desta vez para deixarem
passar o Dr. Burton, que trazia na mão uma vasilha de água fumegante.
— Parece a sagrada família. — comentou — O Mac disse que o seu
braço estava ficando rígido.
— Estou muito dorido.
O médico olhou para a rapariga e perguntou-lhe: — Acha que podia
deitar o bebê o tempo suficiente para aplicar uns panos quentes no
ombro do Jim?
— Eu?
— Sim. Eu estou ocupado. Tire o casaco dele e vá pondo água
quente na parte que está rígida. Não deixe entrar água na ferida, se
puder evitá-lo.
— Acha que serei capaz?
— Por que não há-de ser? Ele também a ajudou, não ajudou? Vá, tire
o casaco e a camisa dele. Eu estou ocupado. Faço curativo novo
quando você acabar. — e saiu.
— Quer que faça o que ele disse? — perguntou a rapariga a Jim.
— Claro que quero! Porque não? Você é capaz de o fazer.
Lisa entregou o filho a Joey e ajudou Jim a despir o casaco azul e a
baixar a camisa.
— Não usa roupa interior?
— Não.
A rapariga calou-se e, em silêncio, aplicou pensos quentes no
músculo do ombro, até a rigidez dolorosa abrandar. Os seus dedos
comprimiam os pensos, mudavam-nos e comprimiam-os de novo,
cuidadosamente, enquanto o marido observava. O médico regressou
pouco depois e Mac entrou com ele, trazendo um grande bocado de
carne enegrecida pelo fumo, espetada num pau.
— Sente-se melhor?
— Muito melhor. Ela fez tudo muito bem.
A rapariga recuou e baixou os olhos, constrangida. Burton ligou
rapidamente o ferimento e Mac estendeu a Jim o grande bocado de
carne.
— Pus-lhe sal, lá fora. O doutor acha que é melhor não voltares a sair
esta noite.
Burton confirmou, com um aceno de cabeça.
— Podia apanhar frio e ter febre e então é que não poderia fazer
mesmo nada.
Jim encheu a boca de carne dura e mastigou. — Os rapazes gostam
da carne, Mac?
— Estão todos impacientes, acham-se capazes de dominar o mundo,
agora. Vão sair e meter alguém na ordem. Eu sabia que isso
aconteceria.
— Vão fazer piquete, hoje?
Mac pensou um bocado, antes de responder: — De qualquer maneira,
tu não vais. Ficas aqui, no quente.
Joey entregou o filho à mulher e perguntou a Mac: — Há carne
suficiente?
— Com certeza.
— Então vou buscar um bocado para a Lisa e para mim.
— Pois vá, homem. Escuta, Jim, nada de lamúrias nem de protestos.
Não vai acontecer grande coisa, pois a tarde já vai adiantada. O London
resolveu mandar alguns tipos, de carro, para ver quantos furas estão a
trabalhar. Depois de eles verem quantos são, amanhã de manhã
começaremos a fazer alguma coisa a esse respeito. Agora temos com
que alimentar os rapazes durante uns dias. As nuvens estão a dissipar-
se e teremos tempo frio e desanuviado.
— Ouviste dizer alguma coisa acerca de furas?
— Não, nem por isso. Alguns tipos dizem que estão a chegar furas
em camionetas, com guardas, mas num acampamento destes não
podemos acreditar em tudo. Não deve haver no mundo um lugar mais
propício a boatos.
— Os rapazes estão muito calados, agora...
— Porque não? Têm a boca cheia. Amanhã temos de começar a
pintar a manta. Creio que não poderemos fazer greve durante muito
tempo e, por isso, temos de agir com dureza.
Na estrada ouviu-se o ruído de um motor, que emudeceu logo a
seguir. Fora da tenda, soou um súbito alarido de vozes a que de novo se
sucedeu o silêncio. Sam enfiou a cabeça na abertura da tenda e
perguntou:
— O London está aí?
— Não. Que se passa?
— Chegou um filho da puta aperaltado, num automóvel reluzente, e
diz que quer falar com o chefe.
— A respeito de quê?
— Não sei. Diz apenas que quer falar com o chefe dos grevistas.
— O London está junto da fogueira. Diga que venha já. O tipo deseja
provavelmente discutir o assunto.
— Está bem, eu digo-lhe.
Um momento depois, London entrou na tenda seguido pelo
desconhecido, um homem atarracado, de ar abastado e fato cinzento.
Tinha as faces rosadas e bem escanhoadas e o cabelo quase todo
branco. Dos cantos dos olhos partiam-lhe rugas de riso e todas as vezes
que falava desenhava-se-lhe na boca um sorriso franco e cordial.
— É o chefe do acampamento? — perguntou a London.
— Sou. — respondeu o interpelado, desconfiadamente — Sou o
chefe eleito.
Sam entrou e foi colocar-se logo atrás de London, de rosto fechado e
carrancudo. Mac acocorou-se e equilibrou-se com os dedos. O recém-
chegado sorriu. Tinha dentes brancos e regulares.
— Chamo-me Bolter. — anunciou, simplesmente — Tenho um grande
pomar e sou o novo presidente da Associação de Produtores de Fruta
deste vale.
— E depois? — inquiriu London — Tem um bom emprego para mim
se eu atraiçoar os homens?
O sorriso não abandonou o rosto de Bolter, mas a suas mãos limpas
e rosadas fecharam-se devagarinho, aos lados do corpo.
— Façamos um esforço para começar de maneira melhor. — pediu —
Disse-lhe que sou o novo presidente. Isso significa que há uma
mudança de política. Não concordo que as coisas se façam como
estavam a ser feitas.
Enquanto escutava as palavras do visitante, Mac olhava para
London e não para Bolter. A cólera dissipou-se parcialmente do rosto do
primeiro, que perguntou:
— Que tem a dizer? Fale.
Bolter olhou em seu redor, à procura de um lugar para se sentar, e
não encontrou nada.
— Nunca me pareceu que dois homens pudessem fazer fosse o que
fosse rosnando um ao outro. Sempre fui de parecer de que, por muito
furiosos que os homens estivessem, poderiam conseguir qualquer coisa
boa desde que se sentassem juntos, com uma mesa de permeio.
— Não temos mesa. — declarou London, sarcástico.
— Sabe o que quero dizer. Na Associação toda a gente disse que
vocês não dariam ouvidos à razão, mas eu afirmei-lhes que conhecia os
trabalhadores americanos. Os trabalhadores americanos ouvirão, desde
que se diga algo razoável.
Sam cuspiu para o chão e resmungou: — Estamos a ouvir, não
estamos? Continue e diga-nos algo razoável.
Os dentes brancos de Bolter cintilaram e ele olhou à sua volta,
apreciativamente.
— Vêem? Foi isso que eu lhes disse. Deixem-me pôr as nossas
cartas na mesa e deixar que eles ponham as deles, e verão se
conseguimos ou não uma boa mão. Os trabalhadores americanos não
são animais.
— Devia candidatar-se ao Congresso. — murmurou Mac.
— Perdão?
— Estava a falar com este tipo.
O rosto de London tornara-se de novo duro.
— É para isso que estou aqui, para pôr as nossas cartas na mesa. —
prosseguiu Bolter — disse que sou dono de um pomar, mas não julguem
que, por causa disso, não levo os vossos interesses a peito. Todos nós
sabemos que não conseguiremos ganhar dinheiro se o trabalhador não
se sentir feliz. — fez uma pausa, à espera de uma reação, mas não
houve nenhuma — A meu ver, vocês estão a perder dinheiro e nós
também porque nos limitamos a rosnar uns aos outros. Queremos que
voltem para o trabalho. Assim vocês receberão o salário e nós ficaremos
com as maçãs apanhadas. Desse modo, ambos os lados se sentirão
felizes. Voltam para o trabalho? Se voltarem, não haverá perguntas nem
ressentimentos. Apenas de dois lados que resolveram um problema
sentando-se a uma mesa.
— Claro que voltaremos para o trabalho. — respondeu London —
Não somos trabalhadores americanos? Dêem-nos o aumento que
queremos e expulsem os furas, e amanhã lá estaremos, empoleirados
nas velhas árvores.
Bolter sorriu a todos, um de cada vez, deixando o sorriso repousar um
instante no rosto de cada homem. — Bem, eu penso que têm de ter um
aumento. E disse a toda a gente que pensava isso mesmo. A verdade é
que não sou um bom homem de negócios, como o resto da Associação
me explicou. Com as maçãs ao preço que estão, estamos a pagar o
salário mais alto que é possível. Se pagarmos mais perdemos dinheiro.
— Creio que, afinal de contas, não somos trabalhadores americanos.
— declarou Mac, sorridente — Nada do que acabei de ouvir me pareceu
razoável. Até agora, pareceu-me apenas uma peúga cheia de chulé.
— O motivo por que não podem pagar o aumento é porque isso
significaria que vencêramos a greve. — disse Jim — E se isso
acontecesse, uma quantidade de outros pobres diabos irá também para
a greve. Não é verdade, mister?
O sorriso de Bolter permaneceu imperturbável. — Pensei desde o
princípio que vocês mereciam um aumento, mas não tinha poder
nenhum para fazer valer o meu ponto de vista. Continuo a pensar do
mesmo modo e agora sou o presidente da Associação, à qual disse o
que tencionava fazer. Alguns dos membros não gostaram, mas eu insisti
em que vocês tinham de receber um aumento. Ofereço-lhes vinte
cêntimos, sem perguntas nem ressentimentos. Esperamo-los de
regresso ao trabalho amanhã de manhã.
London olhou para Sam, riu-se da expressão façanhuda do seu rosto
e deu-lhe uma palmada nas costas.
— Mr. Bolter, como o Mac disse, creio que não somos trabalhadores
americanos. O senhor queria cartas na mesa e pôs as suas voltadas
para baixo. Aqui estão as nossas, e como vê são um full! As suas
malditas maçãs têm de ser apanhadas e nós não as apanharemos sem
o nosso aumento. Não as apanharemos nós nem ninguém. Que pensa
disto, Mr. Bolter?
O sorriso apagara-se finalmente do rosto do visitante. — A nação
americana tornou-se grande porque toda a gente colaborou. — disse,
gravemente — Os trabalhadores americanos são os melhores
trabalhadores do mundo e os melhor pagos.
— Acha que darão a um china meio cêntimo por dia se isso lhe
chegar para comer? — perguntou London, irritado — Que raio nos
importa quanto ganhamos se temos de passar fome?
O sorriso voltou: — Tenho um lar e filhos, tenho trabalhado muito.
julgam que sou diferente de vocês, mas eu quero que me considerem
também um trabalhador. Tive de trabalhar para conseguir tudo quanto
tenho. Ouvi dizer que estavam aqui radicais, a trabalhar com vocês, mas
eu não acredito. Não acredito que homens americanos, com ideais
americanos, dêem ouvidos a radicais. Estamos todos no mesmo barco.
Os tempos são difíceis e nós tentamos vencer as dificuldades, mas para
isso temos de nos ajudar uns aos outros.
— Pelo amor de Deus, deixe-se dessa conversa! — berrou, de súbito,
Sam — Se tem alguma coisa a dizer, diga-a. Mas acabe com o maldito
discurso.
Bolter fez uma cara muito triste. — Aceitarão metade?
— Não. — respondeu London — Não nos ofereceria metade se não
estivessem aflitos.
— Como sabe que os homens não aceitarão, se submeter a proposta
a votação?
— Olhe, os rapazes estão tão cheios de fel que o esfolarão se
mostrar essa fatiota elegante lá fora. Estamos em greve para
conseguirmos o nosso aumento. Faremos piquetes nos seus malditos
pomares e desancaremos todos os furas que mandarem vir. Agora
vomite lá o seu “senão...”. Vire o raio das cartas. Que tencionam fazer se
não regressarmos ao trabalho?
— Dar rédea solta aos vigilantes. — disse Mac.
— Não sabemos nada acerca de vigilantes. — apressou-se Bolter a
declarar — Mas se os cidadãos indignados se reunirem para manter a
paz, isso é com eles. A Associação nada sabe a tal respeito. — voltou a
sorrir — Não compreendem que se atacam os nossos lares e os nossos
filhos nós temos de os proteger? Não protegeriam também os seus
próprios filhos?
— Que diabo julga que estamos fazendo? — gritou London —
Estamos a tentar protegê-los da fome e para isso utilizamos o único
meio de que os trabalhadores como nós dispõem. Não desate para aí a
falar em filhos, se não quer que lhe mostremos uma coisa.
— Só desejamos arrumar este assunto pacificamente. — insistiu
Bolter — Os cidadãos americanos exigem ordem, e eu garanto-vos que
a teremos, ainda que tenhamos de pedir tropas ao governador.
Sam gritou, com a boca molhada de saliva: — Consegue a sua ordem
disparando sobre os nossos homens de janelas, seu pulha cobarde! E
em São Francisco obtiveram ordem passando com os cavalos por cima
de mulheres! E depois os jornais dizem: “Esta manhã foi morto um
grevista quando se atirou contra uma baioneta.” Quando se atirou!
London passou os braços à volta do enfurecido Sam e obrigou-o,
pouco a pouco, a afastar-se de Bolter. — Acalma-te, Sam. Pára com
isso. Vá, tem calma.
— Vá para o Inferno! — gritou Sam — Deixa-se ficar a ouvir as tretas
que esse grande trapalhão lhe impinge?
O corpo de London retesou-se, de súbito. Fechou o enorme punho e
esmurrou a cara de Sam, que caiu. London ficou parado, a olhá-lo, e
Mac desatou a rir histericamente.
— Um grevista acaba de se atirar contra um punho fechado! —
exclamou.
— Está bem, London, venceu. — disse Sam, sentando-se no chão. —
Não faço mais banzé, mas você não esteve em São Francisco na
Quinta-Feira Sangrenta.
— Esperava que dessem ouvidos à razão. — disse Bolter, que não se
mexera de onde estava — Temos informações de que estão a ser
influenciados por radicais, mandados para cá por organizações
vermelhas. Eles estão a desencaminhá-los, a mentir-lhes. Só querem
fomentar a agitação, são agitadores profissionais, pagos para provocar
greves.
Mac levantou-se.
— As imundas ratazanas! — exclamou — A desencaminharem
trabalhadores americanos, hem? Provavelmente pagas pela Rússia,
não acha Mr. Bolter?
O homem olhou-o durante muito tempo e o vermelho saudável
desapareceu-lhe das faces. — Creio que nos vão obrigar a lutar. —
murmurou — Lamento-o. Queria paz. Sabemos quem são os radicais e
teremos de agir contra eles. — voltou-se, suplicante, para London e
acrescentou: — Não consintam que eles os desencaminhem!
Regressem ao trabalho, nós só queremos paz.
— Estou farto dessa conversa. — resmungou London — Vocês
querem paz. Mas que diabo fizemos nós? Marchamos em dois cortejos.
E que fizeram vocês? Dispararam contra três dos nossos homens,
deitaram fogo a uma camioneta e a um restaurante e cortaram-nos o
fornecimento de víveres. Estou farto das suas malditas mentiras, mister.
Permitirei que saia sem o Sam lhe pôr a mão, mas não mandem mais
ninguém enquanto não estiverem dispostos a falar claro.
Bolter abanou a cabeça, tristemente. — Nós não queremos lutar com
vocês, trabalhadores, queremos que regressem ao trabalho. Mas se
formos obrigados a lutar, dispomos de armas. As autoridades sanitárias
estão muito preocupadas com este acampamento e o Governo não
gosta que entre neste condado carne que não foi inspecionada. Os
cidadãos estão fartos de toda esta agitação... E, claro, seremos forçados
a chamar tropas, se precisarmos delas.
Mac levantou-se, foi à entrada da tenda e olhou para o exterior. Já
começava a escurecer. Reinava silêncio no acampamento, pois os
homens estavam parados, a olhar para a tenda de London. Todos os
rostos, brancos na escuridão que descia, estavam voltados para a tenda.
Mac gritou: — Tranquilizem-se, rapazes, não vamos traí-los. — Entrou e
disse a London: — Acenda a lanterna. Quero dizer umas coisas a este
amigo dos homens.
London chegou um fósforo à lanterna de folha e suspendeu-a da trave
da tenda, de onde irradiou uma luz pálida, mas firme. Mac parou diante
de Bolter e o seu rosto musculoso franziu-se num sorriso sarcástico. —
Muito bem, menino bonito, esteve a falar como um valente, mas eu sei
que, entretanto, foi molhando as calças. Admito que poderão fazer todas
as coisas que disse, mas pense no que acontecerá depois. Os vossos
serviços sanitários queimaram as tendas, em Washington, e essa foi
uma das razões por que Hoover perdeu o voto dos trabalhadores.
Mandaram chamar os guardas, em São Francisco, e quase toda a
cidade se colocou ao lado dos grevistas. Tiveram de encarregar os tiras
de impedir a entrada de comida para voltar a opinião pública contra a
greve. Agora não estou a falar de certo e errado, estou apenas a dizer-
lhe o que acontece. — Mac recuou um passo e prosseguiu: — Onde
julga que obtemos comida, cobertores, remédios e dinheiro? Sabe
perfeitamente onde os arranjamos. O seu vale está infestado de
simpatizantes. Os seus “cidadãos indignados” estão um bocadinho
indignados com vocês, meus filhos, e vocês também o sabem muito
bem. E também sabem que, se se tornarem demasiado duros, os
sindicatos se colocarão do nosso lado. Camionistas, empregados de
restaurantes, trabalhadores do campo, todos. E como o sabem, tentam
um bluff. Mas não pega. Este acampamento é mais limpo do que os
malditos dormitórios que nos reservam nos ranchos. Veio aqui tentar
assustar-nos, mas não pegou.
Muito pálido Bolter virou-se e olhou para London.
— Tentei conseguir a paz. — disse — Sabe que este homem foi
mandado pelas organizações vermelhas para desencadear a greve?
Tenha cuidado, para quando ele for para a cadeia não ir também.
Temos o direito de proteger o que é nosso, e protegeremos. Tentei lidar
de homem para homem consigo, mas não quis. Doravante as estradas
estão fechadas. Esta noite sairá uma ordem proibindo todas as marchas
e todos os ajuntamentos nas estradas municipais. O xerife nomeará mil
ajudantes, se for preciso.
London olhou rapidamente para Mac, que lhe piscou o olho. — Jesus,
mister, espero que possamos fazê-lo sair daqui em segurança! Quando
os rapazes que estão lá fora souberem o que acaba de dizer, desejarão
fazê-lo em fanicos.
Bolter cerrou os queixos, baixou as pálpebras e endireitou os ombros.
— Não julgue que consegue assustar-me. Defenderei a minha casa e os
meus filhos com a própria vida, se for preciso. E se me puserem a mão
acabaremos com a greve antes de amanhecer.
London arqueou os braços e deu um passo em frente, mas Mac
atravessou-se-lhe no caminho.
— O tipo tem razão, London, não é dos que se assustam. Há muitos
que se assustam, mas ele, não. — virou-se e acrescentou: — Mr. Bolter,
garantimos-lhe a saída do acampamento em segurança. Agora
entendemo-nos uns aos outros. Sabemos o que podemos esperar de
vocês e vocês sabem que terão de ser muito cuidadosos quando
utilizarem a força. Não se esqueça dos milhares de pessoas que nos
estão a enviar provisões e dinheiro. Essas pessoas também farão outras
coisas, se for preciso. Temos sido bons, Mr. Bolter, mas se tomarem
alguma atitude desagradável mostraremos um motim de que nunca mais
se esquecerão.
— Parece estar tudo dito. — declarou Bolter, friamente — Lamento,
mas terei de comunicar que não quiseram ir ao nosso encontro, a meio
caminho.
— Meio caminho? — repetiu Mac — Não há meio caminho para lado
nenhum. — a sua voz tornou-se muito suave, ao acrescentar: — London,
você e o Sam ladeiam-no e encarregam-se de que ele saia sem
novidade. Depois creio que será melhor contar aos rapazes o que ele
disse. Mas não os deixe perder a cabeça, diga que cerrem fileiras e
estejam preparados para complicações.
London e Sam ladearam Bolter e passaram com ele através da
multidão de homens silenciosos. Viram-no meter-se no automóvel e
seguir pela estrada abaixo. Depois de ele partir, London gritou:
— Se quiserem ir até à plataforma, rapazes, contar-lhes-ei o que o
filho da puta nos disse e o que nós lhe respondemos.
Voltou a abrir caminho pelo meio da multidão e os homens seguiram-
no, muito agitados. Os cozinheiros abandonaram os fogões, onde
estavam a cozer feijões e pedaços de carne.
As mulheres saíram de gatas das tendas, como roedores, e seguiram
os homens. Quando London subiu para a plataforma esta estava
cercada por um grande e compacto grupo de pessoas que o olhavam,
envolvidas pela penumbra do anoitecer.
Durante a conversa com Bolter, o Dr. Burton emudecera, tão quieto e
calado que parecia ter desaparecido. Mas quando o grupo saiu,
deixando apenas Jim e Lisa sentados no colchão, saiu do seu canto e
sentou-se ao lado deles, na beira da enxerga. Parecia preocupado.
— Vai ser muito duro. — murmurou.
— É isso que nós queremos, doutor. — disse Jim — Quanto pior for,
mais efeito terá.
Os olhos tristes de Burton fitaram-se nele.
— Você vê uma saída... Quem me dera ver, também, mas parece-me
tudo sem sentido... inútil e sem sentido.
— Tem de continuar. — afirmou Jim — Só pode parar quando os
trabalhadores forem senhores de si próprios e receberem o produto do
seu trabalho.
— Parece simples... Quem me dera ver tudo com essa simplicidade.
— virou-se, a sorrir, para a rapariga e perguntou-lhe: — Qual é a sua
solução Lisa?
Ela estremeceu. — O quê?
— Quero dizer, que gostaria de ter para se sentir feliz?
A jovem olhou constrangida para o bebê.
— Gostaria de ter uma vaca. Gostaria de ter manteiga e queijo, como
se pode ter com uma vaca.
— Queria explorar uma vaca?
— O quê?
— Estou a brincar. Alguma vez teve uma vaca, Lisa?
— Quando eu era pequenina tivemos uma. Bebíamos o leite quente.
O velho costumava mungi-la para uma espécie de tigela, para
bebermos. Era quentinho. É do que gosto. Acho que seria bom para o
bebê. — Burton virou lentamente a cabeça, mas ela insistiu. — A vaca
costumava comer erva e às vezes feno. Nem toda a gente as pode
mungir. Escouceiam.
— Alguma vez teve uma vaca, Jim?
— Não, doutor.
— Nunca pensei que as vacas fossem animais
contrarrevolucionários.
— Mas, afinal, de que está o doutor a falar?
— De nada. Creio que me sinto a modos que infeliz. Estive no
Exército, durante a guerra, mal tinha acabado os estudos. Levavam-me
um dos nossos homens com o peito esfrangalhado pelas balas ou um
alemão de olhos muito grandes, com as pernas arrancadas por
estilhaços. Eu trabalhava neles como se fossem de madeira. Mas às
vezes, depois de tudo acabado, quando já não estava a trabalhar, tudo
aquilo me tornava infeliz, como agora. Faz-me sentir solitário.
— Deve pensar apenas no fim, doutor. De toda esta luta há-de
resultar uma coisa boa e isso fará com que tenha valido a pena.
— Quem me dera saber que era assim. Mas a minha pouca
experiência tem-me demonstrado que o fim nunca é muito diferente, na
sua natureza, dos meios. Com mil raios, Jim com violência só se pode
construir uma coisa violenta.
— Não acredito, doutor. Todas as grandes coisas têm princípios
violentos.
— Não há quaisquer princípios... nem quaisquer fins. Parece-me que
o homem se lançou numa luta cega e terrível para sair de um passado
de que se não lembra e entrar num futuro que não pode prever nem
compreender. E o homem tem defrontado e vencido todos os obstáculos,
todos os inimigos, exceto um: não se pode vencer a si mesmo. Como a
humanidade se odeia a si própria!
— Nós não nos odiamos, a nós, o que odiamos é o capital investido
que nos mantém na mó de baixo.
— O outro lado é feito de homens, Jim, de homens como vocês. O
homem odeia-se. Os psicólogos dizem que o amor que o homem tem
por si próprio é perfeitamente contrabalançado pelo ódio que se devota.
Com a humanidade deve acontecer o mesmo. Lutamos contra nós
próprios e só conseguiremos vencer matando todos os homens. Sinto-
me só, Jim. Não tenho nada para odiar. Que vai você lucrar com isto?
Jim pareceu surpreendido. — Eu? — perguntou, apontando um dedo
ao próprio peito.
— Sim, você. Que ganhará com toda esta confusão?
— Não sei... nem me interessa.
— Bem, suponha que se desenvolve uma septicemia nesse ombro,
ou que morre de tétano, e que a greve acaba. Que pensa disso?
— Não tem importância nenhuma. Bem, dantes pensava como o
doutor, mas afinal descobri que não tem importância nenhuma.
— Como chegou a esse estado? Qual foi o processo?
— Não sei. Costumava sentír-me só, mas já não sinto. Se eu
desaparecesse agora isto não pararia. Sou apenas uma pequena
porção do todo, que não cessará de crescer. Esta dor no ombro é assim
como que agradável... e eu aposto que antes de morrer, o Joy se sentiu
momentaneamente contente. Sim, aposto que nesse momento se sentiu
contente.
Ouviram no exterior uma voz áspera e monótona, depois alguns
gritos e por fim um rugido colérico da multidão, como que um berro de
um animal enfurecido.
— O London está a dizer-lhes e eles estão furiosos. — observou Jim
— Jesus, como uma multidão furiosa consegue encher o ar de ira! O
doutor não compreende. O meu velho costumava lutar sozinho. Quando
estava vencido, estava vencido. Lembro-me como isso era uma coisa
solitária. Mas eu já não me sinto só e também não posso ser vencido,
porque sou mais do que eu próprio.
— Puro êxtase religioso. Isso posso eu compreender.
Compartilhantes do sangue do Cordeiro.
— Para o Diabo com a religião! Isto são homens, e não Deus. Isto é
qualquer coisa que conhecemos.
— Bem, e um grupo de homens não pode ser Deus?
Jim virou-se, irritado. — Usa demasiadas palavras, doutor! Faz uma
armadilha de palavras e depois cai nela. Mas a mim não me apanha. As
suas palavras não significam nada para mim; sei o que estou a fazer. A
argumentação não produz qualquer efeito em mim.
— Acalme-se. — aconselhou Burton, apaziguadoramente — Não se
excite dessa maneira. Eu não estava a argumentar e, sim, a pedir
informação. Todos vocês se enfurecem quando se lhes faz uma
pergunta.
À medida que o crepúsculo se transformava em noite, a luz da
lanterna parecia tornar-se mais forte, descobrir recessos mais profundos
da tenda com a sua claridade amarela. Mac entrou silenciosamente,
como se quisesse afastar-se, sorrateiro, do barulho e dos gritos do
exterior.
— Estão bravos. — comentou — E outra vez esfomeados. Esta noite
comerão carne cozida e feijão. Eu sabia que a carne os tornaria
pimpões... Por vontade deles, saíam daqui e iam deitar fogo a casas,
imediatamente.
— Como está o céu? — perguntou Burton — Ainda há ameaça de
chuva?
— Está claro e estrelado. Haverá bom tempo.
— Bem, preciso de falar consigo, Mac. Estou mal abastecido e
preciso de desinfectante. E também me faz falta Salvarsan. Se se
desencadear para aí uma epidemia estaremos cheios de azar.
— Bem sei. Mandei dizer para a cidade o que se passava. Alguns
dos rapazes andam a tentar recolher dinheiro, neste momento, para
afiançarem o Dakin. Por mim, preferia que ele ficasse na cadeia.
Burton levantou-se do colchão. — Pode dizer ao London o que deve
fazer, não pode? O Dakin não precisará de tudo quanto arranjarem.
Mac observou-o, com atenção, e perguntou-lhe: — Que se passa,
doutor? Não se sente bem?
— Porque pergunta?
— O seu bom gênio está desaparecendo e parece cansado. O que é,
doutor?
— Não sei. — respondeu Burton, enfiando as mãos nas algibeiras —
Sinto-me só, creio, terrivelmente só. Estou a trabalhar sozinho, a
trabalhar para nada. Para vocês há alguma compensação. Eu só
consigo ouvir pulsar o coração com um estetoscópio, mas vocês ouvem-
no no ar.
De súbito, inclinou-se para a frente, pôs a mão debaixo do queixo de
Lisa!, inclinou-lhe a cabeça para trás e fitou-lhe os olhos receosos. A
rapariga levantou a mão, devagarinho, e tentou afastar a dele,
delicadamente. Burton tirou a mão e meteu-a de novo na algibeira.
— Gostaria de conhecer alguma mulher a quem o pudesse mandar,
doutor, mas não conheço. — disse Mac — Sou novo nestas bandas. O
Dick talvez pudesse encaminhá-lo, na cidade. Provavelmente a esta
hora, já tem algumas vinte debaixo de olho. Mas você arriscava-se a ser
apanhado e metido na cadeia, e se deixasse de tomar conta de nós eles
expulsar-nos-iam num ápice deste acampamento.
— Às vezes compreende demasiado, Mac, outras... não compreende
nada. Bem, vou visitar o Al Anderson. Ainda lá não fui hoje.
— Vá, doutor, se isso lhe faz bem. Eu não deixarei o Jim sair esta
noite.
O médico olhou uma vez mais para Lisa e saiu. Os gritos tinham
terminado e agora os homens falavam em voz baixa. Mas tanto bastava
para impregnar a noite de vida, fora da tenda.
— O doutor não come e ninguém o vê dormir. — lamentou-se Mac —
Creio que se irá abaixo, mais cedo ou mais tarde, coisa que antes nunca
lhe tinha acontecido. Está muito precisado de uma mulher, de alguém
que goste dele durante a noite... que goste realmente dele. Precisa de
sentir alguém... com a pele. E eu também. Lisa, és uma patetinha cheia
de sorte, acabas de ter um miúdo. Se não fosse isso, não te largava.
— O quê?
— Perguntei como estava o bebê.
— Está bem.
Mac acenou gravemente com a cabeça a Jim e declarou: — Gosto de
uma pequena que não fala demasiado.
— Que se passou lá fora, Mac? Já estou farto de estar aqui dentro.
— Bem, o London contou o que o homenzinho sorridente lhe disse e
pediu um voto de confiança. Claro que o obteve, de caras. Agora está a
falar com os chefes de brigada, a respeito de amanhã.
— Que se vai passar amanhã?
— O homenzinho sorridente disse a verdade acerca da ordem que
sairia. A partir de amanhã será ilegal os rapazes marcharem pela
estrada municipal. Creio que não se lembrarão dos veículos. Por isso,
em vez de andarmos pelos pomares vamos enviar brigadas móveis nas
carripanas. Assim poderemos atacar um grupo de furas, pirar-nos e
atacar outro. Deve dar resultado.
— Onde vamos arranjar gasolina?
— Bem, tiramos de todos os carros e colocamos nos que utilizarmos.
Deve dar para amanhã. Talvez amanhã consigamos atacar com
suficiente força, o que nos permitirá descansar no dia seguinte, até eles
arranjarem uma nova leva de fura-greve.
— Amanhã posso ir, não posso?
— De que serviria ires? — gritou Mac, irritado — Os tipos que vão
têm de estar aptos para lutar. Tu, com esse braço assim, só ocuparias
espaço. Serve-te da cabeça.
London abriu as abas da tenda e entrou, corado de prazer. — Aqueles
tipos estão mesmo cheios de fogo! — exclamou — Jesus, estão
desertos por dar uma lição a Torgas.
— Não lhes solte a rédea. — aconselhou Mac — Eles têm o bandulho
cheio de morfos e se se apanham à solta, nunca mais os alcançamos.
London puxou um caixote e sentou-se. — O cozinheiro disse que a
comida estava quase pronta. Quero fazer-lhe uma pergunta, Mac. Toda
a gente diz que você é vermelho. Os dois tipos que vieram falar conosco
disseram-no ambos. Pareciam saber tudo a seu respeito.
— Sim?
— Seja franco comigo, Mac: Você e o Jim são vermelhos?
— Que lhe parece?
Os olhos de London chisparam furiosos, mas ele dominou-se. — Não
arme em engraçado, Mac. Não me agrada que os tipos do outro lado
saibam mais a respeito de vocês do que eu. Que diabo sei eu?
Chegaram ao meu acampamento e prestaram-nos um favor. Não lhes
fiz perguntas nenhumas, nunca. Nem lhas faria agora, mas tenho de
saber o que posso esperar.
Mac pareceu intrigado e olhou para Jim: — Está bem? — perguntou
ao rapaz.
— Por mim, está.
— Escute, London, um tipo é capaz de gostar tremendamente de
você. O Sam, por exemplo, desancará qualquer gajo que não o veja a si
com bons olhos.
— Tenho bons amigos. — declarou London.
— É exatamente por isso. Eu sinto o mesmo. Suponhamos que sou
vermelho. E depois?
— É meu amigo.
— Muito bem, então sou vermelho. Não há nenhum segredo nisso.
Dizem que fui eu que desencadeei esta greve, mas a verdade é outra:
tê-la-ia realmente desencadeado se pudesse, mas não foi preciso. Ela
começou por si só.
London fitou-o, cautelosamente, como se o seu cérebro contornasse
devagar o de Mac.
— Que lucra com a greve?
— Refere-se a dinheiro? Absolutamente nada.
— Então porque faz estas coisas?
— É difícil dizer... Você sabe o que sente pelo Sam e por todos os
tipos que viajam consigo, não sabe? Bem, eu sinto o mesmo por todos
os trabalhadores do país.
— Por tipos que nem sequer conhece?
— Sim, por tipos que nem sequer conheço. Aqui o Jim é a mesma
coisa, exatamente a mesma coisa.
— Parece uma loucura, um truque qualquer. E não recebem dinheiro
nenhum?
— Não vê por aí nenhuns Rolls-Royces. pois não?
— Mas... e depois?
— Depois o quê?
— Depois disto acabar, talvez cobrem.
— Não há depois nenhum. — afirmou Mac — Quando esta acabar,
iremos para outra.
London fitou-o, de olhos semicerrados, como se tentasse ler-lhe os
pensamentos.
— Acredito. — murmurou, devagar — Ainda não me pregou nenhuma
mentira.
Mac estendeu a mão e deu-lhe uma forte palmada no ombro.
— Ter-lo-ia dito antes, se mo tivesse perguntado.
— Não tenho nada contra os vermelhos. — declarou London —
Estão-nos constantemente a dizer que os vermelhos são uns filhos da
puta. O Sam é uma espécie de cascavel e tem um gênio dos diabos,
mas não é nenhum filho da puta. Vamos comer.
— Eu trago qualquer coisa para a Lisa e para ti, Jim. — prometeu
Mac.
London disse, da porta:
— A Lua está a nascer, bonita. Não sabia que era lua cheia.
— E não é. Onde está a ver a Lua?
— Olhe para ali, vê? Parece o nascer da Lua.
— O oriente não fica daquele lado... Jesus, é a casa do Anderson!
London eles deitaram fogo à casa do Anderson! Chame os rapazes.
Vamos depressa carago! Onde estão os guardas? Chame os rapazes
depressa! — e desatou a correr na direção da luz avermelhada que
começava a formar-se atrás das árvores.
Jim levantou-se do colchão de um pulo. Deixou de sentir o braço
ferido enquanto corria cinquenta metros atrás de Mac. Ouviu a voz forte
de London a gritar, e depois o tropel de muitos pés no solo úmido.
Chegou às árvores e começou a correr ainda mais. A luz vermelha
abria-se em cogumelo, atrás das árvores. Agora era mais do que um
clarão. Uma lança de chamas erguia-se acima das copas das macieiras.
Mais forte do que o tropel dos homens que corriam, ouvia-se um crepitar
violento, gritos agudos e como que um uivar abafado. As árvores
projetavam sombras, para lá da luz. O fim da vereda do pomar estava
bloqueado pelo fogo e, à frente, viam-se movimentar vultos negros. Jim
viu Mac, a correr adiante dele, e ouviu o crescente crepitar furioso das
chamas. Alcançou Mac e correu a seu lado.
— É o celeiro! — exclamou, ofegante. — Ainda não tinham levado as
maçãs?
— Jim! Raios te partam, não devias ter vindo! Não, as maçãs ainda
estão no celeiro. Onde diabo se teriam metido os guardas? Não se pode
confiar em ninguém.
Aproximaram-se do fim do caminho e o ar quente bateu-lhes no
rosto. Todas as paredes do celeiro estavam envoltas em fogo e grandes
chamas fortes irrompiam do telhado. Os guardas encontravam-se junto
da casinha de Anderson, imóveis, a observar o fogo, enquanto o velho
saltava, como um boneco articulado, diante deles.
Mac parou de correr. — É inútil, não podemos fazer nada. Devem ter
utilizado gasolina.
London passou por eles, desencabrestado e com uma expressão de
grande fúria. Parou junto dos guardas e berrou: — Malditas ratazanas!
Onde diabo estavam vocês?
Um dos homens ergueu a voz acima do ruído do fogo e respondeu-
lhe: — Você mandou um gajo dizer-nos que precisava de nós, íamos a
meio do caminho, direitos ao acampamento, quando isto começou.
A fúria de London esvaiu-se como por encanto. Abriu os grandes
punhos e voltou-se desalentado para Mac e Jim, cujos olhos brilhavam à
luz do incêndio. Anderson saltava perto deles, na sua dança louca e
desengonçada. Parou diante de Mac e esticou o queixo, quase a tocar-
lhe com ele na cara. — Imundo filho da puta!
Mas a voz morreu-lhe na garganta e o velho virou-se de novo, a
chorar, para a torre de chamas. Mac passou-lhe o braço pela cintura,
mas Anderson soltou-se. enlouquecido. Das chamas evolava-se o odor
pungente e doce das maçãs a arder.
Mac, que se sentia triste e fraco, disse a London: — Como gostaria
que isto não tivesse acontecido! Pobre velho, toda a sua colheita! — e,
de súbito, acudiu-lhe um pensamento, que o levou a perguntar: — Meu
Deus, deixou alguém a tomar conta do acampamento?
— Não. Nem pensei nisso.
Mac virou-se e gritou: — Venham, um grupo de vocês. Talvez eles
nos tenham atraído aqui com alguma intenção. Fiquem alguns aqui,
para evitar que a casa arda, também.
Regressou a correr pelo mesmo caminho. A sombra preta e comprida
saltava-lhe à frente. Jim tentou acompanhá-lo, mas sentiu-se fraco e
agoniado. Mac ganhou a dianteira e os homens ultrapassaram Jim, o
qual acabou por ficar sozinho, atrás de todos, tropeçando, estonteado,
no solo irregular. Não se viam homens no acampamento, em frente. Jim
deixou de correr e começou a andar ao longo da vaga alameda entre os
renques de árvores. Ouviu o estrondo do celeiro, ao ruir, e nem olhou
para trás. Quando se encontrava a meio do caminho, as pernas
dobraram-se-lhe, de fraqueza, e teve de se sentar pesadamente no
chão. O fogo iluminava o céu, por cima da sua cabeça, e as estelas
geladas pareciam suspensas atrás da luz osa e baixa.
Mac voltou atrás e encontrou-o.
— Que se passa, Jim?
— Nada. As minhas pernas enfraqueceram e resolvi descansar. Não
há novidade mo acampamento?
— Não, não foram lá. Mas há um homem ferido, caiu e creio que
partiu o tornozelo. Temos de encontrar o doutor. Recorreram a um
maldito truque tão fácil e nojento! Um dos gajos deles diz aos guardas
para irem ao acampamento, enquanto os restantes espalham gasolina à
volta do celeiro e lhe deitam um fósforo. Jesus, foi rápido! Agora vamos
ouvir o bonito do Anderson. Creio que teremos de sair da propriedade
amanhã.
— E para onde iremos, Mac?
— Mas tu estás nas últimas rapaz! Dá cá o braço, eu ajudo-te a
regressar. Viste o doutor mo incêndio?
— Não.
— Ele tinha dito que ia ver o Al e eu não o vi regressar. Vá, levanta-
te. Tenho de te meter na cama.
O clarão já começava a extinguir-se. Ao fundo da alameda ainda
havia fogo, mas as labaredas já não saltavam em compridas línguas.
— Apoia-te em mim. O Anderson estava quase doido, não estava?
Felizmente não lhe incendiaram a casa!
London, seguido por Sam, alcançou-os. — Como está o
acampamento?
— Não houve novidade. Não foram lá.
— E que tem o rapaz?
— Está fraco, do ferimento. Ampare-o desse lado.
Mac e London transportaram praticamente Jim pela alameda abaixo e
através da clareira até à tenda de London. Instalaram-no no colchão e
Mac perguntou a London: — Viu o doutor, lá em cima? Um tipo partiu o
tornozelo.
— Não, não o vi.
Sam entrou, silenciosamente, Músculos retesados atravessavam-lhe
o rosto magro. Aproximou-se, muito direito, e parou defronte de Mac. —
Naquela tarde, quando aquele tipo disse o que faria...
— Que tipo?
— Aquele que nos veio falar primeiro e a quem você disse...
— A quem eu disse o quê?
— O que nós faríamos.
Mac estremeceu e olhou para London. — Não sei, Sam... O que
aconteceu pode granjear-nos a simpatia do público, e nós precisamos
dela. Não a queremos perder.
O ódio tornava a voz de Sam rouca: — Não se pode permitir que
fiquem impunes. Não podis consentir que os grandes covardes corram
conosco pelo fogo.
— Deixa-te de enigmas, Sam. — ordenou London — Que queres,
afinal?
— Quero sair com uns rapazes... e brincar com fósforos. — Mac e
London observaram-no atentamente — Eu vou. — insistiu Sam —
Estou-me nas tintas, Vou. Há um tipo chamado Hunter que tem uma
grande casa branca. Levarei uma lata de gasolina.
Mac sorriu. — Olhe bem para este tipo, London. Alguma vez o viu?
Sabe quem é?
London percebeu-o: — Não, acho que não. Quem é?
— Não faço ideia. Ele esteve alguma vez no acampamento?
— Oh. Não. Talvez seja apenas um tipo com algum ressentimento.
Acusam-nos de tantas coisas!
Mac virou-se de novo para Sam e disse-lhe: — Se for apanhado, terá
de se aguentar.
— Aguentarei. — replicou Sam, irritado — Também não vou levar
ninguém comigo, não compartilharei nada. Mudei de ideias.
— Nós não o conhecemos. Trata-se apenas de um ressentimento da
sua parte.
— Odeio o gajo porque ele me roubou. — disse Sam.
Mac aproximou-se mais dele e agarrou-lhe no braço. — Deite fogo à
casa do canalha até não ficar nada. — disse, entre dentes — Deixe
arder tudo, tudo, tudo! Gostaria tanto de ir consigo! Jesus, como gostaria!
— Fique aqui! Esta luta não é sua. O cara me roubou... e eu sou
piromaníaco. Sempre gostei de brincar com fósforos.
— Até à vista, Sam. — murmurou London — Aparece, quando
quiseres.
Sam saiu silenciosamente da tenda e desapareceu. London e Mac
olharam por momentos para a aba de lona, que ficou a abanar de leve.
— Tenho o pressentimento de que ele não volta. — disse London —
É estranho como conseguimos gostar de um homem violento, como ele.
Sempre de queixo espetado, sempre à procura de encrenca...
Jim estava sentado no colchão, em silêncio e com uma expressão
perturbada no rosto. A claridade do fogo ainda se via vagamente,
através das paredes da tenda. As sereias dos bombeiros começaram a
soar, cada vez mais perto, solitárias e violentas, na noite.
— Deixaram passar muito tempo, para pegar bem, antes de as
bombas saírem. — comentou Mac, em tom ácido — Com mil raios, afinal
não chegamos a comer nada! Venha, London. Eu trago-te qualquer
coisa, Jim.
O rapaz ficou sentado, à espera que regressassem. Lisa, ao lado
dele, amamentava secretamente o bebê, sob o pedaço de cobertor.
— Nunca se mexe daqui? — perguntou-lhe Jim.
— O quê?
— Está sempre aqui sentada. Acontecem todas estas coisas à sua
volta e você não lhes presta atenção nenhuma. Nem ouve.
— Quem me dera que acabasse tudo! Gostaria que vivêssemos
numa casa com soalho e com uma retrete perto. Não gosto desta luta.
— É uma luta necessária que tem de se travar. Acabará qualquer dia
mas talvez já não na nossa vida.
Mac voltou com duas fumegantes latas de comida. — Bem, os carros
dos bombeiros chegaram lá antes de ter ardido tudo, pelo menos. —
declarou — Toma, Jim. Misturei a carne com os feijões. Esta é para si
Lisa.
— Não devias ter deixado o Sam ir, Mac.
— Não devia porquê?
— Porque não achaste certo. Deixaste o teu ódio pessoal intervir.
— Jesus, homem, pensa, no pobre Anderson, que perdeu o celeiro e
toda a colheita!
— Bem sei, e talvez até seja boa ideia deitar fogo à casa do Hunter.
Mas tu não raciocinaste friamente, deixaste-te entusiasmar.
— Sim? E vais fazer queixa de mim, não? Trouxe-te para adquirires
alguma experiência e afinal transformaste-te num maldito professor. Mas
no fim de contas quem diabo pensas que és? Eu já fazia este trabalho
quando tu ainda usavas cueiros.
— Tem calma, Mac. Não posso fazer mais nada, para ajudar, a não
ser utilizar os miolos. As coisas vão acontecendo e eu aqui sentado,
com um ombro ferido. Só quero que não te encolerizes, Mac. Não
poderás pensar se te encolerizares.
Mac olhou-o, carrancudo, e replicou: — Dá-te por feliz por não te partir
o focinho, não porque não tenhas razão, mas, pelo contrário, porque a
tens. Acabamos por nos fartar de um gajo que tem sempre razão. — riu-
se, de súbito — Mas agora já está feito, Jim. Esqueçamos o assunto.
Estás a tornar-te um valente filho da puta. Todos te odiarão, mas serás
um bom homem do Partido. Eu sei que me encolerizo; não o posso
evitar. Estou preocupadíssimo, Jim. Está tudo a correr mal. Onde
calculas que estará o doutor?
— Ainda não há sinais dele? Lembraste do que ele disse antes de
sair daqui?
— Disse que ia ver o Al.
— Sim, mas antes disse que se sentia muito só. Achei-o esquisito,
como um tipo que tivesse trabalhado demasiado... Talvez tenha perdido
a tramontana... Por outro lado, como nunca acreditou na causa, também
é possível que se tenha pirado.
Mac abanou a cabeça. — Tenho lidado muito com o doutor e sei que
não faria uma coisa dessas. O doutor não é homem para abandonar
ninguém. Estou preocupado, Jim. Ele ia a caminho da casa do
Anderson. Supõe que tomou os incendiários pelos nossos guardas e
eles o apanharam? Eles não deixariam, com certeza, perder semelhante
oportunidade. Interessava-lhes deitar-lhe a mão.
— Talvez ele volte, mais tarde.
— Vou-te dizer uma coisa!: se o Departamento de Saúde emitir uma
ordem contra nós amanhã, podemos ter a certeza absoluta de que o
doutor foi apanhado. Pobre diabo! Não sei que fazer ao homem que
partiu o tornozelo. Um dos rapazes pô-lo em talas, mas provavelmente
mal... Bem, esperemos que o doutor ande apenas a vaguear pelo pomar.
A culpa foi minha, não o devia ter deixado partir para lá sozinho. Toda a
culpa é minha. O London está a fazer tudo quanto pode, mas eu
esqueço-me de coisas que devem ser feitas. Tenho um peso em cima
de mim, todo o peso do celeiro do Anderson.
— Estás a esquecer o quadro geral.
— Julgava-me um gajo duro, mas tu és muito mais duro do que eu. —
observou Mac. a suspirar — Só espero não vir a odiar-te. Acho melhor
dormires na tenda-hospital, Jim. Há lá um divã extra e eu não quero que
durmas no chão, enquanto não estiveres melhor. Porque não comes?
Jim olhou para a lata. — Esqueci-me, apesar de estar cheio de fome.
— tirou um bocado de carne cozida do meio dos feijões e começou a
mastigar — É melhor ires também comer qualquer coisa.
— Sim, é o que vou fazer.
Depois de Mac sair, Jim comeu apressadamente os grandes feijões
ovais e dourados, espetando três de cada vez num pauzinho aguçado.
Quando os feijões acabaram, inclinou a lata e bebeu o caldo.
— Sabe bem, não sabe? — perguntou a Lisa.
— Sabe. Sempre gostei de feijões-de-lima. Não precisam de mais
nada a não ser de sal. O sal de carne de porco é melhor.
— Os homens estão muito calados, demasiado calados...
— Têm a boca cheia. Estão sempre a falar, exceto quando têm a
boca cheia.
— Sempre a falar? Se têm de lutar porque não lutam e se despacham,
em vez de falarem?
— Isto é uma greve. — respondeu Jim, na defensiva.
— Até mesmo você está sempre a falar. Conversa não faz girar
rodas.
— Às vezes é preciso vapor para as fazer girar, lisa.
London entrou e parou a limpar os dentes com um fósforo afiado. A
calva luzia-lhe com um brilho baço. — Tenho a região toda vigiada. —
murmurou — Ainda não vi nenhum incêndio. Talvez tenham apanhado o
Sam.
— Ele é um tipo esperto. — afirmou Jim — Outro dia derrubou um
conferente, apesar de ele estar armado.
— Lá esperto é... esperto como uma cobra. O Sam é uma cascavel,
com a diferença de que nunca se lhe ouvem os guizos. Foi sozinho, não
quis levar ninguém com ele...
— Foi melhor assim. Se o apanharem, passará por maluco. Se
apanhassem três tipos seria uma conjura, percebe?
— Oxalá ele não seja apanhado, Jim. É bom tipo e gosto dele.
— Bem sei.
Mac voltou com a sua lata de comida. — Tenho uma destas fomes! Só
percebi quando dei a primeira dentada. Comeste o suficiente, Jim?
— Comi. Porque não acendem os homens fogueiras, para se
sentarem à sua volta? A noite passada fizeram-no.
— Não têm lenha. — explicou London — Ordenei-lhes que pusessem
a lenha toda junto dos fogões.
— Mas porque estarão tão sossegados? Quase não se ouve nada...
Está tudo tão silencioso...
— A maneira como um grupo de homens procede é uma coisa muito
complicada. — respondeu Mac — Nunca se sabe. Sempre pensei que,
se um indivíduo observasse com muita atenção, talvez pudesse prever o
que iriam fazer. Entusiasmam-se todos e depois, de repente parecem
tolhidos de medo. Creio que todo este maldito acampamento está
assustado. Já corre por aí que o doutor foi apanhado, e eles têm medo
de estar sem ele. Vão dar uma olhadela ao tipo com o tornozelo partido
e depois viram-lhe as costas e deixam-no. Mas passado um bocado
voltam a ir vê-lo. Coitado, está todo coberto de suor e cheio de dores. —
Mac agarrou um osso e limpou-o com os dentes.
— Achas que alguém sabe? — perguntou Jim.
— Sabe o quê?
— Como atuará um grupo de homens.
— Talvez o London saiba, pois tem dirigido homens toda a vida. Que
diz, London?
Mas o homenzarrão abanou a cabeça. — Não sei. Já vi um grupo de
homens desatar a fugir como coelhos, assustado com o barulho do
escape de uma camioneta. Outras vezes, porém, parece que nada os
assusta. No entanto, é possível pressentir o que vai acontecer, antes de
começar.
— Bem sei. — murmurou Mac — Parece que o ar se enche de uma
espécie de prenúncio. Uma vez vi linchar um negro. Levaram-no para
cerca de quinhentos metros de distancia, para uma ponte de caminhos-
de-ferro. No caminho, mataram um cãozinho, apedrejaram-no até a
morte. Toda a gente apanhou pedras e vai disto. O ar estava saturado do
desejo de matar. Depois não lhes bastou enforcar o negro. Tiveram
também de o queimar e de o alvejar a tiro.
— Não consentirei que comece a acontecer nada de semelhante
neste acampamento. — afirmou London.
— Se começar, será melhor desviar-se do caminho. — aconselhou-
lhe Mac — Escutem, não ouvem qualquer coisa?
De fato, ouve-se um arrastar de passos do lado de fora da tenda
quase num ritmo marcial.
— Está aí o London?
— Estou. Que querem?
— Temos aqui um tipo.
— Que gênero de tipo?
Entrou um homem com uma carabina Winchester e London
perguntou-lhe: — Você não é um dos rapazes que deixei a guardar
aquela casa?
— Sou. Só voltamos três. Vimos um tipo a andar nas imediações,
cercamo-lo e apanhamo-lo.
— Quem é?
— Não sei. Tinha esta arma. Os homens queriam espancá-lo, mas eu
achei melhor trazê-lo aqui e foi o que fizemos. Está lá fora amarrado.
London olhou para Mac e Mac inclinou a cabeça na direção de Lisa.
— É melhor saíres, rapariga. — disse London.
Ela levantou-se, devagar. — Para onde vou?
— Não sei. Onde está o Joey?
— Foi falar com um rapaz. Esse rapaz escreveu a uma escola que
vai empregá-lo como correio, e como o Joey também quer ser correio foi
falar com ele.
— Procura uma mulher qualquer e fica com ela.
Lisa empurrou o bebê para cima, com um movimento do quadril, e
saiu da tenda. London tirou a carabina das mãos do homem e puxou a
alavanca da culatra. Saltou um cartucho carregado.
— Trinta e três. — murmurou London — Tragam o tipo.
— Tragam-no!
Dois guardas empurravam o prisioneiro, que se desequilibrou ao
entrar na tenda e depois recuperou o equilíbrio. Trazia os cotovelos
amarrados atrás das costas, com um cinto, e os pulsos unidos com
arame de fardos. Era muito novo, tinha o corpo magro e os ombros
estreitos. Vestia camisa azul e casaco curto de couro. Os seus olhos
azuis claros estavam esbugalhados de terror.
— Com mil raios, é um garoto! — exclamou London.
— É um garoto com uma trinta e três. — acrescentou Mac. — Posso
falar com ele, London?
— Fale.
Mac colocou-se diante do rapaz e perguntou-lhe: — Que estavas a
fazer onde te apanharam?
O rapaz engoliu em seco, com dificuldade. — Não estava a fazer
nada. — respondeu, muito baixinho.
— Quem te mandou?
— Ninguém.
Mac bateu-lhe na cara com a mão aberta. A cabeça saltou para o
lado e na face branca e imberbe ficou uma marca vermelha.
— Quem te mandou?
— Ninguém.
A mão aberta bateu de novo. com mais força. O rapaz desequilibrou-
se. tentou aguentar-se e caiu sobre o ombro. Mac estendeu a mão e
levantou-o.
— Quem te mandou?
O rapaz começou a chorar. As lágrimas escorriam-lhe pelo nariz e
entravam-lhe na boca, que sangrava.
— Os rapazes da escola disseram que devíamos vir.
— Liceu?
— Sim. E os homens da rua disseram que alguém tinha de o fazer.
— Quantos eram vocês?
— Seis.
— Para onde foram os outros?
— Não sei. Palavra, perdi-me deles.
A voz de Mac tornou-se monótona: — Quem deitou fogo ao celeiro?
— Não sei.
Desta vez Mac bateu-lhe com o punho fechado. A pancada atirou o
frágil rapaz contra o pau da tenda e Mac levantou-o, de repelão. O olho
do jovem estava fechado e cortado.
— Cuidado com essa história do “não sei”. Quem deitou fogo ao
celeiro?
Os soluços sufocavam o rapaz e não o deixavam falar.
— Não me bata! Alguns tipos da sala de bilhar disseram que seria
bem feito, que o Anderson era um radical.
— Muito bem. Vocês viram por acaso o nosso doutor?
O jovem olhou-o, desesperado, e voltou a suplicar: — Não me bata!
Não sei. Não vimos ninguém.
— Que ias fazer com a arma?
— Dis... disparar através das tendas e tentar assustá-los.
Mac sorriu friamente e virou-se para London. — Tem alguma ideia do
que lhe devemos fazer?
— Com a breca, não passa de um garoto!
— Sim, de um garoto com uma trinta e três. Posso continuar a lidar
com ele, London?
— Que lhe quer fazer?
— Quero mandá-lo de volta para o liceu de tal maneira que mais
nenhum garoto armado de espingarda se lembre de vir cá.
Jim estava sentado no colchão, a observar a cena.
— Jim, há bocado atezanaste-me por ter perdido a cabeça. —
observou Mac — Agora não estou a perdê-la.
— Por mim acho bem, se estás calmo.
— Calmíssimo. Estás com pena do miúdo, Jim?
— Não. Ele não é um miúdo, é um exemplo.
— Foi o que eu pensei. Agora escuta, rapaz. Podemos pôr-te lá fora e
entregar-te aos homens, que estão à espera, mas é provável que te
matem. Por outro lado, podemos dar-te uma lição aqui.
O único olho aberto do jovem brilhava de medo.
— Estás de acordo, London?
— Não o magoe muito.
— Quero um cartaz e não um cadáver. Muito bem, meu menino, vais
saber como é.
O rapaz tentou recuar e encolher-se, para se proteger, mas Mac
agarrou-o firmemente por um ombro. O seu punho esquerdo
movimentou-se em pancadas rápidas e curtas, uma após outra. O nariz
estalou e ficou achatado, o outro olho fechou-se também e as faces
ficaram negras. O rapaz parecia saltar como um fantoche, a tentar
esquivar-se aos socos breves e precisos. De súbito, a tortura terminou.
— Desamarrem-no. — disse Mac, e limpou o punho ensanguentado
no casaco de cabedal do rapaz — Não doeu muito e vais aparecer lindo
no liceu. Agora deixa-te de choradeiras e diz aos meninos da cidade o
que os espera.
— Lavo-lhe a cara? — perguntou London.
— Não, chiça! Fiz um trabalho de cirurgia e você quer estragá-lo!
Julga que me agradou?
— Não sei.
O prisioneiro já tinha as mãos livres e soluçava baixinho.
— Escuta, rapaz. Não estás gravemente ferido. Tens o nariz partido,
mas mais nada. Se fosse outro qualquer que tivesse feito o trabalho,
estarias muito pior. Agora diz aos teus amiguinhos de brincadeiras que o
próximo ficará com uma perna partida e o seguinte com as duas, etc.,
por aí fora. Percebeste? Perguntei-te se percebeste.
— Percebi.
— Muito bem, levem-no à estrada e soltem-no.
Os guardas agarraram o rapaz por baixo dos braços e ajudaram-no a
sair da tenda.
— London, acho melhor escolher patrulhas, para verem se há mais
rapazinhos com canhões.
— Está bem. — London não desviara nem um momento os olhos de
Mac, a observá-lo com horror — Jesus, Mac é um tipo cruel. Posso
compreender que um homem se enfureça e faça o que você fez, mas
você estava calmo.
— Bem sei. — concordou Mac, fatigado — O pior é isso. o mais difícil.
Ficou imóvel, com o sorriso frio a arrepanhar-lhe os lábios até London
sair da tenda. Depois sentou-se no colchão e enlaçou os joelhos com os
braços. Todos os músculos do seu corpo estremeciam, percorridos por
espasmos. O seu rosto estava de uma palidez acinzentada. Jim
estendeu a mão do braço ileso e agarrou-lhe no pulso.
— Não teria sido capaz de fazer o que fiz se não estivesses aqui, Jim.
— confessou Mac, no mesmo tom fatigado — Jesus, és um gajo duro!
Limitaste-te a olhar, não te aqueceu nem arrefeceu.
Jim apertou-lhe o pulso com mais força. — Não te preocupes com o
que aconteceu. — aconselhou, calmamente — Não se tratou de um
garoto assustado e sim, de um perigo para a causa. Tinha de ser feito e
tu fizeste-lo bem. Sem ódio, sem sentimento, desempenhando apenas
uma tarefa. Não te preocupes.
— Se ao menos tivesse podido desamarrar-lhe as mãos, para que
ele pudesse tentar esmurrar-me também, de vez em quando, ou
proteger-se um pouco...
— Não penses nisso. Foi apenas uma pequena parte do todo. A
compaixão é tão perigosa como o medo. Foi como um trabalho de
médico, uma operação. Mais nada, Eu tê-lo-ia feito por ti, se não
estivesse desasado. Já pensaste no que aconteceria se ficasse
entregue aos rapazes, lá fora?
— Já. Chaciná-lo-iam. Oxalá não apanhem mais nenhum, pois eu
não seria capaz de repetir a façanha.
— Não terias outro remédio.
Mac fitou-o, com uma espécie de medo no olhar. — Estás a
ultrapassar-me, Jim, começo a assustar-me contigo. Já tenho conhecido
tipos como tu e assustam-me sempre. Jesus, Jim, vejo-te mudar dia a
dia! Sei que tens razão, que se deve opor à cólera o raciocínio frio, sei
tudo isso. Mas, meu Deus, não é humano. Estou assustado contigo.
— Quis que me utilizasses. — observou Jim, em tom muito suave —
Recusaste, porque começaras a gostar muito de mim. — levantou-se do
colchão e foi sentar-se num caixote — Foi um erro teu. Depois fui ferido
e enquanto tenho estado sentado, à espera, aprendi a conhecer a minha
força. Sou mais forte do que tu. Mac. Sou mais forte do que tudo no
mundo porque sigo em linha reta. Tu e todos os outros têm de pensar
em mulheres, e tabaco, e álcool, e em agasalho e comida...
— Os seus olhos pareciam tão frios como pedras do rio molhadas.
— Quis ser utilizado. Agora te utilizo, Mac. Utilizando a mim e a ti. Já
te disse que sinto haver força em mim.
— Estás doido! — comentou Mac — Como sentes o braço? Há
algum inchaço? Talvez tenhas alguma infecção que te envenenou o
sangue.
— Não penses nisso, Mac. — disse Jim calmamente — Não estou
doido. O que te disse é real, tem estado a desenvolver-se, a crescer, e
agora está completo. Vai chamar o London, quero vê-lo. Diz-lhe que
venha cá. Não procurarei irritá-lo, mas ele terá de obedecer às ordens.
— Talvez não estejas doido, não sei... Mas tens de te lembrar de que
o London é o chefe desta greve, o chefe eleito. Tem conduzido homens
durante toda a sua vida. Começas a dizer-lhe o que deve fazer e ele
atira-te aos leões.
Mac olhou-o, constrangido, e Jim ordenou: — É melhor ires chamá-lo.
— Escuta...
— Mac, tu queres obedecer e é melhor que o faças.
Ouviram uma espécie de uivo abafado e depois o grito crescente de
uma sereia, de outra e outra, ora aumentando, ora diminuindo, muito ao
longe.
— Foi o Sam! — exclamou Mac — Ele ateou o seu fogo!
Jim levantou-se e Mac recomendou-lhe: — Acho melhor ficares aqui.
Estás muito fraco.
Jim riu-se sem alegria e replicou: — Não tardarás a saber até que
ponto vai a minha fraqueza! — dirigiu-se para a entrada da tenda e saiu,
seguido por Mac.
A norte, o céu estrelado estava negro, por cima das árvores. Na
direção de Torgas, as luzes da cidade projetavam uma pálida claridade
no céu. À esquerda da cidade, por cima da muralha atrás das árvores o
novo incêndio formava uma abóbada de luz vermelha. As sereias ora
apitavam em uníssono, ora mais alto umas do que outras.
— Desta vez não perderam tempo. — comentou Mac.
Os homens saíram de cambulhada, das tendas e pararam a olhar
para o fogo, que crescia. Irromperam chamas por cima das árvores e a
abóbada de luz alastrou e subiu.
— Bom começo. — observou Mac — Mesmo que consigam extinguir
o fogo. a casa ficará arruinada. Numa fase destas já só podem usar
substâncias químicas.
London correu para eles e exclamou: — Ele conseguiu! Jesus, é um
tipo danado! Eu sabia que ele conseguiria. Não tem medo de nada.
— Poderemos utilizá-lo, se voltar. — observou Jim, calmamente.
— Utilizá-lo? — perguntou London.
— Sim. Um homem capaz de dar tão bom começo a um fogo é capaz
de fazer outras coisas. Está a arder lindamente. London, venha à tenda.
Temos de decidir umas coisas.
— O que ele quer dizer, London... — começou Mac a explicar-lhe.
— Eu explico o que quero dizer. Venha à tenda, London. — Jim
entrou à frente e sentou-se num caixote.
— Qual é a ideia? — indagou London — Que quer dizer afinal?
— Esta greve está a perder-se porque não há autoridade. O celeiro
do Anderson ardeu porque não conseguimos que os guardas
obedecessem às ordens recebidas. O doutor foi apanhado porque os
seus guarda-costas não o acompanhavam sempre.
— Claro. E que vamos fazer a esse respeito?
— Vamos criar autoridade, vamos dar ordens para serem cumpridas.
— respondeu-lhe Jim — Os homens elegeram-no, não elegeram? Agora
terão de obedecer, quer lhes agrade quer não.
— Com a breca, Jim, isso não dará resultado! — gritou Mac —
Acabarão por se passar para o condado seguinte num abrir e fechar de
olhos.
— Vigiaremos, Mac. Onde está a carabina?
— Ali. Para que a queres?
— Uma carabina é autoridade. Estou farto deste andar em círculo e
vou pôr as coisas no são.
London avançou um passo para ele e replicou-lhe: — Mas que
conversa é essa de pôr as coisas no são? Vá-se matar, homem.
Jim estava imóvel. O rosto jovem parecia esculpido, os seus olhos
estavam parados e a boca sorria um pouco, aos cantos. Olhou firme e
confiantemente para London e ordenou-lhe: — Sente-se e não se exalte.
London olhou, inquieto para Mac e perguntou-lhe: — O gajo está
chalado?
— Não sei. — respondeu Mac, mas sem o olhar.
— É melhor sentar-se. — insistiu Jim — Acabará por fazê-lo, mais
cedo ou mais tarde.
— Está bem, eu sento-me.
— Muito bem. Você poderá expulsar-me do acampamento, se quiser;
eles arranjarão lugar para mim na cadeia. Mas, por outro lado, também
poderá deixar-me ficar. Na segunda hipótese, porém, eu vou pôr isto em
ordem; sou capaz disso.
— Já estou farto. — confessou London, a suspirar — Chatices, só
chatices. De boa vontade lhe passaria o cargo para as mãos, apesar de
você ser apenas um garoto. Sou o chefe.
— Exatamente por isso. Eu darei as ordens por seu intermédio. Não
me interprete mal, London: não é autoridade que eu quero e, sim, ação.
Tudo quanto desejo é levar esta greve ao fim.
— Que pensa você, Mac? — perguntou London desnorteado — Que
se meteu na cabeça deste moço?
— Não sei. Ao princípio pensei que fosse veneno, provocado por
alguma infecção do ferimento, mas ele parece estar a falar com sentido...
— Mac riu-se, mas com um riso que depressa se extinguiu.
— Toda esta história me cheira a bolchevique. — resmungou London.
— Que lhe importa ao que cheira, se der resultado? — perguntou Jim
— Está disposto a ouvir?
— Não sei... Está bem, dispare.
— Muito bem. Amanhã de manhã vamos desancar os furas. Quero
que escolha os melhores lutadores. Dê-lhes cacetes. Quero que partam
dois carros ao mesmo tempo, sempre aos pares. É provável que os tiras
patrulhem as estradas e levantem barricadas, mas nesse caso o carro
da frente derruba a barricada e o segundo recolhe os homens do carro
avariado e segue em frente. Não podemos consentir que nos detenham.
Compreendeu? Tudo quanto iniciarmos terá de ir até ao fim. Se não
formos bem-sucedidos, estaremos em piores circunstâncias do que
quando começamos.
— Vou passar um péssimo bocado com os rapazes se você der
ordens. — observou London.
— Eu não quero dar ordens nem quero exibir-me. Os homens não
precisarão de saber. Eu digo-lhe a si e você diz-lhes a eles. A primeira
coisa a fazer é mandar sair alguns homens, para verem como vai o fogo.
Amanhã vamos ter muitas chatices. Preferia que o Sam não tivesse feito
o que fez, mas agora já não tem remédio. Também precisamos de ter
este acampamento muito bem guardado esta noite. Pode ter a certeza
de que não faltarão represálias. Disponha duas séries de guardas e diga
que se mantenham em contato. Depois quero um comitê de polícia,
constituído por cinco homens, para desancar qualquer gajo que
adormeça ou se pire. Arranje-me cinco duros.
London abanou a cabeça. — Não sei se lhe dê uma tareia se o deixe
continuar. Tudo isso só servirá para arranjar chatices.
— Bem, enquanto não se decide escolha os guardas. Receio que
tenhamos muitas complicações antes de amanhecer.
— Está bem, rapaz, tentarei.
Depois de London sair, Mac continuou parado ao lado do caixote
ocupado por Jim.
— Como sentes o braço?
— Nem o sinto. Deve estar bem.
— Não compreendo o que te aconteceu, Jim... mas apercebi-me de
que vai acontecendo.
— É uma coisa que nasce de uma luta deste gênero. De súbito,
sentimos em ação as grandes forças geradas por pequenas
complicações como esta nossa greve. E a visão dessas forças faz-nos
qualquer coisa, empolga-nos e obriga-nos a agir. Creio que é daí que
provem a autoridade.
Levantou os olhos e Mac gritou: — Porque reviraste os olhos desse
modo?
— Estou um bocado tonto. — respondeu e, logo a seguir, desfaleceu
e caiu do caixote.
Mac arrastou-o para o colchão e pôs-lhe os pés em cima de um
caixote. No acampamento ouvia-se um murmúrio baixo, de vozes, um
murmúrio constante, mas que variava de tom como a voz de um regato.
Passavam homens para trás e para diante defronte da tenda. Ouviu-se
de novo o apito das sereias, mas desta vez depressa, pois os carros
regressavam. Mac desabotoou a camisa de Jim, foi buscar um balde de
água que estava a um canto da tenda e salpicou-lhe a cabeça e o
pescoço. Jim abriu os olhos e fitou-o.
— Estou tonto. — queixou-se — Quem me dera que o doutor voltasse
e me desse qualquer coisa. Achas que ele voltará, Mac?
— Não sei. Como te sentes, agora?
— Apenas tonto. Creio que dei o que tinha a dar, enquanto não
descansar.
— Sem dúvida. Deves dormir. Vou lá ver se arranjo um pouco do
caldo em que cozinharam a carne. Fará bem. Fica deitado e quieto, até
eu voltar.
Quando Mac saiu, Jim olhou, de testa franzida, para o teto da tenda.
— Pergunto a mim mesmo se já terá passado. — disse, em voz alta —
Não creio, mas talvez tenha. — depois fechou os olhos e adormeceu.
Mac voltou com o caldo e colocou a lata no chão. Tirou o caixote
debaixo das pernas de Jim e sentou-se na beira do colchão, a observar
o rosto tenso e adormecido.
A cara de Jim não estava quieta nem um segundo. Os lábios
arreganhavam-se, até mostrarem os dentes e até estes secarem, e
depois os lábios desciam de novo e cobriam-nos. As faces, à volta dos
olhos, estremeciam nervosamente. Uma vez, como se se debatesse
contra um peso, os lábios de Jim abriram-se para falar e desenharam
uma palavra, mas ouviu-se apenas um murmúrio, como que um rosnido.
Mac tapou o amigo com os velhos cobertores.
De súbito, a luz do candeeiro diminuiu, ficou reduzida ao aro
incandescente da torcida, e a escuridão avançou para o centro da tenda.
Mac levantou-se, muito depressa, pegou numa lata de petróleo,
desatarraxou o bocal e encheu o depósito do candeeiro. Lentamente, a
chama subiu, de novo, e as suas orlas alastraram como as asas de uma
borboleta.
No exterior, ouviam-se os passos lentos dos homens de sentinela e,
ao longe, o rodar pesado dos grandes caminhões de carga noturnos,
que passavam na auto-estrada. Mac tirou o candeeiro da trave, levou-o
para junto do colchão e pô-lo no chão. Da algibeira de trás das calças
tirou diversas folhas de papel dobradas, um envelope estampilhado e
sujo e um bocado de lápis. Com o papel apoiado no joelho, escreveu
devagar, em letras grandes e redondas:

Caro Harry:
Pelo amor de Deus arranja-me alguma ajuda para aqui. O Dr. Burton
foi apanhado ontem à noite — ou pelo menos penso que foi. O doutor
não era homem que nos abandonasse, mas desapareceu. Este vale
está organizado como a Itália. Os vigilantes estão a fazer das suas.
Precisamos de alimentos, remédios e dinheiro. O Dick tem-se safado,
mas mesmo assim creio que se não arranjarmos auxílio de fora estamos
perdidos. Nunca estive em lugar nenhum tão bem organizado. É muito
possível que o Dick já tenha sido preso.
O Jim está a sair-se bem, tão bem que até me sinto insignificante.
Receio que amanhã sejamos expulsos do acampamento. Os vigilantes
deitaram fogo ao celeiro do proprietário e ele está furioso conosco. Além
disso, sem o Dr. Burton, os funcionários da saúde pública do condado
vão nos expulsar. Peço-te, portanto, que penses numa solução
qualquer. O Jim e eu estamos marcados e eles andam sempre a ver se
nos caçam. É necessário que esteja cá alguém, no caso de nos
apanharem.
Estou a gritar por socorro, Harry. Os simpatizantes estão assustados,
mas isso não é o pior.
Pegou noutra folha de papel e continuou a escrever:
Os homens estão muito sensíveis. Tu sabes como costumam ficar, em
circunstâncias idênticas. Amanhã tanto podem sair e deitar fogo à
câmara municipal como fugir para as montanhas e ficar lá escondidos
seis meses. Por isso peço-te por tudo que digas a toda a gente que
precisamos de ajuda. Vamos fazer piquetes de camioneta. Não
sabemos bem o que se está a passar.
Até à vista. O Jack entregará esta carta. Pelo amor de Deus tenta
mandar-nos alguma ajuda.

Mac
Leu a carta, pôs um traço num “t”, de que se esquecera. dobrou as
folhas de papel e meteu-as no envelope sujo, que endereçou a John H.
Weaver.
Ouviu uma voz no exterior: — Quem vem lá?
— London.
— Pode passar.
London entrou na tenda e olhou para Mac e depois para Jim, que
continuava a dormir.
— Pus os guardas de sentinela, como ele disse.
— Fez muito bem. Ele está estoirado. Quem me dera ter cá o doutor!
Estou com medo daquele ombro. O Jim diz que não lhe dói, mas o idiota
gosta de sofrer, de ser castigado. Mac voltou a colocar o candeeiro na
trave. London sentou-se num caixote e perguntou baixinho: — Que
diabo de mosca lhe mordeu? Num momento era um rapaz delicado e, no
outro, com mil raios, deu-me um pontapé no cu e tomou conta de tudo.
— Não sei. — respondeu Mac, mas os seus olhos brilhavam de
orgulho — Já tinha visto tipos saírem por assim dizer fora de si mesmos,
mas desta maneira, nunca. Jesus, uma pessoa tinha de fazer o que ele
dizia! Ao princípio até pensei que estivesse chalado... e ainda não tenho
a certeza a esse respeito. Onde está a pequena, London?
— Deixei-a, e ao meu garoto, numa tenda desocupada.
Mac levantou bruscamente a cabeça e perguntou: — Onde arranjou
uma tenda desocupada?
— Creio que alguns dos tipos aproveitaram a escuridão e se piraram.
— Talvez os homens que faltam sejam os guardas...
— Não: eu contei com eles. Creio que se foram alguns embora.
Mac esfregou os olhos com força. — Bem, acho que já era altura
disso... Alguns não aguentam, pura e simplesmente. Escute, London,
tenho de me esgueirar e tentar meter uma carta no correio. E também
quero aproveitar para dar uma vista de olhos...
— Porque não me deixa mandar um dos rapazes?
— Esta carta tem de chegar ao seu destino e, por isso, acho melhor ir eu. Não é a primeira
vez que me vigiam. Não me apanharão.
London olhou-lhe para as mãos grossas e perguntou: — Mac, é uma
carta... vermelha?
— Bem, acho que sim. Estou a tentar obter auxílio, para que a greve
não vá por água abaixo.
— Mac, como já lhe disse, estão sempre a dizer-nos que os
vermelhos são uma corja de filhos da puta. — murmurou London,
constrangido — Creio que não é verdade. Pois não?
Mac deu uma gargalhadinha abafada. — Depende do ponto de vista.
Se você tivesse quinze mil hectares de terra e um milhão de dólares,
eles seriam uma corja de filhos da puta. Mas se você é apenas London,
um trabalhador, nesse caso eles são apenas uns tipos que querem
ajudá-lo a viver como um homem e não como um porco, compreende?
Claro que você lê as notícias no jornal e os jornais pertencem aos gajos
que têm terra e dinheiro, por isso nós somos filhos da puta. Está a topar?
Mas depois você trava conhecimento conosco e verifica que não somos
o que dizem. Tem de formar a sua própria opinião.
— Um tipo como eu poderia trabalhar com vocês? Tenho passado a minha vida a fazer
mais ou menos a mesma coisa, a tentar defender os rapazes que viajam comigo.
— Tem toda a razão. — concordou Mac, vivamente — Sim, tem toda a
razão. Você é um chefe. É um trabalhador sazonal, mas também é um
chefe.
— Os tipos fazem sempre o que lhes digo. — confessou London,
simplesmente — Tem sido assim toda a minha vida.
Mac aproximou-se mais, colocou a mão no joelho de London e baixou
a voz:
— Escute, creio que vamos perder esta greve, mas fizemos tanto
estardalhaço que talvez não seja preciso fazer greve no algodão. Os
jornais dizem que estamos só a causar problemas e agitação, mas nós
estamos a habituar os homens a trabalhar juntos. Estamos a conseguir
que cada vez maiores números de homens trabalhem juntos,
compreende? Não terá importância nenhuma se perdermos. Estão aqui
cerca de mil homens que aprenderam como se faz uma greve. Quando
tivermos um grande número de homens a trabalhar em conjunto, talvez
Torgas Valley, ou a maior parte da região, deixe de pertencer apenas a
três indivíduos. Talvez um gajo possa colher uma maçã para comer sem
ir malhar com os ossos na cadeia por esse motivo, compreende? Talvez
não deitem maçãs ao rio para manter o preço elevado, quando tipos
como você e eu precisam de uma maçã para manter o raio dos
intestinos a funcionar. Tem de ver o quadro todo em conjunto, London, e
não apenas esta grevezinha.
London fitava tristemente a boca de Mac, como se tentasse ver as
palavras, à medida que ele as proferia. — Isso é uma espécie de revo...
revolução, não é?
— Claro que é. É uma revolução contra a fome e o frio. Os três
indivíduos donos deste vale farão tudo e mais alguma coisa para
continuarem senhores da terra e para deitarem as maçãs ao rio a fim de
subirem os preços. Um gajo que pensa que os alimentos se destinam a
ser comidos é um maldito vermelho. Compreende?
Os olhos de London estavam muito abertos e com uma expressão sonhadora.
— Tenho ouvido falar muitos radicais, mas nunca prestei muita atenção. Encolerizam-se
sempre e eu não tenho confiança num tipo colérico. Nunca tinha encarado as coisas da
maneira que você diz, nunca.
— Pois continue a encará-las dessa maneira, London, e pensará de modo diferente. Dizem
que nós fazemos jogo sujo, que trabalhamos subterraneamente. Já alguma vez pensou que
não temos armas? Se nos acontece alguma coisa, nunca vem nos jornais, mas se é ao outro
lado que acontece, Jesus, é um gastar de tinta! Como não possuímos nem dinheiro nem
armas, temos de nos servir da cabeça. Compreende? Somos como um homem armado de
cacete a lutar com uma brigada munida de metralhadoras. A única maneira de ele se safar é
aproximar-se sorrateiramente e atacar os gajos das metralhadoras pela retaguarda. Talvez
isso não seja leal, mas, carago, não se trata de uma competição de atletismo! Um homem com
fome não pode ser obrigado a respeitar regras.
— Nunca tinha percebido. — murmurou London, baixinho — Nunca
ninguém dispôs de tempo para me explicar. Gosto de ver alguns dos
tipos que são todos falinhas mansas, que falam bem. Mas sempre que
os ouço acabam por se danar. “Malditos tiras”, berram. “O Governo que
vá para o Inferno.” Ameaçam arrasar pelo fogo os edifícios
governamentais. Não gosto de ouvir isso, acho os edifícios bonitos.
Nunca ninguém me falou do outro aspecto.
— Se eles falam assim, não sabem utilizar a cabeça. — comentou
Mac.
— Você disse estar convencido de que perderíamos esta greve.
Porque pensa assim? — Mac refletiu. — Não, agora não te esquivas...
— murmurou, como se falasse sozinho.
— Eu digo-lhe porquê, London. O poder, neste vale, está concentrado
em muito poucas mãos. O tipo que cá esteve, ontem, veio tentar
convencer-nos a desistir, mas agora sabe que não desistiremos. A única
saída que lhes resta é correr conosco ou liquidar-nos. Poderíamos
resistir-lhes por uns tempos se tivéssemos comida e um médico e se o
Anderson nos apoiasse. Mas o Anderson está magoado. Eles correrão
conosco nem que tenham de utilizar canhões. Assim que obtiverem uma
ordem do tribunal, põem-nos logo na rua. Para onde iremos depois?
Não poderemos acampar por aí, a monte, pois haverá ordens municipais
proibindo-o. Eles vão nos dividir e nos vencer desse modo. Ainda por
cima, os nossos rapazes não são muito fortes e eu receio que não
consigamos obter mais comida.
— Então porque não dizemos aos tipos que se pirem e não fazemos todos o mesmo?
— Não fale tão alto, que acorda o rapaz. Eu explico-lhe porquê. Eles
podem assustar os nossos homens, mas nós também os podemos
assustar a eles. Faremos uma última tentativa e aguentaremos o mais
tempo que pudermos. Se eles matarem alguns dos nossos, a notícia vai
se propagar, mesmo que os jornais não a publiquem. Outros
trabalhadores ficarão furiosos e passaremos a ter um inimigo. Os
rapazes trabalham melhor juntos quando têm um inimigo. Aquele celeiro
foi incendiado por homens do nosso gênero, mas esses homens têm
lido os jornais, compreende? Temos de os conquistar para o nosso lado
o mais depressa possível. — tirou da algibeira a bolsa do tabaco, quase
vazia — Tenho estado a guardar isto, mas agora preciso de fumar.
Fuma, London?
— Não. Masco, quando tenho.
Mac enrolou um cigarro fininho, numa mortalha castanha e levantou o
vidro do candeeiro para o acender. — Devia dormir um sono, London.
Sabe Deus o que irá acontecer esta noite... Eu tenho de ir à cidade e
encontrar uma caixa de correio.
— Arrisca-se a ser apanhado.
— Não serei. Irei pelos pomares e nem sequer me verão.
Olhou por cima de London para o fundo da tenda. London virou-se,
para olhar na mesma direção. A lona levantou-se, junto da base, e Sam
entrou de gatas e levantou-se. Estava sujo de lama e tinha a roupa
rasgada. Um golpe comprido marcava-lhe uma das faces magras, tinha
os lábios arrepanhados de fadiga e grandes olheiras.
— Só tenho um minuto. — disse, baixinho — Jesus que trabalho!
Vocês têm uma data de guardas de sentinela e eu não quis que
ninguém me visse. Alguém nos atraiçoaria, com certeza.
— Fez um belo trabalho. — elogiou Mac — Vimos o fogo.
— Sim, o raio da casa desapareceu quase toda. Mas o caso não é
esse. — olhou nervosamente para Jim que dormia no colchão, e
acrescentou: — Fui... apanhado.
— Diabo!
— Agarraram-me e viram-me bem.
— Não devias estar aqui. — disse London, severamente.
— Bem sei, mas quis dizer-lhes. Vocês nunca me viram nem ouviram falar de mim. Tive de
fazer o que fiz... estouraram-me os miolos a pontapé. Agora tenho de ir. Se voltarem a
apanhar-me, não quero nada, compreendem? Sou maluco. Chanfrado. Direi que foi Deus que
me mandou fazer o que fiz, percebem? Era isso que lhes queria dizer. Não corram nenhum
risco por minha causa. Não quero.
London aproximou-se e apertou-lhe a mão. — És um bom homem,
Sam, não há melhor. Voltarei a ver-te, qualquer dia.
Mac, de olhos fixos na aba da tenda, disse baixinho, por cima do
ombro: — Se conseguir chegar à cidade, vá à Center Avenue, 42. Diga
que foi a Mabel que o mandou. Será apenas uma refeição. Não vá mais
de uma vez.
— Está bem, Mac. Adeus.
Ajoelhou-se, enfiou a cabeça pela abertura e espreitou. Saiu de
rastos, em menos de um segundo, e a lona voltou ao seu lugar.
— Oxalá ele se safe, Mac! — exclamou London, a suspirar — É bom homem, não há
melhor do que ele.
— Não pense no assunto. Alguém o matará, qualquer dia, como ao
nosso homenzinho, ao Joy. Estava escrito que seria assim. Eu e o Jim
também teremos a mesma sorte, mais cedo ou mais tarde. É quase
certo, mas não faz diferença nenhuma.
London ouvia-o de boca aberta. — Jesus, que raio de maneira de
encarar as coisas! Vocês não encontram prazer nenhum?
— Claro que encontramos, e mais até do que a maioria das pessoas.
Trata-se de um trabalho importante. Nunca se esqueça de que se
encontra sempre algo de muito especial em fazer uma coisa que tem
algum significado. O que tira a genica a um homem é fazer um trabalho
que não conduz a nada. O nosso é lento, mas é todo feito numa direção.
Jesus, continuo para aqui a dar à língua! Tenho de ir.
— Não consinta que o apanhem, Mac.
— Não consentirei. No entanto, London, acredite que nada daria mais
prazer a esses gajos do que liquidarem-nos, a mim e ao Jim. Mas eu sei
cuidar de mim. Importa-se de ficar aqui e de não permitir que aconteça
nada ao Jim? Importa-se?
— Claro que não me importo. Não sairei daqui.
— Mas deite-se também no colchão e durma um bocado. Só lhe peço que não deixe os
gajos levarem o rapaz. Precisamos dele, é valioso.
— Esteja descansado.
— Até logo. Voltarei o mais depressa que puder. Preciso de saber o que se passa. Talvez
consiga arranjar um jornal.
— Até logo.
Mac saiu silenciosamente, pela abertura da tenda. London ouviu-o
falar com um guarda e, mais adiante, com outro. Depois de deixar de o
ouvir, London prestou atenção aos ruídos da noite. Reinava silêncio, no
exterior, mas o acampamento não dava a sensação de dormir. Os
guardas iam e vinham e ouviam-se as suas vozes, em breves trocas de
palavras, quando se encontravam. Cantavam galos: um deles perto e,
muito ao longe outro, com o cantar profundo de um galo velho. Depois
ouviu-se a campainha de um comboio, um esguicho de vapor e o
arranque pesado de uma locomotiva. London sentou-se no colchão, ao
lado de Jim com uma perna dobrada e a outra erguida e envolta nos
braços. Inclinou a cabeça, apoiou o queixo no joelho e os seus olhos
interrogaram Jim, como se o sondassem.
O rapaz mexeu-se, desassossegado, estendeu um braço e deixou-o
cair de novo. “Oh... e... água!”, murmurou, a respirar dificilmente.
“Alcatrão por cima de tudo.” Abriu os olhos e pestanejou rapidamente,
sem ver. London desenlaçou as mãos, como se lhe fosse tocar, mas não
tocou. Os olhos do rapaz fecharam-se de novo. Ouviu-se passar um
grande caminhão de transporte. London ouviu um grito abafado, a
alguma distância da tenda.
— Eh! — chamou, baixinho.
Um dos guardas acorreu ao chamamento. — Que se passa, chefe?
— Quem está a gritar?
— Ainda não tinha ouvido? É o velho com a bacia partida. Está doido. Têm de o segurar,
pois ele luta como um gato bravo e morde. Meteram-lhe um trapo na boca.
— És o Jake Pedroni, não és? Claro que és. Jake, ouvi o doutor dizer que o velho ficaria
assim se não lhe metessem água e sabão pelo rabo acima, para lhe limpar as tripas. Eu não
posso sair daqui, mas tu vai tratar disso, sim, Jake?
— Está bem, chefe.
— Vai, anda. Não é nada bom para a fratura dele lutar dessa maneira.
E o do tornozelo partido, como vai?
— Bem, a esse deram-lhe uma boa golada de uísque e está bem.
— Chamem-me se acontecer alguma coisa Jake.
— Está bem.
London voltou para o colchão e deitou-se ao lado de Jim. Muito ao
longe, a locomotiva avançava cada vez mais depressa. O galo velho
voltou a cantar e o mais novo respondeu-lhe. London sentiu o sono
invadir-lhe o cérebro, mas apoiou-se num cotovelo e observou mais uma
vez Jim, antes de permitir que o sono se apoderasse dele.

Capítulo 14
A escuridão começava a dissipar-se quando Mac espreitou para o
interior da tenda. O candeeiro continuava aceso, na trave, e London e
Jim dormiam lado a lado. Mac entrou e, no mesmo instante, London
sentou-se de um pulo e perguntou a tentar ver o que se passava: —
Quem está aí?
— Eu. — respondeu-lhe Mac — Acabo de chegar. Como vai ele?
— Tenho estado a dormir. — London bocejou e coçou a calva.
Mac aproximou-se e olhou para Jim. As marcas de cansaço tinham
desaparecido da cara do rapaz e os músculos estavam descontraídos.
— Parece bem. Dormiu um bom sono.
London levantou-se. — Que horas são?
— Não sei. Começa a clarear.
— Os rapazes ainda não começaram a acender as fogueiras?
— Vi alguém a mexer-se lá em cima. Cheirou-me a fumo de pinho.
Talvez seja o brasido do celeiro do Anderson.
— Não deixei o rapaz nem um minuto.
— Fez muito bem, London.
— Quando é que dorme alguma coisa?
— Sabe Deus. Ainda não sinto muita necessidade. A noite passada -
ou melhor, a outra - dormi um bocado. Parece que já lá vai uma
semana... Ainda foi ontem que enterramos o Joy, só ontem!
London bocejou de novo. — Creio que esta manhã vamos ter carne e
feijão. Apetecia-me tanto uma chávena de café!
— Vamos à cidade comer presunto com ovos e beber café.
— Vá para o diabo! Vou lá fora pôr os cozinheiros a trabalhar. — saiu,
sonolento e com passo pouco firme.
Mac puxou um caixote para debaixo da luz e tirou um jornal enrolado
da algibeira. Quando o desdobrou, ouviu Jim: — Tenho estado
acordado, Mac. Onde estiveste?
— Tive de ir pôr uma carta no correio e apanhei um jornal num
jardim. Vamos saber o que se está a passar.
— Mac, a noite passada fiz papel de idiota, não fiz?
— Não, Jim. Soubeste importe, puseste-nos a comer-te na mão.
— Não sei o que me deu. Nunca me tinha sentido assim.
— Como te sentes esta manhã?
— Bem, mas diferente do que me sentia ontem à noite. Ontem à noite
teria sido capaz de levantar uma vaca em peso.
— Bem, a nós quase nos levantaste. É boa ideia a das camionetas. O
dono da que tiver de chocar com a barricada talvez não goste muito,
porém... Ora vamos lá ver o que se passa na cidade... Oh, cabeçalhos
para o livro de recortes! Escuta, Jim: “GREVISTAS INCENDEIAM
CASAS. MATAM HOMENS. Às dez horas da noite passada o fogo
destruiu a casa de campo de William Hunter. A Policia diz que os
autores do crime são os homens dos pomares de macieiras, que estão
em greve. Um suspeito capturado agrediu o captor e conseguiu fugir. A
vítima Olaf Bingham, ajudante especial do xerife, não deve sobreviver.”
— Vejamos mais abaixo... “Também ontem, mas mais cedo, os
grevistas, quer por descuido, quer por malvadez, incendiaram o celeiro
da quinta de Mr. Anderson, que anteriormente os autorizara a acampar
na sua terra.”
— É uma história muito comprida, Jim. Podes lê-la depois, se
quiseres. — virou a página e exclamou: — Oh, escuta este editorial!
“Julgamos que chegou o momento de agir. Quando trabalhadores
eventuais, de passagem, imobilizam a mais importante indústria do vale,
quando apanhadores sazonais de fruta, chefiados e inspirados por
agitadores estrangeiros pagos [isto é conosco, Jim], fomentam uma
campanha de violência e fogo posto, trazendo a Rússia vermelha para a
pacífica América, quando as estradas americanas deixam de oferecer
segurança aos cidadãos americanos e quando as casas desses
cidadãos ficam à mercê de incendiários, quando tal acontece, julgamos
que chegou o momento de agir. Este condado vela pelos seus próprios
cidadãos, mas estes grevistas não são de cá. Ignoram as leis e
destroem a vida e a propriedade. Estão a viver à tripa forra, abastecidos
por simpatizantes secretos. Este jornal não acredita nem nunca
acreditou na violência, mas acredita que quando a lei não é suficiente
para se avir com estes descontentes e assassinos, os cidadãos
indignados devem intervir. O incendiário não merece compaixão. Temos
de expulsar esses agitadores pagos. Este jornal recomenda aos
cidadãos que investiguem as fontes que têm abastecido tão
prodigamente estes homens. Fomos informados de que ontem foram
abatidos no seu acampamento três excelentes novilhos.”
Mac atirou o jornal ao chão. — Esta última insinuação significa que
esta noite uma corja de americanos de sala de bilhar começará a atirar
pedras às janelas de pobres diabos que disseram desejar que os
tempos melhorassem.
— Jesus, Mac. — exclamou Jim, e começou a levantar-se — Temos
de arcar com todas as culpas?
— Com todas, todinhas?
— E aquele tipo que dizem ter sido assassinado?
— Bem, foi o Sam. Apanharam-no e ele teve de fugir. O tipo tinha
uma arma! e o Sam tinha os pés...
Jim voltou a deixar-se cair na cama. — Sim, eu vi-o usar os pés, outro
dia. Mas as coisas parecem feias, muito feias.
— Sem dúvida. O editor soube escolher muito bem as palavras.
“Agitadores estrangeiros pagos.” Eu, nascido em Mineápolis! Um avô
meu combateu na batalha de Bull Run. Por sinal sempre disse pensar
que ia para uma tourada, em vez de para uma batalha, até começarem a
disparar contra ele. E tu és quase tão estrangeiro como a administração
Hoover. Com mil raios, Jim, é sempre assim! Mas... — tirou a bolsa com
o resto do tabaco — o cerco está a fechar-se. O Sam não devia ter
incendiado a casa.
— Disseste-lhe que seguisse para a frente.
— Bem sei. Estava furioso, por causa do celeiro.
— E que fazemos agora?
— Continuamos para a frente. Vamos começar por utilizar as
carripanas contra os furas. Aguentamos enquanto pudermos lutar e
depois piramo-nos... se pudermos. Tens medo, Jim?
— N-não.
— O cerco está a fechar-se sobre nós. Jim, eu sinto-o. — levantou-se
do caixote e foi sentar-se no colchão — Talvez seja por precisar de
dormir. Ao regressar da cidade há pouco, até me parecia que estava um
grupo de gajos à minha espera, na sombra, debaixo de cada árvore.
Estava tão acagaçado que desataria a fugir se me aparecesse um rato
pela frente.
— Estás cansado. — murmurou Jim — Talvez eu pudesse ser de
alguma utilidade se não tivesse sido ferido. Assim, estou para aqui
parado, a atrapalhar.
— Não estás nada, não digas asneiras. Todas as vezes que estou em
baixo tu animas-me... e, meu filho, esta manhã tenho muita precisão de
ser animado. Parece que as tripas se me transformaram em água!
Beberia de bom grado um copo, se o arranjasse.
— Sentir-te-ás bem quando comeres qualquer coisa.
— Escrevi ao Harry Nilson a dizer-lhe que precisávamos
absolutamente de ajuda e provisões. Mas receio que seja demasiado
tarde. — olhou para Jim de modo estranho e acrescentou: — Escuta,
encontrei o Dick. Presta bem atenção: Lembraste da noite em que ele
aqui esteve?
— Claro que lembro!
— E lembras-te quando viramos à esquerda, na ponte, e seguimos
para o acampamento, na noite da nossa chegada?
— Lembro.
— Bem, presta atenção. Se houver sarilho e ficarmos separados um
do outro, segue para essa ponte, passa-lhe por baixo do arco, do lado
contrário à cidade, e encontrarás um monte de salgueiros mortos.
Afasta-os, pois por baixo há uma caverna funda. Entra e tapa outra vez o
buraco com os salgueiros. Podes penetrar cerca de quatro metros e
meio. O Dick está a pôr lá cobertores e conservas. Se eles nos
expulsarem, vai para lá e espera por mim dois ou três dias. Se não
aparecer, ficas a saber que me aconteceu qualquer coisa e regressas.
Viaja de noite, até saíres deste condado. Não têm contra nós nada que
nos possa custar mais de seis meses, a não ser que arranjem uma
acusação de assassínio, por causa daquele tipo da noite passada. No
entanto, não creio que vão tão longe, pois a publicidade seria excessiva.
O I. L. D. entraria em campo e poria a claro o disparo dos tiros contra o
Joy, das janelas. Não te esqueces do que te disse, Jim? Vai para lá e
espera dois ou três dias. Não creio que consigam descobrir-te nesse
esconderijo.
— Que sabes tu, Mac? Estás a ocultar-me qualquer coisa.
— Não sei nada. Tenho apenas o pressentimento de que o cerco se
está a fechar sobre nós... é só um pressentimento. Uma quantidade de
tipos puseram-se na alheta, a noite passada, sobretudo homens com
mulheres e filhos. O London é fixe, muito em breve será membro do
Partido. Mas de momento eu não confiaria absolutamente nada no resto
dos indivíduos. Absolutamente nada! Estão tão assustados e nervosos
que seriam capazes de nos cravar eles próprios a faca nas costas.
— Tu também estás nervoso, Mac. Acalma-te. — Jim ajoelhou-se e
começou a levantar-se devagarinho, com a cabeça inclinada, como se
estivesse à escuta da dor.
Mac observou-o, assustado.
— Está ótimo. O ombro está um bocadinho pesado, mas eu sinto-me
ótimo. Nem sequer estou estonteado. Hoje tenho de andar por aí um
bocado.
— Precisavas do penso mudado.
— Pois precisava. É verdade, o doutor voltou?
— Não. Creio que o apanharam. Era um tipo tão decente.. .
— Era?
— Bem, espero que ainda seja. Talvez eles se tenham limitado a
espancá-lo. Mas tantos homens nossos têm desaparecido, sem nunca
mais voltarem a aparecer...
— És uma excelente influência!
— Bem sei, mas se não tivesse a certeza de que eras capaz de
aguentar a verdade, ter-me-ia calado. Alivia-me desabafar.
— Apetece-me tanto uma caneca de café que até tenho vontade de
chorar!
— Lembraste da quantidade de café que nós costumávamos beber na
cidade? Três canecas se nos apetecesse. Quanto nos apetecesse!
— É possível que o café te fizesse bem, mas acho melhor dominares-
te. — observou Jim, severamente — Não tardas a ter pena de ti mesmo.
Mac contraiu os músculos do rosto. — Pronto rapaz, já estou bem.
Queres sair? És capaz de andar?
— Claro que sou.
— Apaga o candeeiro e vamos buscar a nossa ração de carne e
feijões.
Jim levantou a aba da tenda e o cinzento da alvorada entrou, como
tinta diluída.
— Arejemos isto. — disse o rapaz, prendendo ambas as abas da
tenda — Começa a ter um cheiro um bocado forte. Estamos todos a
precisar de um banho.
— Verei se arranjo um balde de água morna e tomamos um banho
de esponja depois de comermos.
O céu clareava. As árvores ainda se recortavam, negras, no oriente e
distinguiam-se claramente uma colônia de corvos, que voavam para
leste. A penumbra subsistia detrás das árvores e a terra estava negra,
como se a luz tivesse de ser aspirada lentamente. Agora que podiam
ver, os guardas tinham deixado de andar para trás e para diante.
Estavam parados em grupos fatigados, de mãos nas algibeiras, golas
levantadas e casacos todos abotoados. Falavam no tom monocórdico
dos homens que só falam para não adormecerem.
Mac e Jim aproximaram-se de um grupo, ao dirigirem-se para os
fogões, e Mac perguntou: — Aconteceu alguma coisa a noite passada?
A conversa parou e os homens fitaram nele os olhos cansados e
injetados de sangue.
— Nada amigo. Aqui o Frank estava a dizer... dizer que teve a
impressão de sentir gente a mover-se no acampamento toda a noite. Eu
também tive a mesma impressão, mas não ouvimos nada. Andamos
sempre aos pares.
Mac riu-se e a sua voz pareceu penetrar profundamemte no ar: —
Estive no Exército, fui treinado no Texas. Com mil raios, quando ficava
de sentinela, à noite, parecia-me ouvir alemães em toda a parte e até
seria capaz de jurar que os ouvia cochichar em alemão.
Os homens soltaram uma risada breve sem alegria, e um deles
informou: — O London disse-nos que hoje podíamos dormir. Assim que
meter qualquer coisa no estômago, vou choinar.
— E eu também. Sinto a pele toda arrepiada e sarrabulhenta.
— Porque não vão até aos fogões, para aquecerem?
— Estávamos precisamente a falar nisso.
— Preciso de ir à latrina, Mac. — disse Jim — Depois vou ter contigo
aos fogões.
Seguiu ao longo da fila de tendas, cada uma das quais era uma
pequena caverna, escura. Ouvia-se ressonar, no interior de algumas, e à
entrada de outras estavam homens deitados de bruços, a olhar para a
manhã com os olhos cheios da intimidade do sono. Outros saíam e
encolhiam os ombros e o pescoço, surpreendidos pelo frio. Ouvi uma
voz de mulher, sonolenta e irritadiça, dizer como se sentia: “Quero ir-me
embora deste buraco. Que diabo estamos aqui a fazer? Tenho um alto
no estômago do tamanho do teu punho. É um cancro, com certeza. Há
dois anos uma cartomante disse que teria um cancro, se não tivesse
cuidado, afirmou que eu era do tipo que tinha cancro. E agora aqui a
dormir no chão, a comer porcarias...” Respondeu-lhe um resmungo
inaudível.
Quando Jim passava por outra tenda, uma cabeça desgrenhada
espreitou pela abertura e convidou-o: — Entra, rapaz. Ele foi-se embora.
— Não posso. — respondeu Jím.
Duas tendas mais abaixo, um homem ajoelhado nos cobertores,
perguntou-lhe:
— Sabe as horas, moço?
— Não tenho relógio, mas creio que deve passar das seis.
— Ouvi ela convidá-lo. Foi uma sorte não ter aceitado, pois o estupor
tem causado mais complicações neste acampamento do que os furas.
Deviam expulsá-la. Põe todos à bulha uns com os outros. Já têm o lume
aceso, lá em cima?
— Já.
Jim saiu do meio das tendas. Quinze metros adiante, numa clareira,
erguia-se um tabique quadrado de lona. No interior havia uma tábua
atravessada num buraco e apoiada em cada extremidade. A tábua tinha
espaço para três homens. Jim pegou numa caixa de cloreto e sacudiu-a,
mas estava vazia.
— É preciso fazer qualquer coisa. — disse um homem que estava
acocorado na prancha. — Onde raio está o médico? Desde ontem que
não resolve este assunto.
— Talvez pudéssemos deitar umas pazadas de terra... Ajudaria.
— Isso não é da minha conta. O médico tem obrigação de fazer
alguma coisa, porque assim arriscamo-nos a adoecer.
— Tipos como você, que não querem fazer nada, não merecem outra
coisa senão adoecer. — replicou Jim, irritado, enquanto atirava terra
para o buraco, com o lado do pé.
— É um fedelho espertinho, não é? Cresça e deixe de cheirar a
cueiros e talvez aprenda alguma coisa.
— Já aprendi o suficiente para saber que você é um sacana
preguiçoso.
— Espere que eu vista as calças e mostro-lhe quem é o sacana
preguiçoso! — ameaçou o homem, mas deixou-se ficar como estava.
Jim olhou para o chão e respondeu: — Não posso aceitar o desafio.
Levei um tiro num ombro.
— Claro, e como sabe que um gajo que se preze não lhe vai às
trombas nesse estado, ofende-o! Vocês, seus fedelhos atrevidos têm
uma lição a aprender e hão-de aprendê-la!
— Não quis ofendê-lo. — afirmou Jim, dominando a voz — De
qualquer maneira, não lutaria consigo. Não nos faltará ocasião para
lutarmos até nos fartarmos, sem termos de brigar uns com os outros.
— Assim já nos entendemos melhor. Ajudá-lo-ei a deitar um bocado
de terra para o buraco, quando acabar. Que vai acontecer hoje? Sabe?
— Vamos... — começou Jim, mas calou-se a tempo — Macacos me
mordam se sei! Suponho que o London nos dirá, quando tiver decidido.
— O London ainda não fez nada. Eh, cuidado, não se ponha tão perto
do meio, pois arrisca-se a partir a prancha. Chegue-se mais para a
ponta. O London ainda não fez nada, limita-se a andar para aí armado
em importante. Sabe o que me disse um tipo? Que o London tem
caixotes e caixotes de conserva na tenda. De tudo! Carne picada,
sardinhas e pêssegos. Não come o que nós pobres trabalhadores,
comemos. É muito fino.
— Isso é uma grandíssima mentira!
— Está outra vez a armar em esperto, não? Há muitos tipos que
viram as latas de conserva. Como sabe que é mentira?
— Porque tenho estado na tenda dele. Ele deixou-me lá dormir a
noite passada, por causa de eu estar ferido. Só lá há um colchão velho e
dois caixotes vazios, mais nada.
— Bem, muitos tipos disseram que tem lá latas de sardinhas e de
pêssegos. Alguns até pensaram ir lá buscar algumas latas, a noite
passada.
Jim não pôde deixar de rir. — Jesus, que corja de suínos! Têm um
bom homem e estão empenhados em destruí-lo!
— Lá está você outra vez a chamar-nos nomes. Quando estiver bom
descanse que alguém lhe esmurrará esse focinho de espertalhão!
Jim levantou-se da tábua, abotoou as calças e saiu. As chaminés
curtas dos fogões lançavam para o ar fumo cinzento, colunas direitas
que subiam uns cinquenta metros antes de alargarem em cima em
cogumelo, e alastrarem. O céu, a oriente já estava amarelo, embora, por
cima deles estivesse ainda de um azul casca de ovo. Saíam homens,
apressados, das tendas e o silêncio do acampamento dava lugar à
barafunda dos passos, das vozes e do movimento das pessoas.
Defronte de uma tenda estava uma mulher de cabelo preto. Tinha a
cabeça inclinada para trás e o pescoço branco. Penteava-se com longos
e bonitos movimentos do braço. Quando Jim passou, a mulher sorriu-lhe
com ar cúmplice, e cumprimentou-o, sem deixar de se pentear. — Bons
dias.
Jim parou e ela acrescentou: — Não. Bons dias apenas.
— Faz-me sentir em forma. — disse o rapaz, e admirou por momentos
o pescoço longo e branco e o queixo bem delicado .
— Bons dias. — repetiu, e viu os lábios dela formarem uma linha de
deliciosa e profunda compreensão.
Quando, mais adiante, a cabeça desgrenhada espreitou da tenda e a
voz rouca, murmurou, insistente. “Entra depressa, ele não está cá”, Jim
limitou-se a andar e a afastar-se depressa, sem responder.
Começavam a reunir-se homens nas imediações dos velhos fogões e
a estenderem as mãos para o calor, enquanto esperavam
pacientemente que a carne e os feijões aquecessem, nos caldeirões.
Jim aproximou-se de um barril e deitou água para uma bacia de folha.
Lavou a cara, molhou o cabelo e esfregou as mãos uma na outra, sem
sabão. Não se limpou. Deixou a água na cara, às gotas.
Mac viu-o e aproximou-se com uma lata de comida. — Passei-a por
água. Que aconteceu, Jim? Estás com um ar muito excitado.
— Vi uma mulher...
— Não pode ser. não tiveste tempo.
— Ví-a, apenas. Estava a pentear-se. É engraçado... às vezes uma
pessoa assume uma posição normal, mas parece-nos maravilhosa e
fica-nos gravada no espírito para toda a vida.
— Se eu visse uma mulher de aspecto decente dava em chalado. —
afirmou Mac.
Jim olhou para a lata de comida vazia. — Tinha a cabeça inclinada
para trás e estava a pentear-se, com um sorriso estranho estampado no
rosto. Como te disse, Mac, a minha mãe era católica. Não ia à igreja ao
domingo porque o meu velho odiava igrejas tanto como nós, mas às
vezes, no meio da semana, quando o velhote estava a trabalhar,
aproveitava e ia. Quando eu era pequeno, de vez em quando levava-me,
também. O sorriso daquela mulher - é por isso que te estou a contar
isto... Bem, havia na igreja uma Virgem Maria que tinha o mesmo tipo de
sorriso, um sorriso sensato, frio e confiante. Uma vez perguntei à minha
mãe porque sorria ela assim, e a minha mãe respondeu: “Ela pode sorrir
assim porque está no Céu.” Creio que se sentia um bocadinho invejosa.
— a voz de Jim tremeu um pouco, ao prosseguir: — Uma vez em que me
encontrava na igreja, a olhar para a tal imagem, vi um anel de
estrelinhas no ar por cima da sua cabeça, a girar, a girar, como
passarinhos. Vi-as realmente, Mac, não se trata de nada estranho. Não é
religião, é uma espécie daquilo a que nos livros que tenho lido chamam,
creio, satisfação de um desejo. Vi-as, de fato, e fizeram-me sentir feliz. O
meu velho teria ficado danado, se soubesse. Nunca assumia nenhuma
posição que durasse. Tudo se desperdiçava nele.
— Ainda um dia serás um grande orador, Jim. Tens assim um tom
(como direi?) persuasivo. Jesus, até acabas de provocar em mim o
pensamento de que seria agradável estar sentado numa igreja! Chama-
se a isso saber falar. Se fores capaz de, com a tua conversa, atrair gente
para o nosso lado, será excelente. — pegou numa latinha limpa,
suspensa de um prego ao lado do balde, encheu-a de água e bebeu. —
Vamos lá ver se a paparoca já está quente.
Os homens formaram fila e, à medida que passavam pelos fogões, os
cozinheiros deitavam-lhes conchas de feijão e bocados de carne cozida
nas latas. Mac e Jim colocaram-se no fim da fila, e passado um bocado
chegou a sua vez.
— É só isso que há para comer? — perguntou Mac a um cozinheiro.
— Há feijão e carne suficientes para mais uma refeição. Mas temos
falta de sal. Precisamos de arranjar mais.
Afastaram-se, a comer; uma lança de sol traspassou as árvores e caiu
no solo da clareira e as tendas fazendo-as parecer menos miseráveis.
Junto da enfiada das carripanas velhas London falava com um grupo de
homens.
— Vamos ver o que se passa. — sugeriu Mac.
Seguiram na direção da estrada, onde estavam os velhos carros. Uma
leve ferrugem começava a cobrir os radiadores. alguns dos velhos
pneus estavam vazios e todos os veículos tinham o aspecto de estar ali
havia muito, muito tempo. London saudou-os com um aceno de mão.
— Olá, Mac. Como vai isso, Jim?
— Ótimo.
— Eu e aqui os rapazes estamos a passar revista às carripanas, a
tentar escolher as que devemos mandar. Mas parece que não há
nenhuma que valha um caracol.
— Quantos carros pensa mandar?
— Uns cinco pares. Aos dois e dois, para que, se acontecer alguma
coisa a um deles, o outro recolha os passageiros e possam prosseguir.
— apontou para baixo, ao longo da fila — Aquele velho Hudson serve.
Há cinco Dodges de cinco cilindros, uns velhotes que serão capazes de
chegar ao Inferno a arrastar-se sobre a barriga, depois de lhe tirarem as
rodas. E o meu modelo T também serve... pelo menos anda. Veja-os,
não nos interessam carros fechados, pois não se pode atirar uma pedra
de dentro de um carro fechado. Temos aqui um focinho-de-pá... Acham
que anda?
Um homem avançou e respondeu-lhe: — Pode ter a certeza de que
anda. Vim nele através da Luisiana, no Inverno, e nem sequer aqueceu,
nunca, nem mesmo a subir as montanhas.
Continuaram a andar, a escolher possíveis carros utilizáveis, ao
longo da fila de sucata.
— Estes rapazes são chefes de brigada. — explicou London.
— Confiarei a cada um deles a chefia de um carro e deixá-los-ei
escolher os homens que os acompanharão, cinco ou seis para cada
veículo. Tipos em quem possam confiar, bons lutadores, compreendem?
— Parece-me muito bem. — concordou Mac — Acho que ninguém
conseguirá detê-los.
Um dos homens virou-se para ele e confirmou: — Não há ninguém
que nos consiga deter.
— Está a sentir-se muito forte, hem?
— Dêem-nos uma oportunidade e verão.
— Vamos dar uma voltinha, London. — sugeriu Mac.
— Ah, espere! Os rapazes regressaram de casa do Anderson há
bocadinho e disseram que o velho levou a noite a amaldiçoar-os e a
praguejar. E esta manhã pôs-se a caminho da cidade, ainda a praguejar.
— Já o esperava. E o Al?
— O Al?
— Sim, o filho do Anderson, o rapaz que espancaram.
— Bem os rapazes entraram e foram vê-lo. Queria vir para cá, mas
eles não se atreveram a deslocá-lo. Ficaram dois tipos com ele.
London chegou-se mais para Mac e baixou a voz, para que os outros
não o ouvissem:
— Aonde pensa que o Anderson foi?
— Creio que foi à cidade apresentar uma queixa para que nos
expulsem. Provavelmente alegará que fomos nós que lhe incendiamos o
barracão. Está tão acagaçado que fará seja o que for para ficar de bem
com o outro lado.
— Hum... Acha que devemos lutar aqui?
— Vou-lhe dizer como penso que as coisas se passarão, London.
Penso que, primeiro, mandarão alguns tipos, para tentar assustar-nos e
levar-nos a fugir. Nós faremos frente. Depois disso, virão em força.
Veremos como os nossos se sentem. Se estiverem danados e furiosos,
lutaremos, mas se parecerem acagaçados, piramo-nos, se pudermos. —
deu uma palmada no ombro de London — Se isso acontecer, você, eu e
o Jim teremos de andar depressa e de nos afastar o mais possível daqui.
A turba que vier há-de querer matar uma galinha e não estará com
delicadezes na escolha.
London gritou aos homens: — Retirem a gasolina de todos os
depósitos e metam-na nos carros que escolhemos. Liguem os motores e
vejam se estão em condições, mas não desperdicem gasolina. —
voltou-se para Mac e disse: — Continuemos a andar. Quero discutir bem
este assunto. Que pensa dos nossos homens? Os que estão junto dos
carros lutarão. E os outros?
— Se fosse capaz de prever o que um grupo de homens faria, seria
presidente. Mas há certas coisas que sei, no entanto. O cheiro a sangue
parece excitá-los. Se os deixamos matar qualquer coisa, nem que seja
um gato, quererão continuar a matar. Se houver uma luta e os nossos
forem os primeiros a fazer sangue, darão um combate danado. Mas se
formos nós a perder primeiro um homem, não me surpreenderei nada se
os vir fugir para as árvores.
— Bem sei. — concordou London — Escolhemos um tipo acerca do
qual sabemos tudo, juntamos-lhe mais dez nas mesmas condições, e
ficamos sem saber que diabo eles farão. Que pensa fazer? Apenas
esperar, para ver o que acontece?
— Exatamente. Quando estamos habituados a multidões, podemos
calcular qual vai ser o seu comportamento com um bocadinho de
antecedência. A modos que se sente no ar. Não esqueça, porém, uma
coisa: se os nossos homens forem às lonas, meta-se debaixo de
qualquer coisa e deixe-se lá ficar. Escute, debaixo da ponte do rio
Torgas há um esconderijo coberto com salgueiros mortos. No interior
estão cobertores e comida. É para aí que se deve dirigir. A fúria de uma
multidão não dura muito tempo. Quando chegar à cidade, vá à Center
Avenue, 42, e diga que fui eu que o mandei.
— Gostaria que houvesse uma maneira de tirar daqui o meu rapaz e
a Lisa. Não quero que lhes aconteça mal nenhum.
— Vocês falam como se fosse certo que tudo isso vai acontecer. —
interveio Jim — Ainda não aconteceu nada e talvez nem venha a
acontecer. Talvez o Anderson tenha ido à cidade apenas para ficar em
casa de alguém.
— Sei que pareço um profeta de desgraças. — concordou Mac, em
tom de quem se desculpa — É de fato possível que não aconteça nada.
Mas o London é um tipo de valor e nós precisamos dele. Não me agrada
a ideia de estes pobres diabos virem a ser mortos; são bons homens.
Mas nós precisamos de London. Toda esta greve terá valido a pena se o
London ficar conosco.
O homenzarrão pareceu satisfeito. — Você esteve em muitas greves,
Mac. Passa-se sempre tudo assim?
— Não, com os diabos! Este vale está organizado, como já lhe disse.
Nenhum dos outros trabalhadores aderiram à nossa greve e os
proprietários isolaram-nos aqui, sem nada que comer. Se o grupo de
atacantes de hoje for detido, a coisa ficará feia. Não planejava sair, pois
não, London?
— Planejava. Ainda não participei em nenhuma luta.
— Não acho aconselhável que vá. Vamos precisar de si aqui, pois
eles tentarão desalojar-nos hoje. Se você não estiver cá, os homens
podem-se assustar e pirar-se. Continua a ser o chefe, London, e o chefe
deve ficar no centro do grupo maior até ao último momento. Vamos
mandar seguir os carros.
— Sim? Há muitos furas por aí e a esta hora já devem estar a
trabalhar. — London voltou a correr para junto dos carros e gritou: — Vá,
rapazes, pé no prego e toca a andar! Os chefes de brigada correram
para as tendas e escolheram os seus homens, todos eles armados de
pedras e cacetes e um ou outro de navalhas. Os que ficavam
aproximaram-se a falar alto e a dar conselhos:
— Fá-los ver uma fona, Joe!
— Esmurra-lhes bem as fuças!
Os motores pegaram contrafeitos, a lutar contra a idade avançada, e
os homens escolhidos instalaram-se nos seus lugares. London levantou
ambas as mãos, para acabar com o barulho, e gritou: — Três pares vão
para aquele lado e dois para este. Os motoristas engataram e os
veículos arrastaram-se através da valeta e alinharam-se na estrada. Os
que partiam levantaram-se, acenaram furiosamente com os chapéus,
fecharam e brandiram os punhos e retalharam mortiferamente o ar com
os seus cacetes. Os carros partiram lentamente em duas direções e os
que ficaram no campo despediram-se aos gritos.
Quando os veículos deixaram de se ver, a gritaria extinguiu-se
subitamente. Os homens ficaram parados, pensativos e inquietos, de
olhos postos na estrada. Mac, Jim e London voltaram para o
acampamento, lado a lado.
— Oxalá eles façam alguns estragos! — murmurou Mac — Se nos
acontecer tudo a nós e nada aos outros, não aguentaremos muito mais
tempo. Anda daí, Jim, vamos ver como está o velho Dan, E depois talvez
consigamos reunir alguns tipos para irmos visitar o Al. Prometi uma
coisa ao rapaz e ele precisa de um certo encorajamento.
— Vou ver se arranjo água. — disse London — Os barris já têm
pouca.
Jim dirigiu-se, à frente, para a tenda-hospital, cujas abas estavam
levantadas e presas, para deixar entrar o sol da manhã.
O velho Dan estava deitado no meio de um charco de sol. O seu
rosto apresentava uma brancura transparente, de cera, e sobressaíam-
lhe nas faces grossas veias pretas.
— Como se sente, Dan? — perguntou Jim.
O velho murmurou qualquer coisa, em voz muito fraca.
— Que disse? — Mac reclinou-se, para ouvir melhor.
Os lábios de Dan desenharam as palavras com mais cuidado, desta
vez: — Ainda não comi nada.
— Pobre diabo, vou-lhe buscar qualquer coisa. — disse Jim, e dirigiu-
se para a saída. Mas estacou e gritou: — Mac, eles estão a voltar para
trás!
Da direção da cidade chegaram quatro carros que pararam na
estrada. London apareceu a correr e abriu caminho através dos grupos
de homens. — Que diabo aconteceu?
O motorista do primeiro veículo sorriu estupidamente, enquanto os
homens aguardavam, num silêncio profundo.
— Não pudemos passar. — explicou o motorista, e sorriu de novo —
Há uma barricada na estrada.
— Mas eu disse que se atirassem contra ela...
— Não compreende, London. Iam dois carros à nossa frente.
Chegamos à barricada, e vimos uns vinte tipos com armas atrás dela. —
engoliu nervosamente, em seco. — Um tipo com uma estrela ao peito
levantou-se e disse: “É proibido fazer piquetes neste condado. Voltem
para trás.” O velho Hudson tentou dar a volta e caiu numa vala - Os tipos
saltaram e, como você tinha dito, desataram a correr e meteram-se no
“focinho-de-pá”. — os homens que vinham nos carros acenaram
solenemente com a cabeça.
— Continua. — pediu London, em voz rouca.
— Bem, o “focinho-de-pá” começou a tentar derrubar a barricada,
mas os outros gajos desataram a lançar gás lacrimogêneo e a disparar
para os pneus do “focinho-de-pá”. Os
nossos homens começaram a tossir e o gás era tanto que não se via
nada. Depois os tipos puseram máscaras antigás e avançaram com
algumas mil algemas. — sorriu de novo — Por isso voltamos. Não
podíamos fazer nada. Nem sequer tínhamos uma pedra decente para
atirar. Eles apanharam todos os rapazes do “focinho-de-pá”. Nunca tinha
visto tanto gás na minha vida! — olhou para o outro lado da estrada e
acrescentou, desalentado: — Lá vêm os outros. Calculo que bloquearam
a estrada dos dois lados.
Escapou-se da multidão um curioso e longo suspiro. Alguns dos
homens viraram as costas e regressaram vagarosamente às tendas, de
cabeça baixa, como que mergulhados em profunda reflexão.
London voltou para Mac o rosto perplexo.
— Acha que conseguíamos meter os carros pelo pomar e ir por esse
lado? — perguntou Mac. — Eles não podem ter todas as estradas
bloqueadas.
London abanou a cabeça. — O terreno está demasiado úmido. Os
carros atolar-se-iam na lama, antes de percorrerem três metros.
Mac saltou para o estribo de um dos veículos e gritou: — Escutem,
rapazes, há uma maneira de passarmos. Vamos todos lá e afastamos as
barricadas da estrada. Não poderão bloquear-nos aqui, carago!
Calou-se, à espera de uma resposta, de uma reação, mas os homens
desviaram todos os olhos, cada um à espera de que outro qualquer
falasse. Por fim, um homem disse:
— Não temos nada com que lutar, amigo. Não podemos opor-nos a
espingardas e a gás com as mãos. Dêem-nos armas e lutaremos.
A fúria apossou-se de Mac: — Vocês deixam-nos abater a tiro os
nossos homens, deitar fogo às instalações dos nossos amigos, e não
lutam! Agora encurralaram-nos aqui e continuam a não querer lutar.
Chiça, até um maldito rato luta, quando é apanhado numa ratoeira.
O desamparo e a impotência pairavam no ar como se fossem também
um gás. O mesmo homem repetiu: — Não podemos lutar com as mãos
contra espingardas e gás.
A voz de Mac tremia de raiva, quando desafiou: — Seis de vocês
seus amarelos, seus cobardes, lutarão comigo com as mãos? Lutarão?
— fez diversos movimentos com a boca, mas só passados momentos
conseguiu falar de novo: — Tentar ajudá-los... tentar conseguir alguma
coisa para vocês. — gritou esganiçadamente.
London estendeu o braço e tirou-o firmemente do estribo.
Mac, de olhar dementado, tentou libertar-se. — Eu próprio mato os
cobardes, os amarelos! — gritou.
Jim aproximou-se e agarrou-lhe no outro braço. — Mac, pelo amor de
Deus, não sabes o que estás a dizer.
Jim e London viraram-no e levaram-no através da multidão, e os
homens baixaram os olhos, envergonhados. Disseram uns aos outros,
muito baixinho: — Mas nós não podemos lutar contra espingardas e gás
só com as mãos!
Os homens dos piquetes desceram, hirtos, das carripanas e reuniram-
se aos outros, deixando os veículos na estrada.
Mac, inerte, deixou-se levar para a tenda de London e sentar no
colchão. Jim molhou um trapo no balde da água e tentou lavar-lhe a
cara, mas ele tirou-lhe o trapo da mão e lavou-a ele próprio. — Já estou
bem. — declarou, calmamente — Não presto. O Partido devia livrar-se
de mim. Perco a cabeça.
— Estás morto de sono. — lembrou-lhe Jim.
— Bem sei, mas não é isso. Eles não se querem ajudar a si próprios.
Tenho visto homens como estes atravessarem um ninho de
metralhadoras tendo apenas as mãos para se defenderem e aqui, hoje,
não são capazes de dar luta a um punhado de ajudantes de xerife
novatos. Estão mortos de medo, Jim, e eu sou tão mau como eles. A
minha obrigação é servir-me da cabeça e quando subi para aquele
estribo ia disposto a tentar animá-los, encorajá-los. Mas depois aqueles
malditos carneiros enfureceram-me. Deviam correr comigo do Partido a
pontapé.
— Eu próprio me sentí muito furioso. — disse London compreensivo.
Mac olhou cuidadosamente para cada um dos seus dedos e disse,
envergonhado:
— Até sinto vontade de fugir. Gostaria de me enfiar numa meda de
feno e adormecer, mandando para o Diabo toda essa maldita corja.
— Assim que descansares, sentir-te-ás outra vez forte. — afirmou Jim
— Deita-te e dorme um bocado, Mac. Chamaremos se precisarmos de ti.
Não chamaremos. London?
— Claro. Estenda-se, homem. Neste momento não pode fazer nada.
Eu vou ter uma conversa com os chefes de brigada. Talvez consigamos
reunir alguns tipos fixes e passar as barricadas.
— Receio que já nos tenham derrotado. — disse Mac.
— Arrancaram a genica toda aos homens antes de eles poderem
sequer começar. — estendeu-se no colchão — Do que precisam é de
sangue. — murmurou — Uma multidão tem de matar qualquer coisa.
Jesus, estraguei tudo logo do princípio! — fechou os olhos, mas voltou a
abri-los de repente: — Ouçam, eles não tardarão a fazer-nos uma visita,
o xerife ou qualquer outro. Não se esqueçam de me acordar. —
espreguiçou-se como um gato e entrelaçou as mãos em cima da
cabeça; a sua respiração tornou-se regular.
O sol projetava na lona sombras das cordas da tenda e à entrada uma
mancha de sol iluminava um pedaço de terra batida. Jim e London
saíram silenciosamente.
— Pobre tipo, está mesmo precisado de dormir. — murmurou London
— Nunca conheci ninguém tão transtornado pela falta de sono. Tenho
ouvido dizer que os tiras obrigam um homem a estar acordado até ele
endoidecer.
— O Mac estará diferente quando acordar. — afirmou Jim — Meu
Deus, tinha prometido levar qualquer coisa de comer ao velho Dan, mas
depois os carros apareceram... É melhor ir tratar disso agora.
— E eu vou ver como está a Lisa. Talvez seja melhor mandá-la tomar
conta do velhote.
Jim foi a um fogão, deitou umas colheradas de feijão numa lata e
levou-a para a tenda-hospital. Ociosos, os homens tinham-se reunido
em pequenos grupos. Jim espreitou para dentro da tenda. A mancha
triangular de sol minguara e já não envolvia a cama de Dan. Os olhos do
velho estavam fechados e a sua respiração era lenta e muito leve.
Enchia a tenda um curioso odor a mofo e ranço, o hálito de um corpo
congestionado e a morrer lentamente.
Jim inclinou-se para o velho e disse-lhe: — Dan, trouxe-lhe qualquer
coisa para comer.
O velho abriu os olhos, devagar, e respondeu: — Não quero nada.
Não tenho força para mastigar.
— Tem de comer, Dan, tem de comer para ganhar forças. Olhe, eu
ponho-lhe uma almofada debaixo da cabeça e dou-lhe de comer.
— Não quero ganhar forças. — a voz do velho tornara-se lânguida —
Só quero ficar aqui deitado. Fui um derrubador de copas. — fechou de
novo os olhos — Subia-se a vara até ao alto, ao mais alto, e viam-se
todas as arvorezinhas em baixo, de todas as idades e portes. Depois
prendia-se o cinto de segurança.
Suspirou profundamente e a sua boca continuou a murmurar. Uma
sombra ocultou a mancha de sol e Jim levantou a cabeça.
Lisa estava à porta da tenda, com o bebê sob o pequeno cobertor. —
Já tenho bastante que fazer a tomar conta do bebê, mas ele disse que
tinha também de vir tomar conta de um velho.
— Chiu... — Jim desviou-se da cama, para que ela pudesse ver o
rosto emagrecido de Dan.
Lisa entrou devagarinho e sentou-se na outra cama. — Oh, não sabia!
Que quer que eu faça?
— Nada. Basta que fique com ele.
— Não gosto de os ver assim. Cheiram-me... conheço esse cheiro. —
mexeu-se nervosamente e cobriu a carinha redonda do bebê, para o
proteger do cheiro.
— Chiu... — repetiu Jim. — Talvez ele ainda fique bom.
— Com esse cheiro, não. Conheço-o. Parte dele já está morta.
— Pobre diabo!
Qualquer coisa nas palavras de Jim comoveu a rapariga, cujos olhos
se umedeceram.
— Eu fico. Não é a primeira vez que assisto. Não faz mal a ninguém.
Jim sentou-se ao lado dela e murmurou, docemente: — Gosto de
estar perto de si.
— Não venha com essas conversas.
— Esteja descansada. Admirei-me só de estar calor ao seu lado.
— Não tenho frio.
Jim virou a cara e disse: — Vou falar consigo, Lisa. Você não
compreenderá mas isso não terá importância nenhuma. Está tudo a ruir
e a ir por água abaixo, mas isto é apenas um bocadinho pequenino de
todo o conjunto. Isto não é nada Lisa. Você e eu não somos muito no
todo. Compreende, Lisa? Estou a dizê-lo a mim próprio, mas
compreendo-o melhor por você estar a ouvir. Não sabe do que estou a
falar, pois não, Lisa?
Viu um rubor subir pelo lado do pescoço da rapariga, que lhe
respondeu: — Acabo de ter um filho e, além disso, não sou dessas. —
levantou os olhos envergonhados — Não fale dessa maneira, não
empregue esse tom. — suplicou — Sabe que não sou dessas.
Jim estendeu a mão para lhe dar uma palmadinha, mas ela encolheu-
se, a fim de aumentar a distância entre ambos.
— Não.
Jim levantou-se. — Seja boa com o velhote, sim? Aí está água e uma
colher em cima da mesa. Dê-lhe uma pinguinha, de vez em quando.
Endireitou a cabeça, muito tenso, para ouvir um murmúrio de vozes
que se levantara no acampamento, um murmúrio que aumentava
gradualmente. De súbito, sobrepondo-se ao murmúrio geral, soou uma
voz que parecia arengar à multidão, uma voz que subia e descia,
carregada de cólera.
— Tenho de ir. — disse Jim — Cuide dele. — saiu, apressado.
Junto dos fogões viu um grande grupo de homens reunidos à volta de
um objeto central qualquer, todos virados para o interior. A voz colérica
vinha do centro. Enquanto observava, a multidão desviou-se um pouco
para o lado, na direção do pequeno estrado nu que fora construído para
o corpo de Joy. Os homens tocaram no estrado e envolveram-no, mas
do grupo ergueu-se um homem que subiu ao estrado. Jim correu para lá
e viu quem era: o carrancudo e boçal Burke. Os braços do indivíduo
gesticulavam e a sua voz soava, aos berros, por cima das cabeças dos
outros. Jim viu London aproximar-se a correr, vindo da estrada.
Burke agarrou-se ao corrimão do estrado e gritou: — Aí vem ele!
Olhem bem. Foi aquele tipo que estragou tudo. Que diabo fez ele? Tem
estado sentado na tenda a comer pêssegos de conserva, enquanto nós
temos vivido de porcarias em que nem os porcos tocariam!
A boca de London estava aberta de espanto. — Que se passa aqui?
— gritou.
Burke inclinou-se para a frente, por cima do corrimão, e respondeu-
lhe:
— Eu digo-lhe o que se passa aqui! Decidimos que queremos um
chefe a valer. Decidimos que queremos um tipo que não se venda por
um carregamento de conservas!
London empalideceu e os seus ombros descaíram. Com um rugido,
investiu contra a turba, que não ofereceu resistência, afastou homens do
seu caminho e foi avançando, abrindo uma clareira naquela massa de
gente. Ao chegar ao estrado agarrou o corrimão. Ao vê-lo içar-se, Burke
apontou-lhe um pontapé à cabeça, falhou, acertou-lhe no ombro e fê-lo
soltar uma das mãos do corrimão. London rugiu de novo. Estava
debaixo do corrimão e com os pés assentes no solo. Burke quis
esmurrá-lo na cara, mas falhou. Então, com a temível e suave
velocidade de um homem pesado, London avançou a mão esquerda e,
quando Burke se esquivou, acertou-lhe com o enorme punho direito no
lado do queixo, atirou-o ao ar e deixou-o cair. A cabeça de Burke ficou
pendente da aresta do estrado, com o queixo partido, deslocado para o
lado e os dentes partidos a aparecer entre os lábios. Um delgado fio de
sangue escorria-lhe da boca, passava-lhe ao lado do nariz e do olho e
desaparecia entre os cabelos.
London olhava-o, ofegante. Depois levantou a cabeça, devagar, e
perguntou:
— Há mais filhos da puta que pensem que os atraiçoei?
Os homens que se encontravam mais perto da cabeça pendente de
Burke fitavam-lhe o rosto, fascinados. Dos outros lados do estrado,
começaram a empurrar e a porem-se em bicos de pés, para verem. Os
olhos dos homens estavam brilhantes e coléricos. Um deles disse:
“Espatifou-lhe o queixo! Aquele sangue é do cérebro!” Outro gritou
histericamente: “Matou-o! Rebentou-lhe a cabeça!”
As mulheres abriram caminho por entre o grupo e olharam,
petrificadas, para a cabeça pendente. Uma exclamação pesada,
soluçante, ergueu-se da turba. Os olhos chispavam. Todos os ombros
estavam pendentes e os braços arqueavam-se, perigosamente. London
continuava a ofegar, mas a expressão do seu rosto era de perplexidade.
Olhou para o punho, para os nós dos dedos fendidos e a sangrar, e
depois olhou por cima da multidão, como que à procura de socorro. Viu
Jim, parado na orla externa do ajuntamento. O rapaz agitou por cima da
cabeça as duas mãos entrelaçadas e depois apontou para a estrada
onde estavam os carros, a seguir pela estrada abaixo, de novo para os
carros e outra vez pela estrada abaixo. London voltou a olhar para a
multidão, que parecia rosnar. A perplexidade abandonou-lhe o rosto,
que se tornou severo e ameaçador.
— Muito bem, rapazes, porque não fiz eu nada? — gritou — Porque
vocês não me ajudaram. Mas, com os diabos, agora estão preparados
para agir, agora nada poderá detê-los! — ouviu-se um longo uivo
gutural, animalesco, e London ergueu as mãos. — Quem quer ir agora
deitar abaixo as barricadas?
O estado de espírito da multidão modificara-se rapidamente. Os olhos
dos homens e das mulheres estavam como que fascinados e os corpos
oscilavam lentamente, num ritmo certo. Não voltaram a ouvir-se gritos
isolados, soltados por homens isolados. Agora mexiam-se juntos,
pareciam iguais. O rugido era uma só voz, saída de muitas gargantas.
— Alguns de vocês levem carros. — gritou London — Os outros
venham também. Venham, venham e veremos!
Saltou do estrado e voltou a abrir caminho através da mole humana.
Os motores dos carros foram imediatamente postos a trabalhar e a
multidão desembocou na estrada, mas uma multidão coesa e atenta, e
não já dispersa e desanimada. Transformara-se numa máquina rápida,
silenciosa e terrivelmente eficiente. Lançou-se pela estrada abaixo a
trote, controlada e dirigida. Os carros seguiam-na, lentamente.
Jim, que a tudo assistira, ordenou a si mesmo, em voz alta: — Não te
deixes apanhar! Não te deixes apanhar! Serve-te da cabeça!
A maioria das mulheres corria com os homens, mas algumas que
ficaram no acampamento olharam estranhamente para Jim, pois os
olhos dele, fitos na estrada e no desencadear daquele terrível
mecanismo, também pareciam fascinados. Quando os homens
desapareceram, Jim estremeceu, suspirou e voltou-se. Levou a mão ao
ombro ferido e comprimiu-o, para sentir a dor e dirigiu-se vagarosamente
para a tenda de London. Entrou em silêncio e sentou-se num caixote.
Mac olhou, através das pálpebras semicerradas. Só na estreita fenda
brilhante denunciava que estava acordado. — Quanto tempo dormi,
Jim?
— Só um bocado. Creio que ainda nem sequer é meio-dia.
— Sonhei muito, mas descansei. Acho que me vou levantar.
— Creio que é melhor dormires mais, se puderes.
— Para quê? Sinto-me repousado. — abriu por completo os olhos —
Quando estamos cansados dormimos profundamente. Sonhei com
distúrbios.
— É melhor voltares a adormecer.
— Não. — Mac sentou-se no colchão e espreguiçou-se. — Aconteceu
alguma coisa enquanto estive a dormir? Parece tudo muito sossegado lá
fora.
— Aconteceram muitas coisas. O Burke tentou correr com o London e
este esborrachou-lhe a cara, quase o matou e... Jesus, esqueci-me do
Burke! — correu para a entrada, contornou a tenda e olhou na direção
do estrado. Depois voltou a entrar. — Alguém o levou.
Mac já estava levantado e todo excitado. — Conta-me, anda.
— Bem, quando a malta viu o sangue ficou chalada de todo e o
London levou-a consigo para derrubar a barricada.
— Eu não te disse? Eles precisavam de sangue. Dá sempre
resultado, como te disse. Bem, e depois?
— Devem lá estar, agora. Só queria que os tivesses visto, Mac! Foi
como se tivessem desaparecido todos, transformados apenas num
enorme animal, a descer a estrada. Apenas um enorme animal. Quase
me juntei a eles, também. Quis ir, mas disse a mim mesmo: Não podes.
Tens de utilizar a cabeça.
— Muito bem! Há quem pense que uma multidão é imprevidente, mas
eu já vi muitas coisas... E, digo-te, uma multidão que quer fazer uma
coisa é quase tão eficiente como soldados bem treinados... mais
complicada. Derrubarão a barricada, e depois? Hão-de querer fazer
mais qualquer coisa, antes de acalmarem. O que disseste está certo: é
um grande animal, diferente dos homens que a compõem... e mais forte
do que todos esses homens reunidos. Não quer as mesmas coisas que
os homens querem (como o doutor disse) e nós nunca sabemos o que
fará.
— Derrubará a barricada.
— Não era a isso que me referia. O animal não quer a barricada e eu
não sei o que quer. O mal é que os tipos que estudam as pessoas
pensam sempre que as multidões são homens, e não são. É uma
espécie de animal diferente, tão diferente dos homens como os cães. É
formidável quando podemos utilizar uma multidão, mas infelizmente não
sabemos o suficiente a seu respeito. Quando alguma coisa a atira para a
frente, é capaz de tudo.
O rosto de Mac estava cheio de vivacidade, excitado, e também um
pouco receoso.
— Escuta, parece-me ouvir... — Jim correu para a entrada —
Regressa! — gritou — Mas vem diferente, mais espaçada, já não é a
mesma.
Mac aproximou-se e parou ao lado dele. A estrada estava cheia de
homens que regressavam. London passou-lhes para a frente e correu
pesadamente na direção dos dois. Quando se aproximou o suficiente,
gritou-lhes: — Voltem para a tenda! Voltem para a tenda!
— Que quer ele dizer? — perguntou Jim, mas Mac puxou-o para
dentro, desatou as abas da tenda e deixou-as cair.
— Ele sabe. — murmurou — Está calado e deixa-o resolver o
assunto. Aconteça o que acontecer, não vás lá fora.
Ouviram a chuva de passos no chão e gritos. Depois viram a sombra
atarracada e negra de London na lona e ouviram-no gritar: — Agora
serenem, rapazes!
— Mostraremos quem são os amarelos, os cobardes.
— Estão zangados porque as palavras lhes desagradaram,mas
bebam água e serenem. Portaram-se de maneira formidável mas não os
deixo atacar o meu amigo que também, é vosso amigo. Garanto-lhes
que tem trabalhado para vocês até estar morto de cansaço.
Mac e Jim na tenda, quase sentiam a disposição da turba mudar,
soltar-se, dividir-se em cem gritos.
— Nós sabemos, London.
— Pois sim, mas ele chamou-nos amarelos.
Mac respirou fundo, pesadamente. — Esteve por um triz, Jim. Jesus,
esteve por um triz!
A sombra quadrada de London continuava recortada na lona da
tenda, mas as muitas vozes excitadas diminuíam, perdiam o impacto.
London mudou de assunto: — Se algum de vocês ainda julga que
tenho pêssegos de conserva, pode entrar e ver.
— Não, London! Nunca pensamos nisso.
— Foi aquele filho da puta do Burke. Tem andado a trabalhar contra
você, London. Eu ouvi-o.
— Bem, nesse caso, dispersem, pois eu tenho que fazer.
A sombra permaneceu na tenda até as vozes se extinguirem e deixar
de haver uma multidão à sua frente. London levantou a aba da tenda e
entrou, exausto.
— Obrigado. — agradeceu-lhe Mac — Sabe tão bem como eu que
esteve por um triz. Mas você soube lidar com eles. Oh, sim, soube lidar
com eles!
— Fiquei assustado. — confessou London — Não ficará a pensar pior
de mim por isso, Mac, mas no regresso dei comigo a querer vir aqui e
matá-lo pessoalmente. — sorriu — Não sei porquê!
— Ninguém sabe, mas as coisas são assim. Conte o que aconteceu
na estrada.
— Passamo-los a ferro! Passamo-lhes por cima como se lá não
estivessem. Atiraram-nos gás e alguns dos rapazes tossiram e
choraram, mas, carago, aqueles polícias novatos não tinham
possibilidade nenhuma! Alguns piraram-se, creio que a maioria... mas os
restantes levaram pontapés de criar bicho! Jesus, como os rapazes
estavam irados!
— Houve tiros?
— Não. Fomos demasiado rápidos. Dispararam para o ar, julgando
que nos detinham mas nós continuamos a avançar. Há tiras que gostam
de disparar para a malta, mas creio que outros não gostam. Depois
passamo-los a ferro, como disse, e derrubamos a barricada.
— Os carros passaram?
— Passaram oito, carregados de tipos assanhados como um raio!
— Mataram alguns tiras?
— Se matamos? Não sei, não reparei. Talvez tivéssemos matado,
sim. é possível. Aposto que nem metralhadoras nos teriam detido.
— Excelente. — elogiou Mac — Se pudéssemos ligar o calor dessa
maneira, quando precisássemos, e desligá-lo quando deixasse de ser
preciso, teríamos a nossa maldita revolução amanhã e amanhã à noite
estaria tudo resolvido. No entanto, a fúria passou-lhes depressa...
— Foi daquela louca correria. Quase quilômetro e meio! Quando
chegaram aqui, estavam sem fôlego. Eu próprio me sinto indisposto.
Não estou habituado a correr.
— Bem sei. — murmurou Mac — No entanto, não foi só a corrida.
Uma coisa como essa que aconteceu vira um tipo todo do avesso.
Aposto que, neste momento, muitos dos rapazes estão a vomitar o
pequeno-almoço.
London pareceu ver Jim, de súbito, aproximou-se dele e deu-lhe uma
palmada nas costas.
— Foi você que conseguiu, Jim! Eu estava para ali especado, depois
de ter posto o Burke a dormir, sem saber que diabo fazer. E os tipos à
minha volta também não sabiam que fazer, embora estivessem em
ponto de rebuçado para se atirarem a mim ou outro qualquer. Olhei, vi-o
a apontar, e percebi o que tinha a fazer com eles.
O rosto de Jim estava corado de prazer. — Não sirvo de muito, assim
desasado... Estava a pensar no que o Mac tinha dito, acerca de um
pouco de sangue ajudar a lançar os homens... Lembraste de o ter dito,
Mac?
— Claro que lembro. Mas não garanto que tivesse pensado nisso
numa ocasião tão oportuna. Não sei como o consegues, Jím, mas toda a
gente perde a cabeça menos tu! Ouvi falar do teu velho. Não era um
gênio, a única coisa que sabia era lutar. Não sei onde aprendeste a usar
a carola e a não te meteres em assados.
— Tenho de servir para alguma coisa. O meu pai era como disseste,
mas a minha mãe era tão calma, tão fria, que te faria arrepiar.
London flectiu a mão, pendente ao longo do corpo, e depois olhou,
admirado, para os nós dos dedos, que pareciam esmagados. — Jesus
Cristo, olhem para os meus dedos!
— Não há dúvida de que os esborrachou. — comentou Mac.
— Esborrachei-os no queixo do filho da puta do Burke. Como está
ele, Jim? Tive a sensação de que lhe arrancava a cabeça do corpo,
quando o esmurrei.
— Não sei como está, mas alguém o levou do estrado.
— Acho melhor ir ver. — murmurou London — É engraçado, mas só
agora senti a mão.
— Quando nos misturamos com o animal nunca sentimos nada. —
afirmou Mac.
— Que animal?
— Oh, é apenas uma espécie de anedota! Acho boa ideia ir ver o
Burke e tentar avaliar o estado de espírito dos rapazes. Suponho que a
esta hora, se devem sentir muito abalados.
— Já não confio neles. — declarou, London — Já não sou capaz de
prever as suas reações. Ainda bem que não estava atrás daquela
bancada!
— Pois eu digo: ainda bem que você estava defronte desta tenda! Se
não fosse isso, talvez o Jim e eu estivéssemos pendurados numa
macieira, a esta hora!
— Houve um momento em que... — London calou-se, levantou as
abas da tenda e prendeu-as.
O sol, que passara do meridiano, já não entrava na tenda. Mac e Jím
viram London afastar-se e depois voltaram-se um para o outro. Mac
deixou-se cair outra vez no colchão e Jím fitou-o, até ele perguntar: —
Estás a acusar-me de alguma coisa?
— Não. Estava apenas a pensar... Agora que ganhamos uma batalha
e conseguimos que os nossos rapazes passassem, parece-me que
corremos maior perigo de perder do que nunca. Viemos para aqui a fim
de fazer qualquer coisa, Mac. Estragamos tudo?
— Pensas que somos muito importantes e que esta história é muito
importante. — replicou Mac, irritado — Mesmo que a coisa acabasse
agora em nada, teria valido a pena. Há uma quantidade de indivíduos
que têm acreditado nessa treta do nobre trabalhador americano e da
colaboração entre o capital e o trabalho. Pois muitos deles a esta hora
estão esclarecidos, muitos deles já sabem o que o capital pensa a seu
respeito e com que facilidade e rapidez esse mesmo capital os
envenenaria como se não passassem de formigas. E, carago, nós
mostramo-lhes duas coisas: o que são e o que têm de fazer! Esta última
sarrafusca, agora, demonstrou-lhes que serão capazes de o fazer.
Lembraste do efeito que a greve de São Francisco teve no Sam? Bem,
todos estes homens passarão a ser um pouco como o Sam.
— Mas achas que têm inteligência suficiente para compreender
isso?
— Não é inteligência que é preciso, Jim. Depois de tudo isto acabado,
a coisa continuará a trabalhar dentro deles e eles saberão sem precisar
pensar.
— Que te parece vai acontecer agora?
Mac esfregou os dentes da frente com um dedo. — Creio que eles
terão de nos correr à força daqui, Jim. Tanto pode ser esta tarde como
esta noite.
— E, na tua opinião, será melhor por-mo-nos a andar ou resistir, lutar?
— Lutar, se conseguirmos convencer a tal os rapazes. Se eles se
escapulirem, ficarão com a consciência pesada por causa disso, mas se
lutarem e forem vencidos, continuarão a lutar. E vale a pena.
Jim apoiou um joelho no chão. — Escuta, mas se eles vierem com
espingardas matarão uma quantidade dos nossos.
Os olhos de Mac transformaram-se numa fenda fria. — É um caso de
ser preso por ter cão e... Supõe que eles matam alguns dos nossos
homens. Isso ajudará o nosso lado. Por cada homem que eles matam
conquistamos dez aderentes. A notícia espalha-se pelo país e homens
de todos os lados tomam conhecimento dela e ficam furiosos. Tipos que
estavam apenas mornos aquecem, percebes? Mas se nos pirarmos e
isso constar e os homens disserem: “Francamente, nem sequer
resistiram, não lutaram!”, se isso acontecer, todos os trabalhadores como
estes daqui se sentirão inseguros. Se lutarmos e a notícia se espalhar,
outros homens em idênticas circunstâncias lutarão também.
Jim apoiou o outro joelho e acocorou-se. — Gostava de ficar
completamente esclarecido. Achas que os rapazes lutarão?
— Não sei. Agora, neste momento, não lutarão. Estão muito
transtornados. Talvez mais tarde... Se lhes pudermos atirar outro frango
como o Burke, talvez lutem. O Burke apareceu em cena no momento
oportuno, precisamente quando precisávamos dele. Talvez apareça
mais alguém que verta um pouco de sangue pela causa.
— Mac, se é só de sangue que precisamos, talvez eu possa arrancar
a ligadura e deixar o sangue correr.
— Às vezes acho-te a modos que estranho. — comentou Mac,
bondosamente — És demasiado sério, homem.
— Não vejo nada de estranho.
— Claro que não. Lembraste daquela dama que foi comprar um
cavalo? Perguntou ao vendedor: “Tem a certeza de que é um puro-
sangue?” E o homem respondeu-lhe: “Claro que é. Sangra para a
senhora, "Oscar"”. — Jim sorriu, sem vontade, e Mac acrescentou: —
Não, Jim, tu és mais útil à causa do que cem tipos destes.
— Bem, uma pequena perda de sangue não me fará mal nenhum.
Mac afagou nervosamente o lábio inferior. — Jim, alguma vez viste
quatro ou cinco cães a lutar uns com os outros?
— Não.
— Bem, se um desses cães fica ferido ou cai, os outros todos
atacam-no e matam-no.
— E depois?
— E depois os homens, às vezes, fazem o mesmo. Não sei porquê. É
assim como aquilo que o doutor me disse, uma vez: “Os homens odeiam
qualquer coisa neles próprios.”
— O doutor era um tipo simpático, mas as suas ideias complicadas
não conduziam a nada. Serviam apenas para o fazer andar num círculo.
— Mesmo assim, quem me dera tê-lo aqui. O teu ombro está bem?
— Claro que está. Só me sirvo dele quando é indispensável.
Mac levantou-se e disse-lhe: — Vamos ver como isso está. Despe o
casaco. — Jim obedeceu e Mac soltou os adesivos e levantou
cuidadosamente o penso — Não me parece mal, embora esteja um
bocadinho assanhado. Vou tirar umas camadas desta gaza. Estou
desejoso que regressemos à cidade, para seres tratado como deve ser.
Agora ponho só esta parte limpa da gaza. — repôs também o adesivo e
comprimiu-o firmemente, até o calor do corpo o ajudar a pegar.
— Talvez encontremos o doutor na cidade — sugeriu Jim. — Ele falou
de modo muito estranho pouco antes de desaparecer. Quem sabe,
talvez se tenha desgostado, ou assustado, e posto na alheta.
— Eu ajudo-te a vestir o casaco... Não penses nisso. Se o doutor
fosse homem para se desgostar, já se teria desgostado há muitos anos.
Além disso, vi-o debaixo de fogo. Não é dos que se assustam.
London entrou e parou à porta, com ar sério e preocupado. — Não o
matei, mas quase. Tem o queixo numa lástima. Receio que morra se
não arranjarmos um médico.
— Podemos mandá-lo para a cidade, mas não creio que o tratem
muito bem lá...
— A mulher dele está a fazer um banzé dos diabos. — prosseguiu
London — Diz que vai acusar a todos de assassinos, que toda esta
história da greve se destinou só a dar cabo do Burke...
— Mesmo que fosse assim, quase teria valido a pena. Nunca gostei
do sacana e desconfiei sempre de que ele era o espião. Que pensam os
homens?
— Estão para aí sentados numa pasmaceira, como você disse.
Parecem agoniados, como uma corja de miúdos que assaltou a loja dos
rebuçados.
— É natural, consumiram o sumo que lhes deveria ter durado cerca
de uma semana... O melhor será meter-lhes qualquer comida no bucho,
se pudermos. Talvez depois durmam e lhes passe. Mas você tem razão,
London, precisamos de um médico. Como está o tipo que se aleijou no
tornozelo?
— Também está a fazer um chinfrim dos demônios. Diz que não lhe
puseram as talas bem, que lhe dói e que nunca mais poderá andar.
Toda esta lamúria não beneficia nada a disposição dos homens.
— Pois não, e ainda há o Al. Como estará ele? Devemos ir vê-lo.
Acha que os tipos que mandou para lá, para ficarem com ele, ficaram?
— Não sei. — respondeu London, com um encolher de ombros.
— Poderemos arranjar meia dúzia de homens para irem lá conosco?
— Não creio que consiga convencer algum destes homens a ir seja
aonde for. A única coisa que querem é estar sentados a olhar para os
pés.
— Nesse caso, chiça, vou sozinho! O Al é bom tipo.
— Vou contigo, Mac. — prontificou-se Jim.
— Não. Tu ficas aqui.
— Não creio que encontre alguém que o incomode pelo caminho. —
disse London.
— Jim, gostaria que ficasses. — insistiu Mac — Supõe que nos
apanham a ambos, hem? Não haveria aqui ninguém para continuar.
Fica, sim?
— Vou. Já estou farto de estar para aqui parado. Porque não ficas tu
e não me deixas ir a mim?
— Está bem, rapaz. — resignou-se Mac — Teremos cuidado e
manteremos os olhos bem abertos. Tente conservar os homens vivos
até nós voltarmos, London, faça-os engolir um pouco de feijões e carne.
Eles já estão fartos, bem sei, mas de qualquer modo é comida. Devemos
ter notícias dos carros muito em breve.
— Creio que vou abrir apenas uma lata dos tais pêssegos e outra de
sardinhas. — resmungou London — Os rapazes disseram que eu tinha
caixotes e caixotes de conservas, empilhadas até ao teto! Terei algumas
preparadas para vocês, quando regressarem.
Capítulo 15
SAÍRAM para a luz clara do dia, em contraste com a qual o
acampamento parecia miserável e cinzento. Acumulara-se uma
quantidade de lixo desde que Burton desaparecera, de mistura com
papéis e cordéis velhos, e havia fatos-macacos pendurados nas cordas
das tendas. Mac e Jim saíram do acampamento e atravessaram o campo
circundante até à entrada do pomar. Mac parou na linha das árvores e
os seus olhos percorreram lentamente os campos de visão horizontal.
— Está tudo tão sossegado que me faz desconfiar... Acho excessivo.
— estendeu a mão para um ramo e colheu uma pequena maçã disforme,
que os apanhadores tinham deixado — Oh, sabe bem! Já me esquecera
das maçãs. Esqueço-me sempre do que é tão fácil.
— Não vejo ninguém — murmurou Jim — Nem vivalma.
— Olha, avançaremos ao longo das árvores e junto delas. Se alguém
olhar por uma alameda abaixo não nos verá.
Avançaram, devagar, para debaixo das grandes macieiras. sempre
de olhos atentos. Caminharam através de sombras de ramos e folhas,
sob a carícia leve do sol.
— Mac, achas que conseguiríamos que nos dessem uma licença de
algum tempo, para irmos para um lugar onde ninguém nos conhecesse,
sentar-nos sem fazer nada num pomar?
— Ao fim de duas horas estarias mortinho por regressar.
— Nunca tive tempo para ver as coisas, Mac, nunca. Nunca vi como
as folhas nascem, nunca vi como as coisas acontecem... Esta manhã
havia um comprido carreiro de formigas no chão da tenda, mas não
pude observá-las porque estava a pensar noutra coisa. Às vezes
gostava de passar todo o dia sentado a observar insetos, sem pensar
em mais nada.
— Darias em chalupa. Os homens já não são grande coisa, mas os
insetos dão com um tipo em chalupa.
— Bem, mas de vez em quando temos essa sensação... Nunca olho
para nada, nunca tenho tempo para ver nada. Isto aqui vai acabar e eu
nem sequer saberei... como uma maçã cresce.
Continuaram a andar, vagarosamente. Os olhos de Mac não paravam,
à procura entre as árvores. — Não se pode ver tudo. — murmurou —
Arranjei uma licença e fui para as florestas do Canadá. Passados dois
dias vim-me embora a correr. Queria encrenca, estava esfomeado de
agitação.
— Mas eu gostaria de experimentar, um dia. O velho Dan fala das
florestas...
— Com a breca, Jim, não se pode ter tudo! Tu tens algo que o velho
Dan não tem. Lembra-te de que não podes ter tudo. Dentro de poucos
dias regressaremos à cidade e estaremos tão ansiosos por nos
metermos noutra alhada que roeremos as unhas, enquanto esperamos.
Precisas de ter cuidado, até esse ombro sarar. Hei-de levar-te a um
bordel onde poderás observar todos os insetos que quiseres... Encosta-
te à linha das árvores. Estás a dar nas vistas como uma vaca numa
encosta.
— Isto aqui é bonito.
— Demasiado bonito, até. Receio que haja para aí uma armadilha
em qualquer lado.
Através das árvores distinguiram a casinha branca de Anderson e a
vedação de estacas, assim como as sardinheiras rubras, no pátio.
— Não se vê ninguém. — disse Jim.
— Mas tem cuidado mesmo assim.
Ao chegar à última fieira de árvores Mac parou de novo e deixou os
olhos percorrerem lentamente as imediações. Do grande quadrado preto
onde se erguera o celeiro subia uma fumacinha pungente e preguiçoso.
A cisterna branca parecia mais alta e isolada.
— Parece que não há novidade. — disse Mac — Vamos pelo lado de
trás.
Tentou abrir a cancela de estacas sem fazer barulho, mas o trinco
estalou e as dobradiças gemeram. Subiram o curto carreiro até ao
alpendre, com a sua trepadeira amarelando. Mac bateu à porta.
— Quem é? — perguntou uma voz, dentro de casa.
— É você, Al?
— Sou.
— Está sozinho?
— Estou. Quem está aí?
— Mac.
— Oh, Mac, entre! A porta não está fechada à chave.
Entraram na cozinha. Al estava na cama estreita, encostada à
parede, e parecia ter emagrecido muito naqueles poucos dias. A pele da
cara pendia-lhe, solta.
— Olá, Mac! Julguei que nunca mais vinha ninguém. O meu velho
saiu cedo.
— Quisemos vir antes, mas não pudemos. Como vão os ferimentos?
— Doem a valer... e quando um tipo está sozinho ainda doem mais.
Quem deitou fogo ao celeiro, Mac?
— Vigilantes. Lamentamos tremendamemte, Al. Tínhamos aqui
guardas, mas afastaram-nos de cá com um truque.
— O meu velho levou a noite inteira a fazer banzé. Falou toda a
noite. Sarrazinou-me umas quatro vezes por hora, toda a santa noite.
— Lamentamos muito.
Al tirou uma das mãos do meio da roupa e coçou a cara. — Continuo
do seu lado, Mac, mas o velho quer fazer-lhe mal. Saiu esta manhã para
conseguir que o xerife os expulse da propriedade. Diz que estão a
invadir a propriedade alheia e que não os quer lá, que já foi bem
castigado por ter dado ouvidos a tipos como você e que eu posso ir para
o Inferno se me juntar a vocês. Está pior do que uma barata, Mac.
— Já receava que estivesse. Al. Escute, nós sabemos que está do
nosso lado, compreende? Não serviria de nada atormentar mais o velho
do que já está. Se servisse de alguma coisa, seria diferente. Finja que
se passa para o lado dele. Nós compreenderemos, Al. Poderá manter-se
em contato conosco do mesmo modo. Tenho uma enorme pena do seu
velhote.
Al suspirou profundamente. — Estava com medo que você pensasse
que o atraiçoava. Se sabe que assim não é, direi ao velho que quero
que vocês vão para o Inferno.
— Isso mesmo, Al. Nós não deixaremos de o recomendar na cidade.
A propósito, o doutor veio vê-lo a noite passada?
— Não. Porquê?
— Bem, pôs-se a caminho da sua casa antes do fogo e não voltou.
— Jesus! Que lhe terá acontecido?
— Receio que tenham apanhado o pobre diabo.
— Eles têm andado a exercer pressão sobre vocês de todos os
lados, não têm?
— Têm. Mas os nossos rapazes deram-lhes umas boas trepas, esta
manhã. No entanto, se o seu velho se virar contra nós, creio que
amanhã nos esmagarão.
— Vai-se tudo ao ar, hem, Mac?
— Isso não significa nada. Fizemos o que viemos fazer. A coisa
continua, Al. Aceitamos a paz e fingimos que nunca mais vamos ser
queimados... — calou-se, à escuta — Este barulho é de alguém que vem
aí? — atravessou a cozinha a correr, para o outro lado da frente da casa,
e espreitou pela janela.
— É o meu velho, conheço-lhe os passos. — disse Al.
Mac voltou. — Queria ver se vinha alguém com ele, mas vem sozinho.
Podíamos pirar-nos à sorrelfa, mas eu preferia dizer-lhe que lamento.
— É melhor não dizer. — aconselhou Al — Ele não dará ouvidos a
nada do que você disser. Tem-lhe um ódio de morte.
Ouviram-se passos no alpendre e a porta escancarou-se. Anderson
estacou, surpreendido e de olhar coruscante. — Malditos! — gritou —
Ponham-se a andar! Fui denunciá-los e o xerife correrá com todos vocês
da minha terra! — o peito dilatava-se-lhe de cólera.
— Queríamos apenas dizer-lhe que lamentamos. Não fomos nós que
deitamos fogo ao barracão, foram homens da cidade.
— Que me importa a mim quem foi? O que me importa é que ardeu e
que a colheita também ardeu. Que sabem vocês, seus malditos
vagabundos, destas coisas? Agora perderei a propriedade, com certeza.
— lágrimas de raiva molharam-lhe os olhos — Vocês, miseráveis, nunca
tiveram nada. Nunca plantaram árvores, nunca as viram crescer, nunca
lhes tocaram com as vossas mãos. Nunca tiveram nada, nunca tocaram
em macieiras vossas, com as vossas mãos! Que podem saber?
— Nunca tivemos a sorte de ter nada. — respondeu Mac — Mas
gostaríamos de ter qualquer coisa e de plantar árvores.
Anderson fez conta que não o ouviu. — Dei ouvidos às suas
promessas e veja o que aconteceu. Toda a colheita queimada. E a
hipoteca está a vencer-se.
— E os pointers? — perguntou Mac.
As mãos de Anderson desceram-lhe, lentamente, ao longo do corpo
e encheu-lhe os olhos uma expressão de ódio frio, implacável.
Respondeu lentamente, suavemente:
— O canil ficava... encostado... ao celeiro.
Mac virou-se para Al e acenou com a cabeça. Durante um momento
o ferido interrogou-o com o olhar, mas depois tornou-se carrancudo e
rosnou:
— O que ele diz é para se fazer. Ponham-se a andar daqui para fora
e nunca mais voltem.
Anderson correu para a cama e parou diante dela. — Podia abatê-los
a tiro, agora. — ameaçou — Mas o xerife vai fazê-lo por mim, e muito
depressa.
Mac tocou no braço de Jim e saíram e fecharam a porta. Não se
deram ao trabalho de olhar para trás quando transpuseram a cancela.
Mac começou a andar tão depressa, que Jim teve de estugar o passo
para o acompanhar. O sol começava a descer e projetavam-se nas
alamedas sombras de árvores inteiras. Como o vento agitava os ramos,
tanto as árvores como o solo pareciam estremecer nervosamente.
— Temos de fazer um grande equilíbrio para não perder o quadro
geral de vista, Jim. Vemos um tipo ferido, ou alguém como o Anderson
destruído, ou um tira atormentar uma rapariga judia, e pensamos: “Não
vale a pena, com mil raios!” Mas depois lembramo-nos dos milhões que
têm fome e volta tudo a estar certo outra vez e a valer a pena. No
entanto, temos de andar sempre aos saltos, a fazer equilíbrios. Nunca
sentes isso, Jim?
— Nem por isso. Ainda não há muito tempo que vi a minha mãe
morrer. Parece que foi há anos, mas não foi há muito tempo. Não me
quis falar, limitou-se a olhar-me. Estava tão profundamente magoada
que nem quis um padre. Creio que nessa noite algo de mim me foi
arrancado a fogo. Tenho pena do Anderson, mas, que diabo... Se eu
posso dar toda a minha vida, ele deveria poder resignar-se à perda de
um celeiro.
— Bem, para alguns destes homens a propriedade é mais importante
do que a vida.
— Vai mais devagar, Mac. — pediu Jim — Porque estás com tanta
pressa? Parece que me canso facilmente, agora.
Mac afrouxou um pouco o passo. — Já calculava que tinha sido para
isso que ele fora à cidade. Quero regressar ao acampamento antes que
aconteça alguma coisa. Não sei o que o xerife fará, mas sei que ficará
felicíssimo por poder separar-nos.
Continuaram a caminhar em silêncio na terra macia e escura. As
sombras das árvores tocavam-lhes e tremiam. Ao chegarem à clareira,
abrandaram de novo.
— Bem, pelo menos ainda não aconteceu nada. — disse Mac.
O fumo subia lentamente dos fogões e Jim perguntou: — Onde
estarão os tipos todos?
— A dormir, para curtir a bebedeira que o London lhes proporcionou.
Talvez não fosse má ideia dormires também um bocado. Provavelmente
teremos de passar a noite acordados.
London foi ao seu encontro e Mac perguntou-lhe: — Tudo bem?
— Na mesma.
— Eu tinha razão. O Anderson foi pedir ao xerife que nos expulsasse.
— E então?
— Então vamos esperar. Não diga nada aos rapazes.
— Admito que você teve razão a esse respeito, mas enganou-se
quanto ao que os homens comeriam: limparam tudo. Não sobrou nem
um feijão. Guardei-lhes duas latas, na minha tenda.
— Talvez não precisemos de comer mais nada.
— Que quer dizer, Mac?
— Provavelmente nenhum de nós estará aqui amanhã na tenda.
London apontou para as duas latas de comida, que estavam em cima
de um caixote.
— Acha que o xerife tentará expulsar-nos? — perguntou a Mac.
— Sem dúvida nenhuma. Não deixará escapar uma oportunidade
dessas.
— E acha que virá para aí aos tiros, ou dará um aviso aos rapazes?
— Confesso que não sei. Onde estão os homens?
— Todos recolhidos a dormir.
— Ouvi um carro. Talvez sejam os nossos que voltam.
London inclinou a cabeça, para ouvir. — Demasiado grande. É um
daqueles enormes... Correram para fora da tenda. Vindo de Torgas,
subia a estrada um enorme caminhão basculante Mack, com fundo e
lados de aço e dois jogos de pneus duplos. No meio do fundo de aço
estava um homem de pé, empunhando uma metralhadora ligeira,
munida de um grande cilindro de balas. Viam-se as cabeças de outros
homens acima dos lados do veículo. Começaram a sair grevistas das
tendas, aos magotes.
— Sou o xerife deste condado. Se está aí alguém com autoridade,
desejo falar-lhe.
Os homens aproximaram-se mais e olharam com curiosidade para o
caminhão.
— Cuidado, London. — recomendou Mac, baixinho — Eles são
capazes de nos abater. Podiam fazê-lo agora mesmo, se quisessem.
Avançaram até à orla da estrada e pararam. A multidão saída das
tendas também já lá se encontrava.
— Sou eu o chefe, mister. — informou London.
— Bem, tenho uma queixa de ocupação ilícita de propriedade. Temos
sido justos com vocês. Pedimos que voltassem para o trabalho ou então,
se queriam fazer greve, que a fizessem pacificamente. Mas vocês
destruíram propriedade e cometeram homicídio. Esta manhã mandaram
sair homens, para destruir propriedade. Tivemos de disparar contra
alguns deles e prendemos os restantes. — olhou para os homens do
caminhão e levantou de novo a cabeça — Não queremos efusão de
sangue e, por isso, vamos deixá-los sair. Têm toda a noite para sair. Se
seguirem diretamente para a fronteira do condado, ninguém os
incomodará. Mas se este acampamento ainda aqui estiver amanhã ao
nascer do dia invadiremos.
Os homens ouviam-no em silêncio. Mac segredou qualquer coisa a
London, que disse:
— Ocupação ilícita de propriedade não lhes dá o direito de disparar.
— Talvez não, mas resistir à autoridade, dá. Estou a falar francamente
com vocês, para saberem o que podem esperar. Amanhã ao nascer do
dia chegarão cem homens, em dez caminhões como este. Cada homem
trará uma espingarda e teremos três caixotes de bombas Mills. Alguns
dos que souberem poderão explicar aos outros o que é uma Mills. E
pronto. Estamos fartos dos vossos truques. Têm até ao nascer do dia
para sair do condado. — virou-se para a frente e ordenou: — Podes
seguir, Gus.
Desapareceu atrás do taipal de aço, enquanto as rodas giravam
lentamente e adquiriam velocidade.
Um dos grevistas saltou para a vala pouco funda e apanhou uma
pedra. Mas ficou parado, com ela na mão, a olhar para o caminhão que
se afastava. Quando o veículo desapareceu, os homens voltaram para o
acampamento.
London suspirou. — Bem, parece que a ordem foi clara. Não achei
que ele estivesse a brincar.
— Tenho fome. — disse Mac, impaciente — Vou comer os meus
feijões. — entraram com ele na tenda e Mac devorou a comida sôfrega e
apressadamente — Espero que também tenha comido, London.
— Eu? Claro que comi. Que vamos fazer agora, Mac?
— Lutar.
— Pois sim, mas se ele trouxer o material que prometeu, ananases e
o resto, haverá tanta luta como no matadouro.
— Tretas. — resmungou Mac, e deixou escapar da boca um jatinho
de feijões mastigados — Se ele tivesse esse material, não precisaria de
nos falar dele. Só quer que nos desintegremos, para não podermos
resistir. Se sairmos esta noite, vão noa pegar. Eles nunca fazem o que
dizem.
London fitou o rosto de Mac e mergulhou demoradamente os olhos
nos dele. — Isso é verdade, Mac? Você disse que eu estava do vosso
lado. Está a ocultar alguma coisa?
Mac desviou o olhar e respondeu: — Temos de lutar. Se nos vamos
embora sem uma sarrafusca, tudo aquilo por que passamos terá sido
inútil.
— Pois sim, mas se lutarmos uma quantidade de tipos que não
fizeram mal nenhum serão abatidos a tiro.
Mac pôs a lata da comida, ainda inacabada, em cima do caixote. —
Escute, numa guerra um general sabe que vai perder homens. Ora isto é
uma guerra. Se formos corridos daqui sem lutarmos, isso significará que
perdemos terreno. — cobriu momentaneamente os olhos com a mão —
London, é um raio de uma responsabilidade. Eu sei o que deveríamos
fazer, mas o chefe é você. Portanto, com mil raios faça o que quiser. Não
me obrigue a arcar com as culpas todas.
— Sim, mas você sabe destas coisas. — disse London, em tom
lamuriento — Pensa realmente que devemos lutar?
— Devemos, sim.
— Então, com os diabos, então lutaremos... isto é, se conseguirmos
convencer os homens disso.
— Bem sei. Eles podem abandonar-nos, todos eles. Os que ouviram
o xerife dirão aos outros. Podem até virar-se contra nós e dizer que
fomos os causadores de tudo.
— De certo modo, espero que se pirem. — confessou London —
Pobres diabos, não sabem nada. Mas, como você disse, se querem
conseguir alguma coisa, um dia, terão de aguentar agora. E os homens
feridos? O Burke, o velho Dan e o que partiu o tornozelo?
— Deixe-os onde estão, que é a única coisa que podemos fazer. O
condado terá de tomar conta deles.
— Vou dar uma vista de olhos por aí. — disse London — Estou a ficar
nervoso como um gato.
— Não é o único.
Quando London saiu, Jim olhou para Mac e depois começou a comer
os feijões frios e tiras compridas de carne.
— Eles lutarão? Achas que eles deixariam, realmente, os homens
escapar, se eles quisessem fugir?
— O xerife deixaria, com certeza, sentir-se-ia muito feliz por se ver
livre deles. Mas não confio nos vigilantes.
— Não haverá nada para comer esta noite, Mac. Se já estão
assustados, mais ficarão ainda sem jantar que lhes dê forças.
Mac rapou os restos de comida da lata e pô-la em cima do caixote. —
Jim, se te pedisse que fizesses uma coisa fá-la-ias?
— Não sei. De que se trata?
— Bem, o sol não tardará a pôr-se e a ficar escuro. Eles vão estar à
coca para nos caçarem, a ti e a mim. Não tenhas a mínima ilusão a esse
respeito. Eles têm uma vontade muito grande de nos apanhar. Quero
que saias, assim que escurecer, e regresses à cidade.
— Mas por que diabo faria eu isso?
Os olhos de Mac percorreram o rosto do amigo e depois fitaram-se no
chão. — Quando vim para aqui, sentia-me o melhor do mundo, um gajo
porreiro. Mas tu vales dez vezes mais do que eu, Jim, agora sei que
vales. Se me acontecesse alguma coisa, não faltariam tipos para me
substituir, mas tu tens um gênio especial para este trabalho. Não te
podemos perder, Jim. Se fosses liquidado numa greve de meia-tigela...
enfim, seria má economia.
— Não acredito. Os nossos homens são para ser utilizados e não
poupados. Além disso, eu não seria capaz de fugir. Tu próprio disseste
que isto era uma parte do todo. É pequeno, mas é importante.
— Quero que vás, Jim. Não podes lutar com esse braço, não servirás
para nada aqui. Não poderás ajudar.
— Não irei. — afirmou Jim, de rosto tenso — E estou convencido de
que poderei ser de alguma utilidade aqui. Estás sempre a proteger-me,
Mac, e às vezes até tenho a impressão de que não é para o Partido que
me proteges, mas sim para ti.
Mac corou de ira. — Está bem, deixa-te ficar para te limparem o sebo!
Disse o que considerava melhor, mas se queres ser teimoso é lá
contigo. Não posso ficar aqui parado, vou sair. Quanto a ti, podes fazer o
que muito bem te apetecer. — e saiu, furioso.
Jim olhou para a parede do fundo da tenda e viu os contornos do sol
vermelho na lona. Levantou a mão e tocou no ombro ferido, comprimiu
devagarinho, a toda a volta, num círculo que foi estreitando até à ferida.
Encolheu-se um pouco, quando os dedos se aproximaram do ponto
onde lhe doía. Ficou muito tempo sentado, imóvel.
Ouviu passos à porta e olhou. Lisa estava parada à entrada, com o
filho nos braços. Por cima dela, Jim via a fila de carros velhos, na
estrada, e do outro lado o sol a coroar as copas das árvores, embora a
sombra já tivesse chegado aos renques. Lisa olhou para dentro da
tenda, com uma curiosidade de pássaro. Tinha o cabelo úmido, colado à
cabeça e com pequenas ondinhas irregulares, marcadas a dedo. O
cobertor curto que lhe cobria os ombros estava dobrado e chegado para
um lado, com uma espécie de coquetismo.
— Vi que estava sozinho... — entrou, sentou-se no colchão e
endireitou muito bem o vestido de algodão sobre as pernas.
— Ouvi uns homens dizer que os tiras vão atirar bombas e matar-nos
a todos. — observou, despreocupada.
— Parece não a assustar muito. — comentou Jim, surpreendido.
— Não, coisas desse gênero nunca me assustaram.
— Os tiras não lhe fariam mal. — afirmou Jim — Não acredito que
eles façam o que disseram, foi só um truque para nos assustar. Quer
alguma coisa?
— Apeteceu-me vir sentar-me aqui. Gosto de... me sentar aqui.
— Gosta de mim, não gosta, Lisa? — perguntou o rapaz a sorrir.
— Gosto.
— Eu também gosto de si.
— Ajudou-me com o nascimento do bebê.
— Como está o velho Dan? Tomou conta dele?
— Está bem. Continua para ali, apenas a gemer.
— O Mac ajudou-a mais do que eu.
— Pois ajudou, mas não olhou para mim... com simpatia. Gosto de o
ouvir falar. Você é um rapaz novo, mas fala bem.
— Falo demais, Lisa. Muitas palavras e poucas obras. A noite não
tarda, em breve teremos de acender o candeeiro. Você não gostaria de
estar aqui sentada às escuras comigo.
— Não me importava. — respondeu, muito depressa.
Jim fitou-a nos olhos e sorriu, satisfeito. — Já reparou, Lisa, que às
vezes, à noite, pensamos em coisas que aconteceram há muito tempo...
coisas que às vezes nem sequer têm importância? Uma vez, na cidade,
quando era miúdo, o sol estava a pôr-se e havia uma vedação de
tábuas. Um gato cinzento amarinhou por ela acima e sentou-se um
momento lá no alto. Era um gato de pêlo comprido e, durante um minuto,
transformou-se em ouro, num gato de ouro.
— Gosto de gatos. — confessou Lisa, docemente — Uma vez tive
dois gatos, logo dois!
— O sol está quase posto Lisa, e amanhã estaremos em qualquer
lado. Pergunto a mim mesmo onde... Provavelmente você irá a caminho
de casa, e eu... eu talvez esteja na cadeia. Já lá estive.
London e Mac entraram silenciosamente na tenda. London olhou para
a rapariga e perguntou-lhe: — Que fazes aqui Lisa? É melhor ires-te
embora; temos assuntos a tratar.
Lisa levantou-se e aconchegou o cobertor. Olhou de soslaio para Jim,
ao passar.
— Não sei o que se passa. — disse London — Há umas dez
pequenas reuniões, lá fora, e não me querem em nenhuma delas.
— Bem sei. — murmurou Mac — Os homens estão assustados. Não
sei o que farão, mas com certeza terão vontade de fugir esta noite.
A conversa esmoreceu e London e Mac sentaram-se em caixotes,
virados para Jim. Ficaram assim enquanto o sol acabava de se pôr e a
penumbra invadia a tenda.
Por fim, Jim murmurou, suavemente: — Mesmo que os homens se
pirem, não estará tudo perdido. Eles trabalharam um pouco juntos.
— Sim, mas devíamos resistir uma última vez. — declarou Mac.
— Como fará lutar tipos que querem fugir? — perguntou-lhe London.
— Não sei. Podemos falar, podemos tentar levá-los a lutar falando-
lhes.
— Falar não serve de muito quando eles estão assustados.
— Bem sei.
O silêncio voltou. Ouviam o ruído baixo de muitas vozes, no exterior,
vozes dispersas, que gradualmente se juntavam e produziam um som
semelhante ao murmúrio da água.
— Tem um fósforo, London? — perguntou Mac — Acenda a luz.
— Ainda não está escuro.
— Claro também não está. Acenda. Esta maldita meia-luz enerva-
me.
O quebra-luz produziu um som áspero, quando London o levantou e
também quando o desceu de novo.
Mac levantou a cabeça, assustado. — Aconteceu qualquer coisa! Que
foi?
— São os homens. — respondeu Jim — Agora estão calados.
Pararam todos de falar.
Ficaram os três à escuta, todos tensos. Ouviram passos aproximar-se
e viram aparecer à porta dois italianos baixos, que mostravam os dentes
num sorriso constrangido.
— Podemos entrar?
— Claro que podem, rapazes.
Pararam na tenda como alunos a prepararem-se para recitar.
Olharam-se, cada um à espera de que o outro começasse.
— Os homens lá fora... — disse, por fim, um deles — ... querem
convocar um plenário.
—Sim? Para quê?
Foi o segundo que respondeu, muito depressa: — Dizem que se
votaram para se fazer a greve, podem votar outra vez. Perguntam: “De
que servirá sermos todos mortos?” Dizem que não podem continuar em
greve.
Os italianos calaram-se, à espera da resposta de London. Os olhos
deste pediram conselho a Mac.
— Claro, convoquem um plenário. — disse Mac — Quem manda são
os homens. o que eles decidirem será o que se fará. — olhou para os
emissários que esperavam, e acrescentou: — Vão-lhes dizer que o
London convoca um plenário para daqui a cerca de meia hora, a fim de
se decidir se lutamos ou fugimos.
Os italianos olharam para London, para que corroborasse, e ele
acenou lentamente com a cabeça. — Está bem. — murmurou — Daqui a
meia hora. Faremos o que os homens decidirem que se faça, por
votação.
Os homenzinhos inclinaram-se, numa atitude muito estrangeira, e
saíram da tenda.
Mac deu uma gargalhada. — Mas isto é excelente! — exclamou —
Assim é melhor! Pensava que se pirariam à socapa, mas o fato de
quererem votar significa que ainda estão a trabalhar juntos. É ótimo!
Podem dispersar e partir, se o fizerem por seu livre arbítrio.
— Mas não vais tentar convencê-los a lutar? — perguntou Jim.
— Oh, claro! Temos de fazer planos a esse respeito. Mas se eles não
quiserem lutar, enfim, pelo menos não se esgueirarão como cães. Será
mais uma retirada do que outra coisa, não serão corridos.
— Que faremos no plenário? — perguntou London.
— Vejamos... Já é quase escuro. Você fala primeiro, London, explica-
lhes por que razão devem lutar e não fugir. Quanto a mim, é melhor não
falar; não simpatizam muito comigo, depois do que lhes disse esta
manhã. — olhou para Jim e acrescentou: — Terás de ser tu. É a tua
oportunidade. Fala-lhes, vê se consegues convencê-los. Fala, Jim, fala!
É disso que tens estado à espera.
Os olhos de Jim brilharam de excitação. — Mac, posso arrancar o
penso e fazer correr sangue! Isso talvez os estimule.
Mac semicerrou os olhos, a estudar a ideia. — Não... Se os
estimulares desse modo, terão de fazer qualquer coisa muito depressa.
Se, porém, tiverem de ficar parados à espera lá se vai o efeito. Não, Jim,
limita-te a falar. Diz-lhes claramente o que significa uma greve, explica-
lhes que é uma pequena batalha numa grande guerra. És capaz disso.
Jim levantou-se, num pulo ágil. — Podes ter a certeza absoluta de
que sou capaz! Estou quase sufocado, mas sou capaz. — do seu rosto
transfigurado parecia emanar uma luz violenta, de energia.
Ouviram passos de alguém que corria e um rapaz novo irrompeu pela
tenda: — No pomar. — gritou — Está um tipo no pomar que diz que é
médico. Está todo ferido...
Os outros dois homens levantaram-se também, como que impelidos
por uma mola.
— Onde?
— Do outro lado. Diz que tem lá estado caído todo o dia.
— Como o encontrou? — perguntou Mac.
— Ouvi-o gritar. Ele pediu que viesse dizer-lhes.
— Indique-nos o caminho. Vamos depressa!
O rapaz virou-se e saiu a correr.
— London, traga a lanterna! — gritou Mac.
Mac e Jim começaram a correr lado a lado. Escurecera quase por
completo. Em frente, viam o vulto do rapaz, que parecia voar. Correram
através do descampado. O moço chegou à linha do arvoredo e
mergulhou entre as árvores. Os homens ouviam-no correr à sua frente.
Mergulharam também na sombra negra das árvores.
De súbito, Mac estendeu a mão. — Jim, atira-te ao chão, pelo amor de
Deus! Ouviu-se um estampido e dois grandes buracos de luz romperam
a escuridão. Mac estendeu-se ao comprido e ouviu vários grupos de pés
a correr. Olhou na direção de Jim, mas os clarões dos tiros ainda lhe
queimavam a retina. Gradualmente, foi distinguindo o vulto do amigo,
que estava de joelhos e com a cabeça pendente.
— Atiraste-te depressa, Jim!
Mas Jim não se mexeu. Mac rastejou para ele, de joelhos.
— Foste atingido, Jim? — a figura continuava ajoelhada, com o rosto
no solo — Oh, Cristo!
Mac estendeu a mão, para levantar a cabeça do amigo. Soltou um
grito, afastou rapidamente a mão e limpou-a às calças, pois não havia
rosto nenhum naquela cabeça. Olhou lentamente em seu redor, por cima
do ombro.
A lanterna parecia saltitar na sua direção, iluminando as pernas de
London, que corria.
— Onde estão? — gritou London.
Mac não respondeu. Sentou-se nos calcanhares, muito quieto, a
olhar para o vulto ajoelhado na posição de prece de um muçulmano.
London viu-os, finalmente. Aproximou-se, parou e a lanterna fez um
círculo de luz.
— Oh — exclamou, ao mesmo tempo que baixava a lanterna e
espreitava — Caçadeira?
Mac acenou com a cabeça e olhou para a mão viscosa.
London fitou-o e o seu rosto petrificado fê-lo estremecer. Mac
levantou-se, muito hirto, inclinou-se, pegou em Jim e atravessou-o no
ombro, como um saco. A cabeça a pingar sangue ficou pendurada, junto
das suas costas. Partiu, de pernas rígidas, na direção do acampamento.
London, caminhava ao lado dele, com a lanterna.
A clareira estava cheia de homens curiosos. Comprimiram-se, até
verem o fardo que Mac transportava, e depois recuaram. Mac passou
pelo meio deles como se não os visse. Atravessou a clareira, e deixou
para trás os fogões, e a multidão seguiu-o silenciosamente. Chegou à
plataforma, depositou o corpo debaixo do corrimão, saltou para o
estrado e arrastou Jim até o encostar à trave do canto. O corpo
escorregou para o lado e ele endireitou-o.
London estendeu-lhe a lanterna e Mac colocou-a cuidadosamente no
chão, ao lado do corpo, de modo que a luz incidisse na cabeça.
Levantou-se e encarou a multidão. Apertou o corrimão, com ambas as
mãos. Os seus olhos pareciam enormes e brancos. Via na primeira fila,
o aglomerado dos homens, de olhos a brilhar à luz da lanterna. Atrás da
primeira fila os rostos tornavam-se vagos, um amontoado negro. Mac
estremeceu. Moveu os lábios, para falar, e foi como se tivesse de
quebrar as mandíbulas petrificadas, para as soltar. Falou em voz alta e
monocórdica: — Este homem não queria nada para ele... — começou.
Os nós dos seus dedos brilhavam brancos, denunciando a força com
que agarrava o corrimão.
— Camaradas! Ele não queria nada para si próprio...

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